josé nogueira - jogos de rpg em educação personificação, transdisciplinaridade e criação

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Jogos de RPG Em Educação Personificação, Transdisciplinaridade e Criação

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  • Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    Centro de Cincias Humanas CCH

    Escola de Educao

    Jogos de RPG em Educao: Personificao,

    Transdisciplinaridade e Criao

    Jos Nogueira

    Rio de Janeiro

    Julho/2011

  • Jos Nogueira

    Jogos de RPG em Educao: Personificao,

    Transdisciplinaridade e Criao

    Monografia apresentada junto ao Curso de

    Pedagogia da Escola de Educao da Universidade Federal

    do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a

    concluso do curso.

    Orientadora: Profa. Dra. Sandra Albernaz de Medeiros

    Rio de Janeiro

    Julho/2011

  • Jos Nogueira

    Jogos de RPG em Educao: Personificao,

    Transdisciplinaridade e Criao

    Monografia apresentada junto ao Curso de

    Pedagogia da Escola de Educao da Universidade Federal

    do Estado do Rio de Janeiro como requisito parcial para a

    concluso do curso.

    Orientadora: Profa. Dra. Sandra Albernaz de Medeiros

    COMISSO EXAMINADORA

    _______________________________________

    Profa. Dra. Sandra Albernaz de Medeiros

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    _______________________________________

    Prof. Dr. Alberto Roiphe Bruno

    Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro

    Rio de Janeiro, de Julho de 2011.

  • Dedicatria

    Dedico este trabalho a Francisco Lino de

    Arajo. Av, Mestre, Nobre, Exemplo. Aquele

    que me permitiu seguir em frente. Que minha

    gratido alcance seus ouvidos na eternidade.

  • Agradecimentos

    Dinah Arajo: Por nunca permitir que eu desistisse de

    nenhum objetivo de minha vida, a qualquer custo, mesmo

    contra a minha vontade, este o verdadeiro esprito

    maternal.

    Profa. Dra. Sandra Albernaz: Meu profundo

    agradecimento por mostrar que o Educador pode ser

    mltiplo, ntegro e transformador de sua realidade utilizando

    a sua prpria experincia.

    Bernardo Izan, Bruno Cesar, Daniel SantAnna, Diego

    Pimentel, Gustavo Rangel, Lawrence Henrique,

    Leonardo Dantas e Vitor Ribeiro: Amigos de terra, mesa

    e mar. Continuem rolando os dados.

    A todos os colegas e amigos que esto ou estiveram em

    minha vida: Seja na Universidade, Colgio, ruas e estradas

    da vida. Obrigado por tudo, se provavelmente no lhes

    deixei influncias, cada um de vocs me deixou um legado.

  • Resumo

    Este trabalho tem por objetivo discorrer e problematizar sobre a estreita relao

    entre os jogos de RPG (Role Playing Games) e aspectos fundamentais da Educao,

    como a capacidade criadora humana e os processos de ensino-aprendizagem

    desarraigados das estruturas disciplinares, tornando-se uma ferramenta didtica e

    pedaggica.

    Tais questes se tornam pronunciadas ao se analisar as peculiaridades do prprio

    jogo, como por exemplo, suas regras especficas, a construo de um personagem (a

    ser utilizado no jogo) e o seu desencadear, todos esses imbudos de elementos

    pertencentes Histria, Fsica, Geografia, Biologia etc., que delimitadas como so

    no podem explicar sozinhas a formao de conceitos culturais e das relaes

    interpessoais. Alm disso, questionar a prpria concepo linear do pensamento e as

    subsequentes relaes de poder dos paradigmas hegemnicos.

    Para embasar estas perspectivas, busca-se a associao com os conceitos de

    Territorializao e Desterritorializao de Gilles Deleuze e Flix Guattari; a noo do

    ato de jogar e suas caractersticas, de Johan Huizinga; e os entendimentos sobre a

    Transdisciplinaridade e o Pensamento Complexo de Edgar Morin, alm de associar o

    histrico e o conceito de jogo- e do prprio RPG - com as questes levantas, atravs do

    entendimento, anlise de suas regras, e aplicao prtica.

    Palavras-chave: RPG, Transdisciplinaridade, Criao.

  • Abstract

    This present work aims to discuss and question about the close relationship between

    the RPG (Role Playing Games) and key aspects of Education, as the human creative

    capacity and the processes of teaching and learning regardless of the disciplinary

    structures, thus becoming a didactic and pedagogical tool.

    Such issues become pronounced in the analysis of the game peculiarities itself,

    for instance, its specific rules, the "character" building (to be used in the game) and the

    play, all these elements imbued with aspects belonging to

    history, the physics, geography, biology and so on, which for itself cannot explain the

    formation of the cultural concepts and the relationships. Moreover, about the very

    concept of linear thinking and the subsequent power relations of hegemonic paradigms.

    To support these views, seeks to know about the association with the concepts

    of territorialization and deterritorialization of Gilles Deleuze and Felix Guattari, the

    notion of gaming and its characteristics, Johan Huizinga, and understandings of Edgar

    Morins Transdisciplinarity and Complex Thought , and finally associate the RPG

    history and concept by the understanding ,analysis of its rules and its practical

    application.

    Keywords: RPG, Transdisciplinarity, Creation.

  • Sumrio

    Introduo .................................................................................................... 9

    Captulo 1 - A definio de RPG .............................................................. 12

    1.1 Conceito ....................................................................................... 12

    1.2 Cronologia at a atualidade ............................................................. 18

    Captulo 2 RPG como ferramenta pedaggica: Criao,

    Personificao e Transdisciplinaridade .................................................. 22

    2.1 Perspectiva metodolgica ............................................................... 22

    2.2 As potencialidades dos jogos: como o RPG se encaixa? ................ 23

    2.3 Personificao: Os arqutipos na narrativa ..................................... 28

    2.4 As caractersticas do Rizoma no RPG ............................................ 37

    2.5 RPG como perspectiva Transdisciplinar ......................................... 42

    Concluso ................................................................................................... 48

    Referncias ................................................................................................. 51

    Anexos ......................................................................................................... 53

  • 9

    Introduo

    O contexto atual vigente, do final do Sculo XX e incio do XXI, em especial

    nos campos da Pedagogia e da Educao em geral, ainda possuem amarras que

    impedem a passagem rumo a uma educao verdadeiramente global, irrestrita e

    multidimensional. Dentre os diversos obstculos, destacam-se dois: a compartimentao

    do conhecimento e o desprestgio s formas de construo daquilo que no faz parte do

    campo acadmico, sendo o jogo uma delas.

    Portanto, deixa-se de lado no campo acadmico elementos fundamentais da

    capacidade de criao e aprendizado humanos, como os afetos as potencialidades

    geradas a partir das relaes entre os seres humanos, ou seja, interpessoais essenciais

    no contexto de um jogo coletivizado como o RPG; e o conceito de jogo como uma

    forma significante, isto , que encerra um determinado sentido ao. (HUIZINGA,

    2000, p.5). O jogo tem uma funo social, compreendida como fator cultural da vida.

    O presente trabalho tem, no cerne de seus objetivos, demonstrar que h uma

    estreita relao entre os jogos de RPG (Role Playing Games) e aspectos fundamentais

    da Educao, como a capacidade criadora humana e os processos de ensino-

    aprendizagem desarraigados das estruturas disciplinares. O RPG (abreviatura do termo

    em ingls Role Playing Game, em traduo livre jogo de interpretao de

    personagens) um jogo onde os jogadores assumem papis de personagens de fico,

    normalmente heris, que possuem habilidades diferentes ou extraordinrias, e

    participam de uma narrativa. O RPG se diferencia de outros jogos por prezar mais a

    cooperao e a relaes interpessoais do que a competitividade. Um exemplo recorrente

    de uma partida (chamada sesso) a juno dos seus participantes em um nico

    grupo, que ao decorrer da narrativa participa de uma aventura. O RPG em geral no

    possui ganhadores ou perdedores, e seu carter hbrido que o diferencia de outros

    jogos, seja de esporte, seja de tabuleiro.

    O interesse pelo assunto veio de minha prpria experincia com essa modalidade

    de jogo. Desde o incio de minha adolescncia, tive contato constante e joguei RPG em

    diversos ambientes, como em residncias de amigos, locais pblicos como shopping

    centers e na prpria escola, nos momentos de lazer. Na vida adulta, a frequncia de

  • 10

    jogos se reduziu drasticamente, entretanto um marco ainda muito presente. Quando

    deparado com a prtica didtica em sala de aula e a escolha de ser Professor, percebi a

    interessante relao com o RPG: Primeiro, o componente interpretativo do jogo ajuda a

    lidar com o nervosismo inicial quando se fala para um grande nmero de pessoas;

    segundo, a gama de conhecimentos e conceitos que se assemelharam no campo

    universitrio, em especial na prtica de aprofundar o conhecimento de forma crtica

    possui semelhanas que sero descritas adiante.

    Por mais que, nas mdias atuais, sejam visveis elementos do RPG em filmes,

    seriados e programas infantis, sua estrutura e regras so de desconhecimento de grande

    parte da populao, estando inseridos essencialmente na cultura nerd, que composta

    por indivduos com afinidades que se opem ao conceito de pessoa popular do senso

    comum, como pouca interao social, preferncia aos estudos sobre as atividades de

    lazer, e gosto por colees de filmes, jogos, ou livros. Para poder ser trabalhada como

    ferramenta didtico-pedaggica, portanto, o educador precisa ter conhecimento

    aprofundado sobre a esttica e mecnica (no sentido de seu funcionamento) do jogo.

    A educao teria ento como papel evidenciar esses aspectos que permeiam

    essas realidades, ou seja, propiciar terreno favorvel para a construo do conhecimento

    sem compartimentaes. O RPG se articula com essa abordagem no momento que

    constitudo, pois sua estrutura e seu desenvolvimento no podem ser explicados apenas

    por um ou dois olhares oriundos das matrias acadmicas.

    Para embasar estas perspectivas, busca-se a associao com os conceitos de

    Rizoma, Territorializao e Desterritorializao de Gilles Deleuze e Flix Guattari; a

    noo do ato de jogar e suas caractersticas scias e culturais, de Johan Huizinga; e os

    entendimentos sobre a Transdisciplinaridade e o Pensamento Complexo de Edgar

    Morin. Alm disso, busca-se compreender o intricado universo dos jogos de RPG

    atravs do entendimento e anlise de suas regras, seu histrico e sua aplicao prtica.

    Este trabalho visa partir primeiramente da anlise de um estudo de caso, na

    perspectiva da pesquisa social emprica, sendo uma forma de se fazer tal modo de

    pesquisa ao investigar-se um fenmeno atual dentro de seu contexto de vida-real, onde

    as fronteiras entre o fenmeno e o contexto no so claramente definidas e na situao

    em que mltiplas fontes de evidncia so usadas. (YIN, 1990). Os campos associados

  • 11

    de RPG de Educao possuem estudos muitssimo recentes, portanto sem um paradigma

    dominante.

    Foi feito, em abril de 2011, o registro de uma partida de RPG, denominada

    sesso, que ocorreu durante uma hora e com sete jogadores, inclusive a mim mesmo.

    Todas as falas e acontecimentos registrados pertinentes a este trabalho foram transcritos

    e se encontram no Anexo I. Esta transcrio revela os pilares para, alm de articular o

    arcabouo terico, minudenciar e compreender as regras e movimentos do jogo que

    permitem o elo com as concepes da Educao. No obstante, para que se entenda a

    origem dos mais diversos termos, ser feita a associao com seu histrico, com razes

    profundas na literatura, pois a maioria das narrativas envolve um cenrio ambientado

    numa era medieval fantstica, extremamente fundamentada e inspirada dos romances de

    fantasia do sculo XIX e XX.

    A preferncia por dividir em somente dois captulos provm da intrnseca

    relao entre os conceitos, e a prpria proposta de no compartiment-los. Por isso, o

    primeiro captulo aborda um breve histrico das origens e da prpria definio do que

    o RPG. O segundo captulo busca fazer as articulaes com a transcrio do jogo, que

    foi denominada como uma narrativa, e evidenciar os jogos de RPG como ferramenta da

    Pedagogia e propiciador da Transdisciplinaridade e da Criao.

  • 12

    Captulo 1 - A definio de RPG

    1.1 Conceito

    Em seu significado estrito, o RPG a abreviatura do termo em ingls role playing

    games, que se configuram como jogos de interpretao de personagens. O seu sentido

    lxico, entretanto, no transpassa a complexidade, riqueza e profundidade deste tipo de

    jogo, que possui caractersticas muito peculiares em comparao aos jogos mais

    comuns.

    Combina-se, dentre outros aspectos: Elementos dos jogos de estratgia, onde as

    partidas so realizadas em turnos, e os participantes decidem suas aes que

    influenciaro o seu desempenho; os elementos da interpretao, relacionados atuao,

    em especial a do teatro, que marcada por um enredo (os eventos de uma histria

    fictcia localizados temporal e espacialmente) que guia o personagem, porm este livre

    para improvisar, de acordo com os objetivos do ator. O jogador de RPG, portanto,

    mesmo tendo como base um enredo e um conjunto de regras que o conduzem e situam

    seu personagem limitaes necessrias, segundo Huizinga, pois so estas que

    determinam aquilo que vale dentro do mundo temporrio por ele [o jogo] circunscrito

    (2000, p.12) - possui tambm a liberdade de suas aes.

    O RPG tem quatro caractersticas que o difere dos demais jogos e assim o torna

    nico. Primeiramente, existem dois tipos de jogadores: o player (ou simplesmente

    jogador) o que cria os personagens que participaro do jogo, e ser responsvel por

    control-lo durante e diante dos desafios que so propostos; o game master (mestre ou

    narrador, os dois nomes sero utilizados como sinnimos nos captulos a seguir), na

    figura de criador e condutor do enredo, anlogo a um diretor, apresentador ou roteirista,

    que pode construir sua histria da maneira que lhe for conveniente, desde em um mundo

    prximo do real (utilizando elementos histricos e geogrficos) at totalmente imersos

    no campo da fantasia (o que desafia a Fsica, aspectos da alquimia, da magia, do

    onrico, seres mitolgicos, humanos com habilidades sobre-humanas etc.). Apesar de

    normalmente no possuir um personagem no jogo, o mestre incumbido de julgar as

  • 13

    aes dos jogadores, tirar quaisquer dvidas destes, conhecer as regras mais

    profundamente, e inclusive, em nome do bom senso e da diverso coletiva, modificar a

    histria e as regras. Da narrativa transcrita e aproveitada para estudo de caso pode-se

    retirar um resumo para ilustrar esta relao:

    Os jogadores personificam aventureiros, heris errantes de um mundo medieval

    fictcio chamado Greyhawk. O enredo gira em torno de um pedido de um sacerdote do

    deus Heironeous chamado Kirk, que tem em sua crena os ideais de generosidade e

    justia atravs das leis. Kirk pede aos aventureiros (os personagens dos jogadores) que

    ajudem a pequena vila de Narwell, que por no possuir foras de defesa (semelhantes

    s milcias medievais), est indefesa frente a ataques constantes de Kobolds, criaturas

    de aproximadamente um metro de altura que vivem em grandes bandos, que so

    conhecidas por assaltarem e lincharem cidados por puro divertimento. (Anexo I)

    A segunda caracterstica o nmero aparentemente ilimitado de jogadores. A

    narrativa utilizada como base aconteceu com um mestre e cinco jogadores, mas em

    outros momentos j houve narrativas com dez jogadores, e at dois mestres, que no

    exemplo citado dividiam as tarefas para manter o esprito ldico, e no sobrecarregar

    somente uma pessoa. Tais fatos demonstram que so mais as questes de

    disponibilidade e acordos entre o grupo que vai jogar do que uma imposio das regras,

    o que ressalta o carter social e colaborativo do RPG. Alm disso, no h uma disputa

    imposta pelas regras, no h times adversrios. A liberdade de ao dos personagens

    pode levar a animosidades entre estes dentro do enredo, mas o esprito de grupo

    incentivado, para que possam resolver os desafios propostos mais facilmente.

    A terceira e marcante caracterstica do RPG no haver um fim propriamente.

    No h um vencedor. O carter cooperativo elimina esse conceito, e consequentemente,

    anula a aura de superioridade conferida ao vencedor de um jogo:

    Ganhar significa manifestar sua superioridade num

    determinado jogo. Contudo, a prova desta superioridade tem

    tendncia para conferir ao vencedor uma aparncia de

    superioridade em geral. Ele ganha alguma coisa mais do que

    apenas o jogo enquanto tal. Ganha estima, conquista, honrarias:

  • 14

    e estas honrarias e estima imediatamente concorrem para o

    benefcio do grupo ao qual o vencedor pertence. (HUIZINGA,

    2000, p. 40).

    Ao perguntar quem vence no RPG, mais adequado afirmar que todos vencem.

    Quando os desafios propostos pelo narrador so superados, os personagens recebem

    recompensas, que so fundamentais para que estes possam se desenvolver durante a

    campanha - o conjunto de vrios enredos propostos; os enredos (ou sesses) so

    comparveis a captulos de um livro e a campanha como o livro inteiro seja com

    recursos, seja com o aprimoramento fsico e mental deles prprios. Mesmo causando

    um estranhamento a princpio, tal conceito se torna natural na prtica do jogo, onde o

    desenvolvimento da vida e da experincia de um personagem, a construo de

    arqutipos e personalidade prprios so motivadores para que novas sesses ocorram.

    A ltima caracterstica a concepo de sistema no RPG, que pode ser definida

    como o conjunto de regras em conjunto com o enredo. O que o torna mais complexo

    ainda e diferenciado dos jogos comuns, que esses sistemas so altamente variveis,

    no s pela infinidade de histrias possveis, mas tambm pela variedade das regras.

    Muitos materiais e livros de RPG publicados so famosos com seus sistemas utilizados

    e comercializados h dcadas, por jogadores do mundo todo (os mais consagrados so

    os americanos Dungeons & Dragons o sistema da narrativa estudada, e abreviado

    adiante para a sigla D&D e GURPS, o brasileiro 3DT, entre outros), mas cada grupo

    pode inventar suas prprias regras, o que refora o aspecto ldico. Geralmente,

    entretanto, certas regras so comuns aos sistemas:

    Fichas personalizadas para manter o registro do personagem. Cada sistema

    possui um conjunto de atributos especficos, onde quem possui mais pontos

    nesses atributos obtm mais vantagens perante os desafios do mestre. Estes

    atributos refletem as caractersticas fsicas, mentais e sociais de cada

    personagem. Em Dungeons & Dragons, estes atributos-chave so: Fora

    (literalmente a fora fsica), Destreza (agilidade e reflexos), Constituio

    (resistncia fsica), Inteligncia (raciocnio lgico e memria), Sabedoria

    (intuio e percepo) e Carisma (personalidade, presena e aparncia

    fsica); a quantidade de pontos nestes atributos que o constri e define.

  • 15

    (COOK, 2004, p.7-10). Cada jogador livre para adicionar nas fichas outros

    atributos para enriquecer seus personagens como idade, peso, cor de olhos e

    cabelos, em suma, construir um indivduo fictcio completo, que assim como

    um ser humano real, uma unidade complexa, integrado e multidimensional:

    Unidades complexas, como o ser humano ou a

    sociedade, so multidimensionais: dessa forma, o ser

    humano ao mesmo tempo biolgico, psquico, social,

    afetivo e racional. (...) Complexus significa o que foi

    tecido junto; de fato, h complexidade quando

    elementos diferentes so inseparveis constitutivos do

    todo (como o econmico, o poltico, o sociolgico, o

    psicolgico, o afetivo, o mitolgico), e h um tecido

    interdependente, interativo e interretroativo entre o

    objeto de conhecimento e seu contexto, as partes e o

    todo, o todo e as partes, as partes entre si. (MORIN,

    2000, p.36).

    A experincia outro fator comum. Os sistemas procuram traduzir em

    pontos o processo humano de aprendizado gradual atravs do tempo. Ao

    final de uma sesso, esses pontos so conferidos de acordo com os desafios

    superados. Esses pontos so utilizados na melhoria do prprio personagem,

    que aprende novas habilidades ou aprimora as antigas. Para diferenciar esses

    pontos de experincia do conceito de experincia como construo do

    conhecimento, a primeira ser denominada pela abreviatura EXP (termo

    comum entre os jogadores de RPG) daqui por diante.

    Um objeto praticamente uma unanimidade, o dado. Este pequeno objeto

    arremessvel j presente em muitos jogos de apostas e de tabuleiro.

    Entretanto, assim como o resto, ele possui peculiaridades quando utilizado

    no RPG, pois alm de possuir faces diferentes (alm do habitual dado de seis

    faces), representa a base da aleatoriedade, do inesperado, ou seja, a

    representao do acaso da vida real. Sua funo busca se afastar do aspecto

  • 16

    simplista da sorte, pois os resultados obtidos no dado influenciam tambm as

    interpretaes, que condizem com o bom ou o mal resultado.

    Fazendo um desvio de foco necessrio para auxiliar na descrio,

    Huizinga em concordncia enxerga nos dados tambm outra funo ao falar

    do potlatch, um jogo ritualstico sagrado originrio da Columbia Britnica

    (hoje Canad):

    uma grande festa solene, durante a qual um de dois

    grupos, com grande pompa e cerimnia, faz ofertas em grande

    escala ao outro grupo, com a finalidade expressa de demonstrar

    sua superioridade. A nica retribuio esperada pelos doadores,

    e que devida pelos que recebem, consiste na obrigao de

    estes ltimos darem por sua vez uma festa, dentro de um certo

    perodo, se possvel ultrapassando a primeira. Este curioso

    festival de donativos domina toda a vida comunitria das tribos

    que o praticam: os rituais, as leis, as artes. Qualquer

    acontecimento importante pode servir de pretexto para um

    potlatch, seja um nascimento, uma morte, um casamento, uma

    cerimnia de iniciao ou de tatuagem, a construo de um

    tmulo etc. (HUIZINGA, 2000, p.45).

    No potlatch, os dados so sacralizados, e no meros instrumentos dos

    jogos de azar:

    H muitos povos que colocam o jogo de dados no

    nmero das prticas religiosas. Por vezes, as sociedades

    divididas em fratrias [Reunio de vrios cls, nas sociedades de

    tipo muito arcaico, frequentemente de carter totmico]

    exprimem sua estrutura dualista nas duas cores de seus

    tabuleiros de jogo ou de seus dados. (...) Consequentemente,

    quando Held conclui que os jogos de dados e o primitivo jogo

    de xadrez no constituem autnticos jogos de sorte, por

    pertencerem ao domnio do sagrado e serem uma expresso do

    princpio do potlatch, sinto-me tentado a inverter seu

    argumento, dizendo que eles pertencem ao domnio do sagrado

  • 17

    precisamente devido ao fato de serem autnticos jogos. (idem,

    p.44-48).

    A narrativa foca no sistema Dungeons & Dragons que utiliza o dado de vinte

    faces, para futura referncia abreviado como d20.

    Dado o arcabouo conceitual do RPG, possvel compreender o texto inicial do

    Livro do Jogador, um guia para os jogadores e narradores iniciantes em D&D. Em suas

    primeiras pginas, o leitor faz um exerccio semelhante de apreenso das noes bsicas

    sobre esta complexa modalidade de jogos, e se apropria de uma teoria (um

    conhecimento complexo, melhor discutido nos captulos adiante) e com sua aplicao

    prtica o jogo em si pode integr-la s nuances, infinitas, que permeiam uma

    simples sesso de poucas horas:

    O D&D [porm vlido a todos os tipos e sistemas de RPG] um jogo

    de imaginao, onde voc participa de aventuras fabulosas e misses

    arriscadas assumindo o papel de um heri um personagem criado

    por voc (...) ele ir explorar runas e masmorras repletas de monstros

    em busca de riquezas e glria [como exemplos]. O sistema oferece

    uma infinidade de possibilidades e escolhas quase infinitas, uma vez

    que seu personagem poder fazer qualquer coisa que voc conseguir

    imaginar. (...) Em parte, ele envolve a imaginao, em outra ele uma

    brincadeira narrativa, mas tambm abrange a interao social,

    aspectos dos jogos de estratgia, sem mencionar as jogadas de dados.

    Voc e seus amigos criam personagens que se desenvolvem e evoluem

    a cada aventura concluda. Um dos jogadores ser o Mestre, que

    controlar os monstros e inimigos, descrever o ambiente, julgar as

    aes com base nas regras e criar as aventuras. Juntos, o Narrador e

    os jogadores so responsveis pelo jogo. (COOK, 2000, p.4).

  • 18

    1.2 Cronologia at a atualidade

    A origem dos jogos de RPG pode ser remontada por duas vertentes, que culminam

    nele prprio. Assim como em seu conceito, sua histria distinta, partindo de princpios

    improvveis primeira vista, mas em conjunto com uma transformao natural do

    conceito de jogos.

    O componente interpretativo do jogo tem sua inspirao na corrente do Teatro de

    Improvisao surgida na Era Moderna europeia, em especial o grupo italiano Commedia

    dellarte, do sculo XVI, onde o foco tambm era a interpretao livre, com os atores

    criando dilogos humorsticos a partir de uma situao ou enredo oferecido. A partir

    deste contexto, pode-se construir o termo ingls role-playing. Tal conceito surge nos

    jogos em meados do sculo XIX, nos chamados jogos de salo da Era Vitoriana, onde

    se emulavam situaes fictcias, como julgamentos de tribunal, discursos de corte e

    adivinhaes. Charadas, lgica, retrica, investigao e dissimulao por disfarces e

    blefes eram as tcnicas bsicas para o sucesso no jogo. Esse tipo de jogo social

    desenvolveu-se atualmente para as brincadeiras de detetive e assassino, jogos de

    mmica e adivinhao.

    O componente material oriundo dos jogos de tabuleiro, e tem a sua origem mais

    remota. Desde a Antiguidade, em perodos de guerra ou conflitos armados, lderes

    militares utilizam miniaturas dos campos de batalha, pra estudar movimentaes e

    corrigir tticas. O carter ldico destas miniaturas se expressou nos jogos de estratgia,

    que se tornaram comuns a partir do sculo XVIII, onde batalhas histricas eram

    remontadas em tabuleiros, e a vitria era determinada pela boa movimentao das

    miniaturas pelo jogador e pelos resultados obtidos nos dados. A princpio, esses jogos

    ficavam restritos ao treinamento de oficiais militares e s elites, em virtude do alto custo

    das peas. Porm, com a diversificao de materiais mais baratos (como o plstico), tais

    jogos ficaram mais acessveis, tornando-se universais (familiar, sem limite ou

    recomendao severas de idade) em meados da dcada de 1950 e populares at hoje. Os

    temas diversificaram-se, englobando hoje em dia batalhas fictcias em qualquer tempo e

    espao. No Brasil, por exemplo, o jogo de maior expresso desse gnero War.

  • 19

    A convergncia destes gneros recente, entretanto apresenta uma expanso

    exponencial desde ento. Os idos da dcada de 1970 marcam a consolidao do RPG,

    que tem sua criao dotada de inconsistncias e falta de dados comprobatrios,

    desenvolvendo mltiplas origens desencontradas, e atribuindo a essa modalidade um

    mito criacional, que intencionalmente ou no, uma de suas caractersticas narrativas

    (RILSTONE, 1994, p.2).

    Ainda segundo Andrew Rilstone, a hiptese mais aceita (e reconhecida pelo senso

    comum) de que o jogo, como conhecido hoje, tem sua criao atribuda a Gary

    Gygax e Dave Arneson, que na poca (por volta de 1972) eram estudantes da

    universidade norte-americana de Minnesota e participantes de um clube de wargaming

    (jogos de guerra) universitrio (p.2). Os dois sempre foram profundamente inspirados

    por romances medievalistas da metade do sculo XX, obras que mantinham a temtica

    da Idade Mdia, principalmente quanto aos costumes, vestimentas, tecnologias e

    caractersticas sociais de poca, aliados a iderios pregados pelo movimento literrio

    romancista do sculo XIX, como o herosmo e o nacionalismo, situados em mundos

    fictcios de fantasia; os maiores exemplos inspiradores so de J.R.R. Tolkien (da trilogia

    do Senhor dos Anis e um dos tradutores modernos da saga Anglo-Saxnica Beowulf), e

    C.S. Lewis (das Crnicas de Nrnia).

    Acredita-se que ao testarem um jogo de guerra criado por Gygax, chamado

    Chainmail, ele e Arneson chegaram a um impasse. Ao construrem, no tabuleiro,

    fortalezas que segundo as regras seriam indestrutveis, imaginaram situaes em que

    seria possvel invadi-las, chegando a um ponto onde as tticas de guerra tornavam-se

    insuficientes, e elementos como, espionagem, diplomacia, dilogos fictcios entre as

    faces do jogo foram tornando o jogo mais detalhado e flexvel (idem). A partir deste

    momento, outros elementos foram adicionados ao longo do tempo, como os j citados

    pontos de experincia e atributos de ficha, culminando em 1974 no lanamento da

    primeira verso de Dungeons & Dragons (traduzido literalmente como Masmorras e

    Drages, componentes-chave do sistema) considerado como o pioneiro dos jogos de

    RPG (idem, p. 3).

    A influncia de Gygax e Arneson foi avassaladora, incentivando outros jogadores

    de tabuleiro e de estratgia a criarem seus prprios sistemas, num crescimento notado

  • 20

    at o fim do sculo, com publicaes inmeras. Devido a tal expanso, o RPG clssico

    de tabuleiro idealizado pelos dois logo se multiplicou em variaes em todos os

    mbitos.

    Novos tipos de RPG surgiram e diversificaram ainda mais o conceito como: O livro-

    jogo, onde s existe um jogador, que cria um personagem para aventuras solo, que

    apesar de serem lineares, d a oportunidade do leitor-jogador escolher seu caminho,

    avanando para pginas especficas dependendo das consequncias que toma baseado

    na sua leitura; o live-action (ao ao vivo) no usa um tabuleiro, e sim o espao ao

    seu redor como o cenrio do jogo, se aproximando mais ainda s peas de teatro, pois os

    jogadores atuam literalmente, vestindo-se de acordo com as caractersticas de seu

    personagem, e o mestre funciona como o mediador e diretor, no sendo permitindo o

    contato fsico para evitar altercaes; e o chamado RPG Eletrnico, jogos de

    videogames ou computador inspirados nos sistemas do RPG de tabuleiro (tambm

    denominado de papel e caneta quando em oposio do eletrnico), que apesar de no

    possurem liberdade criativa pois seus jogadores esto atrelados a um nmero limitado

    de opes se tornaram extremamente populares no incio no sculo XXI e crescem at

    hoje, principalmente os jogos que permitem conexo com a internet (chamados de

    MMORPGs, traduzidos como jogos de RPG com multi jogadores em massa)

    reforando o carter de jogo social, sendo os ttulos mais conhecidos World of Warcraft,

    Diablo, Tibia, Ragnarok e Ultima Online. Esta ltima modalidade no considerada

    pelos jogadores de tabuleiro realmente um RPG, mas sim com elementos destes.

    Alm disso, a influncia dos RPGs se estende s mdias e publicaes da atualidade.

    Arqutipos que foram construdos pelos sistemas ao longo dos anos so muito

    aproveitados em obras de romance e fico, sucesso de vendas e adaptados para filmes e

    sries, como a saga Crepsculo, de Stephenie Meyer (o antagonismo fictcio entre

    criaturas como vampiros e lobisomens), os livros de J.K. Rowling de Harry Potter (o

    uso de itens mgicos).

    Por fim, o RPG um hbito muito presente na cultura dos chamados nerds.

    Anteriormente, este termo era altamente pejorativo, que designa uma pessoa que

    interage pouco socialmente, fascinado por tecnologias e atividades menos populares,

    alm de se dedicar aos estudos em detrimento aos padres de relaes sociais de lazer

  • 21

    (como danar, exercer atividades fsicas e ter relaes amorosas regularmente). Na

    ltima dcada, entretanto, o termo vem se transformando em uma afirmao de

    identidade, e encontra nichos positivos na nova era tecnolgica. Com isso, o prprio

    RPG deixar de ser marginalizado, pois atravs desses elementos mais aceito pelos

    preceitos de um senso comum ocidental de costumes sociais.

    avanando neste ponto que o prximo captulo busca ir alm destes prismas,

    desvendando novas possibilidades para o RPG. O foco consiste na utilizao deste jogo

    como ferramenta pedaggica transdisciplinar, galgando-se nas inmeras possibilidades

    que este oferece, e fazendo um paralelo com os conceitos de conhecimento

    descompartimentado e complexo, a funo ldica, criativa e social do jogo, e a

    personificao como caracterstica dos rizomas.

  • 22

    Captulo 2 RPG como ferramenta pedaggica: Criao,

    Personificao e Transdisciplinaridade

    2.1 Perspectiva metodolgica

    Partindo do pressuposto histrico onde os jogos de RPG so um fenmeno muito

    recente e os estudos sobre seu potencial pedaggico mais ainda, com os primeiros

    trabalhos na dcada de 1990, segundo o site RPGEduc no h um paradigma

    dominante estabelecido, tampouco uma metodologia consolidada.

    Para fundamentar a teoria, a preferncia metodolgica foi o estudo de caso.

    Trata-se de uma modalidade de pesquisa emprica, onde se investiga as particularidades

    de um objeto ou um conjunto de objetos, e a partir desta anlise compreender as

    caractersticas qualitativas (no caso desta pesquisa) deste. Segundo Robert Yin,

    Um estudo de caso uma investigao emprica que

    investiga um fenmeno contemporneo dentro de seu contexto

    da vida real, especialmente quando os limites entre o fenmeno

    e o contexto no esto claramente definidos. (...) Em outras

    palavras, o estudo de caso como estratgia de pesquisa

    compreende um mtodo que abrange tudo - com a lgica de

    planejamento incorporando abordagens especificas a coleta de

    dados e a anlise de dados. Nesse sentido, o estudo de caso no

    nem uma ttica para a coleta de dados nem meramente uma

    caracterstica do planejamento em si, mas uma estratgia de

    pesquisa abrangente. (YIN, 1990, p.33).

    Em suma, esta metodologia tornou-se a mais adequada para estabelecer a relao

    entre o fenmeno do RPG e a sua contextualizao no campo da Educao, partindo da

    aplicao prtica (no caso jogar) para a definio das categorias.

  • 23

    A metodologia foi aplicada na observao e participao de uma sesso de RPG,

    que para fins de registro foi gravada e transcrita (Anexo I). Participaram seis jogadores

    e o mestre, que definiu as bases da aventura no mundo medieval de fantasia

    denominado Greyhawk. O mestre elaborou as bases da histria condutora (descrita no

    captulo anterior) de sua prpria criatividade, e as reaes, interpretaes e jogadas

    subsequentes foram registradas na ntegra. Para manter a naturalidade do processo,

    todos os envolvidos foram avisados do registro somente aps o seu trmino, por volta

    de trinta minutos, e devidamente o autorizaram. Porm, para que o foco seja somente na

    prtica ldica, sero somente identificados como Jogador 1, Jogador 2, Narrador etc.

    Por fim, com os objetivos e registro alcanados, os prximos tpicos abordaro

    os conceitos apreendidos que foram relevantes para essa pesquisa, e que so os alicerces

    tericos das discusses propostas.

    2.2 As potencialidades dos jogos: como o RPG se encaixa?

    Quando se problematiza quais possibilidades os jogos de RPG alcanam, quanti

    e qualitativamente, necessrio antes fazer esse mesmo questionamento no prprio

    conceito de jogo, que por mais que seja uma caracterstica inerente ao ser humano,

    pouco discutida.

    Historicamente, os jogos acompanham o homem desde o surgimento das

    civilizaes e a consequente diversificao da cultura. Como exemplos, as dataes

    conhecidas mais antigas so: Do jogo de Senet, da poca do Imprio Antigo no Egito

    (por volta de 3100 A.C); o Jogo Real de Ur, que apesar do nome, era jogado em todos

    os estratos sociais da Mesopotmia do sculo XXVI A.C, e foi o primeiro a usar dados

    (os mesmos que no RPG so chamados de dados de quatro faces, ou d4); o Mah Jongg -

    originrio da Dinastia Yin da China, por volta de quatro mil anos atrs jogo

    extremamente popular at hoje em todo o mundo; e o Ludo, outro jogo popular

    inspirado no Pachisi, da ndia do sculo VI. (PARLETT, 1999, p.28 38).

  • 24

    Os primeiros a discutirem o conceito de jogo foram Ludwig Wittgenstein e

    Johan Huizinga, aproximadamente na metade do sculo XX. Wittgenstein, em seu livro

    Investigaes Filosficas (1953), constri seu trabalho sobre os Jogos de Linguagem,

    que se definem como o conjunto das caractersticas da linguagem como as palavras,

    atitudes, comportamentos e ato que possibilitam a compreenso do processo de uso da

    linguagem e das atividades aos quais est integrada (WITTGENSTEIN, 1999, p.12).

    Seu conceito de jogo serve mais como uma ferramenta da linguagem, mas assim mesmo

    afirma o seu carter ldico mesmo fora do contexto semitico que fazia parte de seu

    pensamento:

    Considere, por exemplo, os jogos de tabuleiro, com

    seus mltiplos parentescos. Agora passe para os jogos de cartas:

    aqui voc encontra muitas correspondncias com aqueles da

    primeira classe, mas muitos traos comuns desaparecem e

    outros surgem (...) Pense agora nos brinquedos de roda: o

    elemento de divertimento est presente [grifo meu], mas

    quantos dos outros traos caractersticos desapareceram! E

    assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos

    e ver semelhanas surgirem e desaparecerem. (ibid., p 38-39)

    Huizinga j tinha anteriormente se aprofundado muito mais neste conceito em

    sua obra Homo Ludens, de 1938, preferindo uma abordagem cultural, no-biolgica, e

    estudada em perspectivas scio-histrica e antropolgica. Uma de suas nfases, assim

    como neste trabalho, foi discutir o jogo como um fenmeno cultural.

    Em primeiro lugar, se opondo aos dados arqueolgicos, afirma que o jogo no

    uma construo humana, j que os animais tambm o fazem, com brincadeiras que

    possuem regras, e tem o intuito puro de prazer e diverso, sendo, portanto uma atividade

    mais antiga do que se pensa, e de improvvel datao:

    Bastar que observemos os cachorrinhos para constatar

    que, em suas alegres evolues, encontram-se presentes todos

    os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos

  • 25

    outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e

    gestos. Respeitam a regra que os probe morderem, ou pelo

    menos com violncia, a orelha do prximo. Fingem ficar

    zangados e, o que mais importante, eles, em tudo isto,

    experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento.

    Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem apenas uma das

    formas mais simples de jogo entre os animais. Existem outras

    formas muito mais complexas, verdadeiras competies, belas

    representaes destinadas a um pblico. (HUIZINGA, 2000,

    p.5).

    Em segundo lugar, a prtica ldica, tanto nos animais quanto nos humanos, o

    jogo uma atividade que possui um significado, por isso no meramente fisiolgica,

    no corresponde racionalidade (pois uma caracterstica humana que contrape o vis

    da imaginao presente nos jogos), e constitui uma forma especfica de atividade.

    Em terceiro lugar, e essencial, o jogo d sentido ao como uma funo social.

    Independente da estrutura de uma cultura, faixa etria e composio de uma sociedade,

    o jogo est presente. Mesmo os jogos individuais so integradores, pois renem

    elementos especficos (desde regras at a composio material), que norteiam e situam o

    indivduo em grupos, que possuem interesses semelhantes. No caso do RPG, esta

    caracterstica tambm est presente, pois os elementos agregadores mesmo no sendo

    unnimes continuam hegemnicos, a ponto de serem absorvidos pelo senso comum: O

    jogador de RPG , como dito no captulo anterior, comumente associado cultura nerd,

    entusiasta da literatura de fantasia e suas adaptaes miditicas e eletrnicas, entre

    outros. As afinidades renem estes indivduos e desatacam esta condio humana.

    Inclusive Huizinga eleva a condio do jogo no campo do sagrado, pois este contribui

    para a prosperidade social dos grupos (ibid., p, 11). Essa relao que o autor faz com o

    sagrado veia fundamental de sua obra, mas aqui servir mais como ilustrao do que

    verdadeiro foco do trabalho.

    Assim como qualquer jogo tambm, o RPG tem no s o divertimento, mas as

    outras emoes que o permeia. A improvisao e a aleatoriedade dos dados as

    potencializam, pois frequente que os resultados no sejam os esperados, o que gera

  • 26

    reaes das mais diversas, enriquece as interaes entre jogadores (e refletem as suas

    interaes sociais) e afasta qualquer perspectiva de racionalidade.

    No contexto do aleatrio, s preciso exemplificar: Nos sistemas de RPG, para

    que as regras favoream o jogador, preciso que o dado aponte sempre para ele suas

    extremidades numricas no sistema d20, quanto maior o nmero obtido, melhor, e

    vice-versa o que muito raro. Assim como em qualquer jogo, qualquer impedimento

    nos objetivos (que comumente ganhar) cria sensaes de surpresa e desapontamento,

    mas diferentemente dos jogos comuns, no RPG a ausncia de um vencedor leva a

    situaes cmicas. O ato heroico pretendido por um personagem (por exemplo, salvar

    uma vtima de assalto), por causa do resultado insuficiente modificado e se torna uma

    nova ao (usando o mesmo exemplo, tropear em uma pedra e bater de cara no cho ao

    tentar agarrar o bandido). Mais uma diferena em relao aos jogos em geral, onde

    Huizinga aponta que o riso secundrio e somente um contraponto seriedade:

    O cmico compreendido pela categoria da no-

    seriedade e possui certas afinidades com o riso, na medida em

    que o provoca, mas sua relao com o jogo perfeitamente

    secundria. Considerado em si mesmo, o jogo no cmico

    nem para os jogadores nem para o pblico. Os animais muito

    jovens, ou as crianas, podem por vezes ser extremamente

    cmicos em suas brincadeiras, mas observar ces adultos

    perseguindo-se mutuamente dificilmente suscita em ns o riso.

    Quando chamamos "cmica" a uma farsa ou uma comdia,

    fazemo-lo levando em conta o no jogo da representao

    propriamente dito, mas, sim, a situao e os pensamentos

    expressos. A arte mmica do palhao, cmica e risvel,

    dificilmente pode ser considerada um verdadeiro jogo.

    (HUIZINGA, 2000, p.8).

    A comicidade no afasta o carter da seriedade. neste contexto que possvel

    fazer a primeira analogia do RPG com a sala de aula. Assim como na escola,

    independente da concepo didtica e curricular, preciso que, para o bom andamento

    do jogo, exista um clima de respeito, valorizao da escuta sensvel e do debate

  • 27

    saudvel, caractersticas indelveis de um ambiente social integrador e aberto a

    construo do conhecimento. Edgar Morin, em Os sete Saberes Necessrios

    Educao do Futuro, compe os aspectos que renem autonomia com a necessidade das

    regras, um conceito de seriedade contrrio opresso e as relaes de poder; assim

    como os papeis do mestre e jogadores so anlogos aos do professor e dos alunos,

    segundo a concepo de uma educao baseada num pensamento multidimensional e

    complexo:

    Mas, sobretudo, a sala de aula deve ser um local de

    aprendizagem do debate argumentado, das regras necessrias

    discusso, da tomada de conscincia das necessidades e dos

    procedimentos, de compreenso do pensamento do outro, da escuta e do

    respeito s vozes minoritrias e marginalizadas. Por isso, a

    aprendizagem da compreenso deve desempenhar um papel capital no

    aprendizado democrtico. (MORIN, 2000, p. 112-113).

    No contexto interpretativo, o prprio conceito de improvisar necessita que as

    emoes sejam genunas, mesmo que se pense minimamente antes. Responder aos

    estmulos exteriores e reagir de acordo com suas convices so elementos presentes

    tanto ao jogador quanto ao seu personagem. Se jogar com o seu personagem significa

    constitu-lo tambm de personalidade e emoes, est evidenciado o carter da criao.

    A criatividade reside em incorporar ao personagem elementos distintos do

    jogador com seus prprios objetivos, gerando uma personalidade completamente nova,

    e um espectro emocional no momento da interpretao mais abrangente, em suma,

    emoes diferentes sem serem opostas. Tal aspecto remonta a um conceito clssico de

    Aristteles quando discorre sobre os pontos necessrios dos carteres (caracteres), em

    sua Arte Potica:

    O quarto ponto consiste na coerncia consigo mesmo,

    mas se a personagem que se pretende imitar por si incoerente,

    convm que permanea incoerente coerentemente. (...) Tanto na

    representao dos caracteres como no entrosamento dos fatos,

  • 28

    necessrio sempre ater-se necessidade e verossimilhana, de

    modo que a personagem, em suas palavras e aes, esteja em

    conformidade com o necessrio e verossmil, e que ocorra o

    mesmo na sucesso dos acontecimentos. (ARISTTELES,

    2003, p.23).

    A emoo como carter dos jogos evidencia um perfil humanizador, essencial

    para que haja a interao entre os indivduos. O RPG potencializa-o no ldico,

    permitindo que se construam as bases de uma prtica pedaggica baseada num

    pensamento complexo e rizomtico, esmiuado nos tpicos seguintes.

    Todas as ideias, aqui vagamente reunidas num mesmo

    grupo jogo, riso, loucura, piada, gracejo, cmico etc.

    participou daquela mesma caracterstica que nos vimos

    obrigados a atribuir ao jogo, isto , a de resistir a qualquer

    tentativa de reduo a outros termos. Sem dvida, sua ratio e

    sua mtua dependncia residem numa camada muito profunda

    de nosso ser espiritual. (HUIZINGA, 2000, p.9).

    2.3 Personificao: Os arqutipos na narrativa

    Pode-se associar, no contexto deste trabalho, a criatividade e o aprendizado, j

    que ao criar, ao ser humano est construindo conceitos. Esta faceta do potencial criativo

    surge, no RPG, no momento da construo do personagem e de sua personificao pelo

    jogador. Alm de abordar o arcabouo terico que permeia estas construes,

    pertinente para ilustrar a discusso mostrar como os personagens da narrativa observada

    foram desenvolvidos, e que fatores foram cruciais.

    Antes de tudo, importante descrever o conceito de classe no sistema d20,

    utilizado na narrativa. Uma classe uma guia sobre os desejos e vontade do

    personagem, assim como a escolha de uma profisso uma atividade especializada

  • 29

    praticada continuamente e relacionada com uma sociedade ou grupo reforando o

    aspecto de funo social. O Livro do Jogador faz uma introduo para os iniciantes:

    Os aventureiros buscam riqueza, glria, justia, fama,

    poder, conhecimento ou qualquer outro objetivo talvez nobre,

    talvez mundano. Cada um escolhe uma maneira diferente de

    alcanar esses objetivos, seja o poder brutal do combate, magias

    poderosas ou habilidades mais sutis. Alguns aventureiros

    prosperam e adquirem experincia, riqueza e poder. Outros

    perecem. A classe do personagem indica sua profisso ou

    vocao. Ela determinar o que ele capaz de fazer: sua

    eficincia em combate, habilidades mgicas, percias e outros

    detalhes. Provavelmente, a classe a primeira escolha que

    dever ser feita durante a criao do personagem. (COOK,

    2004, p.19).

    Este conceito tem suas origens no denominado arqutipo jungiano. Carl Jung,

    em sua obra Psicologia do Inconsciente (1942), define os arqutipos como modelos

    imateriais, reminiscncias antigas nas quais os fenmenos psquicos se constituem,

    como imagens primordiais de onde se estrutura a psique, tanto em sua expresso

    quanto seu desenvolvimento:

    ... trata-se da manifestao da camada mais profunda

    do inconsciente onde jazem adormecidas as imagens humanas

    universais e originrias (...) O arqutipo uma espcie de

    aptido para reproduzir constantemente as mesmas ideias

    mticas; se no as mesmas, pelo menos parecidas. Parece,

    portanto, que aquilo que se impregna no inconsciente

    exclusivamente a ideia da fantasia subjetiva provocada pelo

    processo fsico. Logo, possvel supor que os arqutipos sejam

    as impresses gravadas pela repetio e reaes subjetivas.

    (JUNG, 1980, p.58-62).

    Alguns arqutipos fazem parte da coletividade humana (em seu inconsciente), e

    se organizam em tipos e esteretipos, com um modo padro de ser e agir, como o Heri,

  • 30

    a Morte, o Velho Sbio, entre outros. No RPG, isso se configura no papel de cada

    classe, em que uma habilidade (ou conjunto de habilidades) sero teis ou importantes;

    assim, cada classe tambm composta de imagens primordiais, que a coletividade

    os jogadores - j traria impressa consigo. Cabe ao jogador lidar da maneira que lhe for

    mais conveniente com estes arqutipos, pois a sua liberdade de ao permite relaes

    variadas com os arqutipos: Ele pode imbuir-se deste completamente, contestar alguns

    pontos, ou simplesmente neg-lo agindo de maneira inesperada pelo resto dos

    jogadores.

    A partir das experincias adquiridas e registradas da narrativa da sesso

    compreende-se na prtica a relao entre classe e arqutipo. Cada jogador trouxe suas

    fichas prontas (e consequentemente com o personagem construdo) de antemo, mas

    atravs do desenrolar das jogadas e interpretaes foi possvel delinear as classes e os

    desgnios de cada um para o seu personagem. Cada classe possui um nome, e assim

    como uma profisso, e est profundamente relacionada com aspectos reais da cultura e

    da histria humana, modificada para o cenrio de acordo com o contexto.

    O Jogador 1 definiu que o seu personagem seria um Clrigo. Esta designao

    oriunda do termo grego kleros, que designa um sacerdote responsvel por um culto ou

    rito religioso, normalmente encontrado nas religies monotestas tradicionais como o

    Catolicismo e o Islamismo, cada uma com nomenclaturas diferentes (Padre, Im etc.).

    Agindo como lderes espirituais e considerados a ligao entre os humanos e as

    divindades, so dotados de muito prestgio e respeito pelos fieis de suas religies. No

    RPG, possuem tambm todas essas caractersticas, mas so capazes tambm de destruir

    foras sobrenaturais com o poder de sua f, realizar milagres e recebem poderes

    mgicos diretamente de sua divindade para auxiliar ou prejudicar, dependendo dos

    preceitos da divindade que segue. Realizam essas aes no s em seus templos, mas

    como andarilhos, verdadeiros proselitistas de sua f:

    As obras divinas esto em toda parte: nos lugares de

    beleza natural, nas cruzadas importantes, nos imensos templos e

    no corao de seus seguidores. Similares s pessoas, os deuses

    variam entre a benevolncia e a malcia, a introspeco e a

    curiosidade, a simplicidade e a complexidade. Os deuses, no

    entanto, quase sempre atuam por meio de intermedirios os

  • 31

    clrigos. Os clrigos Bons curam, protegem e vingam. Os

    clrigos malignos saqueiam, destroem e sabotam. Um clrigo

    manifesta a vontade divina canalizando o poder de seu patrono.

    As religies tambm esperam que os sacerdotes utilizem o

    poder da sua divindade para melhorar a prpria situao.

    (COOK, 2004, p.26).

    O Clrigo do Jogador 1 recebeu o nome de Lars, anlogo etimolgico do seu

    nome real. Ele foi definido como um sacerdote bondoso, que atravs do poder que a sua

    divindade lhe d (O Deus-Sol Pelor) busca ao mesmo tempo espalhar a palavra divina e

    ajudar os necessitados, mesmo que para isso tenha que lutar. extremamente tolerante e

    paciente, e tem como cruzada pessoal destruir todos os mortos-vivos (seres reanimados,

    como exemplos os zumbis), responsveis pela morte da me do personagem na infncia,

    o que o motivou a buscar vingana. O personagem um desafio personalidade

    extrovertida do jogador, que pouco tem um comum, mas compartilha a caracterstica de

    ser generoso com os que considera seus amigos.

    O Jogador 2 elaborou o caminho de um Monge para o seu personagem. O termo

    grego monachos define o indivduo solitrio, enclausurado, adepto do ascetismo a

    renncia aos prazeres e as necessidades mundanas e materiais em troca de objetivos da

    espiritualidade onde pela disciplina e penitncia entraria em contato com foras que

    transcendem a materialidade. Para fins de comparao no RPG, os objetivos da classe

    so os mesmos, e se pronunciam na fora fsica, agilidade e resistncia mental do

    personagem, o que se aproxima mais do conceito dos monges orientais, como os ascetas

    budistas e taostas da China e da ndia, praticantes de artes marciais, que creem numa

    vida regrada que eleve o seus espritos alm da humanidade:

    Os monastrios esto espalhados em todo o mundo

    pequenos mosteiros fechados, habitados por monges que

    buscam alcanar a prpria perfeio atravs da ao e da

    contemplao. Eles treinam para serem guerreiros versteis,

    capazes de lutar sem armas ou armaduras. Os habitantes dos

    monastrios comandados por mestres bondosos servem como

    protetores da populao local. Preparados para o combate,

    mesmo descalos e trajando roupas simples, os monges so

  • 32

    capazes de viajar incgnitos entre a populao, capturando

    bandidos, lderes guerreiros e nobres corruptos de surpresa. Por

    outro lado, os monastrios liderados por mestres malignos

    controlam os arredores atravs do medo, como o imprio de um

    governante maligno. Os monges malignos so ideais como

    espies, infiltradores e assassinos. improvvel que um

    determinado monge se preocupe em proteger os camponeses ou

    acumular riquezas. Ele se preocupa essencialmente em

    aperfeioar sua arte e, atravs disso, alcanar a perfeio

    pessoal. Seu objetivo atingir um estado superior ao reino dos

    mortais. (ibid. p.42).

    Se este arqutipo fosse seguido risca, teria pouqussimas semelhanas com o

    personagem do Jogador 2, chamado Jin, uma pardia do nome da bebida Gin Tnica.

    Ainda se mantiveram presentes em suas caractersticas a disciplina marcial e o total

    desapego aos bens materiais, mas o monge foi idealizado como um aficionado por

    bebidas alcolicas, em especial as que ele mesmo produz. Divide, portanto, suas

    aventuras entre um crescimento espiritual e a oportunidade de produzir a bebida ideal, o

    que se soa paradoxal de acordo com o que se espera da sua classe, mas completamente

    pertinente aos desejos de qualquer ser humano real, que no possui inatamente uma

    linha de pensamento linear.

    O Jogador 3 construiu um Duelista. O nome cunhado na realidade imprprio,

    em virtude da falta de um significado semelhante na lngua portuguesa ao termo ingls

    Swashbuckler, que denota um tipo de espadachim extremamente habilidoso e

    implacvel, mas tambm orgulhoso, e por muitas vezes fanfarro, apreciador de uma

    vida bomia. o arqutipo da literatura e do cinema aos heris dos romances de capa-

    e-espada, o clssico salvador das donzelas em perigo que luta com firulas e gracejos,

    encontrado, por exemplo, nos contos Os Trs Mosqueteiros e Zorro, e recentemente

    franquia de filmes Piratas do Caribe: O duelista personifica os conceitos de audcia e

    bravatas. Eles preferem a agilidade e o raciocnio fora bruta e so exmios

    combatentes e excelentes em interaes sociais, revelando-se como personagens

    realmente versteis. (COLINS, 2006, p.6).

    A inspirao para o jogador 3 vem do protagonista dos filmes supracitados (Jack

    Sparrow), um pirata que age como um anti-heri. O seu personagem ento se torna a

  • 33

    eptome do carter de divertimento dos jogos: Autointitulado El Calamares (em

    homenagem a um vinho muito conhecido de todos, jogadores e o narrador-pesquisador),

    um espadachim vagante, sem um objetivo definido, e completamente imerso em todos

    os esteretipos descritos. Os atos e dilogos do personagem, interpretados de forma

    desconexa e no-linear com frases de efeito marcantes, garantem constantes risadas dos

    jogadores, e surpreendentemente fazem sentido no contexto geral. o exemplo mais

    claro do pensamento rizomtico deleuzeano que ser abordado em outro tpico.

    O Jogador 4, um Paladino, a definio estrita de um heri honrado, ligado

    cavalaria e a nobreza dos castelos e palcios medievais (de onde surge o termo em

    questo). Est indubitavelmente ligado verso pica de um guerreio bondoso, homem

    de armas de carter inquestionvel, defensor da ordem e dos indefesos. o exemplo

    clssico dos personagens da corrente literria do romantismo do sculo XIX, e do

    arqutipo heroico que Jung usa para desmistificar esta mesma idealizao:

    Sabemos, no entanto, que no existe previso humana ou

    filosofia de vida capaz de predeterminar o rumo da nossa vida, a no ser

    a curto prazo. Isto vlido apenas para o tipo de vida "comum", no

    para o tipo "heroico". Este ltimo modo de vida tambm existe, mas

    incontestavelmente mais raro do que o primeiro. E a ele no se aplica a

    afirmao que acabamos de fazer a respeito de se imprimir a curto prazo

    um rumo definido vida. O rumo da vida heroica incondicional: so

    as decises do destino que a orientam; pode ser que a resoluo de

    seguir uma determinada direo se mantenha inabalvel at o amargo

    fim (...). Nos casos de herosmo, trata-se em geral de um suposto

    herosmo, que no passa de obstinao infantil contra um destino mais

    forte, ou ento de uma atitude presunosa para encobrir um sentimento

    de inferioridade. No poderoso dia-a-dia h infelizmente pouco lugar

    para coisas fora dos padres que sejam sadias. H pouco lugar para o

    herosmo ostensivo. (JUNG, 1980, p. 43).

    Um paladino tpico no RPG rene todos esses elementos, e profundamente

    inspirado pelo poema pico francs A Cano de Rolando, datada do sculo XI, onde os

    doze pares (doze cavaleiros iguais em proeza de combate, ideais nobres e homens de

    muita f) que morreram ao lado de Rolando na Batalha de Roncesvales e assim

  • 34

    tornaram-se o modelo da garra e coragem dos francos, e posteriormente dos franceses

    em geral - foram os primeiros paladinos (retirado de http://www.gutenberg.org):

    A compaixo na busca pelo bem, a vontade de defender a lei e

    o poder de derrotar o mal essas so as trs armas do paladino. Poucos

    indivduos tm a pureza e a devoo necessria para seguir o caminho

    dos paladinos, mas esses so recompensados com o poder para proteger,

    curar e destruir o mal. Em um mundo cheio de magos conspiradores,

    sacerdotes profanos, drages sanguinrios e demnios infernais, o

    paladino a ltima esperana, que no pode ser extinta. Os paladinos

    encaram suas aventuras seriamente e costumam cham-las de misses.

    Mesmo a misso mais trivial , no corao de um paladino, um teste

    pessoal a oportunidade de demonstrar bravura, desenvolver percias

    militares, aprender tticas e descobrir maneiras de defender o bem.

    Ainda assim, eles se sentem genuinamente realizados quando lideram

    campanhas contra o mal em vez de explorar runas antigas. (COOK,

    2004, p.45).

    praticamente uma unanimidade os jogadores manterem esse esprito do

    paladino. O Jogador 4 chefe do setor de uma empresa pblica importante no qual

    trabalha na vida real, e acredita que sua capacidade de liderar pode ser inerente ao seu

    personagem, chamado William, que foi descrito como um jovem prncipe de um

    pequeno reino, que se dispe a peregrinar em busca de grandeza e aprimoramento de

    seu potencial como regente. Durante a narrativa, essa caracterstica ficou presente

    constantemente, chegando ao ponto de incomodar, personagens e jogadores.

    A Jogadora 5 fez de sua personagem uma Feiticeira, que significa praticante de

    feitiaria. Tal denominao muito generalizada, variada e presente em mitos e lendas

    de todas as sociedades do mundo. Em certas culturas, como as pr-colombianas (Inca e

    Asteca), africanas e celtas os feiticeiros so homens e mulheres sbios, profundamente

    ligados s foras da natureza e da espiritualidade, e capaz de manipul-las atravs de

    rituais e a confeco de itens (como amuletos, totens e talisms) com propriedades

    mgicas ou curativas. Se encaixam neste perfil o xamanismo o vodu e o candombl. A

    cultura crist ocidental diverge desta concepo e estabeleceu uma crena hegemnica

    sobre a conexo dos feiticeiros com poderes sobrenaturais ditos malignos, como a

  • 35

    reanimao de mortos (necromancia), o controle mental de outras pessoas

    (encantamento), ou os clssicos pactos com demnios (demonologia). De fato, toda

    religio pag que tivesse crenas no sobrenatural divergentes do cristianismo foram

    taxadas de bruxaria (SANSI, 2008, p.124-125). A cultura literria e os filmes

    reforaram este conceito, por vezes atribuindo feitos que no fazem parte da realidade

    ritualstica, e colocando seus pretensos praticantes quase sempre no papel de

    antagonistas. No RPG em geral, o feiticeiro possui todos esses esteretipos; entretanto,

    o foco voltado para o manipulador da magia definida como a arte de manipular os

    elementos da realidade para crescimento e proveito prprio ligado s indagaes do

    ocultismo medieval e da modernidade:

    Os feiticeiros criam a magia da mesma forma que os poetas

    criam as poesias, com um talento inato aperfeioado com a prtica. Eles

    no possuem livros, mentores, nem teorias apenas um poder bruto que

    canalizam atravs da sua vontade. (...) O feiticeiro comum se aventura

    para aprimorar suas habilidades, pois somente testando seus limites ele

    poder ampli-los. O poder de um feiticeiro inato parte de sua alma.

    Para muitos deles, desenvolv-lo o prprio objetivo, independente do

    como desejam utilizar suas habilidades. Alguns feiticeiros Bons sentem

    a necessidade de provar sua utilidade aos demais. Eles procuram um

    lugar na sociedade, onde seu poder lhes permita algum destaque. Os

    feiticeiros malignos se sentem diferentes da maioria diferentes e

    superiores. Eles se aventuram para acumular poder e dominar os

    inferiores. (COOK, 2004, p. 33).

    A Jogadora 5 incorporou bem o que o livro do sistema d20 resume. Lorien,

    nome dado a sua personagem, uma feiticeira individualista, que busca simplesmente

    acumular riquezas e poder, fazendo o possvel (dentro dos limites da lei) para isso.

    Possui uma aparncia extica, de cabelos coloridos roxos e vestimentas espalhafatosas,

    reflexo dos gostos da jogadora.

    O Jogador 6, por fim, o arqutipo do Ladino, ou ladro. o clssico praticante

    do furto de bens valiosos, na grande maioria para proveito prprio e acumulao de

    riquezas. Este arqutipo chegar a ser mais variado que o do feiticeiro, pois existem

  • 36

    maneiras diversas de subtrair um item de outros, seja pela violncia, ou ludibriao,

    entre outros, to numerosos que os cdigos penais de todas as naes destacam uma boa

    parte de suas leis para elas. No RPG, permitido o ladino todas essas possibilidades, e

    para que possa se enquadrar atravs das regras, recebe muitas habilidades, como se

    esgueirar e furtar sem ser detectado, destrancar fechaduras, armar e desarmar

    armadilhas, entre outros:

    Os ladinos tm pouco em comum entre si. Alguns so

    ladres silenciosos. Outros so charlates habilidosos. Outros

    so batedores, infiltradores, espies, diplomatas e criminosos. A

    nica coisa em comum sua versatilidade, adaptabilidade e

    quantidade de recursos. Em geral, os ladinos so capazes de

    realizar exatamente as tarefas que seus alvos menos desejam:

    invadir uma sala de tesouro secreta, superar uma armadilha letal

    em segurana, obter planos de combate sigilosos, adquirir a

    confiana de um guarda ou retirar o dinheiro do bolso de

    algum. Os ladinos se aventuram pelo mesmo motivo que

    realizam todos os seus atos: conseguir o que desejam. Alguns

    pela riqueza, outros pela experincia. Alguns procuram fama,

    infmia ou apreciam desafios. Descobrir como escapar de uma

    armadilha ou no disparar um alarme muito divertido para a

    maioria dos ladinos. (ibid., p. 37).

    Para o Jogador 6, o seu personagem remonta experincias infantis. Chama-se

    Chibi, derivado do termo em japons para pequeno e descrito como um garoto,

    ainda no princpio da adolescncia, que se aventura e furta com objetivos individuais,

    mas deixa transparecer sua ingenuidade e a necessidade de construir laos afetivos. O

    Jogador afirma se divertir muito com ele, pois o interpreta sem o peso das obrigaes

    adultas.

    Da, portanto, se compreende melhor que a reunio de suas habilidades distintas

    contribui para superar os desafios propostos pelo mestre, as aventuras. Na narrativa

  • 37

    registrada, as circunstncias como, por exemplo, conhecer quem so as criaturas

    chamadas kobolds e como agem (anatomia, rotinas, capacidade fsica, formas de

    comunicao) necessitaram de um esforo em conjunto, onde cada personagem trouxe

    uma nova informao, que foi reunida e formou um perfil das criaturas, essencial para

    que o grupo montasse uma estratgia para tentar debel-las: Primeiro por vias

    diplomticas uma tarefa difcil, pois so criaturas xenfobas posteriormente pela

    furtividade e manipulao, e caso tudo falhe, pela fora bruta, o combate direto.

    O carter esmiuado dos personagens da narrativa no demonstra somente como

    os personagens so desenvolvidos por arqutipos, mas o aspecto fundamental para

    compreender o conhecimento rizomtico e o carter transdisciplinar presentes nos

    jogos de RPG.

    2.4 As caractersticas do Rizoma no RPG

    Os arqutipos so auxiliares para definir as bases de um personagem, mas como

    explicar e compreender como estes so construdos, mesmo que a princpio paream

    contraditrios? Primeiro, o racionalidade linear no responde a essas questes,

    principalmente se for adotado princpio reducionista do conhecimento, que

    denunciado por Morin (2000) como paradigma dominante:

    O princpio de reduo leva naturalmente a restringir o

    complexo ao simples. Assim, aplica s complexidades vivas e

    humanas a lgica mecnica e determinista da mquina artificial.

    Pode tambm cegar e conduzir a excluir tudo aquilo que no

    seja quantificvel e mensurvel, eliminando, dessa forma, o

    elemento humano do humano, isto , paixes, emoes, dores e

    alegrias. Da mesma forma, quando obedece estritamente ao

    postulado determinista, o princpio de reduo oculta o

    imprevisto, o novo e a inveno. (p. 40).

  • 38

    Tal princpio extremamente criticado e considerado obsoleto e inadequado

    para o campo da Educao, onde as multiplicidades e as relaes afetivas so essenciais

    na construo do conhecimento. Para se pensar o RPG como ferramenta pedaggica,

    deve se pensar da mesma forma, num contexto multidimensional que Gilles Deleuze e

    Felix Guattari denominaram como Rizoma.

    Este termo extenso, abrangente, ilimitado; Deleuze trouxe da palavra raiz o seu

    significado, mas logo aps o ressignificou. Pensar nas ramificaes normalmente

    remonta a imagem das razes dos vegetais, que partem de um princpio (ou tronco) e se

    dividem verticalmente para baixo. Os rizomas so sim, ramificaes, mas no possuem

    incio nem fim, direo ou plano, e cada radcula se comunica sem restries. O

    pensamento humano seria exatamente assim, para construir um conceito, se comunica

    de maneira no-linear, e de diversas fontes o desenvolve.

    Em suma, uma proposta de construo do pensamento onde os conceitos no

    esto submetidos a uma hierarquia ou a um cerne, ou seja, a um ponto central que seja

    referncia para se desenvolver um conceito, j que a prpria definio do que o rizoma

    definida pelos autores como um mapa de multiplicidades, desta forma no podendo

    ser conceituada de forma linear:

    Diferente o rizoma, mapa e no decalque (...) O

    mapa aberto, conectvel em todas as suas dimenses,

    desmontvel, reversvel, suscetvel de receber modificaes

    constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a

    montagens de qualquer natureza, ser preparado por um

    indivduo, um grupo, uma formao social.(...) Ser rizomorfo

    produzir hastes e filamentos que parecem razes, ou melhor

    ainda, que se conectam com elas penetrando no tronco, podendo

    faz-las servir a novos e estranhos usos. Estamos cansados da

    rvore. (...) Toda a cultura arborescente fundada sobre elas, da

    biologia lingustica. (...) O pensamento no arborescente e o

    crebro no uma matria enraizada nem ramificada.

    (DELEUZE, 1995, p.21-25).

  • 39

    Na anlise do jogador de RPG, no momento que interpreta o seu personagem j

    constitudo, no se apresenta nem um incio nem fim, so conhecimentos e pensamentos

    multidimensionais sem uma linha que os divida, que divida os sujeitos, onde a

    assumpo de uma personagem (ou de vrios) seja ao mesmo tempo a desconstruo da

    sua ontologia (ibid., p.37), e a construo do seu conhecimento.

    Numa analogia com a filosofia, o prprio Deleuze problematiza a criao de

    personagens como necessria, j que este campo do saber no contemplativo ou

    interpretativo, e sim criativo. Quando descreve sobre sua obra O Anti-dipo (1972), em

    conjunto com Flix Guattari, afirma que desmantelaram seus sujeitos e encontraram em

    cada um deles vrios personagens, que os auxiliaram a desenvolver seus conceitos, que

    s poderiam ser elaborados desta maneira, rompendo com o pensamento centralizado e

    arborescente que restritivo. J na discusso de O que Filosofia? (1991), enfatiza com

    o auxlio da Histria da Filosofia que o personagem conceitual do filsofo surge de

    diversas maneiras, explcitas ou veladas, como Scrates nas obras de Plato, Zaratustra

    e Dionsio para Nietzsche, ou simplesmente sem o uso de pseudnimos, mas mantendo

    um personagem ficcional (GALLO, 2003, p. 30-31):

    Esses personagens conceituais operam os

    movimentos que descrevem o plano de imanncia do

    autor, e intervm na prpria criao de seus conceitos.

    o personagem conceitual, o heternimo, portanto, que

    acaba sendo o sujeito da filosofia, ele quem manifesta

    os territrios, desterritorializaes e reterritorializaes

    absolutas do pensamento. (idem)

    Deleuze e Guattari ampliam a definio de territrio, e constroem abordagens

    distintas das originrias da Biologia, onde se constitui como um ambiente prprio para

    se viver, se alimentar e se reproduzir; e nem necessariamente da Geografia, onde

    compreende-se como um espao ocupado por um grupo ou nao. Na realidade, o

    sentido deleuzeano de territrio no se encaixa numa categorizao, como o seu prprio

    parceiro Guattari afirma:

  • 40

    A noo de territrio aqui entendida num sentido

    muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia

    [estudo do comportamento animal] e a etnologia [estudo das

    etnias humanas]. Os seres existentes se organizam segundo

    territrios que os delimitam e os articulam aos outros existentes

    e aos fluxos csmicos. O territrio pode ser relativo tanto a um

    espao vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual

    um sujeito se sente em casa. O territrio sinnimo de

    apropriao, de subjetivao fechada sobre si mesma. Ele o

    conjunto de projetos e representaes nos quais vai desembocar,

    pragmaticamente, toda uma srie de comportamentos, de

    investimentos, nos tempos e nos espaos sociais, culturais,

    estticos, cognitivos. (GUATTARI, 1986, p.323).

    Em sentido estrito, desterritorializar significa abandonar um territrio,

    abandonar um conjunto de componentes especficos e heterogneos relacionados a

    aspectos no necessariamente fsicos, mas tambm da ordem do social, do psquico, do

    biolgico etc. A esses conjuntos, mais amplos do que a noo de estrutura, foi dado do

    nome de agenciamentos. (idem, p.317). Se os agenciamentos podem desconstruir um

    territrio, como linhas de fuga rizomticas, podem tambm reconstru-lo de maneira

    diferenciada ao que se denomina reterritorializao. No quinto volume de Mil Plats

    (1980), h um interessante exemplo do nomadismo, o movimento nmade:

    ... o nmade no tem pontos, trajetos, nem terra,

    embora evidentemente ele os tenha. Se o nmade pode ser

    chamado de o Desterritorializado por excelncia, justamente

    porque a reterritorializao no se faz depois, como no

    migrante, nem em outra coisa, como no sedentrio (com efeito,

    a relao do sedentrio com a terra est mediatizada por outra

    coisa, regime de propriedade, aparelho de Estado...). Para o

    nmade, ao contrrio, a desterritorializao que constitui sua

    relao com a terra, por isso ele se reterritorializa na prpria

    desterritorializao. a terra que se desterritorializa ela mesma,

    de modo que o nmade a encontra um territrio. A terra deixa

  • 41

    de ser terra, e tende a tornar-se simples solo ou suporte. A terra

    no se desterritorializa em seu movimento global e relativo, mas

    em lugares precisos, ali mesmo onde a floresta recua, e onde a

    estepe e o deserto se propagam. (DELEUZE, 1997, p. 44).

    O mesmo movimento ocorre a um personagem de RPG. Raramente um jogador

    tem um personagem que fique fixo por muito tempo, j que a sua natureza heroica e a

    gama de desafios propostos pelo mestre o conclama a se movimentar constantemente,

    primeiro, para que possam explorar o mundo fictcio (conhecendo-o e ajudando a

    constru-lo, atravs das interaes dentro aes do personagem com o espao e fora

    com conselhos e ideias para a melhoria deste do jogo), e segundo, para cumprir uma

    jornada condizente com os seus objetivos, ou uma quest (explicada no prximo tpico).

    Quando o faz, o personagem se assemelha ao exemplo do nmade, se

    desterritorializando da terra, mas se reterritorializando neste prprio movimento.

    Desterritorializao e Reterritorializao remetem aos fluxos, mobilidade, s

    linhas de fuga do pensamento e do sujeito, ao devir. Enquanto o primeiro termo se

    refere separao do indivduo de suas razes sociais e culturais (o seu territrio), o

    ltimo compreende a criao ou fixao de novos vnculos e espaos em substituio

    aos perdidos. Estes movimentos se do no RPG no momento do jogo: Descrever o

    personagem num tempo, espao e caractersticas determinadas, diferente das quais o

    jogador estaria normalmente; as emoes e reaes do jogador frente ao que afeta seu

    personagem (e consequentemente ele prprio); e a interpretao, que vai alm de

    assumir o personagem, ao ponto de se confundir com ele prprio. Um trecho do registro

    (Anexo I) evidencia essa condio:

    Narrador: Com os seus resultados no teste de Sabedoria, Lars e William

    percebem que sacerdote Kirk est com uma expresso preocupada,

    provavelmente esperando que o grupo se apresse, pois a vila j est

    desprotegida tempo demais.

    Jogador 4: - Eu me levanto e falo para os outros: No podemos mais perder

    tempo! Arrumem seus equipamentos e vamos sem demora para Narwell! .

  • 42

    O uso da Primeira pessoa em vez da Terceira no comum s nesta narrativa, mas

    nas sesses de RPG em geral. As (des) territorializaes acontecem constantemente,

    com o jogador literalmente sendo o personagem, se transportando ao cenrio e ao

    ambiente onde se encontra, se movimentando pelos espaos num fluxo contnuo. Tal

    movimento mais forte ainda na modalidade do live-action descrita anteriormente, pois

    estritamente desencorajado ao jogador quebrar o personagem, a no ser em

    situaes realmente necessrias.

    Por mais que o pensamento ps-moderno aponte implicaes neste processo como

    a perda da identidade que levaria subjugao por grupos hegemnicos - o foco para o

    RPG a produo da subjetividade, novamente a criao. O movimento

    desterritorializante, favorecedor da vida, das transformaes e recriaes dos espaos

    sociais, desembaraam os processos institudos a ponto de estes poderem criar.

    (PELLOSO, 2005, p.122).

    O carter pedaggico est presente no que as desterritorializaes e

    reterritorializaes propiciam. Ao desembaraar, recriar e transformar, na verdade se

    est questionando, reconstruindo conceitos. Estas so as bases de um pensamento

    crtico. O tpico final problematiza como este pode se desenvolver no campo da

    Educao, onde a compartimentao do conhecimento um obstculo.

    2.5 RPG como perspectiva Transdisciplinar

    O pensamento integrado e multidimensional se inerente condio humana,

    no encontra espao no ambiente escolar. Historicamente, as cincias em geral so

    desenvolvidas por um carter isolacionista e hermtico, pois procuram responder por si

    mesmas a todos os fenmenos que creem ser de sua alada, enquanto ignoram ou

    desconsideram todas as outras questes nas quais no possuem recursos para respond-

    las, ou que necessitem de conhecimentos alheios aos seus objetivos, e desta forma,

    transpuseram-se para as suas pedagogias. Sendo assim, Edgar Morin faz o seguinte

    comentrio:

  • 43

    Desse modo, as realidades globais e complexas

    fragmentam-se; o humano desloca-se; sua dimenso biolgica,

    inclusive o crebro, encerrada nos departamentos de biologia;

    suas dimenses psquica, social, religiosa e econmica so ao

    mesmo tempo relegadas e separadas umas das outras nos

    departamentos de cincias humanas; seus caracteres subjetivos,

    existenciais, poticos encontram-se confinados nos

    departamentos de literatura e poesia. A filosofia, que por

    natureza a reflexo sobre qualquer problema humano, tornou-

    se, por sua vez, um campo fechado sobre si mesmo. Os

    problemas fundamentais e os problemas globais esto ausentes

    das cincias disciplinares. So salvaguardados apenas na

    filosofia, mas deixam de ser nutridos pelos aportes das

    cincias. (MORIN, 2000, p.40).

    Edgar Morin (idem) aponta que os problemas globais, que dizem respeito

    humanidade, tornam-se invisveis, pois para que sejam pensados, preciso que os

    saberes sejam contextualizados. Entretanto, a Educao aponta para o contrrio, e

    mantm suas bases tanto no reducionismo, citado anteriormente, como na

    compartimentao do conhecimento. O prprio conceito de disciplinas escolares a

    marca maior, incentivando e tornando o aluno capaz de pensar somente o que est

    classificado ou quantificado, tudo aquilo que pode ser escrito nos livros didticos (e

    mantido assim por bastante tempo) ou cunhado por termos especficos, o que vai contra

    as denominaes originais de cultura e sociedade:

    ... os problemas essenciais nunca so parcelados e os

    problemas globais so cada vez mais essenciais. Enquanto a

    cultura geral comportava a incitao busca da

    contextualizao de qualquer informao ou ideia, a cultura

    cientfica e tcnica disciplinar parcela, desune e compartimenta

    os saberes, tornando cada vez mais difcil sua contextualizao.

    Ao mesmo tempo, o recorte das disciplinas impossibilita

  • 44

    apreender o que est tecido junto, ou seja, segundo o sentido

    original do termo, o complexo. (p.41).

    No final do sculo XX em diante, entretanto, buscou-se questionar este

    paradigma (tendo Morin como uma das figuras mais proeminentes), e conclui-se que, se

    a Educao no pode negar os problemas globais, ela deve ser pensada ento numa

    perspectiva transdisciplinar, ou seja, imbuir-se de um novo esprito cientfico, buscando

    responder a complexidade de fenmenos que no so suportados ou pensados pelas

    disciplinas. Tais fenmenos so oriundos de todas as fontes, inclusive das relacionadas

    s disciplinas, como a Biologia, a Fsica etc., mas por elas sozinhas no podem ser

    explicadas, e sua simples conjuno a multidisciplinaridade - tambm no fornece o

    arcabouo para se refletir sobre questes que necessitam de um pensamento

    transdisciplinar. Morin aponta um movimento multidirecional quando se relaciona as

    disciplinas e o conhecimento, mesmo que a os paradigmas scio-histricos dominantes

    o neguem:

    ... pode-se dizer de pronto que a histria das cincias

    no se restringe da constituio e proliferao das disciplinas,

    mas abrange, ao mesmo tempo, a das rupturas entre as

    fronteiras disciplinares, da invaso de um problema de uma

    disciplina por outra, de circulao de conceitos, de formao de

    disciplinas hbridas que acabam tornando-se autnomas; enfim,

    tambm a histria da formao de complexos, onde diferentes

    disciplinas vo ser agregadas e aglutinadas. (MORIN, 2003,

    p.108).

    Transdisciplinar no concerne a identificar dentro de um problema fragmentos

    dos conhecimentos (por exemplo, dizer que uma possvel resoluo para a poluio

    seria parte da Biologia, parte da Sociologia, etc.) e sim desfragmentar, desrotular,

    compreender todos os processos como da humanidade. Por isso, nem a integrao

    disciplinar serviria, pois duas ou mais disciplinas escolares integradas, ou at de todas

    (interdisciplinaridade) no se tornam suficientes, pois no lidam com o que no

    quantificvel, com as incertezas.

  • 45

    Os jogos de RPG se configuram como ferramenta transdisciplinar no momento

    em que auxilia a desenvolver esta forma de pensar o mundo, uma lgica de pensamento

    multidimensional. Os desafios e aventuras nas quais os personagens dos jogadores

    precisam superar para obter sucesso no podem ser resolvidos por um conjunto de

    habilidades de um deles e nem pela simples reunio de pensamentos de todos, e sim

    pela problematizao de um contexto maior, global.

    Alm disso, as jogadas de dados aleatria em conjuno com o componente

    interpretativo tambm dialogam com a noo do inesperado e do incerto. Primeiro, estes

    so os componentes do desafio, que motivam o ser humano (jogador ou personagem) a

    conhecer e modificar os conceitos em busca da superao. E, o prprio Morin coloca

    essa questo como uma aventura, anloga ao RPG pois busca corrigir os erros,

    desmistificar as iluses e renovar as esperanas:

    Da decorre a necessidade de destacar, em

    qualquer educao, as grandes interrogaes sobre

    nossas possibilidades de conhecer. Pr em prtica essas

    interrogaes constitui o oxignio de qualquer proposta

    de conhecimento. Assim como o oxignio matava os

    seres vivos primitivos at que a vida utilizasse esse

    corruptor como desintoxicante, da mesma forma a

    incerteza, que mata o conhecimento simplista, o

    desintoxicante do conhecimento complexo. De qualquer

    forma, o conhecimento permanece como uma aventura

    para a qual a educao deve fornecer o apoio

    indispensvel. (idem, p.30).

    Outra analogia que est presente no RPG a busca incessante da verdade. Um

    termo muito comum para os jogadores vem do ingls quest, literalmente uma jornada,

    uma aventura. oriundo da literatura pica, como a Odisseia de Homero, a Lenda do

    Rei Arthur e Dom Quixote de Miguel de Cervantes, e percorre a literatura moderna, com

    o citado Senhor dos Anis. A quest significa uma busca por algo que necessita de um

    grande esforo de um heri, a superao de obstculos de grande dificuldade e viagens

    longas, o que caracteriza essa jornada como a mais importante de uma vida. Remonta

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    aos contos dos cavaleiros errantes, que visam algo que completaria suas vidas (um amor

    perdido, um objeto, a vingana sobre algum) passariam pelas provaes quase

    impossveis para obt-lo, o que Joseph Campbell em sua obra O Heri de Mil Faces

    (1949) qualificaria como um Monomito. Por causa dos percalos, dos encontros e

    caminhos inesperados que se deparam e do longo tempo que investem, os heris picos

    refletem sobre a motivao de suas jornadas, e por muitas vezes se desviam do caminho

    ou at do objetivo inicial (idem, p.216). Esta jornada, no RPG, a motivao dos heris,

    por motivos diversos, mas com um objetivo em comum; na narrativa registrada, a

    debelao dos kobolds do vilarejo, com personagens de caractersticas das mais

    inusitadas.

    No campo do conhecimento, a quest em busca da verdade tambm incessante,

    literalmente. Como nunca se chega a uma verdade universal, esta viagem infinita,

    com pontos de parada aqui e ali (que se refletem no tempo entre a instaurao e a

    derrocada de um paradigma), mas a reflexo sobre as prticas se mantm frente s

    incertezas do conhecimento:

    O conhecimento , pois, uma aventura incerta que

    comporta em si mesma, permanentemente, o risco de iluso e de

    erro. Entretanto, nas certezas doutrinrias, dogmticas e

    intolerantes que se encontram as piores iluses; ao contrrio, a

    conscincia do carter incerto do ato cognitivo constitui a

    oportunidade de chegar ao conhecimento pertinente, o que pede

    exames, verificaes e conv