historia da comunidade kaiowa
TRANSCRIPT
-
NELY APARECIDA MACIEL
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
2012
-
Ficha catalogrfica elaborada pela Biblioteca Central - UFGD
Maciel, Nely Aparecida. Histria da Comunidade Kaiow da Terra Indgena Panambi- zinho (1920-2005) / Nely Aparecida Maciel. Dourados : Ed. UFGD, 2012.
210p.
ISBN: 978-85-61228-83-5
Possui referncias. Originalmente apresentado como dissertao ao Programa de Mestrado em Histria da UFMS em 2005.
1. ndios Dourados, MS. 2. ndios Histria (1920 a 2005). 3. Indgenas Condies econmicas. 4. Kaiow. 5. Terra Indge-na Panambizinho. I. Ttulo.
980.41M152h
Universidade Federal da Grande Dourados
COED:
Editora UFGDCoordenador Editorial : Edvaldo Cesar Moretti
Tcnico de apoio: Givaldo Ramos da Silva FilhoRedatora: Raquel Correia de Oliveira
Programadora Visual: Marise Massen Frainere-mail: [email protected]
Conselho Editorial - 2009/2010Edvaldo Cesar Moretti | Presidente
Wedson Desidrio Fernandes | Vice-ReitorPaulo Roberto Cim Queiroz
Guilherme Augusto BiscaroRita de Cssia Aparecida Pacheco Limberti
Rozanna Marques MuzziFbio Edir dos Santos Costa
Impresso: Grfica e Editora De Liz | Vrzea Grande | MT
-
Aos Kaiow, pelas lutas, conquistas, construes e recons-
trues de sua sociedade.
Em memria de Pai Chiquito, fundador da Terra Indgena
Panambizinho.
minha famlia, pela convivncia do dia-a-dia.
Em memria do meu pai, Antnio Maciel, pela simplicidade
e honestidade de vida.
-
Sumrio
Lista de abreviaturas 07
Apresentao 09
Introduo 13
Os Caminhos Metodolgicos da Pesquisa 13
Da Desterritorializao Reterritorializao 25
A Poltica Agrria do Governo de Getlio Vargas
31
A Colnia Agrcola Nacional de Dourados emTerras Indgenas
39
O Processo de Desterritorializao 43
O Processo de Reterritorializao 57
Da Identificao Demarcao da Terra Indgena 67
Primeira Identificao Antropolgica e suas Consequncias
71
A Luta pela Terra aps Deciso do Ministroda Justia
75
A Situao Atual (2005) 88
Um Pouco da Memria Coletiva 93
Genealogia e Histria de Algumas Famlias 106
Palavras Finais 129
Referncias Bibliogrficas 137
Convenes para Leitura dos Diagramasde Parentescos
145
Anexos 147
-
7Lista de Abreviaturas
CAN - Colnia Agrcola NacionalCAND - Colnia Agrcola Nacional de DouradosCPDO - Campos de DouradosFUNAI - Fundao Nacional do ndioGT - Grupo TcnicoINCRA - Instituto Nacional de Colonizao e Reforma AgrriaINIC - Instituto Nacional de Imigrao e ColonizaoIR - Inspetoria RegionalMS - Mato Grosso do SulPI - Posto IndgenaPTB - Partido Trabalhista BrasileiroSPI - Servio de Proteo ao ndioSPU - Servio do Patrimnio da UnioSMT - Sul de Mato GrossoUCDB - Universidade Catlica Dom BoscoUFMS - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
-
Apresentao
Jorge Eremites de Oliveira
O Programa de Ps-Graduao em Histria da UFGD iniciou suas
atividades de ensino em 1999, com o ingresso da primeira turma de mes-
trandos. De l para c, constituiu-se em uma referncia na historiografia
nacional referente aos estudos sobre a histria dos povos indgenas no
Brasil. Esta situao atesta, dentre outras coisas, o fato de, hoje em dia,
a produo do conhecimento no estar mais centralizada em instituies
sediadas nas grandes metrpoles do pas e, assim, ser realizada com quali-
dade em jovens universidades localizadas em cidades menores, como o
caso de Dourados.
Neste sentido, faz-se necessrio registrar que a Editora UFGD tem
implantado uma ousada e bem sucedida poltica editorial, cujo maior pro-
psito no o lucro, mas a socializao de conhecimentos diversos e o
estmulo produo cientfica na instituio. Oxal continue cada vez mais
pujante.
Dentre as contribuies mais significativas do referido Programa,
h trs que merecem destaque. A primeira se refere incluso dos povos
indgenas no campo de estudo dos historiadores que atuam no pas, algo
que ocorre de maneira gradual e crescente. A segunda diz respeito ao es-
tabelecimento de profcuas interfaces com outras reas do conhecimen-
to, notadamente com a antropologia social e cultural e a arqueologia, o
que tambm ocorre em termos terico-metodolgicos. A terceira, por sua
vez, relaciona-se com a tendncia da realizao de estudos voltados para
a compreenso do processo histrico e sociocultural recente dos povos
-
10
indgenas na regio platina. Nesta tendncia, a maioria dos recortes crono-
lgicos tem sido para o perodo que se inicia com guerra entre o Paraguai
e a Trplice Aliana (1864-1870), e seus desdobramentos, e segue at o
presente momento.
Com essas caractersticas, a histria indgena produzida na UFGD,
somada a outras produes feitas em instituies de ensino superior no
estado, tem contribudo sobremaneira para um (re) pensar contnuo sobre
a prpria histria de Mato Grosso do Sul, do Brasil e da prpria regio
platina com um todo. Ao invs, por exemplo, de perceber os ndios na
histria regional, a histria regional que tem sido vista e revista a par-
tir da histria indgena. Este paradigma tem forte inspirao nos aportes
de Bartomeu Meli, autor de El Paraguay inventado (Asuncin, Centro de Estudios Antonio Guasch, 1997), cujas propostas de estudo colocam
de ponta cabea a histria tradicional. Refiro-me aqui a uma histria pro-
duzida e ensinada no apenas em institutos memorialistas a servio das
elites polticas e econmicas, e dependentes de favores recebidos do
Estado, mas tambm quela feita na prpria academia brasileira, inclusive
sob orientaes terico-metodolgicas aparentemente mais crticas.
neste contexto maior que se insere o livro Histria da Comunidade Kaiow da Terra Indgena Panambizinho (1920-2005), escrito por Nely Apare-cida Maciel, cujo estudo contou com minha orientao e o brilhantismo e
a humildade cientfica que caracterizam a autora.
Esta obra analisa um assunto muito particular e emblemtico para a
compreenso do processo scio-histrico da regio da Grande Dourados:
a trajetria histrica e sociocultural dos Kaiow da Terra Indgena Panam-
bizinho, localizada no distrito de Panambi, em Dourados. No estudo, a
autora lana novas luzes sobre as estratgias de uma pequena comunidade
indgena, exprimida em 60 hectares, em defesa de seus direitos elemen-
tares, em especial o direito parte do territrio que lhe foi usurpado no
sculo XX. Foi exatamente em um contexto colonialista que os Kaio-
w protagonizaram uma histria marcada pela resistncia ao avano das
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
11
frentes pioneiras da sociedade nacional, s tentativas do rgo indigenista
oficial de retir-los de suas terras tradicionais e transferi-los para outro
lugar e, sobretudo, ao maior projeto de colonizao oficial conhecido para
a regio, a CAND Colnia Agrcola Nacional de Dourados. Por isso o
marco temporal abrangido pela historiadora abrange da dcada de 1920
de 2000. Isso porque foi na dcada de 1920 que os Kaiow passaram a ser
mais pressionados a deixarem o Panambizinho, quando ento eram lide-
rados por Pai Chiquito. E foi apenas no primeiro decnio do sculo XXI
que finalmente o Estado Nacional homologou a Terra Indgena Panam-
bizinho, ampliando a rea ocupada pela comunidade para 1.272 hectares.
Pouco mais que a determida pelo Ministro da Justia Nelson Jobim, de
que seria algo em torno de 1.240 hectares.
Hoje em dia, entretanto, as tentativas de imposio de diversas for-
mas de dominao aos Kaiow de Panambizinho seguem por meio de
antigas e novas prticas colonialistas. Dignos de crticas so certos edito-
riais e matrias veiculadas por alguns jornais da regio, os quais tambm
sobrevivem de favores recebidos do Estado e da elite ruralista da regio.
Em um contexto desse tipo, cientistas sociais de todo tipo, educadores,
jornalistas, operadores do direito e outros profissionais so chamados a se
posicionar. Uns aderem lgica colonialista. Outros, no entanto, assumem
uma postura de independncia em busca de outros caminhos possveis.
Tratar de um assunto de tamanha magnitude requereu da autora a
realizao de uma aventura etno-histrica para alm dos arquivos e das li-
mitaes do mtodo da histria oral. Ainda que tenha feito uma graduao
em Histria, ousou ceifar em searas vizinhas, valendo-se, por exemplo,
de outros mtodos, como o genealgico e o de histria de vida, para com-
preender a historicidade da comunidade de Panambizinho.
Por tudo isso, o livro interessa a um pblico bastante variado, desde
historiadores e antroplogos, at educadores, gegrafos, jornalistas, ope-
radores do direito e tantas outras pessoas que busquem compreender a
realidade scio-histrica dos povos indgenas em Mato Grosso do Sul.
Boa leitura!
-
Introduo
O livro Histria da Comunidade Kaiow da Terra Indgena Panambizinho (1920-2005) desvela aos leitores a histria dos Kaiow da Terra Indgena Panambizinho, localizada no Distrito de Panambi, Municpio de Doura-
dos, Estado de Mato Grosso do Sul. Os estudos, ora apresentados, so
fruto da Dissertao defendida pela autora, em 2005, no Programa de
Mestrado em Histria da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
campus de Dourados, atual Universidade Federal da Grande Dourados. A
dissertao foi orientada pelo professor Jorge Eremites de Oliveira, mes-
tre e doutor em Histria/Arqueologia pela Pontifcia Universidade Cat-
lica do Rio Grande do Sul e docente da Universidade Federal da Grande
Dourados, onde participa do corpo docente do curso de graduao em
Cincias Sociais e dos Programas de Ps-graduao em Antropologia e
Histria, sendo o coordenador do primeiro.
Hoje, a autora apresenta aos seus leitores uma verso revista des-
sa Dissertao, resultado de uma pesquisa bibliogrfica, documental e de
campo. importate destacar que ao se referir atualidade, como tam-
bm aos dias atuais, o texto se remete ao ano de 2005.
Os leitores e leitoras, agora, so convidados a percorrer os 85 anos
(1920-2005) da histria de lutas e de conquistas dos Kaiow da Terra In-
dgena Panambizinho pelo olhar da autora e de seus estudos. Para isso,
voltemos no tempo para comearmos o percurso...
Os Caminhos Metodolgicos da Pesquisa
A populao Kaiow da Terra Indgena Panambizinho esteve por
mais de cinquenta anos distribuda em uma rea de 60 hectares de terras,
com um nmero aproximado de 400 pessoas. Essas terras foram recebidas
-
14
para habitao dos Kaiow no perodo da colonizao federal denomi-
nada Colnia Agrcola Nacional de Dourados (CAND), no governo de
Getlio Vargas.
De acordo com Meli, Grnberg & Grnberg, o territrio tradi-
cional Kaiow, estendia-se ao Norte at aos Rios Apa e Dourados e, ao
sul, at a Serra de Maracaju e os afluentes do Rio Jeju, chegando a uma
extenso de terra aproximada a 40 mil km, dividida pela fronteira Brasil e
Paraguai. Para os mesmos autores, os Guarani contemporneos so divi-
didos em trs subgrupos: os andeva, os Mby e os Kaiow que, no Para-
guai, se denominam Pai Tavyter, podendo ser traduzido por habitantes
del poblado del centro de la tierra (tava-yvi-r). (MELI, GRNBERG
& GRNBERG, 1976, p. 217).
Na verdade, tomando por base os aportes de Fredrik Barth (1998
[1969]), a conhecida Introduo aos grupos tnicos e suas fronteiras, pode-se dizer que os andeva, Mby e Kaiow no so meros subgrupos, mas gru-pos tnicos de lngua guarani. Eles foram historicamente denominados de
Guarani pelos espanhis e jesutas, assim como por antroplogos, arque-logos e historiadores que pouco se detiveram a observar os fenmenos
da etnicidade e da identidade tnica. Cada um desses grupos tnicos de
lngua guarani possui uma etnicidade prpria que os identifica de maneira
particular. Por isso, neste texto o termo Kaiow se refere, quando a autora
o utiliza, a um grupo tnico que se auto-identifica dessa maneira.
Em meio a todo esse territrio tratado por Meli e outros (1976), a
Terra Indgena Panambizinho, localizada margem esquerda do Crrego
Laranja Doce, afluente do Rio Brilhante, representa to somente uma das
muitas comunidades Kaiow que ento ocupavam essa regio. Sua histria
est intimamente ligada comunidade Kaiow de Panambi, localizada no
Municpio de Douradina, com a qual compunha no passado um nico
tekoha1 no perodo da colonizao federal.
1 Territrio onde os Kaiow circulam e vivem de acordo com seus costumes e tradies. No apenas a sua casa e o seu quintal, todo espao em que mantm redes de relaes sociais.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
15
De acordo com Joana Aparecida Fernandes da Silva,
[...] a separao de 26 km entre Panambi e Panambizinho decorrente do processo de colonizao. Ainda hoje existe um vnculo social muito estreito entre essas duas aldeias que se relacionam atravs do parentes-co, por intercasamentos, ajuda mtua, troca de bens e ocasies rituais. (SILVA, 1992, p. 25).
No recorte cronolgico do perodo de 1920 a 2005, proposto neste
livro, ocorreram vrias transformaes scio-histricas marcadas por in-
tensos conflitos fundirios na regio centro-sul do Estado de Mato Gros-
so do Sul. Muitos deles envolvendo indgenas da lngua guarani (Kaiow e
andeva) e no-ndios (colonos, fazendeiros, imigrantes e outros). Diante
disso, procura-se, atravs da histria oral, da etno-histria, da antropologia
e genealogia, levantar informaes, por meio de depoimentos de colonos
e indgenas, dos dois principais grupos envolvidos no processo, os prota-
gonistas dessa histria.
Alm disso, analisaram-se os processos de ocupao de terras pe-
los colonos na referida rea. Verificou-se ainda o Processo Jurdico de
nmeros 1602/95, 96.0000158-8, 97.0002841-0 e 2001.60.005006-7, e o
relatrio final da percia judicial realizada por ordem do Juiz Federal na
rea Indgena Panambizinho, entre maio e dezembro de 1998, pela an-
troploga Ktia Vietta. Documentos esses que se encontram na Justia
Federal, em Dourados. E, ainda, os documentos oficiais e jurdicos do
SPI e FUNAI desse perodo, que sob cpia do original, encontram-se no
Centro de Documentao do Programa Guarani/Kaiow da UCDB-MS.
Foram considerados tambm os trabalhos j escritos sobre os
Kaiow de Panambizinho, como os de Graciela Chamorro(1998), Joana
Fernandes da Silva(1992), Egon Shaden(1965), Zlia Ferreira(2001), entre
outros.
Procurou-se investigar o incio dos conflitos e quais os motivos que
levaram os colonos a recorrerem justia em defesa de suas terras. Cabe
ressaltar que a resistncia dos Kaiow naquela rea deve ser levada em
-
16
conta, tambm, porque diante dela se configura a situao de domora nas
decises judiciais para com aquele povo. No incio desta pesquisa, final do
ano de 2002, eles esperavam do governo federal a devoluo de uma par-
cela de suas terras para poderem ali viver com mais dignidade. Esse desejo
realizado em outubro de 2004, quando a Justia Federal decide a sada
dos colonos da terra indgena.
Este livro objetiva responder a uma necessidade histrica de mos-
trar os acontecimentos dos conflitos existentes entre os colonos e os n-
dios Kaiow, a partir de uma poltica do governo de Getlio Vargas. Por
conseguinte, pretende-se fazer uma nova leitura de um perodo da histria
regional, concatenando-a com o perodo proposto neste estudo, contri-
buindo assim para um repensar da prpria histria mais recente do sul do
antigo Mato Grosso e, porque no dizer, da histria do Brasil. Como se
tem registrado ao longo da histria, a relao entre no-ndios e ndios no
se deu e no se d (dar) sem conflitos.
Os Kaiow da Terra Indgena Panambizinho, mesmo diante da
convivncia com os no-ndios e a vivncia com o conflito, procuraram
demonstrar sua cultura tradicional, seus valores, costumes, rezas, danas,
bebidas e moradias. Segundo eles, mantendo-se Kaiow e dando uma im-
portncia sua histria. Com base na concepo de cultura, entende-se
como as sociedades indgenas se organizam no mundo, compondo tudo
ao seu redor, ou seja, as relaes com a natureza, com o universo, com o
sobrenatural e com a sociedade.
Conforme afirma Geertz, a cultura vista no como um complexo
de padres concretos de comportamento, costumes, usos, tradies, hbi-
tos, mas como um conjunto de mecanismos de controle, planos, receitas
e regras para governar o comportamento. Esse autor acrescenta que o
homem precisamente o animal mais dependente de tais mecanismos
de controle extragenticos. A cultura , portanto, a totalidade acumulada
desses padres; no apenas um ornamento da existncia humana, mas
uma condio essencial para ela. Assim, sem os homens certamente no
haveria cultura, mas, de forma semelhante, sem cultura no haveria ho-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
17
mens; somos animais incompletos e inacabados e nos completamos e nos
acabamos atravs da cultura. (GEERTZ, 1989, p. 61).
Isso posto, passa-se s primeiras noes dos procedimentos teri-
co-metodolgicos que possibilitaram analisar o objeto deste livro. Desde a
proposta inicial, sabia-se da complexidade do estudo em questo, ou seja,
o conflito entre colonos e ndios no Distrito de Panambi, tendo em vista a
sua abrangncia em termos de historicidade.
Como de amplo conhecimento, durante sculos, no mbito da
historiografia brasileira, predominantemente, os ndios foram ignorados
como agentes histricos, sendo interpretados ora como vtimas, ora como
viles, mas com franca desconsiderao de seu poder de articulao, de
ao e de reao s imposies da sociedade dominante. (CUNHA, 1998;
MONTEIRO, 1995). Nas palavras de Renata Girotto:
Sem deixar de considerar o processo de dominao, que indiscutivel-mente foi atroz para os povos indgenas, buscamos novas interpreta-es acerca da histria indgena, desvendando os interesses de uma postura historiogrfica que negligenciou a capacidade intelectual dos ndios na conduo de suas prprias vidas, justificando ao longo dos sculos polticas envoltas para a tutela. (GIROTTO, 2001, p. 17).
Pode-se partilhar uma nova postura historiogrfica em que os n-
dios so considerados como agentes sociais plenos de sua prpria histria.
Acredita-se, por exemplo, que no movimento indgena, os prprios ndios
reivindicam e tentam fazer acontecer seus direitos, e o movimento indi-
genista, se depara com pessoas dedicadas aos ndios, que oferecem ajuda
para resolver ou tentar resolver problemas ligados aos indgenas. Esses
movimentos so expresses de um processo de ao e reao dos ndios
e seus aliados em busca de solues para os problemas advindos do con-
tato. (Ibid, 2001, p. 17).
nessa perspectiva que se analisar o processo de gnese e o de-
senvolvimento do conflito entre colonos e ndios na Terra Indgena Pa-
nambizinho, partindo-se da idia de que as vozes indgenas no esto
-
18
desconectadas das vozes dos seus interlocutores, daqueles que de alguma
forma informam e influenciam em seus posicionamentos. (Ibid, 2001, p.
17-18).
Portanto, neste livro, estabelecem-se duas etapas de estudos, consi-
deradas bsicas para o percurso investigatrio. Uma de base terica, explo-
rando a histria do tempo presente e a histria oral, bem como as demais
reas do conhecimento necessrias para abarcar o objeto, especialmente a
Sociologia e a Antropologia. A outra, de base documental, em si, com fon-
tes textuais primrias e secundrias, englobando uma reviso bibliogrfica
e historiogrfica.
Por se tratar de povos sem tradio de escrita, depara-se com lacunas que obrigam a recorrer produo de outras fontes de pesquisa, fun-damentadas na oralidade, e que implicam um envolvimento direto do pesquisador como um observador participante, com o propsito de melhor compreender o universo indgena. (BOSI, 1997, p.2).
Assim, nessa segunda etapa, definem-se os processos metodolgi-
cos e tcnicos da pesquisa, bem como as fontes textuais e orais. Para essa
proposta de trabalho, a histria oral possibilitar a revitalizao das expe-
rincias, das vises de mundo e das representaes passadas e presentes.
Nesse sentido, as entrevistas permitiram instituir um novo campo docu-
mental. Com efeito, na coleta de dados utilizou-se o mtodo da histria
oral de vida, o qual serviu para observar a trajetria do movimento e a
recomposio das aes, no perodo de 1920 a 2005, para a percepo de
conhecimento e anlise de atuao dos agentes sociais estudados.
Alm disso, procurou-se, atravs do trabalho de campo, fazer uma
concatenao de procedimentos metodolgicos complementares, como a
histria oral, observao participante, histria de vida, memria e genea-
logias, servindo de alternativa para poder expressar interpretaes com o
auxilio da documentao estudada. Ento, oralidade deixa de ser um con-
junto de palavras esquecidas e passa a orientar cada passo deste livro.
Uma longa pesquisa oral necessria para encontrar todos os fios dessa
sociabilidade. As fontes orais revelam, e melhor do que as fontes escritas,
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
19
a complexidade dos mecanismos da tomada de deciso. No h uma nica
tomada de deciso, mas todo um feixe de elementos a ela conduzidos.
(ROBERT FRANK, 1999, p. 110).
Considerando a importncia da histria oral na produo da hist-
ria escrita deste estudo, depara-se com o pensamento de Eric Havelock,
que retrata que a oralidade e a cultura escrita dividualizam-se ao serem
contrapostas, embora possam ser vistas ainda como interligadas em nossa
prpria sociedade.
claro que constitui erro polariz-las, vendo-as como mutuamente exclusivas. A relao entre elas tem o carter de uma tenso mtua e criativa, contendo uma dimenso histrica; afinal, as sociedades com cultura escrita surgiram a partir de grupos sociais com cultura oral e outra contempornea, medida que se busca um entendimento mais profundo do que a cultura escrita pode significar para ns, pois su-perposta a uma oralidade com que se nasce e que governa, dessa for-ma, as atividades normais da vida cotidiana. (HAVELOCK, 1997, p. 17-18).
A anlise relacional que se procura realizar entre os dados empri-
cos coletados, fontes escritas e os elementos tericos capazes de explic-
-los servem para aclarar, progressivamente, o objeto da pesquisa, em pro-
cesso de progressiva manifestao.
Mattoso, em sua obra A Escrita da Histria, aponta que a histria parte da realidade para representar o homem; ela est inserida em uma rea-
lidade maior das relaes sociais presentes. A prpria concepo de tempo
no a do tempo relgio, cronolgico, mas de tempo social. importante
valorizar a representao que os homens fazem da realidade, no se esque-
cendo, no entanto, o fato em si. Se a histria tem como centro o homem,
todos os elementos que constituem a vida humana devem ser analisados
de forma que componham a totalidade da realidade que o cerca.
Para Mattoso (1998), a histria dos vivos e precisamos resgatar o
que ela tem de vivo. A histria deixou de ser prisioneira da fala ou da es-
crita para se debruar, por exemplo, sobre os dados empricos fornecidos
por vestgios materiais da ao do homem sobre a terra, no s os que ele
-
20
prprio gravou para tentar fixar a memria da posterioridade, mas tam-
bm aqueles que a deixaram involuntria ou inconscientemente marcada
na paisagem, nas pedras, no pergaminho ou no papel (MATTOSO, 1988,
p. 33). Nesse aspecto em particular, Mattoso chama ateno especial para a
contribuio dada pelos especialistas em Arqueologia e Antropologia. Para
melhor compreenso da memria dos Kaiow da Terra Indgena Panam-
bizinho, trabalham-se as genealogias.
Sobre a histria do presente, Hobsbawn fornece alguns subsdios
que podem ser transportados para o objeto histrico em questo, e reme-
te-se a trs questes:
[...] o da prpria data de nascimento do historiador, ou em termos gerais, o das geraes; o problema de como nossa prpria perspecti-va do passado pode mudar enquanto procedimento histrico; e o de como escapar s suposies da poca partilhadas pela maioria de ns. (HOBSBAWN, 1978, p. 243).
A primeira questo supe que uma experincia individual de vida
tambm seja uma experincia coletiva. (Ibid, p. 44). Isso faz reportar para
a questo da memria individual ou seletiva. Outro aspecto levantado pelo
autor se refere ideia de que at o passado registrado muda a luz da his-
tria subseqente, (Ibid, p. 250). Para ver a histria do sculo XX, por
inteira, precisa-se ento deixar de ter um envolvimento pessoal e conseguir
um maior nmero de elementos oriundos de outros documentos.
Sobre o ltimo ponto enumerado por Hobsbawn, ressalta-se o con-
senso referido na primeira questo, ou seja, padro geral de nossas idias
sobre o nosso tempo que se impe por si mesmo nossa observao
(HOBSBAWN, 1978, p. 250). Essas questes aparecem fortemente nas
anlises dos historiadores.
Existiu, portanto, todo um processo articulado na expulso e na
expropriao das terras indgenas, especialmente na imposio cultural a
que foram submetidos os povos indgenas. Isso aconteceu por meio de
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
21
polticas pblicas voltadas para a tutela, servindo, na maioria das vezes,
como meio de incapacit-los para qualquer ao de resistncia mais eficaz,
necessria transformao da realidade em que estava contido o ndio.
Manuela Carneiro da Cunha define o que foi essa histria mal inter-
pretada e mal conduzida:
Por m conscincia e boas intenes, imperou durante muito tempo a noo de que os ndios foram apenas vtimas do sistema mundial, vtimas de uma poltica e de prticas que lhes eram eterna e que os destruram. Essa viso, alm de seu fundamento moral, tinha outro, terico: que a histria movida pela metrpole pelo capital, s teria nexo em seu epicentro. A periferia do capital era tambm o lixo da histria. O resultado paradoxal desta postura politicamente correta foi somar eliminao fsica e tnica dos ndios, sua eliminao como sujeitos histricos (CUNHA, 1998, p. 17-18).
Em fins da dcada de 1960, j era visvel que os ndios no desa-
pareceriam, pelo contrrio, a reao indgena ganhou fora junto a alguns
setores da sociedade envolvente. Essa reao se estendeu para a defesa
da autonomia de suas sociedades como um passo fundamental na garantia
do direito diferena e diversidade cultural. (GIROTTO, 2001, p. 24).
Na dcada de 1970, surge um movimento indgena organizado,
mais uma expresso do fortalecimento das reaes da ditadura militar e
que se somou iniciativa de outros segmentos da sociedade nacional. No
caso indgena, suas reivindicaes por direitos requeriam um deslocamen-
to para a prpria histria, que se assentava no consenso de serem os ind-
genas os primeiros habitantes do territrio nacional, o que representou a
fora motriz para essas reivindicaes, mobilizando um amplo movimento
de apoio. Em fins de 1970, evidenciou-se o choque entre uma concepo
idealizada dos ndios e ao indgena reivindicatria. Os povos indgenas
avanaram exigindo o reconhecimento de sua existncia, a terra, o direito
vida e o respeito s suas culturas. (Ibid, 2001, p. 24). Nesse perodo,
no qual inmeros povos sofreram graves riscos de extermnio, ocorreram
-
22
articulaes e assembleias intertnicas que apontaram para um novo pro-
tagonismo indgena.
Nos anos de 1980, os ndios avanaram nas mobilizaes e articu-
laes conquistando na Constituio Federal um captulo que exige a mu-
dana de orientao do Estado Brasileiro em relao aos povos indgenas.
Esse captulo exige que se afaste a perspectiva integracionista e introduz o
conceito constitucional de respeito s diversidades tnica e cultural.
A prpria Constituio Brasileira comeou a abrir espaos para
o possvel reconhecimento da plurinacionalidade no Brasil ao garantir o
respeito diversidade tnica e cultural, na Carta Constitucional de 1988.
Sabe-se que isso ocorreu em funo da presso exercida pelas comunida-
des indgenas organizadas, por segmentos da sociedade no-ndia e pelos
organismos internacionais. Esse um desafio que os Estados nacionais
assumem quando enveredam pelos caminhos da democracia. Os rumos
desse processo sero definidos pelas foras que vierem a estabelecer e as
relaes sero diferenciadas a partir de cada povo indgena.
At 1988, os povos indgenas viveram sob os princpios formais
de uma poltica integracionista; esta previa a incorporao lenta e gradual
dos indgenas comunho nacional. Com a nova Constituio, passa-se a
existir de um outro contexto que extrapola a percepo legalista da plu-
ralidade social. O reconhecimento formal da diversidade tnica e cultural
impulsionou a mobilizao de categorias especficas, como a indgena, es-
tabelecendo uma nova realidade.
A partir dos Artigos 231 e 232 da Constituio Federal de 1988,
os indgenas so considerados como atores, juridicamente capazes, para
entrar em juzo, atravs de suas organizaes, rompendo com o status a
eles atribudo pelo Artigo 60 do Cdigo Civil de 1916, que os colocavam
como portadores de capacidade civil relativa, constituindo uma segunda
categoria de cidados.
Nos anos de 1990, muitos povos indgenas ressurgiram, retoma-
ram e ampliaram territrios, participaram e exigiram o controle das pol-
ticas pblicas que atingem diretamente as comunidades. Atualmente, esse
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
23
processo continua com mais fora. Tem-se como exemplo a comunidade
indgena da Terra Indgena Panambizinho, a organizao social e cultural
dos Kaiow em defesa e reconquista de seu territrio.
Entre as ltimas dcadas de 80 e 90, possvel perceber uma mu-
dana dos pleitos dos povos indgenas. A dcada de 80 foi marcada pela
mobilizao dos mesmos no sentido de garantir seus direitos territoriais.
Na dcada seguinte, j aos auspcios da nova Constituio Federal, as rei-
vindicaes indgenas comearam a ser caracterizadas por demandas mais
amplas, exigindo polticas pblicas, que viabilizassem a gesto e o controle
dos seus territrios, a sustentabilidade de suas populaes, alm da estru-
turao de um sistema educacional e de sade diferenciados, afeitos s
suas especificidades socioculturais.
Diante desse processo, Monteiro acredita que a historiografia deve
avanar para superar a pouca ateno dispensada aos povos indgenas
reduzindo-os a meras vtimas do processo de expanso europeia e, hoje,
brasileira: A historiografia poder fornecer fundamentos e diretrizes para
a compreenso do desafio terico e poltico que os ndios apresentam para
a sociedade e para o Estado brasileiro. (MONTEIRO, 1995, p. 227).
O desenvolvimento deste livro obedeceu ao seguinte plano: no
primeiro momento, apresenta-se uma breve reviso sobre a poltica do
governo de Getlio Vargas no Estado Novo. O contrato da Companhia
Mate Larangeira foi encerrado para a implantao da Colnia Agrcola
Nacional de Dourados (CAND). O territrio indgena da regio e em par-
ticular de Panambi, foi loteado para a implantao da Colonizao Fe-
deral. Inicia-se o processo de desterritorializao dos Kaiow da Terra
Indgena Panambizinho, mas, em nenhum momento, os indgenas deixam
de demonstrar resistncia na luta pelas terras que lhes foram tiradas.
apresentada por parte de alguns indgenas mais velhos a resistncia em
permanecer em suas terras, dando incio ao processo de reterritorializao
dos Kaiow nessa aldeia.
-
24
No segundo momento, trata-se especificamente do Estatuto do n-
dio e a Constituio Federal de 1988, a qual no Art. 231, 2, garante a
posse permanente e o usufruto das terras que os ndios habitam.
Trata-se tambm das consequncias causadas a partir da implanta-
o da CAND, tanto por parte dos ndios como dos colonos, a partir da
deciso do Ministro da Justia Nelson Jobim. Como tambm, analisam-se
as percias judiciais de Valter Alves Coutinho Junior, realizada no inicio da
dcada de 1990, e de Ktia Vietta, no inicio da dcada de 2000, na rea
solicitada pelos Kaiow.
Atravs das mudanas constitucionais de 1988 em favor dos ind-
genas, passam a lutar na justia com o objetivo de adquirir parte de suas
terras. Em 13 de dezembro de 1995, o ento Ministro da Justia Nelson
Jobim decreta ser indgena a rea reivindicada pelos Kaiow.
No terceiro e ltimo momento, o texto centra-se no objeto da pes-
quisa, relatando a deciso final do Juiz Federal Odilon de Oliveira, a de-
marcao das terras indgenas, a desapropriao e reapropriao dos colo-
nos e, finalmente, a volta dos Kaiow a uma parte de suas terras. Trata-se
tambm das histrias memoriais dos indgenas, atravs das genealogias,
que desde o incio da formao da Terra Indgena Panambizinho at os
dias atuais fazem parte da formao social e poltica dessa aldeia. No caso
do estudo apresentado, apoia-se fundamentalmente em documentos es-
critos e orais.
O objetivo maior seria de escrever parte da histria do povo Kaio-
w da Terra Indgena Panambizinho e, tambm, embora com menor foco,
a dos colonos da regio.
Com isto, pensa-se a possibilidade de contribuir para a elaborao
de uma histria indgena dos Kaiow na regio de Panambi. Espera-se ter
ajudado, atravs deste trabalho, a compreenso de como a memria social
do grupo indgena distribuiu internamente o poder. Tambm a forma de
como o processo histrico criou e influenciou os suportes identitrios
sobre os quais os Kaiow se apoiam at o momento presente e que lhes
garantiram a sobrevivncia fsica e cultural atravs do tempo nessa regio.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
25
Os dados levantados tm levado compreenso dos fatos ligados
a essa histria. A histria dos Kaiow da Terra Indgena Panambizinho
no se resume neste livro, este apenas uma parte do leque que se abre a
muitas pesquisas e escritos que devero surgir.
Da Desterritorializao Reterritorializao
Tive terra, no tenho.
Tive casa, no tenho.
Tive ptria, venderam.
Tive filhos, esto mortos ou dispersos.
Tive caminhos, foram
fechados.
Pedro Tierra
No Brasil, a passagem do sculo XIX para o sculo XX foi marcada
por um amplo processo de migrao, tentativa oficial do Estado Brasileiro
para favorecer a explorao econmica do territrio nacional, inclusive
por meio da implementao de projetos de colonizao no-ndia.
Como aponta Lenharo (1986), em sua obra Colonizao e trabalho no Brasil: Amaznia, Nordeste e Centro-Oeste, a consequncia dessa expanso capitalista foi um choque violento entre as populaes amerndias que
habitavam certas regies brasileiras. Em So Paulo, por exemplo, a econo-
mia cafeeira abriu largos horizontes a negociantes, grileiros e fazendeiros
que avanaram sobre reas at ento inexploradas, segundo os moldes
capitalistas. No interior do Estado de Santa Catarina, os colonos alemes
e italianos recebiam ttulos de terras como forma de pagamento e, des-
sa forma, foram ocupando reas indgenas pertencentes aos Kaingang e
Xokleng, por exemplo. Na Amaznia, para citar outro exemplo, foi o alto
-
26
preo da borracha. J na Bahia, em Minas Gerais e no Esprito Santo,
por sua vez, foi a terra frtil que atraiu colonos e fazendeiros. Percebe-se
que nesse perodo h uma transformao econmica da histria brasileira,
desencadeando prosperidade no desenvolvimento da vida econmica do
pas que entrava numa fase antes desconhecida, em relao s atividades fi-
nanceiras, surgindo um capitalismo, embora incipiente e foi na agricultura
que se observaram os maiores crescimentos da produo brasileira, tendo
como exemplo a lavoura do caf, que contou com uma base financeira e
de crdito, alm de um aparelhamento comercial que permitiu consider-
vel expanso.
As ideias positivistas que fundamentavam a poltica do Estado bra-
sileiro para os povos indgenas na maior parte do sculo XX estabelece-
ram-se, assim, a chamada poltica de integrao. Tal poltica apontava para
o fim da diversidade tnica e cultural, pois reconhecia esta diversidade
apenas como um estgio de desenvolvimento que se concluiria com a in-
corporao do ndio sociedade nacional.
O sistema de reservas indgenas foi uma providncia necessria
para assegurar a interveno do Estado em certos conflitos fundirios.
Em 20 de junho de 1910, pelo Decreto lei n 8.072, foi criado o Servio
de Proteo aos ndios (SPI). De 1915 at 1928, foram reservadas, de-
marcadas e homologadas aos andeva e Kaiow do antigo sul de Mato
Grosso, atual Mato Grosso do Sul, oito reas de terras, em um total de
18.297 hectares; as reservas de Amamba, Amambai (Benjamim Constant)
e Limo Verde, de Dourados (Francisco Horta Barbosa), de Caarap (Jos
Bonifcio), de Tacur, a Ramada ou Sassor, de Japor, a Porto Lindo
ou Jacarey, de Paranhos, a Piraju, e de Coronel Sapucaia, a Taquapery:
Inicia-se ento, com apoio direto dos rgos oficiais, um processo siste-
mtico e relativamente violento de confinamento destes pedaos de terra.
(BRAND, 1995, p. 8).
Os ndios no aceitaram esses fatos passivamente. Houve vrias
formas de resistncia e a imprensa apresentou sua verso dos fatos so-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
27
ciedade envolvente, tratando-os como sendo conflitos fundirios entre
civilizados (no-ndios) e selvagens (Kaiow).
No que se refere nacionalizao e incorporao dos ndios
sociedade nacional, havia uma preocupao com a liberao de terras e
de mo-de-obra para o mercado nacional, conforme argumenta Lenharo
(1986, p. 78): [...] a nacionalidade materializava-se em interesses concre-
tos, na terra do ndio, na explorao do seu trabalho valioso. No governo
do Presidente Nilo Peanha, criado o Servio de Proteo aos ndios
(SPI), entidade governamental, incumbida de defender os indgenas con-
tra o extermnio e a opresso. As foras da nacionalidade, mesmo atravs
do SPI, no deixaram de atrair os ndios para o trabalho e para a agonia
lenta e sua civilizao, sobretudo por meio das diretrizes firmadas pelo
rgo.
Em 15 de dezembro de 1911, houve algumas modificaes na lei de
criao do SPI, por meio do Decreto n. 9.214.
Pela primeira vez em lei, foi institudo o respeito s tribos indgenas
como povos que tinham o direito de ser eles prprios, de professarem suas
crenas, de viverem segundo o nico modo que sabiam faz-lo: aqueles
que aprenderam de seus antepassados e que s lentamente podiam mudar.
Esse documento marca uma nova era para os ndios. Alm desse prin-
cpio, outros foram formulados, tais como: a proteo do ndio em seu
prprio territrio e a proibio do desmembramento da famlia indgena
pela separao de pais e filhos. Como trata Darcy Ribeiro, essa prtica
secular, embora responsvel por fracassos clamorosos e at por levantes
sangrentos, continuava em vigor. Acreditando s poder salvar os ndios
pela conquista das novas geraes e revelando absoluto menosprezo pelo
que isto representava para os pais ndios, os filhos lhes eram tomados e
conduzidos s escolas missionrias. (RIBEIRO, 1996, p. 159).
Darcy Ribeiro nos seus escritos explica que Rondon se colocou
frente do Servio de Proteo aos ndios, como seu diretor, em princpio,
e, depois, como orientador. Graas sua ao indigenista, o SPI pacificou
-
28
quase todos os grupos indgenas com que a sociedade brasileira se depa-
rou em sua expanso, sempre fiel aos mtodos persuasrios. (Ibid, 1996,
p. 160). Acredita-se que os indgenas no foram pacificados, mas conven-
cidos a trabalhar nos projetos governamentais destinados a modificaes
no habitate natural at ento conhecidos por eles. Sabe-se que aps esse
trabalho foram expropriados de suas terras e levados a viver em reservas
criadas pelo governo federal. A patir desses acontecimentos, os proble-
mas sociais, econmicos e polticos dos indgenas multiplicaram. Ribeiro
escreve que dezenas de servidores do SPI, ideologicamente preparados
e motivados pelo exemplo de Rondon, provaram, custa de suas vidas,
que a diretiva morrer se preciso for, matar nunca no era mera frase.
(Ibid, 1996).
Algumas condies eram indispensveis para a plena aplicao des-
sa poltica indigenista: verbas suficientes para financi-la; pessoal qualifica-
do para a tarefa; autoridade e poder para se impor. Darcy Ribeiro escreve
que nos primeiros anos de atividade, ao Servio de Proteo aos ndios
foram facultadas todas essas condies. Pouco depois, comearam a faltar,
um aps o outro, todos aqueles requisitos essenciais e o rgo indigenista
passou a viver uma outra histria a de breves perodos de inoperosidade
e quase estagnao.
A sobrevivncia do SPI e o seu poder dependeram sempre do prestgio do Marechal Rondon. Assim, em 1930, no tendo Rondon participa-do da revoluo que convulsionou o pas movido pelas convices positivas que o impediam de se deixar aliar em intentonas , o SPI caiu em desgraa e quase foi levado extino. Nos anos seguintes, as dotaes oramentrias caram progressivamente at atingirem nveis to baixos que nem permitiam manter a prpria mquina administra-tiva. (Ibid, 1996, p. 164).
A situao continuou precria at 1940, quando Getlio Vargas vi-
sita Ilha do Bananal e, enternecendo-se com as crianas Karaj, decide
amparar o SPI. Comea, ento, um novo ciclo de atividades intensivas.
Reorganiza-se e renova-se o quadro de pessoal do servio, que retorna ao
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
29
Ministrio da Agricultura; reinstalam-se postos indgenas abandonados h
anos; reiniciam-se as atividades de pacificao.
O Servio de Proteo aos ndios, assim como vrios outros rgos
da administrao federal, foi transformado em prmio de barganha eleito-
ral entre os partidos polticos vitoriosos nas eleies de 1955, tendo sido
entregue ao PTB. O rgo indigenista somente foi retirado da influncia
poltica direta dos partidos a partir de 1957. Entretanto, o custo dessa
vitria foi a classificao do SPI como rgo de interesse militar, cuja
direo poderia ser entregue a oficiais da ativa. (Ibid, 1996, p. 167-68).
Assim, o Estado Novo mais uma vez se projetava como a fora
civilizadora que interferia na elaborao de uma nova moldura social para
o pas. Em um quadro de desbravamento e ocupao, estratgias modernas de conquista, o SPI deveria, no sem dificuldades, antecipar-se s foras da
expanso e fazer a defesa e proteo dos povos indgenas.
Os tropeos no tinham origem somente na violncia do pioneiro
que ameaava a presena fsica do indgena, a quem cabia o SPI defender;
a dificuldade mantinha-se nos pressupostos da instituio que, trabalhan-
do para o avano da civilizao nacional, inevitavelmente atingiria a auto-
nomia da civilizao dos ndios, ainda que atentassem para preservar a sua
vontade. (LENHARO, 1986, p. 77).
Na questo de formao da nacionalidade e da incorporao dos
ndios sociedade no-ndia, percebe-se que havia uma preocupao com
a liberao de terras e de mo-de-obra para o mercado nacional. Na ava-
liao de Lenharo: Alis, a nacionalidade materializava-se em interesses
concretos, na terra do ndio, na explorao valiosa de seu trabalho. (Ibid,
1986, p. 77).
Os indgenas da regio de Panambi foram vtimas desse processo,
as aldeias de Panambi e Panambizinho, antes da implantao da CAND
faziam parte de um mesmo territrio Kaiow. A diviso dessas aldeias foi
resultado da implantao da colonizao federal e seus desdobramentos.
Essas aldeias, portanto, resultam de um processo histrico mais recente,
-
30
isto , de uma territorializao em reas reservadas pelo Estado Brasileiro
aos Kaiow. As duas aldeias ocuparam o territrio de extensas famlias
Kaiow anteriormente implantao do projeto de colonizao federal do
governo de Getlio Vargas, o qual foi loteado para colonos. Alm do mais,
os ndios foram usados como mo-de-obra para a derrubada da mata e
para servios agrcolas. Os Kaiow resistiram s tentativas de retir-los da
rea porque possuam fortes vnculos socioculturais com aquele territrio,
incluindo a existncia de um cemitrio no lugar. Durante muitos anos,
tentou-se a transferncia desses ndios para o Posto Indgena de Dourados
(Reserva Indgena Francisco Horta Barbosa), entretanto eles resistiram a
essa retirada, no somente por se tratar da terra de seus ancestrais, mas
pela existncia de um antigo cemitrio Kaiow e tambm pela clara resis-
tncia perda de seu tekoh. (SILVA, 1982).Schaden (1963) percorreu a regio, nesse perodo, e mostra que os
nimos estavam bastante exaltados. Os ndios sempre se referiam dizendo
que estavam sendo vtimas, devido s conversas dos mais variados temas
para a implantao da colnia e a fixao dos colonos em suas terras.
Segundo Schaden, os Kaiow passaram a morar em uma pequena
rea por vrias dcadas. Na atualidade, o que se pode observar que h
uma movimentao por parte de indgenas em busca de novos ideais e
mudanas em benefcio da sua causa. Um exemplo claro disso a busca
constante de seus direitos constitucionais na luta em prol da defesa e da
reconquista de seus territrios.
De acordo com Monteiro, nos ltimos anos, entretanto, o pressu-
posto de que os ndios deixariam de existir comeou a ser revertido, de
modo que hoje, talvez pela primeira vez na Histria do Brasil, paira certa
nuvem de otimismo no horizonte futuro dos ndios. A principal voz de ne-
gao do desaparecimento vem dos prprios ndios, que atravs de novas
formas de expresso poltica reivindicam e conquistam direitos histricos.
O novo indigenismo conta, desde a primeira hora, com fortes aliados no
meio acadmico, uma vez que os estudantes pautam suas pesquisas no
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
31
apenas em interesses antropolgicos, mas tambm na necessidade de for-
necer subsdios para as lutas e reivindicaes dos ndios. (MONTEIRO,
1995, p. 223).
A questo indgena hoje uma discusso que perpassa vrias re-
as do conhecimento, como a Histria, a Antropologia, a Arqueologia; as
produes feitas em instituies de ensino superior so levadas a srio e
discutidas com a profundidade que merece o conhecimento, sendo inclu-
sive consideradas por grande parte da populao brasileira.
A Poltica Agrriado Governo de Getlio Vargas
Em 1940, Vargas proferiu um discurso em Gois, em que assina-
lou a importncia da cruzada rumo ao oeste e com vistas ocupao dos
espaos vazios2. Era a chamada Marcha para Oeste, a qual tinha o objetivo de construir a nacionalidade, retomando o movimento bandeirante. Na
poca, Getlio Vargas declarou:
Aps a reforma de 10 de novembro de 1937, inclumos essa cruzada no programa do Estado Novo, dizendo que o verdadeiro sentido de brasilidade rumo ao oeste. Por bem estabelecer a idia, deve dizer--vos que o Brasil, politicamente, uma unidade. Todos falam a mesma lngua, todos tm a mesma tradio histrica e todos seriam capazes de se sacrificar pela defesa de seu territrio. Considerando-a uma unidade indivisvel, nenhum brasileiro admitiria a hiptese de ser cedido um palmo desta terra, que o sangue e a carne de seu corpo. Mas, se poli-ticamente o Brasil uma unidade, no o economicamente. Sob este aspecto assemelha-se a um arquiplago formado por algumas ilhas en-tre meados de espaos vazios. As ilhas j atingiram um alto grau de desenvolvimento econmico e industrial e as suas fronteiras polticas
2 Entendido pelo governo federal como espaos sem ocupao humana e sem desen-volvimentos das atividades tecnolgicas agropastoris em grande extenso; na verdade j existiam indgenas que povoavam esses espaos.
-
32
coincidem com as fronteiras econmicas. Continuam, entretanto, os bastos despovoados, que no atingiram o necessrio clima renovador, pela falta de toda uma srie de medidas elementares, cuja execuo figura no programa do governo e nos propsitos da administrao, destacando-se, dentre elas, o saneamento, a educao e os transportes. No dia em que dispuserem todos esses elementos, os espaos vazios se povoaro. Teremos densidade demogrfica e desenvolvimento indus-trial. Desse modo, o programa de Rumo ao Oeste o reatamento da campanha dos construtores da nacionalidade, dos bandeirantes e dos sertanistas, com a integrao dos modernos processos de cultura. Pre-cisamos promover essa arrancada, sob todos os aspectos e com todos os mtodos, a fim de suprimirmos os vcuos demogrficos do nosso territrio e fazermos com que as fronteiras econmicas coincidam com as fronteiras polticas. Eis o nosso imperialismo. No ambiciona-mos um plano de territrio que no seja nosso, mas temos um expan-sionismo, que o de crescermos dentro das nossas prprias fronteiras. (VARGAS, 1938, p. 31-32).
Com isso, Vargas estava propondo um programa que no s depen-
deria de adotar leis e/ou faz-las cumprir, mas tambm requereria a co-
laborao daqueles que se identificassem com o projeto do novo regime.
Portanto, a Marcha para Oeste, parte integrante do projeto colonizador
(no-indgena) e da nacionalizao das fronteiras do Estado Novo, era
um programa que envolvia governos estaduais, representantes das elites
polticas, empresas e pessoas que se dispusessem a migrar para as regies
tidas como despovoadas ou semipovoadas.Ressalta-se que Mato Grosso, sobretudo na regio sul do Estado,
fica impedido colonizao de determinadas reas, a exemplo da criao
extensiva de gado nas grandes pastagens locais e a presena de empresas
extrativistas que ocupavam vastas extenses de terras. Dentre essas em-
presas, estava a Companhia Mate Larangeira. No caso, vale lembrar que a
Mate Larangeira era um dos maiores empreendimentos ento existentes
no sul do antigo Mato Grosso. Foi instalada na dcada de 1880, quando
Thoms Larangeira conseguiu, atravs do Decreto Lei n. 8.799, de 9 de
dezembro de 1882, a permisso do governo imperial para explorar a erva-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
33
-mate, planta tida como nativa da regio, explorando-a por mais de meio
sculo. Em razo disso, essa empresa monopolizou a produo ervateira
e controlou grandes extenses de terra, atravs de arrendamentos e de
aquisio, onde se encontravam os ervais nativos.
O poderio dessa empresa entrou em decadncia na dcada de 1930,
quando Vargas assumiu o governo e passou a adotar medidas no senti-
do de desestrutur-la, uma vez que essa empresa era considerada mais
estrangeira que nacional. Nesse sentido, cabe ressaltar que a presena de
empresas estrangeiras no pas destoava do projeto nacionalista do governo
Vargas, principalmente a partir da instalao do Estado Novo, atravs do
golpe de 1937. interessante registrar que a poltica da nacionalizao
do governo Vargas no foi radical, ao menos no sentido de expulsar as
empresas estrangeiras, mas apenas determinava que tais empresas, para
permanecerem em territrio brasileiro, deveriam, de certa forma, estar
vinculadas ao desenvolvimento do pas. Dessa forma, a produo erva-
teira dessa Companhia era escoada para os moinhos argentinos, onde era
industrializada. Diante disso, em termos de arrecadao, a permanncia da
referida empresa nada significava para o pas.
A partir da dcada de 1930, a economia ervateira do Sul de Mato
Grosso (SMT) passaria por importantes mudanas. Por um lado, h uma
diminuio do mercado consumidor, medida que comeam a entrar em
produo os ervais plantados na Argentina. Por outro lado, o governo fe-
deral brasileiro comea a pressionar a Companhia Mate Larangeira. Desde
o incio da dcada, o governo Vargas manifesta preocupao com a situa-
o das fronteiras sul-mato-grossenses, devido forte presena de estran-
geiros (sobretudo paraguaios) e pelo fato de a Companhia Mate Larangei-
ra ser considerada tambm uma empresa estrangeira, vinculada a capitais
e interesses argentinos. Depois do golpe do Estado Novo, o contrato de
arrendamento da Companhia (que vencia em dezembro de 1937) no foi
renovado pelo governo, que passa, por sua vez, a estimular a produo da
-
34
erva-mate por meio de cooperativas de produtores (pequenos e mdios)
independentes da empresa. (JESUS, 2004, p. 18).
De acordo com Lenharo, j em agosto de 1933, Vargas referia-se
necessidade de incentivar o retorno ao campo. (LENHARO, 1986, p.21).
Dentro da poltica de Marcha para Oeste, a partir de 1938, comea a criar mecanismos para atingir seus objetivos, como ncleos coloniais militares
e de fronteiras, granjas-modelo e ncleos agroindustriais. Em fevereiro
de 1941, o governo federal criou as Colnias Agrcolas Nacionais (De-
creto Lei n. 3.059)(Anexo1). A Colnia Agrcola Nacional de Dourados
(CAND) foi criada pelo Decreto Lei n. 5.941, de 1943 (ANEXO 2), um
ms depois da criao do territrio de Ponta Por, em janeiro de 1944.
certo que o governo Vargas no conseguiu desalojar inteiramente
a referida Companhia. Mesmo assim, sua atividade foi abalada; as instala-
es de Guara, inclusive a ferrovia de Guara a Porto Mendes, passaram
ao controle do governo federal em 1944. Mesmo com o fim do Estado
Novo e a volta das terras devolutas ao controle do governo estadual, a
Companhia Mate Larangeira no conseguiu renovar seus antigos arren-
damentos. Assim, ao que tudo indica, essa Companhia vai se retirando do
negcio da erva-mate. Em 1952, a Companhia vende a fazenda Campa-
nrio, e da para frente at a dcada de 1960, ela continuaria a explorar a
erva-mate em umas poucas propriedades. (FIGUEIREDO, 1968).
Segundo Couto de Oliveira (1999), a poltica de colonizao do
governo Vargas, no perodo do Estado Novo, teve como fio condutor a
ocupao dos espaos vazios, o que ocorreu por meio da mobilizao de tra-balhadores rurais, incentivados pela possibilidade de se tornarem proprie-
trios. No incio da dcada de 1940, o governo federal, criou as Colnias
Agrcolas Nacionais (CAN), destinadas ao assentamento de colonos. No
Centro-Oeste do pas, criaram-se duas colnias, uma em Gois e outra
em Mato Grosso, esta ltima na regio que atualmente faz parte de Mato
Grosso do Sul.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
35
No Panambi, distrito do municpio de Dourados, cria-se a CAND.
O territrio indgena Kaiow foi loteado, como, alis, acontece com as
demais terras da regio durante o governo de Getlio Vargas, para a im-
plementao de um projeto de colonizao federal. Como afirma Schaden
(1965), na dcada de 1940, o governo de Getlio Vargas estava doando
terras de ndios aos colonos e isso, futuramente, iria causar srios proble-
mas.
De 1930 a 1945, como aponta Lenharo (1986), o Estado Novo
estabeleceu uma poltica de colonizao ideolgica no momento em que
o povo estava unido e marchava sob o comando do Estado, em busca
de novas fronteiras para a expanso das frentes econmicas da sociedade
nacional. Era a Marcha para Oeste. Conforme o autor, a conquista do oeste significava para o regime a integrao territorial como substrato simb-
lico da unio de todos os brasileiros. Nesse contexto, as colnias agr-
colas nacionais eram a menina dos olhos da poltica de colonizao e
do Estado Novo. Por isso, para o autor, a Colnia Agrcola Nacional de
Dourados funcionou apenas simbolicamente; sobre ela a propaganda do
Estado Novo operou sem cessar, apresentando-a como uma colnia mo-
delo. (LENHARO, 1986).
Segundo Costa, o relatrio do Departamento de Terras e Coloniza-
o da Secretaria de Desenvolvimento de Mato Grosso do Sul traz que a
implantao legal da CAND aconteceu em 20 de julho de 1948, quando
foi demarcada, pelo governo federal, a rea e seus limites (Decreto Lei n.
87/1948). (COSTA, 1998, p. 81). A rea territorial da CAND era de 300
mil hectares.
A escritura de doao de 300 mil hectares de terras do Estado de
Mato Grosso ao Instituto Nacional de Imigrao e Colonizao (INIC)
efetivou-se no dia 12 de novembro de 1.959 (ANEXO 3).
Ainda segundo Lenharo (1986), a Mate Larangeira bloqueou o po-
voamento do oeste brasileiro. Os nordestinos ocuparam a parte leste e
-
36
foram responsveis pela fundao de inmeras cidades. O povo foi usado
como matria para a colonizao e ainda coube ao migrante nordestino a
incumbncia de conquistar a Amaznia.
De acordo com Costa (1998), as terras do sul do antigo Mato Gros-
so foram, desde o final do sculo passado, monoplios da Companhia
Mate Larangeira. Essa empresa detinha grandes extenses de terras e im-
pedia que migrantes do Sul e do Nordeste, alm de estrangeiros, que no
fossem mo-de-obra, fixassem-se em seus domnios. Nos domnios da
empresa, havia aldeias andeva e Kaiow, mas os ndios no significavam
problemas essa empresa.
Brand (1993) aponta que no tempo da Companhia Mate Larangei-
ra, na regio chamada Grande Dourados, a maior parte da mo-de-obra
utilizada na extrao da erva-mate era indgena. Contrapondo opinio de
Gilmar Arruda (1989) quando este diz, com base em vasta documentao,
que constatou que a maioria era composta por trabalhadores paraguaios.
Naquele momento, para a Mate Larangeira, o que tinha valor era a
erva-mate; para os colonos e fazendeiros o que importava era a terra. Os
ndios eram inseridos nessa nova ordem, usados como mo-de-obra bara-
ta e, depois, expulsos de suas terras e levados a viverem em reservas, ape-
sar de suas tentativas de resistncia e da manuteno de seu modo de vida.
Para Arruda (1989), a Companhia impedia um maior crescimento
populacional no antigo Mato Grosso, fazendo com que, at o incio da
dcada de 1940, uma grande extenso de terra permanecesse inacessvel
apropriao como propriedade individual.
Ainda que com problemas para se instalarem, os no-ndios foram
chegando em busca de terra, de melhores condies de vida e de novas
oportunidades. nesse perodo que o governo federal comea a se preo-
cupar com a colonizao dirigida a todo oeste brasileiro. Por isso, foram
criados projetos de ncleos de colonizao a partir da Marcha para Oeste. Esta foi uma resposta inteno de conquistar definitivamente o territrio
brasileiro.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
37
O governo federal queria mudanas dirigidas, com endereos cer-
tos de localizao e pessoas certas para elas. Os migrantes eram encami-
nhados para a Amaznia e para o sul de Mato Grosso, com a inteno de
esvaziar a tenso social da Regio Nordeste. Ainda de acordo com Lenha-
ro, Vargas falava de um Brasil arquiplago, composto por algumas ilhas
de prosperidade, envolvidas por vastos espaos despovoados. (LENHA-
RO, 1986, p. 21).
Costa explica que, no caso especfico do antigo Mato Grosso, fo-
ram feitas leis tratando do assunto. Em dezembro de 1949, foi criado o
Cdigo de Terras (Lei n. 336) que mapeou as terras a serem colonizadas.
A seguir, a Lei n. 461, de 10 de dezembro de 1951, permitiu que o gover-
no estadual contratasse empresas para intermediarem a colonizao das
reas. A ideia era ampliar o mercado consumidor, as atividades econmi-
cas e a receita do Estado. A partir de 1956, deu-se enfoque colonizao
feita por particulares, atravs da venda das terras comprometidas por con-
tratos anteriores no cumpridos nos termos da lei. (COSTA, 1998, p. 84).
Conforme estudos realizados por Vasconcelos, ampliou-se a mar-
gem de especulao e o que se constata que no decorrer dos anos 50
teve-se, em Mato Grosso, um acelerado processo de apropriao privada
das terras do Estado. (VASCONCELOS, 1995, p. 22). O autor lembra
que no escaparam nem mesmo as terras indgenas, consideradas como
devolutas.
Antes de 1960, o Estado estava loteado pelos grupos capitalistas,
fechando-se a porteira para as populaes trabalhadoras que corriam ao
Estado de Mato Grosso em busca de terra prpria para plantar. (LE-
NHARO, 1986, p. 48). Nesse contexto, embora a maioria das terras devo-
lutas estivesse no norte do Estado, a CAND atuou como im econmico,
atraindo desenfreada especulao.
No que se refere especificamente a Dourados, importante anali-
sar, ainda, o primeiro nmero do Jornal O Progresso, de 21 de abril de 1951.
-
38
Nesse nmero, esse jornal trata do crescimento do municpio, a partir da
procura por terras, com o artigo principal intitulado Vertiginosa! A marcha para o progresso. No livro Memria Fotogrfica de Dourados, Regina Targa Mo-reira reproduz textos e anncios de jornais de Dourados, impressos na
dcada de 1950. Ela chama a ateno para a boa qualidade da terra do
municpio. E traz como exemplo o jornal O Rolo: As terras de Dourados so idnticas s da Ucrnia, que so as mais frteis do mundo. Adquira j
o seu terreno. (MOREIRA, 1990, p. 89).
Joe Foweraker (1982) explica que a busca desenfreada de terras na
regio de Dourados, por parte de migrantes, fez com que durante a dcada
de 1950 a populao no-indgena crescesse 611%. Assinala, tambm, que
o crescimento populacional expressivo que o Estado de Mato Grosso teve
entre as dcadas de 1940 e 1970 deveu-se, principalmente, rea da col-
nia, tendo a cidade de Dourados como principal centro de cultivo.
V-se, ento, que a busca pelos espaos vazios e por melhor sorte na vida provocou uma avalanche de migrantes para a regio de Dourados.
O resultado da descabida e desenfreada nsia de especulao fundiria, da
falta de recursos, das descontinuidades de governos, foi o que levou os n-
dios, j conhecedores do territrio, a continuarem a viver em suas aldeias,
estando muitas delas no territrio antes dominado pela Companhia Mate
Larangeira, porm em espaos cada vez mais diminutos.
O indgena brasileiro estava sendo preparado sistematicamente
para ser integrado sociedade nacional. O projeto maior do Estado previa
uma sociedade integrada, fato que se acentuou na poca do Estado Novo
com as novas frentes de expanso sendo definidas. Como exemplo disso,
tem-se a criao da CAND, por meio da qual os colonos foram assentados
em terras indgenas.
Os colonos ocuparam as terras pertencentes aos ndios e rapida-
mente desmataram-nas. Enquanto havia mata para derrubar, os ndios
serviam como mo-de-obra; depois foram colocados de forma aleatria
dentro de reas demarcadas. Segundo Brand (1997), esse processo prosse-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
39
guiu at a dcada de 1970. Com isso, mais de uma centena de aldeias foram
destrudas. Hoje em dia, as reservas esto superpovoadas; h sobreposio
de aldeias e chefias, os ndios esto sendo obrigados a buscar o seu sus-
tento fora da aldeia, trabalhando nas usinas de lcool e nas fazendas do
Estado e at fora deste, como em Mato Grosso, Paran e Rondnia.
Contudo, os problemas socioculturais esto inflamados nas reser-
vas, suas tradies culturais so interrompidas, e outros hbitos diferentes
dos indgenas so incorporados na cultura. O processo de marginalizao
dos Kaiow da histria de Mato Grosso do Sul, como consequncia da
poltica de reservas e do processo de expropriao das terras indgenas,
aponta a necessidade de pensar a histria do Estado a partir da experincia
de luta de diversos sujeitos, entendendo-se que os ndios tambm fazem
parte desta histria.
A Colnia Agrcola Nacional de Douradosem Terras Indgenas
No incio de 1940, antes da instalao da CAND, havia algumas
aldeias Kaiow na regio, compreendida entre o Rio Brilhante e os cr-
regos Laranja Doce, Panambi e Hum, conhecida como rea do Panambi,
uma localidade sabidamente de indgenas. Aquele tekoh est dividido em trs aldeias indgenas: a aldeia Panambi ou Lagoa Rica, localizada no Mu-
nicpio de Douradina, a aldeia de Panambizinho ou Vila Cruz, no Distrito
de Panambi, Municpio de Dourados, e a aldeia Sucuriy, no Municpio de
Maracaju. As trs comunidades indgenas tm problemas relacionados
regularizao fundiria, j que grande parte de suas terras est ocupada
por no-ndios. As informaes sobre a situao jurdica e a rea atual de
cada uma das aldeias so diferentes. Nas aldeias Panambi e Sucuriy, no
aconteceu nenhuma ao efetiva que mudasse essa realidade. Quanto
Terra Indgena Panambizinho, no final de 2004, os Kaiow reconquista-
ram parte de seu territrio, ou seja, 1.272 hectares.
-
40
Na verdade, os ndios foram levados a viver em pequenas reas e
no houve nenhuma preocupao em garantir-lhes, ao menos, que esses
espaos fossem de fato e de direito seus. Mas, aps a Constituio de 1988,
os indgenas persistem na luta para reconquistarem suas terras.
Dito isso, na tentativa de demonstrar como ficou a questo da terra
do ndio na poltica de colonizao do Estado, seja a oficial, as particulares
ou a espontnea, estuda-se um caso especfico: a Terra Indgena Panam-
bizinho.
H algumas obras que de um ou de outro modo so teis para esse
estudo: Foweraker (1982), Lenharo (1986), Arruda (1989), Moreira (1990),
Vasconcelos (1995), Brand (1997), Costa (1998), Couto Oliveira (1999),
Santos (2000) e Wenceslau (1990), entre outros. Esses trabalhos so de
grande contribuio para a histria regional, embora no tenham foca-
lizado a questo especfica do desenrolar do processo histrico Kaiow
no Distrito de Panambi, regio onde os indgenas nunca foram agentes
passivos da histria e seguem lutando pelos seus direitos. nesse sentido
que se pretende trabalhar, mostrando os conflitos envolvendo os Kaiow
e colonos.
Cabe aos historiadores e historiadoras, atravs de uma reviso me-
ticulosa das abordagens vigentes, verificarem o verdadeiro papel do ndio
no incio da colonizao, ainda que os reduzam a meras vtimas do inexo-
rvel processo. No apenas lembrar mais estes esquecidos da histria, antes, porm, redimir a prpria historiografia de seu papel conivente na tentativa
fracassada de erradicar os ndios.
Mais do que isso, a historiografia poder fornecer fundamentos
e diretrizes para a compreenso do desafio poltico social que os ndios
apresentam para a sociedade e para o Estado Brasileiro.
Nesse sentido, Monteiro ressalta que
A extino dos ndios, tantas vezes prognosticada, negada enfatica-mente pela capacidade das sociedades nativas em sobreviver aos mais hediondos atentados contra sua existncia. Recuperar os mltiplos processos de interao entre essas sociedades e as populaes que sur-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
41
giram a partir da colonizao europia, processos esses que vo alm do contato inicial e dizimao subseqente dos ndios, apresenta-se como tarefa essencial para uma historiografia que busca desvencilhar--se de esquemas excessivamente deterministas. Com isso, pginas in-teiras da histria do pas sero reescritas; e ao futuro dos ndios ser possvel reescrever, ento, um espao mais equilibrado e, quem sabe, mais otimista. (MONTEIRO, 1995, p. 227-228).
Seguindo o pensamento de Monteiro, preciso reescrever a histo-
riografia indgena. Os indgenas vm demonstrando ser os protagonistas
na luta e conquista de seus direitos. Os Kaiow da regio de Panambi, des-
de a dcada de 1920, tm trabalhado no processo da escrita dessa histria
que ainda esta por ser registrada no papel.
Na histria mais recente da Terra Indgena Panambizinho, o ento
Ministro da Justia, Nelson Jobim, esteve na aldeia e assinou a Portaria
Ministerial n. 1.560, de 13 de dezembro de 1995 (ANEXO 4). Este docu-
mento reconhece a rea Indgena Panambizinho e determina sua demar-
cao. A partir dessa portaria, seria possvel a expanso da rea atualmente
ocupada pelos Kaiow. Contudo, a portaria passou a ser protestada por
vrios proprietrios que se sentiram lesados por tal determinao. Diante
disso, instaurou-se o Processo n. 96.0000158-8 junto 1 Vara da Justia
de Sesso Judiciria do Mato Grosso do Sul. Alm disso, foi requerida uma
percia judicial, a qual foi realizada por ordem do Juiz Federal. A antrro-
ploga Ktia Vietta realizou a percia, cujos resultados de suas pesquisas
sero analisados neste trabalho.
Vale salientar amide que as terras da Terra Indgena Panambizinho
foram ocupadas por no-ndios a partir da instalao da CAND. Na oca-
sio, o governo federal Getlio Vargas no levou em considerao que se
tratava de um espao h muito ocupado pelos Kaiow, desrespeitando a
legislao em vigor, no regime ditatorial de seu governo.
Para a sociedade nacional, a terra uma mercadoria e deve gerar
rendas que possam ser apropriadas pelos capitalistas. Mas isso no aconte-
-
42
ce em muitas terras indgenas, pois, para o ndio, a terra no um meio de
acumular riquezas, mas sim uma forma para manter uma condio espe-
cfica de vida. A transformao da terra em mercadoria na sociedade capi-
talista , pois, um processo nefasto que envolve conflitos e contradies.
Os ndios da Terra Indgena Panambizinho lutaram mais de cin-
quenta anos pela posse de uma parte de suas terras tradicionais, as quais
somente em abril de 2003 foram demarcadas. Os colonos, por sua vez,
tiveram o prazo de mais de um ano para entreg-las aos indgenas, e rece-
beram uma indenizao do governo federal para as benfeitorias existentes
nas suas terras, e terras no Municpio de Juti.
Nos prximos dois itens, trata-se mais especificamente do conceito
de territrio, e o que levou os Kaiow a mudarem ou a permanecerem no
territrio da Terra Indgena Panambizinho. As mudanas aparecem no
decorrer da histria. Como retrata o antroplogo Fbio Mura:
O territrio vai se transformando e assumindo caractersticas bem diferentes das do passado, quando era ocupado pelos vrios grupos indgenas num meio-ambiente que satisfazia s necessidades bsicas a partir somente da unidade territorial onde se desenvolviam as vidas dos nativos. Atualmente no se pode falar do meio-ambiente e das atividades realizadas neste territrio (e dos grupos sociais que nele se relacionam) como configurado do mesmo modo; os produtos hoje em dia chegam a essa unidade territorial de muito longe. (2000, p. 11).
O territrio, portanto, algo dinmico, como tambm dinmica a
prpria cultura. A partir desse ponto de vista, so analisados os processos
de desterritorializao e reterritorializao dos Kaiow de Panambizinho.
O Processo de Desterritorializao
O processo de desterritorializao refere-se aos momentos de ten-
tativas e concretizaes da retirada dos indgenas de seus costumeiros ter-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
43
ritrios e, consequentemente, a fixao destes em reas demarcadas pelo
governo federal para suas moradias. Entende-se que estes indgenas no
foram desterritorializados somente de suas terras, mas tambm de hbitos
scio-culturais que entrelaavam suas redes de convivncias no local por
eles habitado.
As leituras de Joo Pacheco de Oliveira, em particular Indigenismo e territorializao (1998) e Ensaios em Antropologia Histrica (1999), tm pos-sibilitado uma nova abordagem da dimenso histrica e antropolgica.
Mais especificamente, a primeira obra, coordenada por Joo Pacheco de
Oliveira, trouxe subsdios para reflexo de terras indgenas. Para o autor,
ao falar de terras indgenas, situa-se uma definio jurdica materializada
na Constituio Federal em vigor: Terras indgenas so bens sob dom-
nio da Unio, cabe ao Estado promover o reconhecimento administrativo
das terras dos ndios, resguardando-lhes a posse permanente e o usufruto
exclusivo das riquezas ali existentes. (PACHECO de OLIVEIRA, 1998,
p. 45).
O conceito de territorialidade est diretamente ligado relao do
homem com o meio que o cerca, em particular a organizao de sua cultu-
ra em um determinado territrio. Essa relao est diretamente vinculada
necessidade desse ser vivo habitar esse territrio, criando ali o seu habi-
tat. Segundo Joo Pacheco de Oliveira, a noo de habitat aponta para
a necessidade de manuteno de um territrio, dentro do qual um grupo
humano, atuando como um sujeito coletivo e uno, tenha meios de garantir
a sua sobrevivncia fsico-cultural. (Ibid, 1998, p. 44). Ou seja, esse ter-
ritrio estaria ligado existncia fsica desse ser humano e perpetuao
de sua cultura.
Refiro-me ao processo de desterritorializao analisando a histria
do territrio brasileiro. No perodo colonial, as terras eram de posse nica
do Rei e no havia relao entre uso e posse das terras. A Lei de Terras
de 1850 restringiu o uso da terra a quem tivesse posse das mesmas, e essa
posse passou a ser distribuda pela compra. De acordo com Elizabeth Ma-
-
44
ria Bezerra Coelho, a partir da a relao entre o Estado e os ndios se tor-
nou amplamente ambgua quando o assunto tinha relao com a posse de
terras. (COELHO, 2002, p. 23). O governo reconhecia como terras ind-
genas somente aquelas determinadas por ele prprio, e no aquelas habi-
tadas pelos grupos antes da chegada dos conquistadores. No reconhecia
a necessidade de os povos indgenas permanecerem em suas terras, para
dali retirarem no s o sustento, mas tambm preservarem a sua cultura.
Nesse perodo, conforme trata Brand, os limites territoriais ainda
esto sendo definidos:
[...] com o final da Guerra do Paraguai, uma nova comisso de limites percorreu a regio ocupada pelos Kaiow/Guarani, entre o Rio Apa e o Salto de Sete Quedas, em Guara, terminando seus trabalhos em 1874. O provisionador dessa comisso era Thomas Larangeira. Este percebeu a grande quantidade de ervais nativos existentes nesta regio e tambm a abundante mo-de-obra ps-guerra disponvel. (BRAND, 1997, p. 60).
O Servio de Proteo ao ndio (SPI) teve sua criao em 1910 e
sua extino em 1967, sem ter legalizado as terras indgenas. O rgo deu
incio s oficializaes das terras indgenas na regio, mas no provocou
o incio desse processo. O governo tinha interesse em transform-los em
trabalhadores brasileiros por interveno do SPI. Um dos resultados dessa
ao foi condio de tutela operacionalizada pelo Estado.
Joo Pacheco de Oliveira escreve que os critrios (no explicados)
utilizados pelo SPI para definirem as terras indgenas, passam pela funo
de mediador nas situaes sociais de expanso de fronteira econmica. Do
seu ponto de vista: O SPI no costumava verbalizar a inteno de pre-
servao cultural e nem estabelecia uma conexo entre a cultura indgena
e um dado meio ambiente. (PACHECO de OLIVEIRA, 1999, p. 109).
Em 1822, atravs do Decreto n. 8.799, de 9 de dezembro desse
mesmo ano, Thomas Larangeira obteve do Governo Federal o arrenda-
mento das terras da regio para a explorao da erva-mate nativa.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
45
A Resoluo n 76/1894, que arrendou as terras Companhia
Mate Larangeira por um prazo de 16 anos, j explicava que ela no per-
mitiria o estabelecimento de estranhos nessa rea sem sua autorizao.
(ARRUDA, 1986, p. 285). Portanto, essa Companhia no foi apenas am-
pliando seus domnios em extenso, mas tambm o poder e controle que
tinha sobre as terras. Por isso, o contrato celebrado entre o Estado de
Mato Grosso e a Companhia Mate Larangeira, em 1916, j registrava que
o Estado prestaria arrendatria auxlio para impedir tanto a elaborao
clandestina do mate nos ervais arrendados como o respectivo contraban-
do [...]. (Ibid, 1986, p. 292).
Brand (1997) afirma a ausncia de referncias e informaes nos
trabalhos de diversos autores que escreveram sobre a Mate Larangeira,
sobretudo no que se refere ao uso de mo-de-obra indgena nos ervais, ou
ainda, sobre a relao da Companhia Mate Larangeira e as aldeias Kaiow
e Guarani na regio.
Acredita-se que a quase ausncia de referncias consistentes sobre a
participao indgena como mo-de-obra durante esse perodo da histria
da regio, talvez possa ser explicada pelo seu provvel ocultamento no
meio dos paraguaios, falando a mesma lngua e com costumes aparente-
mente prximos. Talvez a prpria Companhia Mate Larangeira tenha tido
interesse nesse ocultamento, para assim considerar a regio como desocu-
pada e, portanto, possvel de ser arrendada. Por outro lado, o reconheci-
mento da participao indgena poderia ter facilitado o atendimento das
exigncias da Lei de Concesses de Terras em Fronteiras, no incio da
dcada de 1940.
No sculo XX, foram criadas diversas reservas indgenas. E, em
muitos casos, no era levada em considerao a necessidade de cada grupo
de ter a sua terra para manter a sua cultura da forma como havia apren-
dido de seus ancestrais. Nessas reservas, misturaram ndios de diversas
etnias, que praticavam cada um os seus prprios ritos. Com essa mudana
-
46
do ndio para as reservas, inicia-se o processo de desterritorializao des-
ses povos, que foram obrigados a deixar essa identificao natural com a
terra, e, distanciando-se de sua identidade, distanciaram-se tambm de sua
cultura.
At 1988, os povos indgenas viveram sob os princpios formais
de uma poltica integracionista. Esta previa a incorporao lenta e gradu-
al dos indgenas comunho nacional. Com a nova Constituio, fica-se
diante de um outro contexto que extrapola a percepo legalista da plurali-
dade social. O reconhecimento formal da diversidade tnica e cultural im-
pulsionou a mobilizao de categorias especficas, como a indgena, fato
que apresenta uma nova realidade.
O Estado Brasileiro, atravs da Constituio de 1988:
[...] adota um nico critrio para a definio de uma terra indgena: que nela os ndios exeram de modo estvel e regular uma ocupao tradicional, isto , que utilizem tal territrio segundo seus usos e cos-tumes. Trata-se, portanto de substituir uma identificao meramente negativa (da presena do branco) por uma identificao positiva, que pode ser feita atravs do trabalho de campo e da explicitao dos pro-cessos socioculturais pelos quais os indgenas se apropriam daquele territrio. (PACHECO de OLIVEIRA, 1999, p. 111).
Desta forma, pde-se reconhecer a necessidade de terra para os
ndios brasileiros para a sua sobrevivncia.
A partir dos Artigos 231 e 232 da Constituio Federal de 1988,
os indgenas so considerados como atores capazes para entrar em juzo,
atravs de suas organizaes, rompendo com o status a eles atribudo pelo
Artigo 60 do Cdigo Civil de 1916, que os colocavam como portadores de
capacidade civil relativa, constituindo uma segunda categoria de cidados.
Entre as ltimas dcadas de 1980 e 1990, possvel perceber uma
mudana dos pleitos dos povos indgenas. A dcada de 1980 foi marcada
pela mobilizao dos mesmos no sentido de garantir seus direitos territo-
riais. Na dcada seguinte, com a nova Constituio Federal, as reivindica-
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
47
es indgenas comearam a ser caracterizadas por demandas mais amplas,
exigindo polticas pblicas, que viabilizassem a gesto e o controle dos
seus territrios.
O despontar da nova articulao indgena uma grande afirmao
de que h relaes sociais que so escritas em territrios e que estas s
fazem sentido quando partem deles. Os direitos das comunidades indge-
nas no so direitos desterritorializados. As suas terras so sagradas, so
aquelas e no as outras. Os seus recursos naturais provm daquelas terras e
no de outras. Seus costumes, suas religies, suas relaes com os espritos
e com os deuses apenas so visveis e concretos pela presena da comuni-
dade nos lugares especficos e sagrados.
Em 2005, o site da FUNAI (2005) noticia que o cenrio brasileiro
comporta aproximadamente 460 mil indgenas, 225 etnias diferentes, cer-
ca de 0,25% da populao brasileira. Alm destes, h entre 100 a 190 mil
indgenas vivendo fora das terras indgenas, inclusive em reas urbanas.
Podem-se visualizar processos de contatos variados e decorrentes de dis-
tintos processos de territorializao. No transcorrer dos mesmos, tam-
bm possvel identificar mecanismos e estratgias de sobrevivncia dos
indgenas. Na atualidade, os indgenas vm demonstrando sua capacidade
construtiva de mobilizao e passam a ocupar um espao na nossa socie-
dade.
H uma preocupao por parte dos indgenas na conquista do ter-
ritrio, o que ocorre em pleno perodo de globalizao. O prprio movi-
mento indgena hoje globalizado, mas ainda territorializado. Porm, os
direitos pleiteados pelos indgenas so territorializados.
importante destacar que o reconhecimento dos povos indgenas
no sculo XXI no deve se restringir benevolncia do aparato legal em
admitir a existncia de identidades tnicas diferenciadas, nem bonda-
de da sociedade nacional que insiste numa representao de ndio como
primitivo e em vias de extino. Trata-se da consolidao de espaos, por
fora da prpria mobilizao indgena, que assegure aos ndios sua voz
-
48
ativa e seu papel de sujeito. As sociedades indgenas tm sido capazes de se
apropriar dessa nova semntica das relaes interculturais, e a sua articula-
o, atravs das novas formas de mobilizao que se do no presente, est
sendo capaz de, aos poucos, conduzir a sociedade brasileira a uma atitude
mais reflexiva sobre a sua identidade.
A criao das Colnias Agrcolas Nacionais (CAN), em fevereiro
de 1941, atravs do Decreto Lei n 3.059, situou-se dentro da poltica da
Marcha para Oeste, buscando-se incorporar novas terras e aumentar
a produo de alimentos e produtos primrios necessrios industria-
lizao, a preos baixos. Foweraker (1982) entende que a conquista do
oeste, atravs da criao das colnias agrcolas e de outras iniciativas sig-
nificativas para o regime de Vargas, visava a integrao territorial como
abstrato simblico da unio de todos os brasileiros. Nesse sentido, Le-
nharo trata que
[...] a ocupao dos espaos ditos vazios significava no simplesmente a ocupao econmica da terra, transformada em geradora de rique-zas, mas atravs de mtodos cooperativos, o redimensionamento das relaes sociais, de acordo com a orientao poltica vigente. (LE-NHARO, 1986, p. 18).
A implantao da Colnia trouxe para os Kaiow problemas bem
diversos daqueles criados pela Companhia Mate Larangeira. Esta se inte-
ressava somente pelos ervais nativos localizados dentro da terra dos Kaio-
w e pela mo-de-obra necessria para a explorao das ervas, enquanto
os colonos vinham em busca de propriedades, que atingiam diretamente
os territrios indgenas. Portanto, o conflito entre comunidades indgenas
e colonos da CAND foi imediato.
No Distrito de Panambi houve de fato um impacto com a implan-
tao da Colnia Agrcola Nacional de Dourados sobre os Kaiow, pois
ela atingiu parte significativa do territrio desse povo, em especial Panam-
bi e Panambizinho, que eram uma s aldeia.
-
HISTRIA DA COMUNIDADE KAIOW
49
Para Brand (1997), tanto os documentos oficiais, como os demais,
no faziam meno existncia dos ndios, cujas terras tambm foram
divididas em lotes e distribudas. Isto ocorreu devido a Lei n 87, de 20
de julho de 1948, que estabelecia os limites da Colnia e dava outras pro-
vidncias. Em seu artigo 4, explicava que seria respeitado o direito ad-
quirido por terceiros, dentro da rea da Colnia Federal. Entretanto, con-
dicionava esses direitos a ttulos de domnio expedidos pelo governo do
Estado. O que no ocorreu com os Kaiow que receberam lotes de terra.
A implantao da Colnia em rea de aldeias Kaiow marcou o
incio de uma longa e difcil luta dos indgenas pela manuteno e recupe-
rao de suas terras. Negavam-se em deixar as terras, que foram vendidas
pelo governo aos colonos. Estes, por sua vez, buscavam constantemente
obter a expulso dos indgenas, mediante aes na justia.
Em 1946, Pedro Henrique, capito dos ndios Kaiow, escreve uma
carta ao General Rondon, que diz:
Aqui venho pedir-vos ao Sr. General para mandar dividir as terras que toca para os ndios Caius, porque os outros esto s fazendo intrigas para ver se toma as nossas terras, e ns somos bastante ndios, preci-samos de um pedao de terra para minha aldeia, para podermos traba-lhar mais socgados, minha aldeia contm 869 ndios entre homens e mulheres e crianas ento vou pedi-lho o auxilio do Sr. General e es-perarmos as suas providncias, desde j todos os ndios Caius ficam muitos agradecidos pelas suas caridade [sic] com eles, e pedimos a deus a recompensa sua. E muito agradeo ao Exmo. General.3
A carta de Pedro Henrique, assim como os demais documentos,
acaba por desencadear uma srie de correspondncias que mostram que
embora sejam rgos lotados no mesmo Ministrio, o SPI inoperante em
3 Carta de Pedro Henrique (1946). Contida no Relatrio final da Percia na rea Indgena Panambizinho, Distrito de Panambi, Municpio de Dourados, Estado de Mato Grosso do Sul, sob responsabilidade da antroploga Ktya Vietta. Campo Grande, 1998, p. 47.
-
50
relao CAND. A correspondncia revela aspectos importantes sobre a
origem de toda a confuso, presente at 2004, no que diz respeito no so-
mente definio sobre as terras indgenas da regio de Panambi e demais
terras de Mato Grosso do Sul. A respeito disto, Mura sublinha que:
Apesar do esforo do SPI em reservar e garantir terras a essa popu-lao, a viso positivista de integr-los sociedade nacional definiu procedimentos geradores dos problemas fundi