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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO HÉRCULES E A PERSONIFICAÇÃO DO JUIZ IDEAL NA TEORIA DE RONALD DWORKIN DANIELA COLETTI LAURENTINO Itajaí/SC, Novembro de 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

HÉRCULES E A PERSONIFICAÇÃO DO JUIZ IDEAL NA

TEORIA DE RONALD DWORKIN

DANIELA COLETTI LAURENTINO

Itajaí/SC, Novembro de 2008

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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ – UNIVALI CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E JURÍDICAS - CEJURPS CURSO DE DIREITO

HÉRCULES E A PERSONIFICAÇÃO DO JUIZ IDEAL NA TEORIA DE RONALD DWORKIN

DANIELA COLETTI LAURENTINO

Monografia submetida à Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI, como

requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientadora: Professora Dra. Cláudia Rosane Roesler

Itajaí, Novembro de 2008

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AGRADECIMENTO

Agradeço sinceramente à minha orientadora, Professora Dra. Cláudia Roesler, por ser muito

mais que uma orientadora, mas uma amiga e uma inspiração, pelo apoio e confiança nessa

caminhada. À minha colega e grande amiga, Sheila Sens, por me apresentar de um modo todo especial a Filosofia do Direito e por estar ao meu

lado em todos os momentos. Ao meu tio Celso Coletti, por me ensinar que “‘i’ sem pingo não é ‘i’”

e por sempre acreditar em mim, me encorajando a descobrir o que é o Direito, e agradeço de forma especial à toda minha família, por ser o meu pilar

de sustentação quando mais precisei, muito obrigada.

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DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu avô Albino de Campos Coletti (in memorian), por ser um

exemplo e inspiração em todos os sentidos da vida. À minha mãe, Cleuci Grando Coletti, minha

heroína, em que a escolha de tal designação dispensa mais palavras e ao meu companheiro

Alessandro Prado, meu amigo e grande amor, por me sustentar em momentos em que precisei e

simplesmente por estar ao meu lado.

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TERMO DE ISENÇÃO DE RESPONSABILIDADE

Declaro, para todos os fins de direito, que assumo total responsabilidade pelo

aporte ideológico conferido ao presente trabalho, isentando a Universidade do

Vale do Itajaí, a coordenação do Curso de Direito, a Banca Examinadora e o

Orientador de toda e qualquer responsabilidade acerca do mesmo.

Itajaí, Novembro de 2008

Daniela Coletti Laurentino Graduando

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PÁGINA DE APROVAÇÃO

A presente monografia de conclusão do Curso de Direito da Universidade do Vale

do Itajaí – UNIVALI, elaborada pela graduanda Daniela Coletti Laurentino, sob o

título Hércules e a Personificação do Juiz Ideal na Teoria de Ronald Dworkin, foi

submetida em 17 de Novembro de 2008 à banca examinadora composta pelos

seguintes professores: Dra. Claudia Rosane Roesler (Presidente da banca), Msc.

Roseana Maria Alencar Araújo (Examinadora), e aprovada com a nota [Nota]

([nota Extenso]).

Itajaí/SC, Novembro de 2008

Cláudia Rosane Roesler Orientadora e Presidente da Banca

Professor Msc. Antonio Augusto Lapa Coordenação da Monografia

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ROL DE CATEGORIAS

Rol de categorias que a Autora considera estratégicas à

compreensão do seu trabalho, com seus respectivos conceitos operacionais.

Hércules

“(...) um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o

direito como integridade1”. “Ele é um juiz criterioso e metódico. Começa por

selecionar diversas hipóteses para corresponderem à melhor interpretação dos

casos precedentes, mesmo antes de tê-los lido2”.

Direito como integridade para Dworkin.

“O direito como integridade é (...) tanto o produto da interpretação abrangente da

prática jurídica quanto sua fonte de inspiração. O programa que apresenta aos

juízes que decidem casos difíceis é essencialmente, não apenas contingente,

interpretativo; o direito como integridade pede-lhes que continuem interpretando o

mesmo material que ele próprio afirma ter interpretado com sucesso. Oferece-se

como a continuidade – e como origem – das interpretações mais detalhadas que

recomenda3”

Princípio

“Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá

promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada

desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra

dimensão da moralidade4”.

Regras jurídicas

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins

Fontes, 2007, p. 287. 2 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 288. 3 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 273. 4 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Tradução Jefferson Luiz Camargo. São Paulo:

Martins Fontes, 2007, p. 36.

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“As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma

regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece

deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso nada contribui para a decisão5”

Romance em cadeia

“Em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada

romancista da cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo

capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim

por diante. Cada um escreve seu capítulo de modo a criar da melhor maneira

possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a

complexidade ao decidir um caso difícil de direito como integridade6”.

Integridade na deliberação judicial

“(...) requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema

de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto

coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a

descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas. Para nós, a

integridade é uma virtude ao lado da justiça da eqüidade e do devido processo

legal (...)7”.

5 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 39. 6 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 276. 7 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 261

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SUMÁRIO

RESUMO........................................................................................... IX

INTRODUÇÃO ................................................................................... 1

CAPÍTULO 1 ......................................... ............................................. 4

CRÍTICA AO POSITIVISMO............................. .................................. 4

1.1 ANÁLISE E CRÍTICA DA TEORIA POSITIVISTA DE HERB ERT L. A. HART4 1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS................................................................................18 1.3 DISCRICIONARIEDADE ............................. ...................................................26 CAPÍTULO 2 ......................................... ........................................... 34

O DIREITO COMO PRÁTICA INTERPRETATIVA .............. ............. 34

2.1 PROCESSO INTERPRETATIVO....................................................................34 2.2 INTEGRIDADE NO DIREITO..........................................................................46 2.3 INTENÇÃO DO LEGISLADOR......................... ..............................................52 2.4 ROMANCE EM CADEIA.............................. ...................................................59 CAPÍTULO 3 ......................................... ........................................... 64

HÉRCULES E SEU PAPEL COMO JUIZ IDEAL ............... .............. 64

3.1 APRESENTAÇÃO DE HÉRCULES ....................... ........................................64 3.2 O PROCESSO INTERPRETATIVO DE HÉRCULES NO COMMON LAW ....67 3.3 CRÍTICAS AO PROCESSO INTERPRETATIVO DE HÉRCULES .................76 3.4 HÉRCULES E AS LEIS ............................. .....................................................80 3.5 HÉRCULES E OS CASOS CONSTITUCIONAIS ............ ...............................85 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................... ............................... 97

REFERÊNCIA DAS FONTES CITADAS ...................... .................... 99

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RESUMO

A presente monografia procura investigar a elaboração da

teoria do Direito de Ronald Dworkin, analisando como o mesmo torna possível a

aplicação de sua concepção do direito como prática interpretativa, sob o prisma

dos agentes do Poder Judiciário, de forma a tornar possível, através da criação de

um personagem que age nesse campo, analisar todo o processo interpretativo

que leva a uma decisão em casos onde a lei não é suficientemente clara, e indicar

como este processo deveria ser. Essa figura elaborada por Dworkin é um juiz

filósofo chamado Hércules, que assim como a personagem mitológica, possui

capacidade sobre-humana, além de sagacidade e paciência para analisar todas

as possibilidades de um caso concreto que lhe seja apresentado, pautando-se

pelo direito como integridade: o mesmo estuda os precedentes conectando o

passado e o futuro, levando em consideração o histórico legislativo até onde o

mesmo esteja de acordo com a moral convencionada, segundo a justiça e a

equidade. O método utilizado para a realização da pesquisa foi o indutivo, através

de revisão bibliográfica das obras do referido autor, assim como mediante a

análise de trabalhos elaborados por críticos da teoria de Dworkin. A realização da

presente pesquisa procurou demonstrar como um juiz real deveria interpretar o

direito como uma prática interpretativa para proferir suas decisões, aproximando-

se ao máximo da personificação do que deveria ser um juiz ideal, que segundo o

autor em estudo, encontra-se em Hércules.

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INTRODUÇÃO

A presente Monografia tem como objeto a construção do

perfil ideal de um juiz, através de sua personificação no modelo trazido por

Ronald Dworkin – Hércules.

O seu objetivo é encontrar, diante da realidade hodierna –

que exige dos juízes uma postura e um preparo multidisciplinar que não ocorrem

efetivamente nas faculdades de Direito ou nas Escolas de Magistratura – uma

figura, um perfil de um juiz ideal que se paute pela integridade para proferir suas

decisões, em que esses profissionais do direito possam espelhar-se para exercer

a atividade judicativa, procurando incorporar ao máximo a personificação de

Hércules, aproximando-se, desta forma, do que um juiz ideal deveria ser.

Para tanto, principia–se, no Capítulo 1, tratando da teoria

positivista de Herbert L. A. Hart, da qual – através de críticas – Dworkin parte para

construir a sua teoria do Direito. Ronald Dworkin refuta as principais linhas do

positivismo jurídico concebido por Hart, dentre as quais encontram-se a

separação entre o direito e a moral, a existência da regra de reconhecimento e a

inexistência de princípios como parte integrante do Direito.

No Capítulo 2, trata-se do processo interpretativo da teoria

dworkiniana, onde analisam-se diversos pontos de vista deste, como a teoria

interpretativa da intenção do locutor que Dworkin refuta, a explicação do romance

em cadeia, na qual cada juiz deve conceber o caso que se lhe apresenta como

um capítulo de um romance do qual o mesmo deve dar continuidade,

interpretando-o, de forma a demonstrá-lo em sua melhor forma possível,

apresentando-o em sua melhor luz através da integridade no direito.

No Capítulo 3, apresenta-se nosso tema central, seja ele a

personificação do juiz ideal em Hércules, no qual estudamos os métodos

interpretativos utilizados pelo mesmo em diferentes perspectivas, tais como em

casos regidos pelo Common Law ou mesmo por leis, de forma a demonstrar

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como deve proceder um juiz ideal, regido pelo direito integridade na prestação

jurisdicional.

O presente Relatório de Pesquisa se encerra com as

Considerações Finais, nas quais são apresentados pontos conclusivos

destacados, seguidos da estimulação à continuidade dos estudos e das reflexões

sobre a construção de um perfil ideal de juiz.

Para a presente monografia foram levantadas as seguintes

hipóteses:

Hipótese 1: Ronald Dworkin personifica sua figura de juiz

ideal em Hércules, um juiz de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita

o direito como integridade8.

Hipótese 2: Seguindo a linha de pensamento de Dworkin, os

princípios do Direito não só influenciam, mas integram a solução dos casos

difíceis (hard cases), onde hajam lacunas na lei, pois eles enunciam uma razão

para decidir em certo sentido, no entanto, sem obrigar a uma decisão particular,

suprindo as carências da lei positivada.

Hipótese 3: Na discussão sobre precedentes, Dworkin

ressalta a necessidade de se conectar o passado e o futuro, a moral

convencionada, a coerência histórica e a justiça. Indica ainda, que a análise dos

precedentes deve voltar-se para o futuro, utilizando-se a equidade9.

Quanto à Metodologia empregada, registra-se que tanto na

Fase de Investigação10 como na Fase de Tratamento de Dados, foi utilizado o

Método Indutivo11, e o Relatório dos Resultados expresso na presente Monografia

é composto na base lógica Indutiva.

8 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 287. 9 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 274. 10 “[...] momento no qual o Pesquisador busca e recolhe os dados, sob a moldura do Referente

estabelecido[...]. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesqu isa jurídica . 10 ed. Florianópolis: OAB-SC editora, 2007. p. 101. 11 “[...] pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter uma

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Nas diversas fases da Pesquisa, foram acionadas as

Técnicas do Referente12, da Categoria13, do Conceito Operacional14 e da

Pesquisa Bibliográfica15.

percepção ou conclusão geral [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica . p. 104. 12 “[...] explicitação prévia do(s) motivo(s), do(s) objetivo(s) e do produto desejado, delimitando o

alcance temático e de abordagem para a atividade intelectual, especialmente para uma pesquisa.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesqu isa jurídica . p. 62.

13 “[...] palavra ou expressão estratégica à elaboração e/ou à expressão de uma idéia.” PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesqu isa jurídica . p. 31.

14 “[...] uma definição para uma palavra ou expressão, com o desejo de que tal definição seja aceita para os efeitos das idéias que expomos [...]”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesquisa jurídica . p. 45.

15 “Técnica de investigação em livros, repertórios jurisprudenciais e coletâneas legais. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da Pesquisa jurídica e Metodologia da pesqu isa jurídica . p. 239.

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CAPÍTULO 1

CRÍTICA AO POSITIVISMO

1.1 ANÁLISE E CRÍTICA DA TEORIA POSITIVISTA DE HERB ERT L. A. HART

Ronald Dworkin sucedeu Hart em sua cátedra da

Universidade de Oxford e tornou-se seu principal crítico, posto que aquele realiza

o desenvolvimento de sua teoria partindo da crítica que constrói ao positivismo

jurídico, a qual chama de teoria dominante do direito16. Para o autor em estudo, a

versão mais influente do positivismo jurídico é a de H. L. A. Hart, e sobre esta

repousarão as críticas de Dworkin:

Desejo examinar a solidez do positivismo jurídico, especialmente na forma poderosa que lhe foi dada pelo Professor H. L. A. Hart. Resolvi concentrar-me na sua posição não apenas devido a sua clareza e elegância, mas porque neste caso, como em quase todas as áreas da filosofia do direito, o pensamento que visa construir deve começar com um exame das concepções de Hart17.

Desta forma, cabe um aprofundamento na teoria positivista

de Hart, na visão de Ronald Dworkin, para que possamos proceder ao

desenvolvimento da teoria deste. Vera Chueiri afirma que a estrutura da teoria de

Hart repousa principalmente nas seguintes máximas:

a) o direito consiste num conjunto de regras especiais de que faz uso a comunidade – direta ou indiretamente –, no propósito de determinar padrões de conduta cujo descumprimento resulta no dever de reprimir e punir do poder público.

b) este conjunto de regras jurídicas válidas é exaustivo do direito, vale dizer, em casos que nenhuma destas regras seja aplicável, cria-se nova regra ou suplementa-se uma antiga.

16 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. VII. 17 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 27.

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c) a obrigação jurídica consiste na contraprestação de fazer ou não fazer algo, conforme a vontade da regra jurídica válida18.

Cada ponto relacionado pela autora será abordado

oportunamente, mas é possível depreender-se que o positivismo jurídico gira em

torno, basicamente, da noção de regra jurídica, que por sua vez constitui-se em

um padrão de avaliação de condutas, motivando, desta forma, os

comportamentos19.

Hart apresenta em seu trabalho, a separação entre direito e

moral e a chamada regra de reconhecimento (identifica as normas pertencentes

ao conjunto normativo). Dworkin parte exatamente destes pontos, criticando-os,

pois para o mesmo, a regra de reconhecimento não é suficiente para servir como

um critério de identidade do Direito, posto que este aproxima o direito e a moral

através dos princípios.

Nesse sentido, Sgarbi delimita os pontos em que Dworkin

apóia suas críticas ao positivismo desenvolvido por Hart:

[...] os aspectos da separação entre o direito e moral e a necessidade de se identificar de alguma forma as normas pertencentes ao conjunto normativo se mantiveram no trabalho de Hart. De fato, exatamente esses dois pontos serão atacados por Dworkin. E o ataque encontra na idéia de regra de reconhecimento o alvo, pois, demonstrada a insatisfação da regra de reconhecimento como critério de identidade do Direito, Dworkin pontua a aproximação do direito e da moral através dos princípios20.

Dworkin descreve resumidamente a teoria de Hart da

seguinte forma:

18 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos. Curitiba: JM Editora, 1995, p. 71. 19 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 88. 20 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 149.

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[...] os verdadeiros fundamentos do direito encontram-se na aceitação, por parte da comunidade como um todo, de uma regra-mestra fundamental (que ele chamou de regra de reconhecimento) que atribui a pessoas ou grupos específicos a autoridade de criar leis. Assim, as proposições jurídicas não são verdadeiras apenas em virtude da autoridade de pessoas que costumam ser obedecidas, mas, fundamentalmente, em virtude de convenções sociais que representam a aceitação, pela comunidade, de um sistema de regras que outorga a tais indivíduos ou grupos o poder de criar leis válidas21.

Sendo assim, cabe esclarecer a natureza do direito em uma

comunidade na concepção positivista, para posterior aprofundamento na mesma:

[...] um conjunto de regras especiais utilizado direta ou indiretamente pela comunidade com o propósito de determinar qual comportamento será punido ou coagido pelo poder público22.

Tais regras podem ser distinguidas através de um teste de

pedigree, que irá determinar se são válidas ou inválidas, de acordo com a

maneira que foram adotadas ou formuladas e são coexistentes com o “direito”, de

modo que no caso de um sujeito não estar claramente amparado pelas mesmas,

o juiz deverá exercer seu poder discricionário para solucionar o caso em questão.

Tal utilização do “discernimento pessoal” do juiz implica em ir além do direito para

complementar uma regra jurídica já existente ou confeccionar uma nova regra.

Dworkin assinala que

o positivismo jurídico tradicional simplifica o direito descrevendo-o como um conjunto de regras que são válidas ou inválidas com respeito a um critério de pertencimento ou pedigree formal a partir do qual essa validade ou invalidade é mensurada23.

No que se refere ao teste de pedigree, Fernando Salmerón

afirma que o direito de uma comunidade é um conjunto de regras utilizadas com o

intuito de determinar que condutas devem ser permitidas ou castigadas pelo

21 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 42. 22 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 27-28. 23 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 151.

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poder público mediante o uso da coerção. Tais regras podem ser identificadas

com a utilização de um critério específico, que relaciona-se com a maneira com

que foram adotadas, que Dworkin chama, com certo humor, de teste de

pedigree24.

Hart trata da existência de duas classes de regras, sejam

elas: regras primárias e regras secundárias, que unidas formam o sistema jurídico

de sua concepção. Este autor afirma que

por força das regras de um tipo, que bem pode ser considerado o tipo básico ou primário, aos seres humanos é exigido que façam ou se abstenham de fazer certas acções, quer queiram ou não. As regras do outro tipo são em certo sentido parasitas ou secundárias em relação às primeiras: porque asseguram que os seres humanos possam criar, ao fazer ou dizer certas coisas, novas regras do tipo primário, extinguir ou modificar as regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. As regras do primeiro tipo impõem deveres, as regras do segundo tipo atribuem poderes, públicos ou privados. As regras do primeiro tipo dizem respeito a acções que envolvem movimento ou mudanças físicos; as regras do segundo tipo tornam possíveis actos que conduzem não só a movimento ou mudanças físicos mas à criação ou alteração de deveres ou obrigações25.

Sendo assim, as regras primárias são aquelas que impõem

deveres e obrigações, enquanto as regras secundárias têm por finalidade a

regulamentação sobre a origem, modificação ou extinção das regras primárias e

ainda, conferem poderes, que de acordo com Chueiri podem ser de três espécies:

regras de reconhecimento, as quais estabelecem limitações aos órgãos de aplicação das normas; regras de alteração, as quais estabelecem os órgãos criadores de normas; e regras de julgamento, as quais estabelecem os órgãos de aplicação das normas. As normas secundárias distinguem o direito a partir do

24 SALMERÓN, Fernando. Sobre moral y derecho: apuntes para la historia de uma controversia.

Revista Isonomia, Alicante, n. 5, 1996. P. 80-105. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em: 29 julho 2008, p. 97.

25 HART. Herbert L. A. O conceito de direito. Tradução de A. Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 91.

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caráter institucional do seu sistema. Quer dizer, suas normas estabelecem órgãos centralizados para operar com elas mesmas26.

Dworkin apresenta como exemplo das regras primárias as

regras de direito penal e das secundárias, regras que determinam como o

Congresso é composto e como este promulga as leis27.

Fernando Salmerón afirma que Hart chama a regra

secundária fundamental de regra de reconhecimento, posto que a partir dela

nasce a idéia do direito como um conjunto de normas jurídicas, pois esta estipula

como as mesmas devem ser identificadas28. Esta, então, tem como principal

objetivo, “a identificação de elementos normativos que são, de fato, o direito29.”

Como dito anteriormente, a versão do positivismo oferecida

por Hart, apresenta como teste para verificar a validade das regras de direito, a

regra de reconhecimento que “especificará algum aspecto ou aspectos cuja

existência numa dada regra é tomada como uma indicação afirmativa e

concludente de que é uma regra do grupo que deve ser apoiada pela pressão

social que ele exerce30”, devendo ser identificada pelo fato de seu domínio de

aplicação dizer respeito ao funcionamento do aparato governamental em todos

seus aspectos. Desta forma, a regra de reconhecimento surge para resolver as

incertezas que reinam nas regras primárias, sendo que sua validade repousa em

sua aceitação por parte da comunidade, tendo em vista que esta nunca é posta,

mas sim pressuposta31.

26 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 88. 27 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 31. 28 SALMERÓN, Fernando. Sobre moral y derecho: apuntes para la historia de uma controversia. P.

93. 29 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin. Revista Novos Estudos Jurídicos, Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, v.11, n.2, (jul./dez. 2006), p. 264-289, p. 267.

30 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p 104. 31 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 89.

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A esse respeito Hart afirma que as proposições jurídicas são

verdadeiras em “razão das convenções sociais representadas pelo ato de

aceitação da comunidade que autoriza às pessoas a criação de um direito

válido32”.

Hart admite a existência de limites imprecisos das regras

jurídicas válidas, apresentando a textura aberta do direito, onde os juízes utilizam-

se de seu poder discricionário para decidir esses casos onde as regras não são

claras através da criação de nova legislação. Este assunto será desenvolvido e

aprofundado no segundo capítulo do presente estudo.

No que se refere ao modelo jurídico da regra de

reconhecimento trazido por Hart, importa ressaltar que para o nosso estudo, a

mesma é incapaz de abarcar todas as implicações que o direito apresenta, pois

esta possui um curto alcance tendo em vista que apenas reconhece e valida

regras, deixando fora de seu domínio outros padrões, que segundo Dworkin,

também são jurídicos, tais como os princípios.

Neste sentido, a crítica que Dworkin lança ao positivismo

jurídico é, justamente, que o direito não é formado apenas por regras, posto que

diante de casos difíceis, os operadores do direito, em particular os juízes,

recorrem a muito mais que as regras, mas também a princípios, políticas e outros

tipos de padrões e ainda, que a existência de um único teste fundamental nos

leva a ignorar estes outros tipos de padrões, que não as regras. Sgarbi faz um

apontamento a este respeito:

[...] considera (Dworkin) que qualquer redução do fenômeno normativo, simplesmente, às regras, gera prejuízos no que diz respeito a argumentação, debate e balanceamento de razões na prática jurídica. Dessa forma, atribui ao modelo das regras a posição do positivismo jurídico de possibilitar os juízes a empreenderem decisões instituidoras de direitos – como se

32 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 91.

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fossem legisladores – quando, na ausência de solução específica, decidem casos não albergados pelas regras33.

A crítica do pressuposto da distinção rígida entre direito e a

moral é um dos focos da crítica de Dworkin ao positivismo, posto que segundo

ele,

o direito não se resume a um conjunto de normas, mas incorpora princípios decorrentes da moralidade política. A argumentação jurídica invoca e utiliza princípios que os tribunais desenvolvem mediante processo de argumentação e de criação de precedentes. Estes princípios são especificamente morais. Como conseqüência, a argumentação jurídica depende da argumentação moral no sentido de que os princípios morais têm um importante papel na argumentação jurídica. Assim, defende que a tese central do positivismo - separação entre direito e moral - é falsa. Por essa tese, há autores que interpretam sua obra como uma nova versão do Jusnaturalismo. Mas Dworkin recusa o modelo de argumentação típico do naturalismo, porque não crê na existência de um direito natural que seja constituído por um conjunto de princípios unitários, universais e imutáveis. Parte do pressuposto de que a argumentação moral se caracteriza pela construção de um conjunto consistente de princípios. Trata-se de uma tarefa reconstrutivo-racional do pensamento moral que se estende ao pensamento jurídico. Dworkin, rejeitando o positivismo e o Jusnaturalismo, tem, pois, o seu próprio aparato analítico: o modelo da reconstrução racional aplicado ao conhecimento do direito.34

Uma introdução da existência da relação do direito e da

moral, seria a inclusão dos princípios morais no ordenamento jurídico, como de

fato existem conceitos abstratos em muitas constituições modernas. Hart concebe

que existe um mínimo de moralidade no direito, porém, a discussão gira em torno

da necessidade ou da contingência desta relação. Alguns positivistas entendem

33 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 153. 34 VERBICARO, Loiane Prado. A Judicialização da Política à luz da teoria de Ronald Dworkin. Anais

do Conpedi, Manaus, 2006. Disponível em: <http://conpedi.org/manaus/arquivos/Anais/Loiane%20Prado%20Verbicaro.pdf>. Acesso em: 30 julho 2008, p.11.

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que existem direitos positivos que incorporam princípios morais, mas esta relação

é contingente, e não necessária.

Outro ponto importante a ser lembrado, é que no direito

positivo encontramos muitos conceitos abstratos e detentores de valoração e

ainda, que contém concepções contraditórias em um mesmo sistema jurídico,

necessitando de critérios morais e políticos para justificá-los, como por exemplo, a

igualdade e a liberdade de expressão.

Para Hart, a maioria das regras jurídicas são válidas pois

foram promulgadas por alguma instituição competente, porém, segundo Dworkin,

este teste de pedigree não funciona quando casos difíceis são solucionados com

base em princípios, tendo em vista que

a origem desses princípios enquanto princípios jurídicos não se encontra na decisão particular de um poder legislativo ou tribunal, mas na compreensão do que é apropriado, desenvolvida pelos membros da profissão e pelo público ao longo do tempo35.

Nesse sentido, Salmerón afirma que a validez das normas

se prova mediante a utilização da regra de reconhecimento, mas esta não se

aplica aos princípios, tendo em vista que os mesmos atendem a critérios de

eqüidade e idoneidade relacionados ao exercício profissional de juristas, cuja

força persuasiva relaciona-se com as práticas morais mais aceitadas. Tendo isso

em vista, os princípios não podem sujeitar-se a uma regra de reconhecimento que

exige características indiscutíveis, pois se cabe dizer algo sobre as práticas

morais que Dworkin descreve, é que seus princípios mantêm um nível de

abstração constituindo uma unidade, e não uma cadeia onde um se enlaça com o

outro36.

Desta forma, mesmo que os princípios encontrem apoio em

atos oficiais de instituições jurídicas, os mesmos não possuem uma conexão

“suficientemente simples ou direta com esses atos que lhes permita enquadrar

35 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 64. 36 SALMERÓN, Fernando. Sobre moral y derecho: apuntes para la historia de uma controversia, p.

100.

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essa conexão em termos dos critérios especificados por alguma regra suprema

de reconhecimento37”.

No que se refere a esta regra suprema, que julga válida ou

inválida, jurídica ou não as regras, Hart afirma que aquela marca a passagem, a

transformação de uma sociedade primitiva para uma sociedade regida pelo

direito, porque segundo este, “fornece um teste para determinar quais são as

regras jurídicas da sociedade, em vez de medi-las por sua aceitação38”.

Dworkin refuta a existência de tal regra suprema como regra

de reconhecimento dos direitos, afirmando tratar-se de uma regra de não-

reconhecimento, tendo em vista que simplesmente declarar como juridicamente

obrigatório o que era obrigatório costumeiramente pela comunidade, dispensa

qualquer regra de reconhecimento, qualquer teste de pedigree e considera

reduzida a fragmentos a teoria de Hart:

[...] não podemos mais afirmar que apenas a regra suprema é obrigatória em razão de sua aceitação e que todas as demais regras são válidas nos termos da regra suprema39.

Se os princípios fossem colocados por Hart sobre a mesma

rubrica de “costume” e aceitasse-os como parte integrante do direito e seu único

teste fosse o do grau de aceitação pela comunidade, seria reduzido drasticamente

o campo de atuação de sua regra de reconhecimento:

Nenhum teste de pedigree que associe princípios a atos que geram legislação pode ser formulado nem seu conceito de direito oriundo do costume, em si mesmo uma exceção à primeira tese do positivismo, pode ser tornado útil sem o abandono integral dessa tese40.

O positivismo jurídico apresenta a teoria da obrigação, que

sustenta que uma obrigação jurídica existe quando uma regra de direito

37 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 66. 38 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 68. 39 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 69. 40 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 69.

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estabelecida impõe tal obrigação. Nesta linha de pensamento, quando um caso

difícil apresenta-se diante do juiz, tem-se que inexiste uma obrigação jurídica até

que o mesmo crie uma nova regra para o futuro. Dworkin propõe o abandono de

tal teoria, mediante a aceitação dos princípios como partes integrantes do direito,

afirmando

que uma obrigação jurídica existe sempre que as razões que sustentam a existência de tal obrigação, em termos de princípios jurídicos obrigatórios de diferentes tipos, são mais fortes do que as razões contra a existência dela41.

E ainda afirma:

Nos termos de sua própria tese, o positivismo não chega a enfrentar esses casos difíceis e enigmáticos que nos levam à procura de teorias de direito. Quando lemos esses casos, o positivista nos remete a uma teoria de poder discricionário que não leva a lugar algum e nada nos diz. Sua representação do direito como um sistema de regras tem exercido um domínio tenaz sobre nossa imaginação, talvez graças a sua própria simplicidade. Se nos livrarmos desse modelo de regras, poderemos ser capazes de construir um modelo mais fiel à complexidade e sofisticação de nossas próprias práticas42.

Desta forma, depreende-se que o teste trazido pelo

positivismo para o direito costumeiro, só terá validade para regras jurídicas

simples, tais como as que aparecem nas leis. Porém, os juízes ao decidirem

casos difíceis não limitam-se apenas a estas regras jurídicas simples, mas

também aos denominados princípios jurídicos. A resposta dos positivistas a esta

situação é a de que os juízes, ao invocar estes princípios jurídicos, estão na

verdade exercitando seu poder discricionário e não apelando a padrões jurídicos.

Ou ainda, poderão tentar demonstrar que o teste sempre identifica os princípios

utilizados pelos juízes como parte do direito e os distingue dos que não

consideram parte do mesmo.

41 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 71. 42 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 72.

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Para Hart, os deveres e obrigações surgem quando existem

regras sociais que estabelecem tais deveres:

Essas regras sociais existem se as condições para a prática de tais regras estão satisfeitas. Tais condições para a prática estão satisfeitas quando os membros de uma comunidade comportam-se de determinada maneira; esse comportamento constitui uma regra social e impõe um dever43.

Aplicando tal análise ao dever judicial, Hart acredita que em

todo sistema legal as condições práticas são satisfeitas por uma regra social que

impõe o dever de aplicar o direito de determinada maneira, identificando e

aplicando certos padrões como expressões do mesmo. Sendo assim, é possível

concluir-se que os juízes devem agir de acordo com a regra social, tendo o dever

de proceder desse modo:

Ele (Hart) não se propõe a simplesmente declarar, como dado frio, que os juízes acreditam ter o dever de seguir o que foi estabelecido pelo Legislativo. Ele quer dizer que eles realmente possuem um tal dever e cita esse dever – e não as crenças dos outros - como justificativa para sua própria decisão44.

Para elaborar a crítica a teoria da regra social de Hart,

Dworkin realiza uma distinção entre suas versões forte e fraca:

Na versão forte, toda vez que alguém afirma a existência de um dever,

ele deve ser entendido como pressupondo a existência de uma regra

social e a aceitação da prática social que tal regra descreve. [...] Na versão mais fraca, apenas às vezes ocorre o caso em que alguém, que

afirma a existência de um dever, deva ser entendido como pressupondo

a existência de uma regra social que estipula tal dever45.

De acordo com Dworkin, Hart não deixa claro em O Conceito

de Direito qual versão adota. Dworkin expõe que a versão forte da teoria da regra

social não pode ser correta na análise de todos os casos nos quais pessoas

invocam deveres, posto que segundo o autor, a teoria deve admitir que “há

43 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 80. 44 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 82. 45 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 83.

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algumas asserções sobre uma regra normativa que não podem ser explicadas

como uma invocação de uma regra social, pela razão de que não existe uma

regra social correspondente46”.

Dworkin afirma que a teoria da regra social é ineficaz, posto

que é incapaz de identificar a importante diferença entre os dois tipos de

moralidade social, a moralidade convencional e a moralidade concorrente:

Uma comunidade exibe uma moralidade concorrente quando seus membros estão de acordo quanto a afirmar a existência da mesma regra normativa, mas não consideram o fato desse acordo como parte essencial das razões que os levam a afirmar a existência dessa regra. Uma comunidade exibe uma moralidade convencional quando leva em conta o fato do acordo47.

Segundo Dworkin, a teoria da regra social deve ser

atenuada para que possa aplicar-se aos casos da moralidade convencional.

Porém, a citada teoria não é sequer um exemplo adequado da moralidade

convencional, posto que “não pode explicar o fato de que, mesmo quando as

pessoas consideram uma prática social como uma parcela necessária das razões

para se afirmar a existência de um dever, elas podem, ainda assim, divergir

quanto à abrangência desse dever48”.

Para Hart, uma regra “é constituída pelo comportamento em

conformidade com ela, por parte da maioria da população49”. Desta forma, este

autor considera comportamento em conformidade com a regra “aquele

comportamento que todos concordam seja o exigido em determinado caso,

mesmo quando tal caso não tenha ocorrido50.”

O argumento de Dworkin para tornar a teoria da regra social

ineficaz é o seguinte: quando pessoas afirmam a existência de regras normativas,

46 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 84. 47 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 85. 48 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 86. 49 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 87. 50 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 87.

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mesmo no caso da moralidade convencional, as mesmas afirmam também que

tais regras diferem quanto ao alcance ou ainda, que se diferenciariam caso cada

pessoa articulasse sua regra de maneira mais detalhada:

[...] duas pessoas cujas regras diferem, ou difeririam, caso fossem elaboradas, não podem estar invocando a mesma regra social e, pelo menos uma delas, certamente não está invocando regra social nenhuma51.

Desta forma, Dworkin argumenta que para que a regra social

possa sobreviver, a mesma deve ser atenuada de uma forma inaceitável, pois

somente será aplicável nos casos em que “como de alguns jogos, os participantes

aceitam que, se um dever é controverso, não é de forma alguma um dever. Nesse

caso, a teoria não se aplica aos deveres judiciais52.” E ainda demonstra outro

equívoco da teoria formulada por Hart:

Ela (teoria da regra social) acredita que a prática social constitui uma regra que o juízo normativo aceita; na verdade, a prática social ajuda a justificar uma regra que é expressa pelo juízo normativo53.

Neste sentido, a teoria da regra social fracassa, pois

segundo Dworkin, a mesma insiste em que uma prática deve ter o mesmo

conteúdo que a regra que os indivíduos sustentam em seu nome, porém, se

supusermos simplesmente que “uma prática pode justificar uma regra, então a

regra assim justificada pode ou não ter o mesmo conteúdo que a prática; pode

ficar aquém da prática ou ir além dela54.”

No que se refere ao dever judicial, Dworkin afirma que é

possível que o mesmo seja um caso de moralidade convencional, mas que disso

não se segue que alguma regra social estabeleça o limite do dever judicial, como

se pode depreender do exemplo apresentado pelo autor:

51 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 88. 52 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 88. 53 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 91. 54 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 92.

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[...] quando os juízes citam a regra segundo a qual eles devem seguir o

que determina o Legislativo, eles podem estar invocando uma regra normativa que é justificada por alguma prática. Podem também discordar

quanto ao conteúdo preciso dessa regra normativa, de uma maneira que

não representa apenas um desacordo sobre os fatos relativos ao

comportamento de outros juízes55.

Em Levando os Direitos a Sério, Dworkin apresenta uma

tese relacionada com a idéia de um teste fundamental para o direito, no intuito de

demonstrar a verdadeira natureza da alegação positivista e como ela difere das

alegações que pretende fazer. A tese

sustenta que, em todos os países que têm um sistema jurídico desenvolvido, existe, na comunidade de seus juízes e autoridades judiciárias, alguma regra social ou conjunto de regras que determinam os limites do dever, por parte do juiz, de reconhecer qualquer outra regra ou princípio como direito56.

Esta tese seria válida se por exemplo, os juízes enquanto

grupo, de um determinado país reconhecessem o dever de levar em consideração

na determinação de direitos e obrigações, apenas regras e princípios

promulgados pelo Parlamento, formulados nas decisões judiciais ou estabelecidos

por costumes muito antigos e, enquanto grupo, reconhecessem o dever de levar

em consideração nada além disso57. Hart propõe esta tese e Dworkin a nega.

Em sua teoria da regra de reconhecimento, Hart toma o

cuidado de dizer que a regra social de reconhecimento pode ser incerta em

alguns casos, incapaz de resolver todos os problemas apresentados, bastando

que a mesma resolva a maioria dos problemas e seja tratada como se ela

regesse todas as decisões jurídicas.

Tal afirmação, de acordo com Dworkin, “não se limita a

acrescentar flexibilidade e sofisticação à sua teoria. Ao contrário, debilita-a (...)58”,

55 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 93. 56 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 95. 57 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 95. 58 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 98.

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posto que revela uma área de incerteza no interior da regra social que é

incontroversa. Se é possível que os juízes tenham o dever de aplicar alguma

regra ou princípio ao determinarem o que é exigido pelo direito, apesar de

nenhuma regra social indicar esse dever, então a tese da regra social é falsa59,

seja lá como se descreva esse dever.

Em síntese, Dworkin defende que:

1) o direito é um fenômeno complexo bem mais articulado do que retrata o positivismo jurídico; 2)os elementos que compõem o direito são vários (regras e princípios); 3) os princípios não operam no mesmo canal de verificação que as regras, portanto a técnica do pedigree é inútil para identificá-los60.

Com base no exposto anteriormente, Dworkin passa a tratar

da importância dos princípios como fonte do direito em sua crítica ao positivismo

de Hart, que por sua vez, não contempla a importância dos mesmos.

1.2 PRINCÍPIOS E REGRAS

Para o autor, o modelo positivista possibilita ao juiz proferir

decisões instituidoras de direito, passando a agir como se legisladores fossem,

nos casos em que há lacunas não preenchidas pelas regras. Já o modelo de

regras e princípios permite encontrar saídas a todos os casos, inclusive aos que

não são passíveis de serem solucionados somente pelas regras, mediante a

utilização dos princípios. Argemiro Martins afirma que hodiernamente, o papel

representado pelos princípios é inegável, posto que os juízes os utilizam cada vez

mais na definição de direitos61.

Desta forma, Dworkin conclui que qualquer teoria que não

considere os princípios como fontes do direito, é frágil.

59 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 102. 60 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 154. 61 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 266.

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Nesse sentido, afirma o autor:

Argumentarei que o positivismo é um modelo de e para um sistema de regras e que sua noção central de um único teste fundamental para o direito nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos padrões que não são regras62.

Dworkin afirma que na solução dos casos difíceis, os juristas

recorrem a padrões jurídicos diversos das regras, tais como princípios e políticas

e outros tipos de padrões. Importa então estabelecer a definição de princípio e

política na visão do autor:

Denomino “política” aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade [...]. Denomino “princípio” um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão de moralidade63.

Nesse sentido, Dworkin afirma que os princípios podem

atuar em oposição à política, quando a decisão jurídica é baseada em princípios

que contemplam um direito individual, ou em consonância com a política, quando

o argumento que sustenta a decisão visa o bem-estar geral da comunidade64.

Para demonstrar a sua teoria, que se centra na distinção

entre princípios e regras, Dworkin utiliza-se de um caso real Riggs v Palmer, onde

um Tribunal de Nova Iorque “teve que decidir se um herdeiro nomeado no

testamento de seu avô poderia herdar o disposto naquele testamento, muito

embora ele tivesse assassinado seu avô com esse objetivo65”.

62 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 27. 63 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 36. 64 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 73. 65 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 37.

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O tribunal decidiu de forma que o herdeiro não recebeu sua

herança, afirmando que ninguém deve beneficiar-se do fruto do próprio crime.

Esse argumento é um padrão que não ajusta-se como regra jurídica, mas sim

como princípio jurídico.

Os princípios e as regras diferem em sua natureza lógica,

ambos apontam para decisões particulares em situações específicas, mas

diferenciam-se quanto à natureza da orientação que oferecem66. Sobre a

diferenciação entre as regras e os princípios, Sgarbi afirma que

as regras são normas aplicáveis na forma “ou tudo ou nada”, pois elas são aplicáveis apenas quando surgem as condições que elas próprias fixam. Já os princípios são normas que não firmam uma conseqüência jurídica precisa diante de uma circunstância igualmente precisa; eles expressam considerações de justiça, eqüidade e outras dimensões da moralidade, ou seja, os princípios não estabelecem uma solução unívoca para as controvérsias em que são aplicáveis, de tal modo que diferem das regras em sua operacionalidade lógica67.

Portanto, pode-se inferir que tanto os princípios como as

regras objetivam decisões “envolvendo obrigações jurídicas, mas são dissidentes

quanto ao caminho para o qual guiam68”.

Da mesma forma, Dworkin afirma que

as regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dado os fatos que uma regra estipula, então a regra ou é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão69.

66 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 39. 67 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 151. 68 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 269. 69 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 39.

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Ou seja, o juiz ao encontrar-se diante de um conflito de

regras, terá de optar pela aplicação de uma delas, restando a outra inválida, ao

passo que se o mesmo encontrar-se diante de um conflito de princípios, poderá

balancear o peso dos mesmos e ao decidir-se pela aplicação de um, não retirará

a validade dos demais e estes não perderão sua característica normativa. O que

vem a determinar qual dos princípios será aplicável quando estes conflitam entre

si, será a dimensão de força de cada um.

De forma a explicar o funcionamento das regras, Dworkin

utiliza-se de uma regra do direito na qual um testamento é inválido se não for

assinado por três testemunhas, sendo que, se a regra jurídica é válida, nenhum

testamento assinado por duas testemunhas terá eficácia, ou seja, será

considerado válido. Porém, as regras podem ter exceções, mas estas deverão ser

arroladas sob pena de imprecisão e incompletude.

Os princípios não funcionam como as regras, pois “não

apresentam conseqüências jurídicas que se seguem automaticamente quando as

decisões são dadas70”. Os mesmos não são passíveis de enumeração:

Tudo o que pretendemos dizer, ao afirmarmos que um princípio particular é um princípio do nosso direito, é que ele, se for relevante, deve ser levado em conta pelas autoridades públicas, como [se fosse] uma razão que inclina numa ou noutra direção71.

Além disso, os princípios possuem uma dimensão de peso e

importância que as regras não possuem:

Quando os princípios se intercruzam [...], aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra freqüentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é uma parte integrante do conceito

70 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 40. 71 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 42.

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de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é72.

Sendo assim, os princípios jurídicos são razões que guiam,

devendo ser “considerados quando as decisões jurídicas são tomadas, mesmo

que, para tanto, devam ser submetidos a um ‘balanceamento’ frente a outros

princípios que concorrem como razões contextuais para o caso73”. As regras não

possuem essa dimensão: ou ela é funcionalmente importante ou não, ou ela se

encaixa ao acaso concreto ou não. Nesse sentido,

uma regra jurídica pode ser mais importante que outra porque desempenha um papel maior ou mais importante na regulação do comportamento. Mas não podemos dizer que uma regra é mais importante que outra enquanto parte do mesmo sistema de regras, de tal modo que se duas regras estão em conflito, uma suplanta a outra em virtude de sua importância maior74.

Desta forma, se duas regras entram em conflito, uma delas

necessariamente será inválida, e para decidir qual delas é inválida deve-se

recorrer a considerações que encontram-se além das próprias regras:

Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes75.

Os princípios atuam de forma mais vigorosa nos casos

difíceis, desempenhando um papel fundamental nos argumentos que sustentam e

embasam as decisões jurídicas particulares. Em alguns casos, a regra não existe

antes de o caso ser decidido e o tribunal “cita princípios para justificar a adoção e

a aplicação de uma nova regra76”, como ocorreu no caso citado anteriormente,

72 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 42-43. 73 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 152. 74 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 43. 75 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 43. 76 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 46.

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onde o tribunal citou um princípio de que nenhum homem pode beneficiar-se de

seus delitos, e dessa forma, justificou uma nova interpretação da lei dos

testamentos.

Dworkin estabelece uma distinção entre aceitar uma regra

como obrigatória e adotar como regra para si mesmo. A primeira afirmação

implica em ser criticado ou censurado caso não cumpra a regra. Já a segunda

não implica em dizer que o sujeito está fazendo algo errado “precisamente por

não seguir a regra77”.

As críticas ao sistema de princípios assemelha-se ao

disposto sobre as regras, de forma que a

primeira alternativa trata os princípios como obrigatórios para os juízes, de tal modo que eles incorrem em erro ao não aplicá-los quando pertinente. A segunda alternativa trata os princípios como resumos daquilo que os juízes, na sua maioria, “adotam como princípio”, quando forçados a ir além dos padrões aos quais estão vinculados78.

Sendo assim, se adotarmos a hipótese presente na segunda

alternativa, será o mesmo que afirmar que no caso do herdeiro que assassinou

seu avô, o mesmo perdeu seu direito à herança por um ato discricionário do juiz.

Adotar o modelo das regras e dos princípios

implica considerar as diferentes razões jurídicas ou forças envolvidas que devem reger a decisão judicial. Nesses termos, o ato de se aplicar o direito exigirá, sempre, a avaliação do peso relativo de um conjunto de referências. Portanto, entende Dworkin que seu modelo, o “modelo das regras e dos princípios”, permite tanto encontrar saídas jurídicas às situações não solucionáveis com o recurso único das regras, como, também, justificar, em situações determinadas, a utilização nuançada das regras quando a incidência de um princípio assim o exigir79.

77 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 48. 78 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 48-49. 79 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 153.

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Sendo assim, pode se concluir que “o direito não é

constituído por um conjunto de regras, mas sim por dois tipos de normas: as

regras e os princípios80”.

Nesse sentido, Dworkin afirma que uma regra de

reconhecimento que fixa sua análise somente na validade ou invalidade, que

utiliza um critério de tudo ou nada, não comporta a identificação e análise dos

princípios, posto que estes possuem a dimensão de peso. Um princípio não deixa

de ser válido por conflitar com outro, mas em casos como esse fazem face a

dimensão de peso exposta anteriormente, de forma que cada “princípio relevante

para um problema jurídico particular fornece uma razão em favor de uma

determinada solução, mas não a estipula81”. Sob esta perspectiva, o indivíduo que

analisar qual a solução para o caso concreto, deve chegar a uma decisão,

utilizando-se dos princípios conflitantes que regem a questão, e não escolher um

dentre estes como válido.

E ainda, o autor afirma que os tribunais deveriam buscar

princípios que servissem como diretrizes para as decisões proferidas, deixando

de basear-se desta forma, apenas em explicações das regras jurídicas existentes.

“Isto porque a zona em que os princípios penetram é mais que um mero sistema

relativamente aberto de regras, pleno de ambigüidades82”. No sistema construtivo

de Dworkin, ao decidir um caso concreto o juiz lança mão de um princípio, através

do qual identifica um direito pré-existente, articulando-o com a história institucional

e os precedentes.

Ao criticar a distinção que Dworkin faz entre as regras e os

princípios, Ikawa83 afirma que Raz argumenta que as regras entram em conflito

assim como os princípios: as regras morais seguem a lógica descrita para os

80 SGARBI, Adrian. Clássicos de Teoria do Direito, p. 153. 81 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 114. 82 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do Direito e da Modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 76. 83 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade. Revista Lua Nova, São Paulo, n. 61, p.

97-113, 2004, p. 103.

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princípios, isto é, “elas apontam em uma direção, embora não sejam

necessariamente decisivas em nenhuma questão moral84”.

Dworkin contrapõe tal afirmação colocando que uma decisão

sobre que conduta moral tomar, é uma questão de pesar as questões favoráveis

ou contrárias a esta, e não de recorrer a regras morais pré-estabelecidas. O autor

afirma ainda, que questões morais assemelham-se muito mais a princípios do que

a regras.

De acordo com Ikawa85, Raz apresenta como exemplo, duas

regras do direito penal que, sob sua perspectiva, são regras conflitantes: uma que

proíbe uma agressão e outra, que a permite em casos de legítima defesa. Para

este autor, frente a um caso concreto, um juiz deve pesar as duas regras e

decidir-se sobre qual delas é mais importante.

A resposta de Dworkin é a de que “uma regra que expressa

uma exceção à outra não está em conflito com ela86”. A tese de Dworkin é

suficiente para contrapor-se a objeção de Raz, posto que uma regra geral não é

conflitante com suas exceções, que são na realidade complementos daquela. Um

juiz que encontra-se diante de um caso em que ocorreu uma agressão por

legítima defesa, terá em suas mãos duas normas que não exigem que o mesmo

decida entre elas ou determine seu peso, pois são unas no que se refere ao

ordenamento jurídico, onde uma completa – e não conflita – a outra.

A esse respeito, Dworkin afirma que “a enunciação ‘plena’

de uma regra deve incluir suas exceções e que a formulação de uma regra que

despreze suas exceções será ‘incompleta’87” e ainda, “que uma exceção pode ser

enunciada na forma de uma regra precisa, como a que diz respeito a legítima

defesa, ou ainda na forma de uma enunciação revisada da regra original88”.

84 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 114. 85 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 103. 86 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 115. 87 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 120. 88 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 120.

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Mediante a análise da teoria dworkiniana pode-se inferir que

o autor defende a equiparação dos princípios com as regras, de forma a

considerar aqueles como normas integrantes do direito como estas, oferecendo

assim, uma concepção mais ampla e completa do sistema jurídico como um todo,

de forma a ser capaz de abarcar todas as situações jurídicas existentes e dar-lhes

respostas fundadas neste sistema sem que se faça necessário o uso do poder

discricionário por parte dos juízes, assunto que será tratado no próximo item do

presente estudo.

1.3 DISCRICIONARIEDADE

Como foi exposto anteriormente, Dworkin considera o

modelo de Hart dotado de defeitos, como não descrever o direito corretamente,

pois falta-lhe a percepção dos princípios.

Segundo o autor, o positivismo jurídico fornece como

solução dos “casos difíceis”, o poder de discricionariedade dos juízes, onde estes

decidem de acordo com suas convicções. Estas decisões proferidas mediante o

uso de discricionariedade são anti-democráticas (os juízes estariam exercendo a

função do legislativo, que possui seus representantes eleitos pelo povo) e injustas

(os juízes estariam aplicando de forma retroativa, normas criadas por eles, ou

seja, um direito constituído depois do fato89).

A esse respeito, Hart afirma que as regras identificadas

pelos critérios oferecidos pela regra de reconhecimento, têm o que o mesmo

designa de “textura aberta” do direito, onde diante de um caso concreto, o direito

é incapaz de encontrar uma resposta em qualquer sentido, vindo a demonstrar-se

“parcialmente indeterminado90”. Diante disso, cabe ao juiz, utilizando-se de seu

89 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 160. 90 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p. 314.

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poder discricionário decidir o caso que, por não utilizar-se do direito vigente, cria

algo novo na esfera jurídica91. Nesse sentido, afirma o autor:

Tais casos não são apenas “casos difíceis”, controvertidos no sentido de que juristas razoáveis e inteligentes podem discordar acerca de qual resposta que é juridicamente correta, mas o direito em tais casos é, no fundamental, incompleto; não fornece qualquer resposta para as questões em causa, em tais situações. Não estão juridicamente regulados e, para se obter uma decisão nesses casos, os tribunais devem exercer a função restrita de criação de direito que eu designo como “poder discricionário”92.

A este respeito, Hart afirma que quando um juiz se encontra

diante de um caso onde o direito existente não consegue oferecer qualquer

resposta, o juiz deve exercer seu poder de criação do direito, da forma que um

legislador consciencioso agiria, decidindo de acordo com suas próprias crenças e

valores. Pode-se constatar que o positivismo jurídico encontra na ausência de

legislação aplicável ao caso concreto, a origem da discricionariedade judicial. Este

autor ainda afirma que o juiz tem o direito “de observar padrões e razões para a

decisão, que não são ditadas pelo direito e pode diferir dos seguidos por outros

juízes confrontados em casos difíceis semelhantes93.”

A resposta de Dworkin a tal afirmação é a de que na noção

de direito, encontra-se incluso, além do direito estabelecido explícito formado pelo

sistema positivado, princípios implícitos que estão em consonância com o direito

explícito, conferindo a este sua melhor justificação moral94. Seguindo esta linha de

pensamento, o direito jamais será incompleto, pois a união das regras positivadas

aos princípios jurídicos faz o mesmo ser capaz de abarcar todas as situações

jurídicas que possam existir e se apresentar a um juiz, que por sua vez, “nunca

91 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 267. 92 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p, 314. 93 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p, 336. 94 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p, 335.

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terá a oportunidade de sair do direito e de exercer um poder de criação [...] para

proferir uma decisão95”.

Será mediante o uso dos princípios jurídicos, dotados de

uma dimensão moral, que os tribunais encontrarão fundamentos para suas

decisões em casos difíceis, onde as regras positivadas não são claras em relação

ao mesmo. Portanto, a teoria de Dworkin mostra-se mais apta do que a

apresentada por Hart, para fundamentar e oferecer as respostas aos casos

concretos, posto que não coloca nas mãos do juiz um poder demasiado, seja este

a discricionariedade, mas sim demonstra qual o caminho correto e justo baseado

no direito, a ser seguido.

No tocante a discricionariedade, Dworkin afirma que o

conceito da discricionariedade é relativo ao contexto em que está inserido, quer

sejam padrões, quer sejam autoridades.

Dworkin então apresenta três acepções do poder

discricionariedade: a primeira delas trata da discricionariedade em sentido fraco,

em situações onde “qualquer um é chamado a agir sob a base de certas diretivas

que não podem ser aplicadas mecanicamente, mas que exigem o emprego de

certo discernimento96”. Isso significa dizer que este tipo de discricionariedade

opera em situações onde não temos todos os fragmentos da informação, em que

o contexto não é por si só esclarecedor e há a exigência “da capacidade de

julgar97”. Para demonstrar essa acepção, o autor utiliza-se do exemplo de um

sargento, cujas ordens deixam certa margem de poder discricionariedade àqueles

que desconhecem as mesmas.

Para fins de esclarecimento, faria perfeitamente sentido acrescentar que o tenente ordenara ao sargento que levasse em

95 HART. Herbert L. A. O conceito de direito, p, 336. 96 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 157. 97 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 271.

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patrulha seus cinco homens mais experientes, mas fora difícil determinar quais eram os mais experientes98.

A segunda acepção também em sentido fraco ocorre em

situações em que alguém tem o poder de tomar uma decisão com força

definitiva99, como no caso de um funcionário público que toma certa decisão e

esta não pode ser revista por outro funcionário. Neste ponto pode-se averiguar a

existência de uma certa hierarquia, na qual quem estiver em posição superior terá

o poder final de emitir juízos100.

A terceira acepção é chamada de discricionariedade em

sentido forte, e ocorre em situações “nas quais as decisões de um determinado

agente não estão vinculadas a nenhum critério explicitamente previsto por alguma

autoridade, embora existam critérios implícitos que possibilitam distingui-la de

atos arbitrários101”. Nesse sentido, pontua Dworkin que

o poder discricionário de um funcionário não significa que ele esteja livre para decidir sem recorrer a padrões de bom senso e eqüidade, mas apenas que sua decisão não é controlada por um padrão formulado por uma autoridade particular que temos em mente quando colocamos a questão do poder discricionário102.

O ponto de divergência, segundo Dworkin, é a terceira

acepção – a discricionariedade em sentido forte – tendo em vista que as duas

acepções da mesma em sentido fraco são recepcionadas por Hart.

No que se refere a este terceiro sentido de

discricionariedade, pode-se dizer que quem realiza a decisão utilizando-se deste

poder, pode cometer erros, mas não pode privar alguém de obter essa decisão.

98 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 51. 99 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 158. 100 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 271. 101 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 157. 102 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério, p. 53.

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De acordo com a doutrina positivista, os juízes não

necessitam lançar mão do poder discricionário quando encontram-se diante de

uma norma clara e estabelecida. Dworkin afirma que estes concluem empregar a

discricionariedade na primeira acepção de sentido fraco, posto que afirma que os

juízes devem formar seu próprio juízo em decisões apenas algumas vezes,

quando as regras que regulam o caso concreto são vagas – a textura aberta do

direito apresentada por Hart. A este respeito, Davi José de Souza afirma que

Dworkin

discorda que as proposições jurídicas possuam algum ponto inalcançável, sobretudo fundado na textura aberta da linguagem jurídica, como defende Hart. As decisões judiciais em casos controversos, não são apenas expressões das preferências e arbítrios pessoais dos magistrados, que, diante da ausência de uma regra, não podem tomar uma decisão, impondo suas próprias convicções à prática jurídica103.

Porém, de acordo com Dworkin, os positivistas utilizam-se

da discricionariedade em sentido forte104 (não no sentido fraco como alegam), o

que significa dizer que os juízes, ao decidir os casos difíceis, não encontram-se

subordinados a qualquer autoridade da lei, posto que diante de uma lacuna da

mesma, aqueles criam novos direitos e os aplicam retroativamente, isto é, o

direito recém criado com base no poder discricionário em sentido forte, sem

quaisquer precedentes, é imediatamente aplicado. Desta forma, os juízes

concebidos na teoria positivista, segundo Dworkin, passam a agir como

verdadeiros legisladores, instituidores de direito, invadindo abertamente a esfera

legislativa. Segundo Ikawa, essa atitude implica na

ausência de vinculação legal a padrões previamente determinados ou, em outras palavras, à idéia de que os padrões existentes não impõem qualquer dever legal sobre o juiz para que decida de uma determinada forma. Essa terceira acepção estaria por fim ligada às questões da completude ou incompletude do direito, da

103 SILVA, Davi José de Souza da. A Moralidade política na prática judicial em Dworkin. Anais do

Conpedi, Manaus, 2006. Disponível em: <http conpedi.org/manaus/arquivos/anais/bh/davi_jose_de_souza_da_silva2.pdf - >. Acesso em: 04 setembro 2008, p. 6129.

104 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 98.

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natureza legal ou meramente moral dos princípios, da competência ou incompetência do juiz de elaborar leis.

A este respeito, segundo palavras de Ikawa, Yanal entende

que Hart não apresenta nem a discricionariedade em sentido forte, nem em

sentido fraco, mas sim em sentido moderado, de forma que os juízes, em sua

acepção, devem decidir o caso dentro dos parâmetros das regras e dos princípios

pertinentes ao caso105. Porém, tal idéia não condiz com a teoria descrita por Hart,

que não inclui dentre as fontes do direito, os princípios.

Nesse sentido, Dworkin discorda dessa atitude discricionária

atribuída aos juízes pelos positivistas, pois para ele, mesmo nos casos difíceis,

quando não existe uma regra que regule o caso, ainda assim uma das partes tem

o direito de ganhar. O juiz, diante de um caso concreto, tem o dever de descobrir

o direito da parte, e não inventar novos direitos106, como ensina o positivismo

jurídico.

A preocupação de Dworkin reside no fato da

discricionariedade violar direitos individuais pré-existentes107, enquanto Hart

afirma que tais direitos não existem diante da lacuna da lei. Dworkin oferece como

resposta ao poder discricionário, a existência de princípios morais vinculantes que

impedem a ação daquela, pois os juízes devem pautar-se segundo os mesmos,

que têm a mesma força das regras, tendo em vista que ambos compõem o

sistema jurídico apresentado por nosso autor.

Nesse sentido, diante de um caso difícil, o juiz recorrerá a

certos princípios, para através dos mesmos alcançar o direito das partes. A

utilização desse mecanismo “vincula as questões práticas (relativas à tomada de

decisão do juiz) às questões teóricas da concepção da regra jurídica, oferece uma

105 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 99. 106 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 160. 107 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 99.

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resposta (através do direito) à sociedade pela via da realização possível da

justiça108.

Daniela Ikawa apresenta a existência de dois tipos de

sistema109: um monofásico e outro bifásico, de acordo com a presença ou não da

discricionariedade em sentido forte. O sistema de Hart, sob esta perspectiva, seria

caracterizado como bifásico, tendo em vista a presença da citada

discricionariedade e o de Dworkin, seria caracterizado como monofásico, posto

que nega a mesma. O sistema bifásico

envolve a análise da regra social de reconhecimento de Hart. Essa regra apresenta, segundo Dworkin, critérios insuficientes para a identificação do que seria a lei, ocasionando a falsa visão de que essa apresentaria lacunas e, por conseguinte, a falsa visão de que o juiz teria, ao menos por vezes, discricionariedade em sentido forte110.

Já o sistema monofásico, presente na teoria construtivista de

Dworkin,

abrange não apenas direitos, deveres e princípios históricos, emanados tanto de leis escritas quanto de precedentes, mas também aqueles que decorrem da aplicação de princípios convencionais ou não convencionais de justiça. É por não se restringir ao aspecto histórico ou institucional que abarca mesmo os casos difíceis111.

Nesse sentido, Dworkin afirma que a lei cobre todos os

casos que forem apresentados - inexistindo a lacuna da lei trazida por Hart – e

defende que aquela não é composta apenas por regras positivadas, que o direito

não é um sistema estático, mas sim um sistema que é capaz de abarcar todos os

casos difíceis, capaz de acompanhar o processo evolutivo das transformações

108 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 87. 109 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 101. 110 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 102. 111 IKAWA, Daniela R. Hart, Dworkin e a discricionariedade, p. 102.

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sociais, sendo composto também por princípios e diretamente relacionado com a

moral, contrariamente ao que expõe Hart.

Sendo assim, o modelo construtivista apresentado por

Dworkin mostra-se mais apto a resolver casos difíceis de forma mais justa, posto

que impõe ao juiz o dever de analisar a lei de forma mais ampla, considerando os

princípios pertinentes, de forma a trazer ao caso concreto uma resposta

construída dentro dos ditames da lei, que por sua vez, é um sistema muito maior

e mais complexo do que as regras positivadas, como ensina o positivismo

jurídico. Este leva inevitavelmente ao uso da discricionariedade no sentido forte,

fazendo do juiz, um verdadeiro legislador, o que fere a segurança jurídica e beira

à injustiça.

Portanto, Dworkin oferece em sua teoria construtivista, como

contraponto ao modelo discricionário de Hart: a tese da resposta certa. Segundo

Vera Chueiri, aquela demonstra “que toda a pretensão jurídica corresponde uma

resposta original, assentada na idéia de direitos, cujos princípios as regras

positivas agasalham, não havendo espaço para a sua criação, para o ato

discricionário do juiz112.

Como se pode observar, a tese da resposta certa não é um

dado pronto e acabado, mas sim construído argumentativamente. Este

desenvolvimento argumentativo assemelha-se ao exercício literário113 que

Dworkin utiliza para demonstrar sua teoria interpretativa, para posteriormente

aplicá-la analogamente ao direito. Tal processo interpretativo será elucidado no

capítulo seguinte do presente estudo.

112 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 67. 113 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 68.

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CAPÍTULO 2

O DIREITO COMO PRÁTICA INTERPRETATIVA

2.1 PROCESSO INTERPRETATIVO

Como Dworkin concebe o direito como uma prática

interpretativa construtiva, cabe o aprofundamento deste processo.

Nosso autor afirma que em direito, as divergências que

ocorrem entre os juristas é teórica e não empírica. De acordo com o mesmo, os

filósofos do direito sobre os quais deveriam existir regras comuns, tentam

subestimar a divergência teórica através de explicações, tais como dizer que os

advogados e juízes apenas fingem, ou que divergem porque encontram em suas

mãos casos em que existe uma zona cinzenta ou periférica das regras comuns114,

e dizem que o melhor a fazer em tais casos, é ignorar os termos que os juízes

usam e tratá-los com se divergissem quanto à fidelidade ou reforma do direito, e

não quanto ao direito em si.

Aí encontra-se o que Dworkin chama de aguilhão semântico,

pois para este, estamos marcados por uma imagem equivocada do que deve ser

a divergência. Brian Leiter trata do assunto afirmando que Dworkin alega que

todas as teorias do direito exceto a dele mesmo, tropeçam no que ele chama de

aguilhão semântico115.

Nesse sentido, em O Império do Direito, o autor critica as

teorias que concebem o direito como uma mera questão de fato, como um dado

objetivo, posto que as mesmas se perdem em desacordos verbais. Um exemplo

de tal afirmação repousaria sob o positivismo jurídico, que “faz com que o efeito

114 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 56. 115 LEITER, Brian. The end of empire: Dworkin and jurisprudence in the 21 st century. Texas, n. 70,

2004. Disponível em: <http://ssrn.com/abstract=598265>. Acesso em: 29 julho 2008, p. 8.

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de uma regra do direito seja determinado pelo significado das palavras116”. O

problema reside no fato de existirem palavras que têm um significado vago,

fazendo com que a aplicação do direito torne-se indeterminada, barrando no

aguilhão semântico.

Dworkin chama de aguilhão semântico o defeito de se tentar

entender o direito como mera questão de discordância de convenção social, o que

acaba por não permitir a explicação dos desacordos jurídicos como “disputas

genuínas”. Por desacordos, o autor faz referência à defesa de enunciados

contraditórios, posto que segundo o mesmo, o direito não pode ser descrito como

um dado objetivo, pois se assim fosse, não se poderia explicar os conflitos

interpretativos. Sustenta que os desacordos teóricos se processam no campo dos

critérios mesmos que determinam o significado dos termos, ou seja, o direito é

uma questão de concepção.

Para elaborar a explicação de sua teoria interpretativa,

Dworkin cria uma comunidade imaginária, onde

seus membros seguem um conjunto de regras, que chamam de ‘regras de cortesia’, usando-as em um certo número de situações sociais. Eles dizem: ‘A cortesia exige que os camponeses tirem o chapéu diante dos nobres’117.

Por algum tempo, os membros de tal comunidade seguem

estas regras sem questioná-las, trazendo consigo um caráter de tabu. Porém,

talvez lentamente,

todos desenvolvem uma complexa atitude ‘interpretativa’ com relação às regras de cortesia, uma atitude que tem dois componentes. O primeiro é o pressuposto que a prática da cortesia [...] tem alguma finalidade – que pode ser afirmada, independentemente da mera descrição das regras que constituem a prática. O segundo é o pressuposto adicional de que as

116 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 95. 117 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 57.

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exigências da cortesia [...] não são aquilo que sempre se imaginou que fossem, mas, ao contrário, suscetíveis a sua finalidade118.

Para Dworkin, quando tal atitude interpretativa surge, a

instituição da cortesia deixa de ser mecânica, tendo em vista que as pessoas

buscam um significado para a mesma, reestruturando-a à luz desse significado.

Para demonstrar como a cortesia se modifica, em sua

comunidade fictícia – para posteriormente estabelecer um paralelo com o direito –

Dworkin faz supor que a finalidade da cortesia seja demonstrar respeito aos

membros superiores da hierarquia social, de forma que antes do surgimento da

atitude interpretativa, os membros da comunidade cumpriam sem

questionamentos. Porém, quando a atitude interpretativa se desenvolve,

começam a surgir formas de deferência anteriormente inexistentes, e ainda, as

antigas formas de deferência são rejeitadas:

A interpretação repercute na prática, alterando a sua forma, e a nova forma incentiva uma nova reinterpretação. Assim, a prática passa por uma dramática transformação, embora cada etapa do processo seja uma interpretação do que foi conquistado pela etapa imediatamente anterior.119

Isso significa dizer que

a interpretação realizada introduz uma ‘dimensão crítica’ e uma ‘dimensão construtiva’. [...] a atitude interpretativa implica a busca pelo propósito geral da prática realizada a fim de se que se saiba qual é a melhor maneira de se continuar a prática120.

Nesta linha de pensamento, as concepções das pessoas a

respeito de quais atributos são integrantes do respeito, podem variar para cada

um, sendo que se determinado tipo de respeito não parece mais correto, uma

nova interpretação da prática social se fará necessária. Portanto, é a atitude

crítica de cada cidadão em relação a determinada prática – nesse caso a cortesia

118 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 57. 119 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 59. 120 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 179.

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– que fará com que se instaure uma atitude interpretativa com o intuito de buscar

o que seja a melhor forma de realizar aquela prática que, conseqüentemente, irá

se transformar com o decorrer do tempo.

Dworkin então passa a analisar mais detalhadamente a

dinâmica dessa transformação, observando os tipos de juízos, decisões e

argumentos que produzem cada resposta à tradição, considerando como a atitude

interpretativa funciona a partir do ponto de vista dos intérpretes. Porém, para

Dworkin, mesmo um relato preliminar será controvertido, posto que se a

comunidade utiliza-se de conceitos interpretativos, o próprio conceito de

interpretação será um deles: “uma teoria da interpretação é uma interpretação da

prática dominante de usar conceitos interpretativos121” e relacionando tal

afirmação ao direito, se o mesmo “é um conceito interpretativo, qualquer doutrina

digna desse nome deve assentar sobre alguma concepção do que é

interpretação122”.

Dworkin estabelece então a semelhança entre a

interpretação artística e a interpretação referente à prática social: “ambas

pretendem criar algo criado pelas pessoas como uma entidade distinta delas123”, e

ainda, ambas dizem respeito a intenções, designando-as como interpretação

criativa. Sob essa alcunha, o autor afirma que a mesma preocupa-se

essencialmente com o propósito, não com a causa, sendo uma questão de impor

um propósito à prática, de modo a torná-la o melhor exemplo possível da forma à

qual pertence, construindo, desta maneira, essa melhor forma.

Sgarbi relaciona tal análise com a interpretação no campo

jurídico, posto que “quando se está interpretando uma prática jurídica o objetivo é

o de oferecer a melhor visão do resultado coletivo de suas interações124.”

Portanto, considerando que

121 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 60. 122 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 60. 123 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 61. 124 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 178.

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a interpretação construtiva decorre de uma ‘atitude interpretativa’, ela apresenta os mesmos pressupostos do exemplo da cortesia: tem um valor e é compreendida, aplicada, ampliada, modificada, atenuada ou limitada segundo esse valor125.

O autor passa então a refinar essa interpretação construtiva,

para que a mesma se torne uma ferramenta útil e apropriada ao estudo do direito

como prática social, estabelecendo a distinção entre três etapas distintas do

processo de interpretação:

Primeiro, deve haver uma etapa ‘pré-interpretativa’ na qual são identificados as regras e os padrões que se consideram fornecer o conteúdo experimental da prática. [...] é preciso haver um alto grau de consenso [...] se se espera que a atitude interpretativa dê frutos. [...]. Em segundo lugar, deve haver uma etapa interpretativa em que o intérprete se concentre numa justificativa geral para os principais elementos da prática identificada na etapa pré-interpretativa. Isso vai consistir numa argumentação sobre a conveniência ou não de buscar uma prática com essa forma geral. [...] deve ajustar-se o suficiente para que o intérprete possa ver-se como alguém que interpreta essa prática, não como alguém que inventa uma nova prática. Por último, deve haver uma prática pós-interpretativa ou reformuladora à qual ele ajuste sua idéia daquilo que a prática ‘realmente’ requer para melhor servir à justificativa que ele aceita na etapa interpretativa126.

Portanto, a primeira etapa, denominada pré-interpretativa

por Dworkin, é o momento onde a natureza da prática é identificada,

proporcionando os dados brutos, posto que nesta o intérprete “coleta regras,

padrões e descrições do comportamento característico dos participantes e de

suas atividades, os quais se constituem nos elementos da prática em questão127.”

125 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 180. 126 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 82. 127 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 105.

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Isabel Lifante Vidal128 afirma que neste estágio se identifica

o objeto interpretado como pertencente a um determinado gênero, o que no

direito, equivaleria à identificação dos materiais jurídicos, como as regras

positivadas. Segundo a autora, Dworkin afirma que deve existir um acordo sobre

o que seja o objeto interpretado, tendo em vista que posteriormente os juristas

deverão argumentar sobre o que seja a melhor interpretação possível deste, e,

naturalmente, o objeto deverá ser o mesmo para todos.

Nesta etapa Dworkin admite que deve existir uma subteoria

sobre a identidade do direito onde, segundo Isabel Lifante Vidal, a regra de

reconhecimento se encaixa plenamente:

[...] este requisito de que exista consenso na comunidade acerca da identificação dos materiais jurídicos coincide plenamente com a exigência de uma regra de reconhecimento (mais ou menos conforme a caracterização hartiana da mesma) que opere como uma prática social aceita, consistente em reconhecer como jurídicos certos materiais129.

A segunda etapa é denominada por Dworkin como

propriamente interpretativa, onde o intérprete busca uma justificação à prática,

que foi identificada na primeira etapa, mostrando neste ponto, o apelo normativo

da mesma130, em outras palavras, busca-se descobrir qual o sentido da prática

social. Trazendo tal aplicação ao direito, Isabel Lifante Vidal afirma que no

mesmo, o sentido a ser descoberto encontra-se nos princípios, que permitem “ver

a prática como uma unidade que serve a certos valores e propósitos131”, inserindo

a idéia do direito como integridade132.

128 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporánea. Centro

de Estudios Políticos y Constitucionales, Madrid: 1999, p. 286. 129 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 287,

tradução nossa. 130 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 105. 131 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 289,

tradução nossa. 132 O direito como integridade será esclarecido no próximo subitem do presente estudo.

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Neste sentido, o intérprete deverá operar como se o direito

fosse constituído como fruto de única vontade “e seus princípios representam

suas intenções133”. Nesta fase, podem aparecer diversas teorias conflitantes entre

si, que possuem a capacidade de justificar a prática social, bem como dar conta

de todos os materiais jurídicos identificados na primeira fase da interpretação, ou

ainda, nenhuma que possa abarcar todos estes materiais. É neste ponto que

operará uma adequação entre “o sentido descoberto através da interpretação, e

os materiais previamente identificados como jurídicos na etapa pré-

interpretativa134”.

A próxima etapa denomina-se etapa pós-interpretativa e é

onde, de acordo com nosso autor, se elege uma dentre as teorias que surgiram

na etapa antecedente, que possa oferecer a melhor interpretação possível

daqueles materiais jurídicos anteriormente identificados. Os critérios utilizados

para a escolha de uma das teorias

baseiam-se nos valores que podem mostrar a prática em questão como o ‘melhor exemplo possível’ do gênero a qual se considera que pertence. Quais são esses valores que aqui devem operar será estabelecido pelos denominados juízos avaliativos primários que no caso das práticas sociais determinam que estes precisam atender aos valores morais135.

Portanto, o autor propõe que sempre existirá uma

interpretação que poderá mostrar o objeto interpretado como o melhor possível do

gênero interpretado.

Para Isabel Lifante Vidal, a teoria interpretativa de Dworkin

se detêm nesta última fase, objetivando reconstruir o direito partindo do caso

concreto, analisando o que os juízes fazem diante do mesmo e ainda, o que estes

deveriam fazer.

133 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 289,

tradução nossa. 134 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 289,

tradução nossa. 135 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 289,

tradução nossa.

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Dworkin então se pergunta que tipo de teoria filosófica seria

útil às pessoas que adotam a atitude interpretativa até então descrita. Para

responder tal indagação, o autor retorna ao exemplo da comunidade fictícia:

Vamos supor que nossa comunidade imaginária de cortesia se vanglorie de ter um filósofo ao qual se pede, nos verdes anos da atitude interpretativa, que prepare uma exposição filosófica da cortesia. Ele recebe as seguintes instruções: ‘Queremos uma teoria mais conceitual sobre a natureza da cortesia, sobre o que é a cortesia em virtude do próprio sentido da palavra. Sua teoria deve ser neutra sobre nossas controvérsias cotidianas; deve fornecer os antecedentes conceituais ou as normas que regem essas controvérsias, sem tomar partido’136.

Para atender ao pedido formulado pela comunidade, a

explicação do filósofo será histórica, “a instituição tem a continuidade [...] de uma

corda constituída de inúmeros fios dos quais nenhum corre ao longo de todo o

seu comprimento nem a abarca em toda a sua largura137”, tendo em vista que é

um fato histórico que a instituição da cortesia provenha de instituições mais

antigas, modificadas por processos interpretativos, pela atitude interpretativa.

Dworkin utiliza-se de uma metáfora para demonstrar as

diferenças entre “conceito” e “concepção”: o autor afirma que os debates sobre a

instituição da cortesia têm a estrutura de uma árvore:

em termos gerais, as pessoas concordam com as proposições mais genéricas e abstratas sobre a cortesia, que formam o tronco da árvore, mas divergem quanto aos refinamentos mais concretos ou as subinterpretações dessas proposições abstratas, quanto aos galhos da árvore138.

Na comunidade imaginária, todos concordam que a cortesia

é uma questão de respeito – o tronco – porém, divergem quanto as verdadeiras

exigências do respeito – os galhos.

136 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 84. 137 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 86. 138 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 86.

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O entendimento incontestável da relação entre a cortesia e o

respeito formariam uma espécie de patamar sob o qual se formariam novas

concepções, portanto, o respeito oferece o conceito da cortesia, enquanto as

posições divergentes sobre as exigências do respeito, são concepções desse

conceito. Sgarbi afirma que “o conceito não é mais do que o marco a partir do

qual elaboramos os nossos argumentos em relação às exigências de determinado

contexto discursivo139.”

Ou seja, para Dworkin, são as concepções do conceito que

divergem quanto qual é a melhor interpretação do direito140, tendo em vista que

para o mesmo

o contraste entre conceito e concepção é aqui um contraste entre níveis de abstração nos quais se pode estudar a interpretação da prática. No primeiro nível, o acordo tem por base idéias distintas que são incontestavelmente utilizadas em todas as interpretações; no segundo, a controvérsia latente nessa abstração é identificada e assumida141.

Após tal diferenciação, o autor estabelece a existência de

três concepções de interpretação: a interpretação conversacional (ato de

compreender o que outra pessoa disse, sendo intencional); a interpretação

científica (fornece explicação aos fatos encontrados na natureza) e a

interpretação artística ou literária (encontra semelhanças tanto com a

interpretação conversacional como com a interpretação científica).

Para o autor em estudo, se existem desacordos, estes

ocorrem porque os interlocutores pressupõem teorias diversas para um mesmo

objeto interpretado. Desta forma, Dworkin afirma que a interpretação jurídica é

uma espécie de interpretação criativa construtiva que se preocupa com o

propósito, tornando-o o melhor exemplo da prática.

139 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 175. 140 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 175. 141 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 87.

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Dworkin afirma, portanto, que o direito é um conceito

interpretativo como a cortesia, na sua comunidade imaginária, onde os juízes

desenvolvem de acordo com suas próprias convicções, teorias sobre o que seria

a melhor interpretação como instrumento de trabalho no exercício jurisdicional.

Ocorre que as teorias interpretativas “de cada juiz se fundamentam em suas

próprias convicções sobre o ‘sentido’ (...) da prática do direito como um todo, e

essas convicções serão inevitavelmente diferentes, pelo menos quanto aos

detalhes daquelas de outros juízes142”. O que ameniza a existência de tais

divergências é o fato de toda comunidade possuir seus paradigmas de direito –

que “serão tratados como exemplos concretos aos quais qualquer interpretação

plausível deve ajustar-se143 – sob os quais pode assentar-se o processo

interpretativo. Porém, tais paradigmas também estão sujeitos a alterações

operadas através de novas interpretações, onde aqueles são rompidos e surgem

novos para ocupar seus lugares.

Segundo Dworkin, as teorias do direito são interpretações

construtivas, que “tentam apresentar o conjunto da jurisdição em sua melhor luz,

para alcançar o equilíbrio entre a jurisdição tal como o encontram e a melhor

justificativa dessa prática144”. Sob esse ponto de vista, “o voto de qualquer juiz é,

em si, uma peça de filosofia do direito, mesmo quando a filosofia está oculta e o

argumento visível é dominado por citações e listas de fatos145.”

Para desenvolver uma teoria interpretativa que seja

adequada ao exercício jurisdicional dos juízes, de modo a auxiliá-los no momento

de proferirem suas decisões, Dworkin apresenta três concepções antagônicas de

direito, três interpretações abstratas da prática jurídica chamadas:

“convencionalimo”, “pragmatismo jurídico” e “direito como integridade”. Faremos

uma breve exposição sobre as duas primeiras concepções, nos detendo

principalmente na terceira, que é a adotada por nosso autor.

142 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 110. 143 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 88. 144 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 112. 145 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 113.

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No convencionalismo, “o direito é o direito. Não é o que os

juízes pensam ser, mas aquilo que realmente é. Sua tarefa é aplicá-lo, não

modificá-lo para adequá-lo à própria ética ou política146”. Nesta concepção,

o uso e o limite da força são justificados pelas decisões políticas precedentes, ou seja, a finalidade do vínculo entre direito e força remete apenas à previsibilidade e à eqüidade procedimental imposta pelos legisladores. Portanto, ter um direito é afirmar um conjunto de documentos legais (as convenções) que vinculam fortemente o exercício ou atividade dos juízes147.

Nesta concepção, o direito resulta de convenções jurídicas

que determinam que instituições têm em suas mãos o poder dizer como o direito

deve ser feito e, obviamente, de fazê-lo. Aqui, a prática jurídica consiste “no

respeito e cumprimento destas convenções148.”

A perspectiva convencionalista oferece duas teses de

acordo com Dworkin. A primeira afirma que os juízes devem realizar uma

investigação sobre as convenções sociais e jurídicas estabelecidas pela

comunidade, que foram determinantes nas decisões passadas e que justificam o

emprego da coação por parte do Estado, devendo aquele sempre respeitá-las no

ato judicante. A segunda tese propõe que quando inexistem convenções jurídicas

que tratem de determinado tema, inexistem direitos, portanto, o juiz deverá usar

seu poder discricionário para criar um novo direito.

Em relação às duas teses do convencionalismo - que afirma

que é direito é uma aplicação cega149 da lei, limitado ao que as convenções

endossaram – lança sua crítica, afirmando que diante de um caso concreto,

diferentes juízes farão diferentes interpretações das leis e precedentes e portanto,

o conteúdo de uma determinada convenção passa a ser uma questão

146 DWORKIN, Ronald. O Império do direito, p. 141. 147 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 185. 148 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 110. 149 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 113.

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interpretativa, implicando no surgimento de questões morais e políticas,

descaracterizando totalmente o preceito trazido pelo convencionalismo: aquela

aplicação cega da lei, que passa a ser interpretada dando vazão a diversas

opiniões.

No que se refere a segunda tese da acepção

convencionalista trazida por Dworkin, o mesmo afirma que o direito não se esgota

quando inexistem convenções acerca do mesmo, posto que este surge

justamente em casos em que não existe uma “solução convencionalmente

estabelecida150”. Ou seja, o direito é muito mais amplo do que o estabelecido em

convenções jurídicas, inexistindo margem para a aplicação da discricionariedade.

Já o pragmatismo, afirma que

os juízes tomam e devem tomar quaisquer decisões que lhes pareçam melhores para o futuro da comunidade, ignorando qualquer forma de coerência com o passado como algo que tenha valor por si mesmo. Assim, [...] o pragmatismo rejeita a idéia de direito e de pretensões juridicamente protegidas [...]151.

Dworkin afirma que tal concepção possui um caráter

altamente discricionário e ainda, que a mesma encontra a justificativa necessária

para o uso do poder coercitivo por parte do Estado, na eficiência da própria

decisão, posto que nega que as leis e os precedentes são fontes exclusivas do

direito, mas sim que estas devem ser utilizadas apenas enquanto apresentarem

utilidade para predizer uma decisão futura que atenda aos objetivos colocados

pela comunidade. Quando cessar o efeito desejado, “devem as fontes ser

abandonadas152”.

Como o pragmatismo é essencialmente voltado para o

futuro, a coerência com as decisões judiciais torna-se irrelevante se não contribuir

150 VIDAL, Isabel Lifante. La interpretación jurídica em la teoria del derecho contemporânea, p. 263,

tradução nossa. 151 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 119. 152 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 118.

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diretamente para o que a comunidade elegeu como virtudes que possam levar a

felicidade geral.

Esta acepção traz uma forte ameaça à segurança jurídica,

pois não respeitará nem as fontes do direito positivadas, nem os princípios

jurídicos, se estes não coincidirem com o que a comunidade elegeu como válido.

E ainda, a idéia do que seja a “melhor comunidade do futuro” encontra-se

discricionariamente nas mãos dos juízes, sendo este mais um fator que poderá

lesar os direitos individuais dos cidadãos.

Dworkin então propõe a formulação de uma teoria alternativa

às apresentadas anteriormente: o direito como integridade, que aceita o direito e

as pretensões jurídicas apresentadas, oferecendo não apenas previsibilidade ou

eqüidade processual, mas “um tipo de igualdade que torna sua comunidade mais

genuína e aperfeiçoa sua justificativa moral para exercer o poder político que

exerce153” e ainda, sustenta que os direitos e responsabilidades decorrem de

decisões anteriores e por essa razão, têm valor legal.

2.2 INTEGRIDADE NO DIREITO

O direito como integridade sustenta que as afirmações

jurídicas são como opiniões interpretativas que, por essa razão, voltam-se tanto

para o passado quanto para o futuro. Essa concepção “interpreta a prática jurídica

contemporânea como uma política em processo de desenvolvimento154”. Para o

autor, o direito deve ser entendido como algo que é contínuo, dispõe que como

virtude política e jurídica, a integridade deve fazer parte do direito criado pelos

legisladores, sendo coerente com a estrutura dos princípios que fundamentam

essa prática social e, do mesmo modo, as decisões proferidas pelos juízes devem

fazer parte deste todo coerente, devendo apresentar a melhor prática

interpretativa à luz dessa perspectiva de integridade.

153 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 120. 154 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 271.

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De forma resumida, o direito como integridade concebe o

direito como

um modo de aperfeiçoamento da comunidade política, mediante o aprofundamento de seu fundamento moral e a reinterpretação construtiva de sua tradição jurídica. Recusa a idéia do Direito como convenção porque considera que a ordem de direitos e responsabilidades decorre da própria convivência social e política, e não de um estabelecimento arbitrário. Recusa o raciocínio pragmático-utilitarista, porque distingue claramente o raciocínio jurídico do político, não subordinando questões de moral política a considerações teleológico contextuais. Recusa, também, a dualidade entre descobrir um direito pré-existente (como no convencionalismo) e inventar um direito novo (como no pragmatismo), porque entende que a prática jurídica é mais bem compreendida quando se reconhece que as decisões judiciais fazem ao mesmo tempo as duas coisas e nenhuma delas155.

Na teoria interpretativa do direito como integridade, os juízes

são instruídos a identificar direito e deveres legais, “a partir do pressuposto de

que foram criados por um único autor – a comunidade personificada –,

expressando uma concepção coerente de justiça e eqüidade156”. Desta forma, são

verdadeiras as proposições jurídicas que derivam de tais princípios e ainda, do

devido processo legal, que oferecem, segundo Dworkin, a melhor interpretação

construtiva da prática jurídica da comunidade.

Importa esclarecer a natureza da citada comunidade

personificada para uma melhor compreensão da teoria do direito como

integridade. Uma comunidade que aceite a integridade como virtude política, deve

ser vista como um agente moral distinto, pois “as práticas sociais e intelectuais

que tratam a comunidade dessa maneira devem ser protegidas157”. A mesma

promove a sua autoridade moral, assumindo e mobilizando o monopólio da força

155 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 11. 156 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 272. 157 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 228.

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coercitiva, protegendo contra a parcialidade, a fraude e outras formas de

corrupção oficial158.

No que se refere aos membros dessa comunidade

personificada, a integridade

insiste em que cada cidadão deve aceitar as exigências que lhe são feitas e podem fazer exigências aos outros, que compartilham e ampliam a dimensão moral de quaisquer decisões políticas explícitas. A integridade, portanto, promove a união da vida moral e política dos cidadãos [...]159.

Em uma comunidade de princípios regida pela integridade,

seus cidadãos aceitam que são governados por princípios comuns, e não apenas

por regras criadas por um acordo político e ainda, admitem que seus direitos e

deveres políticos não esgotam-se nas decisões tomadas por instituições políticas,

mas que dependem do sistema de princípios que essas instituições adotam e

endossam em suas decisões. Em tal comunidade, existe o debate de quais

princípios devem regê-la, determinando que concepção deve ter de justiça,

eqüidade e devido processo legal.

A história é importante em certo sentido no direito como

integridade:

A integridade não exige coerência de princípio em todas as etapas históricas do direito de uma comunidade; não exige que os juízes tentem entender as leis que aplicam como uma continuidade de princípio com o direito de um século antes, já em desuso, ou mesmo de uma geração anterior. [...] Insiste que o direito – os direitos e deveres que decorrem de decisões coletivas tomadas no passado e que, por esse motivo, permitem ou exigem a coerção – contém não apenas o limitado conteúdo explícito dessas decisões, mas também, num sentido mais vasto, o sistema de princípios necessários a sua justificativa. A história é importante porque esse

158 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 228. 159 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 230.

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sistema de princípios deve justificar tanto o status quanto o conteúdo dessas decisões anteriores160.

Portanto, o direito como integridade não volta-se ao passado

procurando os ideais e objetivos dos políticos que o criaram, mas opera no

presente, só voltando-se ao passado na medida que o enfoque contemporâneo

assim o determine, mas

pretende [...] justificar o que eles fizeram [...] em uma história geral digna de ser contada aqui, uma história que traz consigo uma afirmação complexa: a de que a prática atual pode ser organizada e justificada por princípios suficientemente atraentes para oferecer um futuro honrado161.

Dworkin estabelece uma distinção entre as duas formas de

integridade: a integridade na legislação e a integridade na deliberação judicial:

A primeira restringe aquilo que nossos legisladores e outros partícipes de criação do direito podem fazer corretamente ao expandir ou alterar nossas normas públicas. A segunda requer que, até onde seja possível, nossos juízes tratem nosso atual sistema de normas públicas como se este expressasse e respeitasse um conjunto coerente de princípios e, com esse fim, que interpretem essas normas de modo a descobrir normas implícitas entre e sob as normas explícitas162.

A integridade na prestação jurisdicional é determinante para

aquilo que o juiz reconhece como direito, relacionando-se com os fundamentos do

mesmo. O juiz que aceitar a integridade saberá que os pleiteantes

têm o direito, em princípio, de ter os seus atos e assuntos julgados de acordo com a melhor concepção daquilo que as normas jurídicas da comunidade exigiam ou permitiam na época em que se deram os fatos, e a integridade exige que essas normas sejam

160 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 274. 161 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 274. 162 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 261.

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consideradas coerentes, como se o Estado tivesse uma única voz163.

Dworkin ainda afirma que a integridade é uma norma

fundamental bastante dinâmica e radical, posto que autoriza o juiz a ser

abrangente e imaginativo na busca de uma maior coerência com o princípio

fundamental.

No que se refere a integridade na legislação, nosso autor

afirma que a mesma “exige que o legislativo se empenhe em proteger, para todos,

aquilo que vê como seus direitos morais e políticos, de tal modo que as normas

públicas expressem um sistema coerente de justiça e eqüidade164.”

Portanto, a integridade exige tanto do juiz quanto do

legislador, que “ajam de modo congruente com os princípios e a moral política

que se encontram na base da comunidade política vista como uma comunidade

personificada165.” E ainda, através do direito como integridade,

chega-se [...] a uma interpretação a ser aplicada ao caso concreto. Não aceitar a possibilidade de se chegar a uma interpretação correta do Direito significa a negação de sua força normativa, abrindo-se espaço a decisionismos e arbitrariedades, incompatíveis com a preservação e respeito aos direitos fundamentais contemplados pelos ideais democráticos166.

Nesta linha de pensamento, Dworkin apresenta algumas

exigências da integridade, tais como a “virtude da eqüidade”, que expressa o

princípio de organização e participação da vida política; a “virtude da justiça”, que

pontua a conformidade com um ideal de justo; e o “devido processo legal”, que se

refere à retidão legal na prestação jurisdicional167.

163 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 263. 164 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 266. 165 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 191. 166 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 12. 167 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 190.

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De acordo com o autor, segundo o direito como integridade,

é possível afirmar se as proposições jurídicas são verdadeiras, se estas derivam

dos princípios acima expostos, sendo eles o princípio da justiça, da eqüidade e do

devido processo legal, pois oferecem a melhor interpretação construtiva da prática

jurídica da comunidade.

O uso da integridade na interpretação e aplicação da

Constituição centra-se na idéia de igualdade de tratamento e respeito, sendo um

“corolário da compreensão teórica de democracia como comunidade de princípios

que lhe é indissociável168”. Nosso autor busca, mediante a sua concepção de

integridade, moldar a atitude interpretativa de forma a excluir a utilização da

discricionariedade por parte do julgador, que por sua vez se pautará pelos

princípios da equidade, justiça e devido processo legal, legitimando a decisão

judicial.169

Nesse sentido, Argemiro Martins ressalta que a proposta de

Dworkin de uma construção de decisões coerentes baseadas em princípios

jurídicos recepcionados pela comunidade contrasta com a segurança jurídica

trazida pelo positivismo jurídico, onde existe uma certa previsibilidade. Porém, a

idéia da comunidade de princípios pouco ameaça a segurança jurídica, posto que

a mesma propõem que as decisões sejam pautadas pela aplicação de todos os

princípios que regem uma sociedade, podendo “discordar de decisões e normas

legais por considerá-las inadequadas à teoria geral proposta, mas não poderá

descartar nenhum aspecto central ou relevante sem justificá-lo170”, levando em

consideração o acervo legislativo e jurisprudencial existente.

Dworkin defende que perante a integridade, inexistem duas

ou mais opções para resolver determinada questão judicial, mas sim que existe

uma única resposta correta, pautada pela integridade, excluindo desta forma,

168 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 280. 169 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 280. 170 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 281.

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qualquer forma de discricionariedade. O autor afirma que se existisse mais de

uma maneira de resolver um caso, o juiz teria que utilizar-se de seu poder

discricionário para escolher uma, dentre as opções disponíveis.

Portanto, o que a integridade propõe, “ao postular a teoria da

única e melhor decisão possível, é o duplo dever de evidenciar e fundamentar as

convicções morais forçosamente subjacentes a qualquer decisão judicial com

base em princípios171”.

2.3 INTENÇÃO DO LEGISLADOR

Dworkin constrói um paralelo entre a interpretação artística e

a interpretação jurídica e começa tal explicação com uma indagação: a

interpretação artística consiste em descobrir as intenções do autor?

Dworkin pontua que “a escola da intenção do autor, (...)

baseia o valor de uma obra de arte numa visão estrita e restrita das intenções do

autor172.” Sob esta perspectiva, a interpretação artística envolve inevitavelmente

as opiniões artísticas do intérprete, posto que este tenta encontrar a melhor

maneira de expressar determinada obra, de acordo com seu ponto de vista. É o

que expõe Dworkin:

De modo inevitável, envolve as opiniões artísticas do próprio intérprete exatamente como o sugere a explicação construtiva da interpretação criativa, porque tenta encontrar a melhor maneira de expressar [...] grandes ambições artísticas que Shakespeare (por exemplo) nunca formulou ou, talvez, nem mesmo definiu conscientemente, mas que são produzidas por nós ao perguntarmos como a peça que ele escreveu teria sido mais esclarecedora ou convincente para sua época173.

171 MARTINS, Argemiro Cardoso Moreira; FERRI, Caroline. O problema da discricionariedade em

face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin, p. 282. 172 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, p. 235. 173 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 68.

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A este respeito, Dworkin afirma em o Império do Direito, que

Stanley Cavell ainda adiciona uma maior complexidade à interpretação artística

ao tratar das intenções concretas do artista: “uma intuição faz parte da intenção

do artista quando se ajusta a seus propósitos artísticos e os ilumina de tal modo

que ele a reconheceria e endossaria mesmo que ainda não o tivesse feito174.” Tal

afirmação nos traz o valor artístico do intérprete na reconstrução da intenção do

artista, posto que o julgamento que aquele faz sobre o que o autor teria aceito,

será guiado “por seu senso de quais leituras tornariam a obra melhor e quais as

tornariam pior175.”

No que se refere a interpretação da prática social, Dworkin

estabelece uma distinção entre interpretar os atos e pensamentos dos

participantes um a um e interpretar aquilo que fazem coletivamente, posto que “as

afirmações e os argumentos que os participantes apresentam, autorizados e

estimulados pela prática, dizem respeito ao que ela quer dizer, e não ao que eles

querem dizer176.” Se um cientista social fosse descobrir as opiniões uma a uma,

estaria utilizando-se da interpretação conversacional, mas isso não configuraria

uma interpretação da prática em si:

a interpretação conversacional é inadequada porque a prática a ser interpretada determina as condições da interpretação. [...] Ele (intérprete) ainda precisa de um método interpretativo que possa usar para pôr à prova o julgamento daquela entidade, uma vez descoberto, e esse método não pode consistir numa conversação com essa entidade, ou com qualquer outra coisa.177

Um cientista social que queira interpretar a prática social

deve abandonar o individualismo metodológico e aderir àquela para que possa

compreendê-la. Desta forma, suas conclusões não serão relatos neutros sobre o

que pensam os membros da comunidade sobre a cortesia, por exemplo, mas sim

afirmações sobre a mesma que competem com as afirmações daqueles.

174 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 69. 175 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 69. 176 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 77. 177 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 79-80.

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Desta feita, não se pode determinar,

segundo as intenções do autor, os rumos da obra artístico-literária sem incorrer em uma escolha atual e teórica dos elementos determinantes deste entendimento. Se dissermos ‘é esta ou aquela a intenção do autor’, reveladora de sua concepção original, estamos envolvidos em uma prática interpretativa cujo resultado final não traz nada além da nossa melhor interpretação acerca de sua intenção. Nada obstante, o estado de espírito do autor não é forte suficiente para afirmar ausência de atitude interpretativa, inclusive a sua, acerca de como deveria ser desenvolvida a obra artístico-literária, pois mesmo a intenção do autor pode se desprender da obra tomando independência [...]178.

Dworkin então passa a tratar da interpretação no âmbito

jurídico, fazendo uma transição entre a teoria da intenção do autor, para a teoria

da intenção do legislador, que será exposta na seqüência.

Para demonstrar a teoria da intenção legislativa, Dworkin

recorre a um caso real, onde foi promulgada uma lei de proteção às espécies

ameaçadas, que autoriza o ministro a designar as espécies que em sua opinião

estariam ameaçadas de extinção, e ainda exige de todos os órgãos do governo

que tomem as medidas necessárias para que as mesmas não ponham em risco a

continuidade da existência de tais espécies. Ocorre que um grupo de

preservacionistas que vinha lutando contra a construção de uma barragem no

Tennessee – onde já havia sido investido mais de cem milhões de dólares –

descobriu a existência de um peixe sem qualquer importância ecológica chamado

snail darter, cujo único habitat era no local da construção de tal barragem. A

questão é se o juiz deverá decidir a favor ou contra a interrupção de um projeto

quase terminado, no qual foram investidos milhões de dólares, em favor de um

peixe sem relevância ecológica que deixará de existir com a construção da

barragem.

178 SILVA, Davi José de Souza da. A moralidade política na prática judicial em Dworkin. Anais do

Conpedi, Manaus, 2006. Disponível em: <http://conpedi.org/manaus///arquivos/anais/bh/davi_jose_de_souza_da_silva2.pdf>. Acesso em: 30 julho 2008, p. 6130.

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A teoria da intenção legislativa exige que “as leis devem ser

interpretadas não de acordo com o que os juízes acreditam que iria torná-las

melhores mas de acordo com o que pretendiam os legisladores que realmente a

adotaram179”

Dworkin admite que na prática jurídica norte-americana os

juízes freqüentemente recorrem à declarações feitas por congressistas e outros

legisladores nos relatórios das comissões a respeito da finalidade de uma lei. Tais

declarações formam uma “história legislativa” a que os juízes se submetem. Essa

teoria supõe

que a legislação é uma ocasião ou um exemplo de comunicação, e que os juízes se voltam para a história legislativa quando uma lei não é clara, para descobrir qual era o estado de espírito que os legisladores tentaram comunicar através de seus votos. [...] O modelo condutor dessa teoria é o [...] modelo da conversação habitual180.

Com o propósito de demonstrar a aplicação da tese da

intenção do legislador, Dworkin cria um juiz imaginário chamado Hermes181, que

acredita que a legislação é comunicação, que deve aplicar a lei descobrindo a vontade comunicativa dos legisladores, aquilo que eles estavam tentando dizer quando votaram a favor da Lei das Espécies Ameaçadas, por exemplo182.

Diante de tal realidade, Dworkin faz a seguinte indagação:

será que Hermes deverá levar em conta a intenção dos legisladores que

poderiam ter revogado uma determinada lei, ou mesmo a modificado ao longo dos

anos, mas não o fizeram? Segundo Dworkin, Hermes precisa responder essa

questão para que seja possível colocar em prática a teoria da intenção do

legislador e a esse respeito faz a seguinte explanação:

179 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 378. 180 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 379. 181 Filho de Zeus e de Maia, conhecido pela sua extraordinária inteligência que revelou momentos

após seu nascimento. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 548.

182 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 382.

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Ele (Hermes) não pode encontrar respostas perguntando de que modo aqueles cujas intenções são pertinentes responderiam a elas, uma vez que está tentando descobrir quais intenções são importantes. Não tem escolha a não ser confrontar essas questões no estado de espírito que se segue. Ele tem opiniões sobre a influência que as atitudes, crenças e ambições de grupos particulares de autoridades e cidadãos deveriam ter no processo de legislação. Verá que um conjunto de escolhas que poderia fazer sobre qual intenção deveria valer ao calcular intenção legislativa iria, se os juízes o aceitassem de modo geral, levar esse processo mais próximo de seu ideal, e que outro conjunto de escolhas empurrá-lo-ia para mais longe. Uma vez que a teoria da intenção do locutor por si só não decide quais as intenções que valem, Hermes seria perverso se escolhesse quaisquer respostas do segundo conjunto, em detrimento do primeiro183.

Desta forma, os juízos de Hermes sobre que intenções que

valem serão sensíveis a seu ponto de vista de se os legisladores são levados por

suas próprias opiniões e convicções e, também, ao fato de a existência de

conluios e negociações no momento da ação política representarem ou não uma

corrupção no processo legislativo e democrático e ainda, suas próprias

convicções a respeito da eqüidade e à certeza quanto à legislação.

No decorrer desse processo de descoberta da intenção do

legislador, suponhamos que Hermes decida levar em consideração somente a

intenção dos legisladores no momento da votação, quando a lei foi adotada e este

descobrir que, mesmo dentro desse seleto grupo, as opiniões diferiam umas das

outras. A teoria da intenção do legislador exige que Hermes equilibre essas

opiniões, em forma de alguma intenção grupal mista184.

Diante disso, Dworkin afirma que Hermes deverá recorrer a

seu próprio julgamento político para escolher entre a “intenção da maioria” ou a

um esquema de “pluralidade intencional”. Digamos que o problema de

combinação de intenções se resolva da seguinte forma: Hermes sabe que cada

membro da maioria votou a favor da Lei das Espécies Ameaçadas e assim, tendo

183 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 384. 184 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 385.

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descoberto a intenção de um, descobre a de todos. Nesse momento. Hermes se

depara com uma situação ainda mais complexa: quais as crenças, atitudes e

outros estados de espírito constituem a intenção de um determinado legislador?

A teoria da intenção do locutor liga a intenção à imagem de legisladores pretendendo comunicar alguma coisa em particular e, assim, almeja descobrir o que se poderia pensar que um legislador realmente tinha em mente quando se exprimiu através de seu voto.185

O problema que tal interpretação apresenta, é que a

vontade, isto é, a intenção do legislador no momento de proferir o seu voto pode

encontrar-se maculada, como um refém que não é dono de suas palavras quando

encontra-se ameaçado diante da mira de um revólver, um legislador que votou a

favor da Lei das Espécies Ameaçadas pode lamentar-se por não existir uma

cláusula declarando que o ministro não poderia interromper projetos custosos

uma vez iniciados, pois não teve o poder para inseri-la. Diante disso, Hermes

precisa decidir se a intenção do legislador que é pertinente diz respeito às suas

esperanças ou a suas expectativas, quando estas não são as mesmas.

Nesse momento, Hermes encontra-se novamente diante de

uma dificuldade, pois

começou por aceitar que deveria acatar a intenção legislativa, descobrindo, combinando e aplicando o estado de espírito de algumas pessoas no passado. Mas não pode identificar esses estados de espírito nem com as esperanças, nem com as expectativas dessas pessoas, quando as esperanças e expectativas se dividem186.

Como resposta ao dilema em que se encontra, Hermes pode

seguir um caminho diferente do que se propôs, utilizando um método de

interpretação diferente do que considerou até o momento: a idéia de que

185 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 387. 186 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 390.

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a teoria da intenção do locutor na interpretação estatutária requer que se considere que as intenções de Smith (legislador) residem em suas convicções, ou seja, suas crenças em relação ao que exigiriam a justiça ou a política bem fundada, que podem, é claro, ser diferentes tanto de suas esperanças quanto de suas expectativas187.

Isso significa dizer, que Hermes adotou tal interpretação pois

esta ajusta-se melhor aos objetivos de uma comunidade de princípios, que espera

que seus legisladores ajam com base em princípios e com integridade.

Hermes acredita agora, que as leis devem ser interpretadas

de modo a favorecer a comunidade de princípios, e de forma a “expressar um

esquema coerente de convicção dominante dentro da legislatura que as

aprovou188”. Se essas convicções não são claras, Hermes deverá responder a

essa questão sozinho, posto que não poderá submeter a mesma aos legisladores,

pois a questão é saber se as opiniões deles estão em conflito, e não se eles

acham que estão.

Como se pode observar, Hermes alterou o tipo de

interpretação que estava utilizando, para que fosse possível responder às

questões suscitadas:

Parecia um erro metafísico considerar como essencial a ‘intenção’ da própria legislatura enquanto Hermes estava preso à versão do estado de espírito na teoria da intenção do locutor a propósito da intenção legislativa. Enquanto pensarmos que a intenção legislativa é uma questão daquilo que alguém tem em mente e deseja comunicar através de um voto, devemos considerar fundamentais os estados de espírito dos indivíduos, pois as instituições não têm espíritos, e precisamos nos preocupar com o modo de consolidar intenções individuais numa intenção coletiva e fictícia de grupo. Mas Hermes abandonou a busca por estados de espírito ao decidir que a intenção pertinente de um legislador refere-se a suas convicções gerais, organizadas por uma interpretação construtiva, e não a suas esperanças, expectativas ou opiniões concretas distintas. A interpretação construtiva pode

187 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 390. 188 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 396.

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voltar-se para o histórico de instituições e práticas, tanto quanto dos indivíduos, e Hermes não tem nenhum motivo para atribuir convicções diretamente à legislatura189.

Sendo assim, Hermes optará por interpretar o histórico da

própria legislatura com o intuito de descobrir as convicções que justificariam o que

a mesma fez. Seu motivo é a integridade e o mesmo busca convicções gerais

porque numa comunidade de princípios a legislação deve ser entendida como

expressão de um sistema coerente de princípios. Sendo assim, “podemos deixar

Hermes. Seu método precisa de uma minuciosa elaboração, mas esta não será

feita por ele, uma vez que se tornou gêmeo de Hércules190”, que será estudado no

terceiro capítulo da presente pesquisa.

2.4 ROMANCE EM CADEIA

Conforme o exposto em nosso estudo, Dworkin afirma que a

interpretação criativa busca sua estrutura formal na intenção do autor, “não

porque pretenda descobrir os propósitos de qualquer pessoa ou grupo, mas

porque pretende impor um propósito ao texto [...], que está interpretando191.”

Surge então a comparação entre o direito e as

circunstâncias da interpretação: Dworkin compara o juiz em sua atividade

jurisdicional, a um crítico literário que procura descobrir as diversas dimensões de

valor em uma obra ou peça teatral, por exemplo. A esse respeito, Dworkin aponta

que “seria bom que os juristas estudassem a interpretação literária e outras

formas de interpretação artística192.”

Diante da afirmação de Dworkin que os juízes são

igualmente autores e críticos, posto que introduzem acréscimos na tradição que

interpretam, “podemos encontrar uma comparação ainda mais fértil entre literatura

189 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 402. 190 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 403. 191 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 275. 192 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, p. 221.

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e direito ao criarmos um gênero literário artificial que podemos chamar de

‘romance em cadeia’193.” Desta forma,

em tal projeto, um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante. Cada um deve escrever seu capítulo de modo a criar da maneira possível o romance em elaboração, e a complexidade dessa tarefa reproduz a complexidade de decidir um caso difícil de direito como integridade194.

Os romancistas devem tentar escrever o melhor romance

possível, como se este fosse escrito por somente um autor, de modo a não

transparecer que é a obra de diversas mentes. Para que isso ocorra de forma

satisfatória, exige-se do autor uma avaliação de toda a obra, adotando um ponto

de vista que se forma aos poucos de modo a permiti-lo a trabalhar personagens,

tramas e objetivos. A interpretação que o mesmo adotar deve fluir na totalidade

no texto, possuindo um poder explicativo geral que não deixe de fora nenhuma

trama secundária ou outro aspecto estrutural do texto. Dworkin demonstra as

peculiaridades e responsabilidades do romancista no processo de interpretação e

criação:

[...] cada romancista, a não ser o primeiro, tem a dupla responsabilidade de interpretar e criar, pois precisa ler tudo o que foi feito antes de estabelecer, no sentido interpretativista, o que é o romance criado até então. Deve decidir como os personagens são ‘realmente’, que motivos os orientam, qual é o tema ou o propósito do romance em desenvolvimento, até que ponto algum recurso ou figura literária, consciente ou inconscientemente usado, contribui para estes, e se deve ser ampliado, refinado, aparado ou rejeitado para impelir o romance em uma direção e não em outra. Isso deve ser interpretação em um estilo não subordinado à intenção porque, pelo menos para todos os romancistas após o segundo, não há um único autor cujas

193 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 275. 194 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 276.

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intenções qualquer intérprete possa, pelas regras do processo, considerar como decisivas195.

Para demonstrar a descrição abstrata da opinião do

romancista, Dworkin apela a um exemplo: o autor nos faz supor que somos um

romancista na parte inferior da cadeia e que Dickens nunca escreveu Conto de

Natal. Recebemos a tarefa de dar continuidade à obra citada, sendo que existem

duas interpretações possíveis do personagem principal, em uma, Scrooge é

irremediavelmente mau e noutra, o mesmo é inerentemente bom, porém

corrompido pelos valores do capitalismo. A escolha de uma das interpretações

acima é determinante para o desenvolvimento da história, tendo em vista que

cada uma levará por um caminho diametralmente oposto. Neste momento, “você

(...) vai escolher a interpretação que, em sua opinião, possa tornar sua obra mais

significativa ou melhor de alguma outra maneira196”, e esta dependerá de suas

próprias convicções. Tal exemplo nos traz algumas indagações:

Sua opinião sobre a melhor maneira de interpretar e dar continuidade aos parágrafos do Conto de Natal que recebeu é uma opinião livre ou forçada? Você é livre para pôr em prática suas próprias hipóteses e atitudes sobre a verdadeira natureza dos romances? Ou é obrigado a ignorá-las por ser escravo de um texto no qual não pode produzir alterações?197

Como resposta, Dworkin argumenta que sempre que

preferirmos uma interpretação de um texto por razões sólidas, nossas convicções

automaticamente se ajustarão, endossando-a como uma boa leitura desse texto.

Tendo em vista o exposto, assim como num romance em

cadeia,

a interpretação representa para cada intérprete um delicado equilíbrio entre diferentes tipos de atitudes literárias e artísticas, em direito é um delicado equilíbrio entre convicções políticas de diversos tipos; tanto no direito como na literatura, estas devem ser

195 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, p. 237. 196 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 280. 197 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 281.

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suficientemente afins, ainda que distintas, para permitirem um juízo geral que troque o sucesso de uma interpretação sobre um tipo de critério por seu fracasso sobre outro198.

Portanto, trazendo a formulação do romance em cadeia para

o campo jurídico, Dworkin afirma que esse é o papel que deve ser exercido pelo

juiz em suas decisões. Sgarbi pontua que

a tese de Dworkin, portanto, consiste na defesa de os diversos autores – legisladores e juízes – como qualquer escritor de um romance em cadeia estarem vinculados à prática revelada pela história e cuja presença implica compreender sua projeção também para os outros casos futuros. [...] Assim como o último romancista da cadeia, o juiz não deve simplesmente reproduzir decisões, muito menos criar decisões do nada; ele deve ser consciencioso da unidade a qual sua tarefa está inserida199.

Cabe ressaltar que a escolha do juiz como paradigma, por

nosso autor, deve-se ao fato de neste encontramos uma maior clareza da

estrutura argumentativa judicial, que integra o discurso normativo. Nesse sentido,

o mesmo deve agir como um romancista na corrente, lendo

tudo o que os outros juízes escreveram no passado, não apenas para descobrir o que disseram, ou seu estado de espírito quando o disseram, mas para chegar a uma opinião sobre o que esses juízes fizeram coletivamente, da maneira como cada um de nossos romancistas formou uma opinião sobre o romance coletivo escrito até então. [...] Ao decidir o novo caso, cada juiz deve considerar-se como parceiro de um complexo empreendimento em cadeia, do qual essas inúmeras decisões, estruturas, convenções e práticas são a história; é seu trabalho continuar essa história no futuro por meio do que ele faz agora. Ele deve interpretar o que aconteceu antes porque tem a responsabilidade de levar adiante a incumbência que tem em mãos e não partir em alguma nova direção. Portanto, deve determinar, segundo seu próprio julgamento, o motivo das decisões anteriores, qual

198 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 287. 199 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p . 183.

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realmente é, tomado como um todo, o propósito ou o tema da prática até então200.

Portanto, o juiz ao agir como um romancista da cadeia, o

interpretará utilizando-se de uma teoria política, cujo fundamento encontra-se no

que foi escrito no passado, nas antigas decisões judiciais. “A teoria jurídica é o

pólo epistêmico da atitude interpretativa dos juízes donde se inferem valorações,

ou seja, decisões cuja estrutura argumentativa é moralmente significada201”,

delimitando, desta forma, a interpretação da invenção de novos direitos.

Da mesma forma que na interpretação literária, o objetivo é

interpretar a obra de modo que esta seja vista como uma obra de arte mais

valiosa, atentando para suas características como identidade e integridade, a

interpretação jurídica também deve ajustar-se a uma prática semelhante a

descrita anteriormente e demonstrar sua finalidade ou valor.

Para demonstrar o processo de tal interpretação no âmbito

jurídico, Dworkin utiliza-se de Hércules, um juiz imaginário que aceita o direito

como integridade. A atuação de Hércules será desenvolvida e aprofundada no

terceiro capítulo do presente estudo.

200 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio, p. 238. 201 CHUEIRI, Vera Karam de. Filosofia do direito e da modernidade: Dworkin e a possibilidade de um

discurso instituinte de direitos, p. 102.

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CAPÍTULO 3

HÉRCULES E SEU PAPEL COMO JUIZ IDEAL

3.1 APRESENTAÇÃO DE HÉRCULES

Como se pode constatar mediante o desenvolvimento dos

capítulos antecedentes, Dworkin defende existir sempre uma resposta correta a

todos os casos judiciais que se apresentem a um juiz, e ainda, que esta solução

deve ser preexistente à atividade interpretativa “posta em evidência202" pelo

mesmo.

Importa esclarecer a origem da mitologia grega de Hércules,

para que se possa compreender a eleição do mesmo por nosso autor, para

nomear o juiz perfeito. De acordo com Junito Brandão, Hércules é filho de

Alcmena – filha de Eléctrion, rei de Micenas – e Zeus, que por sua vez era casado

com Hera, deusa imortal. Zeus se fez passar por Anfitrião – marido de Alcmena –

e teve com a mesma três noites de amor, das quais nasceu Hércules. Zeus queria

dar ao mundo “um herói como jamais houvera outro e que libertasse os homens

de tantos monstros203”. Para realizar seu intento, enganou Alcmena e Hera, pois

com o intuito de fazer de Hércules um imortal, fez o mesmo sorver o leite materno

de Hera enquanto a mesma dormia. Hércules é um símbolo heróico da mitologia

grega, por seu caráter justo e sua força física e moral.

Sendo assim, Dworkin elege como a personificação de seu

juiz ideal, Hércules, que, como dito anteriormente, simboliza um herói forte e

justo, possuidor de além de sua força física, uma moral inabalável.

A este respeito, lembra François Ost que Hércules é

castigado com a maldição de Hera e afirma – em contraposição à construção de

202 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 161. 203 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p. 516.

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Dworkin do perfil desse juiz – que o mesmo não consegue vencer a culpa pelo

fato de Hera ter cometido um infanticídio incitada pela sua existência204.

Nesta linha de pensamento, Germano Schwartz, baseado

nos escritos de Ost, afirma que Hércules, movido pela culpa evocou para si todo o

trabalho de julgar e através de seus braços, alterar a realidade social que, “em

instância última, origina-se de sua culpa205”. Esse autor afirma que Hércules age

como um engenheiro social, deslocando o centro do direito para o juiz.

Em contrapartida, Dworkin afirma que o direito como

integridade consiste em uma teoria composta mais por perguntas do que

respostas e para tanto, utiliza-se de Hércules como um instrumento para

demonstrar a aplicação de sua teoria:

Devo tentar expor essa complexa estrutura da interpretação jurídica, e para tanto utilizarei um juiz imaginário, de capacidade e paciência sobre-humanas, que aceita o direito como integridade206.

A tarefa de Hércules é justamente encontrar os princípios

aplicáveis que façam parte do direito vigente e que justifiquem a história jurídica

da comunidade207, evitando assim, criar direitos e aplicá-los retroativamente,

utilizando o direito como integridade. Nesse sentido, o autor afirma que há uma

força gravitacional dos precedentes atuando nas decisões judiciais, e que esta é

construída pelos argumentos de princípio que lhe fornecem sustentação208,

apresentando aí, a idéia da “teia inconsútil”.

Habermas afirma que Hércules dispõe de

204 OST, François. Júpiter, Hércules, Hermes: três modelos de juez. DOXA, Cuadernos de Filosofia

Del Derecho, Alicante, n. 14, 1993. P. 169-194. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em: 19 outubro 2008, p. 176.

205 SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 26.

206 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 287. 207 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 162. 208 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 165.

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dois componentes de um saber ideal: ele conhece todos os princípios e objetivos válidos que são necessários para a justificação; ao mesmo tempo ele tem uma visão completa sobre o tecido cerrado dos elementos do direito vigente que ele encontra diante de si, ligados através de fios argumentativos209.

Seguindo esta idéia, Dworkin afirma que Hércules deve

tratar os casos como uma teia inconsútil, de forma que sua decisão não conflite

com decisões tomadas no passado, formando uma espécie de trama que não

apresenta emendas nem costuras, não interrompendo o fio argumentativo210.

Pontua:

Ele (Hércules) deve construir um esquema de princípios abstratos e concretos que forneça uma justificação coerente a todos os precedentes do direito costumeiro e, na medida em que estes devem ser justificados por princípios, também um esquema que justifique as disposições constitucionais e legislativas211.

Sendo assim, Hércules não cria novos direitos, mas aplica

os princípios, justificando a decisão como a única resposta certa no direito

vigente, inexistindo assim, a discricionariedade do juiz em sua teoria. Seguindo

esta linha de pensamento, Enrique Haba afirma que nosso juiz constrói as

soluções mais racionais e essencialmente sistemáticas, chegando mediante

procedimentos intelectuais à resposta mais correta, verdadeira, a melhor resposta

para o caso apresentado212.

Este juiz-filósofo pautar-se-á por um esquema de princípios

abstratos e concretos para construir sua teoria argumentativa da única resposta

209 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Trad. Flávio Beno

Siebneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 263. 210 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 166. 211 DWORKIN, 1977, p. 181 apud SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 166. 212 HABA, Enrique P. Rehabilitación del no-saber em la actual teoría del derecho. El bluff Dworkin.

DOXA, Cuadernos de Filosofia Del Derecho, Alicante, n. 24, 2001. P. 165-201. Disponível em <http://www.cervantesvirtual.com>. Acesso em: 19 outubro 2008, p. 173.

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certa para cada caso apresentado, que se encaixa nos termos do direito

estabelecido213.

3.2 O PROCESSO INTERPRETATIVO DE HÉRCULES NO COMMON LAW

Como forma de demonstrar essa teoria, Dworkin utiliza-se

de um caso concreto – McLoughlin – onde Hércules irá desenvolver sua

capacidade argumentativa no Common Law, que segundo nosso autor, a idéia do

romance em cadeia pode ser posta em prática, pois nesse sistema nenhuma lei

ocupa um papel central na atividade jurídica, “os argumentos dizem respeito a

que princípios jurídicos as decisões semelhantes de outrora se basearam214”.

No caso utilizado por Dworkin, o marido e os quatro filhos da

senhora McLoughlin sofreram um grave acidente de carro por volta das quatro

horas da tarde. A mesma encontrava-se em sua casa quando um vizinho trouxe-

lhe a notícia do acidente mais ou menos às seis horas da tarde, e dirigiu-se

diretamente ao hospital, onde foi informada que a filha havia morrido e o restante

da família estava em estado grave. A senhora McLoughlin teve um colapso

nervoso e processou o motorista que causou o acidente por negligência,

pleiteando danos morais.

No caso McLoughlin, ambas as partes utilizaram

precedentes como forma de fundamentar suas pretensões, argumentando que

“uma decisão em seu favor equivaleria [...] a dar continuidade ao desenvolvimento

do direito iniciado pelos juízes que decidiram os casos precedentes215.”

Hércules deverá então proceder como um romancista na

cadeia – desenvolvida no capítulo antecedente – encontrando uma maneira

coerente de continuar desenvolvendo a história que lhe foi passada, como se o

mesmo estivesse escrito os capítulos antecedentes, casando personagens e

tema. Este juiz criterioso e metódico deverá encontrar alguma teoria coerente

213 SGARBI, Adrian. Clássicos de teoria do direito, p. 167. 214 SCHWARTZ, Germano. A Constituição, a Literatura e o Direito, p. 22. 215 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 288.

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“sobre os direitos legais à indenização por danos morais, tal que um dirigente

político com a mesma teoria pudesse ter chegado à maioria dos resultados que os

precedentes relatam216.”

Mesmo antes de ler os casos precedentes, Hércules começa

a selecionar hipóteses que possam interpretá-los da melhor forma possível,

enumerados a seguir:

(1)Ninguém tem direito à indenização, a não ser nos casos de lesão corporal; (2) As pessoas têm direito à indenização por danos morais sofridos na cena de um acidente, por parte de alguém cuja imprudência provocou o acidente, mas não têm direito à indenização por danos morais sofridos posteriormente; (3) As pessoas deveriam ser indenizadas por danos morais quando a prática de exigir indenização nessas circunstâncias reduzisse os custos gerais de um acidente ou, de outro modo, tornasse a comunidade mais rica a longo prazo; (4) As pessoas têm direito à indenização por qualquer dano, moral ou físico, que seja conseqüência direta de uma conduta imprudente, por mais que seja improvável ou imprevisível que tal conduta viesse a resultar em tal dano; (5) As pessoas têm direito moral à indenização por danos morais ou físicos que sejam conseqüência de uma conduta imprudente, mas apenas quando este dano for razoavelmente previsível por parte da pessoa que agiu com imprudência; (6) As pessoas têm direito moral à indenização por danos razoavelmente previsíveis, mas não em circunstâncias nas quais o reconhecimento de tal direito possa impor encargos financeiros pesados e destrutivos àqueles cuja imprudência seja desproporcional a sua falta.

Essa é uma lista parcial das possibilidades trazidas por

Hércules, levantadas pelo fato do mesmo saber que cada uma delas já foi

discutida de alguma forma pela literatura jurídica, sendo que apenas uma pode

figurar na interpretação escolhida. Cada hipótese é estudada por Hércules de

forma a questionar-se se alguém poderia ter dado um veredicto baseado nos

princípios implícitos na interpretação escolhida.

216 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 288.

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Sendo assim, Hércules descartará a hipótese (1), posto que

se aceita, inexistiriam precedentes como os utilizados no caso McLoughlin – que

as pessoas devem ser indenizadas moralmente pelas conseqüências de

acidentes causados por imprudência de outrem aos seus familiares. Descartará

também a hipótese (2) posto que a mesma não “enuncia nenhum princípio de

justiça217”.

A hipótese (3) também não traz nenhum princípio de justiça

ou equidade, mas sim um apelo, uma estratégia política, sendo igualmente

rejeitada por Hércules por não se tratar do tipo de interpretação que está

procurando. A existência da justiça ou equidade na deliberação judicial faz com

que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa de acordo com as mesmas

normas. Como foi dito no capítulo anterior, uma interpretação busca demonstrar o

objeto interpretado da melhor forma possível, sob a sua melhor luz. No direito,

essa interpretação não deve levar em consideração somente as decisões

anteriores, mas também a forma como essas decisões foram tomadas.

Nesse sentido, Dworkin afirma que os legisladores não

precisam justificar quais princípios foram utilizados e porque foram utilizados

quando criaram regras sobre o ato de dirigir carros, estando inclusas aí as regras

sobre a indenização no caso de acidentes.

Sob a perspectiva do direito como integridade, a situação

dos juízes é muito diversa da dos legisladores, posto que o mesmos não possuem

a mesma liberdade destes em um momento de aplicar regras não reconhecidas

anteriormente, devendo basear suas decisões em princípios e não políticas –

como ocorre com os legisladores – justificando por que as pessoas têm direitos

“novos”. Portanto, a interpretação (3) deve ser rejeitada por basear-se unicamente

em argumentos de política, impossibilitando o juiz regido pelo direito como

integridade de aplicá-la por esse motivo.

As interpretações (4), (5) e (6) passariam por essa fase

inicial, pois ajustariam às decisões sobre danos morais tomadas no passado.

217 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 290.

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Hércules passará então a submetê-las a um ponto de vista mais geral da prática

jurídica, isso significa dizer que o mesmo irá por em prova sua interpretação no

que se refere à vasta rede de estruturas e decisões de sua comunidade, de modo

a constatar se a mesma é capaz de justificar essa rede como um todo.

Dworkin afirma que nenhum juiz real poderia submeter sua

interpretação a toda a rede que compõe o direito de uma comunidade, e por esse

motivo imaginou “um juiz hercúleo, dotado de talentos sobre-humanos e com um

tempo infinito a seu dispor. Um juiz verdadeiro, porém, só pode imitar Hércules

até certo ponto218”, analisando os casos imediatamente relevantes até os que

pertencem à mesma área do direito e, possivelmente, abrangendo ainda mais seu

campo de interpretação.

Essa atitude pode aparecer de forma instintiva em juízes

experientes, tendo em vista que estes possuem um conhecimento suficiente para

perceber quais casos seriam capazes de sobreviver a sua adequação, caso esta

fosse ampliada.

Supondo que Hércules demonstre que a indenização seja

indevida nos casos em que o dano físico não era razoavelmente previsível na

época em que a negligência que o causou ocorreu, excluindo assim, a hipótese

(4), restando ainda a (5) e a (6). Para continuar seu processo interpretativo,

Hércules deverá optar pela interpretação que causar um menor dano à

integridade, adequando-a a idéia do romance em cadeia.

Dworkin afirma então a hipótese de uma das alternativas

nunca ter sido reconhecida na retórica judicial – hipótese (6) – enquanto que a

outra sim – hipótese (5), levando ao seguinte questionamento: “[...] a

interpretação (5) se ajusta melhor ao repertório, ou [...] a interpretação (6) é,

afinal, inaceitável?219” Essa seria a questão da adequação trazida pelo romance

em cadeia, existindo a possibilidade de alguns juízes sequer analisarem

seriamente a interpretação (6) por inexistir precedentes neste sentido, enquanto

218 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 294. 219 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 296.

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outros afirmam que a melhor interpretação jurídica de determinados casos

encontram-se disciplinadas em princípios que não foram reconhecidos

explicitamente, mas que oferecem “uma brilhante descrição das decisões

verdadeiras, mostrando-as em sua melhor luz como jamais foram antes

mostradas220.”

Esse impasse, Hércules tratará como uma questão de moral

política, posto que para o mesmo, a história política da comunidade será melhor

se os juízes desta demonstrarem qual o caminho que será seguido no futuro

pelos juízes guiados pela integridade e ainda, tomando “decisões que darão voz e

efeito prático a convicções sobre moral amplamente difundidas na

comunidade221.” Essas opiniões judiciais inseridas nos repertórios jurídicos são

atos da comunidade personificada e devem ser inclusas na esfera da integridade.

Nosso juiz hercúleo prefere de certa forma as interpretações

que não sejam muito recentes e afastadas das decisões já tomadas por outros

juízes, mas se o mesmo constatar que as interpretações recentes são superiores

sob a perspectiva moral, o mesmo estará aperfeiçoando o direito ao optar por

elas.

Dworkin então coloca Hércules em outra situação:

[...] a responsabilidade ilimitada foi aplicada contra um certo número de profissões, mas deixou de sê-lo no caso de um número mais ou menos igual de outras, que nenhum princípio pode explicar essa distinção, que a retórica judicial é tão dividida quanto as decisões reais, e que essa divisão se estende a outros tipos de ações por prejuízos econômicos.

Hércules perceberá que o problema da adequação torna-se

irrelevante nesse caso, devendo o mesmo decidir qual a interpretação mostrará o

histórico jurídico como melhor possível, sob a perspectiva da moral política

substantiva. Para optar entre as duas interpretações – (5) e (6) – nosso juiz

220 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 296. 221 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 297.

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deverá decidir qual das virtudes componentes da moral política – justiça e

equidade – é superior em matéria de justiça abstrata e equidade política.

Para Dworkin, ambas – justiça e equidade – podem andar

juntas, por exemplo, no caso de o público e Hércules partilharem do ponto de

vista onde as pessoas devem ter direito à indenização sempre que forem lesadas

pela negligência dos outros, não importando o quanto essa exigência possa ser

difícil, a interpretação (5) será a eleita.

Mas existem momentos onde há divergência de juízos:

Hércules pode achar que a interpretação (6) melhor corresponde à justiça

abstrata, porém vai contra os desejos do povo. Nesse sentido, se Hércules

optasse pela vontade do povo, estaria preferindo a equidade em lugar da justiça e

essa preferência refletiria um nível superior de suas próprias convicções políticas, a saber, suas convicções sobre como um governo decente, comprometido tanto com a equidade quanto com a justiça, deveria decidir entre as duas nesse tipo de caso222.

Obviamente haverá diversas opiniões de juristas sobre a

equidade e a justiça, e qual o papel que aquela deve desempenhar no momento

de proferir uma decisão, qual a dimensão que a moral popular deve interferir na

ação do Estado, na eleição pelo mesmo de quais princípios aplicar através de seu

poder.

Haverá casos em que uma decisão apoiada pela moral

popular será considerada superior a outra que não o seja, porém, existirão

situações onde o intuito da lei é proteger os indivíduos do que a maioria considera

correto. Aí, o peso da justiça subjugará o da equidade.

Portanto, como podemos observar, a teoria dworkiniana

coloca em evidência a moral política, que passa a integrar a prática judicial223,

estando presente em suas considerações. Nesse sentido, afirma Habermas:

222 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 299. 223 SILVA, Davi José de Souza da. A moralidade política na prática judicial em Dworkin, p. 6141.

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A razão prática emerge do ponto de vista moral e se articula numa norma fundamental, a qual exige a mesma consideração e igual respeito por cada um. A norma fundamental de Dworkin coincide com o principio Kantiano do direito e com o princípio de Justiça de Rawls, segundo cada um tem o direito a iguais liberdades de ação subjetivas224.

Um outro ponto a ser ressaltado, é a forma como Hércules

submete seus casos à adequação, que se dá em uma “série de círculos

concêntricos225”, posto que o mesmo questiona quais interpretações se ajustam a

decisões tomadas sobre danos morais no passado, depois quais se ajustam aos

“casos de dano acidental à pessoa em termos mais gerais, [...] e assim por diante,

até entrar em áreas mais distantes do caso McLoughlin original226”.

Sendo assim, Hércules irá expandindo sua pesquisa de

forma a adentrar em outras áreas do direito. Essa divisão do direito em áreas é

uma característica dominante da prática jurídica, posto que as escolas de direito,

suas bibliotecas dividem os tratados de acordo com o assunto que tratam, como

por exemplo, distinguir os delitos morais dos materiais, os delitos civis dos delitos

criminais e, por conseqüência, a argumentação que fundamenta uma decisão

obedece a estas divisões. Geralmente, as opiniões judiciais reportam o caso que

têm em mãos como pertencentes a alguma área do direito, sendo que os

precedentes e leis que disciplinam essa decisão são extraídas dessa mesma

área. Dworkin afirma que essa classificação “inicial é ao mesmo tempo polêmica e

crucial227”.

Essa divisão serve muito bem ao convencionalismo e ao

pragmatismo, pois estes ao serem questionados sobre determinada questão,

justificam dizendo que sua doutrina não precisa ser coerente com os precedentes,

com as decisões passadas, pois estas pertencem a outro ramo do direito.

224 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 252. 225 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 300. 226 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 300. 227 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 301.

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Já o direito como integridade condena de uma maneira geral

a divisão usual do direito, pois o princípio presente na atividade judicativa regida

pela integridade defende que os juízes devem tornar a lei coerente como um todo

e, para Dworkin, esta empreitada seria melhor realizada se “submetessem alguns

segmentos do direito a uma reforma radical, tornando-os mais compatíveis em

princípio com outros228”, porém, em razão da integridade ser uma atitude

interpretativa, a mesma não pode ignorar a compartimentalização da prática

jurídica, pois incidiria em erro fatal.

Sendo detentor dessas posturas antagônicas, Hércules

deverá uni-las de forma a revelar uma atitude interpretativa construtivista da

compartimentalização, procurando demonstrar essa divisão da prática jurídica em

sua melhor luz. Como essa divisão ocorre de acordo com a opinião pública –

tendo em vista que um dano intencional é considerado mais grave do que um

dano acidental – a mesma servirá para promover uma previsibilidade maior e uma

conseqüente defesa contra reinterpretações radicais que alterem a usual divisão

do direito e, desta forma, permite que “tanto as pessoas comuns quanto os juízes

sob grande pressão interpretem o direito dentro de limites práticos que parecem

naturais e intuitivos229.”

Portanto, Hércules elaborará sua teoria da prioridade local230

respeitando a divisão do direito, onde os limites entre as áreas e o conteúdo das

mesmas reflitam princípios moralmente aceitos, que diferenciam tipos diferentes

de faltas ou de responsabilização, como ocorre entre o direito penal e o civil:

pagar uma indenização e pagar uma multa. Nesse ponto, a diferenciação é frágil

no que se refere aos princípios, mas mesmo assim, Hércules acatará a prioridade

local.

Hércules agirá de outra forma – não aceitando a prioridade

local – quando os limites das áreas do direito são estabelecidos mecânica e

arbitrariamente ou ainda, quando ocorreu uma mudança da moral popular ou

228 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 301. 229 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 302. 230 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 302.

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estas divisões não mais refletem a opinião pública. Isso pode ocorrer quando a

divisão foi elaborada há muito tempo, e não condiz mais com a nova realidade.

Hércules então ignorará o limite entre as áreas que se referem ao caso em que

estiver atuando, criando um novo instituto “que em breve terá um novo nome

ligado a novos cursos de direito e a novos tratados231”. Um exemplo da alteração

gradativa dessa divisão no ordenamento jurídico brasileiro está se operando entre

as áreas de direito público e privado.

Assim como Hércules, os juízes que forem guiados pelo

ideal da integridade, buscam os fundamentos para os casos difíceis em algum

conjunto coerente de princípios “sobre o direito e deveres das pessoas, a melhor

interpretação da estrutura política e da doutrina jurídica de sua comunidade232”.

Estes casos se apresentam quando na análise preliminar, o

juiz não encontra uma entre várias interpretações de uma lei ou precedente,

fazendo com que o mesmo busque qual destas interpretações demonstre em sua

melhor luz a decisão buscada pela comunidade. O julgamento político que o juiz

deverá fazer diante de um caso difícil é complexo, pois envolverá suas próprias

convicções sobre a justiça e equidade, bem como analisar a hipótese de acordo

quando estes valores conflitam entre si. Nesse sentido, Habermas afirma que

Hércules deverá “descobrir a série coerente de princípios capaz de justificar a

história institucional de um determinado sistema de direitos, ‘do modo como é

exigido pela equidade’233.”

Mais uma vez, a questão da adequação encontra-se

presente, no equilíbrio entre as virtudes234.

Sendo assim, os juízes devem considerar provisório

qualquer princípio ou método empírico que tenha sido utilizado no passado,

engajando-se a uma análise mais sofisticada e capaz de solucionar os casos que

lhes são apresentados.

231 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 304. 232 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 305. 233 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, p. 263. 234 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 306.

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3.3 CRÍTICAS AO PROCESSO INTERPRETATIVO DE HÉRCULES

Dworkin passa então a tratar de algumas críticas referentes

ao processo interpretativo de nosso juiz hercúleo, que optou pela interpretação (5)

– que permite a indenização por dano moral causada pela negligência de um

motorista que se fosse sensato, teria previsto o acidente, baseando-se em suas

próprias convicções de que esse princípio é mais justo e equitativo que os demais

– sendo que a primeira delas “acusa Hércules de ignorar o verdadeiro direito dos

danos morais e de substituir suas próprias concepções ao verdadeiro conteúdo do

direito235”.

Essa crítica afirma que nenhum juiz deve se basear em suas

próprias convicções do que seja justiça e equidade, mas sim que a correta

interpretação de decisões passadas deve ser encontrada através de meios

moralmente neutros. O que ocorre é que esse crítico precisará de uma “razão

política para afirmar que as interpretações devem corresponder às intenções dos

juízes do passado236”, portanto, essa interpretação também dependerá de suas

próprias convicções políticas.

Outra crítica elaborada contra Hércules afirma que

É absurdo admitir que exista uma única interpretação correta dos casos de danos morais. [...] Hércules escolheu uma, e o fez por razões claramente políticas; sua escolha reflete apenas sua própria moral política. Nessas circunstâncias, sua única opção consiste em criar um direito novo em consonância com sua escolha. Não obstante, é fraudulento que ele afirme que descobriu, através de sua escolha política, qual o conteúdo do direito. Está apenas oferecendo sua opinião sobre o que este deveria ser237.

235 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 309. 236 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 310. 237 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 311.

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Portanto, de forma sucinta, tal objeção afirma que todas as

interpretações que suportarem o teste de adequação são corretas, inexistindo,

desta forma, uma que seja melhor que a outra, como afirma o direito como

integridade. E ainda, que Hércules não descobriu o verdadeiro conteúdo do direito

no caso McLoughlin, mas sim o que ele acha que este deveria ser.

Para trabalhar a segunda parte desta crítica, convém

estabelecer que os fundamentos do direito que autorizam o uso da coerção: na

concepção do ideal da integridade, o direito encontra seus fundamentos na

integridade, ou seja, na melhor interpretação construtiva das decisões jurídicas do

passado, que condizem com o sentido de justiça e equidade trazido por Hércules

em seu processo interpretativo238 e, portanto, só resta ao mesmo proferir sua

decisão em favor da senhora McLoughlin, por acreditar que o direito a favorece, e

não porque ele acha que este deveria favorecê-la.

Nesse sentido, Hércules estaria ferindo o princípio da

integridade se não optasse pela interpretação que melhor reflita a moral política

como um todo, tendo em vista que o ideal da integridade funda-se na fraternidade

e, se presente na comunidade política, essa se torna uma comunidade de

princípios, que por sua vez busca “os melhores princípios que a política seja

capaz de encontrar239”.

Trataremos agora da primeira parte da crítica em questão,

seja ela: inexiste uma única resposta correta aos casos difíceis, sendo que

Hércules é um impostor ao fingir que suas opiniões subjetivas são superiores aos

que não concordam com ele e ainda, que a prática jurídica é excessivamente

contraditória para oferecer uma resposta coerente no que se refere ao direito

sobre acidentes.

Para Hércules, existe um conjunto de princípios

razoavelmente coerentes para cada segmento do direito, de modo a oferecer uma

interpretação aceitável sobre qualquer questão. Cabe agora esclarecer a distinção

238 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 312. 239 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 314.

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entre competição e contradição entre princípios, para que possamos responder a

crítica imposta.

Vamos supor que Hércules encontre-se diante das

interpretações (5) e (6) e que ambas correspondam a uma grande parte dos

precedentes, mas nenhuma delas ajusta-se ao conjunto delas. Nosso juiz irá

então expandir seu campo de pesquisa, de modo a limitar essa contradição,

chegando ao seguinte ponto: o direito reconhece a existência de dois princípios

pertinentes às perdas que as pessoas sofrem nos acidentes; o primeiro é o da

solidariedade coletiva, onde o Estado deve proteger as pessoas, evitando que as

mesmas sejam arruinadas pelos prejuízos causados pelos acidentes, mesmo

quando foram elas mesmas que os causaram; o segundo princípio, sustenta que

o culpado deve responder pelos danos que causou, dividindo os custos do

acidente entre os agentes privados que o causaram. A este respeito, Hércules

afirma:

Esses são princípios independentes, e considerá-los contraditórios seria um grave mal-entendido da lógica dos princípios. Não é incoerente reconhecê-los como princípios; pelo contrário, qualquer ponto de vista moral seria falho se negasse um dos impulsos. Em alguns casos, porém, vão entrar em conflito, e a coerência exige um sistema não arbitrário de prioridade, avaliação ou acomodação entre eles, um sistema que reflita suas fontes respectivas em um nível mais profundo de moral política240.

Um exemplo de tal situação seria o de um acidente no qual o

culpado se arruinaria caso arcasse com todos os prejuízos causados pelo

mesmo. De acordo com o primeiro princípio, o Estado protegeria o indivíduo das

catastróficas conseqüências de seu ato, posto que estas conseqüências se

constituiriam num acidente também. Já o segundo princípio declararia que se

alguém tem que sofrer o prejuízo, que seja quem causou o acidente, sendo que

aqui, o Estado obrigaria o culpado a indenizar suas vítimas.

A atitude interpretativa de Hércules regida pela integridade

exige que o mesmo encontre um lugar para ambos os princípios – da

240 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 320-321.

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solidariedade e da responsabilidade – e acomode-os da melhor forma possível.

Portanto Hércules subordinaria o primeiro princípio ao segundo, ao menos em

casos de acidentes de automóveis onde seria possível obter o seguro de

responsabilidade junto à iniciativa privada.

Importa ressaltar que as ambições interpretativas de

Hércules encontram seu fundamento no direito como integridade, que busca

colocar uma certa ordem à doutrina,

em vez de descobrir a ordem das forças que o criaram. Esforça-se por chegar a um conjunto de princípios que possa oferecer à integridade um sistema para transformar os diferentes laços da corrente do direito numa visão de governo dotada de uma só voz, mesmo que muito diferente das vozes dos líderes do passado241.

Sendo assim, o direito como integridade no qual Hércules se

baseia para proferir suas decisões busca e acompanha as transformações

sociais, bem como as alterações dos limites das áreas do direito, buscando a

interpretação construtiva que melhor reflita a moral política da comunidade de

princípios.

Outra crítica erigida contra Hércules trata-o como um mito,

pois afirma que nenhum juiz mortal terá seus poderes, considerando absurdo tê-lo

como modelo a ser seguido. Afirma ainda que os verdadeiros juízes decidem os

casos difíceis de forma instintiva, sem elaborar diversos testes em relação aos

princípios políticos e morais e suas possíveis interpretações. Afirma ainda que “se

decidissem imitar Hércules, tentando, em cada caso, defender uma teoria geral do

direito, iriam ver-se paralisados enquanto sua pauta de causas pendentes ficaria

sobrecarregada242.”

Nosso autor afirma que esse crítico entendeu de forma

errônea o exercício desenvolvido por Hércules, posto que o mesmo visa

demonstrar a estrutura oculta da interpretação que leva às sentenças, de forma a

deixá-la aberta aos estudos e críticas.

241 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 325. 242 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 315-316.

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Hércules nos é útil justamente por ser mais reflexivo e

autoconsciente243 do que qualquer juiz verdadeiro precisa ser, mas possuidor de

virtudes que todos deveriam ter: eficiência e capacidade de administrar com

prudência. No que se refere aos juízos do mesmo, estes buscam seus

fundamentos na mesma matéria e possuem a mesma natureza dos juízos de um

juiz real, “ele faz o que eles fariam se tivessem toda uma carreira a dedicar a uma

única decisão244”.

3.4 HÉRCULES E AS LEIS

Como já tratamos do processo interpretativo que nosso juiz

hercúleo realiza em casos regidos pelo Common Law, importa agora, analisar

como Hércules interage com as leis positivadas através do caso do snail darter já

tratado no capítulo anterior: Hércules precisará decidir se a Lei de Espécies

Ameaçadas concede ao “ministro do Interior o poder de barrar um grande (e

quase concluído) projeto federal para preservar um peixe pequeno e, do ponto de

vista ecológico, nada interessante, de modo que [...] precisa decidir como

interpretar leis cujo sentido não é muito claro245.”

Hércules irá agir como um romancista da cadeia, sendo que

os legisladores do Congresso serão como um autor anterior a ele na cadeia do

direito, mesmo que com responsabilidades distintas deste, mas operando como

um colaborador que continuará o trabalho a ser desenvolvido da forma que achar

que melhor dará continuidade à história. Nosso juiz deverá se perguntar quais as

questões políticas que regem a sua decisão, sobre quais direitos a lei criou, ou

seja, qual a interpretação que melhor corresponde ao desenvolvimento político

dessa lei, sendo estas a concessão ou não do poder ao ministro de interromper

projetos dispendiosos e quase concluídos.

243 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 316. 244 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 316. 245 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 377.

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De acordo com o capítulo anterior, Hércules não se

preocupará em descobrir qual foi a intenção do legislador, quais os ânimos dos

mesmos no momento da decisão, tal qual Hermes fez de forma infrutífera, mas

sim tratará a lei como um resultado da integridade, seja este adotar uma atitude

interpretativa sobre os eventos políticos que resultaram na aprovação da lei. O

mesmo fará uso das anotações nos legisladores no processo de votação não para

constatar qual o estado de espírito destes, mas sim tratando-as como eventos

políticos importantes, posto que a história que “ele interpreta começa antes que a

lei seja aprovada e continua até o momento em que deve decidir o que ela agora

declara246.”

Para Hércules, a legislação deve ser tratada como fruto de

um sistema coerente de princípios, fundado no direito como integridade. Para

encontrar uma solução para o caso do snail darter, nosso juiz deverá apresentar a

história social em sua melhor luz, levando em consideração o todo, ou seja, sua

interpretação deverá ir além de suas convicções sobre justiça e equidade,

abarcando seus ideais de integridade, equidade política e devido processo legal,

“na medida em que estes se aplicam especificamente à legislação em uma

democracia247”.

Sendo assim, a integridade irá direcionar a justiça, exigindo

de Hércules uma interpretação para cada lei que o mesmo aplicar, de forma que

este descubra quais princípios e políticas farão desta interpretação o melhor

exemplo da aplicação desta lei e o que esta requer. Portanto, Hércules deverá

levar em consideração tanto as justificativas de princípios como as de política,

podendo haver situações onde não fique claro qual destas melhor se aplica ao

caso.

Suponhamos que Hércules apresente como justificativa

política da Lei das Espécies Ameaçadas, a proteção das espécies em perigo,

porém não aceite que uma política razoável de preservação endosse a

interrupção de uma represa quase concluída. Nesse momento, Hércules poderia

246 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 380. 247 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 405.

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apresentar uma justificativa política rival: a de que os recursos públicos não

devem ser desperdiçados. Ocorre aqui, uma atribuição de peso entre as

justificativas políticas dentro da lei, dependendo do peso da política principal – de

preservação das espécies – a definição do rumo da decisão.

Como veremos, por respeitar a equidade política, Hércules

levará em consideração a opinião pública da forma como esta se exprime nas

declarações ligadas ao processo legislativo. Na prática jurídica norte-americana é

dado grande valor às declarações feitas por congressistas ou senadores no

momento da apresentação de um projeto de lei, influindo na forma como esta

deverá ser interpretada posteriormente.

Para Hércules, “as declarações de propósitos oficiais, feitas

na forma canônica estabelecida pela prática da elaboração legislativa, deveriam

ser consideradas, elas mesmas, normas do Estado personificado248”, que de

acordo com o direito como integridade, deve ser regido por princípios em sua

atuação.

Sendo assim, a comunidade de princípios não encara as leis

como uma comunidade baseada em códigos, nas quais aquelas não têm nenhum

significado mais profundo, mas as reconhece como expressão do compromisso

estabelecido entre a comunidade e a moral política. Esse compromisso

demonstra-se através do costume do histórico legislativo e das declarações de

propósitos e convicções institucionais feitas em nome do Estado. Como

conseqüência, esse costume encoraja os integrantes da comunidade a

acompanharem e analisarem o sistema político, posto que como dito

anteriormente, este deve ser uma expressão do compromisso entre a comunidade

e a moral política. Porém, cabe ressaltar que o

histórico legislativo oferece uma interpretação contemporânea da lei que ela envolve, uma interpretação que posteriormente pode ser revista pelos tribunais ou pelo próprio legislativo, ainda que,

248 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 410.

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em retrospecto, qualquer revisão importante faça do histórico legislativo objeto de crítica249.

Desta forma, Hércules tem poder tanto para considerar as

declarações que compõem o histórico legislativo como parte integrante da lei,

como para não as considerar como parte da mesma, posto que uma comunidade

de princípios diferencia atos legislativos performativos e interpretação explicativa

desses atos250.

No tocante a história legislativa da Lei das Espécies

Ameaçadas, o Congresso deixou claro em decisões tomadas depois da votação

da mesma, que a represa da AVT não deveria ser ameaçada. Hércules usará

essas declarações do Congresso – que fazem parte da documentação pública – e

decidirá em favor da conservação da represa em detrimento do peixe, pois

acredita que interpretar a lei desta maneira irá torná-la melhor do seu ponto de

vista político.

Hércules rejeita a máxima da teoria do intenção do locutor

que afirma que é no momento da criação da lei, e somente neste momento, que a

mesma recebe seu único e eterno significado, mas sim interpreta a lei desde

antes de sua criação, estudando o seu processo antes mesmo que ela se torne

uma lei e indo muito além desse momento, utilizando esse desenvolvimento

contínuo da mesma de forma que sua interpretação acompanha a evolução

histórica dela.

Nosso juiz hercúleo não acredita que a equidade deve ser

levada em consideração apenas no momento da criação da lei, mas também

posteriormente, direcionando seu estudo não para a opinião pública expressa no

início, mas para a que é expressa no presente. Portanto, “o argumento decorrente

da equidade terá um impacto muito diferente do que teria se o caso tivesse sido

apresentado a ele muito antes251.”

249 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 414. 250 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 414. 251 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 418.

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Ocorrerá o mesmo processo no tocante a integridade

textual, pois Hércules levará em consideração decisões do Congresso e dos

tribunais ocorridas posteriormente à criação do texto da lei, verificará as

mudanças da opinião pública e das circunstâncias ecológicas (no caso do snail

darter), de forma que a interpretação será diferente do que seria no momento da

criação da lei.

Constata-se portanto, que Hércules levará cada vez menos

em consideração o histórico legislativo original, pois ele interpreta a lei em

movimento, no que esta se transformou, posto que o “relato que ele deve tornar

tão bom quanto possível, é o relato inteiro através de sua decisão e para além

dela252.”

Um outro ponto a ser tratado é sobre a questão da

obscuridade da lei. Quando para Hércules uma lei não é clara? Dworkin responde

esta pergunta afirmando que o termo “obscuro” “é mais “o resultado que a ocasião

do método de Hércules para interpretar as leis253”, de forma que o mesmo só

considera uma lei obscura quando existirem bons argumentos que fundamentem

as duas interpretações em conflito. Dworkin ainda afirma que

quando não houver dúvida, a lei é clara, não porque Hércules tenha alguma forma, fora de seu método geral, de distinguir entre usos claro e obscuro de uma palavra, mas porque o método que ele sempre utiliza é de tão fácil aplicação que se aplica por si próprio254.

Sendo assim, pode-se concluir que o método de Hércules é

aplicável tanto aos casos difíceis, onde a lei não é clara em relação à sua

aplicação, como nos casos fáceis, não necessitando de um outro método para

diferenciar as leis claras das obscuras, posto que o seu aplica-se a qualquer

situação apresentada, é capaz de abarcar todas as situações jurídicas que lhe

forem apresentadas, sejam elas difíceis ou fáceis, claras ou obscuras.

252 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 419. 253 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 422. 254 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 422.

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3.5 HÉRCULES E OS CASOS CONSTITUCIONAIS

Passaremos a tratar de como são tratados os casos

constitucionais sob a perspectiva do direito como integridade, que rege a teoria

interpretativa de Hércules, tendo em vista que os juízes são responsáveis pela

concretização das expectativas constitucionais255.

Para demonstrar qual o papel desempenhado pela

Constituição na teoria do direito como integridade, Dworkin utiliza-se do

argumento do presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos em 1803, John

Marshall, que colocou que “o poder e o dever da Corte de fazer cumprir a

Constituição derivava da própria declaração contida nesse documento, de que a

Constituição era a norma jurídica suprema do país256”.

Este jurista – Marshall – decidiu que todos os tribunais e a

Suprema Corte, em última instância, eram os guardiões dos direitos presentes na

Constituição, de forma que os mesmos possuíam o poder de declarar inválidos

atos do governo ou outros órgãos públicos, sempre que estes excederem os

poderes que lhes foram outorgados na Constituição, máxima que é aplicada até

hoje.

A questão que se apresenta é se a Suprema Corte deve

chegar, ou mesmo ultrapassar certos limites para proteger os direitos outorgados

pela Constituição, mesmo que para tanto se exija um julgamento político. Sabe-se

que o modelo da separação dos poderes não confere ao Judiciário a participação

em decisões públicas257, porém, as relações do mundo contemporâneo atingiram

uma complexidade maior, exigindo cada vez mais um poder Judiciário

participativo, capaz de decidir conflitos de índole política, posto que estes

255 CASTRO, Caterine Vasconcelos de. O papel dos juízes nas democracias constitucionais

segundo Ronald Dworkin. Acre: Revista da Procuradoria Geral do Estado do Acre, n° 4, 2007. P. 197-200. Disponível em < http://www.ac.gov.br/pge/biblioteca/revistas/revista04/>. Acesso em: 19 outubro 2008, p. 197.

256 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 426. 257 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 2.

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apresentam-se com uma freqüência crescente procurando soluções diante do

mesmo.

A resposta de Dworkin à questão da judicialização da

política, é que o juiz não passa a criar leis – papel este exercido pelo Poder

Legislativo, também guardião da integridade – mas sim resguarda os princípios e

as instituições democráticas258.

Apresenta-se então o argumento da estabilidade, que afirma

que uma sociedade será mais justa e equitativa, se respeitar a vontade dos

autores da Constituição sempre que esta for aplicada, sem se importar o quão

obsoletas se tornaram estas com o decorrer do tempo, pois assim, estará

presente a estabilidade na aplicação da Constituição.

No direito como integridade, a previsibilidade também tem

importância, mas uma importância relativa:

quando a certeza é especialmente importante, como nos instrumentos negociáveis, o fato de determinada regra ter sido reconhecida e aplicada a casos anteriores constituirá um forte argumento para o lugar que ocupa na melhor interpretação dessa parte do direito. Quando a certeza for relativamente desimportante, seu poder no argumento interpretativo será correspondentemente mais fraco259.

Portanto, na perspectiva adotada por Hércules – da

integridade no direito – a prática constitucional pode ser interpretada levando em

consideração não só a estabilidade, mas também o esquema geral do federalismo

existente260.

No que se refere aos direitos individuais assegurados pela

Constituição, tais como a liberdade de expressão, tratamento igualitário na

disposição de recursos públicos261, quando estes vão de encontro com o Estado,

258 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 3. 259 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 439-440. 260 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 440. 261 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 440-441.

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devem ser tratados como uma “expressão coerente de justiça262”, segundo a

integridade no direito. Isso porque nem sempre uma lei que expresse a vontade

da maioria será justa e ainda, que a expressão da democracia não consiste na

simples obediência da regra dessa maioria263. Nosso autor defende a restrição da

soberania popular em alguns casos, para proteger os direitos e liberdades

individuais.

Hércules é então promovido: vai para a Suprema Corte dos

Estados Unidos onde se depara com o caso Brown – terminada a Guerra Civil, a

Constituição foi emendada, de forma a garantir a igualdade de todos perante a lei,

só que a segregação racial continuava sendo praticada, de forma que os negros

só poderiam freqüentar escolas segregadas com outros negros264. Em 1954, a

questão na Décima Quarta Emenda foi trazida à tona em uma ação na qual

os pleiteantes afirmam que o esquema da segregação racial entre as escolas públicas do Kansas é inconstitucional porque lhes nega a igualdade perante a lei, apesar de sua longa história nos estados do Sul, e apesar da decisão aparentemente contrária no caso Plessy vs. Ferguson – que colocava as mesmas questões de princípio – a qual vigorava desde 1896265.

Como sabemos, Hércules tem a sua maneira de lidar com as

leis: o mesmo considera todos os aspectos que a circundam, realizando seu

julgamento político delimitado pela integridade, presentes a equidade e a justiça

nesse processo, porém, em casos constitucionais, o mesmo irá desenvolver uma

estratégia especial, transformando-a em “uma teoria operacional do julgamento

de matéria constitucional266, posto que a Constituição é o fundamento para a

criação de outras leis, e por esse motivo, a interpretação de Hércules deverá ser

apropriada, devendo ajustar-se

262 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 441. 263 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 8. 264 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 36. 265 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 453. 266 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 454.

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às disposições mais básicas do poder político da comunidade e ser capaz de justificá-las, o que significa que deve ser uma justificativa extraída dos aspectos mais filosóficos da teoria política.267

Hércules começará por considerar a cláusula de igualdade

perante a lei da seguinte forma: “as decisões e disposições políticas devem

demonstrar igual interesse pelo destino de todos268” e analisará até que ponto a

Constituição limita o poder do Congresso e dos Estados de tomarem suas

próprias decisões em questões que envolvem política e princípio, até que ponto a

mesma estabelece uma concepção de igualdade para que cada Estado adote

como sua.

Hércules afirma que a Constituição estabelece que seus

Estados-membros devem respeitar um princípio abstrato igualitário, de que todos

devem ser tratados da mesma forma perante a lei, o que quer dizer que cada

Estado deverá adotar alguma concepção de igualdade em questões que a

envolvam – e não uma especificamente – sendo esta restrição que a Constituição

coloca para os mesmos.

Para chegar a sua decisão final no caso Brown, Hércules

elaborará e testará três descrições sobre a discriminação racial como possíveis

interpretações da Décima Quarta Emenda.

A primeira descrição chamada pelo autor de classificações

suspeitas, tratará a discriminação racial como uma conseqüência do direito geral

de que as pessoas têm o direito de serem tratadas da mesma forma perante a lei,

de acordo com a concepção que cada Estado tem sobre o que seja igualdade.

A segunda descrição, denominada categorias banidas, exige

que a Constituição estabeleça e reconheça um direito preciso contra a

discriminação racial, como um paradigma para a concepção que cada Estado

possua sobre a igualdade.

267 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 454. 268 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 455.

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A terceira descrição, chamada de fontes banidas reconhece

“um direito especial e diferente contra a discriminação269”, onde a concepção de

igualdade encontra-se sujeita aos gostos, preferências e escolhas das pessoas,

independente se estas preferências e escolhas são mais dignas do que escolhas

diferentes.

Hércules estudará estas descrições não apenas como um

filósofo o faria, em termos abstratos, mas também como cada uma delas poderia

ser posta em prática, como os tribunais poderiam utilizá-las como norma

constitucional para decidir qual legislação elas desqualificam. Nosso juiz então se

perguntará até que ponto cada uma dessas teorias ajusta-se à estrutura e à

prática constitucionais dos Estados Unidos, bem como as justifica da melhor

forma possível.

O mesmo rejeitará a primeira descrição, posto que esta nega

qualquer direito especial das pessoas contra a discriminação e apenas afirma que

o bem-estar dos cidadãos sejam considerados na mesma escala, sem restringir a

fonte deste, desrespeitando a equidade política e ainda, por ser inadequada no

que se refere à justiça.

No tocante às duas outras descrições, ambas se ajustaram

bem às decisões adotadas no passado e eram coerentes em 1954, sendo que

nenhuma se ajustou melhor que a outra. O sentimento de que a segregação racial

era errada em princípio pode ser justificado de duas formas: com base na terceira

descrição, “em que algumas preferências devem ser desconsideradas em

qualquer avaliação aceitável daquilo que contribui para melhorar a comunidade

como um todo270” ou com base na segunda descrição, “em que alguns atributos,

inclusive a raça, nunca devem tornar-se a base de distinções legais271.”

Sendo assim, Hércules decidirá a favor dos pleiteantes,

declarando a segregação racial inconstitucional, constatando que no momento da

269 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 458. 270 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 462-463. 271 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 463.

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elaboração da Décima Quarta Emenda, o ponto de vista dos congressistas era

diverso do momento onde Hércules se encontra para decidir o caso Brown, e o

mesmo não levará em consideração este ponto de vista, pois o mesmo já se

encontra superado pela evolução do tempo, sendo que o caso Plessy utilizado

como fundamento para embasar a segregação racial, deve ser revogado como

força de precedente. Nosso juiz afirma que

as escolas públicas segregadas não tratam os alunos negros como iguais sob nenhuma interpretação competente dos direitos que a Décima Quarta Emenda apresenta em nome da igualdade racial, e a segregação oficial é, portanto, inconstitucional272.

Agora cabe a Hércules decidir como se dará a integração

das escolas, se de forma gradual ou imediata, posto que a sua decisão trata tanto

do direito, como do remédio e da substância, posto que o objetivo “da decisão

judicial constitucional não é meramente nomear direitos, mas assegurá-los, e

fazer isso no interesse daqueles que têm tais direitos273.”

Desta forma, nosso juiz deve perguntar-se qual

procedimento trará a melhor proteção para as crianças negras no momento da

integração. A decisão de Hércules não volta-se apenas para o resultado, pois este

pretende desenvolver uma teoria geral do cumprimento da lei que se ajuste ao

poder que a Constituição lhe concede, ou seja, “uma teoria que não contradiz, por

meio do procedimento processual, aquilo que o documento exige em

substância274”.

Ocorre que para determinar como deve ser realizado o

processo de dessegregação, assim como os juízes que decidiram na realidade o

caso Brown, Hércules adentrará nas funções administrativas do Estado que,

segundo o direito como integridade, só ocorre em “circunstâncias extremamente

272 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 463. 273 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 465. 274 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 465.

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especiais e conturbadas, de uma visão perfeitamente tradicional do cargo de

juiz275.”

A tese de Hércules prescreve que os juízes têm a obrigação

de fazer cumprir os direitos constitucionais que os mesmos asseguram em suas

decisões, até o momento em que esse cumprimento deixa de ocorrer no interesse

daqueles que eles visam proteger276.

Dworkin passa a tratar do que o mesmo chamou de “um

produto do sucesso mais do que das falhas da revolução iniciada pelo caso

Brown277”, o caso Bakke, onde

a faculdade de medicina da Universidade da Califórnia em Davis [...] utilizou um sistema dicotômico para avaliar os candidatos pertencentes a uma minoria, os quais competiam somente entre si por um determinado número de vagas, com a conseqüência de que se aceitaram alguns negros cuja pontuação nos exames [...] ficavam muito aquém daqueles de brancos que eram rejeitados. Alan Bakke estava entre esses últimos, e no litígio que provocou reconheceu-se que ele teria sido aceito se fosse negro. Bakke afirmou que esse sistema de quotas era ilegal porque não dispensava tratamento igual na disputa por vagas, e a Suprema Corte, justificando sua decisão em um conjunto de opiniões divididas e um tanto confusas, concordou278.

Nesse caso, Hércules optará pela teoria de fontes banidas

em lugar da teoria de categorias banidas, pois esta não se ajusta à prática política

ou constitucional, sendo arbitrária demais para servir ao direito como integridade:

se a raça fosse uma categoria banida, a inteligência também teria de ser. O que

faz da discriminação racial uma injustiça não é o fato de as pessoas não poderem

escolhê-la, mas sim porque esta discriminação expressa um preconceito.

Portanto, essa injustiça é explicada pela teoria das fontes banidas, e não pela

teoria das categorias banidas.

275 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 467. 276 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 467. 277 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 468. 278 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 469.

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Mediante a análise da atuação de Hércules em alguns casos

constitucionais, podemos constatar que o mesmo é guiado por um senso de

integridade constitucional, pois acredita que a Constituição americana é a “melhor

interpretação possível da prática e do texto constitucionais norte-americanos

como um todo279”.

Seus argumentos abrangem a história constitucional

demonstrando-a em sua melhor luz, levando em consideração a convicção

popular e a tradição nacional, que se baseiam em suas próprias convicções sobre

justiça e equidade.

Nosso juiz hercúleo não acredita que os juízes são

subordinados às autoridades eleitas, pois considera que o objetivo de algumas

disposições inclui a proteção da democracia e, para tanto, não pode estar

subordinado às convicções das mesmas e ainda, acredita que algumas

disposições são destinadas a proteger as minorias contra a vontade da maioria e

que, ao decidir sobre as exigências das mesmas, não pode, mais uma vez, estar

subordinado aos representantes dessa maioria.

Portanto, retornando a questão de se os juízes devem

ultrapassar certos limites com o intuito de garantir os direitos outorgados pela

Constituição, exigindo para tanto um julgamento político, Hércules cruzará a linha

desse limite quando necessário, posto que

quando intervém no processo de governo para declarar inconstitucional alguma lei ou outro ato do governo, ele o faz a serviço de seu julgamento mais consciencioso sobre o que é, de fato, a democracia e sobre o que a Constituição, mãe e guardiã da democracia, realmente quer dizer280.

Portanto, de acordo com a visão dworkiniana, Hércules seria

um tirano se fugisse de sua função jurisdicional quando casos que exigem um

julgamento especial e uma possível intervenção em outras esferas do governo se

279 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 474. 280 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 476.

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apresentam diante dele. Se assim agisse, o mesmo teria sido “um traidor, e não

um herói da limitação judicial281.”

Dworkin não se identifica nem com o ativismo, onde na

prestação jurisdicional o juiz anula atos de outros poderes sempre que achar

necessário, nem com o passivismo, onde o mesmo só anula-os em último caso. A

atitude ideal segundo o autor em estudo encontra-se numa linha intermediária,

posto que os juízes

desempenham atividade substancialmente diversa à atividade desenvolvida pelos membros do Poder Legislativo, uma vez que estes foram eleitos para concretizar políticas públicas ditadas pela comunidade; pautam as suas atividades por princípios de política. Os juízes, ao contrário, são guiados, mesmo nos casos difíceis, por argumentos de princípios, não de política282.

Para Hércules, o direito real contemporâneo é a expressão

dos princípios que melhor refletem a doutrina e os próprios dispositivos do direito

como um todo, sendo que o papel do juiz é, através do direito como integridade,

ver e conceber o direito como um todo coerente e estruturado, sob a sua melhor

luz.

Porém, o direito como integridade reconhece as limitações

institucionais impostas aos juízes que, diversas vezes, pela força imposta pelos

precedentes e pela supremacia legislativa, se vêem forçados a aplicar uma lei que

acreditam ser incoerente. Nesse sentido, esses juízes devem esperar que o

legislativo corrija essas incoerências baseado em princípios de justiça, posto que

o mesmo é também um guardião da integridade283.

Portanto, se Hércules tivesse violado essas limitações,

ignorando a supremacia legislativa e a força dos precedentes, o mesmo teria

também ferido a integridade, pois uma interpretação jurisdicional que pretenda ser

bem-sucedida, deve reconhecer e respeitar essas limitações. Isso não quer dizer

281 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 476. 282 VERBICARO, Loiane Prado. A judicialização da política à luz da teoria de Ronald Dworkin, p. 13. 283 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 479.

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que nosso juiz aceitará sempre as incoerências processuais, mas sim que esse

caráter complexo do sistema jurisdicional obrigue-o, às vezes, a aceitá-lo. Sendo

assim, pode-se afirmar que

a supremacia legislativa, que obriga Hércules a aplicar as leis, mesmo quando produz uma incoerência substantiva, é uma questão de equidade porque protege o poder da maioria de fazer o direito que quer. As doutrinas rigorosas do precedente, as práticas da história legislativa e a prioridade local são em grande parte, embora de maneira distintas, questões de processo legal adjetivo, porque estimulam os cidadãos a confiar em suposições e pronunciamentos doutrinários que seria errado trair ao julgá-los depois do fato284.

Para explicar essa questão, Dworkin apresenta dois níveis

de integridade: a integridade inclusiva, que é regida pelo princípio adjudicativo

que governa nosso direito, onde o juiz é obrigado a considerar todas as virtudes

integrantes, construindo sua teoria da interpretação do direito contemporâneo de

forma a refletir de forma equilibrada, os princípios de equidade política, justiça

substantiva e devido processo legal adjetivo na medida do possível, posto que a

devida atenção a essas virtudes implica, algumas vezes, em um acordo sobre o

nível de integridade que pode ser alcançado.

Nesse sentido, espera-se que a legislatura preencha os

requisitos que a justiça exige, de forma que não exista nenhum conflito entre esta

e a supremacia legislativa.

Dworkin ainda traz um outro tipo de integridade, a

integridade pura, que expressa um outro direito existente dentro do direito

concreto (determinado pela integridade inclusiva), um direito mais puro que diz

respeito não às instituições, mas sim à própria comunidade personificada,

composto de princípios de justiça que oferecem a melhor justificativa do direito

contemporâneo e que declara como as práticas da comunidade “devem ser

reformuladas para servirem, de modo mais coerente e abrangente, à visão de

284 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 483.

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justiça social285” que adotou, mas que não coloca como as autoridades devem

proceder. O direito contemporâneo concreto procura seguir o caminho para se

aproximar do direito puro. Isso acontece quando surgem decisões que parecem

satisfazer a equidade e o processo, fazendo com que o direito se aproxime de sua

ambição, seja esta a sua depuração.

Sobre a atividade jurisdicional e a evolução do direito,

Dworkin afirma que

os tribunais são as capitais do império do direito, e os juízes seus príncipes, mas não seus videntes e profetas. Compete aos filósofos, caso estejam dispostos, a tarefa de colocar em prática as ambições do direito quanto a si mesmo, a forma mais pura dentro e além do direito que possuímos286.

Nesse sentido, cada decisão que obedeça aos imperativos

da integridade em casos difíceis, é um passo para a concretização desse direito

mais puro, posto que os desafios de hoje podem ser as possibilidades do

amanhã287 e ainda, ensina que a filosofia moral e política deve fazer parte da

formação dos profissionais do direito, posto que os juízes muitas vezes carecem

de informações e fundamentos dessa espécie para concretizar os direitos sociais

ou mesmo econômicos e financeiros que lhe são apresentados288.

Sendo assim, temos que a atitude do direito é construtiva,

posto que afirma o princípio acima da prática, de forma a mostrar-lhe qual é o

melhor caminho para um futuro melhor, com o devido respeito ao passado e

ainda, que o direito como integridade utilizado por nosso modelo de juiz ideal –

Hércules – fornece-nos a melhor justificativa de nossa prática jurídica como um

todo, apresentando-a em sua melhor luz e onde a lei sirva para tornar o governo

mais coerente em princípio, preservando a integridade da ação governamental, de

285 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 485. 286 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 486. 287 DWORKIN, Ronald. O império do direito, p. 488. 288 CASTRO, Caterine Vasconcelos de. O papel dos juízes nas democracias constitucionais

segundo Ronald Dworkin, p. 199.

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modo que a comunidade seja regida por princípios e não somente por normas

que podem, muitas vezes, ser incoerentes289.

E ainda, que as teorias interpretativas têm o escopo de

evitar decisões judiciais que se fundam em sentimentos subjetivos, fazendo com

que os requisitos da justiça sejam preenchidos. Hércules veio como resposta à

demanda causada pela atual crise do poder judiciário, que exige do juiz uma

atuação multidisciplinar, mas por outro lado recebe nos cursos de Direito e

escolas de magistraturas uma formação essencialmente dogmática, onde lida de

forma teórica com um direito que já não atende satisfatoriamente o atual estado

de bem estar social.

A criação de um modelo de um juiz ideal onde estes

profissionais do direito possam espelhar-se e aproximar-se ao máximo da

incorporação desta figura faz-se necessário hodiernamente, tendo em vista a

carência de ética e integridade como pressupostos nas resoluções dos litígios

atuais. Hércules veio para nos ensinar como suprir essa carência.

289 CASTRO, Caterine Vasconcelos de. O papel dos juízes nas democracias constitucionais

segundo Ronald Dworkin, p. 198.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Mediante a realização desse estudo, pudemos constatar a

efetiva aplicabilidade da teoria dworkiniana, que através da crítica ao positivismo

jurídico de Hart, constrói sua teoria do direito, concebendo-o como uma prática

interpretativa e construtiva.

Como foi exposto, a regra de reconhecimento de Hart é

refutada, pois é incapaz de abarcar o direito como um todo, reconhecendo apenas

as regras como fonte do mesmo, que segundo Dworkin possui uma composição

maior que a concebida pelo positivismo, pois este último não abrange os

princípios como parte integrante do direito, juntamente com a moral, contrariando

a separação entre estes que Hart propõe. Para Dworkin, a existência dos

princípios que se relacionam diretamente com a moral, permitem a resolução de

quaisquer casos que se apresentem no exercício jurisdicional, que por sua vez, é

o principal foco de seu estudo.

Retomando as hipóteses trazidas no bojo desse estudo, no

que se refere a primeira, foi possível constatar, mediante a concepção do direito

como integridade, que a criação Hércules, um juiz filósofo de capacidade e

paciência sobre-humanas, se apresenta como um parâmetro, um exemplo de

ética e integridade a ser seguido pelos nossos juízes reais em sua atividade

judicante, procurando incorporar ao máxima essa figura hercúlea.

No tocante a segunda hipótese, a existência dos princípios

de fato integra as soluções dos casos difíceis, de forma a nos fornecer uma

segurança diante da imprecisão das leis positivadas, que, mediante a aplicação

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dos princípios, passa a inexistir, pois estes são capazes de abarcar todas as

situações jurídicas que se apresentem, não deixando espaço para o poder

discricionário dos juízes, que se pautarão em um direito concebido como uma

prática interpretativa e não em suas próprias convicções e vontades.

Em relação à terceira hipótese, constatamos que a

concepção de Dworkin sobre a aplicação dos precedentes nos casos reais é a

melhor que podemos encontrar dentre as teorias do direito, pois concebe a

utilização dos mesmos de forma que se analisem não só o passado, mas também

o presente e, inclusive o futuro, mediante a aplicação na equidade.

Desta forma, Hércules surge como resposta a grande

demanda hodierna de uma atitude interdisciplinar dos juízes reais, servindo como

um ideal a ser alcançado, pois o mesmo é capaz de demonstrar a esses

profissionais jurídicos como o direito deve ser não só concebido, mas também

aplicado como uma prática interpretativa através de seu procedimento diante de

cada caso, aplicando a hipótese do romance em cadeia, onde os juízes devem se

comportar como integrantes de uma romance desenvolvido por todos, devendo

trazer soluções que sejam coerentes entre si, mas também que o direito,

mediante a aplicação dos princípios e a sua união com a moral, acompanhe as

transformações sociais e possam atender às demandas da sociedade, pautando-

se pela integridade na prestação jurisdicional.

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