histÓria da educaÇÃo no brasil: a constituiÇÃo

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Page 1: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO CAMPO E

SUA CONFIGURAÇÃO ATUAL1

Luciano Mendes de Faria Filho2

Diana Gonçalves Vidal3

A partir do fim dos anos 1960 e início dos 1970, com o surgimento dos

Programas de Pós-Graduação em Educação no país (o da PUC-Rio, em 1965, e da

PUC-SP, em 1969, foram os primeiros a se constituir), e dos anos 1980, com a criação

do Grupo de Trabalho “História da Educação” da Associação Nacional de Pós-

Graduação e Pesquisa em Educação, em 1984, e do Grupo de Estudos e Pesquisas

“História, Sociedade e Educação no Brasil” (HISTEDBR), em 1986, cresceu

substantivamente a produção de trabalhos em História da Educação no Brasil. Ao

mesmo tempo foi-se constituindo uma certa identidade, ainda que multifaceta e plural

do historiador da educação.

Neste texto, instados pelos vários balanços efetuados ao final dos Congressos

ocorridos nos últimos anos, como o I Congresso Brasileiro de História da Educação e os

I a IV Luso-brasileiro de História da Educação, ou por encomendas de Grupos de

Trabalho, como o GT História da Educação da ANPEd e HISTEDBR, procuramos

delinear um panorama da produção historiográfica recente, destacando temáticas e

períodos de interesse à pesquisa histórico-educacional, bem como aportes teóricos mais

recorrentes nessa escrita disciplinar.

Para a elaboração desta reflexão referente à história da educação produzida, no

Brasil, ao longo dos anos 1980 e 1990, fizemos uso de um conjunto de balanços já

produzidos por pesquisadores brasileiros em diferentes circunstâncias e utilizando bases

documentais também muito diferenciadas. O primeiro deles foi elaborado por Mirian

Jorge Warde, em 1984, por ocasião de sua participação no Seminário Historiografia e

1 Os autores agradecem a leitura atenciosa dos originais e as sugestões de Maria Lúcia Spedo Hilsdorf.2 Luciano Mendes de Faria Filho é professor de História da Educação da Faculdade de Educação da UFMG e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em História da Educação dessa mesma faculdade. Entre 1997 e 2001, foi coordenador do do Grupo de Trabalho de História da Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação.3 Diana Gonçalves Vidal é professora de História da Educação da Faculdade de Educação da USP e uma das coordenadoras do Centro de Memória da Educação dessa mesma faculdade. Atualmente assume a vice-coordenadoria do Grupo de Trabalho de História da Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação. Entre 1999 e 2001, atuou como secretária da Sociedade Brasileira de História da Educação em sua primeira diretoria.

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educação, promovido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais-

INEP. À época, a autora trabalhou com 155 dissertações e teses defendidas nos

programas de pós-graduação em educação entre 1970 e 1984.

O segundo balanço foi elaborado por Clarice Nunes, em 1996 – e publicado em

1998 -, quando de sua participação na Sessão de Encerramento do I Congresso

Lusobrasileiro de História da Educação, realizado na Universidade de Lisboa em janeiro

daquele ano. A autora trabalhou com os resumos dos 170 trabalhos inscritos no

Congresso. Os terceiro e quarto balanços são frutos dessa mesma circunstância: o de

Cláudia Alves, produzido em 1998, foi elaborado a partir dos resumos dos 189 trabalhos

inscritos no II Congresso Lusobrasileiro de História da Educação, realizado na

Universidade de São Paulo em fevereiro daquele ano, e também foi apresentado na

Sessão de Enceramento do Congresso; o trabalho de Cynthia Greive Veiga e Joaquim

Pintassilgo, produzido em 2000, teve como base de análise os resumos dos 343

trabalhos inscritos no III Congresso Lusobrasileiro de História da Educação, realizado

na Universidade de Coimbra em março daquele ano, sendo apresentado na Sessão de

Enceramento do Congresso. Desses balanços, ressaltamos aqueles aspectos que se

referem à realidade brasileira.

Outro trabalho que aqui utilizamos foi aquele produzido por Libânia Nacif

Xavier a partir dos resumos dos 241 trabalhos aprovados para serem apresentados no I

Congresso Brasileiro de História da Educação, promovido pela Sociedade Brasileira de

História da Educação e realizado no Universidade Federal do Rio de Janeiro, em

outubro de 2000. O trabalho foi apresentado no encerramento do referido Congresso.

Por último, utilizamo-nos do balanço realizado por Denice Bárbara Catani e Luciano

Mendes de Faria Filho, produzido em 2001 – publicado em 2002. Tal estudo foi

realizado por encomenda do Grupo de Trabalho de História da Educação da ANPEd e

analisou 185 trabalhos apresentados nas reuniões anuais do GT no período de 1984 a

2000.4

Esses textos, em seu conjunto, cobrem tanto o momento inicial de reflexão e da

inflexão historiográficas operadas nos anos 1980 (1984), quanto o momento em que, já

organizados numa sociedade científica autônoma, os historiadores da educação

4 Para subsidiar a nossa reflexão, tanto produzimos novas organizações dos dados apresentados pelos pesquisadores, quanto repetimos quadros e/ou tabelas elaboradas por eles. Os casos em que ocorre uma ou outra operação estão devidamente indicados no texto.

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realizaram seu I Congresso Brasileiro de História da Educação (I CBHE), em 2000. A

análise dos balanços privilegiou quatro dimensões abordadas pelos seus autores:

recorte temporal das pesquisas, recorte temático, fontes pesquisadas e reflexões teórico-

metológicas encetadas.

I. Os tempos pesquisados.

No que se refere aos recortes temporais, pode-se dizer que o percurso do campo

foi de uma concentração de estudos sobre a primeira metade do século XX, nos anos

1980, para uma dispersão temporal, períodos anteriores e posteriores a esse marco, no

anos 1990. Tal tendência, todavia, não fez com que o século XX deixasse de ser o

período que mais merecesse a atenção dos pesquisadores da área.

Ao analisar as teses e dissertações produzidas entre 1970 e 1984, Warde afirmou

que:

“Mais de oitenta por cento dos estudos referem-se à etapa republicana e desse

período as duas fases que têm atraído o maior número de interesse são a Primeira

República e a Era de Vargas, mais esta do que aquela, e, nesta, mais o Estado

Novo.”(Warde,1984, p.1)

Interessada em saber como os marcos temporais das pesquisas que resultaram

nos trabalhos analisados foram produzidos, Warde observou que na maioria das vezes

tais recortes eram independentes e exteriores aos objetos investigados. Assim,

“independentemente do objeto e da ótica a partir da qual ele é tomado, as

periodizações são dadas pelos marcos consagrados na chamada referência ‘política’ –

Colônia, Império, Primeira República, Período Vargas, República Populista e o Pós-

64.”(Idem, ibidem)

Os dados referentes aos Congressos Lusobrasileiros e aos trabalhos apresentados

no GT História da Educação da ANPEd demonstraram as duas tendências acima

aludidas: a maior atenção ao século XX, sobretudo em sua primeira metade, convivendo

com uma expansão do interesse dos pesquisadores pelo século XIX. A respeito disso,

afirmava Clarice Nunes (1988, p. 23) em seu balanço sobre o I Congresso

Lusobrasileiro: “Apesar do predomínio de pesquisas sobre o período republicano,

alargamos mais nosso conhecimento ampliando, mesmo discretamente, o número de

trabalhos sobre a sociedade imperial e o momento da colonização do país”.

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No Congresso seguinte, em 1998, Cláudia Alves ao realizar o balanço dos

trabalhos apresentados, concluiu que o período que mais tinha merecido a atenção dos

pesquisadores começava em geral em torno de 1920 e estendia-se por todo o século XX.

Continuava, todavia, havendo uma concentração de estudos em torno da primeira

década do novecentos. Entretanto, a autora salientava que:

“O segundo grande período mais discutido pelos participantes deste II

Congresso foi o que se estende de fins do século XIX ao início do XX. A maior parte se

dedicou ao grande segmento temporal de final de um século e início de outro, o

restante das pesquisas se dividindo em dois subperíodos: o momento final do século

passado e o começo de nosso século” (Alves,1998, p.197).

Cláudia Alves (1998.p.198) observou, por fim, a permanência do ano de 1930

como marco temporal importante para o início das pesquisas, fato que já fora apontado

por Mirian Warde em seu trabalho de 1984.

O quadro I permite-nos perceber com maior nitidez a distribuição dos trabalhos

de acordo com quatro demarcações temporais básicas que emergiram, segundo os

pesquisadores, nos trabalhos apresentados no III Congresso Lusobrasileiro e no GT

História da Educação. Evidencia-se, aí, tanto num evento pontual, o congresso, como na

análise de uma série temporal de quase vinte anos, a concentração dos estudos no

século XX. Se considerarmos, ainda, a possibilidade de que parte significativa dos

trabalhos que se iniciaram no final do século XX tratam mais profundamente do próprio

século XX, poderemos levantar dúvidas sobre o crescimento do interesse dos

pesquisadores pelos períodos anteriores. Se tal crescimento há, ele é muito abaixo do

crescimento das pesquisas na área, ou seja, ao que tudo indica, os novos pesquisadores

continuam concentrando seus investimentos em investigações que tratam do século XX.Quadro I

Períodos pesquisados

Período Evento

(séculos)

III Congresso Lusobrasileiro

2000

%

GT História da Educação

(1984-2000)

%

Antes do XIX 7 3

XIX 10 17

Final do XIX / 20 20

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Page 5: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

Início do XX

XX 63 55

Outros - 5

Total 100 100

Fontes: Veiga e Pintassilgo, 2000; Catani e Faria Filho, 2002.

No que se refere ao GT História da Educação, em que é visível um maior

interesse pelo século XIX, Denice B. Catani e Luciano M. de Faria Filho (2002.p.124)

afirmaram existir uma outra forma, também reveladora, de organizar os dados. Segundo

eles, havia uma

“... forma de visualizar o conjunto da produção, bem mais reveladora da

concentração dos trabalhos num determinado período: a que compreende os 100 anos

que vão de 1850 a 1950. Agrupando-se inicialmente os trabalhos cujos períodos inicial

ou final da pesquisa são anteriores ao ano de 1850; em seguida, aqueles cujos períodos

inicial e final estão compreendidos entre 1850 e 1950; e, finalmente, aqueles cujos

períodos inicial ou final da pesquisa são posteriores ao ano de 1950 [quadro 2], vemos

que há uma grande concentração no segundo agrupamento, estando ali localizados

mais de 72% dos estudos.”Quadro 2

Períodos sobre os quais incidem as produções do GT História da Educação

(considerando-se o período inicial e/ou final da pesquisa)

Período Número de trabalhos %

Anterior a 1850 13 8,3

1850-1950 113 72,4

Posterior a 1950 30 19,3

Total 156 100

Fonte: Catani e Faria Filho, 2002.

Esta mesma tendência de concentração foi observada por Libâna N. Xavier nos

trabalhos inscritos no I Congresso Brasileiro de História da Educação, realizado em

2000. Segundo ela,

“Ainda é limitado o interesse pelo estudo da História da Educação do Período

Colonial (apenas 6 resumos). Confirmando as tendências verificadas em levantamentos

anteriores, a quantidade de resumos que se voltam para o XIX foi pouco maior que os

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estudos que cobrem os anos de 1920 e 1930. Verificamos, ainda, o crescente interesse

pelo estudo da educação brasileira nos anos 1950 e 1960. (...)

“Como vimos, confirmou-se a tendência já observada em balanços anteriores

(...) do aumento da quantidade de estudos que se voltam para o século XIX e o período

compreendido na passagem deste para o século XIX” (Xavier, 2000, p.223-4).

No entanto, mesmo permanecendo o interesse maior dos pesquisadores pelo

século XX, uma mudança significativa aparece quando se realizam recortes mais

refinados. Eles permitem perceber, como fazem Cynthia G. Veiga e Joaquim

Pintassilgo, com referência aos trabalhos do III Lusobrasileiro, que havia “na maioria

das comunicações, uma clara libertação da sua delimitação temporal relativamente à

cronologia política” (Veiga e Pintassilgo, 2000, p.11). Isto significaria a superação

daquela tendência, detectada por Mirian Warde e referida anteriormente na crítica de

Laerte Ramos de Carvalho, em utilizar os marcos consagrados pela referência política?

Ainda a respeito desta questão, analisando os dados do GT História da

Educação, Catani e Faria Filho (2002, p.124-5) são mais cautelosos. Segundo eles,

“Estas formas de organizar os dados, no entanto, não podem deixar a

impressão de que outras maneiras de fazê-lo não são possíveis ou não existam. É

importante frisar que formas anteriores de periodização de nossa história educacional,

baseadas em critérios externos ao campo educacional, sejam eles políticos ou

econômicos, convivem, no conjunto dos trabalhos, com a busca de temporalidades

próprias aos fenômenos analisados. Assim, podemos observar a permanência de uma

história da educação colonial, ou da educação imperial, ou da educação na Primeira

República, e a emergência de tempos como últimos anos do Império, anos 1920, 1900 a

1935, 1930 a 1933, dentre outros. Pode-se concluir claramente pela existência de um

painel diverso e multifacetado de tempos e de práticas historiográficas, no qual a

inovação e a tradição de pesquisas no campo se fazem presentes”.

Restaria, ainda, a respeito desta questão, perguntar: como os diferentes analistas

da área justificaram as concentrações ou dispersões encontradas? Todos parecem

concordar que a complexificação do campo e do sistema educacionais brasileiros ao

longo do século XX são por demais eloqüentes, chamando, assim, a atenção sobre si

mesmos. Mas esta não é a única resposta possível. Como vimos, para Mirian Warde,

que trabalhou sobretudo com teses e dissertações, esse fato se daria pelo submetimento

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Page 7: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

das práticas historiográficas da educação aos marcos consagrados pela política e,

portanto, em boa parte exteriores ao campo educacional. Na verdade, tal seria, para a

autora, uma das evidências da pouca criatividade dos pesquisadores da área e a

“tendência de se caminhar pelas fendas já abertas pela historiografia da educação,

quando muito acrescentando novos dados, mais do que vasculhando as muitas zonas de

sombras nas quais se encontra a história da educação brasileira” (Warde, 1984, p.5).

A última tendência apontada por Mirian Warde pareceu superada pelas

autoras(es) de todos os demais balanços realizados, conforme já dissemos, a partir da

segunda metade da década de 90, que buscaram outras razões para explicar a

concentração ou a dispersão dos trabalhos pelos diferentes períodos. Para Cláudia

Alves, a razão da concenração dos trabalhos no século XX foi motivada, “de certa

forma, a presença imponente do século XX neste nosso evento confirma o que já se tem

observado sobre a incidência e a insistência do olhar sobre a educação neste século, já

que ele tem oferecido ao historiador da educação maior quantidade e variedade de

fontes” (Alves, 1998, p.196).

Doutra parte, ao pretender explicar porque os historiadores da educação

passaram a se interessar mais pelo século XIX, Libânia N. Xavier, afirmou que

“De uma maneira geral, os educadores estão interessados em compreender as

especificidades da gênese e do desenvolvimento da escola pública, a partir do século

XIX, observando como este modelo escolar articula-se ao processo de constituição da

esfera pública em nosso país, de secularização da cultura e de progressiva

especialização do campo educacional, consoante um projeto de construção da

nacionalidade” (Xavier, 2000, p.224).

Outro viés foi apontado tanto por Cláudia Alves (1998) quanto por Cynthia G.

Veiga e Joaquim Pintassilgo (2000), ao analisarem os trabalhos relativos ao II e III

Congressos Lusobrasileiro respectivamente. Segundo os autores, a concentração no

século XX era fortalecida devido a um certo presentismo existente na área e pelo

aumento do número de pesquisadores que trabalham com fontes orais, que, por óbvias

razões, somente podem trabalhar com um tempo mais próximo.

II. Os temas estudados e as fontes produzidas.

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Page 8: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

Há, hoje, no âmbito da comunidade de historiadores da educação, uma

unanimidade quanto às renovações temática e medológica operadas no âmbito da

disciplina. Na verdade, a relação estreita entre uma e outra renovações aparece indicada

nos balanços analisados quanto em diversos trabalhos sobre este campo de pesquisa

produzidos recentemente no Brasil (como, por exemplo, Carvalho, 2000; e Lopes

Galvão, 2001).

No entanto, de acordo com Mirian Warde, essa renovação não abalava

aproximações já consagradas na disciplina para alguns objetos. Sublinhando a

dificuldade de inovação observadas nas teses e dissertações, a autora afirmou que,

quando se referiam à República, “com poucas exceções, falam da organização escolar,

da legislação do ensino e da ‘disparidades’ entre uma e outra” (Warde, 1984, p.2). Em

relação aos outros períodos, o resultado não era, segundo a autora, mais animador:

“Em relação à Colônia, abordam o caráter elitista da educação jesuítica e

depois as modificações introduzidas na educação anterior. Quanto ao Império, falam

da desconsideração pelo ensino elementar (...) e da lamentável inexistência de uma

universidade nos moldes daquelas que as sociedades mais esclarecidas haviam criado”

(Idem, ibidem).

Quanto aos anos 1990, os dados apresentados no Quadro III, a respeito dos três

Congressos Lusobrasileiros, coligidos por Greive e Pintassilgo (2000) e reorganizados

por nós, permitem-nos interessantes inferências. Em primeiro lugar, salta aos olhos o

esforço da área em se repensar, indiciado aqui pelo interesse dos pesquisadores pelas

chamadas “questões teórico-metodológicas”. Os dados relativos aos trabalhos

apresentados no GT História da Educação também reforçavam tal impressão. O tema

“fontes e metodologias” aparecia em segundo lugar, ao lado de “profissão docente”,

entre os temas de maior interesse dos pesquisadores que apresentaram trabalho nas

reuniões anuais.

Em termos relativos, no entanto, o número decrescente de trabalhos inscritos

nessa temática ao longo dos três Congressos Lusobrasileiros parece indicar que, de uma

grande “ebulição” teórico-metodológica em meados dos anos 1990, a área caminhou

para uma certa estabilidade, apontada por alguns dos balanços aqui analisados e

discutida mais adiante, que fez com que a discussão teórico-metodológica, menos que

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Page 9: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

objeto de uma discussão à parte, pudesse ser incorporada, sugerida ou pressuposta no

corpo mesmo do trabalho realizado.

QUADRO 35

Eventos

Temas

Iº Luso IIº Luso IIIº Luso

F % F % F %

Questões teórico-metodológicas 47 28 39 21 53 16

História da profissão docente 21 12 25 13 25 7

História das culturas escolares: práticas educativas e práticas pedagógicas

49 29 43 23 51 15

História da imprensa e dos impressos educacionais

27 16 08 4 32 9

Alfabetização, ensino e modernidade 26 15 04 2

Práticas culturais, educativas e pedagógicas: colonização, religiões e crenças em HE.6

12 6 51 15

História das políticas educacionais e instituições escolares

58 31 80 23

Culturas e identidades em HE 52 15

Total 170 100 189 100 343 100

Fonte: Veiga e Pintassilgo, 2000.

Quadro 4

Temas examinados nas produções apresentadas no GT História da Educação

Temas Número de vezes que aparece %

Sistema escolar 28 14,6

Profissão docente 21 10,9

Fontes e metodologia 21 10,9

Estudos de gênero 19 9,9

Livros e práticas de leitura 12 6,3

Saberes escolares 07 3,6

5 Na montagem deste quadro colocamos juntos certos temas que, inicialmente, foram apresentados pelos autores dos balanços de forma separada mas que, a nosso ver, tratavam da mesma problemática. Alguns temas não aparecem, nos balanços, todos os anos.6 Neste caso, os trabalhos poderiam versar sobre colonização, religiões e crenças ao mesmo tempo ou sobre qualquer um deles em separado. Por exemplo: um trabalho poderia abordar as relações entre crenças e educação, no Brasil ou Portugal, no século XX.

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Page 10: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

Idéias pedagógicas 06 3,1

Outros 78 40,7

Total 192 100

Fonte: Catani e Faria Filho, 2002.

Num e noutro quadros, chama atenção a permanência de temas tradicionais da

pesquisa em história da educação tais como “história das políticas educacionais”, no

caso dos Congressos, e “sistema escolar”, no caso do GT História da Educação. Tal

traço foi identificado, também, por Libânia N. Xavier ao analisar os trabalhos inscritos

no I CBHE em relação a temas como “pensamentos e idéias educacionais/pedagógicas”.

No entanto, cabe aqui chamar a atenção, como essa autora (Xavier, 2000.p.230), para o

fato de que tais temas, de um modo geral, podem estar sendo analisados a partir de

perspectivas diferentes daquelas observadas nos anos 1970 e 1980. O caso das

chamadas “idéias pedagógicas” parece ser um bom exemplo disso: no lugar no

inventário das idéias pedagógicas dos grandes autores e de uma aproximação bastante

idealista das mesmas, aparecem, cada vez mais, abordagens que operam com noções

como a de circulação e apropriação ou, mesmo, de saberes escolares, que significam

uma mudança acentuada do enfoque teórico-metodológico utilizado e, assim, das

conclusões a que os trabalhos têm chegado. São estes novos referenciais que têm

permitido, segundo Catani e Faria Filho (2002, p.126) “a explosão dos temas e objetos

de pesquisa em história da educação no anos 90.” No entanto, esses mesmos autores

nos adverteram que “sob a aparente dispersão, observa-se, certamente, o adensamento

de linhas como: a história da leitura e dos impressos, a história das práticas e

processos de escolarização e a história da profissão docente”(p.126): constatação que,

sem dúvida, pode ser ampliada tanto para os Congressos Lusobrasileiros quanto para o

I CBHE.

Em se tratando, ainda, de inovações temáticas, chama a atenção o fortalecimento

e adensamento dos trabalhos que se dedicam ao estudo das chamadas culturas

escolares. Tais estudos têm permitido, segundo os analistas, não apenas adentrar à

“caixa preta” da sala de aula, mas também desnaturalizar a instituição escolar,

historicizando a própria institucionalização da educação escolar e discutindo de forma

articulada os tempos, espaços, sujeitos, materiais e conhecimentos envolvidos naquilo

que alguns têm chamado de processo de escolarização da sociedade. Essa tendência

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Page 11: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

vem se evidenciando na recorrência com que mesas-redondas sobre cultura escolar têm

sido incluídas nos congressos na área. Foi o caso do III Lusobrasileiro, com a mesa

“Culturas escolares”, e o II Congresso Brasileiro de História da Educação, “Cultura

escolar: questões de historiografia”, realizado em Natal, no ano de 2002.

O otimismo demonstrado pelos historiadores da educação quando às inovações

pelas quais o campo disciplinar vem passando nos últimos anos, tem sido acompanhado,

segundo os autores, por uma ampliação das fontes produzidas e mobilizadas pelos

pesquisadores. Há uma unanimidade quanto a isto em todos os balaços realizadas no

final os anos 1990. Aponta-se a continuidade de utilização de fontes tradicionalmente

manipuladas pelos historiadores da educação, tais como a legislação e os relatórios

oficiais, ao mesmo tempo em que se saúda, com muito bons olhos, a utilização de outras

ainda não tão comuns ao meio: memórias e autobiografias, imagens, sobretudo

fotográficas, revistas pedagógicas, jornais, livros didáticos e até mesmo filmes, músicas

e materiais escolares.

Finalmente, há que sublinhar algo observado nos vários balanços: o crescimento

da preocupação, na área, com a localização, tratamento, guarda e disponibilização de

acervos documentais. Esta questão, tem se constituído em objeto de pesquisas, de

encontros e de publicações na área, e tem sensibilizado um número cada vez maior de

pesquisadores para a necessidade do estabelecimento de políticas públicas relativas à

preservação dos documentos educacionais, políticas essas que deveriam atingir tanto

aos gestores dos sistemas de guarda, tratamento e disponilização, quanto às pessoas que

quotidianamente produzem tais documentos: diretores escolares, professores, alunos e

seus familiares. Tal empreendimento poderia, acreditam os pesquisadores, não apenas

resgatar e conservar documentos para nossas pesquisas, mas também constituir um

acervo documental mais rico e diversificado para a futura história da educação atual.

Ao lado desse otimismo, aparecem reticências não menos importante. A

primeira delas é quanto à utilização prioritária de fontes oficiais, sejam elas manuscritas

ou impressas, textuais ou imagéticas. Segundo Catani e Faria Filho (2002, p.126), nos

trabalhos apresentados no GT História da Educação, “quase a metade das fontes

utilizadas emanam diretamente de órgãos estatais, e boa parte apresenta nitidamente

feições prescritivas”. Do mesmo modo, denuncia-se, também, a ausência de

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Page 12: HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: A CONSTITUIÇÃO

determinados “materiais como cadernos, provas e exames escolares” (Nunes, 1998,

p.19), fundamentais para o entendimento do cotidiano escolar e das práticas escolares.

Em relação às novas fontes incorporadas, chama-se a atenção para a necessidade

da produção de uma teoria específica sobre seu uso, evitando-se o risco da crítica

interna a uma fonte a partir de parâmetros de inteligibilidade de outra. Ou seja, por

exemplo, utilizar os mesmos parâmetros para análises de textos e imagens. Nesse

sentido, há um clamor bastante generalizado sobre a necessidade de maior

aprofundamento do debate sobre as formas, os fundamentos e os procedimentos

referentes à apropriação e difusão das fontes orais na área.

Outro aspecto sobre o qual recaem dúvidas e expectativas em praticamente todos

os últimos balanços analisados é o que se refere à chamada história comparada. Há, por

um lado, uma positiva expectativa de que para que haja um aprofundamento das

relações entre os pesquisadores brasileiros com seus pares de outros países, sobretudo

portugueses, é necessário se investir em projetos de história comparada da educação. No

entanto, apesar de se apontar a existência de algumas propostas de estudos comparados,

parecem persistir as apreensões apresentadas por Clarice Nunes na Sessão de

Encerramento do I Lusobrasileiro. Naquela ocasião, afirmava:

“Tanto ausência, quanto a visão convencional da comparação são indícios de

problemas presentes na produção da história da educação brasileira hoje. Assinalo o

que me parece ser uma grande questão, senão maior, dos estudos comparados: a

exigência de revisão teórica e metodológica da comparação. Urge que repensemos

tanto a herança positivista, quanto a certas contribuições do Movimento dos Annales”

(Nunes, 1998, p.18).

Ainda no que se refere às reticências apresentadas quanto à produção dá área,

outro aspecto a ser considerado é a grande concentração da produção no centro-sul do

país, em comparação com as outras regiões. Em todos os balanços constata-se essa

concentração que é imputada, quase sempre, ao maior número de instituições de

pesquisa e de programa de pós graduação nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro,

Rio Grande do Sul e São Paulo.

Por fim, cabe frisar que o grande ausente no conjunto dos trabalhos analisados

nos diversos balanços, mas também não problematizado por seus autores, é o tema do

ensino de história da educação. Uma hipótese explicativa seria que, para afirmar e

12

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legitimar a história da educação como disciplina acadêmica e como área de pesquisa, os

pesquisadores tiveram que buscar romper com a tradição da disciplina, que, conforme

vimos, esteve por um longo tempo associada fortemente ao ensino. Uma tal perspectiva

explicaria, sem justificar, o fato de os historiadores da educação colocarem no limbo, de

deixarem à sombra, as questões referentes ao ensino dessa disciplina nos cursos de

graduação e pós graduação. Tal seria, dentre outros, o alto preço pago pelo baixo

prestígio das atividades de ensino quando comparadas às de pesquisa: questão de resto

já bastante discutida em outras áreas.

III. Como diferentes balanços explicam a renovação na área?

Uma primeira razão apontada para mudança do perfil da pesquisa em história da

educação no Brasil está relacionada ao amadurecimento das próprias instituições que

abrigam os pesquisadores da área. Se, em 1984, Mirian Warde apontava a fragilidade

dos programas de pós-graduação e a pequena tradição de estudos na área como fatores

constitutivos do pragmatismo presente na 155 das teses e dissertações analisadas, o

fortalecimento dessas instituições ao longo das duas últimas décadas parece ter

repercutido favoravelmente na produção da área. Indícios disso podem ser percebidos

na criação e manutenção, no interior da ANPEd, do Grupo de Trabalho de História da

Educação, avaliado, em todos os balanços, como o mais importante espaço institucional

brasileiro para a produção de prestígio acadêmico e para a renovação dos estudos no

campo.

Criado em 1984, no interior da principal instituição científica da área e

utilizando muito positivamente desse lugar e do apoio institucional auferido, o GT

História da Educação rapidamente tornou-se o principal espaço nacional de aglutinação

de pesquisadores, de crítica historiográfica e de difusão de novos horizontes de

pesquisas na área. Desse modo, “o grupo difunde uma nova historiografia, estendendo

sua influência para vários centros de ensino e pesquisa brasileiros.” (Catani e Faria

Filho, 2002, p.115)

Ainda na década de 1980 é importante citar a criação, em 1986, do Grupo de

Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil, conhecido pela sigla

HISTEDBR. O grupo, com sede na Universidade de Campinas, articula mais de duas

dezenas de outros grupos em quase todos os estados brasileiros e realiza reuniões

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periódicas para discussão dos resultados de suas pesquisas. Segundo o Coordenador

Geral do HISTEDBR, Dermeval Saviani, em conferência pronunciada no IV Seminário

Nacional de Estudos e Pesquisas História, Sociedade e Educação no Brasil, realizado

em 1997, o grupo “surgiu , como sugere o seu nome, com a preocupação de investigar

a História da Educação pela mediação da Sociedade, o que indica a busca de uma

compreensão global da educação e seu desenvolvimento. Contrapunha-se, pois, à

tendência que começava a invadir o campo da historiografia educacional” (Saviani,

1998, p.14). Tal “tendência” acima referida é, nas propoduções do grupo,

constantemente associada ao “paradigma pós-moderno” e à história cultural. Mas,

segundo balanço de seus próprios coordenadores, na produção do grupo “detecta-se

uma multiplicidade de leituras, com predominância da concepção dialética da história

e a emergência de outras modalidades metodológicas ligadas à chamada ‘história

cultural’” (Saviani e Lombarde, 2001, p.140-1).

Ao longo dos anos de 1990, a par de um incremento das ações do GT de História

da Educação e do HISTEDBR, a área se viu enriquecida com a constituição de inúmeras

outras instâncias de aglutinação de pesquisadores e condensação/difusão de perspectivas

teórico-metodológicas. A primeira grande novidade foi, ao que nos parece, uma

mudança substantiva na forma mesmo de organizar e realizar as pesquisas: além da

continuidade da tradição das investigações efetuadas individualmente, emergiu na área,

como em todo o campo da educação, uma multiplicidade de grupos de pesquisa que se

colocaram o desafio de investigações de escopo alargado, de longo prazo e com grande

preocupação com o mapeamento, organização e disponibilização de acervos

documentais.7

Indicando um maior amadurecimento da área, na segunda metade dos anos de

1990, assistimos, também, a organização de associações científicas específicas da área.

Em 1996, os pesquisadores em história da educação do Rio Grande do Sul, após uma

série de reuniões, decidem, pioneiramente, criar a Associação Sul-rio-grandense de

Pesquisadores em História da Educação/ASPHE. A associação tem por objetivos

“incentivar e realizar a pesquisa e a divulgação na área de História da Educação,

prioritariamente do Rio Grande do Sul; congregar pesquisadores e os estudiosos da

7 A este respeito, indicamos, para os interessados, o número 34 do periódico Educação em Revista, da Faculdade de Educação da UFMG, que traz um dossiê com os oito principais grupos de pesquisa em atividade no país, além de uma síntese das atividades desenvolvidas pela Associação Sul-rio-grandense de Pesquisadores em História da Educação/ASPHE.

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área e manter intercâmbio com entidades congêneres” (Peres e Bastos, 2001, p.223).

Em 1999, foi a vez da criação da Sociedade Brasileira de História da Educação(SBHE),

fruto de um trabalho de cooperação e articulação dos diversos pesquisadores e grupos

de pesquisas atuantes na área.

Outros fatores apontados como importantes na produção do atual perfil da área,

são os encontros, congressos e reuniões de trabalho organizados no Brasil e no exterior

pelos pesquisadores brasileiros, bem como o crescimento do intercâmbio com pares de

outros países, notadamente Portugal e França. O próprios Congressos Lusobrasileiros,

as reuniões anuais do GT da ANPEd, os Congressos Iberoamericanos e, mais

recentemente, os Encontros anuais da ASPHE, os Congressos Brasileiros de História da

Educação, organizados pela SBHE, são exemplares nesse aspecto. Na mesma linha,

poder-se-ia acrescentar a existência de duas revistas acadêmicas especificamente

dedicadas ao tema História da Educação. A primeira, publicada pela ASPHE, intitula-se

História da Educação, da qual já foram publicados 12 números semestrais. A segunda,

denominada Revista Brasileira de História da Educação, é mantida pela SBHE, tendo

sido publicados quatro números nos últimos dois anos. Soma-se a isto o fato de que, a

realização de programas de doutoramento e pós-doutoramento em universidades

estrangeiras, bem como a vinda de importantes pesquisadores da área ao Brasil,

intensificaram e enriqueceram o intercâmbio acadêmico com o exterior.

A questão dos intercâmbios leva-nos ao último aspecto que queremos ressaltar

neste trabalho: o débito que as inovações na área têm, segundo os balanços, com as

tendências atuais da historiografia nacional e internacional. Também aqui observam-se

mudanças substantivas. Se, em 1984, Mirian Warde detectava uma relativamente pobre

interlocução da história da educação com outras áreas disciplinares – com a História,

Economia e Sociolgia, sobretudo – e constava “o fato de que a maioria dos trabalhos

não reflete o acompanhamento dos debates que se travam e dos avanços que se

realizam no campo dos estudos históricos em termos de novas referências explicativas”

(Warde, 1984, p.5); hoje afirma-se justamente o contrário, chamando-se atenção para o

alargamento da interlocução com uma variada gama de disciplinas acadêmicas –

sociologia, lingüística, literatura, política, antropologia, geografia, arquivística -, bem

como para o fato de a história da educação ser, ao mesmo tempo, uma subárea da

educação e uma especialização da história. Para os historiadores da educação isto tem

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significado uma forma de marcar o seu pertencimento à comunidade dos historiadores e

uma maneira de reafirmar a identificação de suas pesquisas com procedimentos próprios

ao fazer historiográfico.

No âmbito dos estudos históricos, a influência mais reconhecida refere-se à

chamada nova história cultural francesa. Às vezes difusa no corpo dos textos analisados

pelos balanços realizados, outras vezes explícita apenas na bibliografia e, em muitos

outros casos, aparecendo no diálogo substantivo desenvolvido em trabalhos de cunho

mais historiográfico. Essa influência nos estudos de história da educação brasileira da

última década é percebida por quase todos os pesquisadores que se dedicaram aos

balanços aqui referidos e/ou ao trabalhos de crítica historiográfica da área. Libânia N.

Xavier, em seu texto sobre os trabalhos inscritos no I CBHE, chegou mesmo a afirmar

que “as tendências verificadas no conjunto dos resumos indicam a crescente

consolidação de um campo disciplinar que se desenvolve no interior do campo

pedagógico mas que nitidamente inscreve-se no âmbito da chamada História Cultural”

(Xavier, 2000, p.219).

No entanto, essa influência não é a única e, em alguns casos, não parece ser a

mais importante. No corpo dos textos aqui analisados, aparece ao lado de um número

relativamente extenso de outras perspectivas teórico-metodológicas, nem sempre

situadas no campo historiográfico. Dentre os trabalhos de balanço aqui utilizados, o

único que avança minimamente nesse aspecto, o dos diálogos teóricos estabelecidos

pelos pesquisadores da área, foi o realizado por Catani e Faria Filho (2002) a respeito

dos trabalhos apresentados no GT da ANPEd. Foram eles que produziram o quadro 5,

que aqui apresentamos, a partir dos autores estrangeiros citados nos trabalhos

analisados. A respeito do mesmo, os autores fazem as seguintes observações:

“Ao ser empreendido o exame quantitativo da bibliografia, verificou-se que as

referências numericamente superiores são feitas a P. Bourdieu, R. Chartier, M.

Foucault, J. Le Goff, M. de Certeau e K. Marx, em ordem decrescente de recorrências,

como pode ser visualizado [no quadro 5] (...). Caberia aqui, é evidente, prosseguir na

análise e diferenciar a utilização desses autores no interior dos trabalhos, procurando

identificar os tipos de apropriação operados pelos pesquisadores. Ainda nessa

perspectiva, valeria a pena observar o lugar reservado a um sociólogo na produção

histórico-educacional, como no caso de Pierre Bourdieu. A propósito dos referenciais

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presentes nas produções do GT e que se espraiam para a produção nacional nos anos

90, Carvalho (2000) assinala que a interlocução com as proposições de Roger

Chartier, no campo da história cultural, teria marcado fortemente a renovação dos

nossos estudos histórico-educacionais”(Catani e Faria Filho, 2002, p.126).

Quadro 5

Autores mais citados como referência teórica

Autor Recorrências

Bourdieu, P. 34

Chartier, R. 30

Foucault, M. 27

Le Goff, J. 16

Certeau, M. 15

Chervel, A. 11

Marx, K. 11

Burke, P. 8

Ariés, P. 7

Scott, J. 7

Fonte: Catani e Faria Filho, 2002, p.127.

A análise mais aprofundada visando “diferenciar a utilização desses autores no

interior dos trabalhos, procurando identificar os tipos de apropriação operados pelos

pesquisadores”, cobrada pelos autores, ainda está por ser realizada, mas o quadro

demonstra que projetar para trás uma influência, atualmente tornada, de certo modo,

hegemônica no campo, como a história cultural, pode significar colocar na sombra

perspectivas concorrentes e, mesmo, modos diferenciados de se fazer história da

educação, que, ainda hoje, apesar de pouco representados nos fóruns que aqui foram

objetos de análise, continuam se mostrando tão legítimos quanto qualquer outros e

remontam a maneiras diversas de fazer história da educação, consagradas pelas escritas

históricas do campo.

Assim, urge realizarem-se pesquisas que enfoquem, especificamente, as formas

como os pesquisadores têm dialogado com as várias recentes perspectivas

historiográficas, tais como a marxista, a história cultural, a história das mentalidades ou

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a foucaultiana. Uma história das apropriações a que essas matrizes teóricas estiveram e

estão sujeitas no âmbito da pesquisa em história da educação no Brasil poderia trazer,

sem dúvida, uma grande contribuição ao entendimento dos intercâmbios e

aproximações, bem como das lutas e apagamentos que tornaram, e tornam, possível,

hoje, falar num campo de pesquisa em história da educação em nosso país.

IV. Considerações Finais.

Segundo M. De Certeau, é preciso,

“Encarar a história como operação, será tentar, de maneira necessariamente

limitada, compreendê-la como a relação entre um lugar (um recrutamento, um meio,

uma profissão, etc.), procedimentos de análise (uma disciplina) e a construção de um

texto (uma literatura). É admitir que ela faz parte da ‘realidade’ da qual trata, e que

essa realidade pode ser apropriada ‘enquanto atividade humana’, ‘enquanto prática’

“(De Certeau, 1982, p. 66).

Recorrentemente citado nos trabalhos em história no Brasil, o trecho acima aqui

retorna como um alerta aos leitores, balizando os anseios e os entraves encontrados

pelos autores deste artigo na tecitura não apenas de uma história, mas de uma

historiografia (história da história) da educação brasileira. De Certeau sugere a

existência de um conjunto (por vezes tácito) de regras de enunciação no campo,

constituídas por e constituintes de um corpo de sujeitos que nele transitam. Forçoso é,

então, assumir que, partícipes da construção da disciplina História da Educação, nós, os

autores, somos, nos momentos mais recentes, sujeitos e objetos desta narrativa. E, mais

do que isso, que as fontes que utilizamos, são, elas também, peças do jogo político que

institui a memória (e produz o esquecimento) nas constantes lutas de representação

(Chartier, 1991) travadas no interior do campo.

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