história da companhia de jesus no brasil_volume ii

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  • S E R A F I M L E I T E , S . I .

    HISTORIA DA

    COMPANHIA DE JESUS NO

    BRASIL

    ii

    L I S B O A

    1 9 3 8

  • H I S T R I A D A

    C O M P A N H I A D E J E S U S

    NO

    B R A S I L

  • Tela antiga, no Gestt, Roma.

    VEN. P. J O S DE ANCHIETA

    A p s t o l o d o Bras i l T a u m a t u r g o d o N o v o M u n d o

  • S E R A F I M L E I T E , S . I .

    HISTORIA D A

    COMPANHIA DE JESUS N O

    BRASIL

    T M O II

    ( S c u l o XVI A O B R A )

    1 9 3 8

    L I V R A R I A P O R T U G L I A C I V I L I Z A O B R A S I L E I R A

    R U A D O ' 1 R M O ' 7 3 R U A 7 DE S E T E M B R O , 162 L I S B 0 A RIO DE JANEIRO

    1001059439

  • NOTA LIMINAR

    P r i m a m e s s e h i s t o r i a e l e g e m , ne q u i d f a l s i d i c e r e a u d e a t ; d c i n d e ne qu id ver i n o n a u d e a t . L E X O XIII, Breve D e s t u d i i s h i s -t o r i e i s , de 18 de Agosto de 1883. Cf. ActeS d e L e o n XIII (Paris 1925) 207.

    ste II Tomo da HISTRIA DA COMPANHIA DE J E S U S NO BRASIL conclue a matria do sculo XVI. No retomaremos o Pre-fcio que, no anterior, d o sentido geral de ambos. No entanto, im-porta recordar que o Primeiro, ocupando-se do Estabelecimento da Companhia no Brasil, alm de outros aspectos, tem um particular de expanso e unidade, ao passo que ste Segundo, tratando da Obra, envolve sobretudo um pensamento de formao.

    Completam-se mutuamente. E, de um e de outro, surge a fisionomia do Brasil, sobretudo a

    fisionomia espiritual, nos seus tempos hericos. Confeioam-na muitos factores. Plano colonizador de Nbrega,

    trabalho e liberdade dos ndios, conquista das almas pela catequese, vida sacramental, vida da Companhia na sua actividade orgnica e nas suas relaes externas, influxo directo na vida social da Colnia. Portanto, as grandes figuras do sculo XVI no seu ambiente civil, poltico e religioso. E tambm as primeiras manifestaes artsticas, literrias e cientficas, as primeiras entradas ao serto, os primeiros choques de raas, as primeiras batalhas para moldar, em formas ele-vadas, a moralidade individual e pblica do Brasil. Pontos essenciais, todos, da sua formao, cujo estudo requere simultaneamente circuns-peco e amplo critrio.

    I T-lo-emos conseguido ? Pelo menos, procurmo-lo com serenidade e lisura. Cremos que

    estas pginas concorrero no s para uma compreenso mais rea-lista da Companhia de Jesus, como instrumento eficaz de civilizao

  • VIII HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    crist, mas tambm para o conhecimento mais perfeito de Portugal, como nao colonizadora; e, ao mesmo tempo, para uma viso mais funda das origens do Brasil, distinguindo, nos seus alicerces histri-cos, os elementos vitais com que a maior nao latina se foi organi-zando, engrandecendo e formando.

    No ignoramos o melindre de certas pginas. Para possveis estranhezas, invocamos a liberdade que, recordando Ccero, nos con-cede e impe Leo XIII:

    O que falso, ningum ouse diz-lo; o que verdade, nin-gum se atreva a omiti-lo . . .

    Alis, em histria, como nos quadros, as sombras teem a sua funo prpria, Teem sobretudo uma vantagem: a de pr em relevo a luz que irradia de uma obra grande e vasta.

    E tal , a consenso de todos, a obra da Companhia de Jesus no Brasil. (Cf., no fim, o ltimo Apndice).

  • Introduo bibliogrfica

    A Introduo Bibliogrfica do Tmo i abrange todo o s-culo XVI e, portanto, tambm este Tmo II. Para le remetemos o Leitor. Convm, contudo, ter mo, no mesmo volume, as siglas dos Arquivos e os nomes, por extenso, dos manuscritos e impres-sos, que, pela sua frequente utilizao, citamos abreviadamente. Mas, para no alongar, omitimos, na enunciao das espcies manuscritas, as elucidaes j insertas no i Tmo ; e na biblio-grafia impressa suprimimos alguns nomes, no utilizados agora, acrescentando outros. Entre cancelos, o modo de citao.

    A) FONTES MANUSCRITAS

    I Arquivos

    Archivum Societatis Iesu Romanum : Braslia Lusitania Congregationes' Historia Societatis Iesu Epistolae Nostrorum Epistolae Externo rum Opera Nostrorum Vitae

    [Brs.] [Ias.] [Congr.] \Hist. Soe.] [Epp. NN.\ [Epp. Ext.] [Opp. NN.) [Vitae]

    Fondo Gesuitico, Roma, Piazza dei Ges, 45 Biblioteca Nazionale Vittorio Emanuele Archivio Segreto Vaticano Biblioteca Nacional de Lisboa, fundo geral Arquivo Nacional da Torre do Tombo Arquivo Histrico Colonial

    [Ges] [Bibi. Vitt. Em.] [Vaticano] [BNL, fg,] [Torre do Tombo] [Arq. Hist. Col.]

  • X HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    II Algumas espcies

    a) Annual do Collegio da Cidade de S. Sebastio do Rio de Jan.r e das resi-dncias a elle suietas do armo de 1573 do p.> Oliveira [Gonalo]. Deste Collegio de S. Sebastio cidade do Rio De Janeiro, de Noubro de 1573 Na BNL, fg, 4532, f. 36v-39 em Bras. 15, 233-238. Citamos o exemplar da Bibi. Nac. de Lisboa. [Oliveira, Anual do Rio de Janeiro, f . . . ].

    b) Capitolos que Gabriel Soares de Sousa deu em Madrid ao Senhor Dom Christouo de Moura contra os Padres da Companhia de Jesu que residem no Brasil com huas breves respostas dos mesmos padres que delles foro auisados por hum seu parente a quem elle os mostrou. Bras. 15, f. 383-389. [Captulos ...].

    c) Enformao e copia de certides sobre o Governo das Aldeias, Trre do Tombo, Jesutas, mao 88, ainda no ordenado; o seu ttulo primitivo, dentro, : De quam importante seia a continuao da residencia dos Padres da Companhia de Jesu da Prouincia do Brasil das Aldeias dos ndios naturaes da terra, assi pera o bem de suas almas e servio de Deus e de Sua Magestade como o bem temporal de o Estado e moradores delle . [Trre do Tombo, Enformao e Certides .. . ].

    d) Discurso das Aldeias. Encontra-se em Bras. 15, l-10v, com o ttulo de Informao do Brasil e do descurso das Aldes e mao tratamento que os ndios recebe-ro sempre dos Portugueses e ordens dei Rei sobre isso. Existe outra cpia no mesmo cdice, f. 340-350. ste manuscrito foi publicado com o rtulo de Trabalhos dos Primeiros Jesutas, segundo o exemplar da Biblioteca de vora, cod. CXVI, 1-33, f. 56 e seguintes, e com o ttulo de Informao dos primeiros aldeamentos, nas Cartas de Anchieta (pp. 212-247). Para efeitos de citao, por ser mais acessvel, utilizamos a publicao feita nas Cartas de Anchieta, indicando a respectiva paginao. [Discurso das Aldeias, p . . . ].

    e) Historia de la fundacion dei Collegio de la Baya de todolos Sanctos, y de sus residentias. Bras. 12, l-46v. Publicada nos Annaes da Bibliothcca Nacional, XIX (Rio 1897) 75-121, segundo o cdice da Bibi. Vit. Em de Roma. [Fund. de la Baya .. . paginao do ms.; entre parnteses a dos Annaes],

    f) Historia de la fundacion dei Collegio dei Rio de Henero y sus residencias, em Bras. 12, 47-59v. Publicada, como a anterior, nos Annaes, XIX, 47-138 [Fund. dei Rio de Henero ... paginao do ms.; a dos Annaes, entre parnteses].

    g) Historia de Ia fundacion dei Collegio de la Capitania de Pernambuco. Bras. 12, 60-76v. Publicada pela Bibi. Pblica do Prto, 1923, conforme o manuscrito existente na mesma Biblioteca; e pela Bibi. Nacional do Rio, Annaes, XLIX, mediante confrontao nossa com o exemplar do Arquivo da Companhia, e com notas eruditas de Rodolfo Garcia. [Fund. de Pernambuco... paginao do ms.; entre parnteses, a da Separata dos Annaes[.

    h) Antnio de Matos, De Prima col/ ij Flumi/nis januarij Institutionejet quib'/deinlceps addita/mentis excreueritj Reuerendo admod Patri nostro Mutio Vi/telleschio Praeposi/to Generali Soc/ietatis IESU. Em Roma, Fondo Gesuitico dei Gesu, Collegia, n. 201 (Rio de Janeiro). [Matos. Prima Inst.]

  • TMO II INTRODUO BIBLIOGRFICA XI

    B) BIBLIOGRAFIA IMPRESSA

    Indicamos aqui unicamente as obras, cuja citao mais fre-quente nos levou a abrevi-la. No ndice de nomes, no fim, cons-taro tambm os demais autores.

    AciOLI, Incio Braz do AMARAL. Memorias histricas e politicas da Bahia. vol. I, Baa, 1919. [Acioli Amaral, Memrias . , .].

    AFRNIO PEIXOTO, J. Primeiras Letras, Rio, 1923. [Afrnio, Primeiras letras...] AMARAL. Jos Alvares do. Resumo Chronologico e Noticioso da Bahia, desde o

    seu descobrimento em 1500. Revisto e consideravelmente annotado por J . Teixeira Barros. Na Revista do Instituto Histrico e Geogrfico da Baa. 47 (1922) 71-559. [ Amaral. Resumo Chronoloico . ..}

    ANCHIETA, Jos de. Vd. Cartas Jesuticas. ANDRADE E SILVA, J . J . de. Colleco Chronologica da legislao portuguesa.

    10 vol., Lisboa 1854-1859. [Andrade e Silva, Colleco Chronologica, I, . . . J Annaes do Archivo Publico e Museu do Estado da Bahia. Em curso de publica- /

    o. [Annaes da Baa .. . ] Annaes da Bibliotheca Nacional do Rio de Janeiro, 49 volumes, 1876-1927. [/In/iaes...[ Annuae Litterae Societatis Iesu anni 1581 ad Patres et Fratres eiusdem Societatis.

    Romae, in Collegio eiusdem Societatis, 1583, cum facultate Superiorum. As Cartas Anuas seguintes durante algum tempo mantiveram o mesmo ttulo, mudadas s as datas do ano, a que correspondem, e da impresso. Ei-las, para o sculo XVI: 1583, Romae, 1585; 1584, Romae, 1586; 1585, Romae, 1588; 1586-1587, Romae, 1589; 1588, Romae, 1590; 1589, Romae, 1591; 1590-1591. Romae,. 1594; 1594-1595, Neapoli, 1604; 1591, Neapoli, 1607. [Ann. Litt. 1581, p . . . ]

    AZEVEDO MARQUES, Manuel Eufrsio de. Apontamentos Histricas, Geographicos, Biographicos, Estatsticos e Noticiosos da Provinda de S. Paulo, 2 vol., Rio de Janeiro, 1879. [Azevedo Marques, Apontamentos .. . ]

    CA. Vd. Cartas Jesuticas. CAP1STRAN0 DE ABREU, J. Vd. Prto Seguro.

    CARDIM, Ferno. Tratados da Terra e Gente do Brasil, Introduo e Notas de Baptista Caetano, Capistrano de Abreu e Rodolpho Garcia, Rio, 1925. [Car-dim, Tratados... ]

    CARDOSO, Jorge. Agiologio Lusitano dos Sanctos e jVaroens illustres em virtude do Reino de Portugal e suas conquistas, 3 vol., LisbJa, 1652-1666. [Cardoso, Agio-logio Lusitano ... ] !

    Cartas Jesuticas. Publicao da Academia Brasileira, Coleco Afrnio Pei-xoto : I. Manuel da Nbrega, Cartas do Brasil (1549-1560). Notas de Vale Cabral e Rodolfo Garcia, Rio, 1931. [Nbr., CB...[; II. Cartas Avul-sas (1550-1568). Notas de Afrnio Peixoto, Rio, 1931, [CA . . . ] ; III. Car-tas, Informaes, Fragmentos Historicos e Sermes do Padre Joseph de An-chieta. S. I. (1554-1549). Notas de A. de Alcntara Machado, Rio. [Anch., Cartas .. . ]

  • XII HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    CAXA, Quircio. Breve Relao da Vida e Morte do P. Jos de Anchieta, 5." Pro-vincial que foi do Brasil, Lisboa 1934. [Caxa, Breve Relao; cf. Serafim Leite, Pginas ... ]

    Corpo Diplomtico Portugus Relaes com a Cria Romana, etc. 14 vols., Lisboa, 1862-1910. [Corpo Diplomtico ...]

    Documentos Histricos. Coleco do Arquivo Nacional, Rio, 1928 e seguintes. [Doe. Hist... ]

    Documentos Interessantes para a Histria e Costumes d&-S. Paulo. Em curso de pu-blicao. [Doe. interessantes ... ]

    FIGUEIREDO RIBEIRO, Jos Anastasio de Synopsis chronologica de subsdios, ainda os mais raros para a historia e estudo critico da Legislao Portuguesa mandada publicar pela Academia R. das Sciencias, 2 vol., Lisboa, 1790. [Figueiredo, Synopsis chronologica, I,...]

    FRANCO, Antnio. Imagem da Virtude em o noviciado da Companhia de Jesus do Real Collegio do Espirito Santo de vora do Reyno de Portugal, Lisboa, 1714. [Franco, Imagem de vora .. . ]

    Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus na Cwle de Lisboa. Coimbra, 1717. [Franco, Imagem de Lisboa . .. [

    Imagem da Virtude em o Noviciado da Companhia de Jesus no Real Collegio de Jesus de Coimbra, I, vora, 1719; II, Coimbra, 1719. [Franco, Imagem de Coimbra, I. I I . . . ]

    Synopsis Annalium Societatis Iesu in Lusitania, Augsburgo, 1726. [Franco, Syno-psis an.... ]

    Ano Santo da Companhia de Jesus em Portugal, Prto, 1931. [Franco, Ano Santo ... ]

    GALANTI Rafael M.Historia do Brasil, 2. ed., S. Paulo, 1911. [Galanti, H. do B...\ GANDAVO, Pero de Magalhis. I Tratado da Terra do Brasil; II Histria da

    Provncia Santa Cruz. Publicao da Academia Brasileira, Rio de Janeiro, 1924. [Gandavo, Tratado . . ., Histria .. . [

    GASPAR DA MADRE DE DEUS, Fr. Memorias para a historia da Capitania de S. Vi-cente, 3.a ed. (Taunay), S. Paulo, 1920. [Fr. Gaspar, Memrias...[

    GUERREIRO, Bartolomeu. Gloriosa coroa d'esforados religiosos da Companhia de Iesu mortos polia fe catholica nas conquistas dos Reynos da Coroa de Portugal, Lisboa, 1642. [Bartolomeu Guerreiro, Gloriosa Coroa. . .]

    GUERREIRO, Ferno. Relao Anual das coisas que fizeram os Padres da Compa-nhia de Jesus nas suas Misses.. . nos anos de 1600 a 1609. Nova edio, dirigida e prefaciada por Artur Viegas, i, II, Coimbra, 1930-1933. [Ferno Guerreiro, Relao Anual...)

    HERRERA, Antnio de. Historia General de las Indi ccidentales o de los hechos de los Castellanos en las ndias y Tierra firme dei mar Oceano, 4 vol., Ambe-res, 1728. [Herrera, Historia General. . . j

    Histria da Colonizao Portuguesa do Brasil, Edio monumental comemorativa do primeiro centenrio da Independncia do Brasil, dirigida por Malheiro Dias. 3 vol., Rio de Janeiro, 1921-1924. [Hist. da Col. Port. do B]

    INOCNCIO Francisco da Silva. Diccionario Bibliographico Portuguez. E continua-o de Brito Aranha e Gomes de Brito, 22 vol., Lisboa, 1858 e seg. [Ino-cncio, Dicionrio bibliogrfico, I, .. . ]

  • TMO II INTRODUO BIBLIOGRFICA XIII

    Inslilulum Societalis Iesu, 3 vol., Florena, 1892-1893. [Institulum S. I...] Instrumento dos servios de Mem de S nos Annaes, XXVII, 129 ss. [Instrumento,

    Annaes .,. ] JABOATO, Fr. Antnio de Santa Maria. N o v o Orbe serfico braslico ou Chro-

    nica dos frades menores da Provinda do Brasil, 3 tomos, Rio de Janeiro, 1848-1852. [Jaboato, Orbe Serfifo ...]

    JARRIC, Pierre du. Histoire des choses plvs memorables advenves tant ez Indes Orientales que autres pais de la descouverte des Portugais, 3 vol., Bordus, 1608-1613. [Jarric, Histoire des choses .. . ]

    KNIVET, Antnio. Relao da Viagem que nos anos de 1591 e seguintes fez Antonio Knivet da Inglaterra ao mar do sul em companhia de Thomas Candish, na Rev. do Inst. Bras., 41 (1878). [Knivet, Relao da Viagem... com a pg. desta Revista]

    LEITE, Serafim. Pginas de Histria do Brasil, S. Paulo, 1937. [Leite, Pginas...] LOZANO, Pedro. Historia de la Compartia de Jess de la Provinda dei Paraguay,

    2 tomos, Madrid, 1755. [Lozano, Historia de la Compartia .. . ] MAFFEI, Joo Pedro. Historiar um Indicarum Libri XVI, Colnia, 1593. [Maffei,

    Hist. Indic...} MARQUES, Csar. Diccionario Historico, Geographico e Estatstico da Provncia do

    Espirito Santo, Rio, 1879. [Marques, Diccionario do Espirito Santo ...] MTRAUX, A. La civilisation matrielle des tribus Tupi-Guarani, Paris, 1928. [M-

    traux, La civilisation matrielle ... ] Monumento Histrica Societati: Iesu a Patribus eiusdem Societatis edita: 1. Epistolac Mixtae ex variis Europae locis ab armo 1537 ad 1556 scriptae. 5 vol.

    Madrid, 1898-1901, [Mon. Mixtae, I, I I . . . J 2. Sanctus Franciscus Borgia quartus Gandiae Dux et Societatis Iesu Praepositus

    Generalis tertius. 5 vol., Madrid, 1894-1911, [Mon. Borgia, I, I I . . . ] 3. Epistolae P. Hieronimi Nadal Socieiatis Iesu ab anno 1546 ad 1577. 4 vol.,

    Madrid, 1898-1905, [Mon. Nadal, , I I . . . ] 4. Epistolae Paschasii Broeti, Cluudii Iaii, Ioannis Coduri et Simonis Roderici. Madrid,

    1903. [Mon. Rodrigues . ..] 5. Mo tographis vel ex antiquioribus cxemplis collecta:

    a] ae et Instructiones, 12 vol., Madrid, 1903-1911, [Mon.

    b) Series Secunda, Exercitia Spiritualia et eorum Directoria. Madrid, 1919. [Mon. Ignat., Exercitia . ..]

    c) Series Tertia, Constitutiones Societatis Iesu, Roma, 1938. [Mon. Ignat., Cons-titutiones. . .]

    d) Series Quarta, Scripta de Sancto Ignatio de Loyola, 2 vol., Madrid, 1904--1918. [Mon. Ignat., ser. 4.=, I, I I . . . ]

    6. Lainii Monumento. Epistolae et Acta Patris Iacobi Lainii, secundi Praepositi Generalis Societatis Iesu. 8 vol., Madrid, 1912-1917. [Mon. Laines, I, II . . . ]

    7. Monumento Paedagogica Societatis Iesu, quae primam Rationem Studiorum anno 1586 editam praecessere. Madrid, 1901. [Mon. Paedagogica . . . ]

    8. Litterae Quadrimestres ex universis praeter Indiam et Brasiliam locis, in quibus aliqui de Societate Iesu versabantur, Remam missae. 7 vol., Madrid-Roma, 1898-1932, [Mon. Litterae Quadrimestres .'..]

  • C A P i U L O I

    r A Catequese dos ndios

    1 Obra da converso; 2 Disposio do gentio: 3 Religio primitiva dos ndios do Brasil; 4 A superstio da Santidade; 5 Catequese dos meninos; 6 Catequese dos adultos; 7 Catequistas ndios.

    1. Narrando Pedro Vaz de Caminha o descobrimento da Terra de Vera Cruz, as suas maravilhas, recursos e frutos pos-sveis, sugere, como homem representativo do nosso sculo de oiro: contudo, o melhor que dela se pode tirar parece-me que ser salvar essa gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lanar 1.

    Quando as circunstncias e o conhecimento progressivo da terra permitiram ou aconselharam a Portugal o tratar de-prop-sito da colonizao do Brasil, erigindo-o em Governo Geral, El-rei chamou os Jesutas e confiou-lhes a misso da conquista espiritual dsse npvo Estado. No Regimento de Tom de Sousa, falando dos ab

  • 4 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    sbre a converso esto fundadas as rendas dos Colgios e no sbre estudos, esclarece o Provincial Pero Rodrigues1 .

    Por seu lado, ordenaram sempre os Padres a sua activi-dade roda desta principal obrigao; e sabiam-na invocar, quando os queriam arrastar para o campo das conivncias fceis: Mui mal olham [os colonos] que a inteno do nosso Rei santo [D. Joo III], que est em glria, no foi povoar, tanto por espe-rar da terra oiro nem prata que no a tem [ Nbrega quem escreve a Tom de Sousa, em 1559], nem tantc pelo intersse de povoar e fazer engenhos, nem por ter onde agasalhar os Por-tugueses que l em Portugal sobejam e no cabem, quanto por exaltao da F Catlica e salvao das almas 2.

    O mesmo Nbrega, para prestigiar a doutrinao do gentio, mostra a convenincia de El-re escrever Cmara e a Mem de S, recomendando-a. As cartas da Rainha dona Catarina, ento regente, no se fizeram esperar quelas entidades3.

    D. Sebastio invoca o mesmo ttulo nos padres dos Col-gios, E escrevendo para Roma, recomenda ao seu embaixador que diga, de viva voz, a um cardial da cria romana a grande devoo que tem aos Jesutas; e a principal razo, para isso, o muito que por meio dles, louvado Nosso Senhor, a Cristandade se dilata em diversas provncias da conquista dstes Reinos 4.

    Esta a grande honra de Portugal. Nenhum outro pas colo-nizador (excepto a Espanha) fz da catequese a base da coloniza-o. Quando muito, cooperadora, que o caso da Blgica a-res-peito do Congo 5.

    Dste facto, e de ser entregue Companhia de Jesus sse encargo, se explica por que os Padres se ocupavam preferente-mente^leS ndios. Para os brancos havia o regmen metropoli-' tano: procos. Cultivo de vinha, transplantada, para que desse frutos e no estiolasse. Mas os ndios eram pagos. Para se transformarem em vinha do Senhor, era preciso comear de raiz. Regmen, portanto, de proteco e defesa; defesa para lhe

    1. Bras. 3 (1), 194. 2. Nbr., CB, 198-199; Bras. 15, 386v. 3. Prto Seguro, HG, I, 381-383. 4. Carta de D. Sebastio, de Lisboa, 17 de Fevereiro de^l560, Lus. 60, 183. 5. Vermeersch, La Question Congolaise, I, cap. 9 (Bruxelas 1906), cit. por

    Constantino~Bayle, Espana en ndias (Vitoria 1934) 379.

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 5

    assegurar os frutos; proteco, porque sempre se ajudam mais aqueles com quem se trata directa ou expressamente e se acham precisados. Deste empenho provieram os aldeamentos e a luta pela sua liberdade. Note-se: o primeiro acto dos Jesutas para libertar os Carijs cativos, logo sua chegada, envolve j um pensamento superior de catequese: alguns destes escravos me parece que seria bom junt-los e torn-los sua terra e ficar l um dos Nossos para os ensinar, porque por aqui se ordenaria grande entrada em todo ste gentio

    E a entrada da catequese. Nbrega deixa-nos uma observa-o que ilumina, com um simples trao, todo o sentido dela. Logo no comeo, antes de Agosto de 1549, foi le visitar as Aldeias dos gentios ao redor da Baa. Servia-lhe de intrprete um menino. Fazia luar. Nbrega falou-lhes da Boa Nova, da f em Jesus Cristo, E volta, le ouvia, com prazer de apstolo, que na beira dos caminhos se repetia, quando passava, o nome suavssimo de Jesus : Louvado seja Jesus Cristo!

    Ou simplesmente : Jesus, Irmo! 2. Jesus a conquistar as selvas e o corao do Brasil, escopo

    e compndio da grande emprsa!

    2. Ora esta emprsa do Brasil era dum carcter especial. Prs e contras. Por um lado, os ndios estavam tamquam tabula rasa para aprender a doutrina e tudo o que se lhes ensinasse. Escreve Magalhis Gandavo que a lngua deles carece de trs letras, convm a saber, no se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque assim no teem f, nem lei, nem rei, e desta maneira vivem, desordenadamente, sem terem, alm disto, conta, nem pso nem medida 3.

    ste conceito fz fortuna e exacto para o F, o L, e o R forte ou dobrado, no para o R simples 4. Basta recordar as pa-

    1. Nbr., CB, 81. 2. Nbr., CB, 94; CA, 160, 318; Fund. de la Baya, 21(95); Cardim, Tratados, 292. 3. Gandavo, Histria, 125 : cf. Summario das Armadas, n Rev. do Inst. Bras.,

    36, I P. (1873) 10 ; Mon. Borgia, IV, 412-413 ; Robert Ricard, tudes et documents pour 1'histoire missiontiaire de l'Espagne et du Portugal (Louvain 1931) 204.

    4. Anchieta, Arte de Grammatico (Rio 1933) 1 ; cf. Informao do Brasil para N. Padre, em Anch., Cartas, 433 e nota 636 de A. de A. Machado ; CA, 94-95, 149-150.

  • 6 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    lavras de tanto relevo histrico, Piratininga, Tibiri, Arari-bia . . .

    Mas se deficiente biologicamente, expressivo para cara-cterizar a situao dos ndios, chegada dos Jesutas. Nem tinham culto externo, nem lei positiva escrita, nem autoridade hereditria. Apenas rudimentos de religio, de direito consuetu-dinrio, e no tinham verdadeiramente chefe, tirante as ocasies de guerra J. Tais circunstncias favorveis, na aparncia, prga-o do Evangelho, eram puramente negativas, e a falta de autori-dade vinha a ser praticamente um obstculo. Se existisse rei, poderia ter trazido maior resistncia colonizao, mas, conver-tido le, pela fra do exemplo, conver*er-se-ia o povo 2.

    O apostolado dos Jesutas tinha de ser qusi individual: de ndio para ndio. Era preciso destruir em cada um o pendor mul-ti-secular da sua prpria psicologia, afeita a antropofagias, poli-gamias e outros vcios carnais, e gula, em particular bebedei-ras, ajuntando-se a isto o seu nomadismo intermitente.

    Verificaram os Padres que a converso dstes ndios nada tinha que ver com as disputas doutrinais, que se feriam nesse tempo, na ndia ou no Japo. Com os aborgenes do Brasil, tudo estava em ensinar-lhes a lei moral e proteger convenientemente ste ensino. A doutrina, por si mesma, se imporia com o tempo3.

    So contestes os documentos em afirmar que, tirando a difi-culdade dos costumes, no tinham os ndios repugnncia em aceitar a religio e at pediam para ser doutrinados4. Mas nesta mesma facilidade em a aceitarem estava tambm o perigo, por-

    1. CA, 55; Hans Staden, Viagem ao Brasil (Rio 1930) 144; Gabriel Soares, Tratado, 281-282.

    2. Referindo-se o P. Joseph de Acosta facilidade com que se converteram o Mxico e o Peru, escreve : De quanta ayuda haya sido para la predicacin y conversin de las gentes la grandeza de estes dos Imprios, que he dcho, mirele quien quisiere en la suma dificultad que se ha experimentado en reducir Christo los ndios que no reconocen un senor. Veanlo en la Florida, en el Brasil, en los Andes y en otras cien partes donde no se ha hecho tanto efecto, en cincuenta * anos como en el Peru y Nueva Espana en menos de cinco se hizo. Si dicen que el ser rica esa tierra fue la causa, yo no lo niego ; pero esa r i q u ^ a era imposible hallarla ni conservaria si no hubiera Monarquia. Joseph de Acosta, Historia Natural y Moral de las ndias, 6." ed., II (Madrid 1792) 222. ,

    3. Bras. 3 (1), 104v ; Vasc., Crn., II, 9 ; Anch., Cartas, 434. 4. CA, 66, ' l35 ; Nbr., CB, 72, 81, 91, 94, 114; Anch., Cartas, 419, 435.

    X

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 7

    que com a mesma facilidade a esqueciam. Era preciso despertar neles o sentimento da responsabilidade. Os Jesutas estudaram a fundo o carcter dos ndios. E deixaram-nos indicaes preciosas, ainda que de modo disperso e uma e outra vez com frases opos-tas, por serem casos particulares. No que admite generalizao, h dois pontos concordes. Um o interesse que movia geral-mente o ndio: o seu intento era que lhes dssemos sade, vida e mantimentos, sem trabalho, como os seus feiticeiros lhes prometem Outro ponto incontestvel era a inconstncia e o seu carcter remisso. Os homens e, sobretudo, as mulheres de idade eram difceis de mover; as novas, pelo contrrio; e, depois de crists, davam, em geral, provas de piedade, em particular quando se uniam a algum homem branco. As velhas, chamadas para a catequese, diziam: vou j, mas no acabavam de vir. Os ndios, por preguia, deixavam de buscar o mantimento, passando mal 2. E se algum tempo mostravam boa vontade, entregues a si prprios, voltavam aos costumes ancestrais. S com o tempo se robustecia neles a firmeza de conscincia. O P. Gr deixou--nos uma observao, donde ressumbra a espcie de cepticismo ou antes apatia, em que se encontravam os ndios. Quando inqui-riam dles, se acreditavam nas cerimnias dos pags, respon-diam que no criam nem deixavam de crer . . . Por outro lado, Anchieta, referindo o caso do velho de Itanham, que pediu cer-tas explicaes sobre o mistrio da Virgindade de Nossa Senhora, no parto, comenta com admirao: o que bem alheio dos outros que nem sabem duvidar, nem preguntam nada

    Esta disposio de esprito redundava, afinal, numa deficin-cia da vontade. Sentiam as coisas com prontido, no com profundeza. Era, diz Luiz da Gr, o grande obstculo cate-quese slida e verdadeira civilizao. Pouco se lhes dava a les ter isto ou aquilo, perder isto ou aquilo. No era mais profundo o arrependimento do mal que praticavam. Gr atribua tal superficialidade de sentimentos embriaguez, a que to frequentemente sucumbiam4. No a razo total. Existia tam-

    1. CA, 123; Ancli., Cartas, 205. 2. CA, 159-161. 3. Anch., Cartas, 190. 4. Bras. 3 (1), 149 ; CA, 159-161.

  • 8 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    bm frouxido ou descontinuidade de esforos. To frouxa dis-posio, til para desarraigar maus hbitos, era um mal, que impedia lanassem razes fundas os bons hbitos, que se iam plantando naquelas almas. Tda a preocupao dos Padres con-sistia pois em guiar, amparar e fortalecer o nefito, isolando-o, se fsse preciso, e defendendo-o, como se defendem as rvores tenras beira dos caminhos, para que as crianas malcriadas ou os animais as no derrubem ou descasquem, emquanto no adqui-rem consistncia para os embates de estranhos. Se para con-verter os da ndia ou mouros h mister dez, esta terra h mister vinte, diz Antnio Pires1 .

    A infncia da civilizao, em que se encontravam os abor-genes do Brasil, requeria dos Padres suavidade e firmeza; ou na observao exacta de Pero Rodrigues: pacincia e presena!2 .

    O P r o t e c t o r a d o d o s n d i o s , que os Jesutas iniciaram, e que ainda hoje se usa no Brasil com os ndios selvcolas, foi o meio nico de os civilizar, suprindo, com a sua prpria autori-dade, a sujeio civil, que les no tinham. Sem o amparo dos Padres, sentiam-se os ndios desorientados. E os colonos, apro-veitando esta fraqueza, no tinham escrpulos em os desviar do caminho da verdade, se nisso achavam interesse.

    As conscincias dbeis dos ndios em formao no resisti-riam s tendncias antigas, se no se sentissem enquadradas dentro de uma organizao forte, fra primriamente im-posta pelos Portugueses, condicionada depois e temperada pelos Jesutas!

    Quem no conhece a influncia colonizadora de Nbrega na actividade religiosa e poltica do Governador Mem de S?

    Pelo que se refere catequese, a autoridade era um postu-lado necessrio como condio mesma da sua eficcia. Parte dos Tupis de Piratininga levantaram-se contra a vila nascente e os seus mestres. Foram vencidos. Verificou-se, ento, prtica-mente, que convinha unir o amor ao temor. Anchieta, que aca-bava de se ver livre dsse perigo mortal, escreve como num desabafo: para esta gente no h melhor prgao do que a espada e vara de ferro, na qual, mais que aqi nenhuma outra,

    1. CA, 122. 2. Bras. 3 (1), 170-171,

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 9

    necessrio que se cumpra o compelle intrare J antes, admi-rando o fruto das Aldeias da Baa, comentava: e durar em-quanto houver quem os traga a viver naquela sujeio em que os temos 2.

    No trato com os ndios, o amor no podia nunca dissimular fraqueza. Diante da fraqueza, parece que se despertavam as ten-dncias sanguinrias do selvagem e, a-pesar das pinturas, que Palafox e outros fazem dos ndios, a verdade que, segundo observa Rmulo Carbia, com excepes, no to numerosas que desvirtuem a seguinte afirmao, os indgenas do Novo Mundo eram tudo, menos mansos cordeirinhos. A crueldade, o esprito sanguinrio e a pouca inclinao brandura de esprito foram as suas mais evidentes caractersticas .

    Recordando os costumes do canibalismo, scalph, crneos, trofus, etc., estende o escritor argentino esta disposio dos ndios ao continente ntegro 3.

    Cremos que, de todos os ndios americanos, foram os do Bra-sil os menos sanguinrios, talvez pelo atraso em que se achavam. Contudo, diferentes casos, como a traio de Sergipe, provam que no destituda de verdade aquela afirmao, e justificam plenamente a concluso severa de Anchieta, Notemos, ainda assim, que o mesmo Anchieta escreve, noutra parte, que os ndios, sendo naturalmente inclinados a matar, no so cruis 4.

    Outros obstculos. Tratando dos impedimentos para a con-verso dos brasis, e, depois de convertidos, para o aproveita-mento da vida crist, Anchieta assinala ainda os seguintes: o terem muitas mulheres, o darem-se a bebidas, as guerras entre trbus vizinhas, a inconstncia nos propsitos, a falta de sujeio e o carcter remisso 5.

    Esta ltima disposio de esprito assinalada por todos os que escreveram sbre tais assuntos. Alexandre Rodrigues Fer-

    1. Anch., Cartas, 186; Nbr., CB, 104, 158-159. 2. Anch., Cartas, 150. 3. Rmulo D. Carbia, Los Origenes de Chascoms, 1752-1825 (La Plata 1930)

    16, nota 17. 4. A. de Alcntara Machado diz que isto no confirmado pelos testemu-

    nhos de Blasques, Hans Staden e Gandavo.Anch., Cartas, 329 e nota 447, p. 347. 5. Anch., Cartas, 333 ; cf. ib., 145.

  • 10

    reira traa um retrato pessimista do ndio do Rio Negro: desgos-ta-se por nada e por tudo; desconfiado, dissimulado, fujo

    Desta condio do ndio tiram-se concluses opostas. Gabriel Soares conclue com a inutilidade da catequese : no

    h nenhum que viva como cristo, tanto que se apartam da con-versao dos Padres oito dias 2. Nos seus Captulos, considera-os incapazes de crer em Deus 3. Os Padres inferem, pelo contrrio, no a inutilidade (a-pesar-de todos os pesares, os ndios eram seres racionais), mas a sua dificuldade e a necessidade de esfor-os continuados para assegurar o bom xito.

    Dizia Pero Correia: h-de haver muito trabalho para os meter a caminho 4. Mas nem os Jesutas fugiam ao trabalho, nem no corao de homens tenazes entra nunca o desespro 5. Procuraram despertar nos ndios uma conscincia nitidamente humana, com o sentimento profundo da responsabilidade, trans-formando aquelas crianas grandes em homens verdadeiramente civilizados, morigerados, cristos, que o prprio fim da cate-quese, por amor de Deus, A heroicidade de to grande emprsa, nos seus multplices aspectos, transparece neste grito de alma, com que um Jesuta se expande com outro de Portugal: oh! se V.a R.a soubesse quo pesada tem sido a cruz dste Brasil c ! Afonso Braz, dirigindo-se aos Irmos de Portugal, exclama: No vos esfrie, Carssimos, serem os gentios, como disse, to mudveis e inconstantes, para que por isso hajais de perder os fervores e grandes desejos de vir c a trabalhar por amor de Deus e salvao destas almas, porque omnia Deo possibilia sunt, qui poterit de lapidibus istis suscitare filios Abrahae. E espero que vossa caridade ser to grande que os mudar, e vossa constn-

    1. Dr. Alexandre Rodrigues Ferreira, Dirio da Viagem Philosophica, Partici-pao IV, in Rev. do Inst. Bras., 48, I P. (1885) 57.

    2. Gabriel Soares, Tratado, p. 38. 3. Bras. 15, 387-387v. 4. CA, 91. 5. E buscavam saber a causa e o remdio: era at um dos fins da visita

    do P. Cristvo de Gouveia. Gesu, Colleg. 20 (Brasile). 6. CA, 432. Ando entre elles oito dos MBSOS, quatro sacerdotes, e quatro

    irmos, dous em cada aldea. Alem do trabalho grade q padece c elles de cami-nhos, calmas, chuiuas, perigos de rios mui boa fome e de lhe sofrer suas fraquezas os padece nT., maiores por defender aqueles pobrezinhos da demasiada cubia dos brancos : dos quaes muitas vezes so doestados, e por esta causa as murmu-

    \

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 11

    cia to inteira, que os far perseverar em a f e servio do Se-nhor. E acrescenta: ruins eram os da. Baa e, no entanto, mui-tos, que os Padres baptizaram, so mui bons cristos e permanecem em nossa santa f, trabalhando por viver em bons costumes 1.

    No seu Dilogo sbre a converso do Gentio , Nbrega, aludindo ao facto tradicional de que Santiago, em tda a Espa-nha , sabendo a lngua e sendo apstolo e fazendo milagres, no converteu mais que nove discpulos, cita o exemplo de vrios ndios e ndias crists, na Capitania de S. Vicente, Pero Lopes, Caiobi, Ferno Correia, que se converteram e foram fer-vorosos, pela graa de Deus 2. O clebre ndo principal, Vasco Fernandes Gato, do Espirito Santo, por ocasio dum conflito com os colonos, desabafou assim: os brancos so mais para culpar do que eu, porque eu, que no sou cristo desde menino, me apartei de muitos costumes dos meus antepassados e, depois que fui cristo, nunca mais conheci outra mulher seno a que me deram em matrimnio, e les fazem tudo ao revs disto ; e agora j que les falam e procedem mal contra mim, eu tenho de

    raes so ctinuas, mas pera tudo se armo, e padece pola iusta. Carta de Caxa, 2 de Dezembro de 1573, BNL, fg, 4532, foi. 40 ; cf. F. Guerreiro, Relao Anual, I, 375, 379.

    1. CA, 88-89, 92. Noutros Captulos bem diferentes dos de Gabriel Soares, diz o grande historiador brasileiro. Capistrano de Abreu: Esgotaria todos os prstimos dos Brasis fornecerem matria prima para a mestiagem e para os trabalhos servis, meras mquinas de prazer bastardo e de labuta incomportvel? Se no com palavras, isto afirmavam os colonos de modo menos ambguo por actos repetidos em pertincia invarivel. Ora os Jesutas representavam outra concepo da natureza humana. Racional como os outros homens, o indgena aparecia-lhes educvel. Na tbua rasa das inteligncias infantis podia-se imprimir todo o bem; aos adultos e velhos seria difcil acepilhar, poderiam porm apa-rar-se as arestas, afastando as bebedeiras, causa de tantas desordens, proibindo--lhes comer carne humana, de significao ritual repugnante aos ocidentais, impondo quanto possvel a monogena, como de famlia menos lbil. Para tanto cumpria amparar a pobre gente das violncias dos colonos, acenar-lhes com compensaes reais pela cerceadura de maus hbitos inveterados, fazer-se res-peitar e obedecer, tratar da alimentao do vesturio, da sade, do corpo emfim, para dar tempo a formar-se um ponto de cristalizao no amorfo da alma selva-gem. Tal a ideia de Nbrega, representada essencialmente pela Companhia de Jesus nos sculos de sua fecunda e tormentosa existncia no Brasil. Capis-trano de Abreu, Captulos de Historia Colonial (Rio 1928) 71.

    2. Nbr., CB, 242-243.

  • 1 2 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    ser melhor cristo do que eles e o pouco meu, em comparao do seu, h-de ser muito, porque no me dado tanto como a les l. Assim reagiam os ndios melhore^ a-pesar-de todas as dificuldades da natureza dos mesmos ndios, e tambm das que provinham da parte dos Portugueses: negligncia nos senhores em catequizar os escravos; facilidade em oferecerem concubinas aos ndios que com les tratavam; falta de zlo at naqueles a quem isso incumbiria ex officio; cativeiros injustos, etc. 2.

    Entre os aludidos por Anchieta, que deviam ex officio ajudar a catequese e a impediam, esteve o primeiro Bispo do Brasil, D. Pedro Fernandes Sardinha, que desautorizou publicamente os Jesutas, por admitirem alguns costumes da terra. Costumavam os meninos rfos do Colgio da Baa e os ndios de casa, para mais fcilmente captar os coraes dos gentios, juntar, s suas canes moda de Portugal, cantigas indgenas, enterrar os mor-tos com msica, e cortar o cabelo moda da terra3 . Neste gnero de adaptao, precederam os Jesutas, de sculos, o modernssimo Spalding. Na verdade, entre a vida americana e o cristianismo, que principiava, era mister uma ponte.

    Nbrega e os seus Padres lanaram-na destramente. Era a adaptao ao meio em que exerciam a sua actividade. Adapta-o ao secundrio e externo, para a conquista essencial do esp-rito. Mas D, Pedro Sardinha no gostou. Escreveu um libelo contra o proceder dos Padres e enviou-o a Sua Alteza.

    Invocava a sua experincia da ndia, e dava aqules usos como gentlicos. Nbrega respondeu que a experincia da ndia no se podia aplicar ao Brasil, terra de civilizao rudimentar, completamente diversa. Nem podiam ser intitulados ritos gentli-cos os costumes de homens, que no possuam ritos pblicos, nem dolos por que se deixassem matar. A questo da converso dos ndios do Brasil no era, pois, doutrinria; era questo de costumes. Requeria a boa prudncia que se permitissem os indife-rentes ou secundrios para atrair os ndios com mais suavidade e os levar a abandonar, com mais prontido, costumes fundamental-mente maus, como eram, entre outros, a antropofagia e a poliga-

    1. CA, 213. 2. Anch., Cartas, 334, cf. 169. i. Nbr., CB, 142.

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 13

    mia 1. O tempo deu razo ao P. Nbrega. Numas Advertncias para as Aldeias, escrito dos comeos do sculo XVII, l-se : como os ndios para morrerem basta tomarem melanconia, etc., parece que no bem tirarem-lhe os Nossos seus costumes, que se no encontram com a lei de Deus, como chorar, cantar e beberem com moderao. Ao lado: quando por pouco tempo 2.

    Alm destas dificuldades, existiam ainda, para impedir a catequese, no s certos pecados de luxria, de que falaremos noutro lugar, mas tambm o hbito de darem os colonos aos ndios quanto les queriam.

    Se aos pagos se no desse nem um anzol, favorecendo de modo particular os cristos, aumentar-se-ia o movimento da cate-quese. E Pero Correia, homem experimentado no trato dos ndios, quem o sugere, e para ser comunicado a El-rei 3. Comunicou-lhe de-facto, directamente o P. Nbrega. Convinha, diz le, que viessem muitos Portugueses, mas no deviam resgatar seno com os cristos e catecmenos, porque gente que no tem Deus por quem morram e tem tanta necessidade de resgate, sem o qual no tero vida, ainda que muito a seu salvo nos pudessem botar da terra, no lhes convinha, e se os obrigarem a ser cristos para poderem resgatar, fcilmente o faro, e j agora o fariam, se lho defendessem; e porm a necessidade, que temos dles e de seus servios e mantimentos, o no permite. E se vierem mo-radores que rompam a terra, escusar-se- trato com les e a terra de todo se assegurar4.

    Implicaria ste exclusivo comrcio, se fsse possvel, com os ndios cristos, alguma violncia de conscincia? No nos parece. No s porque era um favor com que se distinguiam os amigos, e a entrada no Cristianismo significava, na realidade, uma aliana; mas, tambm, porque s h lugar para violncia, quando se arranca uma religio ou culto, impondo-se-lhe outro, fra. Ora isto no se dava. Nem era possvel, como observa o prprio Nbrega, porque a situao dos ndios em matria

    1. Bras. 3 (1), 70, 104v, 106v. 2. Algumas advertncias para a Provncia do Brasil, Roma, Vitt. Em., Gess.

    1255, 18v. 3. Bras. 3 (1), 85v, 86v, 87. 4. Nbr., CB, 135-136.

  • 14 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    religiosa era qusi negativa, sem culto externo a Deus, que onde se pode dar o caso da aceitao violenta ou do martrio.

    3. ste assunto da religio merece que nos detenhamos um instante. Que religio tinham os ndios do Brasil chegada dos Jesutas? Tentou-se j responder a esta pregunta l. Natural-mente cada qual d a resposta, segundo as ideias que professa do conceito religioso.

    Slvio Romero, spenceriano, coloca-os na fase da astrolatra, momento mais adiantado, explica le, do estado fetichista2. Couto de Magalhis arquitecta uma cosmogonia complicada com trs deuses principais, o Sol, a Lua e o Amor. O Sol, que preside criao dos viventes, a Lua dos vegetais, e o Amor repro-duo dos seres 3. Esta trilogia, assim to sabiamente composta, parece-nos um tanto livresca. Mtraux escreveu expressamente sbre a religio dos Tupnambs i . o trabalho de conjunto mais vasto e metdico. Ressente-se, contudo, dalguma sistemati-zao forada. V intuitos religiosos em simples manifestaes folclricas ou etnolgicas (manifestaes afins da religio, mas que no so ainda a religio). Sobretudo, atribue sentido mstico a diversos costumes dos ndios, desvirtuando o contedo comum da mstica. E assim, a-par-de dados histricos de valor, parece-nos que se lhe pode aplicar a critica de W. Schmidt ao totemismo e s pretendidas provas que antigamente se viam dle em tudo 5.

    O nosso intuito, ao escrever ste pargrafo, examinar a

    1. Machado de Oliveira, Religio primitiva dos ndios do Brasil, na Rev. do Inst. Bras., VI (1844) 1^5-155; D. J . Gonalves de Magalhis, Os Indgenas do Brasil perante a historia, na Rev. do Inst. Bras., 23 (1860) 3-66; Gonalves Dias, Brasil e Oceania, ibid., 30, II P. (1867) 96 ss. Rocha Pombo, Histria do Brasil, II. 8, Crenas, lendas e tradies, 182-209; Prto Seguro, HG, I, 41 ss.

    2. Slvio Romero, Historia da Litteratura Brasileira, 2.a ed. (Rio 1902) 56. 3. General Couto de Magalhis, O Selvagem. 3. ed. (S. Paulo 1935) 158. 4. A. Mtraux, La religion des Tupinamba et ses rapports avec les autres tribus

    tupi-guarani, Paris, 1928. 5. Bei unserer jetzigen, freilich viel besseren Kenntnis des Totemismus

    knnen wir vielfach kaum begreifen, was man damals alies ais Indizien oder gar Belege von Totemismus ansah. Wilhelm Schmidt, Ursprung und Werden der Re-ligion Theorien und Tatsachen (Mnster i. Westf. 1930) 104. Exemplo tambm destas pretendidas provas e exageros temo-lo em Raimundo Morais, Amphitheatro Amazonico, no captulo O Totem na plancie (S. Paulo 1936) 124-134.

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 15

    documentao jesutica sbre o grau em que se achava a menta-lidade indgena em matria religiosa, e concluir dela a sua faci-lidade ou resistncia para a prgao do cristianismo.

    Os cronistas jesutas so unnimes em negar que os ndios t tivessem ideia de criao do mundo por D e u s C o n t u d o , tam-

    bm les se no podem escusar de inclinaes apriorsticas sbre o facto religioso brasileiro.

    Era ento corrente que no existia religio sem doutrina e ritos externos. Lembravam-se que os Portugueses acharam na ndia e no Japo dolos, bonzos e pagodes. No encontrando o mesmo, inferiram que os ndios do Brasil no possuam religio alguma. Os ritos, que achavam, atribuam-nos a feitiaria e bruxedo2 .

    Felizmente, observando os factos, dexaram-nos alguns cro-nistas, em particular Ferno Cardim, descrio suficiente para, prescindindo das explicaes de ento, se enquadrarem os ndios na categoria respectiva, dentro dos estudos antropolgicos actuais, sbre a religio das civilizaes primitivas. Parece que tem de ser nas da magia e animismo, onde j se reconhecem entes supe-> riores ao homem, que o essencial religio. Concordamos, porm, que o facto extremamente complexo e s.poderia ser tratado, em tdas as suas formas, em livro que estudasse ex pro-fesso a Religio dos ndios brasileiros e seguisse passo a passo as definies, caractersticas e pressupostos da religio, para dilu-cidar tudo cabalmente.

    Uma pregunta, por exemplo, fundamental seria esta: que orao faziam os ndios do Brasil ? Pelas descries dos cronistas parece ser essencialmente um pedido de bens materiais.

    A orao, segundo o catecismo, a elevao da alma a Deus, para o adorar, agradecer-lhe e pedir as suas graas.

    A relao dos ndios com Deus estaria no plano nico da magia o temor e o desejo de coisas materiais. Mas a obser-vao, prejudicada ento pelas ideias da poca, , com cer-

    1. Cardim, Tratados, 161. 2. Gouveia, em Anch., Cartas 434; Mon. Ignat., srie 4, I, 740; Bart. Guer-

    reiro, Gloriosa Coroa, 303. Os ndios e negros tinham tanta civilidade como roupa, mais surtout les Brasiliens qui en outre toicnt athes, sorciers, antropophages, et tenoient peu de l'homme . Jacques Damien, Tableau Racovrci, 107.

  • 16 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    teza, incompleta, e existiam, de-certo, relaes menos rudimen-tares do homem para com Deus, O P. Schmidt, descrevendo a dana dos ndios Arapas (trbu Algonquina) da Amrica do Norte, refere que os sacerdotes ndios se colocam em quatro filas: avanam do Noroeste para o deus central, da cabana sagrada, que est a Leste. A meio caminho param, e voltam para Oeste. Voltam ainda e tornam quatro vezes, chegando-se sem-pre um pouco mais para o lugar santo. Da ltima vez, a vinte passos da cabana, param e agitam-se enrgicamente.

    ste avano progressivo, diz Schmidt, significa a subida infatigvel da orao para o Homem l de Cima: representa ainda o esforo do homem para o bem. O homem avana, recua, torna a avanar e a recuar, e acaba, finalmente, por che-gar ao termo 1.

    Isto era entre os Arapas. E no Brasil ? Na vastido do Bra-sil, h de-certo, interferncia de crculos culturais etnolgicos diversos e, neste momento, tratamos unicamente dos ndios da costa at ao Rio Grande do Norte. Os ndios da costa conhe-ciam o uso do fogo, no conheciam o dos metais: poca, por-tanto, da pedra pulida e famlia poligmca 2.

    E agora, uma pregunta: qual era, segundo os Jesutas, a manifestao mais concreta do naturalismo indgena brasileiro, principal base religiosa dos ndios? O temor dos troves, Temor que poderia ser simplesmente motivado pelos males, no ima-ginrios, das tempestades e raios, que fendiam as rvores da floresta, ou poderia ser mdo, que envolvesse j a ideia dum Ser

    1. Der Ursprung der Gottesidee, II Die Religionen der Urvolker Amerikas, (Minster n Westph., 1929) 745-746. Citado por Gabriel Home, S. I., La prire des Primitifs d'Amrique, em Supplment la Vie Spirituelle, 1 ." avril 1931, p. [6], A cenas semelhantes assL'mos ns-prprios, h 30 anos, no mais recesso da floresta amaznica, nas cabeceiras do Rio Caburis, afluente esquerdo do Rio Negro, com aqueles avanos e retrocessos. Teriam, de-facto, significao to alta como a que lhes atribue o Padre Schmidt ?

    2. Alm dos Autores referidos, podem ver-se entre outros: H. Pinard de la Boullaye, L'Etude compare des religions, I-II, Paris, 1929; A. Lemonnyer, La rvlation primitive et les donnes actuelles de la science, Paris, 1914; Baro Des-camps, Le Gnie des Religions, Paris, 1923; Tristo de Atade, Economia Prepoli-tica, Rio, 1932; Gui de Holanda, Novo conceito de histria da civilizao luz da Etnologia e da prehistria. Rio de Janeiro, 1934; Angone Costa, Introduo Ar-queologia Brasileira Etnografia e Histria (S. Paulo 1934) 242 ss.

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  • TMO II LIVRO I CAPITULO III 2 * 17

    Superior ao homem, motor dsses troves: mdo de Aqule que troveja Para Anchieta, os ndios no adoravam criatura nenhuma, somente os troves cuidam que so Deus 2. Se esta identificao fsse rigorosa, seria uma forma idoltrica. No devia, porm, existir tal identificao, que implica j conheci-mento da ideia de Deus, e os ndios, diz Cardim, no teem nome prprio com que expliquem a Deus 3. Antes dle, dissera-o N-brega, em 1549: esta gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhece a Deus; somente os troves chamam Tupane, que como quem diz, coisa divina. E assim ns no temos outro voc-bulo mais conveniente para a trazer ao conhecimento de Deus, que chamar-lhe Pai Tupane 4 . Isto dizem os Padres. Recor le-mos, porm, que a palavra Deus erudita; e no esqueamos o hbito de os ndios responderem, qusi sempre, no sentido das preguntas. Quando os Padres inquiriam sobre a existncia dum Ente Supremo, les respondiam no mesmo sentido: Tupane o que faz os troves e relmpagos e que ste o que lhes deu as enxadas e mantimentos e, por no terem outro nome mais pr-prio e natural, chamam a Deus Tup 5.

    Outro exemplo, ainda mais frisante das respostas dos ndios

    1. Seria uma das manifestaes do culto do cu, de que fala Pettozzani, e critica Pnard de la Boullaye,- chamando-lhe uranismo (de ovoavg, a ab-bada celeste) ? Cf. H. Pinard de la Boullaye, L'lude compare dcs Religions, I, 3. ed. (Paris 1929) 397.

    2. Anch., Cartas, 331. 3. Cardim, Tratados, 163. 4. Nbr., CB, 90, 99, 73; Vasc., Crn., XCIX ; Carlos Frana, Etnografia

    Braslica segundo os escritores portugueses do sculo XVI, na Rev. de Historia, XV (1926), pg. 137.

    5. Nbr., CB, 99 ; A. I. de Melo Morais, Corographia Histrica, Chronolo-gica, Genealgica, Nobilirio e Politica do Imprio do Brasil, II (Rio 1859) 286; Claro Monteiro do Amaral, na Rev. do Inst. Bras., 63, l.a P. (1900) 272, diz que verificara, entre os ndios do Rio Verde, diferena entre tup e Tupana. O primeiro com a significao de raio; o segundo de Deus. O sufixo a designaria o agente, causa. O mesmo observara, antes dle, no Maranho e Par, D. J . G. de Magalhis, Os indgenas do Brasil perante a histria, in Rev. do Inst. Bras., 23 (1860) 27. Mas no ser esta formao j de procedncia jesutica ? Como quer que seja, o facto de os Jesutas Portugueses adoptarem a palavra Tup para significar Deus ineg-vel. O vocbulo teve tal fortuna que usado ainda hoje por todos os ndios cris-tos, desde a Argentina s Guianas. Cf. Mtraux, La Religion des Tupinamba (Paris 1928) 56; Ricard, Les Jsuites au Brsil, 451.

  • 18 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    110 sentido das interrogaes, que se lhes faziam, o que nos deixou o P. Tolosa.

    Inquiriu le de um ndio, recm-chegado do serto, o que sabia das. coisas antigas. O velho falou dos nossos primeiros pais, e"m confuso, do dilvio, e nomeou Deus por um vocbulo que quere dizer sem princpio

    E j evidente, nesta resposta, a influncia crist, sobretudo quanto notcia dos primeiros pais e de Deus sem princpio.

    Pelo que toca ao dilvio, aparece, nas primeiras cartas, de diverso modo: umas vezes uma mulher com o marido que se salvam no cimo de uma rvore 2 ; outras, um principal, zargado numa guerra, deu com uma flecha no solo; abriram-se as fontes e inundou-se a terra; s le (no se diz, mas, de--certo, com a sua mulher) fazendo uma casa de folhas bem tapada, conseguiu escapar3 . A tradio do dilvio tem, na Etnologia indgena brasileira, variadas formas. H pelo menos cinco: a dos Tupis, a dos Caxinus, a dos Padauris, a dos Boro-rs e a dos Pamaris 4. A esta tradio se deve ligar a lenda de Zum, personagem antiga que viera de longes terras e ali pr-gara o bem quelas gentes. A semelhana do nome fz recor-dar So Tom e ver as suas pgadas nalguns lugares. Nbrega assinala essa crena, o que levou erradamente alguns a supor que foram os Padres os autores da lenda. Est provado que a tradio de Zum anterior chegada dos Jesutas 5,

    Acreditariam os ndios na imortalidade da alma? Como ns hoje a entendemos, no seguro, mas c r iam'na sua sobrevi-vncia. Disto h documentao abundante. Escreve Cardim: sabem que teem alma e que esta no morre e que depois da morte vo a uns campos onde h muitas figueiras ao longo de

    1. Bras. 15, 285. 2. Nbr., CB, 91 ; 101. 3. Carta de Incio de Tolosa, 7 de Julho da 1575. BNL, fg, 4532, . 163 ,

    Felisbelo Freire, Histria de Sergipe, 7. 4. Gustavo Barroso, Mythes, Contes et Legendes des Indiens Folb-lore br-

    silien (Paris 1930) 68-74 ; Mtraux, La Religion des Tupinamba, 44. Para uma trbu moderna, cf., por exemplo, Ermelino A. de Leo, Subsdios para o Estudo dos Kaingungues, na Rev. do Inst. de S. Paulo, XV, 229-232. Roquette Pinto, em Ron-donia, 3." ed. (Rio 1935) 115 e seg i traz dados antropolgicos, etnogrficos e lin-guisticos, preciosos e objectivos, sbre os Parecis e Nambiquaras.

    5. Vale Cabral, em Nbr., CB, nota 25, p. 101.

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  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 19

    um formoso rio, e todas juntas no fazem outra coisa seno bai-lar a terra sem mal. Tal felicidade reservada aos valen-tes: os covardes vo sofrer com o Anhanga, mau esprito, ou transformam-se em Anhanga ou Cururupeba'1.

    ste destino diverso dos homens , como se v, uma forma do problema das sanes eternas, num povo onde a defesa e combates contnuos entre as trbus obrigavam os homens a fazer da valentia o mais alto ideal. Desta mesma fonte o culto dos antepassados, que se manifestava nos momentos de guerras: o mais fino da retrica para persuadir esta gente era, diz Simo de Vasconcelos, trazer-lhes memria os feitos valen-tes dos seus antepassados 3.

    O animismo indgena manifestava-se com a crena dos ndios nos espritos que povoam os locais, onde recolhiam o sustento: mato, rio, praia. Corporizavam os rudos da floresta e certas manifestaes naturais, inexplicveis para les, como o fen-meno das fosforescncias vegetais ou marinhas. O folclore ind-gena anda cheio de tais lendas,

    E coisa sabida, escreve Anchieta, e pela bca de todos corre, que h certos demnios, a que os brasis chamam Curupira, que acometem aos ndios muitas vezes no mato e do-lhes aoi-tes, machucam-nos e matam-nos 4.

    H tambm nos rios outros fantasmas a que chamam Igpu-para. Nas praias, h o baetat, o que todo fogo, que corre de um lado para outro e acomete rpidamente os ndios e mata-os como a Curupira. O que isto seja, ainda no se sabe com certeza. H ainda outros espectros pavorosos que assaltam os ndios 5.

    Chamavam-se Taguaigba, Machaquera, Anhanga: tanto o mdo que lhes teem a les e Curupira que, s de imaginarem nles, morrem G.

    1. Cardim, Tratados, 161-162. 2. Lery, cap. XVI, 3, in Rev. do Inst. Bras., 52, 2. P. (1889) 274 ; Fran-

    cisco Soares, De alg. cousas mais notveis, 384 ; Vasc,, Das cousas do Brasil, na Crn., pg. C.

    3. Vasc., Crn., III, 75. 4. Couto 'de Magalhis faz da Curupira um deus protector da floresta

    (0 Selvagem, 3. ed., 170). 5. Anch., Cartas, 128-129 e nota de Alcntara Machado, p. 142. 6. Cardim, Tratados, 162; Anch., Cartas, 331, Baltasar Fernandes, CA, 485

    e nota de Afrnio ; Mtraux, a-propsito-de todas estas manifestaes, cita os

  • 2 0 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    4. Os ndios da costa brasileira, na posse de Portugal, no sculo XVI, no possuam dolos propriamente ditos l. Mais tarde surgem, mas parece-nos que j por influxo europeu ou africano. Os clebres cabaos, de que se serviam os pags para as suas cerimnias, devem-se considerar mais como objecto mgico do que dolo fitolgico a quem se adore. Mas no haveria manifes-taes, ao menos tnues, de culto fitolgico? Parece-nos que sim, No Auto de S. Loureno exorta o Anjo aos ndios a acabarem com feitios, a desprezarem augrios nas aves e feras da floresta e, tambm, a que no adorem a palmeira2. Algum fundamento have-ria para se mencionar o culto a esta rvore.

    Os objectos de maior venerao entre os indgenas eram os cabaos ou maracs, que os pags rodeavam de mistrio para mais se imporem aos ndios. Escondiam-nos em uma casa escura, para que a vo os ndios levar suas ofertas. Tdas estas invenes, por um vocbulo geral, chamam Caraba, que quere dizer coisa santa ou sobrenatural; e, por esta causa, puse-ram este nome aos Portugueses, logo quando vieram, tendo-os por coisa grande, como do outro mundo, por virem de to longe por cima das guas 3.

    O Padre Nbrega deixou-nos um pormenor precioso sobre o modo de operar dos pags com stes maracs. Depois de colo-cado na escurido da casa, o pag muda a sua prpria voz em a de menino junto da cabaa, prometendo aos ndios tdas as facilidades nas suas coisas: o comer lhes vir a casa, porque as enxadas por si iro cavar, e as frechas caa, etc.4 ,

    Pero Correia, como mais antigo na terra e que mais estve em contacto com os ndios, o que nos d maiores mincias: Fazem umas cabaas ^maneira de cabeas, com cabelos, olhos, narizes e bca com muitas penas de cres, que lhes apegam com cera, compostas madeira de lavores . E em sua honra inven-

    autores portugueses, mas d maior lugar aos autores franceses, Thevet, Lery, Yves d'Evreux, Claude d'Abbeville. Notemos que stes ltimos escreviam do Norte, e podem-se notar nesses ndios, prximos do Amazonas, influncias culturais dife-rentes das do Sul. I

    1. Nbr., CB, 73, 114; Bras. 3(1), 104. 2. Afrnio, Primeiras Letras, 179. 3. Anch., Cartas, 331-332, 72-73 j^CA 147. 4. Nbr., CB, 99.

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    tam muitos cantares que cantam diante dle; bebendo muito vinho de dia e de noite, fazendo harmonias diablicas E j aconteceu que, andando nestas suas santidades, foram duas lnguas, as melhores da terra, l, e mandaram-nas matar. Teem para si que seus santos do a vida e a morte a quem querem. Se lhes houvera de escrever as misrias dstes, fra necessrio muito papel . Esta santidade vem-lhes de ano em ano 2.

    A tudo isto chamam os Padres expressamente feitios e fei-ticeiros. E, mais que nenhum, o mesmo Pero Correia que vai at a compar-los com usos, que ainda ento vigoravam na Europa. Donde se segue que os consideram antes manifestaes supersti-ciosas do que religiosas. Magia. Tudo isto, diz le, so abuses e ninharias que ainda hoje se acham dentro do reino de Portu-gal como so feiticeiros, bruxos e benzedores, e crer em sonhos e ter muitos agoiros .

    Quanto aos pags, os ndios ora lhes davam crdito ora no, porque as mais das vezes os apanham em mentira 3.

    Os pags teem dupla funo: uma semelhante dos arspi-ces antigos, outra de curandeiros.

    Na guerra dos ndios de Pratininga, pouco depois da funda-o de S. Paulo, na vspera do combate, fizeram uma cabana, segundo o seu costume, onde puseram uma cabaa cheia, ao modo de rosto humano, ataviado com plumas. Aos feiticeiros, que fazem isto, chamam pags para sacrficar-lhe e preguntar-lhe o sucesso da guerra4. Os pags eram tambm curandeiros e o seu ofcio consistia em fazer certas fumigaes e chupamentos no lugar doridoi O chupar leses patolgicas: mordeduras, pisa-delas, tem, de-facto, efeitos teraputicos reconhecidos pela medi-

    1. Parece que a ideia de santidade anda associada imediatamente da msica. Indo os meninos rfos a uma Akieia com cantos, disseram que agora lhe ia a verdadeira santidade ;' e ao lado escreveram, guisa de definio emp-rica: Santidade chamam a seus msicos e locadores (Bras.3(1), 66v) .

    2. CA, 98-99, 122, 382; Hans Staden, Viagem ao Brasil, cap. XXI (Rio 1930) 68.

    3. Carta de Pero Correia, 10 de Maro de 1553, Bras. 3(1), 86v ; Anch., Cartas, 105.

    4. Anch., Cartas, 72. Se fssemos a tomar, no seu sentido rigoroso, o verbo sacrificar, teramos uma verdadeira manifestao de adorao e culto : dolo e religio. Mas tal interpretao ope-se a outras notcias positivas que negam a existncia de dolos, adorao e culto.

  • 2 2 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    cina; mas os pags fingiam que tiravam do lugar doente um fio, uma palha, ou qualquer outro objecto, com o que o paciente se sugestionava. E o doente cuida que fica so e lhes d por esta cura quanto querem e pedem

    No se oporiam estes pags prgao do Evangelho? Opu-seram-se, mas foi resistncia ineficaz. Tal oposio manifesta-se de muitas formas: transparece no mdo pueril com que, ao como, os ndios fugiam dos Padres nas Aldeias 2; na acusao de fracos e efeminados, que os ndios dirigiam aos que se convertiam3 ; na persuaso, que lhes incutiam, de que a religio era para os escravizar4 ; no modo com que os amedrontavam, dizendo que as valas que se cavavam roda da cidade do Salvador, e os poos que se abriam, haviam de ser para os afogar 5 ; na superstio com que, para os Padres lhes no lanarem a morte , queima-vam, roda das suas casas, sal e pimenta6 ; e n a interferncia, que tomavam nas ocasies de epidemias e de fomes, atrbuin-do-as religio e induzindo os ndios a fugirem para o mato 7 : tudo isto eram manifestaes de resistncia, mas por si se des-moronavam, como tambm a antropofagia facilmente se venceu, a poligamia se atalhou, as bebedeiras diminuram, e o noma-dismo amorteceu com os aldeamentos. Um costume com outro costume se vence. E tomaram-se realmente os meios adequados para a vitria, sobretudo com a juventude 8. *

    O primeiro contacto com os pags narrado por Nbrega: Procurei encontrar-me com um feiticeiro, o maior desta terra [da Baa], ao qual chamavam todos para os curar. Dzia-se deus. Foi confundido : agora um dos catecmenos 9.

    1. CA, 78, 307, 484. A actos dstes assistimos ns, pessoalmente, neste sculo XX, entre o. ndios do Amazonas.

    2. CA, 130. 3. Bras. 15, 327v; CA, 49. 4. Nbr., CB, 104; CA, 127 ; Anch., Cartas, 91, 98, 99. 5. CA, 51. 6. Bras. 3(1), 64v. 7. CA, 129; Vasc., Crn., 39.. 8. Escreve Caxa, a 2 de Dezembro de 1573, BNL, fg, 4532, t. 42 : J

    agora lhe aborrecem coisas de que antes faziam muito caso, porque tendo dan-tes muita f em seus feiticeiros, j agora os perseguem *, e que se haviam de degradar .

    9. Nbr., CB, 95.

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  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 2 3

    Esta santidade primitiva no tardou a sofrer o influxo de fora e a transformar-se numa corrutela da prpria religio crist. J em 1552 se fala de um feiticeiro de Pernambuco, que se procla-mava parente dos Padres.

    Garantia que era verdade o que les diziam e que le pr-prio tinha morrido e ressuscitado . . .

    Nesta corruo da religio intervinham s vezes os mamelu-cos e a ela assistiam, impassveis ou coniventes, colonos, como Ferno Cabral de Atade, senhor de uma fazenda nos arredo-res da Baa, em Jaguaripe. Um ndio chamava-se Papa, outros diziam-se bispos; e at uma ndia se dava por mi de Deus, sem contar outros santos menores. Arvoravam cruzes. Tinham um dolo de pau em uma casa a modo de igreja, na qual estava uma pia de bautizar, onde os mesmos ndios se bautizavam uns aos outros, e outra pia como de gua benta com seu hissope, e um altar com castiais e uns livros e folhas de tbuas de pau, com certas letras escritas, por que les a seu modo liam, e com uma cadeira de um s pau inteiro em que les como em confes-sionrio confessavam as fmeas , etc.

    k Aquela conivncia de Ferno Cabral tinha muito de interes-seira e supunha o prestgio da religio crist. No querendo o fazendeiro chamar os Padres, por possuir, escravizados, com m conscincia, muitos ndios livres, fomentou aqule arremdo para os prender a sses e atrair outros que chegavam, le prprio se punha de joelhos. Antnio Conselheiro teve precursores. O caso de Jaguaripe prometia alvoroo. O Governador Teles Barreto enviou l o Capito lvaro Rodrigues e destruiu to abusiva falsificao 2.

    1. CA, 118. 2. Primeira VisitaoDenncias da Baa 1591-1593, p. 291, 327-328 ; 474-

    -475 ; 381-382. Tudo isto vem narrado circunstanciadamente em Ann. Litt. 1585, p. 133 ss. E cf. Confisses d Baa, 1591-1592 (Rio 1935) 105, 122, 168-169, onde Domingos Fernandes Nobre, o Tomacauna, conta a parte que nisso teve, e conclue dando notcia sbre o dtto chamado Papa, autor e inventor da ditta erronia e abuso, o qual se chamava Antonio e era do gentio deste Brasil e se criou em casa dos Padres da Companhia de Jesu, no tempo que elles tinho aldeias em Tinhar capitania dos Ilheos, donde elle fogio pera o serto. Aquela nua refere-se tambm ao uso da herva pitima (tabaco), aos seus efeitos espasmdicos e embria-guez que se seguia s santidades. A descrio de Southey, Hist. do Brazil, II,

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    5. No meio dstes trabalhos, iniciaram, pois, e prossegui-ram os Padres a catequese dos ndios do Brasil, O meio mais seguro, e cronologicamente o primeiro, que usaram, foi o da ins-truo. Manuel da Nbrega, a 10 de Agosto de 1549, diz que comeou a visitar as Aldeias: convidamos os meninos a ler e escrever. E les vinham com grande inveja e vontade 1.

    O meio foi bem escolhido. Atravs dos filhos atingiam-se os pais, arredios, supersticiosos, e, em geral, difceis de mover, como tda a gente j feita. Inteligentes, os meninos de-pressa se transformavam em mestres e apstolos 2.

    Chegando em 1550, os rfos de Lisboa juntaram-se com os meninos ndios da Baa. Alguns j sabiam as coisas da reli-gio : com o convvio dos recm-chegados, aperfeioaram os seus conhecimentos; e todos juntos entraram pelas povoaes pags, prgando, ensinando, atraindo aquelas almas a Deus, Descrevem os prprios meninos a romaria ou peregrinao que fizeram nos arredores da Baa. Armaram-se com a cruz de Cristo e com a eficcia das suas palavras, dizem les. A cruz ia adiante sempre levantada, e os meninos a seguir,- de dois em dois ou de trs cm trs. Iam prgando a Cristo, que era o verdadeiro Deus, que fz os cus e a terra e tdas as coisas para ns, para que o conhecssemos e servssemos, E ns, para quem le fz a terra e nos deu tudo, no o queremos conhecer, nem crer, obedecendo aos feiticeiros e maus costumes. Dali em diante, [os ndios] no teriam desculpa, pois Deus lhes enviava

    p. 4-7, tirada de Jarric, Histoire des choses, II, 319-322, traduo qusi literal, um pouco en/tica daquela nua. O cnego J. C. Fernandes Pinheiro, anotador de Southey, pe-lhe esta nota: Cremos que tda esta teogonia, a que se refere o autor, no passa de uma inveno dos Jesutas. Em primeiro lugar, Fernandes Pinheiro no forma conceito exacto do que seja teogonia, intitulando assim aquela simples contrafaco de jerarquia e ritos catlicos; em segundo lugar, as Denn-cias da Baa, em to boa hora publicadas, demonstram a leviandade com que le acoima de inveno factos verdadeiros. Exemplos daqueles efeitos espasmdicos, em que as mulheres tremiam, deitando-se por terra, escumando, etc., encontram-se j em Nbrega e noulros cronistas. Nbr., CB, 99; CA, 382 e nota 200 de Afrnio Peixoto; Alcantara Machado, Vida e morte do Bandeirante (S. Paulo 1929) 212. Diversas manifestaes de santidade, corrutelas de cristianismo, sur-giram noutros lugares, Fund. de la Baya, 32v-33v (108) ; Nbr., CB, 180.

    * 1. Nbr., CB, 91. 2. Fund. de la Baya, 3v(79); Vasc., Crn., I, 91, 151.

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    agora a verdadeira santidade, que a Cruz, e aquelas palavras e cantares. E que Deus tinha vida, l onde le est, mostrando--lhes a formosura dos Cus, nomeando-lhes os elementos com os seus frutos, e como de l vinha o sol, a chuva, o dia, e a noite e outras muitas coisas. E daqui corrigamos as suas faltas e supers-ties, mostrando-lhes os seus enganos muito claros. E ficavam espantados de os meninos saberem tanto

    Na maior parte das Aldeias da costa, estabeleceram-se pequenos seminrios, ou mais propriamente, escolas elementares, onde se ministrava aos filhos dos ndios o duplo ensino da dou-trina e do abecedrio. Isto, desde o como, na Baa e S. Vi-cente. E at de Prto Seguro escreve, em 1551, o P. Navarro: comeam-nos j a dar seus filhos, e ao presente esto trs ou quatro aprendendo em uma casa que para isso ordenmos2 .

    No perodo intensivo das Aldeias da Baa, depois da che-gada de Mem de S, o movimento escolar e catequtico foi grande. Em 1559, escrevia o Governador a El-rei D. Sebastio que h escolas de trezentos e sessenta moos, que j sabem ler e escrever3 . Nbrega refere que, na Aldeia do Esprito Santo, eram 150 4. O P. Melo diz que, na mesma Aldeia, um ano depois, a frequncia era de trezentos5 . Por sua vez Antnio Rodrigues refere que, na do Bom Jesus de Tatuapara, haver na nossa escola 400 meninos c.

    So unnimes os testemunhos em notar o extraordinrio influxo e atractivo que os Padres exerciam sbre a adolescn-cia e a juventude.

    Conta Anchieta que, em oito dias de convivncia com os meninos de lperoig, os acharia aptos para o baptismo, se esti-vesse em terra de cristos, que assegurasse a perseverana7 .

    Joo Gonalves foi visitar as Aldeias, em 1556. Duma trouxe dois meninos, a que ps os nomes dos prncipes dos apstolos, Pedro e Paulo. Depois, trouxe trs e deu-lhes os nomes dos

    1. Bras. 3(1), 64-64v. 2. CA, 69 ; Vasc., Crn,, II, 6, 3. Carta de Mem de S, 31 de Maro de 1560, em Animes, XXVI, 227 e 195. 4. Nbr., CB, 185-186. 5. CA, 250, 264-265, 237-238. 6. CA, 296-297 ; Vasc., Crn., II, 99. 7. Anch., Cartas, 201.

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    Reis Magos, Gaspar, Melchior e Baltasar, primcias da gentili-dade. Depois, outros: ora trazia quatro, ora cinco, ora seis, de modo que lhe cobraram tanta afeio que, fugindo de suas mis, o vinham aguardar no caminho para que os trouxesse consigo l.

    Antnio Rodrigues, o maior apstolo destas Aldeias, no perodo de formao, conduzia pra a de Santiago, em 1559, vinte meninos filhos de Parajuba. A mim me pareciam, diz le, stes meninos, estudantes pobres que iam estudar a Salamanca, mas diferentes e desiguais na inteno, porque l vo aprender letras e cincias, e stes caminham para a escola onde no h-de soar seno Cristo in cordibus eorum 2,

    Os Jesutas ensinavam os filhos dos ndios a ler e escre-ver, cantar e ler portugus, que tomam bem e o falam com graa, e a ajudar s missas; desta maneira os fazem polticos e homens 3.

    O Visitador Cristvo de Gouveia determinou, em 1586, que estas aulas, de manh e de tarde, durassem cada uma hora e meia. E que os mestres no castigassem os meninos por sua mo4 .

    A distribuio de tempo no podia, contudo, ser rigorosa e uniforme. Nalgumas partes eram, duas horas de manh, outras duas de tarde 2; e ainda noutras s de tarde, e ento duravam mais. Assim sucedia, em 1559, na Aldeia de S. Paulo, da Baa, como escreve Nbrega. E dava a razo: porque teem o mar longe e vo pelas manhs pescar para si e para seus pais que no se manteem doutra coisa: e de t^yde teem escola trs horas ou quatro 3.

    Nas Aldeias, organizadas de modo estvel, a distribuio quotidiana faJ.a-se assim, com ligeiras variantes:

    Ao romper da manh, tocava-se a campainha (substituindo-a mais tarde o sino) a chamar missa. Juntavam-se- os meninos porta da Igreja ou dentro no altar-mor. Ajoelhavam-se, reparti-dos em dois coros iguais, geralmente os meninos a um lado, as

    1. CA, 169. 2. 76., 234, 156-1Jf; 295-297'; Bras. 15, 64v. 3. Enformacion, Bibi. de vora, Cod. CXVI/I-33, f. 39; cf. Anch., Cartas,

    416, 436. 4. Ordinationes, em Bras. 2, 146. 5. Vasc., Anchieta, 163. 6. Nbr., CB, 179; 159-161.

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    meninas a outro. Feito o sinal da cruz e recitado o hino Verti Creator Spiritus, entoava-se o Rosrio do nome de Jesus

    Comeava um cro em voz alta: Bemdito e louvado seja o Santssimo Nome de Jesus. Respondia o outro cro : E da Bem-aventurada Virgem, mi sua, para sempre, amen. E assim dez vezes. Depois, todos juntos: Gloria Patri et Filio et Spiritui Sancto, amen. Estas saudaes, ou Rosrio, prolongavam-se at comear a

    missa. Assistiam a ela em silncio, com modstia e devoo, ora de joelhos, ora de p e de mos postas .

    Finda a missa, a que tambm assistiam os adultos que que-riam, retiravam-se stes para as suas fainas. Ficavam os me-ninos ; e comeava ento a catequese propriamente dita.

    Um Padre ou Irmo ensinava-lhes as oraes mais comuns, Padre-Nosso, Av-Maria, Salv-Ranha, Credo e as frmulas da dou-trina crist; depois, catecismo dialogado, a principio na lngua portuguesa e, mais tarde, tambm na tupi-guarani. Tomavam-se, para isso, as disposies necessrias. Em 1574, o Provincial, Padre Tolosa mandou que se traduzisse ou adaptasse para a ln-gua braslica o catecismo portugus do P. Marcos Jorge 2. J em 1564, pedia o P, Luiz da Gr, de Portugal, a doutrina que l agora se ensina por preguntas e respostas 3. Tambm, j em 1566, se falava dum catecismo em forma de Dilogo, do P. Braz Loureno, usado por le com xito em Prto Seguro e que j tinha sido enviado a Portugal4, no qual se ensinavam quelas almas rudes os principais mistrios da religio: Santssima Trin-dade, Criao do Mundo, Primeiros Pais, Incarnao e Redeno, Paixo, Morte e Ressurreio do Filho de Deus, os Novssimos do Homem, a Igreja Catlica, os Sacramentos, etc.

    Acabada a doutrina, repetiam-se as invocaes do princpio, Depois dum ligeiro almoo, comeava a escola: ler, escrever, cantar e tocar instrumentos, conforme o jeito de cada um.

    Nalgumas Aldeias, "a escola terminava de manh com a La-

    1. Bras. 15, 185. 2. Bras. 15, 257. 3." CA, 415, 4. CA, 472.

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    danha dos Santos, de tarde com a Salv-Rainha. E os meninos iam para suas casas.

    Ao cerrante da noite, tangia-se a Av-Marias. Numa suave alegria, juntavam-se outra vez os meninos porta da Igreja. Formava-se procisso. A frente, a cruz alada. E todos em ordem e cantando, em voz alta, cantigas santas na prpria lngua, encaminhavam-se para uma cruz erguida no terreiro. Ajoelhan-do-se todos, encomendavam as almas do purgatrio. Dizia um:

    Fiis cristos amigos de Jesus Cristo, lembrai-vos das almas que esto penando no fogo do Purgatrio. Ajudai-as com um Padre-- Nosso e Av-Maria, para que Deus as tire das penas que padecem .

    Respondiam todos: Amen. Concludas as oraes, voltavam da mesma forma at por-

    taria dos Padres. E, entoando mais uma vez as singelas sauda-es com que comearam o dia, Bemdito e louvado seja o Sants-simo Nome de Jesus, etc., o Padre os abenoava.

    E, suprema oblao do dia, retirando-se para suas casas, algumas vezes os meninos, antes de dormir, ainda ensinavam, ao p do fogo e da rde, a doutrina a seus p a i s . . . 1 .

    6, A doutrinao directa dstes pais, ou ndios adultos, iniciou-se por misses volantes. Os Padres viviam nas cidades ou vilas e saam pelas Aldeias vizinhas, prgando a princpio com intrpretes e depois, aprendida a lngua, por si mesmos. Logo em Agosto de 1549, anuncia o P. Nbrega:

    Comeamos a visitar as suas Aldeias, quatro companheiros que somos, a conversar familiarmente, a anunciar-lhes o reino do cu, se fizerei.-" aquilo que lhes ensinarmos 2. Assinalaram-se, em cada Capitania, os -respectivos iniciadores da catequese ind-gena. Na Baa, deu-se mais de-propsito a esta emprsa o P. Joo de Azpilcueta Navarro que, em 1550, evangelizaya 6 ou 7 Aldeias3 . Conta Vicente Rodrigues como se faziam estas mis-

    1. Pero RodrigueSj^Anc/iefa, ejn Annaes, XXIX, 243-244: Vasc., Crn., II, 6-7; I, 161 ; Id., Almeidm, 50; Id., Anchieta, 163; Carta de Caxa, de 2 de Dezem- S bro de 1573, BNL, fg, 4532, f. 43v; Carta do P.Tolosa, 7 de Setembro de 1575, ib., f. 166; cf. Carta do mesmo, 3 de Fevereiro de 1574, Bras. 8, l -2v; Anch., Cartas, 73, 436; Discurso das Aldeias, 381 ; CA, 197, 491, 496.

    , 2. Nbr., CB, 91. 3. CA, 50.

  • 2 9

    ses em 1552: Ensinamos-lhes a doutrina crist na prpria lngua deles, eu e alguns Irmos da terra que trouxe comigo, e costumamos cham-los doutrina por um destes moos, que vai apregoando pelos caminhos com muita devoo e fervor, dzendo-lhes, entre outras coisas, que est terminado o tempo de dormir, que se levantem para ouvir a palavra de Deus, e assim despertados se ajuntam em casa do Principal, e a lhes ensinamos a doutrina crist, explicando alguns passos da vida de Cristo, e algumas vezes tanto se interessam pelas coisas do Senhor, que nem eu nem os outros Irmos lhes somos bastan-tes para satisfazer os seus desejos; findo o que, voltam para casa, e rezam a doutrina crist e benzem-se, fazendo o sinal da cruz 1.

    A Cruz levavam-na sempre alada os Padres, quando entra-vam nas Aldeias. Entravam cantando, e os ndios, maravilha-dos, recebiam-nos bem2 .

    O problema da catequese dos ndios resolveu-se em funo das circunstncias econmicas da sua vida. A experincia mos-trou que os ndios durante o dia andavam ou a mariscar ou a caar ou a cultivar mandioca, e, mais tarde, canaviais. S de manhzinha ou ao cair da noite se poderiam achar. Dividiu-se, portanto, a catequese em duas seces perfeitamente distintas, a dos meninos e a dos adultos. Tanto mais que a dos adultos no foi nunca demasiado frutuosa, como se depreende do que escrevemos sobre as suas disposies de carcter. Em 1556, tocava-se, contudo, a campainha uma hora antes do sol-psto, para virem todos, e tambm as velhas e velhos que em extremo so preguiosos 3.

    No descuravam os Padres todos os meios de os mover, despertando neles o sentimento da emulao. Logo ao como, acharam na Baa um ndio j cristo, mas que desconhecia o que isso significava, Ensnaram-no e, para o autorizar, convidaram-no, logo nos primeiros' dias da^chegada, a comer sua mesa. Os outros espantavam-se do favor que lhe dvamos 4. Os ndios

    1. CA, 134-135. 2. Nbr., 137; CA, 94, 499. 3. CA, 159-161. 4. Nbr., CB, 74, 77.

  • 3 0 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    antigos, quando bem dirigidos, transformavam-se em elemento precioso da catequese, espertando os demais a assistir a ela

    Mem de S dava-lhes igual favor. Ao ndio Capim, trazido do serto pelo P. Luiz da Gr, deu o Governador de vestir, vinho de Portugal, ferramentas e a nomeao de capito dos seus, moda portuguesa. O que causou inveja aos outros ndios e fz dle amigo da religio2. Alguns dstes ndios de boa vontade transformavam-se em catequistas. Eram hbeis no seu ofcio. sabido que os ndios estimavam a valentia: mas admiravam ainda mais a eloquncia. Gouveia compara-os, neste ponto, aos romanos. Os senhores da fala acabavam quanto queriam com os ndios; as suas decises traziam a paz ou levavam guerra3 . Os Jesutas, como no podiam fazer tudo por si, lanaram mo dos elementos que encontraram, os moradores mais antigos da terra, como o Caramuru, na Baa, e tambm os prprios ndios 4.

    Eram os intrpretes. Mas s vezes iam les prprios, pr-gando a F e desenganando os seus maus costumes em que vivem 5. Na Capitania de S. Vicente, contam-se, entre os catequistas, os moradores Pero Correia e Manuel de Chaves, que entraram depois na Companhia6 ; na Baa, os ndios Garcia de S e Sebastio da Ponte, que eram os principais das suas Aldeias; 7 e tambm o ndio Baltazar, um dos trs baptizados em 1556 pelo P, Joo Gonalves com os nomes dos Reis Magos 8.

    As mulheres ajudavam. Mas, em geral, os catequistas eram homens. Por tda a parte se recrutavam, ensinando a doutrina sob a direco dos Padres; e fazem-no com tanta destreza e desembarao como qualquer de ns 9. No raro os ndios toma-vam espontaneamente a iniciativa da catequese e ensinavam os

    1. CA, 170; Cardim, Tratados, 292-293; Bras, 3(1), 65(1552), onde se fala do Grilo , amigo dos cristos.

    2. Vasc., Crn., II, 109. 3. Anch., Cartas, 433. 4. Nbr., CB, 143; Bras. 3(1). 70; CA, 131. 5. CA, 77. 6. Anch., Cartas, 315. 7. CA, 234-235. 8. CA, 162, 169. 9. CA, 225, 77; Vasc., Crn., I, 111.

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 31

    meninos, como sucedeu em Sergipe, durante a ausncia do P. Gas-par Loureno

    O primeiro contacto catequstco dos Jesutas com os ndios, na fundao dalguma Aldeia tem o seu qu de original. Veja-se por exemplo, a fundao da Aldeia de S. Joo, em 1561, pelo Padre Gaspar Loureno e Ir. Simo Gonalves. Partindo da Aldeia de Santiago, chegaram ao stio da nova Aldeia. Nesse mesmo dia, s Av-Marias, juntou-se tda a gente. O Padre Loureno entrou no terreiro, prgando e explicando ao que vinha, e se queriam receber a f de Jesus Cristo. Cada ndio comeou a responder que sim, que eram contentes com isso. E diziam : agora estaremos seguros, e nossos filhos sero outros. Comearemos a aprender, e viveremos melhor do que at agora vivamos, frmula singela, que a sntese mesma da civili-zao : melhorar !

    Edificou-se igreja. Os ndios, ocupados com o trabalho das roas, fizeram uma de palmas, at que, como les diziam, fizes-sem a verdadeira, de taipa ou pedra e cal. Deu-se princpio doutrina. Acudia a gente a ela com tanta vontade, como se fsse j costume antigo. Era o atractivo da novidade e a eloqun-cia do P, Loureno, que os atraa. Neste lance as mulheres mostraram-se to bem dispostas como os homens. Era costume tocar-se, ainda com dia, para a doutrina comum. Uma vez, tocan-do-se um pouco tarde e acorrendo homens e mulheres, no pare-ceu honesto aos Padres que elas ficassem, significando que desta vez era s para os moos. Como ? reclamaram elas, no que-res tu que aprendamos ? S os homens queres que saibam ? 2.

    As ndias, se exceptuarmos as velhas mais renitentes, con-vertiam-se fcilmente e transformavam-se em apstolas. Em Ipe-roig, recebiam melhor a doutrina do que os homens 3. E podiam, em S, Vicente, servir de exemplo a muitas senhoras de Portu-gal que esto aqui 4. Ficou clebre Catarina Paraguau, bene-mrita do Colgio da Baa. Deu igualmente boas provas D. Branca, mulher de Maracajaguau; tambm h exemplo de mulheres, que,

    m

    1. CA, 496; cf. supra, Tmo I, 440. 2. CA, 299-301. 3. Anch., Cartas, 201. 4. CA, 95.

  • 3 2 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    a-pesar-de velhas, se converteram, como a do principal Jagua-raba, no Esprito Santo, e a que, numa Aldeia da Baa, faltando o Padre na primeira quarta-feira da quaresma, convocou o povo para a igreja e deu-lhe as cinzas. . .

    Depreende-se, pelo que se praticava em Ilhus, no ano de 1566, que, antes do sol-psto , fazia-se a doutrina s ndias; e, depois das Av-Marias, aos ndios, porque no podem estar primeira doutrina, por irem a pescar e vir tarde 2.

    Nos primeiros tempos das Aldeias, a catequese fazia-se duas vezes em comum, de manh e tarde antes da noite, isto , antes e depois do trabalho. Ensinavam-se-lhes as oraes e a doutrina por preguntas e respostas. Mais tarde tocava-se s almas e fazia-se uma procisso com os meninos, como vimos. Nos comeos, no havia tal procisso. Mas sempre, depois das Av-Marias, se tocava a campainha, e todos em suas casas, em orao comum, louvavam ao Senhor: Como ouvem o sinal, comeam todos a dizer as oraes como lhes est ordenado, e por certo ouvi-lo e v-lo matria de grande consolao, ou-vindo o Senhor, em tantas partes e de tantos, ser louvado 3.

    O sistema da catequese modificou-se no andar dos tempos. Em 1583, a doutrina da tarde era reservada aos que j tinham sido admitidos ou se preparavam para a comunho sacramen-tal 4. Por ste tempo, em tdas as Aldeias, escreve Cardim grandes e pequenos ouvem missa muito cedo cada dia antes de irem a seus servios, e, antes e depois da missa, lhes ensinam as oraes em portugus e na lngua, e, tarde, so instrudos no dilogo da f, confisso e comunho, Alm da catequese em comum, havia a instruo individual ou in extremis; d uma ideia de como se fazi" a converso, a do velho de 130 anos, contada por Anchieta 5.

    Quando o ncleo das Aldeias era constitudo principalmente por ndios, criados j com os Padres (em 1558, os ndios e ndias

    1. Cardim, Tratados, 317. 2. CA, 467. Voltavam, esclarece Rui Pereira, dos seus trabalhos uma ou

    duas horas depois do meio dia. CA, 261. 3. CA, 300-301 ; 196-197. 4. Discurso das Aldeias, 381. 5. Anch,, Cartas, 190. /

  • TMO II LIVRO I CAPTULO I 2 3 3

    com menos de 14 anos, na Aldeia de S. Paulo da Baa, estavam todos baptizados) \ a catequese dos adultos era feita pelos pr-prios filhos dos ndios, que recordavam aos pais o que tinham aprendido. Compreende-se, contudo, sem esforo, que esta cate-quese no fsse rigorosa. Mais eficaz era a doutrina com prti-cas, que os Padres faziam expressamente para les, todos os domingos e dias santos2 .

    A catequese dominical vem desde os tempos de Nbrega. Na Aldeia de S. Paulo da Baa, os ndios tinham, aos domingos e dias santos de guarda, missa e prgao na sua lngua; e de contnuo h tanta gente, que no cabe na igreja, psto-que grande; ali se toma conta dos que faltam ou dos que se ausen-tam, e lhes fazem uma estao 3.

    Quando por acaso no havia missa na Aldeia, iam longe, s vezes quatro lguas, para a ouvir4 . Na igreja do Colgio da Baa tambm havia missa para os que trabalhavam na cidade, e, em 1572, comearam a ter doutrina particular, alm da que di-riamente havia, quando se reuniam para comer 5.

    Dentro da igreja, os ndios, mesmo em quantidade, estavam to calados, como se no houvesse seno uma s pessoa 6.

    Quando tinham que pedir alguma coisa, iam primeiro igreja fazer orao, para que o Padre no lhes negasse o que queriam, alegando que j falaram com Deus 7. E assim como os primeiros cristos chamavam prgao do Evangelho a Boa-Nova, os ndios do Brasil, trasladando o mesmo pensamento para o seu pragmatismo ngnito, diziam, ao ouvir a prgao crist, que ouviam a Vida Boa 8.

    Nas Aldeias dos ndios, os Padres da Companhia desempe-nhavam o mnus de proco com todas as suas atribuies, mesmo quanto a casamentos e enterros9 ; tanto mais que, j para o fim

    1. CA, 204. Vasc., Anchieta, 162. 3. Nbr., CB, 179; Franco, Imagem de Coimbra, II, 167. 4. Carta de Caxa, 2 de Dezembro de 1573, BNL, fg, 4532, f. 42. 5. Fund. de la Baya, 20 (94). 6. Bras. 15, 284; CB, 78. * 7. Carta de Martim da Rocha, Setembro de 1572, BNL, fg, 4532, f. 35. 8. Pero Rodrigues, Anchieta, em Annaes, XXIX, 239. 9. Bras. 2, 23v, 24; Fund. de la Baya, 9v, 11 (84), 26-28(101-103).

  • 3 4 HISTRIA DA COMPANHIA DE JESUS NO BRASIL

    do sculo, em 1593, qus no havia trabalho de converso nas Aldeias, por falta de gentio; e, a no ser com os que iam buscar ao serto, era com os ndios convertidos, que les se ocupavam Para estmulo, distribuam-se prmios aos mais aproveitados, obje-ctos que fomentassem a piedade, bentinhos, relicrios, Agnus Dei, etc., e tambm utenslios para a vida mat-erial. Belarte, prestando certas contas ao acabar o Provincialato, tem esta verba : Res-gate de facas, anzis, contas, espelhos outras coisas desta sorte, que levei por duas vezes e distribu pelas Aldeias das Capi-tanias do $ul, dando prmios aos ndios e ndias, que sabiam melhor a doutrina crist, que montaram mais doze mil ris 2.

    A catequese dos ndios do Brasil ganhou renome. Conta Vas-concelos, que o Bispo de Cabo Verde pediu ao B. Incio de Aze-vedo, lhe desse por escrito o mtodo, que se usava no Brasil, para fazer o mesmo com os negros de sua vasta diocese africana3 .

    Com ste sistema, cujas aplicaes concretas se distribuem por diversos captulos, os frutos foram, na verdade, grandes. Quircio Caxa, apontando-os a Roma, comparava-os com os do Japo, onde ento os missionrios de Portugal operavam mara-vilhas, chamando a ateno do mundo; e comentava que no Japo podia haver mais fausto e pompa; no Brasil havia mais conhecimento de Deus, mais pureza de alma e fervor no cum-primento de sua Divina Vontade 4.

    1. O Padre Yate, residente na Aldeia de Santo Antnio, deixou apontado o que fz no espao de 12 anos (1581-1592): Baptismos, 700; Confisses, 27.400; Comunhes, 16.700; Casamentos, 580; Enterros, 1.560; Extremaunes, 520. Diz que no h mais baptismos, porque falta gentio para converter (Yate, Calendar of State Papers, 354).

    2. Bras. 3(2), 358. 3. Vasc., Crti., III, 89. Guilherme Moreau, analisando as razes do pouco

    fruto nas misses da Guiana Francesa, indica o no se ter feito como nas misses do Brasil, colocando os ndios num tat qu'ils puissent' amer, qui leur paraisse meilleur, et plus raisonnable que celui qu'ils ont quitt ; dans lequel ils puissent subsister plus commodment, plus tranquillement, plus chrtiennement sans en tre dtourns ou par les reproches et railleries des autres Indiens obstins ou par 1'exemple de leur indolence et de leur libertinage Guillaume Moreau, Mission de Cayenne et de la GuyMie Franoise (Paris 1857) 526.

    4. Carta de Caxa, 16 de dezembro de 1574' Bras. 15, 256.

  • C A P T U L O I I

    Luta contra a antropofagia

    1 A antropof .igia dos ndios; 2 Combate e vitria.

    1. Os ndios do Brasil comiam carne humana, chegada dos Jesutas. Ora, chegarem e iniciarem o combate antropofa-gia foi tudo um, pelo obstculo que era converso e pela desordem natural que tal uso significava. O homem o fim sen-svel das coisas : com-lo era fazer dle um meio. Esta inverso de fins e de meios a condenao da antropofagia. Pouco im-porta o mbil com que se faz. De-certo no era como regime alimentar: tinha carcter diferente, quer guerreiro quer reli-gioso. Alguns autores modernos, que escrevem sbre as religies primitivas, inclinados a ver manifestaes religiosas nos usos mais comuns e salientes, parecem dar, antropofagia dos ind-genas brasileiros, sentido exclusivamente religioso, De-facto, a cerimnia da matana, em pblico terreiro, era pretexto para grandes ajuntamentos e festas com costumes, sempre idnticos, no espao e no tempo, Daqui a denominao, que alguns lhe do, de antropofagia ritual1.

    Mas no ter, anterior a isso, e primitivamen