herculano pires - agonia das religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da...

135
1 HERCULANO PIRES AGONIA DAS RELIGIÕES Conteúdo resumido As religiões são seres sociais que nascem, crescem e morrem. São corporificações dos anseios de transcendência inatos no homem. Por que motivo podemos afirmar que as religiões do nosso tempo estão

Upload: ngoxuyen

Post on 29-Nov-2018

213 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

1

HERCULANO PIRES

AGONIA DAS RELIGIÕES

Conteúdo resumido

As religiões são seres sociais que nascem, crescem e

morrem. São corporificações dos anseios de

transcendência inatos no homem. Por que motivo

podemos afirmar que as religiões do nosso tempo estão

Page 2: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

2

agonizando? O que virá depois delas? Este livro responde

a essas indagações através de penetrante estudo do

desenvolvimento e decadência das religiões

contemporâneas.

Nesta obra Herculano demonstra que a decadência das

religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o

Renascimento, houve a explosão cultural e científica

iniciada na Europa, e as religiões simplesmente se

negaram a acompanhar essa evolução, mantendo-se na

insistência de impor a fé cega ao ser humano.

As instituições religiosas não conseguem mais

acompanhar a nova necessidade do ser contemporâneo,

que deseja saber o porquê de todas as coisas,

principalmente da sua própria existência e do seu objetivo

final, que é a evolução infinita, em todos os ângulos –

científico, filosófico e moral.

Page 3: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

3

Introdução – Tempos de Agonia ........................................ 5

Capítulo 1 – Agonia das Religiões ................................... 12

Capítulo 2 – Religião como Fato Social ........................... 21

Capítulo 3 – A Experiência de Deus ................................ 30

Capítulo 4 – Experiência no Tempo ................................. 40

Capítulo 5 – Deus, Espírito e Matéria .............................. 48

Capítulo 6 – A Criação do Homem .................................. 56

Capítulo 7 – Do Princípio inteligente ............................... 64

Capítulo 8 – O Corpo-Bioplásmico .................................. 72

Capítulo 9 – Dúvida e Certeza ......................................... 80

Capítulo 10 – Magia e Misticismo ................................... 89

Capítulo 11 – A Cura Divina ............................................ 97

Capítulo 12 – Rito e Palavra .......................................... 106

Capítulo 13 – Revolução Cósmica ................................. 114

Capítulo 14 – O Problema da Violência ......................... 124

Ficha de identificação literária ....................................... 134

Page 4: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

4

- - - - - - - - - -

A Teoria do Conhecimento implica as áreas culturais

da Ciência, da Filosofia e da Religião. Mas a partir do

Renascimento a Religião se desligou desse contexto.

Desenvolveu-se a cultura leiga e as religiões se

encastelaram no conceito de sua origem divina,

decorrente do dogma da Revelação. A Cultura dividiu-se

em duas áreas conflitivas: a religiosa e a profana.

Descartes proclamou, no Discurso do Método, a

existência de dois tipos humanos (homo sapiens): o dos

homens mais do que homens, que recebiam a sabedoria

do próprio Deus, e o dos homens simplesmente homens,

que buscavam o conhecimento através da razão e da

pesquisa. Kant sancionou, em sua Crítica da Razão, essa

distinção que realmente se fazia necessária. Quais foram

as conseqüências desse episódio cultural na crise

religiosa contemporânea? E qual a solução possível para

essa crise? Qual a situação atual das religiões?

O inicio da Era Cósmica já produziu profundos abalos

e modificações nos dois campos. Haverá uma

possibilidade de reunificar-se a cultura geral da nossa

civilização? Qual a razão das súbitas modificações nas

religiões tradicionais e em suas próprias teologias? O

que significam as tentativas de elaboração de um

Cristianismo Ateu?

- - - - - - - - - -

Page 5: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

5

Introdução - Tempos de Agonia

O desenvolvimento da humanidade tem sido marcado

por fases de agonia e de morte, seguidas de fases mais

duradouras de ressurreição e reconstrução. As forças que

determinam essa espantosa sucessão encontram-se na

própria criatura humana. Seria inútil buscarmos uma

explicação celeste, fundada nos pressupostos da Ira de

Deus ou da Justiça Divina, como seria inútil procurarmos

enquadrá-la nas brilhantes teorias relativas à influência

dos ritmos telúricos. A própria doutrina aristotélica da

geração e corrupção não poderia dar-nos os elementos

concretos do fenômeno. Segundo Toynbee, as civilizações

se desenvolvem nas linhas conceptuais de uma religião

fundamental e entram em agonia quando se esvai o poder

vital dessas religiões. A relação sociedade-religião parece

perfeitamente válida, mas não nos oferece o segredo dessa

estranha mecânica da agonia.

Os processos sócio-culturais de cada civilização têm a

sua fonte no homem, pois a sociedade se apresenta

objetivamente como um conglomerado humano. Parece

evidente que o ritmo agônico deve estar ligado às

entranhas e ao psiquismo do homem. Como estamos

vivendo, agora, precisamente numa das curvas agudas

desse ritmo – talvez a mais aguda por que já passou a

humanidade – o momento é propicio para examinarmos o

fenômeno ao vivo, tocando com os dedos os seus

elementos determinantes. A agonia atual das religiões é

geralmente considerada como resultante da situação crítica

da sociedade em seu acelerado desenvolvimento

tecnológico. O mundo do supérfluo, em contradição com o

mundo da escassez, na estrutura social em que vivemos,

levaria a civilização atual a um beco sem saída. As

Page 6: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

6

religiões agonizam porque o edonismo social e o

correspondente pedantismo cultural esvaziaram

igualmente as arcas de tesouros metálicos dos ricos, os

baús de crenças e crendices dos pobres, as esperanças de

sucesso das camadas medianas da sociedade, as fontes de

riqueza do planeta e até mesmo o balaio de sonhos da Lua

e as esperanças de um céu convertido em frios desertos

siderais em que rolam mundos áridos e despovoados.

Inverte-se a tese de Toynbee. As religiões seriam

produzidas e mantidas pelas civilizações, como o mel

pelas comunidades das abelhas. Deus, filho do homem,

está morto, segundo constatam os teólogos mais

avançados. E enquanto os religiosos voltam a matar-se

reciprocamente em nome do deus morto, as grandes

potências da civilização sem perspectivas preparam os

funerais atômicos da Terra. A opressão estatal esmaga o

homem nas áreas capitalistas e socialistas. O Leviatã de

Hobbes ameaça o mar, a terra e o céu. Como decifrarmos

o enigma desses tempos apocalípticos, quando o próprio

ato de pensar parece estar sujeito a controles telepáticos?

Os defensores da liberdade transformam-se em terroristas

e seqüestradores ou em líricos distribuidores de flores

murchas, embalsamadas nas palavras mortas de paz e

amor. A inocência das crianças desaparece na voragem da

criminalidade infantil. E os velhos alquebrados, de olhos

vazios, não encontram mais nos templos os signos da fé

que os embalou na infância, na adolescência, na mocidade

e na maturidade. Os padres sem batinas e as freiras sem

hábitos, os monges sem escapulários e as santos cassados

em sua santidade já não podem consolar os crentes.

O que acontece para que tudo se subverta dessa

maneira total e violenta? Foi a morte de Deus que

Page 7: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

7

esvaziou o mundo ou foi o vazio do mundo que matou

Deus?

As estruturas sociais são coercitivas. Do clã à tribo e à

horda, e desta à civilização, a lei do aglomerado humano é

uma só, mas se desenvolve num ritmo de pressão

crescente. A coerção aumenta na razão direta da

estruturação. Da cabana do pagé à sacristia a religião

segue esse mesmo ritmo. A massificação do homem na

sociedade moderna fez o caminho de retorno sobre as

conquistas do individualismo ateniense. Esparta suprimiu

Atenas. O sonho frustrado da República de Platão já

prenunciava o Leviatã de Hobbes. O desenvolvimento

tecnológico aumentou a pressão social sabre o homem,

como o desenvolvimento da institucionalização religiosa

gerou o totalitarismo eclesiástico das grandes civilizações

orientais, leviatãs teocráticas, e forjou a engrenagem férrea

do milênio medieval. Os sonhos da Renascença, um

instante para respirar, apagaram-se impotentes nas garras

de aço da tecnologia contemporânea. A torquês social da

moral e da religião esmagou as gerações em nome da

utopia conjugada de liberdade e civilização.

O desespero existencial de Kierkegaard e a náusea de

Sartre foram os frutos amargos da escamoteação da

natureza humana pela hipocrisia farisaica dos formalismos

sociais e religiosos. O homem formalizado perdeu a

naturalidade e só teve uma saída para a sua angústia

existencial: matar Deus e rebelar-se contra a sociedade. O

fato não é novo. Repetiu-se na História, com os episódios

de repressão violenta dos rebelados nas civilizações

teocráticas e massivas do Egito faraônico, da

Mesopotâmia, de Israel com suas leis de pureza, da Idade

Média e da Era Vitoriana na Inglaterra. Os libertinos

medievais, a prostituição romana, o nudismo de

Page 8: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

8

comunidades religiosas que buscavam o estado de graça

do paraíso perdido, o deslumbramento da Europa do

Século XVI ante a suposta liberdade absoluta dos

selvagens da América são antecedentes da era

pornográfica que assinala a libertinagem do nosso tempo.

Bastam esses fatos para podermos tocar com os dedos a

fímbria da verdade. Em Os Demônios de Loudun, Aldous

Huxley oferece-nos um quadro portentoso das medidas

eclesiásticas e das providências estatais, na Europa dos

séculos XVI e XVII, com repercussões no Século XVIII,

para aliviar a pressão moral e religiosa no caldeirão social.

Informa Huxley: “Os prelados franceses e alemães

estavam acostumados a receber o cullagium de todos os

padres e informavam àqueles que não tinham concubinas

que poderiam tê-las, se quisessem, mas que deveriam

pagar para isso uma licença, e mais, que essa licença

deveria ser paga mesmo pelos que não as tivessem.” O

celibato forçado explodia de tal maneira que era

conveniente regulamentá-lo, a fim de salvar-se pelo menos

a aparência de santidade dos clérigos. Numa das notas de

seu dicionário, Bayle conta como o Senado de Veneza

tolerava os escândalos do clero para desprestigiá-lo na

opinião pública, em favor das conveniências do Estado.

A deformação da criatura humana pelas exigências

antinaturais das religiões dá-nos a chave do processo

cíclico da morte das civilizações. Isso não quer dizer que

tenhamos de aceitar as teorias atuais de uma psicologia

libertina, mas que devemos compreender o erro e o perigo

das repressões extremas em nome da moral e das religiões.

Podemos compreender claramente que esse extremismo

equivale á medicação de disfarce, que esconde o mal

permitindo o seu desenvolvimento secreto no organismo

social. A Inglaterra da moral vitoriana está hoje a braços

Page 9: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

9

com a explosão de situações incontroláveis. O seu

Parlamento majestoso é levado à adoção de leis e medidas

deletérias, como as referentes aos problemas da

homossexualidade juvenil.

O ministério dos ciclos agônicos é facilmente decifrado

quando levantamos a máscara de hipocrisia das sociedades

antinaturais. O mesmo se dá no tocante às religiões

repressivas, que acabam vencidas pela rebelião dos

instintos naturais, agonizando no descrédito ou sendo

substituídas por outras. Acusa-se o Cristianismo de ser o

responsável pela universalização da hipocrisia, mas os

próprios evangelhos atestam a atitude racional do Cristo

em face dos que pretendiam lapidar a mulher adúltera. No

caso de Zaqueu, o Cristo aceita a sua hospitalidade quando

ele promete devolver aos pobres o fruto impuro dos seus

roubos. Madalena arrependida tornou-se a seguidora

dedicada e a escolhida para ser a primeira a vê-lo depois

da ressurreição. Não há dúvida que os excessos

repressivos do Cristianismo não foram determinados pelo

Cristo, mas pelos seus apóstolos judeus, contaminados

pela hipocrisia farisaica e de outras seitas judaicas. O

Apóstolo Paulo, o que melhor compreendeu a posição do

Cristo em tantos aspectos, não conseguiu escapar aos

prejuízos do judaísmo, de sua formação judaica, quando se

referia aos processos de repressão, tornando-os ainda mais

agudos na religião nascente.

Explica-se a atitude paulina ante as abusos e excessos

das religiões pagãs, mitológicas, em que as práticas

fálicas, os rituais dionisíacos, toda a herança da velha

Suméria, da Mesopotâmia, da libertinagem da Grécia e de

Roma contaminavam as ingênuas comunidades cristãs,

ameaçando com os seus excessos os princípios espirituais

da religião nascente. Paulo, extremamente zeloso,

Page 10: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

10

apegava-se aos resíduos da sua formação farisaica, agindo

com violência para impedir que os cristãos retornassem às

práticas da irresponsabilidade moral. Mas há enorme

distância entre as mediadas enérgicas de Paulo, que não

usava a máscara da hipocrisia, e as medidas repressivas

que mais tarde judaizaram as religiões cristãs. Ele, que

combateu sem cessar os apóstolos judaizantes, incidiu no

mesmo erro que tanto condenara, mas justificado pelas

circunstâncias de uma época de ignorância e de costumes

geralmente condenáveis.

O ponto crucial do problema religioso chama-se

hipocrisia. E a hipocrisia resulta das atitudes egoístas, da

falta de compreensão do verdadeiro sentido da Religião,

que é caminho e não ponto de chegada da espiritualização

do homem. Os religiosos que pretendem atingir a

santidade do dia para a noite, que se revestem de pureza

exterior, encobrindo a podridão interior, são os hipócritas

condenados veementemente no Evangelho. A solução

desse grave problema, que responde pela morte cíclica das

civilizações, está na compreensão da verdadeira natureza

do homem, do processo natural do seu desenvolvimento

espiritual. Os artifícios purificadores só servem para

mascarar os indivíduos pretensiosos. As práticas ascéticas

não podem ser forçadas. As paixões e as instintos do

homem são manifestações de forças vitais que, sob o

controle da razão e do sentimento, podem e devem guiar o

espírito nos rumos da transcendência.

Repetimos agora os ciclos agônicos do Oriente, da

Grécia e Roma, de Israel, da Europa Medieval. A explosão

pornográfica sobrepõe-se aos instintos vitais e aos

controles sociais. E a agonia das religiões anuncia a morte

da civilização tecnológica. Não obstante, há uma

esperança para a brilhante civilização condenada. As

Page 11: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

11

forças do espírito reagem contra a derrocada moral. Como

na queda de Bizâncio, enquanto os clérigos cantam e

pregam em meio à derrocada, há vigias de uma nova era

espreitando o futuro nas almenaras. É o que procuro

demonstrar neste livro, num rápido confronto das

estruturas envelhecidas com as novas estruturas que

nascem da própria terra, sob os nossos pés. Poluída,

envenenada, devastada, ameaçada, a Terra dos Homens,

nossa mãe, convida-nos a subir com Saint-Exupéry para

novas dimensões de uma realidade em que estamos

perdidos.

Page 12: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

12

Capítulo 1

Agonia das Religiões

As Religiões estão morrendo. Este é um dos fatos

marcantes do nosso tempo, mais precisamente do Século

XX. O poder das Religiões não é mais religioso, mas

simplesmente econômico, político e social. As igrejas se

esvaziam, os seminários se fecham, a vocação sacerdotal

desaparece, o clero de todas elas recorre no mundo inteiro

aos mais variados expedientes para manter seus rebanhos,

fazendo-lhes concessões perigosas. Mas todos os

expedientes mostram-se incapazes de restabelecer o

prestígio e o poder religiosos, servindo apenas de

remendos de pano novo em roupa velha, segundo a

expressão evangélica. Começam então a aparecer os

sucedâneos, milhares de seitas forjadas por videntes e

profetas da última hora, na maioria leigos que se

apresentam como missionários, taumaturgos populares,

místicos improvisados e de olhos mais voltados para os

bens terrenos do que para os tesouros do Reino dos Céus.

Esses bastardos do espírito, que pululam por toda parte,

caracterizam o fenômeno sócio-cultural da morte das

Religiões. O fato é bem conhecido dos que estudam a

Sociologia da Cultura. Quando um sistema institucional

esvazia-se no tempo, tragado na voragem das mudanças

culturais, os aproveitadores invadem os domínios

abandonados e socorrem a seu modo os órfãos em

desespero. As grandes revoluções políticas e sociais

mostram-nos como as tiranetes do populacho assumem as

funções dos nobres decaídos, substituindo a autoridade

tradicional pelo mandonismo dos clãs ressuscitados.

Podemos aplicar ao caso uma paródia da explicação

metafísica do horror ao vácuo, dizendo que as sociedades

Page 13: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

13

têm horror ao caos e preenchem a falta de autoridade

legítima (ou pelo menos legitimada) pelo autoritarismo

dos sátrapas.

Esse evidente sintoma de agonia das instituições

tradicionais está presente em toda a área religiosa do nosso

tempo. É o carisma das fases de mudança. Não há dúvida,

portanto, de que as Religiões agonizam. E o responsável

por esse fato alarmante, como sempre, é a própria vítima,

que, pela imprevisão, pelo abuso do poder, pelo apego às

comodidades institucionais, deixou-se levar na ilusão de

sua indestrutibilidade. As próprias Religiões cavaram a

sua ruína no desenrolar do processo histórico.

Acomodadas em sua superioridade, confiantes no

privilégio de sua origem e natureza sobrenaturais,

recusaram-se a integrar-se na cultura natural,

marginalizando-se a si mesmas. A evolução cultural

alargou progressivamente o fosso entre a Cultura e a

Religião, tornando irreversível a situação das instituições

religiosas. Assim, dialeticamente, o conceito arbitrário do

sobrenatural, que era o fundamento de sua segurança,

tornou-se o motivo de sua decadência.

No Ocidente, os primeiros sinais da crise religiosa

contemporânea surgiram em plena Idade Média, com o

episódio trágico-romântico de Aberlardo, prenunciando a

Idade da Razão. Essa nova fase, que se iniciou com o

Renascimento, traria a revolução cartesiana, Rousseau,

Chaumette e o Culto da Razão na Revolução, e

posteriormente Augusto Comte e a Religião da

Humanidade. No ano da morte de Augusto Comte, em

1857, Denizard Rivail iniciaria na França o movimento da

Fé Racional. Assim, a França, que centralizava o processo

cultural no Mundo Moderno, apresenta uma seqüência de

tentativas para a integração da Religião no sistema cultural

Page 14: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

14

em desenvolvimento, sempre rejeitadas pela soberania

eclesiástica apoiada no conceito do sobrenatural.

Paralelamente aos movimentos renascentistas da França,

desencadeou-se na Alemanha, no Século XVI, o

movimento da Reforma, iniciado por Lutero.

No Oriente a reação às religiões tradicionais foi mais

lenta e tardia, menos precisa e definida, com menores

conseqüências, que só se acentuaram no Século XIX. Nem

por isso deixou de produzir efeitos que se intensificaram

no decorrer desse século até o presente sob influências

ocidentais. Na Rússia, sob a inspiração francesa de

Rousseau, Tolstoi promoveu a revolução religiosa do

Século XIX, na linha luterana de volta ao Cristianismo

Primitivo, fazendo uma nova tradução dos Evangelhos em

sentido místico-racional. Todos esses movimentos revelam

a insatisfação cultural no tocante à soberania das

Religiões, fundada no conceito do sobrenatural, que as

mantinham desligadas do processo cultural. Ainda no

Século XIX a obra de Renan, na França, assinalava a

tendência do espírito francês, no plano da História do

Cristianismo, no sentido de estabelecer a verdade sobre os

primórdios da Religião dominante e retirá-la do campo

suspeito do sobrenatural.

Temos, nesse esboço de um vasto panorama histórico, a

visão objetiva dos processos que vinham preparando,

desde os fins do milênio medieval, a derrocada das

Religiões. Em nosso século, o desenvolvimento acelerado

das Ciências, a laicização do Estado e da Educação, a

desagregação da família, a expansão cultural e a rápida

modificação dos costumes e do sistema de vida pelo

impacto da Tecnologia – abrangendo praticamente todo o

mundo – fortaleceram a concepção pragmática e

materialista, dando o golpe de misericórdia no

Page 15: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

15

sobrenatural e nos sistemas religiosos que nele se apóiam.

A etiologia da decadência das Religiões torna-se palpável.

Seria simples tolice querer negá-la.

Não obstante, o sentimento religioso do homem não foi

aniquilado. Pelo contrário, ele subsiste e vem sendo

considerado, particularmente nos países da área dominada

pelo Marxismo, como um resíduo do passado que terá de

desaparecer totalmente com o avanço irresistível da

cultura. A própria URSS, que se desmandou em

campanhas violentas contra a Religião, viu-se obrigada a

fazer concessões significativas ao chamado ópio do povo.

Nos Estados Unidos o Pragmatismo de William James e o

Instrumentalismo de John Dewey temperaram a situação

permitindo uma espécie de trégua na qual, segundo Rhine,

as concepções antípodas do homem – a religiosa e a

científica – podem encontrar-se ao pé do leito de um

moribundo sem estardalhaço. Mas as atrocidades da II

Guerra Mundial geraram na Alemanha um movimento de

reforma radical das Teologias tradicionais, que se projetou

nos Estados Unidos e vem penetrando sutilmente em toda

a América, através de traduções de livros dos novos

teólogos, que anunciam a morte de Deus e pregam a

novidade do Cristianismo Ateu.

Os teólogos mais uma vez se enganam. A teoria da

Morte de Deus, que eles procuram inutilmente explicar

como um acontecimento atual, do nosso tempo, nunca se

verificou nem pode verificar-se. Deus não é um ser nem é

mortal, porque é o Ser Absoluto, o Bem, segundo Platão, a

Idéia Suprema de que derivam todas as idéias e, portanto,

todas as coisas e todos os seres. Os teólogos da chamada

Teologia Radical da Morte de Deus, e seus companheiros

de outros ramos teológicos subseqüentes, sofrem de um

processo de alucinação por transferência. Quem está

Page 16: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

16

morrendo não é Deus, são eles mesmos e suas Teologias,

eles e as Religiões formalistas e dogmáticas.

A concepção nova de Deus, que nasce dos escombros

da concepção antropomórfica do passado, é a de uma

Inteligência Cósmica que preside a toda a realidade

possível. Os cosmonautas soviéticos, depois de umas

voltas ao redor do grão de areia da Terra, declaram

eufóricos que Deus não existe, pois não tiveram o prazer

de encontrá-lo nos microscópicos subúrbios do nosso

planeta. Fizeram como o estudante de Eça de Queiroz, em

A Cidade, que, para provar a inexistência de Deus, tirou o

seu relógio-patacão do bolso do colete, diante de colegas,

e deu o prazo de alguns minutos para que Deus o

fulminasse. Como não foi fulminado, declarou que estava

provada a inexistência de Deus e guardou o patacão no

bolso. Essas piadas servem apenas para mostrar-nos o

estado de ignorância em que ainda nos encontramos; e

para provar, isso sim, que estamos mortos em nossa

estupidez diante da grandeza do Cosmos. Dizer que Deus

morreu é como dizer que a vida se extinguiu. O fato de

estarmos vivos e fazermos essa afirmação já prova o

contrário.

Os teólogos radicais são tão radicais que não admitem a

única explicação possível para a sua teoria da Morte de

Deus. Essa explicação seria a de que o Deus convencional

das religiões morreu, com a idéia hoje inaceitável. Mas

eles se opõem a isso e dão explicações que ninguém pode

entender, pois só entendemos o que é racional. O

problema é mais sério do que pensam os teólogos, que

fazem piada dizendo colocar o Cristo provisoriamente no

lugar de Deus, do que resulta o Cristianismo Ateu, última

novidade das Religiões no Século XX.

Page 17: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

17

Apesar de tudo isso, verifica-se que o que eles

pretendem é colocar o problema da existência de Deus em

termos mais acessíveis à razão. Essa pretensão coincide

com os objetivos do pensamento francês, na seqüência

histórica mencionada acima. É pena que esses teólogos

atuais não tenham a facilidade de expressão e a lucidez

que caracterizam o pensamento francês. Se entre eles

houvesse um teólogo gaulês, certamente lhes explicaria

que o conceito celta de Deus devia satisfazê-los. Os celtas,

que eram um povo monoteísta como os hebreus e viveram

na Antiguidade, poderiam corrigir os teólogos atuais e dar

lições de lógica às Religiões em agonia. Foram

considerados bárbaros e sofreram na pele a barbárie dos

civilizados romanos, mas Aristóteles afirmou que eles

eram o único povo filósofo do mundo.

De todo o exposto parece evidente que a agonia atual

das religiões nada tem a ver com a Religião. Sim, porque a

Religião é uma das características fundamentais da

natureza humana. Parodiando a teoria aristotélica do

animal político, podemos dizer que o homem é um animal

religioso. A falsa teoria do espanto do mundo como

origem da Religião, que até mesmo Van Der Leuw ainda

sustenta, não pode manter-se em pé diante da prova

antropológica de que nunca existiu no mundo um povo

ateu, desde os homens da caverna até os nossos dias. A

idéia de Deus é inata no homem, como Descartes afirmou,

depois de encontrá-la no fundo misterioso do cógito. É

uma idéia evidente por si mesma e indispensável à

compreensão de nós mesmos e do mundo.

Certas pessoas opiniáticas, muito ciosas de si mesmas,

costumam dizer que Deus não existe porque ninguém pôde

provar a sua existência. A própria Ciência ensina que a

causa se prova pelo efeito. Basta-nos olhar uma flor ou um

Page 18: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

18

grão de areia para sabermos que Deus precisa existir, que

existe necessariamente. O que não podemos aceitar é o

Deus das religiões, porque esse Deus – ilógico e absurdo,

como dizia Aristides Lobo – pertence a um passado

remoto em que a humanidade necessitava dele. A essência

da Religião constitui-se de apenas um núcleo e uma

partícula, como o átomo de hidrogênio. O núcleo é a idéia

de Deus e a partícula o sentimento religioso. A Religião

verdadeira, que jamais agonizou e nunca morre, tem nesse

átomo simples e puro a sua raiz simbólica.

Mas, para que a Religião possa desempenhar

livremente o seu papel fundamental na evolução humana,

é necessário que a reintegremos na Cultura Geral, como

uma de suas áreas mais importantes. Para livrar o

Conhecimento da dispersão produzida pelas

especializações científicas, foi necessário criar-se a

Filosofia da Ciência. Para livrar a Religião da

pulverização sectária é indispensável libertá-la do

formalismo dogmático, do profissionalismo religioso, do

fanatismo igrejeiro. A agonia das religiões é determinada

pela asfixia das estruturas antiquadas, do irracionalismo

baseado no conceito do sobrenatural e da Revelação

Divina. Os dois tipos de religião analisados por Bergson, o

social e o individual, devem fundir-se na síntese da

Religião do Homem, que ressalta historicamente das

aspirações francesas e mereceu do poeta bengali

Rabindranath Tagore um estudo lúcido e lírico. O

Conhecimento é um todo, é global. Teoria e prática são

verso e reverso de um mesmo processo. O homo sapiens e

o homo faber são uma e a mesma coisa: o homem. As

especializações são simples formas de divisão do trabalho,

de acordo com as diferenciações de tendências individuais.

Ciência e Técnica, Filosofia e Moral, Metafísica e

Page 19: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

19

Religião são apenas divisões metodológicas do campo do

Saber, formas disciplinares do pensamento e da ação.

A Era da Comunicação de Massa, que segundo

Mcluhan fez da Terra uma aldeia global, estourou o

mundo chinês do passado, de muralhas e mandarinatos. A

dicotomia kantiana, que negou a impossibilidade do

conhecimento extra-sensorial, foi superada pelas

conquistas físicas e psicológicas de hoje. O sobrenatural

mudou de nome, é apenas o natural desconhecido que a

investigação científica vai rapidamente integrando no

Conhecimento Global da realidade una. Temos de

adaptar-nos às condições novas e às novas dimensões do

homem e do mundo. As próprias igrejas estão abrindo as

portas dos conventos e dos mosteiros para não morrerem

asfixiadas. As Ciências rompem com o passado, a

Filosofia se livra dos sistemas para enfrentar com

desenvoltura a problemática do pensamento, os tabus são

esmigalhados pelo homem novo, os mestres e gurus se

fazem discípulos da única fonte real de sabedoria que é a

Natureza. O sacerdócio é uma espécie em extinção. Os

teólogos foram confundidos por Deus, que não quis

entregar-se em suas mãos inábeis.

Se quisermos salvar a Religião, nesse maremoto das

transformações que afligem os passadistas, façamos

urgentemente a liquidação das religiões em agonia e

mandemos os seus artigos de fé, seus ícones e suas

medalhas para o Museu do Homem, como simples

testemunhos de um tempo morto.

Tudo isso é aflitivo para os espíritos rotineiros e

acomodatícios, como a mensagem cristã era escândalo

para os judeus e espanto para gregos e romanos. Mas os

espíritos flexíveis, corajosos, lúcidos, empenhados na

busca da Verdade – essa relação direta do pensamento

Page 20: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

20

com o real – não se atemorizam, antes se rejubilam com a

libertação do homem. Esta é a verdade flagrante do

momento que vivemos: o homem se liberta de seus

temores, da ilusão de sua fragilidade existencial, do

confinamento planetário, do embuste e da hipocrisia, para

viver a vida como ela é, na plenitude das suas

potencialidades corporais e espirituais.

O homem se emancipa e toma consciência da sua

natureza cósmica. Diante dele está o futuro sem limite, a

imortalidade dinâmica e demonstrável que se opõe ao

conceito limitado da imortalidade estática e hipotética. Sua

herança não é o pecado nem a morte, mas a vida em nova

dimensão.

Page 21: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

21

Capítulo 2

Religião como Fato Social

O homem contemporâneo, vivendo numa fase de crise

universal, determinada por mudanças rápidas em todos os

campos de sua atividade, defronta-se com um grave

problema subjetivo: ser ou não ser religioso. Os estudos

sobre a origem e o desenvolvimento da Religião, sua

natureza, sua significação para o comportamento humano,

seus efeitos na dinâmica social e nos processos de

renovação das estruturas econômicas e administrativas da

sociedade, bem como no desenvolvimento cultural e mais

especificamente das pesquisas científicas, oferecem-lhe

opções contraditórias que não levam a nenhuma solução,

agravando a crise com o levantamento de novos conflitos

aparentemente insanáveis.

Culturalmente marginalizada, a partir do Renascimento,

a Religião se transformou numa questão opinativa. Para os

materialistas e ateus é apenas um resíduo do passado

supersticioso; para os pragmatistas, uma questão de

conveniência; para os espiritualistas, um problema vital,

do qual depende a própria sobrevivência da Humanidade.

As posições opiniáticas, em todas essas áreas, geram a

desconfiança e a indiferença no seio das massas populares,

desprovidas de elementos para uma avaliação do problema

e muito menos para a sua equação.

O que hoje se convencionou chamar de Ciência da

Religião, abrangendo vários aspectos da questão religiosa

em diversas perspectivas científicas, fora do campo

religioso, apresenta-se como análise fria do processo

religioso, com base nos dados objetivos da História.

Mesmo a Psicologia das Religiões vê-se obrigada a pairar

Page 22: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

22

no plano das estruturas das escolas psicológicas, sem

mergulhar na essência do fenômeno religioso, sob pena de

perder a sua qualificação científica.

Acontece com a Religião o mesmo que verificamos no

tocante ao problema da vida, cuja solução se busca no

pressuposto de que o impulso vital se origina no campo

dos aminoácidos. A matéria, considerada como a fonte de

toda energia – apesar da comprovação cientifica atual de

que é o produto da acumulação energética – mantém-se na

posição de geradora da vida. Assim também se busca o

segredo da Religião nas suas formas de manifestação, na

sua estrutura e no seu funcionamento, como se ela se

originasse das entranhas do homem e não das profundezas

do seu psiquismo. A vida, a alma, o sentimento e o

pensamento não seriam mais do que epifenômenos,

efêmeras eclosões do fenômeno orgânico, destinadas a

desaparecer com este.

Não pretendo promover uma revolução copérnica no

assunto, mas apenas mostrar, se possível, a conveniência

de uma mudança de posição. Basta encararmos a Religião

como um fato social, segundo a tese de Durkheim, sem

nos limitarmos aos aspectos puramente estruturais e

funcionais do fato em si, para que as perspectivas da

análise se tornem mais amplas e flexíveis. Religião e

Sociedade se mostram conjugadas indissoluvelmente no

plano histórico. Se tomarmos como exemplo o clã judaico

de Abraão, do grupo étnico dos Habiru, na Caldéia,

veremos que ali se formava ao mesmo tempo uma nova

sociedade e uma nova religião que iriam exercer papel

fundamental no desenvolvimento da civilização. Ambas,

sociedade e religião, nasciam no seio de outra sociedade e

outra religião, organizadas, tradicionais, e delas se

distinguiam pelas características étnicas e pela destinação

Page 23: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

23

histórica tipicamente carismática, determinada pela

tendência monoteísta do clã, sob o impulso de crenças que

se corporificavam nas manifestações de entidades

mitológicas. Abraão, Isaac e Jacó assumiram a direção do

clã e o levariam, através do Egito, às terras de Canaã, na

Palestina, na sangrenta epopéia dos relatos bíblicos.

Temos de distinguir no caso dois elementos conjugados

que provocam o nascimento da nova religião: primeiro, o

elemento étnico, determinante do agrupamento social;

segundo, o elemento mítico, determinante da nova

orientação religiosa. Este último não se mostra como

subjetivo, mas caracteriza-se pela sua objetividade. É a

intervenção ativa de influências exógenas na vida do clã,

provenientes de manifestações concretas de entidades

espirituais. Por mais que isso possa repugnar aos adeptos

da interpretação psicológica dos fatos, que só aceitam as

manifestações espirituais como de ordem subjetiva, os

resultados das pesquisas modernas e contemporâneas no

campo das Ciências Psíquicas, atualmente confirmadas

pelas pesquisas parapsicológicas, com a anterior

comprovação das pesquisas metapsíquicas, mostram que a

intervenção espiritual poderia ter sido objetiva, segundo a

descrição dos relatos bíblicos.

Admitindo-se a realidade dessa manifestação concreta,

que corresponde a milhares de outras verificadas em todas

as latitudes do planeta, podemos chegar à conclusão de

que as religiões se originam de uma conjugação de fatores

humanos e espirituais, nenhum deles podendo ser excluído

da análise honesta do fato social, sem que se pratique uma

violência contra a realidade mundialmente comprovada.

Os fenômenos paranormais aparecem então como o

elemento básico do fato social a que chamamos religião. E

não é possível, nas condições atuais do desenvolvimento

Page 24: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

24

das Ciências, mesmo no plano da Física, opor a essa

realidade o simples desmentido dos argumentos, sem

provas científicas evidentes de sua impossibilidade.

Assim, a colocação do problema religioso de maneira

opiniática, em termos materialistas, pragmáticos ou

espiritualistas, nesta altura de nossa evolução cultural,

corresponderia a uma verdadeira heresia científica. Não

obstante, o desenvolvimento das religiões e sua

institucionalização, em todo o mundo, oferecem motivos

de suspeita aos espíritos objetivos, que pretendem analisá-

las no seu estado atual. Nesse processo histórico inserem-

se naturalmente os elementos do psiquismo comum, em

suas manifestações pura-mente subjetivas e não raro de

ordem patológica. Inserem-se também os elementos

psicológicos, hoje bem conhecidos, que determinam a

criação do sectarismo religioso e das ordenações

institucionais, cujos objetivos são característicos dos

interesses sociais. Posições psicológicas individuais ou de

grupos, tradições, interesses políticos, preconceitos,

superstições, interesses imediatistas, às vezes até mesmo

pessoais e outros são elementos que se mesclam no

processo de institucionalização das religiões, não raro a

partir do próprio momento e da própria fonte em que elas

nascem. Mais do que difícil, é quase impossível distingui-

los e precisar a importância que tiveram no processo

histórico.

As religiões se dividem em duas categorias

fundamentais: as reveladas ou naturais e as inventadas ou

artificiais. Independentemente das classificações

existentes, podemos dispô-las nessas duas linhas de

analise. A religião natural, neste caso, é a que surge

espontaneamente, entre os povos primitivos ou civilizados,

a partir do ensino de um mestre. As artificiais são criadas

Page 25: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

25

no meio civilizado, em momentos de crise religiosa, como

no caso do Culto da Razão, de Chaumette, ou da Religião

da Humanidade, de Augusto Comte. As reformas

religiosas não criam tipos novos, apenas modificam os já

existentes em virtude de divergências ou da verificação de

distorções havidas no processo de institucionalização. A

religião individual, da tese de Bergson, que corresponde à

Moralidade da tese anterior de Pestalozzi, não se enquadra

nesse panorama por constituir uma superação do plano

social e uma libertação total de todo condicionamento

institucional. Não obstante, pela sua conotação inevitável

com a realidade social em que se insere, embora

individualmente, não escapa à classificação geral de fato

social.

Temos assim uma possibilidade maior de esclarecer o

que se pode entender por religião como fato social. Não é

apenas um fato isolado que ocorre na dinâmica de uma

sociedade, mas um fato que brota da realidade social como

expressão de sua própria alma, de suas tendências e suas

aspirações, na forma de uma síntese conceptual que

engloba, nas suas representações simbólicas e na sua

estrutura racional, os elementos básicos do todo social

concreto e os vetores ou direções do psiquismo coletivo.

Sem essa compreensão intuitiva, e portanto global, do fato

social da religião, todas as formas de encarar e interpretar

o fenômeno religioso nos levarão fatalmente a

condicionamentos restritivos e esquemáticos, que só

poderão aumentar a confusão e agravar as erros cometidos

na colocação do problema.

Essa complexidade do fenômeno religioso parece

,explicar de maneira mais profunda a marginalização

cultural a que a Religião foi relegada a partir do início do

mundo moderno. Confinada nas instituições igrejeiras,

Page 26: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

26

abastardada pelo profissionalismo clerical, transformada

em ópio do povo e sustentáculo de situações sociais

profundamente injustas, catalogada entre os produtos

espúrios das fases de ignorância supersticiosa, revertida à

condição de promotora de guerras, massacres e asfixia das

liberdades humanas, utilizada como arma poderosa nas

mais desumanas guerras ideológicas, responsabilizada

pelas mais cruéis deformações da criatura humana, a

Religião se constituiu em barreira de todo o progresso

cultural e foi excluída do mundo da Cultura como

indesejável.

Não obstante, graças ao poder subjacente nas estruturas

formais das religiões e à conotação vital dos seus

princípios com as exigências naturais da consciência

humana, sua posição no processo cultural moderno e

contemporâneo caracterizou-se pela ambivalência. Sua

exclusão não pode ser total, nem mesmo nas áreas

políticas dominadas pelo materialismo ideológico.

Encarada ao mesmo tempo com ódio e respeito, numa

estranha mistura de desconfiança e temor, encontrou na

interpretação pragmática, utilitária, de mal necessário, o

salvo-conduto que lhe permite a circulação tolerada nos

meios culturais da atualidade.

Por outro lado, sua presença nos meios culturais é

sempre conflitiva. Não há possibilidade de harmonização

perfeita entre cultura religiosa e cultura secular, a não ser

no plano da religião individual, que rompe o envoltório

formal das religiões sociais e é encarada por estas como

uma aberração. O resultado mais negativo dessa situação

conflitiva foi o aparecimento de outro mal necessário, a

implantação mundial da Educação Leiga, que frustrou as

possibilidades de reelaboração da experiência religiosa

pelas novas gerações e determinou a sedimentação

Page 27: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

27

interesseira da sua posição de ambivalência no mundo

contemporâneo. Como não podia deixar de acontecer, essa

posição ambígua, indefinida e contraditória em si mesma,

levou a proporções catastróficas a crise das religiões em

nossos dias.

Felizmente a natureza vital da Religião, as suas

profundas raízes ônticas (e não apenas ontológicas) e a sua

inelutável condição de síntese de toda a realidade social,

determinaram o aparecimento de uma síntese cultural em

que a Religião, reunificada à revelia da fragmentação

institucional das religiões, ressurge entranhada na

substância do progresso cultural. Não podemos tratar da

crise das religiões em nosso tempo sem enquadrá-la nas

dimensões desse fato cultural, onde todos os seus

problemas se esclarecem de maneira coerente e profunda.

As pessoas integradas no formalismo cultural do século,

apegadas a princípios exclusivistas e alheias à

recomendação cartesiana contra o preconceito e a

precipitação, certamente rejeitarão como negativa e parcial

a posição que assumo. Mas a coincidência com a verdade

histórica (simplesmente incontestável) com a conflitiva

realidade cultural dos nossos dias com as perspectivas

científicas abertas por essa síntese cultural e já em parte

realizadas, asseguram a validade desta interpretação,

acima de qualquer facciosismo. Não seria possível

desprezar a evidência dos fatos e das conotações de

princípios filosóficos e científicos com o panorama real,

objetivo, das mudanças que se verificam dia-a-dia aos

nossos olhos, apenas para satisfazer a determinadas

normas convencionais. Acima das convenções transitórias

e das conveniências de acomodação ao impreciso espírito

da época, deve prevalecer o amor à verdade.

Page 28: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

28

Acelera-se o processo das mudanças. Ampliam-se os

conflitos entre o velho e o novo em todas as áreas das

atividades humanas. Descontrolam-se os sistemas de

segurança em todas as instituições. As religiões até ontem

mais sólidas e poderosas agonizam em seus leitos de

riquezas milenarmente acumuladas. As teologias até

ontem inabaláveis, como estrelas fixas do pensamento

religioso, estremecem como a unidade pitagórica para

desencadear a década de novos universos. Rasgam-se as

fronteiras do tempo e do espaço. O homem se equilibra,

nervoso e inquieto, na fímbria tenuíssima da crosta

planetária, entre dois infinitos que se escancaram nos

abismos do microcosmo e do macrocosmo.

Não é essa hora de concessões à ignorância (ilustrada

ou não) nem o momento de cachimbadas líricas ao cair do

crepúsculo. Estamos na hora da verdade, das proposições

claras e precisas, da posição destemida de alerta e

vigilância. Precisamos ver, sentir, perceber por todos os

nossos sentidos e além dos sentidos, através da intuição e

da percepção extra-sensorial, que as peças envelhecidas do

xadrez cultural estão sendo mudadas no tabuleiro do

mundo. Não há mais lugar para as contemporizações

tranqüilas do passado, que acobertavam piedosamente os

germes dos conflitos atuais. Agora os conflitos explodem

e temos de enfrentá-los face a face.

Encarando a crise das religiões como um processo

sócio-cultural integrado na realidade imediata, não

podemos escamotear a verdade das soluções que já foram

propostas para ela com grande antecedência histórica.

Trata-se, por sinal, de um processo cíclico bastante

conhecido dos estudiosos da História. Só há uma novidade

na crise atual: a violenta ampliação das dimensões da

crise, que se abre para visões dantescas do passado e do

Page 29: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

29

futuro. No passado, deparamos de novo com as regiões

infernais percorridas pelo gênio de Dante; no futuro, com

as revoadas angélicas da criação artística de Gustave Doré.

Não há o que temer. O passado agoniza e o futuro nos

arrebata, pelas mãos de Beatriz, às regiões celestiais.

Estamos pisando no limiar da Era Cósmica e as

constelações já brilham aos nossos olhos.

Page 30: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

30

Capítulo 3

A Experiência de Deus

Sacerdotes e pastores, homens de fé, sinceros e bons

procuraram demonstrar-me que as religiões não estão em

crise. Sustentaram que a crise é do homem e não das

instituições religiosas. As religiões continuam vivas e

atuantes no coração dos crentes – disseram – mas os

homens mundanos, que se entregam à loucura do século,

conturbam a paisagem terrena. É necessário que os

homens busquem a Deus, que tenham a experiência de

Deus. E essa experiência só é possível quando o homem se

desliga do mundo para ligar-se a Deus através da oração e

da meditação. Falaram de milhares de pessoas que, no

torvelinho da vida contemporânea, procuram todos os

dias, a horas certas, o refúgio dos templos ou de um quarto

solitário para tentar um encontro pessoal com Deus.

Muitas dessas pessoas já conseguiram a audiência secreta

com o Todo Poderoso. São criaturas felizes, iluminadas

pela graça divina, que sustentam com sua fé inabalável a

continuidade das religiões e garantem a sua expansão.

É bom que existam pessoas assim, dedicadas vestais

que zelam pelo fogo sagrado. São os últimos abencerrages

do formalismo religioso, flores de estufa cultivadas na

penumbra das naves sagradas. Cuidam da fé como

jardineiros especializados que cultivam uma espécie

vegetal extremamente delicada. Acreditam que os seus

canteiros floridos darão sementes para semeaduras

ilimitadas por toda a superfície da Terra. Não percebem

essas almas eleitas que cultivam exclusivamente a si

mesmas, ocultam na aparência piedosa seus conflitos

profundos e nada mais fazem do que fugir da realidade

escaldante da vida. Não escondem a cabeça na areia, pois

Page 31: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

31

mergulham de corpo inteiro no sonho egoísta da salvação

pessoal.

As práticas místicas do passado provaram mal a sua

eficácia. Do Oriente ao Ocidente, multidões de gerações

de crentes desfilaram sem cessar, através dos milênios,

pelos templos de todas as religiões. convictas de haverem

alcançado a salvação pessoal, enquanto hordas ferozes e

exércitos em guerras de extermínio brutal cobriam o

mundo de ruínas, cadáveres inocentes, sangue e lágrimas.

Os que ouviram Deus em audiência particular não se

recusaram a pegar em armas para estraçalhar seus irmãos

considerados como réprobos e infiéis. Santos Bispos e

Padres, pastores calvinistas, crentes populares,

fidelíssimos e humildes, não acenderam suas lâmpadas

votivas para iluminar as noites trevosas. Preferiram

acender fogueiras inquisitórias e, quando o sol raiava,

submeter piedosamente os hereges à morte redentora do

garrote-vil, réplica religiosa à guilhotina profana.

Lembro-me do episódio histórico de Jerônimo de

Praga. Depois de haver assistido, pelas grades da prisão,

seu mestre João Huss ser queimado vivo em praça pública,

foi também glorificado com a graça especial de uma

fogueira semelhante. No momento em que as chamas

começavam a iluminar a sua figura estranha,

caridosamente amarrada ao palanque do suplício (para

salvação de sua alma rebelde) viu uma pobre velhinha

aproximar-se da fogueira com uma acha de lenha e atirá-la

ao fogo. Era a sua contribuição piedosa para a salvação do

ímpio. Jerônimo exclamou apenas: “Santa simplicidade.”

Pouco depois estava reduzido a cinzas, para glória de

Deus, e suas cinzas foram lançadas ritualmente nas águas

do Reno.

Page 32: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

32

Todas as formas de culto, todos os ritos, todos os

sacramentos, todas as cerimônias religiosas, todos os

cilícios foram empregados nos milênios sombrios do

fanatismo religioso, para a salvação da Humanidade. E eis

que agora chegamos a um tempo de descrença

generalizada, de materialismo e ateísmo oficializados, de

hipocrisia pragmática erigida em sustentáculo das religiões

fracassadas. Deus falava diretamente com seu servo

Moisés no deserto, falava-lhe cara a cara, ordenando

matanças coletivas, genocídios tenebrosos, destruição total

dos povos que impediam o acesso dos hebreus à terra dos

cananeus, que seria tomada a fio de espada. Deus continua

falando em particular a seus servos em nossos dias, para a

sustentação das igrejas, enquanto o Diabo não perde

tempo e alicia milhões de almas perdidas para as práticas

do terrorismo, para a matança de crianças e criaturas

inocentes, para assaltos e estupros em toda a face da Terra.

A experiência de Deus sustenta os crentes privilegiados

e sustenta suas igrejas salvacionistas. E enquanto não

chega a salvação, católicos e protestantes matam-se

gloriosamente nas lutas fratricidas da Irlanda, em plena era

das mais brilhantes conquistas da inteligência humana.

Que estranha experiência é essa, que não revela os seus

frutos, que não prova a sua eficácia? Deus estaria, acaso,

demasiado velho para não perceber a inutilidade dos seus

métodos de salvação pessoal em audiências privadas? E os

seus servidores, os clérigos investidos de autoridade divina

para implantar na Terra o Reino do Céu, porque não

avisam o velho monarca da inutilidade milenarmente

provada de sua técnica de conta-gotas?

Não seria mais certo tentarmos a revisão dos conceitos

religiosos que nos deram a herança de tantos fracassos e

tão espantosa expansão do materialismo e do ateísmo no

Page 33: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

33

mundo? Todas as grandes religiões afirmam a onipresença

de Deus no Universo. Não obstante, todas consideram o

mundo (criado por Deus) como profano, região em que as

trevas dominam e o Diabo faz a incessante caçada das

almas de Deus. É curioso lembrar que nos tempos

mitológicos o mundo era considerado sagrado, a vida uma

bênção, os prazeres naturais e as leis da procriação eram

graças concedidas pelos deuses aos homens. O

monoteísmo judaico, desenvolvido pelo Cristianismo,

impregnou o mundo com a onipresença de Deus e o

mundo tornou-se profano. Se Deus está presente num grão

de areia, numa folha de relva, num fio dos nossos cabelos

e numa pena das asas de um pássaro, como, apesar dessa

impregnação divina, o homem se defronta com a impureza

do mundo? Por que estranho motivo necessitamos de ritos

especiais para purificar a inocência de uma criança, se

Deus está presente no seu olhar puro e límpido, no seu

choro, na meiguice do seu rostinho ainda não marcado

pelo fogo das paixões terrenas? E porque precisa o

cadáver de recomendação, com aspersão de água benta, se

a ressurreição dos mortos se faz, como ensina o Apóstolo

Paulo na I Epistola aos Coríntios e como Jesus

exemplificou na sua própria morte, no corpo espiritual e

não no corpo material?

São esses e outros muitos problemas acumulados nos

erros milenares dos teólogos que levam o homem

contemporâneo à descrença e ao materialismo, ao ateísmo

e ao niilismo. São todos esses erros que colocam as

religiões em crise e as levarão à morte sem ressurreição.

Considerando-se, porém, esse estranho panorama religioso

da Terra numa perspectiva histórica, à luz da razão,

compreende-se facilmente que os erros de ontem, até hoje

sustentados pelas religiões, foram úteis e necessários nos

Page 34: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

34

tempos de ignorância, em que os problemas espirituais não

podiam ser colocados em termos racionais. Há

justificativas válidas para o passado religioso, mas não

justificativas possíveis para o seu presente contraditório e

absurdo. A tese, mais do que absurda, do Cristianismo

Ateu, com que teólogos rebeldes procuram hoje remendar

as vestes esfarrapadas das igrejas, só vem acrescentar

maior confusão ao momento de agonia das religiões

envelhecidas.

O problema da experiência de Deus poderia ser

resolvido com um mínimo de reflexão. Se Deus está em

nós, e por isso somos deuses em potência, segundo a

própria expressão evangélica, porque necessitamos de uma

busca artificial de Deus para termos a experiência da sua

realidade? Se fomos criados por Deus e se Deus pôs em

nós a sua marca, como afirmou Descartes – a idéia de

Deus em nós, que é inata – já não trazemos, ao nascer, a

experiência de Deus? E se, no desenvolver da vida

humana, o homem nada mais faz do que cumprir um

desígnio de Deus, assistido pelos Anjos Guardiães, porque

tem ele de buscar a Deus através de uma prática artificial e

egoísta, procurando preservar-se sozinho num mundo em

que a maioria se perde irremediavelmente? Moisés

supunha ter ouvido o próprio Deus no Sinai, mas o

Apóstolo Paulo explicou que Deus lhe falara através de

mensageiros, que são anjos. As pessoas que buscam hoje a

experiência de Deus em audiência privada serão mais

dignas do que Moisés, não estarão sujeitas a ouvir a voz de

um anjo, que tanto pode ser bom quanto mau, pois as

próprias igrejas admitem que os anjos decaídos andam à

solta pela Terra procurando roubar para o Inferno as almas

de Deus? Quem estará livre, na sua piedosa tarefa de

salvar-se a si mesmo, de ser tentado pelo Diabo, que

Page 35: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

35

tentou o próprio Jesus nas suas meditações solitárias no

Deserto?

As práticas místicas do passado não servem para a era

da razão, em que nos encontramos na antevéspera da era

do espírito. Orar e meditar é evidentemente um exercício

religioso respeitável e necessário em todos os tempos. A

oração nos liga aos planos superiores do espírito e a

meditação sobre questões elevadas desenvolve a nossa

capacidade de compreensão espiritual. Mas o dogma da

experiência de Deus através de um pretensioso colóquio

direto e pessoal com a Divindade é uma proposição

egoísta e vaidosa. Se Deus é o Absoluto e nós somos

relativos, a humildade não nos aconselha a ter mais cautela

em nossas relações pessoais com a Divindade? São muitos

os casos de perturbações mentais, de obsessões perigosas,

de lamentáveis desequilíbrios psíquicos decorrentes de

exageradas pretensões das criaturas humanas no campo

das práticas religiosas. A História das Religiões é marcada

por terríveis experiências nesse sentido. Basta lembrarmos

os casos de perturbações coletivas em conventos e

mosteiros da Idade Média, onde os excessos de misticismo

transformaram criaturas piedosas em vítimas de si

mesmas, sujeitando-as não raro à própria condenação da

igreja a que pertenciam e a que procuravam servir.

Os dogmas de fé, que formam a estrutura conceptual

das igrejas, são as pedras de tropeço do seu caminho

evolutivo. Partindo do princípio de que a Revelação

Divina é a própria palavra de Deus dirigida aos homens, as

igrejas se anquilosaram em seus dogmas intocáveis, pois a

exegese humana não poderia alterar as ordenações ao

próprio Deus. Na verdade, a alteração se verificou em

vários casos, apesar disso, mas decisões conciliares

puseram a última pá de cimento nos erros cometidos. As

Page 36: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

36

estruturas eclesiásticas tornaram-se rígidas e as igrejas

confirmaram, no seu espírito, a ossatura de pedra de suas

catedrais. Vangloriam-se ainda hoje da sua imutabilidade,

num mundo em que tudo evolui sem cessar. Os resultados

dessa atitude ilusória e pretensiosa só poderiam ser

nefastos, como vemos atualmente no lento e doloroso

processo de agonia das religiões. Incidiram assim no

pecado do apego, contra o qual os Evangelhos advertiram

os homens. Apegaram-se de tal maneira à própria vida,

que perderam a vida em abundância que Jesus prometeu

aos que se desapegassem. As liberalidades atuais

chegaram demasiado tarde.

A palavra dogma é grega e seu sentido original é

opinião. Adquiriu em filosofia e religião o sentido de

princípio doutrinário. Nas Escrituras religiosas aparece

algumas vezes com o sentido de édito ou decreto de

autoridades judaicas ou romanas. Entre o dogma religioso

e o filosófico há uma diferença fundamental. O dogma

religioso é de fé, princípio de fé que não pode ser

contraditado, pois provém da Revelação de Deus. O

dogma filosófico é racional, dogma de razão, ou seja,

princípio de uma doutrina racionalmente estruturada. O

sentido religioso superou os demais por motivo das

conseqüências muitas vezes desastrosas da sua rigidez e

imutabilidade. Se falarmos, por exemplo, em dogmática,

esse termo é geralmente entendido como designando a

estrutura dos dogmas fundamentais de uma religião. Por

isso, a adjetivação de dogmática, que implica também o

masculino, corno nas expressões: pessoa dogmática,

posição dogmática ou homem dogmático, significa

intransigência de opiniões. O mesmo acontece com o

substantivo dogmatismo, que designa um sistema de

opiniões intransigentes.

Page 37: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

37

Estas influências religiosas na semântica revelam a

intensidade da rigidez a que as igrejas se entregaram,

através dos séculos e dos milênios, na defesa da suposta

eternidade de seus princípios básicos. Temos, portanto, no

dogma de fé, um dos motivos fundamentais da crise das

religiões em nossos dias. No Espiritismo, como em todas

as doutrinas filosóficas, existem dogmas de razão, como o

da existência de Deus, o da reencarnação, o da

comunicabilidade dos espíritos após a morte. Muitos

adeptos estranham a presença dessa palavra nos textos de

uma doutrina que se afirma antidogmática, aberta ao livre

exame de todos os seus princípios. São pessoas ainda

apegadas ao sentido religioso da palavra. Não há nenhuma

razão para essa estranheza, como já vimos, do ponto de

vista cultural.

O problema da religião no Espiritismo tem provocado

discussões e controvérsias infindáveis, porque essa

doutrina não se apresenta corno religião no sentido comum

do termo. Allan Kardec, discípulo de Pestalozzi, adotava a

posição de seu mestre no tocante à classificação das

religiões. Pestalozzi admitia a existência de três tipos de

religião: a animal ou primitiva, a social e a espiritual. Mas

recusava-se a chamar esta última de religião, dando-lhe a

designação de moralidade. Isso porque a religião superior

ou espiritual, segundo ele, só era professada

individualmente pela criatura que superava o ser social e

desenvolvia em si o ser moral. Kardec recusou-se a falar

em Religião Espírita, sustentando que o Espiritismo é

doutrina científica e filosófica, de conseqüências morais.

Mas deu a essas conseqüências enorme importância ao

considerar o Espiritismo como desenvolvimento histórico

do Cristianismo, destinado a restabelecer a verdade dos

Page 38: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

38

princípios cristãos, deformados pelo processo natural de

sincretismo-religioso que originou as igrejas cristãs.

Essa posição espírita manteve a doutrina e o

movimento doutrinário em posição marginal no campo

religioso. Para os espíritas, entretanto, a posição da

doutrina não é marginal, mas superior, pois o Espiritismo

representaria o cumprimento da profecia evangélica da

Religião em espírito e verdade, que se desenvolveria sob a

égide do próprio Cristo. A religião espírita não se

organizou em forma de igreja, não admite sacramentos

nem admitiu nenhuma forma de autoridade religiosa de

tipo sacerdotal. Não há batismo, nem casamento religioso

no Espiritismo, nem confissões ou indulgências. Todos

esses formalismos são considerados como de origem pagã

e judaica. Entende-se o batismo como rito de iniciação,

que Jesus substituiu pelo batismo do espírito, sendo este

considerado como a iniciação no conhecimento

doutrinário, feita naturalmente pelo estudo da doutrina,

sem nenhum ato ritual. Admite-se também que o batismo

do espírito, segundo o texto do Livro de Atos dos

Apóstolos sobre a visita de Pedro à casa do centurião

Cornélius, no porto de Jope, pode completar-se, nos

médiuns, quando se verifica espontaneamente, com o

desenvolvimento da mediunidade.

Essa posição espírita no campo religioso causou

numerosas dificuldades aos espíritas no tocante às relações

de instituições doutrinárias com os poderes oficiais,

particularmente para a declaração de religião em

documentos oficiais, para o resguardo dos direitos

escolares em face do ensino religioso, para a declaração de

religião nos recenseamentos da população, até que

medidas oficiais reconheceram esses direitos. Em

compensação, o Espiritismo ficou livre das conseqüências

Page 39: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

39

da crise religiosa, que não o atingiram. Demonstrarei nos

capítulos seguintes a posição da Religião Espírita em face

dessa crise, que é evidentemente uma posição de

vanguarda. Sua contribuição para a racionalização dos

princípios religiosos, para a reintegração da Religião no

plano cultural, particularmente no tocante aos problemas

científicos da atualidade, é realmente substancial. No

campo filosófico a posição espírita é também

vanguardeira, pois desde o século passado sua filosofia se

apresenta como livre dos prejuízos do espírito de sistema,

conservando-se aberta a todas as renovações que decorrem

de descobertas cientificamente comprovadas. Livre da

dogmática religiosa e da sistemática filosófica, apoiada

inteiramente na pesquisa cientifica, a doutrina está de fato

a cavaleiro nas crises da atualidade.

Page 40: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

40

Capítulo 4

Experiência no Tempo

O homem realiza a experiência de Deus no tempo, ao

longo de sua evolução natural. Não se pode ter uma

experiência artificial de Deus em alguns minutos ou

algumas horas de meditação. Essa experiência é natural –

e de natureza vital –, faz parte integrante da vida e da

existência humana. Podemos lembrar a expressão de

Descartes: A idéia de Deus no homem é a marca do

obreiro na sua obra. Descartes foi o precursor de Kardec,

como João Batista o foi do Cristo. Temos, assim, uma

curiosa correlação histórica entre o advento do

Cristianismo e o advento do Espiritismo, que se completa

em numerosos outros aspectos.

Lembrando a teoria da reminiscência em Platão, em

que as almas nascem na Terra marcadas pela recordação

do mundo das idéias, compreenderemos mais facilmente a

existência da idéia inata de Deus no homem. Essa idéia

inata não é apenas marca, mas também o marco inicial e o

pivô em torno do qual se processa todo o desenvolvimento

espiritual da criatura humana. Podemos acompanhar esse

processo desde a adoração dos elementos naturais pelo

homem Primitivo (a partir da litolatria, adoração da pedra

e de outras formações minerais) até à eclosão do

monoteísmo, com a idéia do Deus Único, que Kant

considerou o mais elevado conceito formulado pela mente

humana. E vemos então que a idéia de Deus representa,

histórica e antropologicamente, uma espécie de marca-

passo de toda a evolução do homem.

No episódio do Cógito, da cogitação de Descartes sobre

a realidade ou não da existência, temos o momento em que

Page 41: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

41

ele descobre, no mais profundo de si mesmo, uma idéia

estranha, que é a da existência de um Ser Absoluto e

portanto absolutamente perfeito. Essa idéia não podia ter

sido originada pelas suas experiências de ser relativo e

imperfeito. Descartes a considerou estranha porque só

poderia vir de fora dele, da existência real desse Ser

Absoluto. Descobria assim que tivera uma experiência de

Deus, inteiramente independente de todas as suas

experiências terrenas.

A importância desses fatos históricos e culturais foi

negligenciada pela cultura leiga que se desenvolveu na

Renascença e deu forma ao mundo moderno. O

predomínio crescente das conquistas materiais da

Civilização Ocidental asfixiou essas conquistas do

espírito. O homem se esqueceu do significado desses

fatos, desses episódios culminantes da cultura humana, e

as religiões dogmáticas transformaram a idéia de Deus em

simples crença desprovida de raízes experimentais. Coube

ao Espiritismo restabelecer a verdade e colocar a

experiência de Deus no seu devido lugar, no vasto

panorama da evolução da Humanidade. Trata-se da mais

importante e profunda experiência do homem, uma

experiência vital que deverá levá-lo à compreensão da sua

verdadeira natureza e do seu verdadeiro destino.

Impossível reduzi-la a uma conquista particular e eventual

de algumas criaturas que hoje se entregam a práticas de

meditação.

Claro que com isso não pretendo negar nem diminuir o

valor da meditação como disciplina mental e como recurso

de elevação espiritual. Sustento apenas que a meditação é

o produto e não a produtora da experiência de Deus, pois

essa experiência já marcava o homem muito antes que ele

houvesse adquirido o poder do pensamento abstrato e

Page 42: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

42

pudesse meditar. A vivência religiosa, pelo simples fato de

ser vivência e não reflexão, é inerente ao homem desde o

seu aparecimento no planeta. Essa é uma questão que hoje

se coloca de maneira evidente.

A concepção espírita vai mais longe e mais fundo,

negando ao homem atual o direito de isolar-se do mundo

para buscar a Deus e, portanto, de buscar a Deus ou aos

poderes espirituais através de processos artificiais. O meio

natural de evolução, para o homem e para todas as coisas e

todos os seres, é a relação. Se nos afastamos do

relacionamento social e cultural para nos elevarmos,

estamos nos colocando em posição errada e tomando um

caminho ilusório. A busca solitária de Deus é um ato

egocêntrico e preferencial. O místico vulgar não mergulha

em si mesmo para encontrar em Deus a relação com o

mundo, como o fez Descartes, mas, pelo contrário, para

desligar-se do mundo e ligar-se isoladamente a Deus. Não

é guiado pelo amor à Humanidade, mas pelo amor a si

mesmo. Prefere elevar-se acima dos outros para encontrar

em Deus o refúgio e a fortaleza em que poderá construir e

usufruir sozinho a sua felicidade particular. Prefere a fuga

ao mundo, em termos de superioridade pessoal e portanto

egoísta, anti-religiosa, à ligação com o mundo e com Deus

para a realização da unidade global que é o objetivo da

religião.

A diferença absoluta entre a posição do Cristo e a

Posição do Buda e das chamadas religiões orientais é

precisamente essa. Enquanto o Buda abandona o mundo

para buscar a Deus na solidão, o Cristo mergulha no

mundo para religar os homens a Deus. A ação do Buda é

subjetiva e contrária à experiência do mundo, enquanto a

ação do Cristo é objetiva, considerando a experiência do

mundo como necessária ao desenvolvimento da

Page 43: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

43

experiência de Deus no homem. Meio milhão de pessoas

entregues à meditação para tentar a ligação pessoal de

cada uma delas com Deus não representa um esforço

coletivo de unidade – uma ação religiosa –, mas a simples

coincidência de esforços particulares e isoladas, como

vemos na busca do ouro nas regiões auríferas. Não se

trata, pois, de uma ação coletiva e sim de milhares de

ações individuais e egoístas.

Não quero de maneira alguma negar o valor espiritual

do Buda, cuja posição correspondia á necessidade de

orientação de uma comunidade de almas estranhas à Terra,

exiladas em nosso planeta, que tinham por objetivo a volta

aos seus mundos de origem. Nesse caso, a negação

individual do mundo (do nosso mundo) tornava-se

coletiva em virtude do objetivo comum do retorno ao

paraíso perdido. A teoria espírita da migração entre os

mundos – apoiada na teoria cristã das muitas moradas da

Casa do Pai – é a chave indispensável à compreensão

desse problema.

A evolução de cada mundo atinge o momento em que a

sua população se divide em dois campos bem

diferenciados, como vemos hoje na Terra. Um deles

evoluiu o suficiente para integrar uma humanidade

planetária superior, o outro continua em estado inferior. A

população desse campo inferior precisa ser transferida

para outro mundo que esteja no seu nível evolutivo, a fim

de que as criaturas refaçam ali o tempo perdido. Quando

essa população atingir ali, no outro planeta o nível de

evolução necessário, voltará ao seu mundo de origem.

Nessa situação, a vivência isolada nas práticas solitárias da

meditação constitui uma recapitulação de aprendizado. Era

a essas almas emigradas que o Buda dirigia a sua

mensagem superior, como outros haviam feito antes dele.

Page 44: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

44

Em nossa humanidade terrena somente a ação do Cristo

– vencendo o mundo, segundo suas próprias palavras –

impulsionou-nos ao aceleramento evolutivo que vem

transformando a Terra não só nas áreas cristãs, mas em

toda a sua extensão. O Cristianismo institucional,

igrejeiro, absorvendo elementos espirituais das religiões

orientais, que se opunham aos princípios de entrega ao

mundo das religiões mitológicas, mergulhou no ascetismo

das ordens monásticas do Oriente e no isolacionismo da

concepção sócio-cêntrica de Israel. As seitas cristãs

fecharam-se em si mesmas, desde a comunidade

apostólica do Livro de Atos dos Apóstolos, estabelecendo

uma divisão arbitrária entre os escolhidos de Deus e os

abandonados por Ele. A prática do batismo do espírito, do

tempo de Jesus, que dava à criatura a experiência direta da

realidade espiritual, converteu-se nas formas de evocação

ritual e privilegiada do Espírito Santo, que dá ao crente a

ilusão de uma separatividade conferida pela graça. As

igrejas cristãs transformaram-se em ilhas de santidade e

pureza em meio à impureza do mundo, como a Israel

antiga no mundo mitológico. A experiência de Deus,

pessoal e intransferível, substituiu a experiência de Deus

no mundo, a vivência universal do ensino e do exemplo de

Jesus. É por isso que os cristãos de hoje se formalizam em

grupos sócio-cêntricos fechados.

Ao contrário disso, a revelação espírita considera a

graça simplesmente como a força que Deus concede ao

homem de boa-vontade para vencer as suas imperfeições,

seja ele desta ou daquela religião ou de nenhuma delas. O

batismo exclusivista e sectário é substituído pelo antigo

batismo do espírito, acessível a todos, não segundo o

critério eclesiástico mas segundo o critério de Deus. Nada

exemplifica melhor essa questão do que o episódio de Atos

Page 45: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

45

em que o Apóstolo Pedro, em Jope, se recusa a atender o

centurião Cornélius, mas advertido pelo mundo espiritual

o atende e descobre o sentido universal do batismo do

espírito. Pedro, ainda imbuído dos princípios isolacionistas

do Judaísmo, não podia entender que lhe fosse permitido

socorrer uma família de romanos impuros em que a

mediunidade eclodia. Foi necessário que o Espírito

advertisse – a ele que seguira e ouvira o Cristo até o

momento da prisão – de que Deus nada fizera de impuro,

para que a sua consciência se abrisse à verdadeira

compreensão da mensagem cristã.

O egocentrismo humano, essa centralização do homem

em si mesmo, que gera e alimenta o orgulho, é uma

decorrência natural das fases de formação da consciência,

de formação do indivíduo como uma unidade espiritual

específica, aposta à pluralidade e confusão do mundo. Mas

esse egocentrismo, que deve abrir-se em altruísmo na

proporção em que o homem amadurece, é alimentado pelo

anseio de privilégios que as igrejas satisfazem com as suas

concessões ilusórias aos fiéis. Tudo tem a sua utilidade em

seu tempo, mas depois se torna inútil e até mesmo

prejudicial. No próprio meio espírita essa tendência a

conservar posições do passado ainda subsiste,

particularmente no plano institucional, onde os postos de

comando reacendem no espírito a chama de velhas e

desvairadas ambições. O homem, espírito encarnado –

envolto na neblina da carne, como ensina Emmanuel –

está sempre e inevitavelmente propenso a reincidir em

seus erros do passado. A volta às condições da vida

material o coloca de novo ante a possibilidade de desfrutar

as oportunidades que lhe foram úteis ou agradáveis no

passado. As ilusões renascem no seu coração humano. As

perspectivas espirituais se perdem no nevoeiro. Nas

Page 46: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

46

religiões formalistas esse apelo do passado adquire muito

mais força.

A luta contra os resíduos do passado exige oração e

vigilância, como Jesus ensinou. Não obstante a idealização

do Diabo, como personificação mitológica do Mal, todas

as grandes religiões reconhecem que a tentação está dentro

de nós mesmos. Muito mais que a influência dos espíritos

inferiores, o que nos arrasta de volta aos velhos caminhos

do erro são as próprias tendências que trazemos em nosso

íntimo. A oração consciente, feita com sinceridade e fé,

areja o nosso íntimo, lança a sua luz sobre as escuras

paisagens interiores da alma, fazendo-nos discernir o

contorno real das coisas. Nada se modifica em nós, mas

iluminamo-nos por dentro. E se mantivermos a nossa

vigilância na intenção verdadeira de acertar, facilmente

veremos o que nos convém e o que não nos convém.

Poderemos então repetir com Paulo: Tudo me é lícito, mas

nem tudo me convém. E, seguindo assim o caminho que a

prudência esclarecida nos indica, tudo modificaremos para

melhor em nós mesmos, tornando-nos aptos a auxiliar os

outros a se melhorarem.

Temos a cada instante, a cada minuto, diariamente em

nossa vida a experiência de Deus. Porque a própria vida é,

em si mesma, essa experiência. Desde o momento em que

nascemos até o instante final da nossa existência estamos

em relação permanente com Deus, não o Deus particular

desta ou daquela igreja, mas o Deus em espírito e matéria

que se manifesta numa haste de relva, na beleza gratuita

de uma flor, no brilho de uma estrela, num perfume, numa

voz, numa nota musical isolada, num aperto de mão e

principalmente numa idéia, num sentimento, numa

aspiração que brota do anseio de transcendência da nossa

alma. O que nos falta é estar mais atentos, mais despertos

Page 47: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

47

para a percepção consciente desses múltiplos e infindáveis

milagres da vida cotidiana. O homem sem Deus é somente

aquele que se nega a aceitar a presença de Deus em si e

em seu redor. Para esse homem, a meditação é um ensaio

no campo da frustração, um mergulho no mundo opaco do

sem-sentido.

Page 48: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

48

Capítulo 5

Deus, Espírito e Matéria

Para melhor entender-se a expressão Deus, em espírito

e matéria, que usei no capitulo anterior, – e melhor

entender-se também o problema da experiência de Deus

no tempo – julgo necessário tratar dos princípios da

cosmogonia espírita, na qual se integra a teoria da gênese

e formação do espírito. O contra-senso da afirmação

bíblica de que Deus criou o mundo do nada, que tanto

trabalho deu aos teólogos, é explicado na revelação

espírita pela teoria da Trindade Universal. Deus, o Ser

Absoluto, é a fonte de toda a Criação. Existindo essa fonte

solitária, é logicamente necessário admitir-se um meio em

que ela existia. Esse meio, que seria o espaço vazio, foi

considerado o nada. Para tratar do Absoluto num plano

relativo, como o nosso, é preciso usar expressões relativas.

A concepção espírita do mundo não admite a existência

do nada. O Universo é pleno – é uma plenitude – não

havendo nele nenhuma possibilidade de vácuo. Essa teoria

espírita da plenitude está hoje sendo confirmada pela

pesquisa científica do Cosmos. As regiões siderais que

poderíamos julgar vazias mostram-se como campos de

forças, carregadas de energias que escapam aos nossos

sentidos. Esse pré-universo energético seria o que Buda

definiu como o mundo sempre existente, que nunca foi

criado. Pitágoras, em sua filosofia matemática, considerou

Deus como o número 1 que desencadeou a década. O UM,

número primeiro, existia imóvel e solitário no Inefável

(naquilo que para nós seria o nada) e nesse caso o nada

seria a imobilidade absoluta. Houve em certo momento

cósmico, não se pode saber como nem porquê, um

estremecimento do número 1, que assim produziu o 2 e a

Page 49: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

49

seguir os demais números até o 10. Completando-se a

década, tivemos o Todo, a Criação se fizera por si mesma,

o Universo surgira e com ele o tempo. É claro que não

dispomos de recursos para investigar as origens primeiras,

e essas teorias não passam de tentativas de explicações

lógicas, destinadas a nos proporcionar uma base alegórica

ou hipotética para uma possível concepção do mistério da

Criação.

O Espiritismo sustenta a possibilidade de conhecermos

a verdade a respeito, quando houvermos desenvolvido as

potencialidades espirituais que nos elevarão acima da

condição humana. Enquanto não chegarmos lá, essas

hipóteses devem servir para mostrar-nos que dispomos de

capacidade para ir além dos limites do pensamento

dialético, além do conhecimento indutivo baseado no jogo

dos contrastes.

Assim sendo, não podemos aceitar a alegoria bíblica da

Criação ao pé da letra, como verdade revelada, nem

contestá-la orgulhosamente com a arrogância do

materialismo. Na posição do crente temos a ingenuidade e

na posição do materialista temos a arrogância do homem,

esse pedacinho de fermento pensante, como dizia o Lobo

do Mar de Jack London. O espiritualismo simplório e o

materialismo atrevido são os dois pólos da estupidez

humana. O bom-senso, que é a regra de ouro do

Espiritismo, nos livra da estupidez e nos oferece a

possibilidade de chegarmos à sabedoria sem muito barulho

e disputas inúteis.

Partindo do pressuposto de que o mundo deve ter uma

origem e aceitando a idéia de que foi criado por Deus –

pois assim o afirmam todos os Espíritos Superiores que se

referem ao assunto e que revelam uma sabedoria superior

à nossa –, o Espiritismo admite que a fonte inicial é uma

Page 50: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

50

inteligência cósmica. Mas porque uma inteligência e não

apenas um centro de forças casualmente aglutinadas no

caos primitivo? Porque o Universo se mostra organizado

inteligentemente em todas as suas dimensões, até onde

podemos observá-lo. Seria ilógico, absurdo, supormos que

essa inteligência da estrutura universal, que se manifesta

em minúcias ainda inacessíveis à pesquisa científica,

desde as partículas atômicas até aos genes biológicos e

seus códigos admiráveis, seja o resultado de um simples

acaso. Nenhuma cabeça bem-pensante poderia admitir

isso. A teoria espírita – teoria e não hipótese, pois esta já

provou a sua validade através de todas as pesquisas

possíveis – pode ser resumida neste axioma doutrinário:

Não há efeito inteligente sem causa inteligente, e a

grandeza do efeito corresponde à grandeza da causa.

Colocando assim o problema, sua equação se torna

clara. O Espiritismo a elabora em termos dialéticos: a

fonte inicial, Deus, existindo em meio ao inefável,

constituído de matéria dispersa no espaço, emite o seu

pensamento criador que aglutina e estrutura a matéria.

Temos assim a Trindade Universal que as religiões

apresentam de maneira antropomórfica. Essa trindade não

é formada de pessoas, mas de substâncias regidas por uma

possível Inteligência, constituindo-se assim: Deus,

Espírito e Matéria.

O espírito que a constitui não é uma entidade definida,

mas o pensamento de Deus que se expande no Cosmos em

forma de substância. Essa substância espiritual penetra o

oceano de matéria rarefeita, dispersa, e aglutina suas

partículas, estruturando-as para a formação das coisas e

dos seres. Da tese espiritual e da antítese material resulta a

síntese do real, do mundo criado por um poder inteligente.

Page 51: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

51

Qual a razão de ser, o objetivo, a finalidade e o sentido

dessa Criação? O Espiritismo admite que não podemos

conhecer tudo isso em nosso estágio de desenvolvimento,

mas podemos, através da nossa inteligência humana,

indagar, perquirir, pesquisar e chegar a resultados

logicamente possíveis. Os dados científicos da Geologia,

por exemplo, nos mostram a Terra como o resultado de

um longo processo de formação, no qual é evidente a

intenção de atingir um tipo de perfeição em todas as coisas

e todos os seres. As formas imprecisas e grotescas das

primeiras idades do planeta vão se aprimorando ao longo

do tempo, numa sucessão nítida de fases de elaboração

caprichosa. Os dados da Antropologia nos revelam o

aprimoramento do homem nas civilizações sucessivas, a

partir das selvas. Os dados da Psicologia nos desvendam

os anseios da alma humana, na busca incessante de

transcendência, de superação do seu condicionamento

orgânico-material. Os dados da Estética revelam-nos o

anseio de beleza, perfeição e equilíbrio que rege o

desenvolvimento individual e coletivo, o indivíduo e a

espécie.

Gustave Geley, em seu livro Do Inconsciente ao

Consciente, propõe-nos uma visão dialética do mundo em

que as coisas se transformam em seres e estes avançam em

direção à consciência. É a mesma visão da teoria dialética

de Hegel. Oliver Lodge considera o homem atual como

um processo em desenvolvimento. O Existencialismo, em

suas várias escolas, encara o homem como um pro-jecto,

um vetor que se lança na existência em busca da

transcendência. Para Sartre, o homem se frustra nessa

busca e se nadifica na morte, se reduz a nada. Para

Heidegger, o homem se realiza no trajeto existencial e se

completa na morte. Para Jaspers, o homem consegue

Page 52: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

52

transcender-se em dois sentidos: o horizontal, na relação

social, e o vertical, na busca de Deus. Para Léon Denis,

todo o processo de transformação se explica por esta frase

genial: A alma dorme na pedra, sonha no vegetal, agita-

se no animal e acorda no homem. Para Kardec, a

transcendência humana nos leva ao plano da angelitude,

pois os anjos nada mais são do que espíritos que

superaram as condições inferiores da humanidade.

Temos assim o Universo, com a multiplicidade de seus

mundos rolantes no espaço sideral, de seus sóis e suas

galáxias, como um fluxo permanente de forças em

transformação incessante, objetivando a formação dos

seres e a elevação destes a condições divinas. Só a

hipótese de Sartre admite a inutilidade como finalidade

universal.

Os Espíritos Superiores, em suas comunicações,

desmentem e rejeitam essa hipótese negativa, sustentando

a natureza teleológica do Universo. Consideram a Criação

como um gigantesco processo que só pode ser definido

corno o fiat em sua fase inicial, quando a Mente Suprema

emite o seu pensamento para unir essa emanação do seu

espírito à matéria dispersa. Depois desse instante criador

desencadeia-se o tempo e é nele que o processo criador vai

desenvolver-se lentamente através dos milênios. E a

superioridade desses Espíritos não é avaliada por medidas

ou métodos místicos, mas por verificações racionais. Os

Espíritos Superiores não ensinam apenas através de idéias,

mas também de fatos. Provam, através da produção de

fenômenos paranormais, que possuem uma ciência muito

superior à nossa, um conhecimento do espírito e da

matéria que estamos longe de atingir e uma compreensão

de Deus que supera de muito as nossas interpretações

antropomórficas da Inteligência Criadora. Além disso, as

Page 53: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

53

suas previsões se confirmam de maneira rigorosa,

demonstrando que possuem recursos de futurologia muito

mais avançados e seguros que os nossos. Suas proposições

são ainda relacionadas com os nossos conhecimentos,

completando-se na medida em que o nosso adiantamento

permite que nos falem a respeito sem provocar dúvidas ou

confusões em nossa mente.

A relação de Deus com o Universo não é apresentada

em termos de mistério, mas de realidade verificável. Na

Terra, o homem representa o ponto culminante do

processo evolutivo. A criação do homem à imagem e

semelhança de Deus explica-se em termos espirituais.

Porque o homem é o único ser terreno que possui mente

criadora, pensamento produtivo e continuo, psiquismo

refinado e complexo, capacidade de percepção e de

intuição que lhe permitem penetrar na essência das coisas,

ultrapassando a aparência ilusória. Feito assim, como um

reflexo da divindade, o homem se liga a Deus não apenas

pelos laços do ato criador, mas também por afinidade

psíquica e espiritual. É um herdeiro de Deus e co-herdeiro

de Cristo, como escreveu Paulo, que se prepara para entrar

na herança do futuro.

A relação de Deus com o homem começa, portanto,

muito antes que ele se defina como criatura humana.

Desde o momento em que o pensamento de Deus se une à

matéria para modelá-la, e nas fases subseqüentes, em que

espírito e matéria se fundem nas formas substanciais de

que tratou Aristóteles, a relação de Deus com o homem se

desenvolve em progressão constante. Quando se estrutura

a consciência humana no ser em evolução, a marca de

Deus ali está presente, na lei de adoração que é o

sentimento inato de sua filiação divina e se manifestará no

sentimento religioso, base de todas as experiências

Page 54: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

54

religiosas da Humanidade. Temos de dividir o conceito da

experiência de Deus, em que tanto se apóiam as religiões

formalistas, em dois tipos bem definidos de experiência: a

de Deus, que começa no fiat, como elemento ontogenético

(elemento constitutivo da própria gênese do homem) e a

religiosa, que corresponde às tentativas de uma tomada de

consciência de Deus através de formulações religiosas por

meio de rituais, instituição de igrejas, sistemática litúrgica

e sacramental, organização clerical, ordenações e

elaboração dogmática. Confundir a experiência genética

de Deus com a experiência formal da vivência religiosa é

característica do pensamento superficial, que facilmente se

acomoda no jogo aparencial das instituições humanas.

Deus, espírito e matéria formam o triângulo fundamental

de toda a realidade. A onipresença de Deus não implica o

mistério de uma pessoa sobrenatural que se dispersa nas

coisas, mas a participação do pensamento criador de Deus

em tudo, desde a formação do átomo até a formação da

consciência. Compreendendo que espírito e matéria são os

dois elementos estruturais da realidade, compreendemos

que Deus esteja presente em todas as partículas do

Universo, como o poder criador, onisciente, controlador e

mantenedor de todo o equilíbrio universal. Deus penetra o

mundo e está nele, como a seiva no vegetal, mas não se

reduz a ele, pois permanece inalterável como a fonte de

que tudo emanou.

A Ciência atual está chegando rapidamente a essa

constatação. Dizia o físico nuclear Arthur Compton, em

seu ensaio sobre o lugar do homem no Universo, que

descobrimos a energia por trás da matéria, mas já

começamos a perceber que por trás da energia existe algo

mais, que parece ser pensamento. A unidade, a coerência,

a perfeição dessa concepção espírita do mundo e do

Page 55: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

55

homem passam despercebidos no tumultuar das teorias

absurdas que, como escreveu Charles Richet, atravancam

o caminho da nossa Ciência. Mas parece já próximo o

momento em que o caminho se tornará livre.

Não há lugar, nessa concepção admirável, para o

equívoco da contradição Espiritualismo-Materialismo em

que até agora nos debatemos. Espírito e matéria aparecem

sempre unidos, interligados e interatuantes, na dialética da

Criação. E a negação de Deus, como observou Descartes,

é tão absurda como pretendermos tirar o Sol do Sistema

Solar.

Page 56: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

56

Capítulo 6

A Criação do Homem

Concedo-me o direito de abstrair-me do problema de

Deus para examinar a questão da criação do homem. Os

cientistas se colocaram precisamente nessa posição e

admitiram a existência de um processo evolutivo no qual o

homem aparece como o resultado de uma filogênese

fantástica. Dos animais inferiores até os superiores, num

desenvolvimento progressivo e complexo, as forças

naturais modelaram formas sucessivas de vida que deram

como resultado o aparecimento da espécie humana na

Terra. A superioridade do homem ante as espécies animais

de que ele procederia suscitou dúvidas e debates que

permanecem até hoje. Simone de Beauvoir, discípula e

companheira de Sartre no campo da concepção

existencialista sem Deus, admitiu que a palavra espécie

não pode ser aplicada à humanidade, que não é uma

espécie animal, mas um devir, algo em auto-evolução

constante e irrefreável. Alfred Russell Wallace, êmulo de

Darwin no campo evolucionista, opôs-se ao materialismo

biológico daquele, sustentando uma posição espiritualista.

De Spencer a Bergson a concepção evolucionista

conseguiu firmar-se como a mais elevada interpretação da

realidade, apesar da insistência das correntes dogmáticas-

religiosas e das correntes irracionalistas em combatê-la,

considerando-a simples teoria metafísica sem bases

científicas.

Após a segunda guerra mundial e em conseqüência das

atrocidades a que grandes nações civilizadas foram

conduzidas, o pessimismo levou o homem a novas formas

de dúvida. Passou-se a falar em mudanças, não em

progresso ou evolução. Produto do susto e da decepção,

Page 57: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

57

esse recuo está sendo superado pelo próprio avanço

científico, em que os processos da evolução se confirmam

continuamente. Kardec já advertia, no século passado, que

o mal das interpretações humanas está na falta de uma

visão mais ampla e profunda da realidade. Os homens

vêem apenas um ângulo do quadro geral da Natureza e se

apegam a essa percepção restrita para a elaboração de seus

pensamentos. Exemplo típico dessa restrição mental é a

tentativa, hoje renovada, de separar a evolução biológica,

considerada inegável, dos demais aspectos do processo

evolutivo universal. Uma restrição arbitrária, característica

da orientação analítica da pesquisa científica e oposta à

visão de conjunto dos métodos conclusivos da reflexão

filosófica.

Na Ciência, como em tudo, temos de reconhecer a

oposição dos contrários. O método analítico é uma faca de

dois gumes. Por um lado nos faculta a precisão objetiva no

conhecimento de uma realidade específica, por outro lado

nos impede a visão de conjunto. Foi exatamente por isso

que se tornou necessário, após o aparente desprestígio da

Filosofia, ante as conquistas inegáveis da pesquisa

científica, recorrer-se à Filosofia das Ciências para evitar-

se a fragmentação total do Conhecimento. Só no plano

filosófico se tornou possível reajustar as conquistas

científicas num quadro geral de interpretação da realidade.

Mas existe outro fator determinante da desconfiança

científica em relação aos princípios espíritas, que é o

instinto de conservação, agente preservador da integridade

do homem e das suas realizações. Esse instinto, bem

manifesto no sócio-centrismo das instituições científicas

ou de qualquer outra natureza, reage contra tudo o que

possa modificar o saber já considerado como adquirido.

Recentemente, o Prof. Remy Chauvin, do instituto de

Page 58: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

58

Altos Estudos de Paris, denunciou a existência no campo

científico de uma alergia ao futuro, responsável pela

rejeição liminar, sem exame, de toda novidade, mesmo

que sustentada por cientistas categorizados. Essa neofobia

tem produzido muitos mártires no campo científico e

cultural em geral.

Pouco a pouco, porém, e hoje mais rapidamente do que

no passado, essa posição acomodatícia vai sendo vencida

pelas próprias exigências do progresso, da evolução

científica. Em nossos dias, a descoberta da antimatéria, as

pesquisas cósmicas, o reconhecimento dos fenômenos

paranormais através da Parapsicologia, a recente

descoberta do corpo-bioplásmico do homem e de todos os

seres, o êxito, ainda incipiente mas já significativo, das

pesquisas sobre a reencarnação, a constatação da

existência de outras dimensões da realidade, a evolução do

conceito de universos-paralelos para o de universos

interpenetrados, a aceitação da pluralidade dos mundos

habitados e da escala evolutiva dos mundos – proposta há

mais de um século pelo Espiritismo – estão arrancando as

corporações científicas de suas cômodas poltronas

acadêmicas e lançando-as decisivamente em órbita, nas

rotas giratórias do progresso.

Lembro-me de um poema de Rainer Maria Rilke, em

que ele se compara a um falcão que gira em círculos

crescentes em torno de uma torre secular, símbolo de

Deus. É uma imagem feliz da evolução, que se processa

em espiral. O retorno à barbárie na segunda guerra

mundial não representa retrocesso da evolução humana,

mas apenas uma curva decrescente da espiral que tocou os

resíduos bárbaros do homem – a região subterrânea dos

instintos animais – para uma espécie de catarse coletiva.

Mas tudo serve para a exploração dos que se entregam ao

Page 59: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

59

comodismo e dos que ainda não conseguiram desprender o

seu pensamento dos objetos materiais. A História da

Matemática nos mostra que o pensamento dos primitivos

era de tal maneira apegado ao concreto que, nas tribos

selvagens, a contagem das coisas não excedia ao número

de dedos das mãos, indo quando muito até à soma dos

dedos dos pés. A posição dos anti-evolucionistas atuais

assemelha-se, guardadas as distâncias culturais, à dos

selvagens presos aos seus próprios dedos. Temos a prova

da evolução em nós mesmos e em tudo o que nos rodeia,

mas os espíritos sistemáticos e opiniáticos querem as favas

contadas onde não há favas.

O Espiritismo ensina que tudo se encadeia no

Universo, numa seqüência constante de relações. No item

540 de “O Livro dos Espíritos”, obra fundamental da

doutrina, encontramos esta proposição: Tudo se encadeia

na Natureza, desde o átomo primitivo até o Arcanjo, pois

ele mesmo começou pelo átomo. Assim, do átomo nasce o

minério, deste o vegetal, deste o animal, deste o homem e

deste o Anjo, o Arcanjo e quantas criaturas espirituais

quisermos enumerar. Por isso, o sobrenatural desaparece

quando admitimos o processo continuo da evolução. A

Natureza nos mostra as duas faces da concepção de

Espinosa, com sua teoria da Natureza naturata e da

Natureza Naturans, equivalente ao conceito de mundo

sensível e mundo inteligível, do pensamento de Platão,

interligados e interatuantes. O que poderia existir fora da

Natureza? Deus? Mas já vimos que a fonte originária, pelo

fato mesmo de ser a origem de tudo está ligada ao Todo e

nele se insere. Podemos, como os druidas (os sacerdotes

celtas das Gálias) imaginar o Universo formado por três

círculos: o de Gwinfid, em que Deus permanece; o de

Abred, em que vivemos as nossas vidas carnais; o de

Page 60: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

60

Anunf, correspondente às regiões inferiores do plano

evolutivo. Mas na concepção materialista o círculo de

Gwinfid não pode existir, uma vez que Deus foi excluído.

Como podemos considerar a criação do homem sem a

ação de Deus? É o que tentaremos expor agora.

A união de dois princípios fundamentais, força e

matéria, existentes no caos primitivo, determina o

aparecimento das estruturas atômicas. Os átomos se

aglutinam em formações diversas e produzem os

elementos minerais. Mas estes elementos não estão

mortos, não são estáticos. No seio da sua aparente placidez

os átomos continuam em permanente agitação e

produzem, quando as condições se tornam favoráveis, as

primeiras formas vegetais. Nestas formas temos o

nascimento da sensibilidade rudimentar, que vai

desenvolver-se até a produção das primeiras formas

animais. A atividade atômica transmite-se a essas formas

produzindo a motilidade, a capacidade de movimentação

própria, que arranca os animais do solo e os submete às

experiências vitais. A sensibilidade se aguça e se aprimora

através de milênios. Os cérebros rudimentares se

desenvolvem e se enriquecem, o sistema nervoso

(desenvolvimento do sistema fibroso vegetal) estrutura-se

numa rede sensível, permitindo a organização de um

aparelho cerebral que capta e reelabora os estímulos

exteriores. Os animais evoluem até o aparecimento dos

primatas, que assinalam o salto qualitativo do cérebro

animal para o cérebro humano.

Eis, em linhas gerais, nesse esquema superficial, o

processo de criação do homem. Quanto mais simples esse

esquema, mais fácil para compreendermos a lenta

elaboração da criatura humana a partir da noite dos

primórdios. É de supor-se que essa criatura grosseira,

Page 61: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

61

elaborada a partir do mineral, não tenha qualquer outra

experiência além das que enfrentou no processo de sua

formação. Mas acontece que o homem se mostra dotado

de uma inteligência criadora, capaz de desenvolvimento

sem limites da sua imaginação e – o que mais assombra –

dotada de um anseio crescente de elevar-se além da sua

condição humana e atingir uma posição superior de que

ele jamais podia ter tido algum vislumbre. Quanto mais se

desenvolve, mais se acentua nele o contraste entre a sua

condição primitiva – de bicho da Terra tão pequeno, como

escreveu Camões – e os seus anseios insopitáveis de

elevação e comunicação com planos e seres superiores,

que ele nunca podia ter visto. De onde vem tudo isso?

Supõem os materialistas que se trata de produtos da

imaginação excitada pelo medo, num desejo natural de

alcançar a segurança através de criações imaginárias. Mas

como explicar a coerência dessas criações arbitrárias com

os fenômenos paranormais, cuja existência está hoje

cientificamente provada? Que dizer de uma idéia

primitiva, como a de uma duplicata do corpo material que

pode projetar-se à distância, que Spencer atribuiu

simplesmente ao sonho, quando esse corpo hoje se

confirma através da pesquisa cientifica no campo da Física

e da Biologia, por pesquisadores materialistas?

Esse é o momento em que temos de voltar à idéia de

Deus inata na criatura humana – o Ser perfeito de

Descartes encontrado no fundo da sua própria imperfeição

– à lei de adoração assinalada por Kardec e que exerceu

papel decisivo na orientação do homem para a sua

humanização. O acaso da concepção materialista

transforma-se necessariamente numa inteligência cósmica

a desafiar, por sua grandeza e sua inegável sabedoria na

construção universal, a miserável inteligência humana,

Page 62: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

62

capaz de tudo atribuir a um jogo de forças cegas no seio de

uma nebulosa. Não precisamos nem mesmo pensar nas

formações complexas do homem ou do anjo. Podemos

ficar nos primórdios, examinando apenas a estrutura do

átomo, a construção infinitesimal desse universo

microscópico, ou melhor, infra-microscópico. Mas se

olharmos para cima e pensarmos nos sistemas solares, na

galáxia e nas super-galáxias, o absurdo da concepção

materialista se tornará simplesmente monstruoso.

Sentiremos as orelhas de Midas substituírem, peludas e

agudas, as nossas delicadas orelhas humanas.

E o que dizer da experiência de Deus procurada através

de artifícios religiosos, depois dessa imensa extensão

percorrida pela humanidade através dos milênios, numa

experiência natural e vital em que as forças da vida vão

brotando do chão do planeta e projetando-se às

profundidades cósmicas? É como se milionários

ensandecidos resolvessem juntar-se num quarto escuro, de

portas e janelas fechadas, para contar os níqueis do bolso

do colete a fim de avaliar quanto possuem, para terem a

experiência do dinheiro. Basta isso para mostrar-nos a

razão da crise religiosa do presente. Os homens

começaram a descobrir que possuem muito mais do que as

igrejas lhes podem dar.

Criado do limo da terra, segundo a alegoria bíblica,

arrancado das entranhas do reino mineral, segundo a teoria

evolucionista espírita, o homem está ainda em formação,

em desenvolvimento, amadurecendo nas experiências que

enfrenta na existência corporal. O corpo é o seu

instrumento de evolução. Um instrumento vivo e ativo que

ele precisa controlar pela força do espírito. Na proporção

em que avança, o espírito se impõe ao corpo e o domina.

A dialética da evolução torna-se nele um processo

Page 63: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

63

consciente. É o responsável único pelo sucesso ou fracasso

do seu destino. Deus está nele como um poder mantenedor

e orientador, mas não punitivo. Ele mesmo se castiga ante

o tribunal da sua consciência. Quando se dispõe a

progredir, o prêmio que recebe é a graça que o fortalece

para que possa vencer o mal. Ninguém pode perdoar os

seus erros, apagar as suas faltas. Dispõe da jurisdição de si

mesmo e supera o seu condicionamento determinista pelas

decisões do seu livre-arbítrio. Juiz e réu ao mesmo tempo,

pode julgar-se com pleno conhecimento de causa.

Page 64: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

64

Capítulo 7

Do Princípio inteligente

Tratei até agora da relação direta do pensamento de

Deus com a matéria. Essa relação é necessária, da mesma

maneira que é necessária a relação direta do pintor com o

quadro que ele executa, e portanto do trabalho que ele

realiza no quadro, orientado pelo seu pensamento. Na

verdade, o seu pensamento se projeta no quadro e ali se

materializa, passa do plano do inteligível para o plano do

sensível. Ao completar sua obra, cessa a relação direta ou

ativa, mas permanece a relação passiva ou indireta. Assim,

a relação direta caracteriza o ato de pintar, ou de criar.

Pode-se alegar a existência de intermediários: as mãos, a

palheta e o pincel, a tinta. Mas convêm lembrar que todos

esses instrumentos fazem parte da obra em execução,

sobre a qual o pensamento do pintor atua diretamente.

Na ação de Deus sobre a matéria o processo é o mesmo.

O pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe

estrutura, através da qual temos a passagem do

pensamento do plano do inteligível para o plano do

sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o

inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do

sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus

materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade

do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat

ou ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do

pensamento divino estruturando a matéria. Uma vez

formada essa estrutura, surge um elemento novo que é

designado pela expressão princípio inteligente. O

pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia,

sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta.

Transforma-se na mônada, elemento básico e estrutural da

Page 65: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

65

matéria, de que são compostas as próprias partículas

atômicas. A palavra mônada procede de Pitágoras, foi

empregada por Platão como idéia e desenvolvida

modernamente por Leibniz e Renouvier como uma

substância inteiramente simples (pura indivisível e

refratária a qualquer influência exterior. A mônada é

dotada de uma força interior que a transforma, de

potencialidades que se desenvolvem continuamente e de

capacidade de percepção e vontade. As mônadas são

diferentes entre si no tocante a essas potências internas.

Estas correlações filosóficas são necessárias para

entender-se o que é o principio inteligente da concepção

espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda

a realidade, responsável pela formação dos reinos da

Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as

faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder

de intuição dos gregos captou não só a existência dos

átomos, como também a das mônadas, que a Ciência atual

já está conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa

estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas

atômicas. A teoria espírita do princípio inteligente é

explicada de maneira sintética no “O Livro dos Espíritos”.

No item 23 dessa obra lemos o seguinte: Que é o espírito?

É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras

explicações nas quais a inteligência se define como um

atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a

substância (espírito) com a inteligência, que é seu atributo.

Colocado assim o problema, parece-me explicada a

razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram

essa questão fundamental. Na própria tradição filosófica,

desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos

elementos necessários de intuições capazes de nos

fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-

Page 66: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

66

nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia

ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade.

Atualmente já podemos compreender com mais clareza a

dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da

mônada, que antes poderia ser considerada como simples

hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma

teoria científica ao alcance da comprovação pela pesquisa.

Teorias como a do físico inglês Dirac, par exemplo,

segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano

de elétrons livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse

oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos

primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades

novas que as pesquisas espaciais estão abrindo nesse

campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de

força que preenchem todo o espaço sideral.

É evidente que, diante dessas novas posições

conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise,

prenunciando o advento de um novo mundo. A

inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e

profundas da realidade universal, exigindo a reformulação

de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Não

podemos mais pensar em Deus como uma figura humana,

nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só

podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a

Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir

nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do

Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus,

sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para

uma equação mais positiva do problema. Divagam através

de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente

num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade

de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da

Page 67: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

67

parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do

novo edifício a construir.

O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos

tópicos e que nos Evangelhos toma o nome de Espírito

Santo é o Espírito de Deus em sua manifestação universal.

A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O

sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de

barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em

desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas

ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio

da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a

matéria na formação da mônada. No pensamento divino

todo o quadro da criação estava presente desde o princípio.

E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o

modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que

devia projetar-se no Infinito. Por isso, as mônadas

diferenciadas, com características específicas, seriam

semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura

e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A

mônada é a semente do ser, da criatura humana e divina

que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.

Não se pode conceber, em nossa relatividade humana,

mais grandiosa e perfeita concepção do ato criador.

Podemos perguntar porque Deus, que é o supremo poder,

precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o

Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de

necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são

séculos e milênios, para Deus pode ser apenas aquele

instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo

com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão

imensas, que resume para o homem todas as suas

existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos

são acessíveis: a espiritual e a material.

Page 68: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

68

É, sem dúvida, espantoso pensar, como Gustave Geley,

que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão

de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a

potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu

interior. Mas quando compreendemos que a mônada,

síntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal,

sobre a qual se apóia toda a realidade – o que corresponde

à concepção atômica da Ciência em nossos dias –, nossa

mente começa a abrir-se para um entendimento superior.

Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da

mônada nos aturdiria. E ambos esses poderes nada mais

são do que fragmentos do poder de Deus. Quando

pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a

revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.

E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios

evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos,

filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem

cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo

de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana,

esse embotamento da capacidade de compreensão poderia

fazer-nos descrer das potencialidades do principio

inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do

homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios.

Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os

recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura

do Século XIX – para não provocar reações precipitadas

que lhe prejudicariam a obra – a publicar “O Livro dos

Espíritos”, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da

Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-

americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma

perspectiva favorável, em todos aqueles campos

reacionários, para uma possível compreensão do seu

gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus

Page 69: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

69

lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar,

atualizar e tecnilizar as suas obras ao invés de estudá-las e

aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto

necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e

se atualize em nós.

Todas as coisas têm sua origem no mundo das idéias,

como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu

claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa

a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se

do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates

descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no

fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a

linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente

divina a idéia do Universo delineia-se perfeita, mas a

projeção dessa idéia no plano inferior da matéria tem de

vencer os obstáculos e as resistências da materialidade.

Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão em sua

teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor,

no tempo, às imperfeições materiais.

O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para

vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la,

segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas,

podemos perguntar, porque Deus não fez em condições

transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo

explica que a matéria se torna transparente na proporção

em que visualizamos as planos superiores, de tal maneira

que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a

técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda

chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência

considerou como o Nada. Kant teve razão ao localizar os

limites da razão humana no momento em que cessam as

contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha

divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a

Page 70: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

70

razão angélica. Os homens transformados em anjos – não

com asas nem com estrelas na fronte, mas com a mente e o

coração purificados – passam a ver e a compreender a

realidade pela intuição direta e global. Nesse momento

descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que,

desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas

que nas hipóstases materiais tornava-se irreconhecível

como a Vênus de Milo coberta de terra e lama quando a

arrancaram do subsolo.

O próprio tempo desaparece nesse momento. Não há

mais necessidade do véu de Ísis da temporalidade para

encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no

eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas

tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode

dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas

pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório

humano, com a divisão das faculdades sensoriais em

órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não

existe para os espíritos libertos das impressões materiais.

Os espíritos percebem, vêem e sentem de maneira global,

por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As

deslocalizações e transferências das sensações nas práticas

hipnóticas comprovam, em nosso plano, a veracidade

dessa descoberta efetuada nas suas pesquisas mediúnicas.

Seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra

no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento

lúcido e didático desse problema.

As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora só

puderam refazer o caminho percorrido por Kardec,

representam uma confirmação da validade das suas

afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no

interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma

multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata

Page 71: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

71

de desmentir o Espiritismo através de capciosos

argumentos temperados na panela da mentira ou nos

caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá

que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe por si

mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou

ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que

se fizerem dignos dela.

Page 72: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

72

Capítulo 8

O Corpo-Bioplásmico

Quando falei pela primeira vez do corpo-bioplásmico

na televisão, uma senhora estrangeira telefonou ao estúdio

do Canal 13 (São Paulo) para me fazer uma advertência.

Achava que a descoberta desse corpo do homem, dos

animais e das plantas, feita por físicos e biólogos

soviéticos, não passava de uma nova armadilha dos

materialistas russos na luta contra a religião, com

objetivos certamente políticos. Dizia que conhecera de

perto a manha dos soviéticos, sofrera na pele a sua

crueldade e não queria me ver enganado por eles, servindo

como inocente útil para propagar as suas mentiras no

Brasil. Respondi-lhe tentando explicar que se tratava de

um problema científico e não político, que por sinal nos

chegava através de informações universitárias procedentes

dos Estados Unidos. Procurei mostrar-lhe que uma

manobra dessa espécie seria hoje impossível, diante da

dinâmica atual da comunicação e da possibilidade de

comprovações ou desmentidos de meios universitários de

todo o mundo. Nada disso convenceu a senhora, que

insistiu de maneira angustiosa na sua advertência. Depois

dela, vá-rios outros telespectadores, na maioria

estrangeiros, telefonaram-me e procuraram-me

pessoalmente para fazer advertências semelhantes. Isso

equivale a uma demonstração da falência cultural do nosso

tempo. Não obstante todo o nosso avanço científico e

tecnológico, a praga da mentira na religião, na política, na

administração e em todos os setores de atividades públicas

leva as pessoas a duvidarem de tudo, a verem por toda

parte o perigo de manobras com intenções ocultas.

Page 73: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

73

No programa de televisão que deu origem a este livro,

no mesmo Canal 13, a apresentadora Xênia insistiu na

necessidade de sermos francos ao tratar dos assuntos em

pauta. Chegou mesmo a declarar que alguém ali devia ter

a coragem de dizer a verdade sobre o motivo da crise

religiosa dos nossos dias. Segundo pensava, essa crise

decorria simplesmente da mentira, como explicou num

programa posterior. Na verdade, a mentira é um dos

motivos da crise, mas não o motivo básico. Se eu pensasse

assim, não teria nenhuma razão para contornar a situação.

E que as mentiras pregadas pelas religiões nem sempre são

mentiras, mas enganos decorrentes de falta de

compreensão dos problemas essenciais do homem. Seria

levar muito longe a desconfiança na natureza humana,

acreditar que pessoas crentes em Deus organizassem as

religiões com a finalidade de embair o povo. Mas essa é

também uma prova do clima de desconfiança da nossa

época. Encontramos nas religiões muitas pessoas cultas,

inteligentes, honestas, que acreditam piamente nas coisas

mais absurdas por aceitarem a infalibilidade dos dogmas e

das interpretações escriturísticas.

O problema da descoberta do corpo-bioplásmico situa-

se de tal maneira no quadro dos avanços atuais da Ciência,

representando mesmo uma conseqüência lógica desses

progressos, que não poderia suscitar dúvidas em ninguém

medianamente informado. A descoberta da antimatéria, as

pesquisas parapsicológicas, o desenvolvimento da

medicina psicossomática, as sondagens cósmicas da

astronáutica e outras prodigiosas conquistas do nosso

tempo conduziam naturalmente o homem à descoberta da

sua própria natureza. Imagine-se um mundo em que a

Ciência houvesse provado a indestrutibilidade de todas as

coisas mas continuasse aceitando o dogma materialista da

Page 74: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

74

destruição total e absoluta do homem pela morte. Imagine-

se a cultura aberta desse mundo endossando o pessimismo

doentio de Sartre que prega a nadificação do homem, a sua

frustração total na morte e considera a doutrina da

evolução, do pensamento de Heidegger, como uma queda

no misticismo vulgar. O espetáculo do pensamento

sartreano, tão rico em intuições filosóficas e tão

decepcionante na sua conclusão ontológica, esse

espetáculo desnorteante da cultura contemporânea seria

um pingo d’água ante esse possível absurdo de âmbito

universal.

O equívoco marxista do materialismo já foi

ultrapassado pelo desenvolvimento científico e filosófico

de nosso tempo. Não há mais lugar, na cultura atual, para

os dogmas religiosos e os dogmas materialistas. Entre os

cientistas soviéticos é evidente a existência de muitos

dissidentes do oficialismo tipo século XIX. O interesse

atual da URSS pelas pesquisas parapsicológicas é um

indício claro, indício que a China Vermelha se incumbe de

confirmar ao reagir violentamente contra ele. Todos

sabemos que o Prof. Raikov e outros pesquisadores

soviéticos, na Universidade de Moscou e em muitas outras

da URSS, entregam-se à pesquisa científica da

reencarnação, embora disfarçando-a em anomalia mental

que tem de ser esclarecida no campo psiquiátrico. A

verdade se revela em toda parte e, mais hoje, mais

amanhã, tornar-se-á evidente.

As câmaras kirlian, de fotografias sobre campos

imantados de alta freqüência elétrica, foram descobertas

por acaso pelo casal Kirlian, e os cientistas soviéticos mais

atilados logo perceberam o seu alcance. Adaptando-a a

poderosos microscópios eletrônicos conseguiram

descobrir, no interior dos corpos vivos de vegetais,

Page 75: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

75

animais, e homens, uma estrutura de plasma físico,

constituída de partículas atômicas, que se apresentava

como um corpo básico e sustentador da vida e das

atividades vitais e psíquicas do corpo material. A

importância dessa descoberta é de tal alcance que não

poderia ser negligenciada, pois representa uma verdadeira

revolução copérnica na Física, na Biologia e na

Antropologia, para só ficarmos nesses três campos

fundamentais. Mas é bom lembrarmos de passagem o que

ela representará para a Psicologia, a Medicina, a

Psiquiatria e a Psicoterapêutica em geral. Basta dizer que

os soviéticos já chegaram a descobrir que o corpo-

bioplásmico fornece elementos para a verificação do

estado geral de saúde do corpo físico, permitindo também

a prevenção de doenças e distúrbios nos seres vivos de

qualquer natureza. Por outro lado, as pesquisas realizadas

nos Estados Unidos confirmam a descoberta soviética.

Desde o século passado, vários cientistas se

empenharam na descoberta de meios para provar a

existência no homem do chamado corpo espiritual ou

duplo-etéreo. Em 1943 Raoul Montandon publicou na

Suíça. um curioso livro intitulado De la Bête a l'Homme

(Do Animal ao Homem) relatando pesquisas psicológicas

que mostram semelhanças significativas entre o reino

animal e o hominal e pesquisas científicas que provavam a

existência nos animais de um carpo energético. Essas

pesquisas são relatadas no capítulo intitulado

Sobrevivência Animal. Várias fotografias batidas com

filmes sensíveis à luz infravermelha, de grupos de

gafanhotos e insetos mortos com éter, revelavam ao lado

dos animais mortos uma sombra semelhante ao corpo

morto, enquanto ao lado dos que não haviam morrido, mas

estavam em estado letárgico, não aparecia a mesma

Page 76: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

76

sombra. No capitulo das fotografias psíquicas, batidas

ocasionalmente ou em sessões mediúnicas experimentais,

os anais espíritas apresentam impressionante volume de

casos significativos, cercados de todos os recursos de

garantia da autenticidade do fenômeno.

No caso atual das pesquisas soviéticas, com

aparelhagem técnica de precisão, a demonstração da

existência desse corpo extrafísico (para usarmos a

expressão parapsicológica atual) foi decisiva. Os

soviéticos, operando em comissão científica oficial, na

Universidade de Alma-Ata, no Casaquestão, fizeram

experiências com moribundos e conseguiram verificar a

retirada total do corpo-bioplásmico dos mortos, cujos

corpos materiais só então se cadaverizavam. Não tendo

sido possível fotografar esse corpo depois do seu

desprendimento do cadáver, empregaram a técnica de

pesquisa por meio de detectores de pulsações biológicas e

verificaram, surpreendidos, que as pulsações captadas

indicavam a presença do corpo-bioplásmico no ambiente.

Bastam esses dados sumários ao objetivo deste livro.

Dados mais completos e minuciosos já foram divulgados

entre nós com a edição da tradução do livro de Sheila

Ostrander e Lynn Schroeder, pesquisadoras norte-

americanas que entrevistaram os cientistas soviéticos na

URSS, e cujo trabalho foi editado pela imprensa da

Universidade de Prentice Hall (USA) e posteriormente

pela editora Bantam Books, de Nova torque. A descoberta

do corpo-bioplásmico constitui uma confirmação

científica, proveniente do campo materialista, da teoria do

perispírito. Segundo o Espiritismo, o perispírito é o corpo

espiritual de que tratou o Apóstolo Paulo na I Epistola aos

Corintos. Sua função é servir ao espírito como instrumento

para a sua manifestação nos planos materiais. É através

Page 77: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

77

dele que o espírito se liga à matéria no processo da

encarnação. Durante a Vida terrena ele é o agente das

atividades orgânicas. Mantém a vida do corpo e serve de

campo padronizador durante o desenvolvimento deste, a

partir da fecundação, regendo a formação do embrião. Na

morte, o perispírito se desliga progressivamente do corpo

material, que só se cadaveriza com o seu desligamento

total. Na maioria das pessoas o perispírito, após a morte,

permanece nas proximidades do cadáver por tempo mais

ou menos longo, em virtude da atracão que os despojos

exercem ainda sobre o espírito. Esse corpo é considerado

na doutrina espírita como semi-material, constituído de

energias materiais e espirituais em integração. É o corpo

da ressurreição, conforme já afirmava o Apóstolo Paulo.

Todas essas características do perispírito são

confirmadas pelas observações dos cientistas soviéticos,

que consideraram esse corpo como material, constituído

por um plasma físico formado de partículas atômicas. Mas

um fato intrigante aparece nas pesquisas soviéticas: esse

corpo só pode ser visto e fotografado enquanto está ligado

ao corpo material. Uma vez desprendido, não está mais ao

alcance das câmaras kirlian. Somente os detectores de

pulsações biológicas podem constatar a sua presença no

ambiente. As câmaras kirlian, coma já vimos, só podem

agir sabre campos materiais imantados por correntes

elétricas de alta freqüência. Desligado do corpo material, o

corpo-bioplásmico ou perispírito não oferece condições

para isso. Parece-me evidente o motivo por que ele, então

se torna inacessível. Não está mais revestido de um campo

material, embora contenha em sua própria estrutura

energias materiais. O próprio nome cientifico dado a esse

corpo-bioplásmico, mostra a sua função vital e a sua

natureza plásmica. Esse problema entretanto, não é

Page 78: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

78

somente físico. Na proporção em que o espírito, liberto da

matéria, vai se integrando no mundo espiritual, seu

perispírito vai se libertando dos elementos materiais.

A descoberta desse corpo pelos materialistas representa

a maior vitória do Espiritismo e ao mesmo tempo a

conquista mais importante da nossa era cientifica, pois

com ela a Ciência terrena dá o primeiro passo para a sua

futura fusão com a Ciência espiritual. Este é o mais

significativo sinal de que estamos entrando na Era do

Espírito. Oliver Lodge referiu-se ao túnel mediúnico, uma

via de ligação do mundo material com o mundo espiritual,

acentuando que esse túnel vem sendo cavado dos dois

lados pelos homens e pelos espíritos. Quando os

trabalhadores daqui e do além se encontrarem, o túnel

estará aberto e a comunicação entre os dois planos se

tornará tão fácil como as comunicações entre as várias

regiões da Terra. Até agora somente os espíritas

trabalhavam do lado de cá. De agora por diante, os

cientistas também darão a sua cota de serviço.

A descoberta do corpo-bioplásmico e os estudos sobre

as suas funções e a sua estrutura vêm também contribuir

para que os enganos das religiões cristãs sejam corrigidos.

Pouco a pouco a verdade se impõe e a mentira vai sendo

afastada. A Religião, que constitui, como a Filosofia e a

Ciência, uma das grandes províncias do Conhecimento,

está prestes a retomar o seu lugar no plano cultural. Mas

para isso as religiões sectárias deverão seguir aquela

advertência de Jesus: perder a sua vida individual para

fundir-se na vida coletiva, num processo livre de

religiosidade universal que nos dará a Religião em Espírito

e Verdade. Foi essa a profecia de Jesus à mulher

samaritana.

Page 79: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

79

Não há nenhuma outra saída para a crise religiosa do

nosso tempo. As teologias artificiais, como a da Morte de

Deus, são ensaios de vôo cego num céu vazio, nublado

pela dúvida. A realidade é uma só. A confirmação positiva

da existência do espírito, através da Ciência em

desenvolvimento acelerado, porá um ponto final nas

especulações religiosas. E não há nenhuma outra

plataforma, na Terra, para a execução dessa reintegração

da Religião no campo cultural, além da obra de Kardec.

Os homens do futuro ficarão estarrecidos ao verem que

tivemos todos os dados nas mãos para fazer essa

integração em nosso tempo e não conseguimos fazê-la.

Perguntarão a si mesmos o que nos faltou e talvez alguém

lhes diga: humildade.

Page 80: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

80

Capítulo 9

Dúvida e Certeza

A dúvida é uma encruzilhada nos caminhos da razão.

Quando o pensamento se lança na busca de um objeto e

depara com dois caminhos divergentes, pode ficar

indeciso. Essa indecisão é a dúvida. Para Sexto Empírico a

dúvida é a hesitação entre afirmar e negar, o que vale

dizer entre aceitar e rejeitar. Descartes fez da dúvida a

condição primeira da busca da verdade, considerando-a

como uma suspensão do juízo para verificar-se se ele está

certo ou errado. Para John Dewey a dúvida nasce de uma

situação problemática estimulando a pesquisa. Dessa

maneira, Dewey confirma a posição de Descartes, que

iniciou a filosofia moderna com a prática da dúvida

metódica. Mas como a dúvida criou muitas dificuldades ao

pensamento dogmático, as religiões dogmáticas acabaram

por condená-la como de origem diabólica. A frase de

Tertuliano: credo quia absurdum (creio mesmo que

absurdo) teve longo curso no combate às heresias. Como

os dogmas eram considerados de origem divina, pontos

fundamentais da revelação feita por Deus aos homens,

estes não tinham o direito de duvidar, mesmo que os

dogmas fossem aparentemente absurdos.

Ainda hoje essa posição é comum em numerosas seitas

e religiões, até mesmo entre pessoas cultas. Alega-se que a

sabedoria humana é loucura para Deus, como Paulo

afirmou, o que vale dizer que a sabedoria divina pode

parecer loucura para os homens. No Espiritismo a dúvida é

considerada como condição necessária à busca da verdade.

Kardec a aconselha como método de controle das

manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios

doutrinários. Tendo mostrado que os espíritos são criaturas

Page 81: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

81

humanas desencarnadas, libertas do corpo material pela

morte, e que muitos deles se manifestam para sustentar

ainda opiniões erradas que esposaram na Terra, aconselha

a análise constante e o exame atencioso das manifestações,

que devem ser rejeitadas quando revelarem conceituações

absurdas.

A crítica se torna, assim, elemento básico da filosofia e

da prática espírita. Mas é evidente que deve ser exercida

por pessoas que tenham condições de cultura e bom-senso

para criticar. Descartes afirmou que o bom-senso é a coisa

mais bem repartida do mundo, mas advertiu que o

emprego do bom-senso depende de boa orientação do

entendimento. Kardec oferece, em toda a sua obra,

instruções e exemplos para o uso do bom julgamento e

aconselha a consulta, em casos de dificuldade, a pessoas

reconhecidamente capazes de resolver problemas com

lucidez. Não havendo no Espiritismo dogmas de fé, tudo

pode ser apreciado e discutido em termos de bom-senso ou

boa razão. Descartes aconselhava a evitar-se dois

elementos perigosos ao raciocínio, que são o preconceito e

a precipitação. Kardec acrescenta a necessidade de

vigilância no tocante à vaidade humana, que leva pessoas

cultas ou incultas a considerar-se capazes de

reformulações doutrinárias com base apenas em suas

opiniões pessoais.

Estabelecendo o consensus gentium, de Aristóteles,

como regra para aceitação de revelações espirituais, não o

fez no sentido aristotélico do termo, mas em sentido

espiritual, com o nome de consenso universal. A aplicação

desse consenso não implica a aceitação da vox populi ou

da opinião das gentes como verdade, mas apenas a

coincidência de manifestações mediúnicas sobre o mesmo

tema, par médiuns diversos, desconhecidos entre si, em

Page 82: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

82

locais diversos e no mesmo tempo. É esse um meio de

controle a ser usado sob as condições de verificação

racional do tema e de confronto do mesmo com os

conhecimentos já adquiridos no meio espírita e na cultura

geral. Levantou, assim, uma barreira à autoridade

individual de um médium isolado que, por mais famoso e

seguro que tenha sido em suas atividades, nem por isso

está livre de se deixar empolgar por idéias errôneas. De

um critério de verdade que era evidentemente de natureza

opiniática, Kardec extraiu uma norma inegavelmente

válida para facilitar o uso do bom-senso pelos espíritas.

A necessidade de certeza na orientação do

conhecimento, num mundo em que tudo se passa no piano

das relações, exige um critério cientifico de avaliação dos

dados obtidos na prática doutrinária. Ao não aceitar a

revelação espiritual de maneira gratuita, mas submetendo-

a ao controle da razão, Kardec não violentou a intenção

dos Espíritos superiores, que desejavam dele precisamente

essa atitude. Tanto assim que desde o inicio o estimularam

nesse caminho, esclarecendo que a Humanidade terrena

atingira a maturidade suficiente para libertar-se do ciclo de

revelações pessoais e locais, dadas sempre de maneira

mística, através de um mestre, profeta ou Messias, numa

determinada região e a um determinado povo. A última

dessas revelações havia sido a do Cristo, que apesar de

pessoal e local já se abria ostensivamente para a

universalidade, escandalizando os judeus apegados a um

sócio-centrismo milenar. A Terra entrava numa fase nova

da sua evolução; as civilizações isoladas deviam fundir-se

através de processos mais amplos e eficientes de

comunicação; o mundo greco-romano chegava ao fim

objetivado pelo seu desenvolvimento; um longo e

doloroso processo de fusão de suas conquistas no campo

Page 83: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

83

do pensamento, do direito, da justiça e da espiritualidade

deveria iniciar-se no caldeirão da História que foi a Idade

Média, segundo a concepção de Dilthey. Essa fusão

resultaria na Idade da Razão com o Renascimento,

preparando o desenvolvimento da Era da Ciência e da

Tecnologia, que levaria o mundo a um progresso cada vez

mais acelerado. A influência do Cristianismo impregnaria

todas as latitudes do planeta, arrancando da apatia

nirvânica as grandes civilizações orientais e obrigando-as

a seguir os padrões ocidentais. Era necessário que a

passividade mística fosse substituída pela atividade

racional, na luta dos homens em busca da compreensão de

suas próprias responsabilidades na direção da vida

humana.

Cumprida essa programação, a Terra já estava, em

pleno século XIX, em condições de receber as luzes

renovadoras de uma doutrina de unificação espiritual,

capaz de guiá-la aos objetivos mais elevados de sua

integração na comunidade cósmica. Muitas inteligências

terrenas, aturdidas com as inquietações do nosso tempo,

com as crises ameaçadoras de uma fase de transição

acelerada, e portanto violenta, perguntam se não estamos

errados ao aceitar essa previsão histórica. O mesmo

aconteceu na fase de desenvolvimento do Cristianismo.

Realmente, a Terra não parece ainda preparada para o

salto cósmico que já vem tentando. Mas podemos notar,

ao longo da História, que a técnica divina parece apoiar-se

num principio de tensão-máxima para fazer-nos avançar.

A preguiça humana, a tendência à acomodação, o apego à

vida como ela é, só podem ser removidos por meios

compulsórios. O chicote do Templo tem de ser vibrado

contra os vendilhões que o transformam em mercado, que

não pensam em Deus mas apenas no dinheiro. Só pelo

Page 84: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

84

impacto da dor o homem se liberta das suas mazelas para

encontrar a vida em abundância de que Jesus falou. Os

anos, os séculos, os milênios passam rápidos na direção da

eternidade sem limites. Não podemos fermentar na Terra

indefinidamente, como o faríamos se as leis divinas não

nos forçassem a buscar com maior rapidez os objetivos

reais de nossa existência.

Kardec viu tudo isso com extrema lucidez, como

podemos constatar na leitura das suas obras. Por isso não

converteu o Espiritismo numa nova religião estática,

segundo o conceito de Bergson, mas ligou-o a todos os

campos da cultura para que possa agir como uma religião

dinâmica, aquela religião em espírito e verdade de que

Jesus falou à mulher samaritana. Não há razão alguma

para que a religião continue como um departamento

estanque e privado, condicionada em sistemas arcaicos,

marginalizada no campo cultural em favor de interesses

sectários. A religião é um dos campos vitais da cultura e

deve integrar-se nesta em plenitude. Seus princípios não

podem manter-se alheios ao progresso geral. Por isso, o

Espiritismo fundou a Ciência do Espírito, que agora está

sendo confirmada pelas conquistas mais recentes das

ciências da matéria. Chegamos tarde à complementação do

fiat da criação, mas estamos agora no momento em que o

espírito se liga à matéria no campo das concepções

humanas.

A certeza, em nosso mundo, nunca pode ser absoluta. É

também relativa, mas corresponde ao máximo possível de

exatidão. Esse máximo é indispensável em todo o campo

do conhecimento. Não poderíamos ficar no terreno das

hipóteses inverificáveis ao tratar de assuntos tão graves

como a origem do homem, sua natureza íntima e seu

destino no sistema cósmico. Kardec, à maneira de

Page 85: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

85

Descartes, pôs em dúvida todo o conhecimento religioso.

Os fenômenos espíritas, como ele mesmo observou,

estavam na moda. Instigado por amigos que conheciam a

sua capacidade científica, relutou a princípio – pois

duvidara da veracidade desses fenômenos – mas acabou

aceitando o convite para comparecer a uma reunião. Ali

constatou a realidade, mas não aceitou a sua interpretação

espiritual. Procurou explicar a chamada dança das mesas

como possível efeito de forças conhecidas: a eletricidade,

a gravidade, o magnetismo, um suposto poder emanado

das pessoas reunidas para aquele fim e assim por diante.

Mas não ficou nas hipóteses. Pôs-se a pesquisar. Seu

encontro com as meninas da família Boudin, uma de 14 e

outra de 16 anos, médiuns excelentes, permitiu-lhe uma

série de experiências decisivas. Foi com elas que recebeu

todo o texto de “O Livro dos Espíritos”. Pelas mãos

dessas duas mocinhas nasceu o Espiritismo. E renasceu

Allan Kardec, o druida das Gálias antigas, para substituir o

Prof. Denizard Rivail (seu nome verdadeiro) o discípulo

emérito de Pestalozzi e sucessor do mestre no

desenvolvimento de sua Pedagogia Filantrópica. Dali por

diante, numa seqüência de 15 anos, as pesquisas

prosseguiram, dos quais 12 na Sociedade Parisiense de

Estudos Espíritas, por ele fundada e dirigida. Nesse

período de 15 anos Kardec elaborou os cinco volumes da

Codificação do Espiritismo, três volumes de introdução à

doutrina, um manual de introdução à prática mediúnica,

numerosos artigos para a imprensa e os doze volumes da

Revista Espírita, contendo em média 400 páginas cada

volume.

Em todos esses trabalhos ele foi sempre orientado pelos

Espíritos superiores, como se pode ver nas suas anotações

de Obras Póstumas. E sua conduta de pesquisador foi

Page 86: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

86

louvada pelo próprio Richet, o fisiologista do século, que

discordava das conclusões de Kardec mas reconhecia, em

seu Tratado de metapsíquica, o valor do homem que

iniciara as Ciências Psíquicas na França e no Mundo.

Partindo da dúvida, Kardec chegara à certeza psicológica

da sobrevivência do homem à morte corporal. Richet

fizera um caminho paralelo, o da sua especialidade

científica, para chegar à certeza fisiológica dos fenômenos

espantosos de materialização. Depois dele, outros muitos

comprovariam a sua descoberta mas não ficariam em meio

do caminho. Avançariam como Crookes, Notzing, Zollner,

Ochorowicz, Gelei, Osty, Aksakov, até a certeza final de

Kardec. Estava aberta nas Ciências a fronteira da

imortalidade. Dali por diante, os que pretendem reduzir o

homem a ossos e cinzas lutariam sem cessar – até mesmo

nas religiões – contra a maior e mais fecunda certeza

científica da cultura terrena. Do Espiritismo nasceram

todas as ciências do paranormal, até a Parapsicologia

contemporânea. Mas os inimigos da certeza ainda

continuam, em nossos dias, diante da evidência fulminante

das últimas descobertas científicas – físicas, biológicas,

psicológicas e astronáuticas –, a insuflar com suas

bochechas em fúria o fantasma superado da dúvida

antimetódica. Fingem não perceber que esse fantasma é

um balão furado e de mecha queimada.

A superação da dúvida no Espiritismo não se fez

através dos métodos subjetivos da meditação religiosa e do

êxtase místico, mas do método científico de pesquisa. Foi

o que Richet reconheceu e louvou em Kardec, corno se vê

logo no início do Tratado de Metapsíquica. Integrado na

tradição da busca metodológica, que vinha do século XVI,

com a revolução cientifica de Bacon e Descartes, Allan

Kardec encarou o problema espiritual de maneira objetiva

Page 87: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

87

e, numa posição tipicamente existencial, criou o método

apropriado à pesquisa dos fenômenos espíritas. Ao

contrario do que alegam até hoje os seus contraditores,

demonstrou de maneira exaustiva que os fenômenos

espíritas podem ser repetidos quantas vezes for necessário

para a confrontação dos resultados experimentais, como os

grandes cientistas da época iriam comprovar logo em

seguida e como as pesquisas parapsicológicas atuais

novamente comprovaram e demonstraram.

Essa subversão metodológica no campo do

conhecimento espiritual, até então submetido aos

princípios da fé, despertou violenta reação que ainda hoje

não se extinguiu. Kardec partia do homem vivo, do

homem no mundo, da criatura de carne e osso para elevar-

se a Deus através da indução lógica, desprezando os

processos dedutivos da tradição. Atrevia-se a investigar o

espírito dos mortos e dos vivos com a mesma naturalidade,

sustentando que a alma nada mais era do que o espírito

que anima um corpo. E ousava dar uma nova explicação

da Gênese que incluía a criação do homem por Deus como

um fato natural, dialeticamente explicável. A morte perdia

o aspecto misterioso alimentado pelas religiões e os

videntes e profetas eram considerados como criaturas em

que uma faculdade humana natural, a mediunidade, havia

se desenvolvido de maneira mais intensa.

Pacientes e incessantes pesquisas – e não revelações

místicas – levaram Kardec à descoberta científica da

natureza espiritual do homem. E a prova de que realmente

o levaram foi dada posteriormente pelas pesquisas

científicas desencadeadas em todo o mundo e hoje

confirmadas até mesmo pelo avanço das investigações

materiais, por cientistas modernos que alargam as

dimensões das Ciências. É assim que a dúvida sobre a

Page 88: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

88

continuidade da vida após a morte foi vencida pela certeza

no campo das investigações espíritas. As religiões que

ignorarem esse fato culminante da evolução humana na

Terra acabarão asfixiadas, por falta do oxigênio da

verdade, em seus círculos estreitos de fanatismo e

exclusivismo. Não há somente crise nas religiões. há sinais

evidentes de agonia.

Page 89: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

89

Capítulo 10

Magia e Misticismo

O homem primitivo não via o mundo, mas a magia da

Natureza. Não tendo ainda o pensamento desenvolvido, o

raciocínio metodizado, não podia sequer conceber o

mundo. Tinha mais sensações do que emoções e mais

emoções do que idéias. Seus sentimentos germinavam no

plano larvar dos instintos. E os instintos animais o

dominavam, sem dar lugar aos instintos espirituais. Era

mais corpo que alma. Kardec assinala dois seres na

estrutura humana: o ser do corpo e o ser espiritual. No

homem atual esses dois seres se equilibram e a sua

psicologia pode ser medida pela predominância de um ou

de outro ou pela sua equivalência. As pessoas em que

predomina o ser do corpo estão mais próximas do

primitivismo. Aqueles em que os dois seres se equivalem

apegam-se mais às coisas materiais e têm dificuldade em

conceber a realidade do espírito. As pessoas em que

predomina o ser espiritual dão mais importância às

questões espirituais. As primeiras estão apegadas ao

passado humano, as segundas à pragmática do presente e

as terceiras tendem para o futuro. Mas entre uma e outra

dessas posições evolutivas existem numerosas variações

que podem ser classificadas em fases intermediárias de

múltiplas nuanças. A escala espírita de “O Livro dos

Espíritos” oferece-nos um quadro psicológico geral dessas

talvez inumeráveis variações tipológicas.

A percepção mágica do mundo (restrita ao ambiente

tribal ou do clã) levou o homem primitivo às práticas

mágicas. Seu pensamento se desenvolvia na experiência,

revelando-lhe progressivamente as relações existentes

entre as coisas e os seres. Podemos supô-las assim, como

Page 90: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

90

simples dados exemplificativos: vida-alimento, bicho-

mato, peixe-água, ave-céu, fruta-árvore, flecha-caça-

inimigo, homem-mulher-criança, dia-sol, noite-escuro-

lua. Essas relações primárias lhe davam a possibilidade de

agir com eficiência no meio físico. Através delas ele

começou a agir instintivamente no plano espiritual e

nasceu a magia simpática ou simpatética, a arte incipiente

de atingir o inimigo através de reproduções de sua figura

em barro ou madeira e de evocar as forças benéficas

através de símbolos correspondentes a elas. Nascia o

feitiço e conseqüentemente o feiticeiro. E de ambos

nasceriam mais tarde os ídolos, os sacramentos, os

sacerdotes e as religiões com seus rituais. Esses processos

rudimentares arrancavam o homem da selva e do gelo e o

lançavam na direção da civilização. Um longo caminho a

percorrer no aprimoramento dessas técnicas primitivas

através dos milênios.

Mas os homens não estavam sós nem abandonados a si

mesmos em nenhuma dessas fases. A idéia de Deus

pairava obscura sobre o fundo nebuloso de suas

experiências filogenéticas e a lei de adoração os levava a

reverenciar o mistério da terra, das águas, do céu

estrelado, das montanhas coroadas de nuvens. Do fundo

escuro das matas surgiam o bem e o mal, as forças e os

seres benéficos e maléficos. Muitos desses seres não

tinham a consistência das criaturas de carne e osso.

Apareciam e desapareciam como as chamas noturnas dos

fogos-fátuos, Uns os auxiliavam e eram considerados

deuses benfazejos. Outros os ameaçavam e eram os deuses

malfazejos. Espíritos bons velavam pelas tribos e

orientavam os seus chefes. Pagés e xanãs tinham o dom de

evocá-los e consultá-los. Como nas cidades cósmicas da

Grécia arcaica, de que tratou Durkheim, homens e deuses

Page 91: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

91

conviviam numa espécie de intermúndio. Essa situação

perdurou nas civilizações agrárias, no ciclo das grandes

civilizações orientais, no mundo clássico, gerando as

religiões mitológicas com seus oráculos e suas pitonisas.

No Judaísmo e no Cristianismo temos a sua continuidade,

o que se pode verificar pelos textos bíblicos e evangélicos.

Já no Paganismo encontramos as práticas místicas dos

chamados Mistérios, com rituais específicos para levar os

iniciados à relação direta com o mundo espiritual e

especialmente com Deus. No Egito antigo e nas religiões

dos impérios americanos dos aztecas, maias e incas havia

o emprego de sumos vegetais que originariam as drogas

atuais como a mescalina e o ácido-lisérgico, para a

produção do estado de êxtase, que é o fenômeno central

dessas práticas. Pelo êxtase, provocado ou espontâneo. o

místico se desliga de toda a realidade sensível, do mundo

material, e mergulha no inteligível, no mundo espiritual.

O Misticismo tem suas origens remotas no êxtase dos

pagés, que em meio às selvas procuravam o contato direto

com os espíritos protetores das tribos. O pressuposto do

misticismo nas eras civilizadas é a possibilidade humana

de superação dos sentidos e da razão para obter-se o

conhecimento superior nas fontes divinas. Esse

pressuposto conduz os homens a uma fuga da realidade.

No Espiritismo as práticas místicas são condenadas por

dois motivos fundamentais: 1º) porque o homem está no

mundo para viver o mundo com o fim de desenvolver, na

experiência da vida de relação, as suas potencialidades

internas; 2º) porque a ligação do homem com Deus se faz

através do amor ao próximo, na prática da caridade (que é

o amor em ação) e de maneira natural, sem a necessidade

de práticas rituais ou do emprego de excitantes de

qualquer espécie. As pessoas que consideram o

Page 92: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

92

Espiritismo como doutrina mística confundem a

fenomenologia mediúnica com as práticas do misticismo.

Não sabem que a mediunidade – como hoje está

confirmado pelas pesquisas parapsicológicas – é

simplesmente uma faculdade humana natural que permite

a todos o exercício da percepção extra-sensorial. O

misticismo nasceu das manifestações naturais dessa

faculdade e da falta de condições culturais para o seu

estudo racional. A mística experiência de Deus das

religiões dogmáticas depende das práticas místicas e de

uma concepção anti-racional do mundo e da vida. Por isso

Ranzolli propõe a limitação do termo misticismo às

filosofias religiosas, substituindo-o no campo filosófico

geral por expressões como irracionalismo e intuicionismo

ou sentimentalismo.

O Cristianismo – que os árabes chamaram religião do

livro – utilizou-se, em sua origem, da mediunidade, mas

sua posição em face das religiões anteriores foi

nitidamente racionalista. Todos os ensinos de Jesus,

mesmo quando ele se referia a Deus, chamando-o de Pai,

são racionais. Sua condenação constante do irracionalismo

judeu foi sempre seguida de explicações racionais, através

de exemplos em forma de parábolas tiradas da própria

vida diária do povo. Ao tratar do dogma judaico da

ressurreição ele se referia claramente ao nascer de novo,

usando exemplos históricos como a volta de Elias

reencarnado em João Batista. Suas referências às

potencialidades divinas do homem eram exemplificadas

pelos fenômenos produzidos por ele mesmo e pelos seus

seguidores. Nunca falou da sua ressurreição como um

privilégio, mas, ligando-a à ressurreição de todos. O

Apóstolo Paulo incumbiu-se de formular a teoria racional

da ressurreição, não da carne, mas do espírito, explicando

Page 93: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

93

que o corpo espiritual do homem, hoje descoberto pelas

ciências como corpo-bioplásmico, é o corpo da

ressurreição.

Esse racionalismo foi posteriormente prejudicado pelas

influências pagãs e judaicas do misticismo, que atingiriam

nas igrejas cristãs um refinamento intelectualista

paradoxal, opondo o intelecto a si mesmo. Todo o esforço

de Jesus no combate à mitologia foi anulado pelos

teólogos, que transformaram ele mesmo em novo mito,-

fazendo de sua natureza humana uma espécie de simples

manifestação pragmática da sua divindade. O Espiritismo

retoma a tradição racionalista do Cristianismo primitivo e,

da mesma maneira que os antigos cristãos, prova na

prática os ensinos teóricos de Jesus através das

manifestações espíritas, da prova concreta das

materializações e das aparições tangíveis (como a de

Jesus para os apóstolos no cenáculo) dos fenômenos de

voz-direta (como o da voz que soou no espaço na hora do

batismo) e dos casos pesquisáveis de reencarnação, hoje

em pauta na pesquisa científica mundial. Nada disso se

refere a misticismo, a práticas místicas através de

processos mágicos, de excitantes específicos e de

tentativas antinaturais de transformar o homem vivo em

um morto-vivo que nega o mundo para viver como

espírito desencarnado, desligado dos processos necessários

da razão. O homem é deus em potência, não em ato, e não

pode querer antecipar a sua atualização fugindo aos

compromissos e experiências da vida terrena. Seus deveres

estão aqui, neste mundo, por enquanto, e suas

possibilidades de evolução, de transcendência, não se

encontram na alienação, na fuga, mas na integração

consciente em suas tarefas sociais.

Page 94: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

94

O tempo das igrejas está chegando ao fim, como

chegou o dos Mistérios na Antigüidade. Elas foram

necessárias e tanto serviram como desserviram à

Humanidade, revelando sua estrutura imperfeita como a de

todas as obras humanas. Em vão se arrogaram investiduras

divinas. A mente humana se abre hoje para novas

dimensões e as igrejas não têm condições para

acompanhá-la nesse avanço. A luta sem tréguas que

sustentaram e ainda sustentam contra o Espiritismo e em

especial contra a mediunidade provou a sua incapacidade

para enfrentar os novos tempos. A dinâmica da concepção

espírita se opõe à mecânica ritual das igrejas como a Física

moderna se opõe à Física do passado. Na proporção em

que as camadas retrógradas da população terrena vão

sendo afastadas do planeta, na sucessão inevitável das

gerações, cresce o esvaziamento das igrejas e os

seminários vão sendo fechados por falta de alunos. Foi o

que aconteceu com as religiões mitológicas do mundo

greco-romano. Para poderem sobreviver, as igrejas têm de

desigrejar-se, suprimindo o profissionalismo sacerdotal, as

suas dogmáticas absurdas, as liturgias vazias de sentido.

Antes que possam pagar esse preço demasiado elevado, as

forças da evolução as varrerão da face da Terra. Isto não é

uma profecia espírita, é uma profecia evangélica de Jesus,

no episódio com a mulher samaritana. Que ninguém me

acuse de responsável por essa previsão que elas mesmas,

as igrejas, por dois mil anos fizeram ler no Evangelho em

seus cultos sem a entenderem. Também não entenderam a

questão das muitas moradas da Casa do Pai, nem a do

batismo espiritual, nem a do nascer de novo, nem a

condenação das exigências rituais dos fariseus. O que

podem esperar ou reclamar agora?

Page 95: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

95

Respeitáveis pensadores religiosos, reconhecidamente

cultos, não conseguem ainda libertar-se da magia das

selvas, cujos resíduos impregnam de misticismo as

religiões em agonia. Esse apego os impede de socorrer as

instituições religiosas no momento crucial. Desesperados,

acusam o Espiritismo e os espíritas de incapazes de

compreender as sutilezas da fé e exigem provas materiais

do que não é material. Chegam mesmo a considerar como

profanação a pesquisa espírita dos fenômenos mediúnicos.

De outras vezes acusam o Espiritismo de práticas

primitivas e o confundem com as formas do sincretismo-

religioso afro-brasileiro. O materialismo, proclamam, leva

os espíritas a quererem materializar espíritos. Perdem a

perspectiva cultural do nosso tempo e mergulham no

passado, acusando-nos de uma posição retrógada no

campo do Espiritualismo.

Nossas ligações com a selva realmente existem e são as

mesmas que constatamos nas religiões em agonia, mas há

uma diferença fundamental entre a nossa posição e a

delas: a reelaboração da experiência. Essa reelaboração

não foi feita pelas religiões, que se limitaram a refinar as

práticas selvagens e cobri-las com o verniz da civilização.

Até mesmo a tentativa de submeter a Divindade ao poder

misterioso dos pagés sobrevive em sacramentos das

igrejas, dando aos sacerdotes o poder (que foi negado aos

anjos) de obrigar o próprio Deus a materializar-se em

substâncias materiais do culto, bem como o poder de

obrigar o Espírito Santo a manifestar-se nos adeptos para o

batismo do espírito.

No Espiritismo, o que sobrevive das selvas é o

fenômeno, o fato natural da manifestação dos espíritos

através da mediunidade, como todos os fenômenos físicos

e químicos, botânicos e biológicos ou psíquicos

Page 96: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

96

sobrevivem obrigatoriamente nas ciências. Mas o

Espiritismo não permanece apegado às superstições da

experiência selvagem; reelabora essa experiência à luz da

cultura e descobre as suas leis para poder usá-las em

função do progresso. A capacidade humana de conhecer

não tem limites e a divisão absoluta entre espírito e

matéria já foi superada nas pesquisas físicas.

O materialismo morreu por falta de matéria, como

afirmou Einstein, e as religiões agonizam, como podemos

ver, por falta de espírito. Há mais apego à matéria nas

práticas e nos conceitos das religiões em agonia do que

nos ritos selvagens, pois nestes a crença ingênua e

instintiva manifestava-se naturalmente, enquanto naquelas

é puro artifício, tentativa de racionalização psicológica de

heranças atávicas.

Page 97: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

97

Capítulo 11

A Cura Divina

Para as camadas pobres da população e a gente simples

dos bairros elegantes, onde a ignorância anda sobre tapetes

de luxo, o Espiritismo não é mais do que uma seita de

terapeutas obscuros, de curandeiros broncos. Acredita-se

que a única finalidade do Espiritismo é curar por meio de

processos mágicos. Mas a cura divina não é privilégio de

ninguém. Encontramo-la em todas as religiões e seitas

religiosas do passado e do presente. E mais ainda a

encontraremos no futuro, mas então já reconhecida como

um processo cientificamente explicável e não mais sujeito

à exploração dos missionários por conta própria que hoje,

nas grandes cidades, enriquecem-se à sombra da

ignorância ilustrada e da miséria analfabeta, tendo por

patrono o orgulho botocudo da alta medicina e o

comodismo criminoso da burocracia dos órgãos oficiais de

assistência social.

Ligo o rádio às 4 da manhã e ouço o locutor anunciar o

programa de um missionário da cura divina. O missionário

se apresenta declinando o seu título auto-concedido. Sua

voz e suas expressões revelam o tipo de ignorância

radiofonizada. É um ex-trabalhador braçal que descobriu

em si mesmo o meio de superar sua condição inferior. Fala

em nome de Jesus Cristo e faz desfilar pelo microfone

várias criaturas dos bairros humildes que relatam as curas

divinas com que foram agraciadas. A linguagem de todos

é pitoresca e emocionante. Revela ao mesmo tempo a

penúria cultural e a fé ingênua do povo. Algumas pessoas

se curaram com o programa de rádio, outras com o disco

de preces do missionário, outras nas reuniões tumultuosas

Page 98: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

98

da igreja, outras, levando peças de roupas de certos

doentes ao recinto sagrado, conseguiram curá-los.

É um desfile impressionante de sofrimento e miséria,

de ignorância e crendice pelos canais de comunicação da

tecnologia moderna. às vezes, isso acontece também na

televisão, embora em programas eventuais, o que acentua

o contraste dos desníveis culturais da nossa época. Não se

pode condenar essa revelação natural da realidade em que

vivemos. O mais chocante é que não se pode nem mesmo

condenar a indústria e o comércio dos missionários

espertalhões, que bem ou mal atendem às necessidades de

milhares de pessoas desamparadas.

A cura divina – hoje cura paranormal – é uma

realidade inegável em todo o mundo. Mesmo os cientistas

de cabeça-dura reconhecem a sua existência e procuram

explicá-la através dos processos psicossomáticos, da

influência de energias psíquicas sobre o físico. Essa

influencia pertence, segundo o Espiritismo – e agora

segundo as pesquisas parapsicológicas e a descoberta do

corpo-bioplásmico pelos físicos e biólogos soviéticos – à

própria estrutura psicofísica do homem. A vida se revela

aos nossos olhos, nestes dias, como o resultado da ação do

espírito sobre a matéria, e isso em todas as suas

manifestações, como já ficou evidente no capítulo sobre o

corpo-bioplásmico. Não se trata de nada excepcional ou

sobrenatural, mas, pelo contrário, de um fato

simplesmente natural. E precisamente por isso o problema

da aura divina exige atenção imediata e acurada da

Ciência, para que ela seja retirada das mãos ineptas e em

geral gananciosas dos missionários por conta própria. Se

isso não for feito, se os cientistas não levarem o assunto a

sério e os médicos e suas associações profissionais não

puserem de lado os seus preconceitos, enfrentando

Page 99: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

99

corajosa e dignamente o problema, serão vãs todas as

tentativas repressoras por meios policiais e ações judiciais.

Um fato deve ser encarado como fato e não como lenda ou

superstição. Temos de usar a cabeça e livrar-nos da

estúpida pretensão de superioridade cultural em área que

não conhecemos.

A terapêutica espírita existe e vive em luta incessante

em duas frentes. De um lado é atacada por associações

médicas e de outro lado pelas igrejas. A burrice e o

interesse profissional estão presentes nessas duas frentes.

Entretanto, a terapêutica espírita não se apóia em

pressupostos ingênuos nem se serve dos processos do

curandeirismo. Suas bases teóricas são científicas e seus

métodos psicoterapêuticos, como demonstrou Jean

Ehrenwald, superam os da psicoterapia científica da

atualidade. O que a prejudica aos olhos dos especialistas

não está nela, mas neles: é o preconceito, a negação

apriorística e portanto anticientífica da interferência de

influências estranhas no psiquismo humano. Esse tipo de

influências já não pode ser negado por ninguém, depois

dos avanços científicos do nosso tempo. Somente pessoas

desatualizadas cientificamente podem ainda insistir na

negação de realidades cientificamente demonstradas e

aceitas nos meios universitários mais conceituados do

mundo.

Muitos dos casos relatados no programa de rádio do

missionário a que me referi, apesar das circunstâncias

simplórias em que se deram, são perfeitamente

enquadráveis na terapêutica paranormal, admitindo-se ou

não que o missionário seja um sujeito para-normal.

Outros casos se explicam pelas próprias teorias da

psicoterapêutica científica, sem necessidade dos dados da

paranormalidade. Kardec utilizou-se várias vezes da

Page 100: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

100

contribuição de médicos para a verificação de casos da

chamada mediunidade-curadora, como se pode ver pelas

suas relações com o Dr. Demeure, relatadas

minuciosamente na Revista Espírita. A médium observada

pelo referido médico, em sua clínica, era uma jovem que

curava pelos processos típicos do curandeirismo mais

grosseiro, através de beberagens produzidas com ervas,

mas sob a orientação de espíritos que a assistiam. O

próprio Kardec foi médico e clinicou em Paris, como se

pode ver pela sua recente biografia de André Moreil.

Discute-se o problema da sua graduação em medicina, que

não se conseguiu provar, mas seu contemporâneo Henri

Sausse, que foi também o seu primeiro biógrafo, afirma

que ele defendeu brilhantemente sua tese de

doutoramento. O que não se pode negar é que conhecia

profundamente ciências médicas e lecionou-as em Paris.

A terapêutica espírita não pretende superar a medicina,

mas tão-somente contribuir para torná-la mais eficiente. O

número de hospitais espíritas existentes em nosso país e o

seu aumento constante, apesar das restrições e da má-

vontade que encontram de parte dos poderes oficiais, é

prova disso. Os hospitais espíritas não são construídos por

uma igreja poderosa nem segundo um plano estadual ou

nacional. São iniciativas de pequenos grupos ou

instituições doutrinárias, geralmente desprovidas de

recursos financeiros, que agem com absoluta autonomia.

O móvel dessas iniciativas é o desejo de estender a todos

os recursos da terapêutica espírita em conjugação com a

medicina. Chega a ser emocionante o empenho nesse

sentido, quando se sabe que os médicos não-espíritas,

chamados a trabalhar em hospitais espíritas, criam

dificuldades ao seu funcionamento e os serviços oficiais

proíbem os simples passes e até mesmo as preces no

Page 101: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

101

recinto hospitalar. No caso dos hospitais psiquiátricos o

que se passa merecia um longo estudo. O oficialismo

médico e governamental, embora consciente das

deficiências da medicina para curar a maioria dos doentes,

fecha-se numa rigidez irracional, negando aos espíritas o

direito de socorrer aqueles doentes com seus recursos

próprios, que, no máximo, seriam inócuos. As alegações

teóricas em contrário não resistem ao volume de fatos

favoráveis aos espíritas e particularmente às conquistas

atuais das ciências no tocante à realidade espiritual.

A finalidade do Espiritismo não é terapêutica, mas

cultural. No seu aspecto científico, no campo específico da

Ciência Espírita, o que importa é a descoberta das leis

naturais do espírito, que não estão ao alcance das

pesquisas materiais nem das indagações teológicas.

Descobrir essas leis pela pesquisa espírita e os processos

de sua relação com as leis dos fenômenos materiais é um

objetivo que hoje se impõe como necessidade do próprio

desenvolvimento científico. A descoberta da antimatéria

pelos físicos mostrou a existência de outro mundo ligado

ao nosso por um sistema evidente de interpenetração. A

descoberta do corpo-bioplásmico mostrou que esse mundo

antimaterial pode ser habitado por seres humanos dotados

de corpos diferentes dos nossos. As pesquisas

parapsicológicas mostraram, particularmente através dos

fenômenos teta (relacionados com a morte e as

manifestações espíritas) a existência de relações entre

essas duas populações. O Espiritismo antecipou de um

século as pesquisas sobre esses problemas, que são de

interesse vital para toda a Humanidade.

A terapêutica espírita resulta naturalmente desse

conhecimento antecipado, a que somente agora as ciências

estão encontrando acesso. Ela não decorre, portanto, de

Page 102: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

102

superstições, hipóteses ou práticas tradicionais de cura

envoltas em mistério, sustentadas por crenças populares.

Seus fundamentos são racionais e científicos. É prova de

ignorância lamentável confundir-se a terapêutica espírita

com o curandeirismo ou com as práticas religiosas que se

apóiam apenas nos estímulos da fé irracional. Já vimos

que a própria fé encontra no Espiritismo explicação e

definição diversas das que lhe são dadas na cultura

materialista e na cultura religiosa. A fé não age nos casos

de cura como um poder atuante, mas como uma base em

que se apóiam os poderes do espírito para agirem com

eficácia. O conhecimento dos fatores causadores da

doença e a descoberta das leis que permitem a aplicação

de processos curativos eficientes são os elementos

essenciais da terapêutica espírita. Justamente por isso ela

pode e deve complementar os recursos médicos, como a

experiência secular tem provado.

Vejamos um caso típico de contribuição espírita em

plano concreto. Richet, fisiologista e médico, prêmio

Nobel de sua especialidade, descobriu o ectoplasma dos

processos de materialização. Geley, também fisiologista –

e espírita – deu prosseguimento às pesquisas de Richet.

Ambos provaram, secundados por outros cientistas

eminentes, entre os quais Crookes e Zöllner, que o

ectoplasma é uma emanação do corpo do médium em

forma de um plasma leitoso. Schrenk-Notzing, na

Alemanha, conseguiu porções de ectoplasma, colhidas em

sessões mediúnicas experimentais, e submeteu-as a exame

histológico em laboratórios de Berlim e Viena,

comprovando a sua natureza orgânica. Várias

manifestações espíritas aludiram à possibilidade de

aplicação terapêutica desse elemento para a reconstituição

de tecidos vivos afetados ou destruídos por processos

Page 103: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

103

cancerosos. Experiências realizadas atualmente em sessões

de materialização deram resultados animadores.

Infelizmente não foram feitas em instituições científicas.

Mas os médicos participantes dessas experiências

entendem que, se pesquisadores categorizados tratarem do

assunto, abrirão uma nova era no tratamento das

recuperações consideradas impossíveis.

Pietro Ubaldi, que apesar de médium não era espírita,

admite em suas obras que o ectoplasma pode ser um

ensaio de nova forma de reprodução da espécie, um novo

sistema biológico em desenvolvimento, que substituirá o

sistema animal de reprodução sexual. Todas as pessoas

envolvidas nessas duas hipóteses são dotadas de cultura

científica. Nenhuma delas apelou para explicações

sobrenaturais do fenômeno.

As campanhas clericais contra o Espiritismo, apoiadas

muitas vezes pelas corporações científicas, alimentaram o

preconceito antiespírita numa sociedade fechada, cuja

cultura rigidamente estruturada não admitia incursões

estranhas, nem mesmo quando lideradas por expoentes

dessa mesma cultura. A luta de Pasteur contra os cabeças-

duras do seu tempo é suficiente para mostrar as barreiras

que se levantam quando uma novidade aparece no campo

científico. Mas hoje essas barreiras já foram de tal maneira

derrubadas dentro da própria fortaleza científica que

podemos ter alguma esperança. Parece não estar longe o

dia em que o sonho de Kardec será realizado: as ciências

do espírito e da matéria se conjugarão.

Estamos às portas de uma revolução cultural decisiva.

A terapêutica espírita exerce uma fascinação crescente

sobre os cientistas e os médicos arejados, de mente aberta

para as possibilidades novas. Que farão as religiões

dogmáticas em face das transformações radicais que já

Page 104: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

104

abalam suas velhas estruturas? Continuarão apegadas aos

seus dogmas envelhecidos ou flutuarão no vácuo das

reformas teológicas baseadas em sofismas brilhantes? E

qual a doutrina, qual a concepção do mundo que apresenta

essas condições gerais de unificação do conhecimento e

ampliação das dimensões da vida e do homem, além do

Espiritismo?

O problema da experiência de Deus e o da cura divina

se confundem, tanto em sua origem quanto em seu

desenvolvimento histórico, em seus pressupostos e em sua

prática. Suas raízes se entrelaçam no chão das heranças

atávicas; ambos têm a mesma procedência remota,

derivam das fórmulas mágicas e passaram pelos mesmos

processos de elaboração mística nas coordenadas do

tempo e do psiquismo em desenvolvimento. Fundam sua

eficácia na fé ingênua que brota do sentimento religioso

intuitivo (ou instinto espiritual) e requerem posturas

corporais específicas e elementos materiais como veículos

da graça celeste. As religiões formalistas se acomodam

nesses processos da tradição milenar, esquecidas de que o

homem já superou o uso de instrumentos rudimentares nas

relações com Deus.

O complicado aparato das religiões mágicas, que

auxiliou no passado o pensamento humano a desprender-

se das entranhas da terra, atualmente impede esse mesmo

pensamento de atingir a autonomia de que necessita para

librar-se aos planos superiores da verdadeira vida

espiritual. Enquanto os clérigos ilustrados retêm os seus

adeptos no emaranhado das práticas rituais,

impossibilitando-lhes a compreensão verdadeira dos

princípios evangélicos, os missionários por conta própria

capitalizam habilmente os resultados dessa retenção

indébita através do comércio da cura divina. É uma

Page 105: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

105

espécie de conluio inconsciente, de que uns e outros não

têm a percepção clara, e cujos resultados, úteis no plano

especifico da prática, são entretanto prejudiciais no plano

geral da evolução humana.

Imantar o psiquismo das camadas ingênuas da

população, através de excitações emocionais, ao campo

hipnótico dos mitos é o mesmo que incentivar o uso de

psicotrópicos a pretexto de socorrer o desespero humano.

Na própria Bíblia, os clérigos atuais (uma espécie social

em vias de extinção) encontram a lição arrepiante de

Moisés, que preferiu mandar passar a fio de espada os

israelitas apegados à idolatria e à magia egípcia, a

comprometer o futuro espiritual de Israel. Hoje não

precisamos dessa violência assassina; basta um pouco de

boa-vontade e raciocínio para se compreender que as

raízes amargas do passado podem ser extirpadas com

ensinos e exemplos de renovação mental.

O sentimento religioso do homem responde pelo

impulso de transcendência que as filosofias existenciais

são unânimes em reconhecer no devir humano, no instinto

evolutivo da espécie. O desenvolvimento da lei de

adoração, atestado pelas pesquisas antropológicas, o

confirma. Não há mais tempo a perder com artificialismos

superados.

Page 106: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

106

Capítulo 12

Rito e Palavra

O formalismo das igrejas caracteriza-se principalmente

pelos seus rituais. Mas todo rito implica o uso da palavra.

Trata-se de uma conjugação de dois sistemas

complementares de comunicação. A eles se junta o

instrumento, na explicação clássica da evolução humana.

Foi graças ao rito e à palavra que o homem ascendeu do

primata ao sábio. Mas, para dar mais alcance ao processo

de comunicação, o homem teve de inventar o instrumento.

O fogo, a fumaça, penas de aves nas árvores, estacas no

chão foram os precursores de todos os meios de

comunicação à distância de que hoje nos orgulhamos. Mas

pouca gente sabe, além dos círculos restritos de

especialistas, que os animais também se utilizam de ritos e

até mesmo de palavras em seus processos de

comunicação. No tocante aos instrumentos, eles os trazem

no próprio corpo, o que não impede que animais

superiores se utilizem também de instrumentos naturais,

como pedras e varas. Remy Chauvin, biólogo e

entomólogo francês da atualidade, em seu livro Les

Societés Animales, oferece-nos abundantes informações

sobre este assunto.

A teoria da evolução criadora, de Henri Bergson,

propõe-nos a tese da infiltração do impulso vital na

matéria em duas direções: uma que leva ao

desenvolvimento dos insetos sociais, outra que resulta no

aparecimento das sociedades humanas. Chauvin chega

mesmo a referir-se à civilização das abelhas, advertindo

naturalmente que se trata de civilização de insetos e não

humana. Ortega y Gasset discorda do uso do termo social

para os insetos, mas Chauvin, que pesquisou o problema a

Page 107: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

107

fundo, não encontra explicação para o fato de não haverem

os insetos sociais alcançado o plano do pensamento

criador. Chega mesmo a supor que talvez em outro planeta

o tenham feito. Tudo isso pode ser pouco lisonjeiro para o

orgulho humano, mas nem por isso deixa de ser

significativo para os estudiosos da evolução humana na

terra. Chauvin é diretor de pesquisas do Instituto de Altos

Estudos de Paris. Menciono esse dado da sua ficha para

mostrar a sua qualificação científica.

O que nos interessa neste problema é verificar, através

de dados científicos, que o formalismo religioso, como o

social e o das chamadas sociedades ocultas não provêm de

uma revelação divina, mas do impulso vital que, passando

através das espécies animais, projetou-se e desenvolveu-se

no homem. O sacerdote que se paramenta para uma

cerimônia religiosa, o maçom que veste os seus símbolos

para uma sessão da loja, o universitário que enverga a sua

beca para a formatura talvez não saibam que repetem

processos antiqüíssimos – evidentemente refinados pela

tradição humana –, que procedem de ritos animais de

milhões de anos antes da aparição do homem no planeta.

Isso pode desapontar a nossa vaidade, mas servirá para nos

lembrar a humildade. Não somos seres privilegiados na

Terra. Somos os últimos rebentos de uma evolução

multimilenar daquilo que, no Espiritismo, chama-se

princípio inteligente, o espírito que estrutura a matéria e

através dela se desenvolve, despertando suas

potencialidades ocultas e fazendo-as passar de potência a

ato, de possibilidade a realidade.

Num trabalho curioso sobre a origem dos rituais na

Igreja e na Maçonaria, Helena Blavatsky explica a

procedência agrária dos ritos principais das religiões e das

ordens ocultas. Os estudos de James Frazer, François

Page 108: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

108

Berge, René Hubert e outros mostram a relação direta dos

ritos humanos com os ritmos da Natureza: a sucessão dos

dias e das noites, dos anos, das estações, das gerações.

Esses ritmos naturais parecem refletir-se nos mecanismos

da vida em formação e da inteligência em

desenvolvimento. O instinto de imitação produz os ídolos

grotescos das tribos e mais tarde as imagens artísticas das

igrejas, enriquecidas pela imaginação criadora. Pestalozzi

tinha razão em dividir as religiões em duas categorias: as

animais e as sociais, que correspondem às primitivas e às

civilizadas. Nas primeiras ainda imperam os instintos

animais, nas segundas as forças centrípetas da aglutinação

social, gerando o sócio-centrismo das culturas antigas.

Todas essas religiões são de elaboração telúrica, ligadas

aos ritmos da terra. Mas Pestalozzi, mestre de Kardec,

admitia uma religião superior, desligada dos elementos

materiais, a que chamava apenas de Moralidade, para não

confundi-la com as anteriores. Essa a religião espiritual

que seu discípulo iria formular, com base nas revelações

dos espíritos. Nela, por ser espiritual, não há ritos nem

mitos, nem sacerdotes nem altares, nem mesmo dogmas de

fé, pois a religião espiritual se fundamenta na razão e se

liberta dos ritmos telúricos que impregnam a emotividade

humana. Bergson colocou o mesmo problema em seu

estudo sobre as fontes naturais da moral e da religião.

Passar do rito à palavra é rodar no mesmo círculo.

Ambos pertencem ao campo da linguagem. Quando

falamos de linguagem abrangemos todas as formas de

expressão. Se perguntarmos como nasceu a linguagem, a

resposta nos leva à mesma origem do rito. A diferença é

apenas de forma. Enquanto o rito pertence ao campo da

mímica, da gesticulação e portanto das expressões por

meio de sinais corporais, a palavra pertence ao campo do

Page 109: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

109

som, da voz articulada. Por isso, a partir das pesquisas de

Pavlov sobre psicologia animal e da formulação teórica de

Watson sobre a psicologia do comportamento

(Behaviorismo) predominou a tese da linguagem corporal,

segundo a qual não falamos apenas com palavras, mas

também com os movimentos do corpo. Não obstante, a

palavra conserva o domínio da expressão do pensamento,

tendo a mímica e a gesticulação como elementos

acessórios de expressão. Não importa que a mímica ou a

atitude de quem fala possa, não raro, modificar o própria

sentido da palavra. No centro do processo de comunicação

permanece a palavra como seu elemento essencial.

O problema da origem da palavra confunde-se com o

da origem da mímica e do rito. Se apontamos com o dedo

um objeto estamos nos referindo a ele. A palavra faz o

mesmo: refere-se a um objeto. Surgiu, portanto, com o

desenvolvimento da inteligência e a necessidade de

comunicação. Cada palavra é um signo, um sinal, um

gesto oral. Não apareceu milagrosamente na Terra, mas

pelo esforço do homem na elaboração dos seus

instrumentos de comunicação.

As religiões formalistas dão à palavra um caráter divino

e consideram os textos religiosos como a Palavra de

Deus. Mas é evidente que Deus, o Ser Absoluto, não

necessita dos meios relativos de comunicação de que

necessitamos. No Espiritismo considera-se a linguagem

dos seres superiores como apenas mental. Os espíritos

falam por telepatia. A linguagem telepática é a do

pensamento puro que costumamos traduzir em palavras.

Por sinal que a palavra telepatia não quer dizer apenas

transmissão mental de palavras, mas transmissão do

pathus individual de cada um, de seus pensamentos e suas

emoções, de todo o seu estado psíquico num dado

Page 110: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

110

momento. Basta isso para nos mostrar a riqueza da

linguagem telepática. A palavra de Deus, ou seja, a sua

forma de expressão, teria de ser ainda muito mais

complexa e rica.

Psicologicamente podemos figurar assim o mecanismo

da palavra: temos uma sensação provocada por estímulo

exterior ou interior, essa sensação produz em nosso

íntimo, em nossa afetividade, uma emoção e em nossa

vontade uma volição, um impulso de expressá-la, que

provoca na mente uma idéia daquilo que sentimos, um

conceito que se traduz em um ou vários sons articulados

que constituem uma palavra. Se quisermos gravar essa

palavra temos de recorrer às letras de um alfabeto.

Servimo-nos assim da linguagem oral e da linguagem

escrita para dizermos alguma coisa. O pensamento foi

traduzido em sons e depois em letras. Como podemos

aceitar que a palavra de Deus esteja num livro? Isso

equivale a submeter Deus ao nosso condicionamento

humano.

Por outro lado, costumamos dizer que a palavra é

criadora, tem o poder de criar. Por isso acredita-se que

Deus criou o mundo pela palavra. Trata-se de uma

alegoria, de uma simples imagem, mas as igrejas exigem

que aceitemos essa imagem como realidade. A imagem é

bela e podemos aceitá-la coma imagem. Deus disse: Faça-

se a Terra e ela se fez. Mas se tomarmos isso ao pé da

letra caímos no absurdo. Deus fala em nossa consciência e

em nosso coração, mas não fala por palavras, nem em

linguagem humana. Fala em sua linguagem divina, em sua

linguagem de Deus. Podemos compreender isso? Sim, se

prestarmos atenção à voz de Deus em nós, que nos fala por

intuições, pressentimentos, emoções. Ele toca as nossas

teclas internas e soamos como um piano. Mas quem

Page 111: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

111

poderia escrever o que Ele nos diz? Nós mesmos não o

pode-ríamos fazer.

Muitas pessoas ilustradas, doutoradas, ordenadas em

cerimônias religiosas não compreendem isso. Esperam a

voz de Deus como a de alguém que falasse através da

linguagem humana. E podem ouvir uma voz que lhes fala

no silêncio, como milhões de pessoas ouvem diariamente.

As pesquisas atuais da telepatia mostram que isso é

possível e até mesmo natural. Podemos receber

comunicações telepáticas de criaturas vivas e criaturas que

já morreram. E se esperamos a voz de Deus como voz

humana, certamente aceitaremos que Deus nos falou. Esse

o perigo dos que procuram comunicar-se com Deus

através de processos artificiais. Deus nos fala

naturalmente, quando estamos em condições de ouvir a

sua voz. Mas só ele sabe quando estamos nessas

condições. Os que querem ouvir a voz de Deus a qualquer

preço geralmente acabam pagando o alto preço do

fanatismo ou da obsessão por uma voz de espírito inferior.

Uma experiência de Deus que pode mandar-nos ao inferno

das perturbações aqui mesmo, na Terra.

Mas se estamos pensando em Deus, dirá o leitor, como

podemos ser assediados por vozes intrusas? Quando

pensamos em Deus com pretensões descabidas, desejando

ser melhores que os outros, separar-nos do rebanho dos

impuros, arriscamo-nos a ficar sozinhos. Os fariseus

orgulhosos oravam no Templo e nas esquinas das ruas,

julgando-se os privilegiados de Deus, mas Jesus os

chamou de hipócritas, sepulcros caiados e cheios de

podridão por dentro. Deus não faz acepção de pessoas.

De nada valem os rituais pomposos que só nos

lembram as épocas de falso esplendor dos homens que se

diziam ungidos e coroados por Deus. De nada vale a

Page 112: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

112

leitura dos livros sagrados para a nossa salvação pessoal,

ajeitando-nos comodamente no carro particular dos

eleitos. Deus não quer a fidelidade forçada dos filhos que

ele criou para a herança divina através das experiências da

vida. Seu plano está evidente no espetáculo do mundo.

Passam as gerações e as civilizações na roda das ilusões,

mas Deus espera paciente por cada um de nós. Precisamos

compreender que somos criaturas em evolução e que se

Deus nos colocou no mundo não foi pelo pecado ingênuo

de Adão e Eva, mas porque precisamos evoluir através das

experiências da vida. Todos nós fomos feitos do mesmo

barro, segundo a alegoria bíblica que o Espiritismo explica

de maneira tão grandiosa e tão lógica. Somos partes da

obra de Deus e não fomos destinados à perdição, mas à

salvação. Mas não é através de ritos e palavras que

podemos livrar-nos de nossos erros. Temos de acertar, de

corrigir-nos. Deus nos espera.

Não devemos extraviar-nos nas ilusões da Terra, para

não retardar a nossa evolução para Deus. Entre essas

ilusões estão a da santidade fácil, a da hipocrisia que nos

leva a considerar-nos melhores que a maioria, a da

pretensão de podermos passar através de ritos e

sacramentos ao mundo dos eleitos, a audácia de querermos

ouvir a voz de Deus em particular, enquanto ela soa no

mundo para todos ouvirem. O maior pecado é o da fuga à

vida, às experiências que nos desafiam. Nascemos para

viver a vida e precisamos vivê-la sem apego às coisas do

mundo, mas sem rejeição ao mundo, que é obra de Deus.

Esse difícil equilíbrio é o objetivo da nossa ginástica

existencial. Jesus preferiu Zaqueu e Madalena aos

doutores do Templo, não condenou a mulher adúltera nem

a enviou aos juizes do Sinédrio, aconselhando-a apenas a

afastar-se da vida desregrada. Não adianta buscarmos a

Page 113: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

113

Deus em longas meditações, recusando o caminho que ele

mesmo nos deu para irmos ao seu encontra: o da vida

honesta e cheia de amor e compreensão para todos os

nossos companheiros da existência terrena. A Terra é a

nave celeste que Deus nos deu para alcançarmos as muitas

moradas da Casa do Pai.

Page 114: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

114

Capítulo 13

Revolução Cósmica

Em meados do Século XIX ocorreu uma abertura

cósmica para o homem em todos os sentidos. Três séculos

após a Revolução Copérnica, que começara a demolir o

geocentrismo de Ptolomeu, Kardec rompia o

organocentrismo da concepção científica do homem, que

tinha em seu apoio a tradição religiosa judeu-cristã.

Nicolau Copérnico escrevera em latim o seu tratado De

Revolucionibus Orbium Celestium (Das Revoluções das

Orbes Celestes) que só foi publicado em 1543, após a sua

morte, e condenado pelo Papa Paulo V. Kardec publicou

“O Livro dos Espíritos”, em 1857, que também não

escapou à dupla condenação da Igreja e da Ciência.

A concepção da vida como inerente às estruturas

orgânicas foi o último refúgio do geocentrismo. Já que a

Terra não era o centro do Universo, o homem sustentava a

sua vaidade e o seu orgulho considerando-se o centro da

vida. Isso é evidente ainda hoje, transparecendo na luta

desesperada das religiões contra a concepção espírita do

homem e na desesperada resistência das Ciências à

evidência resultante de suas próprias conquistas. Na

América e na Europa de hoje as declarações positivas de

Rhine, Soal, Carington e outros sobre a existência de um

conteúdo extrafísico nos seres humanos e de sua

sobrevivência à morte orgânica são combatidas

ferozmente e classificadas como ridículas. É um curioso

espetáculo na arena intelectual, em que vemos o homem

lutando, por orgulho, para sustentar que não é mais do que

pó e cinza.

Page 115: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

115

Podem os clérigos argumentar que nas religiões não se

passa o mesmo, pois os princípios religiosos sustentam a

concepção metafísica do homem. Entretanto, pode-se

aplicar às religiões a advertência de Descartes quanto ao

perigo de fazer-se confusão entre alma e corpo. Enquanto

para o Espiritismo a alma é o espírito que anima o corpo,

havendo nítida distinção entre um e outro, as religiões

admitem a unidade substancial de alma e corpo, de tal

maneira que a ressurreição se verifica no próprio corpo. A

complexa teoria de matéria e forma, de Aristóteles, deu

muito pano para manga na teologia medieval, resultando

na doutrina da forma substancial, em que forma é

substância e substância é forma. Em conseqüência,

matéria e forma se misturam e não se sabe como explicar

o homem sem a sua estrutura orgânica de matéria, pois

chega-se mesmo a sustentar que o homem é pó e em pó se

reverterá na morte.

Opondo-se a essa posição restritiva, que reduz o

homem á condição de bicho da terra, segundo a expressão

camoneana, o Espiritismo o reintegra na dignidade de sua

natureza espiritual e reajusta a sua imagem no panorama

cósmico. A manifestação dos mortos, demonstrando que

continuam vivos e atuantes noutra dimensão da vida, e que

continuam a ser o que eram apesar de não mais possuírem

o corpo material, não deixa nenhuma possibilidade de

dúvida sobre a diferença entre conteúdo e continente, entre

espírito e corpo. A confusão de forma e substância

resolve-se com a demonstração da estrutura tríplice do

homem: o espírito é a substância, a essência necessária, o

ser do primado ôntico de Heideggar; o perispírito (corpo

espiritual ou bioplásmico) é a forma da hipótese

aristotélica, o padrão estrutural dos biólogos soviéticos; o

corpo é a matéria que nos dá o ser existencial. Essa é a

Page 116: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

116

tese espírita dos dois seres do homem: o ser do espírito e o

ser do corpo.

E o não-ser, como queria Hegel, não é um ente

especifico e autônomo, oposto ao ser, mas inerente ao ser

de relação ou existencial, ligado a ele na existência como

contrafação, determinado pela oposição da existência ao

ser. É o que vemos no problema da relação Deus-Diabo,

em que a figura do Diabo só é tomada em sentido

mitológico, nunca real, como personificação das forças do

passado, que pesam sobre o ser existencial, embaraçando-

lhe o desenvolvimento. O não-ser é o que não quer ser,

não quer atualizar-se na existência, mas permanecer o que

era, apegado aos resíduos das fases anteriores ao ser. Uma

das funções do ser é absorver o não-ser para levá-lo a ser,

segundo a tese da passagem do inconsciente ao consciente,

de Gustave Geley.

É assim que o homem se reintegra, pela concepção

espírita, na realidade cósmica. Não é mais um ser isolado

na Criação, privilegiado pela inteligência e amesquinhado

pela morte, não é mais aquela paixão inútil de Sartre que o

tempo consome e reduz a nada. O homem é a síntese

superior produzida pela dialética da evolução criadora de

Bergson nos reinos inferiores da Natureza, a partir das

entranhas da Terra. No seu curso de milhões e milhões de

anos, a partir da mônada oculta na matéria cósmica,

impulsionado na ascensão filogenética das coisas e dos

seres, passando pelas metamorfoses de uma ontogenia

assombrosa, ele atingiu a consciência e descobriu a marca

de Deus em si mesmo. Herdeiro de Deus e co-herdeiro de

Cristo, segundo a expressão do Apóstolo Paulo, o homem

não está condenado à frustração da morte, mas destinado à

vida em abundância na plenitude do espírito.

Page 117: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

117

Não é fácil à mentalidade necrófila desenvolvida pelas

religiões da morte, sob o peso esmagador da escatologia

judaica e da tragédia grega, compreender essa visão nova

do homem como um ser cósmico. Por isso acusa-se o

Espiritismo de reativar antigas superstições e voltar à

concepção da metempsicose egípcia elaborada pelo gênio

de Pitágoras. Não percebe essa mentalidade que a teoria

pitagórica da metempsicose impunha-se ao sistema do

filósofo por uma intuição do seu próprio gênio e pela

necessidade lógica. O homem pitagórico antecipou o

homem do Espiritismo na medida possível das grandes

antecipações históricas. Era um homem cósmico por

antevisão, tão integrado e entranhado na realidade

universal que não podia escapar do círculo vicioso das

formas se não despertasse em seu íntimo os poderes

secretos da mônada. O conceito do homem em Pitágoras é

infinitamente superior ao das religiões atuais e ao das

filosofias do desespero e da morte em nosso século.

Quando Pitágoras falava da música das esferas não se

embrenhava nas superstições, mas abria a mente de seus

discípulos para a visão real do Cosmos, que só em nosso

tempo se tornaria acessível a todos. Mais tarde, Jesus

também anunciaria as muitas moradas do Infinito e

ensinaria o principio da ressurreição e das vidas

sucessivas, estarrecendo um mestre em Israel que não

sabia dessas coisas. Já numa fase mais avançada da

evolução terrena, Jesus não se referia à metempsicose, mas

à palingenesia do pensamento grego, à transformação

constante dos seres e das coisas no desenvolvimento do

plano divino. Nesse mesmo tempo, nas antigas Gálias, os

celtas, que para Aristóteles eram um povo de filósofos,

divulgavam esses mesmos princípios pela voz dos seus

bardos, poetas-cantores das tríades sagradas. E entre eles,

Page 118: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

118

como um druida, Kardec se preparava para a sua missão

futura na França do Século XIX.

Vemos assim duas linhas paralelas na filogênese

humana: de um lado temos a evolução do principio

inteligente a partir dos reinos inferiores da Natureza, onde

a mônada, a semente espiritual lançada pelo pensamento

divino, desenvolve as suas potencialidades numa

seqüência natural em que podemos perceber as seguintes

etapas: o poder estruturador no reino mineral, a

sensibilidade no vegetal, motilidade do animal, o

pensamento produtivo no homem. A este esquema linear

temos de juntar a idéia do desenvolvimento simultâneo de

todas essas potencialidades, num crescendo incessante,

num processo dialético de dinamismo tão intenso e

complexo que mal podemos imaginar. Foi isso que levou

Gustave Geley, o grande sucessor de Richet, a considerar

a existência em todas as coisas de um dinamismo-

psíquico-inconsciente que rege toda a evolução. Que

abismo entre essa concepção da gênese universal que o

Espiritismo oferece e a gênese alegórica das religiões! E

mesmo em relação à gênese científica podemos notar a

superioridade da concepção espírita, que não se restringe à

idéia de um processo dinâmico de forças desencadeadas

no plano superficial da matéria, mas penetra nas entranhas

do fenômeno para descobrir o número, a essência

determinante do processo e os objetivos graduais e

conscientes que são acessíveis à nossa percepção e

compreensão. A criação do homem, a sua natureza e o seu

destino tornam-se inteligíveis. Édipo decifra os mistérios

da Esfinge.

Apesar disso, há criaturas que acusam o Espiritismo de

doutrina simplória, de simples abecê da Espiritualidade,

curso primário de iniciação nos conhecimentos superiores

Page 119: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

119

da realidade universal. Enganam-se com a linguagem

simples das obras de Kardec, através da qual o mestre

francês colocou ao alcance de todos, graças a um processo

didático dificílimo de se atingir e aplicar, os mais graves

problemas que os sábios do futuro teriam de enfrentar,

como estão enfrentando neste momento. A simplicidade

de Kardec é tão enganosa como a de Descartes. À maneira

do Discurso do Método, “O Livro dos Espíritos” é um

desafio permanente à argúcia e ao bom-senso dos sábios

do mundo. Esses dois livros nos lembram a simplicidade

enganosa dos ensinos de Jesus, que os teólogos enredaram

em proposições confusas, não compreendendo o seu

sentido profundo e impedindo os simples de compreendê-

lo.

Mas voltemos às duas linhas paralelas da filogênese

humana, para tratar da segunda. Na primeira tivemos o

processo natural de desenvolvimento das potencialidades

do princípio inteligente, que podemos comparar ao

crescimento da criança e aos primeiros cuidados com a sua

educação. Temos de aguardar o desenvolvimento orgânico

da criança para que as suas possibilidades mentais se

revelem. E temos então de orientar as suas disposições

naturais para o aprendizado escolar. O que vimos na

primeira paralela foi exatamente esse processo. Quando as

potências da mônada atingiram o desenvolvimento

necessário à sua individualização definitiva, como criatura

humana, e a consciência mostrou-se estruturada, começou

então o processo da sua maturação e do seu aprendizado.

O clã, a tribo, a horda, a família e as formas sucessivas de

civilização representam as etapas da segunda linha

paralela, em que se verifica o desenvolvimento cultural. A

inteligência, já formada, vai ser cultivada ao longo do

tempo, nas gerações sucessivas. As diferenciações

Page 120: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

120

monádicas intuídas por Leibniz, como as diferenciações na

constituição atômica verificadas pela Física atual,

respondem pelas características diversas e diversificadoras

das criaturas humanas em substância e forma. Essas

diferenciações não são apenas individuais, mas também

grupais, determinando por afinidade os grupos familiais e

raciais. Os elementos da natureza, do meio físico, e as

miscigenações, as misturas raciais e culturais, contribuirão

para acentuar as diversificações no decorrer do tempo.

Nota-se a existência de um dispositivo protetor das raças e

culturas em desenvolvimento, nas primeiras fases do

processo, com o isolamento dos grupos afins nos

continentes. Mas esse dispositivo não é artificial, entrosa-

se naturalmente no processo evolutivo, em que todas as

condições necessárias decorrem das variantes evolutivas.

São inerentes ao processo.

Quando os vários grupos amadureceram

suficientemente e conquistaram um grau relativamente

elevado de civilização, inicia-se a fase das conquistas, da

dominação dos grupos mais poderosos sobre os mais

fracos, numa longa e penosa elaboração de novas

condições de vida e cultura. Kerschensteiner coloca o

problema da cultura subjetiva e da cultura objetiva, a

primeira correspondendo ao plano das idéias, da

elaboração intelectual, a segunda ao plano da prática, do

fazer, das realizações materiais.

E Ernst Cassirer mostra como a cultura objetiva

conserva em suas obras materiais, gravadas nos objetos, as

conquistas subjetivas de uma civilização morta. A

Renascença, por exemplo, revela como as conquistas

espirituais do mundo clássico greco-romano foram

arrancadas das ruínas e dos arquivos aparentemente

perdidos e reelaboradas pelo mundo moderno. Dewey, por

Page 121: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

121

sua vez, acentua a importância da reelaboração da

experiência nas gerações sucessivas.

Mas quando chegamos ao ponto em que hoje estamos,

prontos para um salto cultural de natureza qualitativa,

ainda não podemos considerar-nos como obra concluída.

Como observou Oliver Lodge, o homem ainda não está

acabado, mas em fase talvez de acabamento. Sim, talvez,

porque o nosso otimismo e a nossa vaidade podem

enganar-nos a respeito do nosso estágio atual de

realização. A própria situação da Terra, isolada no espaço

e só agora tentando a expansão cósmica, deve advertir-nos

de que ainda não estamos preparados para ingressar na

comunidade dos mundos superiores. Somos ainda um

obscuro e grosseiro subúrbio da Cidade de Deus e só à

distância podemos vislumbrar o esplendor da luminária

celeste na imensidade cósmica. Nossos próprios meios de

penetração no espaço sideral são demasiado rudimentares

e precários. Nossos corpos animais não nos permitem

viver em condições superiores às da Terra. O

desenvolvimento de nossos poderes psíquicos está ainda

começando e nossa capacidade mental, condicionada por

um cérebro de origem animal, não vai muito além dos

processos indutivos e dedutivos, mal arranhando o litoral

esquivo do mundo da intuição. Como assinala Remy

Chauvin, nem mesmo conseguimos atingir uma

organização social superior, permanecendo ainda num

plano de barbárie, estruturado em princípios ilógicos

decorrentes da selva, com o predomínio da força sobre o

direito.

Não obstante, estamos avançando mais rapidamente do

que nunca. E se a nossa vaidade e o nosso egoísmo não

nos cegarem por completo, se formos capazes de

reconhecer no Espiritismo a doutrina que encerra o

Page 122: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

122

esquema do futuro, a plataforma espiritual, política e

social do novo mundo que temos de construir no planeta –

não mais a ferro, fogo e sangue – mas a golpes de

inteligência, compreensão e fraternidade, então poderemos

atingir a maturidade humana. Caso contrário retornaremos

à selva, recomeçaremos de novo o nosso aprendizado

desde o princípio, reiniciaremos o curso desperdiçado das

instruções superiores. E não teremos mais em nossa

companhia os que souberam vencer, pois cabe-lhes o

direito de se transferirem para os cursos universitários da

Cidade de Deus, em que o Pai certamente os matriculará.

A escolha nos pertence, a decisão é nossa. Deus nos

concedeu, com a consciência, o direito e o dever das

opções.

Kardec sabia o que fazia, quando evitava a confusão do

Espiritismo com as religiões dogmáticas e formalistas,

sem entretanto negar ao Espiritismo o seu aspecto

religioso. Teve mesmo o cuidado de não cortar em excesso

as ligações da doutrina com a tradição religiosa, pois sabia

que a evolução não pode sofrer, sem graves perigos de

solução de continuidade. O princípio espírita do

encadeamento de todas as coisas no Universo estava

presente em sua mente. Poucas obras revelam uma

compreensão tão clara e profunda da natureza orgânica do

Universo, como a Codificação. E por isso, e não por

sectarismo ou fanatismo, que não podemos fazer

concessões ao passado no campo das atividades

doutrinárias. Avançamos para um novo mundo que só o

Espiritismo pode modelar, pois só ele revela condições

para isso em sua estrutura doutrinária. Mas se não

procurarmos compreendê-lo em toda a sua grandeza, é

certo que o reduziremos a uma seita fanática de crentes

obscurantistas. Evitemos essa queda no passado, para nós

Page 123: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

123

mesmos e para o mundo. Tenhamos a coragem de avançar

sem muletas e sem temor para a Civilização do Espírito.

Page 124: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

124

Capítulo 14

O Problema da Violência

Chamamos Civilização do Espírito aquela em que os

poderes espirituais regerão a vida social. Para isso é

necessário que a sociedade seja constituída por seres

morais, criaturas formadas nos princípios da moral-

consciencial. Essa moral corresponde ao que Hubert

considera as exigências da consciência. Não se trata, pois,

de um conceito de moral metafísica, de uma formulação

utópica de sonhadores. Mesmo que o fosse, a definição da

utopia por Karl Mannheim nos socorreria quanto à sua

validade. Se as utopias são, como quer Mannheim,

percepções antecipadas de realidades futuras –

possibilidade provada pelas pesquisas parapsicológicas –

nem assim estaríamos tratando de hipóteses vazias. Mas

quando aludimos à consciência estamos pisando na terra e

não olhando para o céu. A consciência é um dado positivo,

uma realidade antropológica e social que ninguém se

atreveria a contestar. Ela rege a nossa vida, o nosso

comportamento nas relações humanas e por isso se projeta

de maneira inegável no plano do sensível.

Sabemos que a consciência varia de graus no tocante à

sua estrutura e à sua coerência. E sabemos também quais

os perigos concretos de uma consciência imatura, ainda

não suficientemente definida, e portanto frouxa ou

incoerente, contraditória, que pode produzir catástrofes no

âmbito da sua influência ou do seu domínio. As variações

da moral entre os grupos humanos e as próprias

civilizações decorrem mais da posição da consciência

dominante na sociedade do que dos fatores mesológicos e

suas conseqüências econômicas. No plano religioso a

consciência é um fator determinante da realidade religiosa.

Page 125: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

125

A consciência judaica de Saulo de Tarso fez dele um

perseguidor sanguinário dos cristãos primitivos, o

lapidador cruel de Estevão. Mas, ao ajustar a sua

consciência aos princípios cristãos, ele se transformou no

Apóstolo dos Gentios e no maior propagador do

Cristianismo.

As exigências da consciência são sempre as mesmas em

todos os homens. As variações de graus e de coerência

decorrem do processo de maturação e das condições de

meio e educação. A consciência amadurece na proporção

em que as experiências vão revelando ao espírito o seu

anseio latente de transcendência. A vontade de potência,

de Nietzshe, é o primeiro impulso que leva o homem,

ainda na selva, a querer sobrepujar os outros, elevar-se

acima das condições gerais do meio. Esse impulso se

prolongará no processo evolutivo. O homem se envaidece

com a sua capacidade de subjugar os outros, de mandar, de

impor medo, respeito, submissão aos demais. Sua

consciência se abre no plano individual, fechada nos

limites de si mesma. É o reconhecimento do seu poder que

naturalmente o embriaga e o levará a excessos perigosos.

Mas na proporção em que os liames do clã se

desenvolvem, o parentesco, a simpatia e as afinidades se

revelam, a embriaguez do poder vai sendo atenuada,

contida pela percepção dos limites inevitáveis. Depois, o

esgotamento progressivo das forças físicas e o perigo das

doenças, das competições com iguais ou mais fortes, e por

fim a certeza da morte irão abatendo a sua arrogância. Nas

reencarnações sucessivas essas experiências se renovam,

mas o impulso de transcendência se acentua, levando-o a

procurar outros meios de superação: o poder social, a

hipocrisia, a estratégia das posses materiais e das posições

de mando. Só lentamente, ao longo do tempo, sujeito às

Page 126: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

126

reações que o enredam em situações difíceis, muitas vezes

torturantes, sua consciência começa a abrir-se para o

respeito aos direitos dos outros. A interação social, na

recíproca das obrigações e das necessidades, na

transformação dos instintos em sentimentos, irá pouco a

pouco despertando-o para novas dimensões consciênciais.

A violência do homem civilizado tem as suas raízes

profundas e vigorosas na selva. O homo brutalis tem as

suas leis: subjugar, humilhar, torturar, matar. O seu valor

está sempre acima do valor dos outros. A sua crença é a

única válida. O seu modo de ver o mundo e os homens é o

único certo. O seu deus é o único verdadeiro. Só o que é

bom para ele é bom para a comunidade. Os que se opõem

aos seus desígnios devem ser eliminados pelo bem de

todos. A violência é o seu método de ação, justificado pelo

seu valor pessoal, pela sua capacidade única de julgar.

Tece ele mesmo a trama de fogo do seu futuro nas

encarnações dolorosas que terá de enfrentar. As religiões

da violência fizeram de Deus uma divindade implacável e

os livros básicos de suas revelações estão cheios de

homicídios e genocídios em nome de Deus.

Não obstante, misturam-se às ordenações violentas

estranhos preceitos de amor e bondade. São as lições de

consciências desenvolvidas lutando para despertar as que,

endurecidas no apego a si mesmas, asfixiam os germes do

altruísmo nas garras do egoísmo. É um espetáculo

dantesco o de uma alma vigorosa dotada de intelecto

capaz de entender as suas próprias contradições, mas

empenhada em negar a sua condição humana, rebaixando-

se aos brutos ao invés de buscar a elevação moral a que se

destina. Nos momentos de transição, como este que

estamos vivendo, a violência desencadeada exige a

oposição vigorosa e sacrificial dos que já atingiram o

Page 127: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

127

desenvolvimento consciencial da civilização. A

cumplicidade com as práticas de violência, por parte de

consciências esclarecidas, retarda a evolução coletiva e

rebaixa o cúmplice a posições indignas. O mesmo

acontece no tocante à aceitação de princípios errôneos por

conveniência. O espírito se coloca então em luta consigo

mesmo, negando o seu próprio desenvolvimento

consciencial e ateando em si mesmo a fogueira dos

remorsos futuros.

A Civilização do Espírito se torna, assim, o resultado

de um parto doloroso. Mas, como todos os partos, tem de

ser feito. E se acaso for possível o aborto, a civilização se

fechará sobre si mesma e todos os responsáveis

mergulharão com ela nas trevas da miséria moral. As fases

de transição, na evolução dos mundos, são também fases

de julgamento individual das criaturas que os habitam. Daí

o mito do Juízo Final, em que todos serão julgados. Mas

não haverá um Tribunal Divino nas nuvens, porque esse

tribunal está naturalmente instalado na consciência de

cada indivíduo. A presença do julgador é onímoda e fatal,

porque cada qual será juiz implacável e inevitável de si

mesmo.

A agonia das religiões é a agonia de um mundo. Por

isso a Terra inteira participa dessa mesma agonia. A queda

dos deuses mitológicos do mundo clássico foi também a

queda dos grandes impérios. Em vão César procurou

desligar-se de Júpiter e aceitar o Deus Único. A conversão

do Império foi a sua própria morte. A Idade Média

procurou restabelecer o reino da violência em nome de

Jesus. Durou um milênio, pois a integração dos bárbaros

na ordem cristã exigia uma reelaboração demorada e um

reajuste penoso das contradições culturais. O

Renascimento marcou o advento do que parecia ser, na

Page 128: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

128

verdade, uma civilização cristã. Mas os resíduos da

violência continuaram a fermentar nas novas estruturas

sócio-culturais. A prova histórica de que a carga de

violência era enorme está hoje aos nossos olhos, na

explosão de violências em todos os níveis do mundo

contemporâneo. Nossa esperança é a de que essa explosão

seja a catarse final. O homo brutalis vai desaparecer. Mas

para isso é necessário o despertar de novas dimensões na

consciência atual. Não será sustentando e justificando as

estruturas religiosas envelhecidas, submissas às

ordenações do passado bíblico, que facilitaremos o

advento da nova era. Muito menos pela negação da própria

essência, do homem, através de ideologias materialistas. A

busca da intimidade pessoal com Deus, em termos

fantasiosos, ou a negação de Deus em nome de uma razão

ilógica são formas contraditórias de asfixia da consciência.

A rejeição do Evangelho ou a manutenção de sua

interpretação sectária equivalem igualmente à negação dos

valores espirituais do homem. A estrutura moral da

consciência está delineada de maneira indelével nas

páginas do ensino moral de Jesus. Temos de aprofundar o

seu estudo e procurar aplicá-lo em nossa vivência social.

A civilização Cristã vai sair agora do tubo de ensaio,

concretizar-se na forma real de uma Civilização do

Espírito, em que os princípios espirituais se encarnarão

nas normas de conduta, nas formas de comportamento do

Novo Homem.

O problema das relações humanas, colocado em forma

de etiqueta nas velhas civilizações nobiliárquicas do

Oriente e do Ocidente, formalizado ao extremo nos

tempos feudais, e convertido em protocolo de

conveniências no mundo moderno e contemporâneo, terá

de voltar ao ponto de partida dos ensinos e dos exemplos

Page 129: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

129

de Jesus. A regra áurea do amor prevalecerá num mundo

regido pela moral consciencial. Porque a primeira

exigência da consciência humana é a do amor ao próximo,

desprezada e amesquinhada nas sociedades mercenárias a

ponto de levar-nos ao seu contrário – o ódio, essa cegueira

do espírito, que gera e sustenta a violência no mundo.

O pragmatismo das sociedades contemporâneas

coisificou o homem, o que vale dizer que o nadificou no

plano moral. Pior do que a nadificação pela morte, da

teoria de Sartre, é essa nadificação em vida que reduz a

criatura humana a objeto de uso. O homem retorna a

condição dos instrumentos vocais de Cícero, um

instrumento que fala. Pode ser incluído entre os úteis ou

amanuais de Heidegger, objetos manuseáveis. O public-

relations de hoje é o fâmulo medieval aprimorado pela

técnica, domesticado para sorrir e curvar-se em todas as

ocasiões, pois o que importa é sempre o lucro, o que vale é

a relação social em termos de vantagens, sempre que

possível, pecuniárias. Esse aviltamento total do homem

abriu as comportas da violência represada debilmente

pelas barreiras artificiais da civilização. Como estamos

vendo no panorama mundial da atualidade, com exemplos

gritantes diariamente divulgados pelos meios de

comunicação, a besta-fera das selvas arrombou as jaulas

convencionais e tripudia sobre a fragilidade humana.

Contra essa realidade exasperante, de nada valem os

sermões, as pregações, as ladainhas e outras preces labiais.

O mesmo indivíduo que se ajoelha diante das imagens, nos

templos suntuosos, volta ao seu posto de mando para

ordenar torturas canibalescas. Está certo que Deus o

aprova, pois age em defesa da civilização cristã, aviltando

aqueles pelos quais o Cristo morreu, segundo lembrou

Stanley Jones. No começo do século, Léon Tolstoi já

Page 130: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

130

advertia que estamos numa era de nova antropofagia,

então requintada pelas técnicas modernas. Hoje, na era

tecnológica, os instrumentos de opressão, tortura e

aniquilamento do homem atingiram a máxima perfeição

diabólica. Tudo isso porque? Porque a deformação da

mente e o aviltamento da consciência desumanizou o

homem.

Seria loucura responsabilizar unicamente as religiões

por essa calamidade. Mas seria hipocrisia querer isentá-las

de culpa. Elas se apegaram à matéria em nome do espírito

e asfixiaram este em suas estruturas pragmáticas. Cabe-

lhes pelo menos metade da culpa, pois que se fizeram

mestras e orientadoras da civilização, participando

ativamente dos maiores desmandos através dos séculos,

quando não os dirigia. Estatizando-se ou não, todas elas

trocaram o mandato divino pelos poderes de César. E se

não se aniquilaram mutuamente, não foi por piedade, mas

porque jogaram habilmente a sua sorte sobre a túnica do

crucificado e os dados romanos favoreceram a todas.

Apesar dessa voracidade mundana, almas valentes como a

de Lutero, humildes e piedosas como a de Francisco de

Assis, irredutíveis como a de John Huss, límpidas como a

de Maria D'Ageada sacrificaram-se para tentar salvá-la e

insuflar-lhes a seiva cristã de seus novos exemplos.

Os mártires da fé não foram apenas perseguidos e

esmagados pelos ímpios. Dentro de suas próprias

confissões religiosas, nos calabouços medievais que

refletiam o Inferno na Terra, e até mesmo no mundo

moderno, apesar dos trágicos exemplos históricos, em

nações profundamente marcadas pelo fogo do fanatismo

religioso, milhares de mártires continuaram sofrendo as

ameaças e os castigos do Deus bíblico implacável, através

de seus estranhos e temíveis capatazes. Ainda não surgiu,

Page 131: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

131

infelizmente, o gênio da Psicologia que deverá, mais cedo

ou mais tarde, realizar a análise assombrosa dos

complexos sem nome de misticismo, sadismo e barbárie

que Freud apenas aflorou em suas pesquisas da libido.

Será um balanço apocalíptico da escatologia das religiões

da violência.

Não proponho estes problemas em tom de acusação,

mas de análise. Os maiores mártires, na verdade, foram os

próprios carrascos, que aviltaram primeiro a si mesmos,

condenando-se perante o tribunal da consciência, cujas

auto-sentenças brotam como labaredas das próprias

entranhas do criminoso, digno de piedade e perdão como

todas as criaturas humanas. Minha intenção é apenas a de

prevenir, sacudir e acordar os que continuam errando, na

vaidosa ilusão de uma investidura divina contrária aos

princípios fundamentais do Evangelho. A imortalidade do

ser é a sua própria e irreversível condenação, ante as leis

de Deus inscritas em sua consciência. A vantagem do

Espiritismo, entre todas as doutrinas filosóficas do nosso

tempo, é a de colocar os problemas do homem, mesmo no

campo religioso, em termos de razão e naturalidade,

eliminando os resíduos do sobrenatural que pesaram

esmagadoramente sobre o passado, sem cair no ceticismo

e no agnosticismo. Essa posição suis generis do

Espiritismo permite-lhe preparar o homem atual para uma

existência normal e digna no futuro, desde que os

espíritas, tão sobrecarregados de heranças religiosas

deformantes, não venham a cair nas mesmas e nefastas

ilusões da investidura divina e da institucionalização

hierárquica das religiões da violência. Não escrevi este

ensaio com fins proselitistas, pois uma doutrina aberta,

sem finalidades salvacionistas, fundada em métodos

científicos de observação e pesquisa, como o próprio

Page 132: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

132

Kardec afirmou, não é uma caçadora de adeptos. O que lhe

interessa não é combater as religiões ou tirar de suas

fileiras os que nelas se sentem bem, mas apenas oferecer

aos homens de bom-senso uma visão realista e por isso

mais ampla e mais profunda do homem e do seu destino

no espaço e no tempo. Só essa compreensão racional e

superior do Universo, em que o homem aparece integrado

nas leis naturais, poderá modificar a mentalidade confusa

e contraditória do nosso tempo e preparar-nos para a Era

Cósmica, na qual a Terra só poderá entrar com a

Civilização do Espírito. Nessa civilização, que será a única

digna dessa classificação, a única civilização autêntica, os

homens estarão investidos do único mandato realmente

divino (considerando-se o divino como uma categoria

superior à do humano) que decorre das exigências de sua

consciência moral.

René Hubert interpreta a Educação, no seu Traité de

Pedagogie Generale, como um processo que tem por

finalidade estabelecer na Terra a solidariedade de

consciências, da qual resultará uma estrutura política e

social que ele chama de República dos Espíritos. É essa

República, em que a rés não se limita às coisas materiais,

mas se estende sobretudo às consciências, proclamando o

primado do espírito no planeta, que o Espiritismo pretende

atingir pelo trabalho e a compreensão dos homens. Porque

a tarefa é nossa e não de entidades mitológicas de qualquer

espécie.

Se insisto na tônica do Cristianismo não é por

menosprezo às demais correntes de pensamento religioso,

mas porque a experiência histórica, apesar de todos os

pesares já anteriormente referidos, prova que somente ele

mostrou-se capaz de reformular o mundo em sua

globalidade. As energias espirituais e a orientação racional

Page 133: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

133

do ensino moral do Cristo, encerrado no complexo de

mitos dos Evangelhos, são, segundo entendo, os elementos

que podem e realmente já estão balizando o futuro da

humanidade terrena. O importante é chegarmos a esse

futuro pelos meios adequados, com o mínimo de conflitos

criminosos e o máximo de compreensão racional dos

nosso objetivos. Como observou Gandhi em suas

memórias, os meios que nos podem levar à verdade e à

dignidade só podem ser verdadeiros e dignos. Esses meios

não precisam da justificação dos fins, pois justificam-se

por si mesmos.

– Fim –

Page 134: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

134

Ficha de identificação literária

J. Herculano Pires nasceu em 25/09/1914 na antiga

província de Avaré, no Estado de São Paulo e desencarnou

em 09/03/1979, em São Paulo. Filho de José Pires Correa

e de Da. Bonina Amaral Simonetti Pires. Fez seus

primeiros estudos em Avaré, Itaí e Cerqueira César.

Revelou sua vocação literária desde que começou a

escrever. Aos 16 anos publicou seu primeiro livro, Sonhos

Azuis (contos) e aos 18, o segundo livro Coração (poemas

livres de sonetos). Já colaborava nos jornais e revistas das

cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Foi um dos

fundadores da União Artística do Interior. Mudou-se para

Marília em 1940 onde adquiriu o jornal Diário Paulista e

o dirigiu durante 6 anos. Com José Geraldo Vieira,

Zoroastro Gouveia, Osório Alves de Castro, Nichemja

Sigal, Anathol Rosenfeld e outros promoveu, através do

jornal, um movimento literário na cidade e publicou

Estradas e Ruas (poemas) que Érico Veríssimo e Sérgio

Millet comentaram favoravelmente. Em 1946 mudou-se

para São Paulo e lançou seu primeiro romance, O

Caminho do Meio, que mereceu criticas elogiosas de

Afonso Schimidt, Geraldo Vieira e Wilson Martins.

Repórter, redator, secretário, cronista parlamentar e crítico

literário dos Diários Associados onde manteve, também,

por quase 20 anos, a coluna espírita com o pseudômino de

Irmão Saulo. Exerceu essas funções na Rua 7 de Abril por

cerca de trinta anos. Em 1958 bacharelou-se em Filosofia

pela Universidade de São Paulo, e pela mesma

Universidade licenciou-se em Filosofia tendo publicado

uma tese existencial: O Ser e a Serenidade. Autor de 81

livros de Filosofia, Ensaios, Histórias, Psicologia,

Espiritismo e Parapsicologia, sendo a sua maioria

Page 135: Herculano Pires - Agonia das Religiões espiritas classicos... · religiões iniciou-se no fim da Idade Média. Com o Renascimento, houve a explosão cultural e científica iniciada

135

inteiramente dedicada ao estudo e à divulgação da

Doutrina Espírita, e vários de parceria com Chico Xavier.

Lançou, recentemente, a série de ensaios Pensamento da

Era Cósmica e a série de romances de Ficção Científica e

Paranormal. Foi diretor-fundador da Revista de Educação

Espírita publicada pela Edicel. Em 1954 publicou

Barrabás que mereceu Prêmio do Departamento

Municipal de Cultura de São Paulo em 1958, constituindo

o primeiro volume da trilogia Caminhos do Espírito. Em

1975 publicou Lázaro e, com o romance Madalena,

editado pela Edicel em maio de 1979, a concluiu.

Ao desencarnar, deixou vários originais os quais vêm

sendo publicados pelas Editoras Paidéia e Edicel.