hirochina e nagasaki - destruição psicológica

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A Destruição de Hiroshima Psicológica e Nagasaki J. BRONOWSKI Junho de 1968 Uma resenha de Death in Life: Sur-. vivors 01 Hiroshima, de Robert 'Jay Lifton. New York: Random House, 1968. A SEGUNDA GRANDE GUERRA co- rTi~çou no verão de 1939, com um pacto entre Hitler e Stalin, e termi- DOU seis anos depois com o lança- mento de duas bombas atômicas sobre o Japão. Na época, para quase todos o segundo acontecimento foi tão ines- perado e chocante quanto o primeiro. Evidentemente, a imensa tarefa de inventar, construir e montar a bomba atômica fora o segredo mais bem guardado da guerra. E para quase todas as pessoas, cientistas e não- -cientistas, revelou-se também o mais horrível dos segredos. Depois' 'dos primeiros dias de espanto triunfante, uma espécie de tremor passou pelo mundo, uma -onda de medo e revolta reunidos, que aproximadamente vinte anos apagaram em nossa lembrança. Na época, quase todos tinham um sentimento de culpa com relação à bomba atômica, e embora a maioria das pessoas passasse a culpar a ciên- cia, essa desculpa desesperada era também um sinal de penitência. Vinte anos é período muito longo para sofrimento, mas o tempo, em vez de curar, embrutece. As bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki tornaram-se armas modestas no ar- senal tático, e as pessoas lêem, com resignada indiferença, a notícia de que bombas de hidrogênio, mais de cem vezes mais poderosas, são trans- portadas por aviões, durante 24 horas do dia. Nessa maré vazante da cons- ciência, em que deixamos que os go- vernos discutam a respeito de desar- mamento, perdeu-se o impulso moral de 1945. Poderíamos supor que o sentimento de culpa tinha desapare- cido sem deixar um traço, se o Pro- fessor Lifton não descobrisse que ainda persegue (imaginem!) os sobre- viventes de Hiroshima. A descoberta dá a este livro calmo e penetrante uma espécie de ironia cósmica que, mais do que qualquer explosão de virtude, deve despertar-nos de nosso sonambulismo. Depois da guerra, o Professor Lif- . ton passou quatro anos no Japão - embora nesse período viajasse várias vezes de lá para outros países - antes de visitar Hiroshima. Nos dois últimos desses anos, tinha trabalhado num estudo psicológico e histórico da juventude japonesa. encontrou (entre outras coisas) o que todos sabemos e decidimos esquecer: "A grande maioria não tinha lem- brança da guerra ou tinha apenas vagas recordações dela. Mas o que se tornava claro, quando explorava com eles seu sentimento de auto- -identidade e o sentimento sobre o mundo em que viviam, era a extraor- dinária significação, para eles, ainda que isso se exprimisse apenas de ma- neira indireta, do fato de apenas o Japão ter sofrido ataque de bombas atômicas". Por isso, no início de 1962 decidiu ficar mais seis meses, e passá-Ias em Hiroshima, além de ficar alguns dias em Nagasaki. Seu método de estudo era entre- vistar 75 pessoas, usualmente em dois períodos de duas horas com cada uma delas. As entrevistas eram realizadas em japonês, através de um pesquisa- dor assistente, embora o Professor Lifton fale razoavelmente essa língua. Quarenta e dois dos entrevistados fo- ram escolhidos por sua proeminência reconhecida e bem formulada em questões de bomba atômica; os outros 33 foram retirados, ao acaso, da lista oficial. Todos eram hibakusha, o que significa que estavam nos limites da cidade quando a bomba foi lançada, entraram na cidade nos 14 dias se- guintes, ou ficaram em contato ínti- mo com vítimas da bomba, ou sua mãe estava num desses grupos, espe- rando o nascimento do entrevistado. Fizeram-se várias estimativas do número de pessoas mortas pelas bom- bas em Hiroshima e Nagasaki. Fi- carei com os números que eu e meus colegas conseguimos na Missão Bri- tânica no Japão, em novembro de 1945. Calculamos que, em Hiroshi- ma, quando a bomba caiu em 6 de agosto, havia uma população de 320 000 pessoas, das quais foram mortas 80000, e que em Nagasaki, a 9 de agosto, havia 260 000 pessoas, das quais foram mortas 40 000. A partir de então morreram muitas pes- soas por causa dos pós-efeitos de ra- diação da bomba atômica. Conside- rando-se essas pessoas e as mortes normais em 20 anos, os dados estão de acordo com o número oficial de hlbakusha atuais, isto é, 160000 de Hiroshima e 130 000 de Nagasaki. As cenas posteriores à queda das bombas foram descritas com lúgubres minúcias por J ohn Hersey - a partir do testemunho dos sobreviventes de Hiroshima - e pelo Dr. Takashi Nagai, testemunha de Nagasaki. To- das as vítimas acreditavam que a bomba tinha explodido diretamente sobre elas. Os que estavam em cam- po aberto foram severamente quei- mados pela faísca, de tal forma que muitas vezes não podiam ser conhe- cidos por suas famílias. (Isso ocorreu com dois sobreviventes estudados pelo Professor Lifton.) Os que estavam dentro de casa ficaram soterrados e, quando conseguiram sair, quase nus, verificaram que estavam cercados por fogo. Todos que podiam caminhar dirigiram-se, em silêncio! entorpecido, para os rios; os feridos foram aban- donados e podiam ser ouvidos, no calor estacionário, a gritar por água.

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Texto sobre as consequências psicológicas da bomba atômica em Hirochima e Nagasaki

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Page 1: Hirochina e Nagasaki - destruição psicológica

A Destruiçãode Hiroshima

Psicológicae Nagasaki

J. BRONOWSKIJunho de 1968

Uma resenha de Death in Life: Sur-.vivors 01 Hiroshima, de Robert 'JayLifton. New York: Random House,1968.

A SEGUNDA GRANDE GUERRA co-rTi~çou no verão de 1939, com umpacto entre Hitler e Stalin, e termi-DOU seis anos depois com o lança-mento de duas bombas atômicas sobreo Japão. Na época, para quase todoso segundo acontecimento foi tão ines-perado e chocante quanto o primeiro.Evidentemente, a imensa tarefa deinventar, construir e montar a bombaatômica fora o segredo mais bemguardado da guerra. E para quasetodas as pessoas, cientistas e não--cientistas, revelou-se também o maishorrível dos segredos. Depois' 'dosprimeiros dias de espanto triunfante,uma espécie de tremor passou pelomundo, uma -onda de medo e revoltareunidos, que aproximadamente vinteanos apagaram em nossa lembrança.Na época, quase todos tinham umsentimento de culpa com relação àbomba atômica, e embora a maioriadas pessoas passasse a culpar a ciên-cia, essa desculpa desesperada eratambém um sinal de penitência.

Vinte anos é período muito longopara sofrimento, mas o tempo, emvez de curar, embrutece. As bombasque destruíram Hiroshima e Nagasakitornaram-se armas modestas no ar-senal tático, e as pessoas lêem, comresignada indiferença, a notícia deque bombas de hidrogênio, mais decem vezes mais poderosas, são trans-portadas por aviões, durante 24 horasdo dia. Nessa maré vazante da cons-ciência, em que deixamos que os go-vernos discutam a respeito de desar-mamento, perdeu-se o impulso moralde 1945. Poderíamos supor que osentimento de culpa tinha desapare-cido sem deixar um traço, se o Pro-

fessor Lifton não descobrisse queainda persegue (imaginem!) os sobre-viventes de Hiroshima. A descobertadá a este livro calmo e penetranteuma espécie de ironia cósmica que,mais do que qualquer explosão devirtude, deve despertar-nos de nossosonambulismo.

Depois da guerra, o Professor Lif-. ton passou quatro anos no Japão -embora nesse período viajasse váriasvezes de lá para outros países -antes de visitar Hiroshima. Nos doisúltimos desses anos, tinha trabalhadonum estudo psicológico e histórico dajuventude japonesa. Aí encontrou(entre outras coisas) o que todossabemos e decidimos esquecer:

"A grande maioria não tinha lem-brança da guerra ou tinha apenasvagas recordações dela. Mas o quese tornava claro, quando exploravacom eles seu sentimento de auto--identidade e o sentimento sobre omundo em que viviam, era a extraor-dinária significação, para eles, aindaque isso se exprimisse apenas de ma-neira indireta, do fato de apenas oJapão ter sofrido ataque de bombasatômicas".

Por isso, no início de 1962 decidiuficar mais seis meses, e passá-Ias emHiroshima, além de ficar alguns diasem Nagasaki.

Seu método de estudo era entre-vistar 75 pessoas, usualmente em doisperíodos de duas horas com cada umadelas. As entrevistas eram realizadasem japonês, através de um pesquisa-dor assistente, embora o ProfessorLifton fale razoavelmente essa língua.Quarenta e dois dos entrevistados fo-ram escolhidos por sua proeminênciareconhecida e bem formulada emquestões de bomba atômica; os outros33 foram retirados, ao acaso, da listaoficial. Todos eram hibakusha, o quesignifica que estavam nos limites dacidade quando a bomba foi lançada,

entraram na cidade nos 14 dias se-guintes, ou ficaram em contato ínti-mo com vítimas da bomba, ou suamãe estava num desses grupos, espe-rando o nascimento do entrevistado.

Fizeram-se várias estimativas donúmero de pessoas mortas pelas bom-bas em Hiroshima e Nagasaki. Fi-carei com os números que eu e meuscolegas conseguimos na Missão Bri-tânica no Japão, em novembro de1945. Calculamos que, em Hiroshi-ma, quando a bomba caiu em 6 deagosto, havia uma população de320 000 pessoas, das quais forammortas 80000, e que em Nagasaki,a 9 de agosto, havia 260 000 pessoas,das quais foram mortas 40 000. Apartir de então morreram muitas pes-soas por causa dos pós-efeitos de ra-diação da bomba atômica. Conside-rando-se essas pessoas e as mortesnormais em 20 anos, os dados estãode acordo com o número oficial dehlbakusha atuais, isto é, 160000 deHiroshima e 130 000 de Nagasaki.

As cenas posteriores à queda dasbombas foram descritas com lúgubresminúcias por John Hersey - a partirdo testemunho dos sobreviventes deHiroshima - e pelo Dr. TakashiNagai, testemunha de Nagasaki. To-das as vítimas acreditavam que abomba tinha explodido diretamentesobre elas. Os que estavam em cam-po aberto foram severamente quei-mados pela faísca, de tal forma quemuitas vezes não podiam ser conhe-cidos por suas famílias. (Isso ocorreucom dois sobreviventes estudados peloProfessor Lifton.) Os que estavamdentro de casa ficaram soterrados e,quando conseguiram sair, quase nus,verificaram que estavam cercados porfogo. Todos que podiam caminhardirigiram-se, em silêncio! entorpecido,para os rios; os feridos foram aban-donados e podiam ser ouvidos, nocalor estacionário, a gritar por água.

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o Professor Lifton cita uma de suasentrevistadas. que estava em idade es-cotar na época:

Senti meu corpo tão quente quepensei que saltaria no rio ( ... ) Oprcfessor de outra sala, cuja camisaestava pegando fogo, saltou no rio.E quando eu estava prestes a me lan-çar também no rio, a professora denOSSa classe também se aproximou ese Jogou no rio. Como sempre tí-nhamos procurado orientação comnossos professores, queríamos pediráUJÚJ!O a eles. Mas também eles es-tavam feridos e sofriam a mesma dorque nós'.

Outro dos sobreviventes do Pro-fessor Lifton, um professor de his-tória, viu a destruição quando estavanum morro que dominava a cidade:

"Esta experiência, a de olhar pa "i

baixo e verificar que nada restava deHiroshima - foi tão chocante queeu simplesmente não consigo exprimiro que senti. ( ... ) Hiroshima nãoexistia - foi principalmente isso quevi - Hiroshima simplesmente nãoexistia".

Ma, os que estavam na cidade vi-ram maior destruição na destruiçãoda consciência humana, de formaque, para eles, os refugiados pareciam"pessoas que andavam no reino dossonhos".

"Os que podiam andavam silen-ciosamente para os subúrbios nosmorros distantes, com seus espíritosdestruídos, sem qualquer' iniciativaprópria. Quando Ihes perguntavamde onde tinham vindo, indicavam acidade e diziam: 'Esse lado'. Quan-do Ihes perguntavam para onde iam,indicavam para longe da cidade e di-ziam: 'Esse lado'. Estavam tãodestruidos e confusos que se movi-mentavam e comportavam como au-tômatos."

Isso basta para lembrar o que sou-bemos e nos esforçamos por afastarde nosso pensamento. O que foi que20 anos fizeram para essas 290 000pessoas que estavam lá e não podiamtão facilmente afastar da lembrançao Que viram e o Que fizeram? Existerealmente um tema único em suasvidas? Estão ainda dominados pelasbombas atômicas?

E. certo que Hiroshima se tornoua cidade da bomba atômica. Tem umParque da Paz, um edifício erguidoem memória dos que morreram, ummonumento das crianças e um Museuda Paz. Existe um cenotáfio com ainscrição: "Descansa em paz. O erronão será repetido". A palavra "erro"é suficientemente ambígua para fa-zer com que muitos cidadãos sintamque estão sendo condenados pelabomba. (Esta é uma queixa comum

A DESTRUIÇÃO PSICOLóGICA DE HIROSHIMA E NAGASAJCI 25

entre os hibakusha, o que exprimemcom a seguinte sentença irônica: "Eume desculpo por ter sido uma vítimada bomba atômica".) Um edifíciode concreto reforçado, colocadoquase em baixo da bomba, resistiutão bem à explosão que foi conser-vado como Mansão da Paz, emboraalguns sobreviventes ainda não se sin-tam bem quando o vêem.

Mas esses solenes memento morisão colocados na sombra por outrolocal de exibição da indústria da paz,que é o distrito de divertimentos deHiroshima. Em nenhum outro lugardo Japão existe tal esplendor de ba-res, cafés, restaurantes, casas de guei-xas, salões de dança e o que oProfessor Lifton denomina, delicada-mente, "locais provisórios para váriostipos de atividade sexual ilícita". OsQue viram o filme Hiroshima, MonAmour lembram certamente o con-traste entre os dois aspectos da novaHiroshirna, apesar da estranha supo-sição de que são inseparáveis. E naverdade o são: a bomba está ligadaàs vidas dos que sobreviveram a ela- seja quando dirigem um desfilede crianças, seja quando exibem suascicatrizes quelóides num bordei deHiroshirna, Os líderes hibakusha po-dem encolerizar-se com os que "ven-dem a bomba", mas sua cólera étambém uma forma de auto-acusação;não podem impedir isso, precisam ex-plorar a bomba como qualquer ven-dedor aleijado de cartões postais.

Os hibakush a não conseguiram fu-gir à arnbivalência que sempre per-segue a vítima de desgraça. Gosta-riam Que os outros os tratass-em comose fossem normais, mas ao mesmotempo sentem-se magoados se não re-cebem uma compreensão especial. Oefeito dessas exigências contraditóriasé assustar os Que não foram expostosàs bombas, dê forma que os sobre-viventes têm dificuldade para acharempregos, para casar e até para con-viver com os outros. Há vinte anosatrás seus vizinhos tinham medo por-Que os hibakusha estavam ainda psi-cologicamente atordoados, ficavamfreqüentemente doentes e (quemsabe?) poderiam ter filhos monstruo-sos. Mas hoje a alienação tem umaíndole diversa, e apenas afasta oshibakusha como pessoas que têm al-guma outra coisa em suas mentes.

O claro dia de agosto de 1945domina a mente do sobreviventecomo uma experiência diversa dequalquer outra, que totalmente afas-tou sua ordenação íntima do universo.

"Nesse dia, levantara-se com a con-fiança, construída cuidadosamentedurante os anos de desenvolvimento,de que as coisas ocorreriam de uma

. forma e não de outra - que os pro-fessores ajudam você, QUe a cidadeé uma casa sólida e que as pessoasagem em conjunto porque assim de-cidem fazê-lo. Ao cair da noite, esseesquema de leis não-escritas, que ti-nham parecido as leis da natureza,estavam separadas em pedaços semsentido - o professor tinha saltadopara dentro do rio, Hirosbima nãoexistia e seus habitantes se compor-tavam ..como autômatos. Assim como,às vezes, um grande homem tem aordem do mundo a ele revelada numavisão (por exemplo, René Descartesem 10 de novembro de 1619, BlaisePascal em 23 de novembro de 1654),também os homens e as mulheres co-muns de Hiroshima tiveram nesse diauma visão direta de uma anti-reve-Iação: o fracasso da ordem humanano mundo. O Professor Lifton a issodenomina "a substituição da ordemnatural da vida e da morte pela or-dem não-natural de vida dominadapela morte". Por isso, acentua "a 'marca indelével da imersão na mor-te"; eu preferiria falar na imersãofatal no colapso dos valores humanos.Mas, em princípio, eu e o ProfessorLifton estamos de acordo, e o quedescobre é o mesmo desaparecimentoda confiança, a destruição das raizesdo comportamento - e que eu jálá encontrara três meses depois da ex-plosão da bomba.

Evidentemente, de alguma formaas raízes precisam curar-se; os delin-qüentes desaparecem da estação deHiroshima, as viúvas mudam para odistrito de divertimentos, e os homensque perderam a confiança pedem asuas firmas sem preocupação exage-rada, que sejam transferidos para em-pregos menos importantes. Mas umaferida psicológica curada continua aser uma ferida, um tipo de cicatrizda bomba ou quelóide da personali-dade, e que exprime sob outra formaa ambigüidade do hibakusha. Foramvítimas de um desastre fabricado poroutros; apesar disso, seu sentimentode fracasso é mais angustiado do queesperamos, e vemos que existe outraferida abaixo da cicatriz. A vítimanão foi apenas vítima; também foitestemunha e (por sua inação) per-mitiu Que as vítimas fossem abando-nadas .. Todo sobrevivente tem lem-branças daq ueles a que não ajuãou:

"Ouvi muitas vozes que pediam so-corro, vozes que chamavam seus pais,vozes de mulheres e crianças. ( ... )Senti que era errado não ajudá-Ias,mas estávamos tão ocupados em fu-gir, que os deixamos".

"Sua cabeça estava coberta de san-gue, e quando nos viu, chamou-nos.( ... ) 'Yano (disse à minha filha),

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26 I. CIENTISTAS E SOCIEDADE

por favor leve meu filho com vo-ê.Por favor, leve-o para o hospital'.( ... ) Ouvi dizer depois que ele so-breviveu mas que o menino mor-reu. ( ) E quando penso que nãoo ajudei, apesar de seu pedido, sóposso dizer que isso t uma coisalamentável" .

Como as ligações de família sãomuito fortes no Japão, as lembrançassão muito dolorosas naqueles que sen-tem ter abandonado seus pais. Porexemplo, uma menina que na épocatinha 14 anos sente um grande re-morso pela morte de seu pai, emboraapenas se queixasse do mau cheirodas feridas.

O quelóide na personalidade do so-brevivente de Hiroshima e Nagasakié o sentimento de culpa. "Eu medesculpo por ter sido uma vítima dabomba atômica" não é afinal de con-tas uma piada, se entendemos a frasecom o sentido de "Eu me desculpopor ter sobrevivido à bomba atômi-ca". Mesmo quando a vítima estavaimpotente no momento e nada po-deria ter feito para ajudar, fica per-turbada por dúvida e um sentimentode inadequação. À sua volta, as pes-soas morriam; por que merecia viver?Será que esse ato de hybris não atin-girá seus filhos? Um sobrevivente de< .agasaki disse ao Professor Lifton:"Os que morreram estão mortos, masos vivos precisam viver com esse som-brio sentimento". Não é possívelafastar o sentimento dividido entre odestino pessoal e o destino dos ou-tros, entre sofrimento e medo, entrepiedade e mudança violenta. Essesentimento é simbolizado pela lem-brança que ocorre a um hibakushanuma festa japonesa:

"A cor do quelóide de meu irmão- a cor de suas queimaduras - semistura. com meu sentimento... oque vi diretamente - isto é, a ma-neira pela qual morreu - é o quelembro. (,.,) A cor era semelhanteà de lula seca quando cozida - porisso penso nele sempre que vejo lulaseca. (.,.) Tenho,.. um sentimen-to de solidão".

O Professor Lifton é magistral emsua análise das ambigüidades que tor-nam o hibakusha tão perturbador emsi mesmo e tão perturbado r para nós.Escreve sem jargão e sem bravatas,com um ar pessoal de cortesia queconvida a concordância do leitor, masque não a supõe. É evidentementedifícil convencer os cientistas de queexista justificativa para análises psico-lógicas que não dêem respostas úni-cas, (É a queixa de Karl Popperquanto a Freud e Adler.) Apesardisso, penso que o Professor Liftonconvencerá até um cientista cético de

que a natureza da tragédia consisteem dividir a personalidade humana,lançando-a contra si mesma, e queos sobreviventes de Hiroshima repre-sentam simbolicamente essa divisãoem seu sentimento de culpa.

O hibakusha ressente-se de seu sen-timento de culpa, embora não possasclucioná-Io; está infeliz como vítimae como sobrevivente. A luta interiorentre o papel de vítima e o de sobre-vivente se apresenta de maneira muitoclara nos japoneses, e isso por duasrazões. Em primeiro lugar, são edu-cados num rígido código de famíliae de adequação social, de maneiraque a destruição do comportamentoem Hiroshirna e Nagasaki foi muitoviolenta para eles. Em segundo lugar,os japoneses dão muita atenção aossentidos simbólicos, de forma que adivisão nos sentimentos do hibakushaé constantemente reforçada pela am-bivalência nos símbolos que os expri-mem. (Por exemplo, os r idadãcs deHiroshima são torcedores fanáticos desua equipe de beisebol, mas esta ge-ralmente fica em último ;;.:;?r nocampeonato. )

Por, isso, era natural que o Pro-fessor Lifton tentasse aplicar seu temaa outro conjunto de sobreviventesnão-japoneses. Em seu último capí-tulo, intitulado "O Sobrevivente", fazalgumas comparações com os homensque passaram por campos de concen-tração dos nazistas e conseguiram so-breviver. O que aí diz vale a penaser lido, e é evidentemente coerente.com seus resultados obtidos no Japão.No entanto, como nesse caso preci-sava obter seus dados de segundamão, 'através dos trabalhos de outraspessoas, sentimos falta da força delinguagem direta, que torna tão con-vincente o resto do livro. Podemosver que aqueles que sobreviveram aoscampos de concentração são tão per-turbados por lembranças de culpaquanto os hibakusha, mas a análisese tornou mais formal, e no argumen-to existe um pequeno sinal de tesede sala de aula.

Quanto ao resto, fiquei convencidopelo grande livro do Professor Lifton,e apenas num ponto discordo de suaanálise. Como o mostra a escolhado título, está preocupado com a mor-te como a causa visível e o símbolodo sentimento de culpa do sobrevi-vente, e na realidade emprega a frase"culpa da morte" para indicar isso.No início do livro diz: "No livro,usarei a expressão 'culpa de morte'para abranger todas as formas deautocondenação associada ao fatode, literal ou simbolicamente, ver amorte".

Ora, é verdade Que as vitimas dedesastres provocados pelo homem, ede que somos espectadores, viram amorte e a agonia. Citei cs númerosde vítimas em Hiroshima e Nagasaki- e, quanto aos campos de concen-tração, "uma pessoa que aceitasse in-tegralmente te dos os padrões éticose morais de comportamento da vidacivil, e que entrasse de manhã numcampo de concentração, estaria mortano fim da tarde". Apesar disso, pen-so que o sofrimento dos sobreviventesera causado, mais profundamente ain-da do que pelo encontro com a mor-te, pela dissolução dos "padrões mo-rais e éticos de comportamento davida civil" que destruía sua orien-tação.

É certo que o medo da morte (ea maneira imprevisível pela qual amorte atingiria alguém em Hiroshimae Auschwitz) é o vírus infecciosoque começa a dissolução social. Noentanto, a menina de Hiroshima quesente remorso pela morte do pai nãoo matou; sente-se culpada por não oter socorrido, Pense-se em um doshcrnens sobre quem escrevi em TheFace o] Violence, por exempló,.Joseph Wiener, professor de DireitoInternacional na Universidade deViena, Que os nazistas enlouquecerame encarregaram da criação de porcos.Denunciava prisioneiros que rouba-vam alimento do comedouro dos por-cos; no entanto, não foi a presençada morte que o enlouqueceu mas(como o sabia em seus momentos desaúde mental) a destruição da digni-dade humana na sua pessoa. ~.~.,lªi~~_~Y_~r..~.c~1!L mostrar~amente,_qu,e.o que desequilibra oeu_º-ª_.Yi1iJ]ta .•._,deiXãildci-a desorientá- " ~~ão.....é..-urn_a -diyi§ãõ interior ~ntre 1Yida e mOJte, mas uma divisão entre,ela e-.a.....Q;:(ferilSoCíáC Désd~' i "in-~ia aprenaê-U-a~-;;locar suas exi-gências pessoais em segundo lugar,diante das exigências da sociedade(este é meu tema em The Face oiViolence) e, repentinamente, não éa vida, mas a sociedade que desa-parece; parece andar à vontade naanarquia com que antes sonhava.

Deixei para o fim a pergunta quepode ser a mais importante para mui-tos leitores: o que é que os japonesespensam dos norte-americanos que,afinal de contas, lançaram as bom-bas atômicas? Achei que essa era aquestão mais difícil para resolver hávinte e tantos anos atrás, e pareceque hoje a situação não mudou, Osjapones-es poucas vezes exprimem di-retamente o ressentimento; talvez es-tivessem muito atordoados ou talvezfossem muito delicados. Em suamaior parte, pareciam ter ciência de

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c ,.,

\i que, antecipadamente, sabíamos tanto

. I a respeito da bomba quanto eles; um\ ~Io~ dois professor~ me ~~lara~ iro-"li nicarnente a respeito do expenmen-:\to", e a maior revolta que o ProfessorLifton encontrou foi o fato de teremsido tratados como cobaias.

Muitos japoneses pensam que fo-ram atacados como um inimigo bran-co não o teria sido, como menos doque seres humanos; alguns podem ter

. o as - guras de japoneses apre-sentadas como animais nocivos (comoas - '" ras de judeus apresentadas pe-

azistas) que eram comuns nosos Unidos durante a guerra.

•..agasaki havia o boato, quando~ esti e de que a bomba atômica

eimava apenas pessoas com pelemais escura; isso não era verdade,mas dava a correta pitada de fatocientífico ao prato racial.

A DESTRUIÇÃO PSICOLóGICA DE HIROSHIMA E NAGASAKI 27

No entanto, o sentimento predo-minante era, e é, que os norte-ameri-canos são simplesmente insensíveis.O Professor Lifton apresenta muitosexemplos para justificar isso: a cen-sura inicial, a exibição de poder eriqueza, os exames clínicos e a 0-lítica de estudar as vítimas sem tra-

iá:-las. Podemos imaginar o que pen-sariam os japoneses se a primeirabomba tivesse sido lançada sobreKyoto, como o desejava o grupo dogeneral Groves. Na época, inventeimeu boato - que não é verdadeiro,mas que gostaria de divulgar agorapelo Scieruific American: uma pessoado grupo de bombardeio ouviu dizerque isso seria como bombardear Flo-rença. E ele perguntou: Florença doquê?

A respeito do futuro, nada há adizer que ainda não tenha sido dito.Como o demonstra .o livro do Pro-

fessor Lifton, precisamos compreen-der que as armas atômicas não criam .}vítimas, mas caos - um caos dura-douro dos valores humanos. Os hiba- 'kusha são perseguidos e incapacitadospor uma vergonha que não é sua,e que tem agora 20 anos - e omesmo ocorre conosco. Com eles,temos uma ambivalência entre eu esociedade, nação e humanidade, e quenos impede de chegar a qualquer pro-grama de conduta certa. E o senti-mento de culpa decorrente de verdois caminhos é mais profundo, poisnos impede de cristalizar qualquerprincípio de conduta certa. A últimamensagem do Professor Lifton é quedevemos aprender aquilo que deno-mina a sabedoria do sobrevivente, ehoje ninguém pode duvidar que essasabedoria mostra que apenas oshomens de princípios sobrevivem Ín-tegros.