josep fontana - historia depois do fim da historia

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HISTÓRIAdepois do fim da

HISTÓRIA

Page 3: Josep Fontana - Historia Depois Do Fim Da Historia

Editora da Universidade do Sagrado Coração

EDUSC

Coordenação EditorialIrmã Jacinta Turolo Garcia

Assessoria AdministrativaIrmã Teresa Ana Sofiatti

Assessoria ComercialIrmã Áurea de Almeida Nascimento

Coordenação da Coleção EssênciaLuiz Eugênio Véscio

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Tradução

Antonio Penalves Rocha

Revisão TécnicaMaria Aparecida de Aquino

HISTÓRIAdepois do fim da

HISTÓRIA

JOSEP FONTANA

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Rua Irmã Arminda, 10-50CEP 17044-160 - Bauru - SP - Brasil

Fone: (014) 235-7111 - Fax: (014) 234-4763e-mail: [email protected]

Copyright© EDUSC - 1998

Fontana, Josep.História depois do fim da História / Josep

Fontana ; tradução Antonio Penalves Rocha.- - Bauru, SP: EDUSC, 1998.

40 p. ; 21.6 cm. -- (Coleção Essência)

ISBN 85-86259-40-3

Tradução de: La historia tras la crisisde 1989.

1. História Contemporânea. I. Título.II. Série.

CDD - 909.82

F756h

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APRESENTAÇÃO

O historiador espanhol Josep Fontana éinternacionalmente conhecido e admirado por suasreflexões situadas, principalmente, no campo daTeoria da História.

Numa reunião de esforços, o Núcleo Regionalde São Paulo da Associação Nacional de História(ANPUH/SP) juntou-se à Editora da Universidadedo Sagrado Coração (EDUSC), na feliz tarefa detrazer o prof. Fontana para participar do XIVEncontro da ANPUH/SP e de lançamentos editoriaisde seus textos, inexplicavelmente, pouco traduzidosno Brasil.

Josep Fontana proferiu a conferência deencerramento do XIV Encontro Regional de SãoPaulo da ANPUH (8 a 11 de setembro de 1998),organizado em torno da temática geral Sujeito naHistória: Práticas e Representações. Este texto queora apresentamos, é resultado de suas reflexõesespecialmente elaboradas para a Conferência: “Aevolução da História pós 1989: perspectivas”.

As Críticas do Prof. Fontana tomam por baseo ano de 1989, quando, entre outros eventos,comemorou-se o bicentenário da RevoluçãoFrancesa, apresentando-se (re)leituras da mesmaafastadas dos estudos consagrados na linhagem defundamentação marxista. Na mesma direção, JosepFontana procura recuperar uma reflexão colocada emdesuso, durante algum tempo, quando bombásticasinterpretações da contemporaneidade anunciaram aausência de saídas socialmente viáveis, através dosmales da “globalização” e do “fim da história”. Emtom de irônica denúncia, o autor esclarece as nem

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sempre politicamente corretas ligações e os interessesque movem tais colocações. Suas consideraçõesatingem, também, os trabalhos que atuam na linhada chamada desconstrução e da análise do discurso.

Entretanto, como historiador afinado com oseu tempo, o autor adverte para a necessidade de seutilizar o que de positivo essas linhagensinterpretativas apresentam, sem cair no engodo fácildos que pregam os fim dos tempos e aimpossibilidade de saídas para os que vivenciame/ou se preocupam com a situação de miserabilidadea que está confinada a maioria da população doglobo.

É esse texto, a um só tempo erudito e de fácilcompeensão, preocupado com a realidade européiae brasileira. que convidamos o leitor a acompanhar,sabedores que somos do interesse que fatalmentedespertará entre todos aqueles que se interessampelos rumos da História e pelo destino dahumanidade neste conturbado fim de século.

Maria Aparecida de Aquino(Depto. de História - FFLCH/USP)

Secretária do Núcleo Regional de São Paulo da ANPUH

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Há alguns anos, quem pretendia descre-ver o panorama da ciência histórica costumavafazer um mapa no qual, sobre o fundo cinza deum velho saber acadêmico fossilizado, sobres-saíam três grandes correntes inovadoras: ahistoriografia de inspiração marxista (refiro-me,claro, ao marxismo chamado ‘ocidental’ e nãoao catequista dos países do leste europeu), a es-cola francesa dos Annales e a nova história eco-nômica norte-americana. Três visões que, comoé bem sabido, correspondiam a três modos dis-tintos de entender o presente sob um ponto devista político e social.

A partir de 1989, este panorama mudoucompletamente. Por isso, podemos falar da “crisede 1989”, um ano em que coincidiram a derruba-da dos regimes do chamado “socialismo real” doleste da Europa, o recrudescimento do assalto àsinterpretações de esquerda da Revolução francesapor ocasião do seu bicentenário, a publicação doartigo de Fukuyama sobre o fim da história e a dodebate entre “velha e nova história” na AmericanHistorical Review1.

A HISTÓRIAAPÓS A CRISE

DE 1989

11. O “forum” sobre The old history and the new, em queparticiparam Theodor Hamerow, Gertrude Himmelfarb,Lawrence W.Levine e Joan Wallach Scott, com umcomentário final de J.E.Toews, apareceu em AmericanHistorical Review, 94, nº 3 (jun. 1989), pp. 654-698.

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Isto não significa que o descrédito das velhascorrentes dominantes tenha começado em 1989.Muito pelo contrário, sua decadência havia se inici-ado muito antes, coincidindo com as grandes mu-danças que acompanharam o abandono progressivoda “história social” em benefício da “história cultu-ral”, com os avanços da sociologia histórica2 e com apropagação do “giro lingüístico” na história.

A escola dos Annales teve uma função renova-dora importante nos anos que se seguiram a SegundaGuerra Mundial. A viragem que Lucien Febvre haviarealizado para facilitar a sobrevivência da revista nostempos da ocupação alemã a preparou para entrar nomundo do pós-guerra como uma opção que tinha umprestígio progressista, mas que havia eliminado clara-mente as marcas do marxismo. Foi a partir do momen-to do seu acesso ao ‘poder’ na seção VI da École Prati-que des Hautes Études que os homens dos Annales,dirigidos por Lucien Febvre, encontraram, desde 1947,um instrumento de projeção, nos cursos que contaramcom a participação de Febvre, Labrousse, Braudel,Leroi-Gourhan, Lévi-Strauss, Raymond Aron, Barthes,Bourdieu, Derrida, Le Goff, Taton, Pierre Vilar... ErnestLabrousse, com seu propósito de combinar o estudodas estruturas e das conjunturas, e Fernand Braudel,

2. Sobre a evolução da história social e da sociologiahistórica, vistas do ponto de vista de um historiador, JuliánCasanova, La historia social y los historiadores,Barcelona, Crítica, 1991. A visão da sociologia em CraigCalhoun, “The rise and domestication of historicalsociology”, em T.J. McDonald, ed., The historic turn inthe human sciences, Ann Arbor, University of MichiganPress, 1996, pp. 305-337. Sobre o caso especial de CharlesTilly, autor tão prolífico como influente, A.L.Stinchcombe,“Tilly on the past as a sequence of futures”, no apêndicede Charles Tilly, Roads from past to future, Lanham,Rowman & Littlefield, 1997, pp. 387-409.

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com seu modelo de encadeamento de ritmos temporaisdistintos, deram à escola a base teórica para o cultivode uma história social adequada às demandas do mo-mento, cujo efeito foi plenamente aceitável nos anos daguerra fria, durante os quais pôde ser vista como umasubstituta do marxismo.

O deslocamento da história social para a culturalse iniciou muito cedo nos Annales, por volta de 1960, eveio acompanhada pela defenestração de Fernand Braudelefetuada pelos ‘jovens’, que publicaram, em 1974, ummanifesto triunfalista, os três volumes do Faire l’histoiredirigidos por Pierre Nora - «mais um inventário eclécticodo realizado, destinado a um público geral, que umaproposta para o futuro», dirá Revel - e se lançaram desdeentão pelos caminhos de um ecletismo sem regras queadotou o nome de nouvelle histoire, caracterizada porFrançois Dosse como uma «história em migalhas»: umanova história que enfatizava o cultural, com uma consi-derável influência da antropologia, e que parecia ter comosigno de identidade o descobrimento do terreno ambí-guo das «mentalidades»3.

3. Jacques Revel et Nathan Wachtel, ed., Une école pourles sciences sociales. De la VIe. section à l’Ecole desHautes Etudes en Sciences Sociales, Paris, Cerf, 1996(citação literal da p.63). Braudel y Labrousse dirigiramconjuntamente a Histoire économique et sociale de laFrance que modelou a visão global da metodologia dosAnnales neste momento. Sobre a evolução posterior, PierreNora, ed., Faire l’histoire, Paris, Gallimard, 1974, 3 vol.;Jacques Le Goff et al., ed., La nouvelle histoire, Paris,Retz, 1978; Hervé Coutau-Bégarie, Le phenomène‘nouvelle histoire’, Paris, Economica, 1983; FrançoisDosse, L’histoire en miettes: des ‘Annales’ a la ‘nouvellehistoire’, Paris, La Découverte, 1987. Para uma análiseponderada das ambuigüidades da história dasmentalidades, Peter Burke, “Strenghts and weaknesses ofthe history of mentalités”, em Varieties of cultural history,Cambridge, Polity Press, 1997, pp. 162-182.

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A partir dos fins dos anos oitenta, quando a esterili-dade da nouvelle histoire já era visível, uma nova geraçãocomeçou a procurar novos enfoques metodológicos. Ocor-reu então aquilo que foi chamado pela própria revista detournant critique, que deu lugar, na verdade, a um aumentoainda maior da fragmentação e da dispersão. Dez anos de-pois de ter publicado sua obra sobre “a história em miga-lhas”, o novo livro de François Dosse sobre as “ciênciashumanas”4 nos mostra o panorama de uma história que sedispersa nas mais diversas tendências: uma nova históriasocial que recupera Weber e a subjetividade com GérardNoiriel5; outra ‘nova história social’ que tem pouco a vercom esta, como a de Bernard Lepetit, que, após criticar o“positivismo embolorado” da etapa labroussiano-braudeliana dos Annales e a vacuidade do “relativismo derelâmpago” da nouvelle histoire, oferece em seu lugar algu-mas elocubracões epistemológico-sociólogicas que têm pou-co a ver com o trabalho normal dos historiadores e que sãoformuladas num jargão insuportável6; a ‘nova história polí-

4. François Dosse, L’empire du sens. L’humanisation dessciences humaines, Paris, La Découverte, 1997. É claro que olivro se refere quase exclusivamente à França, mas é que estamistura da França com o mundo é uma doença que a culturafrancesa não perde nem nestes momentos de marginalidade.5. Essa desmitificação dos Annales vai desde a denúnciada mentira que apresentava os pais fundadores da revistacomo inconformistas à margem das regras do jogoacadêmico até a demonstração da inconsistência dotournant critique (Gérard Noiriel, Sur la ‘crise’ del’histoire. Paris, Belin, 1996).6. Bernard Lepetit, ed., Les formes de l’expérience. Unautre histoire sociale, Paris, Albin Michel, 1995. A citaçãoé retirada do indigesto “manifesto” inicial “Histoire despratiques, pratique de l’histoire”, pp. 9-22. Para uma versãomais breve, e numa linguagem mais acessível, pode servisto Bernard Lepetit, “La société comme un tout”, enCarlos Barros, ed., Historia a debate, Santiago deCompostela, 1995, I, pp. 147-158.

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tica’ do Institut d’histoire du temps présent; a história narra-tiva inspirada na obra filosófica de Ricoeur; a apropriaçãodos métodos da etnometodologia; a passagem da históriadas mentalidades à das representações; a ‘pluralização dastemporalidades’... É verdade que não se trata de escolas,mas sim de tendências que se superpõem em muitas ocasi-ões, mas o resultado final desta nova etapa de mudançaparece ser, hoje em dia, o predomínio da especulação filo-sófica e sociológica, que dá lugar a numerosas publicaçõesde teoria, mas a nenhuma grande obra de investigação his-tórica que possa ser tomada como modelo, como sucedeu,nesse passado que Lepetit qualifica como de “positivismoembolorado”, com as obras de Labrousse, Braudel, Vilarou Duby.

Quanto aos cultivadores da chamada neweconomic history - os “cliometras”, como seautodenominam - estava claro nos anos oiten-ta que não haviam atendido às esperanças quesuscitaram os trabalhos iniciais de Conrad eMeyer, e de Fogel. Muito do que fizeram des-de então não passava de um jogo de modelospouco significativos, usando dados de segun-da mão: “uma história de gabinete”, como es-creveu Emiliano Fernández de Pinedo7, queevita tanto o arquivo quanto a confrontaçãocom a real idade. Operando com modelossimplistas, esqueceram-se de que, como disseRobert Solow, “a validade de um modelo eco-nômico pode depender do contexto social”, eque quando se prescinde desta consideraçãose chega a um ponto em que “um pouco de

7. E. Fernández de Pinedo, “La historia económica ¿unfilón que se agota?” em J.M.Sánchez Nistal et al.,Problemas actuales de la historia, Salamanca,Universidad, 1993, pp. 69-82.

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habilidade e de persistência pode levar ao re-sultado desejado”. “Penso - acrescenta Solow- que i s t o exp l i ca po r que t ão poucoseconometristas se viram forçados pelos fatosa abandonar uma crença firmemente mantida.Sabe-se que alguns favorecidos pela fortunaconseguiram escrever montões de art igosempíricos sem que nem uma só vez tenham sesentido obrigados a citar um resultado quecontradissesse seus juízos previamente conce-bidos”8. Is to se apl ica perfe i tamente aoscliometras, como sabe quem quer que já te-nha discutido, apresentando evidências domundo real, com alguém que esteja convenci-do da bondade do seu modelo.

Os próprios economistas criticaram a limita-ção dos aportes da cliometria, sua falta decriatividade que a fez “aceitar os modelos desenha-dos pelos economistas dos fins do século vinte paraaplicá-los sem nenhuma crítica aos dados de outroslugares e outros tempos”9. Os cliometras não se de-ram conta de que o que tinham nas mãos era umacaixa de ferramentas metodológicas e não um cor-po de teoria, e isto fez com que fossem marginali-zados pelos economistas, que deram pouco valorao que havia sido feito, e ignorados não só peloshistoriadores “tout court” mas também pelo públi-

8. Robert E.Solow, “Economics: is somethingmissing?”, em William N.Parker, ed., Economichistory and the modern economist, Oxford, Blackwell,1987, pp. 21-29.9. Robert M. Solow, “How did economics get that wayand what way did it get?”, em Thomas Bender and Carl E.Schorske, ed., American academic culture intransformation, Princeton, Princeton University Press,1998, pp. 57-76 (citação da p.72).

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co em geral, que demonstrou não apreciar muitoseus livros10.

No que se refere ao marxismo, folga dizer que ocatequista da União Soviética e da Europa oriental soço-brou com os regimes que servia, e que as correntes oci-dentais mais próximas a ele sofreram grave quebra, comosucedeu com o estruturalismo marxista à francesa, comseu emprego petrificado e fossilizador dos conceitosmarxianos (com freqüência da simples terminologia, enem sempre bem entendida)11. Não se trata de desmon-tar novamente a máquina do althusserismo - o últimoAlthusser já fez bastante para isso - mas de comprovarquão pouco foi deixado por ele e quão ambígua é suaherança (como explicar que um Bernard-Henri Lévy rei-vindica Althusser como o seu único mestre?).

Sobreviveu à crise o setor mais vivo do cha-mado «marxismo ocidental», o que tinha como mo-delos homens do porte de Eric Hobsbawm,Christopher Hill ou E.P. Thompson12, enquanto al-

10. Sobre estas questões há uma amplíssima bibliografia,como W.N.Parker, ed., Economic history and the moderneconomist, Oxford, Blackwell, 1986; D.C.Coleman, Historyand the economic past, Oxford, Clarendon Press, 1987;Alexander J.Field, ed, The future of economic history,Kluwer-Nijhoff, 1987;Alon Kadish, Historians, economistsand economic history, Londres, Routledge, 1989;Ch.P.Kindleberger: Historical economics. Art or science?,Berkeley, University of California Press, 1990; DonaldN.McCloskey, If you’re so smart: The narrative of economicexpertise, Chicago, University of Chicago Press, 1991, etc.11. Derek Sayer, The violence of abstraction. The analyticfoundations of historical materialism, Oxford, Blackwell,1989, pp. 126-149.12. Com grande desgosto de Gertrude Himmefarb, que em«The ‘group’: British marxist historians», em The newhistory and the old (Cambridge, Mass., Belknap Press, 1987,pp. 70-93) denunciava o fato de que estes «marxistas»,embora tivessem deixado na sua maior parte o partidocomunista depois de 1956, não haviam participado de atosde arrependimento como muitos dos seus colegas franceses,o que fazia com que continuassem sob suspeita.

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guns dos seus cultivadores experimentaram caminhosnovos, sem abdicar dos seus princípios progressis-tas, como o grupo da History workshop del RuskinCollege de Oxford reunido em torno de RaphaelSamuel, ou o da Alltagsgeschichte ou “história docotidiano” alemã13, enquanto outras experiências,como a da microstoria italiana, se prestavam a deri-vações mais ambíguas14.

Mas, tampouco no caso do marxismo, e de ou-tras formulações progressistas que se tornavam incô-modas para o sistema estabelecido, pode se dizer que aquebra tenha sido conseqüência da crise de 1989. Ascampanhas de desprestígio e os ataques sistemáticosque atingiram os suspeitos de esquerdismo depois da“queda do muro” nada mais foram que o final de umalonga ação repressiva, que pode muito bem ser ilustra-da, sem generalizar demasiadamente, com o que ocor-reu nos Estados Unidos.

A luta na América do Norte contra tudo quepudesse parecer progressista tinha um anteceden-

13. Raphael Samuel, ed., Historia popular y teoríasocialista, Barcelona, Crítica, 1984; Alf Lüdtke, ed.,Histoire du quotidien,Paris, Maison des Sciences del’Homme, 1994.14. Sobre a microstoria ver Edward Muir and GuidoRuggiero, Microhistory and the lost peoples of Europe,Baltimore, Johns Hopkins University Press, 1991 y FlorikeEgmond and Peter Mason, The mammoth and the mouse.Microhistory and morphology, Baltimore, Johns HopkinsUniversity Press, 1997. Nela se mesclam aqueles quefazem da narração do singular o objetivo final (algunsartigos do Quaderni storici não passam de notas deerudição irrelevante, revestidas de uma falsa legitimaçãoteórica) com os que empregam a microanálise parailuminar uma realidade mais ampla, o que é perfeitamentelegítimo, mas não tem nada de novo. Ginzburg se lançou,ademais, em especulações com escasso fundamento nosseus escritos sobre bruxaria.

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te famoso no monkey trial de 1925, quando JohnnyScopes, um professor do Tennessee que se atreveua desafiar a proibição de ensinar o evolucionismo,foi processado em Dayton, num julgamento sobreciência e religião que se converteu num grande es-petáculo, acompanhado de atrações de feira e depregadores de uma centena de seitas distintas15. Asentença do caso Scopes pode parecer uma vitóriada ciência, mas a lei que proibia ensinar a evoluçãofoi mantida no estado do Tennessee até 1967, econtinua existindo na atualidade, quando inclusiveo Vaticano aceitou Darwin, um movimento quetenta conseguir que nas universidades norte-americanas o evolucionismo e o criacionismosejam ensinados em pé de igualdade, como duasopções científicas igualmente admissíveis.

Mas, está claro que não se tratava tão-somen-te de ciência, mas também, e muito especialmente,de história. Nos anos trinta, os livros de texto de his-tória que não manifestassem um patriotismo conser-vador eram denunciados, proibidos ou queimados16.Como declaravam as ‘Daughters of the ColonialWars’, era intolerável que se tratasse “de dar à crian-ça um ponto de vista objetivo, em lugar de ensinar oamericanismo real. Todos os velhos livros de histó-ria ensinavam sobre ‘meu país, com razão ou sem

15. Edward J.Larson, Summer for the gods. The Scopestrial and America’s continuing debate over science andreligion, New York, Basico Books, 1997.16. A história oficial se baseava nas “doutrinas doexcepcionalismo norte-americano e do Destino Manifesto,e no mito da conquista triunfante do oeste” e “omitiaqualquer menção à raça, escravidão, conquista dos povosnativos e opressão sobre muitos grupos marginalizados,incluindo as mulheres”, Gerda Lerner, Why history matters,New York, Oxford University Press, 1997, pp.202-203.

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ela’. Este é o ponto de vista que queremos que nos-sos filhos adotem. Não podemos permitir que apren-dam a ser objetivos e que eles mesmos formem suaspróprias opiniões”. No começo dos anos quarenta, aNational Association of Manufacturers tinha 6.840‘sentinelas’ locais, dedicadas a manter a integridadedo ensino sobre o perigo representado pela ‘ascen-são do coletivismo’17.

Tudo isso se empalidece diante do que acon-teceu durante os anos da “guerra fria”, quando hou-ve por todo o país cruzadas locais contra os livros detexto subversivos: um informe das ‘Daughters of theAmerican Revolution’ denunciou 170 livros comosubversivos (para dar um exemplo do que pretendi-am combater: a afirmação de que a democracia é “aforma de governo em que o poder soberano está nasmãos do povo coletivamente” foi denunciada comopró-comunista)18.

O mesmo aconteceu nas universidades, em-bora com outros métodos, que substituíram a cen-sura pela corrupção. A liberação de documentosoficiais permitiu descobrir nos últimos anos atéque ponto a evolução das ciências sociais nos Es-tados Unidos, durante a etapa da guerra fria, es-teve condicionada ao financiamento do Departa-mento de Defesa, da CIA e de algumas funda-ções conservadoras, de modo que se pôde chegara dizer que “ao contrário do que se pensa habitu-almente, a ‘ofensiva ideológica’ foi, a partir de1945, pelo menos tão importante para a estraté-

17. Gary B.Nash, Charlotte Crabtree and Rose E.Dunn,History on trial. Culture wars and the teaching of the past,New York, Alfred A. Knopf, 1997, pp. 44-45.18. Ibid., pp. 69-70.

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gia da segurança dos Estados Unidos quanto abomba atômica”19.

Nos centros de estudos financiados por estas ins-tituições, como o CENIS do prestigioso MassachussetsInstitute of Technology, homens como Clifford Geertztrabalhavam ao lado de ‘falcões’ como Walt Rostow -que dava ao mesmo tempo aulas sobre os fundamentosda contra-insurgência na escola de guerra do exércitonorte-americano em Fort Bragg - ou de homens quepodem ser qualificados de ‘terroristas profissionais’como Lucien Pye, que seria um dos inspiradores dealgumas das piores amostras da doutrina legitimadoradas ações de contra-insurgência, e concretamente doinútil e sangrento disparate que foi a eliminação do re-gime neutro de Sukarno na Indonésia, à custa de meiomilhão de mortos20.

Depois de 1989, a demolição dos regimes doleste europeu não só significou o fim desta guerra deidéias, mas pareceu o momento adequado para fun-damentar um novo e duradouro consenso que deviadeixar firmemente assentada a convicção de que todatentativa de subverter a ordem estabelecida era inú-til, que toda revolução - fosse a francesa de duzentosanos atrás ou a soviética de 1917 - acabava conver-

19. Chistopher Simpson em Christopher Simpson, ed.,Universities and empire. The Cold war and the productionof knowledge, New York, The New Press, 1998, p. XVII.20. Irene Gendzier, “Pay it again Sam: the practice andapology of development” em Simpson, Universities andempire, pp. 57-95. Sobre o erro da Indonésia, Audrey R.and G. Mct. Kahin, Subversion as foreign policy. The secretEisenhower and Dulles debacle in Indonesia, Seattle,University of Washington Press, 1995. Sobre estasquestões, mas em geral, ver Noam Chomsky et al., TheCold war and the university: Towards an intellectualhistory of the postwar years, New York, The New Press,1997 y Radical History Review, nº 63 (1995).

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tendo-se num fracasso sangrento21.A campanha norte-americana de rearmamento

ideológico tinha agora grandes fundações conserva-doras como protagonistas destacados, como a Funda-ção John M. Olin, que financia institutos e programas«destinados a reforçar as instituições econômicas,políticas e culturais sobre as quais se sustenta a em-presa privada» e que, em 1988, por exemplo, destinoupara estes fins um orçamento de 55 milhões de dolares.A lista dos seus beneficiários, como se disse, pareciaum diretório da direita acadêmica, com nomes comoAllan Bloom, o autor do The closing of the Americanmind, como François Furet, financiado por seu trabalhodemolidor da Revolução francesa, ou como IrvingKristol, que, tendo evoluído de uma pobre juventudetrotskista a uma rentável maturidade de direita dura (afundação lhe proporcionava 376.000 dolares anuais),passou depois a publicar “The National Interest”,financiado com um milhão de dolares pelo mesmo

21. Não me ocuparei com a ofensiva revisionista nahistoriografia da Revolução francesa, porque é um temademasiadamente complexo. Não surpreende encontrarcomo chefe da frente de combate contra a chamadainterpretação “jacobino-marxista”, François Furet, ex-comunista convertido em anticomunista profissional, queseria proclamado como autoridade suprema, comcapacidade para expedir certificados de admissão noparaíso da ciência ou de expulsar dele os indignos, numamatéria que nunca havia estudado nos arquivos, massomente em livros. O furor revisionista que chegou aoseu ponto mais alto em 1989 parece que está começandoa abrandar. Em fevereiro de 1997 Gwynne Lewissustentava que nos achamos já na era do “pós-revisionismo”, em que, em lugar de descartar por razõesideológicas a versão socialista dos Jaurès, Lefebvre ouSoboul, é preciso começar a analisá-la. GwynneLewis,‘Why Philippe Egalité died on the scaffold’, enTimes Literary Supplement, 20/02/1997, p. 30).

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patrocinador (e relacionada com Kristol, participandoda mesma empresa familiar, deve ser citada,logicamente, uma notória defensora doconservadorismo, a sua esposa Gertrud Himmelfarb)22.

Pode se ter uma boa idéia da eficácia do trabalhodestas equipes por meio do êxito que obtiveram em algotão trivial como as especulações, certamente nada no-vas, de Francis Fukuyama sobre o “fim da história”. Paradifundir o ‘novo paradigma’, a fundação Olin idealizouuma estratégia que alcançou êxito total. Em 1988, AllanBloom convidou Fukuyama para expor suas idéias nocentro Olin de Chicago, dirigida por ele mesmo. Saiudaí um artigo, «The end of history?», publicado no ve-rão de 1989 no “The National Interest”, «sua» revista,na qual apareceram depois réplicas escritas por AllanBloom, Irving Kristol e Samuel Huntington, os três dafolha de pagamentos da Olin. Quando terminou esta«discussão», e se fez crer que houve um debate pluralista,o tema foi posto à venda para a imprensa de Nova York ese preparou o caminho para a publicação, em 1992, deum livro que serviu para tornar moda as idéias elabora-das por Fukuyama, difundindo-as mundialmente23.

Logo se viu, contudo, que a mercadoria posta

22. Jon Wiener, «Dollars for Neocon Scholars. The Olinmoney tree» em The Nation, 01/01/ 1990, pp. 12-14. TheodoreDraper, «An anti-intellectual intellectual», em New Yorkreview of books, 2/11/1995, pp. 29-34. Sobre as idéias deHimmelfarb ver The old histoy and the new, citado acima.23 Francis Fukuyama, The end of history and the last man,Londres, Hamish Hamilton, 1992 (com edição paralelanos Estados Unidos por The Free Press). A surpresa dealguns críticos como John Dunn, que se perguntava noTimes literary supplement (24/04/1993, p.6) : “Por queuma obra de tão evidente mediocridade obteve tantaatenção pública?” podia ser justificada. Não a estava, poroutro lado, sua segunda pergunta: “Por que um editor pôdeempregar tanta energia e capital para lançar um livro tãopueril e de tão escasso interesse?”, já que isto era óbvio.

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em circulação por Fukuyama saía rapidamente demoda, porque, entre outras razões, contra suas pre-dições, os conflitos e os enfrentamentos continua-vam presentes num mundo em que não estava claroque a história havia acabado24. Era preciso procurarnovas teorias e pôr em marcha um novo paradigmaconservador mais duradouro. Foi encarregado defazê-lo Samuel Huntington, um velho teórico da guer-ra do Vietnã, que lecionava na Universidade deHarvard (onde dirige, precisamente, o Instituto JohnM.Olin de Estudos Estratégicos). O lançamento foifeito com a mesma técnica que havia sido emprega-da no lançamento do texto de Fukuyama.

Huntington publicou, em 1993, um artigointitulado «The Clash of Civilizations?»25, no qualpartia da comprovação de que a tese de Fukuyamaestava equivocada - “a história não acabou; o mun-

24. Christopher Hill escreveu em “Premature obsequies”,History today, 04/1991, que «‘A morte do marxismo, bemcomo ‘o fim da ideologia’ e ‘o fim da história’ procedemdas ilusões dos acadêmicos que crêem que sua sociedadehá de ser eterna porque isto lhes é cômodo. Mas, talvez oshabitantes do terceiro mundo não estejam seguros de quea história acabou”. Fukuyama cometeu posteriormente umdeslize no seu último livro, The end of order, Londres,The Social Market Foundation, 1997, ao sustentar que associedades ocidentais estão sofrendo uma grave rupturaem conseqüência da decadência do matrimônio e da famíliatradicional, atacando, por isto mesmo, a pílulaanticoncepcional e o trabalho das mulheres, o que pareceque não vai torná-lo muito popular.25. Em Foreign Affairs, 72 (1993), nª 3, pp. 22-49. Oscomentários ao artigo apareceram na mesma revista, nonª 4 do mesmo ano, e a réplica de Huntington, “If notcivilizations, what? Paradigms of the post-cold war world”no nª 5 de 1993, pp. 186-194. O livro correspondente,The clash of civilizations and the remaking of the worldorder, foi publicado em 1996.

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do não se unificou” -, e colocava em circulação umnovo “paradigma do mundo depois da guerra fria”,afirmando que com o fim desta confrontação haviadesaparecido a divisão do planeta em três mundos.Os conflitos mundiais já não se definem mais emtermos de diferenças ideológicas, nem tampouco sãode natureza econômica. O que agora agrupa as cole-tividades humanas e as põe em confronto são razõesculturais. Os protagonistas continuam sendo, aparen-temente, os estados-nacionais, por meio dos quais seexpressam os conflitos, mas “o choque entre civili-zações dominará a política global”. Algumas civili-zações são definidas sobretudo em termos religio-sos. Ou, melhor dizendo, mal definidas, porque oserros que Huntington comete neste terreno são espe-taculares e deveriam bastar para desacreditá-lo des-de o primeiro momento.

A montagem do “estratego” Huntington des-tinava-se a definir uma nova ameaça mundial, umnovo «império do mal» que pudesse ser visto comoo inimigo da civilização e que permitisse suscitarconsenso e superar as divisões internas da sociedade«ocidental». Para isso, idealizou uma fantasmagórica«aliança islâmico-confucionista», que o obrigava apôr todos os muçulmanos (xiitas, sunitas, etc.) nomesmo saco e a separar, por outro lado, os japonesesbons dos chineses confucionistas malvados, contratodas as evidências da história e da cultura.

Uma vez identificado o inimigo, o estrategopropunha um plano de luta que implicava, antes detudo, atrair os membros das outras civilizações para“ocidentalizá-los”. Um dos poucos fragmentos di-vertidos do artigo inicial é aquele em que relata comodescobriu, durante uma conversa com o ex-presidentemexicano Carlos Salinas de Gortari, que aquilo que

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este tratava de fazer era «transformar o México deum país latino-americano - isto é de uma civilizaçãoinferior - num país norte-americano» (que, digo eu,tendo em vista a herança política de Salinas, estedevia transformá-lo de acordo com a variantecivilizadora norte-americana Al Capone).

A análise de Huntington tem como fundamen-to uma interpretação histórica elementar. Durante umséculo e meio, nos diz, desde a paz de Westfalia até aRevolução francesa, os conflitos globais eram entrepríncipes soberanos; de 1789 à Primeira GuerraMundial passaram a se enfrentar os estados-nacio-nais; da Primeira Guerra Mundial até hoje foram osconflitos de ideologias (comunismo e fascismo con-tra “democracia liberal”), que Huntington qualificade “guerras civis ocidentais”, que deixaram o tercei-ro mundo à margem. Agora entramos numa nova faseem que os protagonistas são “ocidente e os demais”(isto é, as civilizações não-ocidentais) e as linhas deconflito são estabelecidas em termos religioso-cul-turais de confrontação de civilizações.

Talvez Huntington tenha tido menos recompen-sa imediata que Fukuyama. Seus comentaristas criti-caram seus erros e houve quem, como RobertL.Bartley, do “The Wall Street Journal”, dissesse queele tinha muito pouca preocupação com o que fize-ram os chineses e muçulmanos, já que estava conven-cido de que o curso da história era definido pelo “Oci-dente, sobretudo os Estados Unidos e sobretudo aselites que lêem este periódico”. No entando, estavaem sintonia com algumas tendências históricas a queme referirei em seguida, e oferecia aos setores conser-vadores da sociedade norte-americana o inimigo quelhes permitia legitimar sua política mundial como umanecessidade de sua defesa, e da defesa da “civiliza-

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ção”, como pôde se ver na “guerra do Golfo”. Em1995, por exemplo, Howard Bloom proclamou que osEstados Unidos estavam ameaçados no seu papel decampeão da civilização pelos novos bárbaros: africa-nos, latino-americanos e, sobretudo, muçulmanos (oque não deixa de ser paradoxal, se levarmos em contao apoio que os Estados Unidos dão aosfundamentalistas muçulmanos do Afeganistão)26.

Por mais assombroso que pareça, montagens tri-viais como essas, que não resistem à mais elementaranálise crítica27, podem ter uma influência intelectualperniciosa em tempos de desordem. As teses deHuntington foram discutidas seriamente e tiveram efei-tos insuspeitáveis: há pouco tempo uma amiga me di-zia que tinha falado com um antropólogo latino-ameri-cano de formação progressista, e que o encontraraprofundamente interessado nas teorias de Huntington.

No campo da história, contudo, Huntingtonnão representava nada de novo; apenas cerrava filei-ra com uma série de correntes que pretendiam criarnovos esquemas interpretativos globais, com preten-são de substituir os que apareciam com algumasmarcas de contágio do marxismo. Isto conduziu aoaparecimento de uma série de interpretaçõesglobalizadoras, que vão desde morfologias elemen-tares, pretendendo pouco mais que recuperarSpengler e Toynbee, até formulações que, sem rom-

26. Howard Bloom, The Lucifer principle: a scientificexpedition into the forces of history, New York, AtlanticMonthly Press, 1995; ver a crítica de Roy Porter emRethinking history, 2 (1998), nº 2, pp. 283-284.27. Fiz uma análise mais detalhada em “Samuel Huntington,el conflicte de civiliztacions i la fàbrica Olin de teoriaconservadora” em Marc Dueñas, ed., Xoc de civilitzacions.A l’entorn de S.P. Huntington i el debat sobre el nou escenariinternacional, Barcelona, Proa, 1997, pp. 163-171.

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per abertamente com o marxismo, atenuam seus ris-cos, passando por sociologias históricas que se es-forçam sobretudo para recuperar Max Weber.

No caso extremo das morfologias teríamos ogrupo de sociólogos e politólogos «civilizacionistas»,como eles mesmos se chamam, que invocam por seusnomes Spengler e Toynbee, e que não parecem ter outrapreocupação que a de construir grandes esquemas his-tóricos para interpretar o passado e fazer previsões parao futuro, sem se dedicar à investigação da realidade28.

Não muito distante dos “civilizacionistas” está ogrupo da world history, que nos oferece visões dos “pro-cessos históricos a longo termo” - e até “a muito longotermo” - dentro do qual dominam e teorizam alguns soci-ólogos que invocam Norbert Elias como mestre, e quetratam de estender o alcance da sua análise do processo decivilização para explicar toda a história mundial, fazendotambém referências explícitas a Spencer, a Tylor e, princi-palmente, a Max Weber. A proposta que apresentam de“conceber o passado humano não em termos de datas eindivíduos, mas em termos de estágios ou fases impesso-ais” - combinando a “cronologia” com uma “faseologia”de origem sociológica - parece, entretanto, levar apenas etão-somente a elucubrações de escassa utilidade29.

Mais sério é o projeto da global history, desen-

28. Stephen K.Sanderson, ed.: Civilizations and world systems,Walnut Creek, Altamira, 1995. O grupo está associado àInternational Society for the Comparative Study of Civiliza-tions, que publica a Comparative Civilizations Review comoseu órgão de expressão. No volume que utilizo não só sãoabundantes as citações de Spengler e Toynbee, como tambémDavid Wilkinson, professor de Ciência política na UCLA, quese dedica a refazer o esquema de Toynbee com a lista das catorzecivilizações da história que se encerra no nosso tempo com“uma única civilização global”(pp. 46-74).29. Johan Goudsblom, Eric Jones and Stephen Mennell,The course of human history. Economic growth, socialprocess and civilization, Armong, M.E. Sharpe, 1996.

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volvido por historiadores que partem da idéia de quevivemos hoje o ponto culminante de um tempo deunificação planetária. O que eles estudam não é, con-tudo, o processo de “modernização” que o ocidenteimpôs ao resto do mundo e que serviu de justificaçãopara o imperialismo, mas o de “globalização”, enten-dido como “o processo global pelo qual numerososparticipantes estão criando uma nova civilização”. Osglobalizadores recusam explicitamente interpretaçõescomo a de Huntington sobre o choque entre civiliza-ções, assim como qualquer outra que sustente a idéiade que há diferenças substanciais entre “nós e os ou-tros” e proclamam que “os ‘bárbaros”, isto é os povosinferiores, não mais figuram na história global; somen-te povos menos desenvolvidos no momento”30. Aindaque os trabalhos do grupo, que se referem na sua maiorparte à segunda metade do século XX, sejam em geralinteressantes, não está nem um pouco claro que estaótica, saída dos anos felizes do “desenvolvimentismo”- a visão dos povos que estão em pontos diversos daescala universal do “desenvolvimento” e queconvergem para um mesmo nível -, torne-se a adequadapara interpretar um tempo que nos mostra o contrário,uma discrepância crescente dos níveis de riqueza ebem-estar, diante da qual fenômenos como o da

30. Retirei os conceitos dos artigos programáticos de BruceMazlish e em especial do “Comparing global history toworld history” em Journal of interdisciplinary history,XXVIII (1998), nº 3, pp. 385-395. A série “Global history”publicou até agora estes três volumes: Bruce Mazlish andRalph Buultjens, ed., Conceptualizing global history,Boulder, Westview Press, 1993; Wang Gungwu, ed.,Global history and migrations e Robert P.Clark, The globalimperative. An interpretive history of the spread ofHumankind, ambos publicados en Boulder, WestviewPress, 1997.

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‘globalização da música’, para dar um dos exemplosque estudam, podem não ser demasiadamente signifi-cativos.

Nem todas as tentativas de construir visões glo-bais alternativas têm sido desta natureza, ou da ale-gre superficialidade das de um Jared Diamond (Guns,germs, and steel), mas há as mais sérias e conseqüen-tes. Desde as estimulantes, ainda que um tantosimplistas, de William McNeill (The rise of the West,Plagues and peoples, The pursuit of power.), ou dasmuitas que quiseram explicar o crescimento econô-mico a longo prazo e em escala universal (como asde Eric Jones, The European miracle, Growthrecurring, de John P. Powelson, Centuries ofeconomic endeavour, ou a recente obra de Landes,The wealth and poverty of nations), até as que sesituam nas fronteiras do marxismo, como deImmanuel Wallerstein e seu “sistema mundial” - Themodern world system, que poderíamos situar dentrodas visões “circulacionistas”, como a de Sweezy, quese opuseram no seu tempo àqueles que, como Dobb,interpretavam a evolução histórica em termos de lu-tas de classes - ou como a de Perry Anderson(Passages from antiquity to feudalism, Lineages ofthe absolutist state), que cai dentro do estruturalis-mo marxista.

Entretanto, a grande mudança que se pro-duziu na ciência histórica nestas últimas décadasnão responde a esta fabricação de visões globaisalternativas, mas, muito ao contrário, ao que sedenomina, em linhas gerias, a viragem da pós-modernidade, que implica a negação de todo tipode visões globais, com a renúncia daquilo queJean-François Lyotard denominou«metanarrativas»31, a recusa das periodizações e

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das interpretações globais, a substituição dogrand récit da História em maiúscula pelo petitrécit das histórias em minúscula e o das afirma-ções sobre a realidade por meio de metáforas.

Alguns acreditaram ter encontrado uma resposta fácile elementar para o problema com o abandono de toda preten-são analítica e a volta da narrativa, que viam como uma formaexpositiva neutra, sem cargas ideológicas - entendendo por“ideologia” o que pensam os “outros”, nunca as idéias implí-citas na sua própria obra -, ou como um modo de recuperar aunidade de uma história desconjuntada pela fragmentaçãodos especialistas32. Esta visão ‘inocente’ foi, contudo, desmon-tada por Hayden White, ao assinalar que a narração não é tão-somente uma forma, mas implica um conteúdo, já que esco-lhe deliberadamente o que considera que é significativo e valea pena recordar, isto freqüentemente implica uma identifica-ção da realidade com o sistema social vigente33.

À primeira vista, por exemplo, pode parecer ino-

31. Jean-François Lyotard, La condition postmoderne,París, Seuil, 1979.32. Para alguns historiadores tradicionais, como Elton, oproblema se reduzia ao fato de que «os historiadoresgostam que seus textos sejam lidos” e isso só pode serconseguido com uma narração interessante. (RobertW.Fogel and G.R.Elton, Which road to the past? Two viewsof history, New Haven, Yale University Press, 1983, p.107). Talvez isto explique um livro como Dead Certain-ties (Unwarranted speculations) (New York, A.Knopf,1991) de Simon Schama, que mescla gratuitamente arealidade com a ficção para contar-nos histórias anedóticase irrelevantes, que surpreendem por vir de quem haviacriticado alguns ‘microhistoriadores’ pela «pigmeização»dos seus trabalhos..33. Hayden White, Metahistory, Baltimore, Johns HopkinsUniversity Press, 1973 y The content of the form. Narrativediscourse and historical representation, Baltimore, JohnsHopkins University Press, 1990. De forma muito maisconfusa diz o mesmo um livro que White elogia, SandeCohen, Historical culture. On the recoding of an academicdiscipline, Berkeley, University of California Press, 1988.

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cente uma proposta como a de Gertrud Himmelfarb deescrever «uma história feita de grandeza e miséria, deheroísmo e maldade, de acontecimentos protagonizadospor homens e mulheres extraordinários mais que porforças sociais impessoais»34. Tão inocente como a quefigurava no início do manual oficial de história que ofranquismo impôs à Espanha em 1939, e que dizia: “Ahistória é como um conto maravilhoso, mas um contoem que tudo é verdade, em que são verdadeiros os fatosgrandiosos, heróicos e emocionantes que refere... Pelahistória se sabe o que ocorreu em cada país e comoforam seus reis, seus governantes e seus personagensmais ilustres... A História nos fala, enfim, de todos aque-les que fizeram na sua vida algo notável e importante”35.O mal é que sabemos que esse texto serviu para legiti-mar os fuzilamentos dos professores republicanos quese atreveram a sustentar que todos fazem a história, eem especial o povo, e o que deve ser ensinado às crian-ças não são as guerras mas as conquistas que os ho-mens alcançam por meio da solidariedade.

O “giro lingüístico” e a absorção pela históriade uma série de métodos de análise do discurso quetêm sua origem no campo dos estudos literários36 nãosão fenômenos que possamos considerar em separa-

34. Cito estas palavras através de James Bowman,«Cowboys and curators», Times Literary Supplement, 10/05/1991, p.12.35. Manual de Historia de España. Primer grado,Santander, Instituto de España, 1939, p.7.36. Um manual como o de Peter Barry, Beginning theory. Anintroduction to literary and cultural theory, Manchester,Manchester University Press, 1995, permite ver a enumeraçãodas diversa metodologias: pós-estruturalismo e deconstrução,pós-modernismo, crítica psicanalítica, crítica feminista, críticagay/lesbiana, crítica marxista (!), novo historicismo ematerialismo cultural, pós-colonialismo... O problema maisgrave é que a extensão da análise ao ‘texto histórico’ nemsempre é feita com a competência necessária.

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do, mas que devem ser intregrados no que significaglobalmente a viragem pós-moderna. A princípio, areação pós-modernista na história nasceu, como nou-tros terrenos da arte (a rejeição da vanguarda) e dopensamento, de uma série de negações, começando,no caso da história, pela dos métodos dominantes nosanos sessenta, sobretudo pelos da chamada históriasocial37 - “se antes todos nós éramos historiadores so-ciais, dirá Patrick Joyce, agora todos passamos a serhistoriadores culturais”38-, a tal ponto que, em algunscasos, há o risco de confundir o pós-modernismo como mercado persa da nouvelle histoire39. Mas, nas for-mulações mais coerentes e ambiciosas os pós-moder-nos se apresentam como os defensores de uma mu-dança muito mais radical, que enlaça a rejeição da tra-dição ilustrada por parte de Adorno e Horkheimer. ParaKeith Jenkins, “vivemos na condição geral da ‘pós-

37. Frank R.Ankersmit, “The origins of postmodernisthistoriography”, em Jerzy Topolski, ed., Historiographybetween modernism and postmodernism, Amsterdam,Rodopi, 1994, pp. 87-117 (partes deste mesmo texto figuramdentro do ”Historism and postmodernism. Aphenomenology of historic experience”, em F.R. AnkersmitHistory and topology.The rise and fall of metaphor,Berkeley, University of California Press, 1994, pp. 182-238).38. Patrick Joyce, “The return of history: postmodernismand the politics of academic history in Britain”, Past andPresent, 158 (02/1998), pp. 207-235 (citação da p.229). Joyce- que, neste mesmo artigo (p.231) duvida que a distinçãopolítica entre direita e esquerda conserve ainda algum sentido- havia contribuído para a destruição do velho paradigmacom “The end of social history” (Social history, XX -1995-com réplica de Eley e Nield na mesma revista e ano e umaresposta de Joyce, também em Social history, XXI-1996).39. Este é o caso de um dos representantes mais notável,F.R.Ankersmit, que na History and topology, reivindicacomo pós-modernas a microhistória e a história dasmentalidades, mandada para a lata de lixo, como vimos,pelos jovens da pós-nouvelle historie.

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modernidade’”, que “não é uma ‘ideologia’ ou umapostura que nos permita escolher aderir ou não”. Após-modernidade é “nosso destino”. Um destino quenasceu do grande fracasso da “modernidade”, do fra-casso da tentativa, que começou na Europa ilustradado século XVIII, de conseguir elevados níveis de bem-estar pessoal e social “por meio da aplicação da razão,da ciência e da tecnologia”40.

Definir a “história pós-moderna”, contudo, nãoé fácil. As influências teóricas que reconhece, que sãoessencialmente francesas, não procedem em nenhumcaso do campo da história: Lyotard, Baudrilalrd,Barthes, Foucault, Derrida, Deleuze, Ricoeur, deCerteau... E suas proposições costumam ser antes crí-ticas à prática “moderna” da história que normas comas quais se possa organizar o trabalho. Um dos seuscultivadores nos diz, por exemplo: “O empirismo debase documental com seu sentido implícito de objeti-vidade não é a única forma disponível para o estudohistórico”. Todos os historiadores constroem o passa-do como um objeto e sua construção é mediatizadapor demandas ideológicas e se oferece na forma deuma narração, marcada ela mesma por suas regras.Isto não significa negar realidade ao passado, mas re-conhecer “que há diversas realidades a imaginar ouque posso construir como existentes no passado. Ahistória não é nem ficcional nem factual, é imaginati-va e interpretativa”41.

Mas, a verdade é que as regras do pós-moder-

40. Keith Jenkins, On ‘What is history?’ From Carr andElton to Rorty and White, Londres, Routledge, 1995, p.6(retomado na introdução de Keith Jenkins, The postmodernhistory reader, Londres, Routledge, 1997, p. 3-4).41. Este texto foi extraido da resenha de Alun Muslow sobre umlivro de Iggers em Rethinking history, nº 2 (1997), pp. 199-200.

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nismo parecem mais úteis para incitar-nos a ler ostextos com mais precauções que estávamos habitua-dos a fazer, a fim de obter deles conhecimento váli-do. Ver os acontecimentos sempre através do prismadas suas possíveis leituras pode ter uma sã funçãocrítica, mas nos afasta excessivamente dos proble-mas dos homens e das mulheres, que deveriam ser oobjetivo próprio de qualquer investigação. Sustentarque a Revolução francesa se reduz ao choque entre«práticas discursivas que competem», não esclarecemuitas coisas, e dizer, como Patrick Joyce, que não éa classe que cria sua linguagem, mas a linguagemque produz a classe, e que esta nada mais é que um«produto discursivo», não parece ser a forma maisútil de abordarmos, não só a história, mas tambémos problemas atuais de alguns grupos sociais que,além de ser “construídos discursivamente”, apresen-tam características objetivamente verificáveis que osdiferenciam, como a de ter níveis de vida muito dis-tintos. Quando se lê o relato de como, em 1520, oshabitantes de uma cidade castelhana, descontentescom a conduta dos seus representantes nas cortes,assaltaram as casas deles e as incendiaram, e se vêque isto é interpretado por um historiador como um“ato simbólico”, é impossível evitar de sentir-sesubmerso na perplexidade42.

Os efeitos do pós-modernismo nos cultural studiesnorte-americanos têm alguns aspectos positivos. Anali-sar os textos como produtos das ideologias que os utili-

42. As referências a este parágrafo são de G.S.Jones,Languages of class, 1983, de Patrick Joyce, Visions of thepeople, e de Pablo Sánchez León, Absolutismo y comunidad,Madrid, Siglo XXI, 1998, p. 205. Sobre isto ver Miles Taylor,«The linguistic turn in British Social History», en Bolletinodel dicianovesimo secolo,(Napoles), 4 (1995), pp. 5-13

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zam para determinadas práticas contribuiu certamentepara a conservação de valores progressistas diante dasexigências do «politicamente correcto» e do«multiculturalismo»43. Também parece claro que a in-fluência do “pós-colonialismo”44, filho legítimo do pós-modernismo, ajudou na tomada de consciência de gru-pos como o dos historiadores índios dos subaltern studiesno sentido de que o mundo não-europeu pode necessitarde uma história escrita com pautas distintas das da tradi-ção acadêmica “ocidental”. Mas, quando há a adoção doprincípio pós-moderno de que toda generalização é sus-peita aparecem afirmações como a de que “o mito dauniversalidade é uma estratégia primária do poder colo-nial” - ao que Amartya Sen teve de replicar que há coisascomo as liberdades democráticas que são úteis em qual-quer parte do mundo, ou, dito de outro modo, que não éincorreto continuar pensando em termos de direitos ‘dohomem’ - ou quando um autor chega a dizer que as ma-temáticas ocidentais são “a arma secreta do imperialis-mo cultural”, e nos propõe a adoção dos sistemas de contardos primitivos, isto é, das etnomatemáticas, parece claroque é preciso abrir as janelas para que o vento da ruapossa arejar as idéias45.

Ao historiador, concretamente, não parece que

43. Isto permite entender irritações como a de John M.Ellisem Literature lost. Social agendas and the corruption ofthe humanities, New Haven, Yale University Press, 1997,que, após denunciar a exigência do “politicamente correto”ou o multiculturalismo como práticas aristocratizantes ede “torre de marfim”, acaba dizendo que ‘as universidadesnão podem servir a dois amos: o conhecimento e as causaspolíticas e sociais” (p.229), como se não fosseprecisamente o que sempre fizeram.44. Bill Ashcroft, Gareth Griffiths and Helen Tiffin, ed.,The post-colonial reader, Oxford, Blackwell, 1995.45. Russel Jacoby: «Marginal returns. The trouble withpost-colonial theory», em Linguafranca, 5 (nª 6), sept/oct.1995, pp. 30-37.

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os princípios do pós-modernismo sejam mais queferramentas críticas para corrigir erros de visão; poroutro lado, não há neles pautas para a investigaçãodo passado e a imensa maioria dos pós-modernistastem como ponto de partida a idéia de que não hánenhuma possibilidade de se chegar a conhecê-lo.Aqui nos encontramos diante do mesmo problemaque víamos na atual geração francesa da pós-nouvelle-histoire: muita teoria e pouca aplicação46.Resenhando The postmodern history reader, o útilvolume de textos compilado por Keith Jenkins, KevinPassmore reconhece que não está claro por que ospós-modernistas, “apesar da sua convicção de que éimpossível escrever histórias válidas, não vacilam emescrever sobre o passado e a interpretá-lo”. A soluçãomais coerente para eles deveria ser não a de escreversobre o que aconteceu no passado, mas sobre “comose construiu o passado”, à maneira de Patrick Joyce47.

Parece-me, no entanto, que existem formas delevar em conta boa parte dos problemas denuncia-

46. O autor de um manual, Mark Poster, Cultural historyand postmodernity. Disciplinary readings and challenges,New York, Columbia University Press, 1997, é professorde história na Universidade da California, Irvine, mas asseis obras citadas no breve curriculum do livro são todaselas de teoria. E sua explicação dos cursos deconscientização teórica que dá em Irvine têm um tremendoar livresco. Os problemas de sexualidade, nos diz, porexemplo, podem ser abordados “com uma perspectivafreudiana, foucaultiana ou feminista” - só?; e a perspectivado trabalhador das docas, do trabalhador braçal “chicano”,etc.? -, o que cria dificuldades para o uso de diversasterminologias “que não têm nada a ver com as questõesempíricas de quem disse ou quem fez, em que momentoou em que lugar, com a verificação dos documentos oucom o conflito entre os testemunhas” (p.158).47. Em Rethinking history, 2, nº 2 (summer - 1998), pp.279-283.

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dos pelo pós-modernismo sem cair num relativismoextremo nem nos condenarmos à elocubração livrescapraticada habitualmente pelos seus cultivadores e quetornaria inútil nosso trabalho para a sociedade quevive fora das classes universitárias, uma sociedadeque tem problemas reais - não só de construção dodiscurso - e que podemos ajudar ensinando-a a en-tender criticamente o marco das relações sociais emque vive e a livrar-se de tópicos e de preconceitos.

A tarefa que me propus realizar hoje é, sim-plesmente, a de fazer um mapa do estado atual dadisciplina nos últimos anos, que foi o que tentei fa-zer, de maneira muito esquemática, e não me pareceque este seja o lugar para apontar soluções, nem te-ria tempo para isto. Mas, não queria terminar semfazer uma só reflexão, ainda que elementar, sobre osentido e a utilidade do nosso trabalho.

Não tenho muito apreço pelo tipo de ciênciahistórica escrita na linguagem da tribo acadêmica epara seu exclusivo consumo. Interessa-me muito mais,por outro lado, trabalhar com professores do ensinode segundo grau, que têm a difícil e inestimável fun-ção de ajudar rapazes e moças de camadas sociaismédias e baixas - as que hoje recorrem ao ensino pú-blico - a tomar consciência das dimensões sociais domundo em que vivem, e pelo que me consta o que éfeito por estes é de um valor inestimável. Referi-meantes ao caso dos professores da Espanha dos anos daSegunda república, de 1931 a 1939, que foram fuzila-dos pelo franquismo. Foram assassinados por aquelesque haviam desencadeado uma guerra civil, com opleno apoio do fascismo internacional, e estavam cons-cientes da importância que sua ação educadora podiater para a transformação da sociedade. E os professo-res de história eram - são hoje também - aqueles quemais podem atuar neste terreno.

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Falei sobre uma crise, a de 1989, que se centrounuma análise crítica dos movimentos revolucionári-os, o de 1789 e o de 1917: uma análise que serviupara que sobre as conclusões negativas acerca dasrevoluções do passado se assentasse uma doutrinaque sustentava que toda tentativa de intervir na evo-lução social era vã, porque acabava conduzindo aodesastre; que vivíamos no melhor dos mundos pos-síveis e que não havia por que tentar transformá-lo:a história tinha chegado ao seu fim e era lógico queos historiadores tivessem deixado de ter alguma uti-lidade e que se dedicassem a contar contos ou a dis-cutir entre si sutilezas teóricas irrelevantes.

Mas, se em 1989 foi celebrado o segundo cen-tenário da Revolução francesa, me parece que emjaneiro do ano que vem, 1999, deveríamos comemo-rar o aniversário dos cinqüenta anos de um aconteci-mento crucial do nosso tempo: o discurso sobre oestado da união do presidente norte-americanoTruman em cujo quarto ponto se formulou a inter-pretação do mundo como um conjunto de países emgraus distintos de desenvolvimento cuja sorte podiair-se igualando com as políticas adequadas. Ao cabode cinqüenta anos está claro que o“desenvolvimentismo” foi um engano sangrento. Adesigualdade é maior agora do que em 1949 e se agra-vou ainda mais desde que, com o fim da guerra fria,chegamos ao tempo feliz do fim da história.

Estamos falando de mudança e evolução notranscurso de cinqüenta anos, estamos falando dehistória, e que ninguém me diga que tudo isto deveser analisado como discurso e que a realidade que hápor trás dela é inapreensível, porque aquilo de quese trata é que há, segundo as últimas cifras publicadaspelo Banco Mundial, que são as correspondentes a1995, países em que os homens e as mulheres têm

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uma esperança de vida de somente 38 anos, como naGuiné Bissau (enquanto em outros têm 80), que hápaíses com taxas de analfabetismo dos adultos de86%, como a Nigéria, e países, como Zâmbia, ondemais de 80% da população está abaixo do limite depobreza (o que quer dizer que ganha menos de umdólar por dia em termos de equivalência aquisitiva).

Mas, a questão que mais nos importa comohistoriadores, não é que ainda haja desigualdade, masque esta continue aumentando. E, o que é muito pior,o desenvolvimento se converteu em involução, emretrocesso: isto é, não só os ricos são cada dia maisricos, mas também os pobres são cada dia mais po-bres, inclusive em termos absolutos. Novamente deacordo com as últimas cifras publicadas pelo BancoMundial, em 47 dos 133 países que oferecem dadoso PNB per capita caiu entre 1985 e 1995. Entre elesfiguram em lugar de grande destaque, como era dese esperar, os da África subsaariana, como Ruanda,Angola ou Camarões, mas também Nicarágua, Perue Brasil. Não é que o Brasil tenha tido as espetacula-res taxas negativas de alguns países; a de vocês, paraa década de 1985-1995, foi modesta, -0,8%, ou seja,oito em mil. Comparativamente se nota mais: vocêstinham em 1987 um produto por habitante que, esti-mado em termos de paridade aquisitiva, era um pou-co mais de 24% da dos cidadãos dos Estados Uni-dos, enquanto em 1995 esta cifra foi reduzida a 20%;vocês passaram de 1/4 a 1/5 48.

Um dos grandes desafios que temos como his-toriadores é o de voltar a metermo-nos nos proble-

48. World Bank, World development report 1997: The statein a changing world, New York, Oxford University Press,1997, pp. 214-215.

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mas do nosso tempo, como fizeram no passado aque-les nossos antecessores que ajudaram melhorar ascoisas com seu trabalho. Se os historiadores france-ses do primeiro terço do século XX estudavam aRevolução de 1789 era porque queriam contribuirpara fixar os fundamentos das liberdades democráti-cas contra as forças que as ameaçavam - e não foipor acaso que, em 1940, os que defendiam uma in-terpretação progressista da revolução aderiram à Re-sistência, e os que a combatiam no terreno da histó-ria colaboraram com os alemães. Se os historiadoresmarxistas britânicos do pós-guerra se dedicaram aanalisar em profundidade a Revolução industrial foiporque queriam entender os fundamentos do capita-lismo para atenuar seus males. A nós, me parece,cumpre enfrentar o grande desafio de estudar osmecanismos que produzem a pobreza e a fome, me-canismos estes que não apareceram ontem, nem em1949, mas que vêm de muito mais longe. São meca-nismos que atuam no mundo - que servem para en-tender o que aconteceu na Somália ou no Paraguai -mas que, por isso mesmo, servem também para ex-plicar o que está acontecendo ao nosso lado (paramim, em Barcelona; para vocês, em São Paulo).

Não estou dizendo que devemos voltar a tra-balhar como os nossos predecessores: que devemosvoltar à história econômica e social de Labrousse ouà história social e cultural de Thompson, emboranuma e noutra continua havendo muita coisa que templena validade. Se os teóricos do pós-modernismonos ensinaram que nosso instrumental tem falhas, serábom que o revisemos antes de dar continuidade àtarefa. Mas nem os métodos nem a teoria são o obje-tivo final do nosso trabalho, são apenas ferramentaspara tratar de entender melhor o mundo em que vi-

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vemos e ajudar os outros a entendê-lo, a fim de con-tribuir para melhorá-lo, o que faz falta. Porque, comodisse Tom Payne há mais de duzentos anos, e essassão palavras que cada um de nós deveria gravar nasua consciência: ‘Está em nossas mãos recomeçar omundo outra vez’.

Agosto de 1998.

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SOBRE O LIVRO

Formato: 11 x 21,6 cm

Mancha: 19 x 42,5 paicas

Tipologia: Times 11 / AvanGarde 16

EQUIPE DE REALIZAÇÃO

Assistente de Produção GráficaLuzia Bianchi

RevisãoJosé Romão

Criação da capa:Renato Valderramas

Projeto GráficoCássia Leticia Carrara Domiciano

DiagramaçãoCarlos Fendel