herança cristã da experiência de sentido - a partir de lima vaz -_renato_akira_shimmi

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 1 FACULDADE DE SÃO BENTO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO Herança Cristã da Experiência de Sentido na Crise da Modernidade   considerações a partir do pensamento de Lima Vaz Renato Akira Shimmi Dissertação apresentada na data de 16/12/2011 ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Filosofia. Àrea de Concentração: Ética e Política Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopold o e Silva São Paulo 2011

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Atenção: o presente texto não foi revisado ortograficamente. Alguns erros de pontuação e parágrafos decorrem da exclusão de trechos ou da correção de citações.FACULDADE DE SÃO BENTOPROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICOHerança Cristã da Experiência de Sentido na Crise da Modernidade – considerações a partir do pensamento de Lima VazRenato Akira Shimmi Dissertação apresentada na data de16/12/2011 ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de São Bento do Mosteiro de São Bento de São Paulo, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Filosofia.Àrea de Concentração: Éti

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FACULDADE DE SO BENTOPROGRAMA DE PS-GRADUAO STRICTO SENSU EM FILOSOFIA MESTRADO ACADMICO

Herana Crist da Experincia de Sentido na Crise da Modernidade consideraes a partir do pensamento de Lima Vaz

Renato Akira Shimmi Dissertao apresentada na data de

16/12/2011 ao Programa de Ps-Graduao Stricto Sensu em Filosofia da Faculdade de So Bento do Mosteiro de So Bento de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de mestre em Filosofia.

rea de Concentrao: tica e Poltica Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva

So Paulo 2011

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FICHA CATALOGRFICA

SHIMMI, Renato Akira Herana Crist da Experincia de Sentido na Crise da Modernidade consideraes a partir do pensamento de Lima Vaz Dissertao (Mestrado) Faculdade de So Bento , SP 2011 Orientao: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva

ndice para Catlogo Sistemtico

1. 2. 3. 4. 5.

Lima Vaz, Henrique C. L Modernidade tica Filosofia Medieval subjetividade 2

DEDICATRIA

Para minha esposa

Para os meus pais

Para minha filha Ana

3

AGRADECIMENTOS

Agradeo coordenao da Faculdade de So Bento pelo incentivo e estrutura fornecida, em especial ao Prof. Djalma Medeiros, pela pacincia e motivao que foram capitais para este aluno; ao meu orientador Franklin Leopoldo, pelas horas que pude usufruir de seu conhecimento; aos demais membros da banca, cujos direcionamentos foram essenciais para a superao das dificuldades que o tema fornece. No posso deixar de agradecer ao Prof. Mauricio Pagotto Marsolla, por quem nutro admirao, sendo suas exposies essenciais para a leitura de Lima Vaz. Nem posso esquecer dos amigos que fiz no curso de ps-graduao, a quem agradeo o convvio e os debates, principalmente ao amigo Carlos Henrique Pereira de Medeiros.

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RESUMOA experincia de sentido como parte de uma tradio que encontrou seu pice no cristianismo, estaria agora impedida pela realidade tcnico-cientifica da razo moderna. A modernidade foi conduzida a uma ausncia de sentido, que limita a Razo a um instrumento de dominao e desumanizao, mas que diante da questo do sentido est ainda aberta ao reencontro com a metafsica e a teologia. na anlise da tradio crist da experincia de sentido que em Lima Vaz pode-se atestar a permanncia no homem moderno, mesmo diante de um momento histrico adverso, da sua natureza metafsica como um ser-para-o-Absoluto. Em Lima Vaz a rememorao sobre o que o ser - humano, ao termo de um processo histrico de construo da sua subjetividade, que poder conduzir o homem a superar a crise da modernidade, atravs da compreenso da herana crist na modernidade, e assinalando a estrutura do ser-humano como um ser metafsico.

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ABSTRACTThe experience of meaning as part of a tradition that has found its culmination in christianity, is now barred by the modern reasoning, with its technical-scientific reality. The modernity was conducted to a lack of meaning, which limits the Reason to an instrument of domination and dehumanization, from the question of its meaning its still able to meet with metaphysics and theology. In the analysis of the christian tradition about the experience of the meaning by Lima Vaz, we can attest the permanence in modern man, even in the face of a adverse historic moment, of his nature metaphysics, as a being-for-the-Absolute. In Lima Vaz writings it is rememoration about what is the human being, at the end of a historic process of construction of its subjectivity, which may lead the man to overcome the crisis of modernity, as well as understanding of the christian heritage in modernity, and pointing the metaphysical structure of human-being.

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ABREVIATURASAF I: Antropologia Filosfica I, Loyola, 2001. AF II: Antropologia Filosfica II, Loyola, 2001. EF I :Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira, Loyola, 2002 EF II :Escritos de Filosofia II: tica e Cultura, Loyola, 2004 EF III :Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura, Loyola, 1997. EF IV :Escritos de Filosofia IV: Introduo tica Filosfica 1, Loyola, 2006. EF V :Escritos de Filosofia V: Introduo tica Filosfica 2 , Loyola, 2004. EF VI: Escritos de Filosofia VI: Ontologia e Histria, Loyola, 2001. EF VII : Escritos de Filosofia VII: Razes da Modernidade, Loyola, 2002. EF VIII : Escritos de Filosofia VIII: Platnica, Loyola, 2011. EXP. MIST.: Experincia Mstica e Filosofia na Tradio Ocidental , Loyola, 2000. SNF : Revista Sntese Nova Fase

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SUMRIORESUMO ................................................................................................................................................ 5 ABSTRACT ............................................................................................................................................ 6 ABREVIATURAS .................................................................................................................................. 7 INTRODUO ...................................................................................................................................... 9 CAPTULO I - METAFSICA RUPTURA E REENCONTRO....................................................... 22 1.1 RAZO MODERNA E A CRISE DE SENTIDO ................................................................ 22

1.2 REENCONTRO COM A METAFSICA - a epocalidade de Toms de Aquino. ...................... 37 CAPTULO II - HERANA TEOLGICA DA MODERNIDADE A experincia de sentido ....... 50 2.1 RADICALIDADE TERICA E A MODERNIDADE. ............................................................. 50 2.2 A RADICALIDADE TERICA A EXIGNCIA DE UM ABSOLUTO PARA O HOMEM. ........................................................................................................................................................... 56 2.3 - EXPERINCIA E LINGUAGEM PARA LIMA VAZ ............................................................ 62 2.4 - EXPERINCIA DE SENTIDO RADICAL E A EXPERINCIA DE DEUS ......................... 69 CAPTULO III ANTROPOLOGIA DO SER-PARA-O-ABSOLUTO ............................................ 74 3.1 ESTRUTURA DA ANTROPOLOGIA FILOSFICA ........................................................... 74 3.2.CATEGORIAS DE ESTRUTURA. ............................................................................................ 78 a) Categoria do Corpo-Prprio ...................................................................................................... 78 b)Categoria do Psiquismo. ............................................................................................................ 79 c) Categoria do Esprito................................................................................................................. 80 3.3 CATEGORIAS DE RELAO ................................................................................................. 88 a) Categoria da Objetividade. ........................................................................................................ 88 b) Categoria da Intersujetividade. ................................................................................................. 91 c) Categoria da Transcendncia. ................................................................................................... 94 3.4 CATEGORIAS DE UNIDADE .................................................................................................. 98 a)Categoria de realizao .............................................................................................................. 98 b)Categoria de Pessoa ................................................................................................................. 103 3.5 - O EXISTIR HISTRICO A PARTIR DA PESSOA. ............................................................. 107 CAPITULO IV O REENCONTRO COM O SENTIDO ................................................................. 118 4.1 INTRODUO ........................................................................................................................ 118 4.2 MODERNIDADE E O HOMEM ENQUANTO ESTRUTURA, RELAO E UNIDADE.122 4.3 - CONCLUSO ........................................................................................................................ 133 BIBLIOGRAFIA................................................................................................................................. 142

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INTRODUOA crise da modernidade descrita por Lima Vaz como resultado de um processo de universalizao da cultura sem um ethos correspondente, como principio vital da sua unidade e do seu sentido1, vivenciando o niilismo tico da contradio de um avanar vertiginoso da cultura material, mas por caminhos incertos e sem a viso de um claro horizonte de metas e ideais2. As reflexes de Lima Vaz partem da certeza de que o homem experimenta uma crise originada do descompasso entre o avano material e universal da sociedade sem um correspondente projeto espiritual3. A crise da modernidade expressa para Vaz a concluso de um ciclo pelo enterro das utopias , pela no realizao dos ideais revolucionrios do homem universal, pois a marcha da modernidade no encontrou em seus guias (ilustrao, progresso, sociedade sem classes etc) um horizonte de finalidade e sentido. Enunciando-se ento o desafio da ps-modernidade : aceitar o niilismo tico e a contradio do no-sentido, rendendo-se ao fatalismo para o vazio; ou ultrapassar o no-sentido da modernidade. Cultura, ethos e sentido, se relacionam na tradio filosfica para a definio do existir propriamente humano que s cabe ao homem: a cultura como obra humana dotada de valor e significado, sendo o resultado da luta pelo sentido para a sua existncia e o seu agir, e por isso co-extensiva ao ethos. Assim, o existir humanamente parte de representaes, normas e fins que iro exprimir para o homem a compreenso do mundo e de si mesmo e apontam a direo do seu dever-ser no movimento da histria4, configurando o ethos, como a natureza humana que transcende a natureza dada. A tradio partia desse ethos, como evidncia primitiva e indemonstrvel5 para edificar uma cincia dos fins, que a tica. O ethos , como objeto presente no momento inaugural da tica, era correspondente a uma cultura aberta transcendncia do ser, o ser como a Verdade e o Bem, permitindo a sua transposio para o logos demonstrativo, de forma que o ethos verdadeiro deixa de ser a expresso do consenso ou da opinio da multido e passa a ser o que est de acordo com a

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LIMA VAZ, H.C., EF III - Escritos de Filosofia III: Filosofia e Cultura, So Paulo: Loyola, 1997, p. 129. Ibid, p. 128 3 Cf. Ibid, p. 128 4 Ibid, p 127 5 LIMA VAZ, H.C., EF IV - Escritos de Filosofia IV: Introduo tica Filosfica 1, 3 edio, So Paulo: Loyola, 2006, p. 17

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razo6. Porm, a cultura moderna, experimenta uma crise de sentido pela ausncia de um ethos que corresponda ao alcance material e simblico por ela vivenciada, a partir da ruptura com a tradio filosfica e seu modelo metafsico, pela emergncia de uma nova forma de razo, graas a revoluo cientfica galileiana e as revolues filosficas de Descartes e Hobbes. O ethos tradicional da sociedade pr-moderna encontrava correspondncia na religio ou nas filosofias de transcendncia objetiva, permitindo ao homem perceber nos valores que praticava a referncia a um Absoluto transcedente. O estatuto da inteligibilidade moderna dissolve o ethos tradicional mas no edifica um ethos que atenda a exigncia de sentido, como projeto de uma histria universal, estrutural ao homem. Hoje o solo cultural encontra-se avesso a um ethos que se refira a um Absoluto transcendente, tal qual o modelos vigentes na tradio pr-moderna, propugnando um relativismo dos vrios espaos de sentido onde o homem se realiza como indivduo, reduzida a espiritualidade a apenas mais um deles. A prpria filosofia tem o seu espao de legitimidade reduzido perante esse novo universo de sentido, pois sua vitalidade um esforo de apresentao de sentido como suprassuno da facticidade histrica7. Voltada a expor o sentido como totalidade, como autojustificado e absoluto, que conduz o homem a identificar-se consigo mesmo, com o mundo e com os outros, que permite a vida como vida plena de sentido. A modernidade estaria voltada ao chamado sentido parcial, que um sentido funcional, como um sentido que existe em funo de outro, sentido que s existe em virtude de sua referencia a algo distinto dele, e portanto, que expressa uma utilidade.8 A partir do sc. XVII, marco inicial da modernidade9, o projeto da razo moderna ser conduzido tanto pelos ideais iluministas como pelos messianismo polticos, ou mesmo cientificistas, que ao invs de emancipar o homem o relegar ao no-sentido. A razo moderna corrompe o projeto original do processo civilizatrio que tinha na razo seu

instrumento de emancipao, pois agora ela conduz o homem a uma experincia de ausncia de sentido para a vida, como uma razo que no se volta ao sentido ultimo para o qual o homem est vocacionado mas que tem como fim realizar o

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LIMA VAZ, H.C., EF II - Escritos de Filosofia II: tica e Cultura, 4 edio, So Paulo: Loyola, 2004, p. 45 OLIVEIRA, Manfredo Arajo, Crise da Racionalidade Moderna: uma crise de esperana, in SNF 45 Revista Sntese Nova Fase, v. 17, n. 45 (1989), p. 14 8 Cf. M. Muller, apud OLIVEIRA, Manfredo Arajo, Ibid, p. 14 - 15 9 Cf. EF IV, p. 267

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controle tcnico da natureza e dos homens, fazendo emergir um mundo onde vm tona o horror, a estupidez da vida humana, inserida em relaes de trabalho e dominao, que reduzem o homem a um acessrio da mquina produtiva e do aparelho de dominao.10

A crtica de Lima Vaz aos extremos da razo moderna se coaduna com concluso de que a Razo tornou-se sinnimo de dominao, impondo um avano para o absurdo e para a perda de sentido. A razo moderna, partindo de uma dominao da natureza que se estende s demais regies da vida, ergue a dominao do homem pelo homem como o destino da espcie, reduzindo a histria a uma total falta de esperana11. Tendo a modernidade alcanado efetivamente uma civilizao materialmente e simbolicamente universal, no entanto, no se tornou uma civilizao eticamente universal, no realizando uma unidade de sentido que ilumine um futuro promissor espcie humana. Esse projeto da modernidade guarda com a universalidade do cristianismo, como proposta de sentido universal para o homem, certa homologia, que ,para Lima Vaz, desenvolvida sobertudo na sua concepo de conscincia histrica. Preliminarmente, pode-se afirmar que essa homologia uma chave interpretativa para compreendermos a crise tica da modernidade; pois ela permite a Lima Vaz afirmar a necessidade de um Absoluto transcendente para o existir e agir do homem e que deve ser atendido para se consumar uma projeto de sentido universal, bem como identificar o elo de continuidade da subjetividade crist na subjetividade cientifica, o que j foi considerado uma das linhas mestras da sua viso de modernidade12. A crise desvelada como uma crise da relao com o Absoluto, relao obstruda pela viso tcnico-cientfica moderna, e , por isso, marca para Vaz a presena do universo teolgico na modernidade, atravs da herana da teologia medieval, como sntese do helenismo e cristianismo, e onde se alicera o problema do sentido para o homem moderno como um movimento de inteno pelo Absoluto. Ressalta-se assim a importncia da teologia em Lima Vaz para o tema da crise da modernidade.

10 11

OLIVEIRA, Manfredo Arajo , SNF 45, p.14 Cf. HORKHEIMER e ADORNO, apud OLIVERIA, Manfredo Arajo, Ibid, p. 21 12 MaCdowell, Joo Augusto, Histria e transcendncia no pensamento de Henrique Vaz, in PERINE, Marcelo (org), Dilogos com a Cultura Contempornea, So Paulo, Loyola, 2003 p. 16

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Contudo, deve-se compreender que seu pensamento no pretende a imposio do modelo tradicional de transcendncia crist, como postura dogmtica e exterior aos progressos da modernidade, dado que tal empreita reduziria o Absoluto imanncia da razo moderna13, mas sim expor no homem as possibilidades de um sentido universal que recupere a transcendncia em meio modernidade. Vaz parte essencialmente da sua concepo de homem como expressividade, como espao mvel de intencionalidade onde os vetores de um mesmo sentido so articulados. Como tal, a existncia humana se reestrutura segunda as possibilidades de expresso, que decorrem da sua experincia com o mundo e com os outros, como experincia do existir histricamente, devendo, perante o predomnio das linguagens das cincias modernas, enfrentar a questo quanto a se a transcendncia de um Absoluto encontra meios legtimos de expresso nessa realidade14. O deslocamento da funo metafsica aos domnios da ideologia e do irracionalismo, seria conseqncia da perene exigncia de sentido na modernidade como abertura para um Absoluto, e se torna reveladora da natureza metafsica do ser-humano, como um ser ainda pertencente a um universo cultural que busca um sentido do existir e para o agir. Esse universo cultural propriamente definido como o universo teolgico, de origem medieval, e que teria inscrito para o homem a sua principal experincia de sentido: a experincia de um sentido radical . O Absoluto na tradio encontrava formas de expresso na existncia humana dada a sua inserso em um contexto de primazia do religioso, sustentado pelos prprios limites de conhecimento cientifico. J a modernidade, marcada pelos avanos tcnico-cientficos, no permitem mais a expresso tal como se dava na tradio; de forma que a proposta de deslocar a experincia de sentido da tradio para a modernidade, resulta em um predomnio do imanentismo moderno. A modernidade no corresponde possibilidade de expresso de um sentido universal, tal como experimentado pelo cristianismo medieval, que como veremos paradigma de sentido para a modernidade. O pensamento de Lima Vaz atesta que essa expresso da vida do homem a linguagem, por meio da qual a comunidade de sujeitos possa compartilhar um sentido, interessando para compreender a crise o papel da linguagem, agora vertida como instrumento tcnico e ideolgico, e fechada para exprimir uma experincia legtima de sentido. atravs13 14

Cf. Cap. IV dessa dissertao. LIMA VAZ, H.C., EF I - Escritos de Filosofia I: Problemas de Fronteira, 3 edio, So Paulo: Loyola, 2002 p. 165

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da linguagem que o ser humano d sentido ao mundo para si e para os outros, sentido que faz com que ele supere o nvel puramente sensvel da sua vida, construindo o seu universo de sentido e dando significado ao tempo como Histria, e ento reger o seu agir de acordo com esse sentido: significando o tempo e o espao o homem d sentido ao seu existir e agir. Por isso pretender enclausurar o homem numa linguagem objetiva que o reduz a ser-de-umadimenso, a da eficincia tcnica, fazer dele um rob15. Porm, como dito acima, no se trata simplesmente de se propor exprimir na modernidade o sentido, como experincia do Absoluto, diante das linguagens fechadas da modernidade, mas o que importar para Lima Vaz que o homem capaz, porque j o foi, de expressar o sentido a partir do Absoluto transcendente em sua existncia pois alguma coisa como a revelao de Deus na forma de palavra pode ter lugar na existncia humana.16 A crise da modernidade em Lima Vaz volta-se, ento, para a questo antropolgica: o que o homem. Atestar o homem como expressividade, que d significado ao mundo e a sua vida, como capaz de acolher a verdade do Ser, ou a palavra de Deus, nos conduz a sua Antropologia Filosfica. Assim, no conhecimento de si, o homem moderno poder superar o niilismo tico e assumir a tarefa que a ele cabe, de expressar o sentido para a vida. Trata-se de um reencontro socrtico, que possibilitar reeinscrever a experincia de sentido. Nesse itinerrio do reencontro consigo mesmo, destaca-se a presena do mtodo dialtico a partir de Plato e Hegel que representam para Lima Vaz o ciclo da filosofia ocidental no projeto de reordenar o mundo luz da unidade do logos. Representando cada qual uma possibilidade arqutipica de interpretao da cultura segundo a matriz do logos filosfico17. Ambos propuseram um modelo dialtico de inteligibilidade, compreendendo a filosofia como detentora da tarefa de restituio ontolgica da inteligibilidade da cultura, preocupao de Vaz perante a cultura tcnico-cientfica. Tanto para Plato como para Hegel, o logos do inteligvel a dialtica da Idia, sendo a dialtica a transcrio da ordenao ao Uno e uma explicao, a partir do Uno, do mltiplo que se manifesta no mundo dos homens como desordenado e insensato18. O modelo de inteligibilidade decorre de um modelo ideal que para Plato advm da dialtica do Bem, e que15

HERRERO, Xavier, O Homem como ser de linguagem um captulo de antropologia filosfica, in PALCIO, Carlos, (Org), Cristianismo e Histria, So Paulo, Loyola, 1982, p. 75 16 EF I, p. 165 17 EF III, p. 16 18 EF III, p. 18

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para Hegel resultado

da dialtica do esprito, atendendo as exigncias sistmicas do

caminho da Razo que conduzem posio de um Absoluto como princpio rigorosamente pensado da ordem das razes.19 Partindo da interpelao crtica de uma obra humana, como a cultura, na tarefa de restituio ontolgica da sua inteligibilidade essencial, a dialtica por isso compreendida como Ontologia do Homem e Ontologia da Ao humana, pois visa sobretudo inteligibilidade do ser humano e de sua ao no mundo20. Logo, compreende-se que a aplicao do mtodo dialtico na obra de Lima Vaz confere unidade aos temas do o que o homem ( Antropologia filosfica), da ao livre e racional ( a tica) e dos pressupostos metafsicos do discurso ( a Metafsica), visando a compreenso da totalidade do ser-humano. Atravs de Plato, Lima Vaz ir situar o uso da dialtica em seu pensamento, como caminho buscando a lgica intrnseca do contedo, e no como um procedimento formal e externo ao contedo. Trata-se da sujeio do caminho dialtico s peculiaridades do logos prprio do contedo investigado a partir da pergunta ou aporia inicial, da qual parte o dilogo21 . Como observa Lima Vaz, a dialtica para Plato no teria uma estrutura formal de uma disciplina filosfica, mas antes seria lida como caminho, o que exprime o seu enraizamento no terreno da cultura vivida, partindo das aporias presentes na cultura para alcanar a unidade do modelo ideal22. A esse caminho Lima Vaz aplica o movimento de suprassuno na articulao ontolgica entre o homem e seu mundo, como elevao que conserva23, apontando a presena de Hegel em seu mtodo dialtico pelo tema da subjetividade, e pelo aspecto teleolgico. O primeiro aspecto refere-se estrutura do movimento dialtico de conferir sentido, segundo o modelo de Hegel de definio de conceito, dividido em Universalidade, Particularidade e Singularidade.19

a

EF III, p. 78 SAMPAIO, Rubens Godoy. Metafsica e Modernidade mtodo e estrutura, temas e sistema em Henrique Cludio de Lima Vaz. So Paulo, Loyola, 2006., p. 2452021 22

Apud SAMPAIO, Rubens Godoy, Ibid, p. 233 Cf. EF III, p.30 23 LIMA VAZ, H.C., Experincia Mstica e Filosofia na Tradio Ocidental , So Paulo, Loyola, 2000 , p. 23 nas prximas referncias a esta obra adotamos a abreviatura Exp. Mist.

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na transcrio desses trs momentos dialtica da histria , que o tema do sentido pertinente: no momento da universalidade, o conceito exprime uma pressuposio de um Sentido que articule o curso histrico; no estgio da particularidade, o sentido da histria se submete multiplicidade dos fatores que configuram as pocas, as cultura e civilizaes; por fim, enquanto momento da singularidade, o conceito concretizado, ou seja , o universal abstrado da universalidade como sentido se torna concreto pelo agir histrico dos sujeitos, o sentido posto como totalidade, restituindo particularidade situada o sentido como totalidade e plena inteligibilidade do universal. 24 Assim, tem-se em Lima Vaz a caracterizao desse movimento em que o homem dota a realidade de sentido, tal como em Hegel, em que pensar o mundo emprico , essencialmente, transmutar (unamdern) sua forma emprica e mud-la num universal25. Igualmente, a teoria hegeliana da Essncia est presente no pensamento de Lima Vaz em sua primazia socrtica, como conhecimento de si, desse movimento do sujeito voltar-se para a exterioridade para encontrar sua identidade, onde a sua essncia no se resume a pura interioridade, considerando que o essencial no existe seno quando se situa numa existncia exterior e imediata26. Em Vaz, a Antropologia Filosofica parte de um conhecimento mediato e um retorno a si, tal qual o Conceito de Hegel27

, porm, enquanto Hegel insere a

subjetividade finita em um processo de significar a realidade como uma suprassuno que visa alcanar uma identidade com o Esprito Absoluto, Vaz mantm a tenso entre o sujeito finito e situado e o Absoluto, como uma diferena real e insupervel que o mvel da intencionalidade do sujeito de conferir o sentido, recusando a absoro da subjetividade no lgico28. A partir do tema da subjetividade compreende-se o aspecto teleolgico que define o carter helicoidal do pensamento de Lima Vaz, pela presena do movimento dialtico hegeliano que caracteriza-se por um movimento que , ao mesmo tempo, progresso (linha) e retorno ( crculo), cumulativo e progressivo29. Assim, na formao do conceito, ao fim da

24 25

SAMPAIO, 2006, op. cit, p. 241 BRHIER, mile Histria da Filosofia, fasc. III, tomo II, traduo de Eduardo Sucupira Filho, So Paulo, Mestre Jou, 1977, pg. 155. 26 BRHIER, mile, op. cit., p. 158. 27 Cf Ibid, p. 149 28 Cf. AQUINO, Marcelo Fernandes de. Metafsica da Subjetividade e Linguagem III, in SFN 71 - Sntese Nova Fase, v. 22, n. 71 (1995)), p. 486 29 SAMPAIO, op. cit, p. 242

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jornada, se abre a condio de possibilidade para o incio do discurso. A concretude da singularidade se abre para a universalidade do incio do caminho:Nesse sentido o movimento dialtico no avana atravs da repetio dos mesmos momentos como os pontos no crculo geomtrico, mas pela negao ou suprassuno ( Aufhebung), que, ao mesmo tempo, nega e conserva cada momento no momento posterior. O termo do movimento se define como restituio da singulairdade de cada momento na unidade de um todo logicamente organizado, no qual o princpio, inicialmente apenas dado, se reencontra como fim, pensado na sua estrutura inteligvel.30

Considerada essas linhas gerais da dialtica em sua obra, pode-se compreender o pensamento de Lima Vaz como sistema, compreenso que parte da distino entre sistema aberto e sistema fechado que est presente em sua tica Filosfica. Sistema fechado, so os decorrentes de modelos axiomticos-dedutivos, e admitem apenas uma inter-relao e interao internas entre seus elementos . J os sistemas abertos, de estrutura analgica, conseguem manter uma interao permanente com o mundo circundante, tendo um dinamismo que lhe permite evoluir, conciliando permanncia e mudana ao longo do tempo, o sistema que se coaduna com uma estrutura transcendente31. Lima Vaz, parte dessa distino para concluir que o sistema aberto que se adequa a tica. Ambos, so modelos de representao da realidade que viabilizam a ordenao racional dessa realidade, porm s o sistema aberto atende necessria abertura transcendente que o discurso tico exige na busca de um fundamento universal, dado a impossibilidade do sistema da tica se fechar com as prprias razes situadas do agir que objeto do discurso 32. Em outras palavras, o sistema aberto permite a possibilidade de um discurso tico que respeite as peculiaridades histricas, sociais culturais dos vrios ethos existentes 33 Contudo, essa leitura permite afirmar a presena do sistema aberto nas demais obras de Lima Vaz, no apenas no discurso da tica filosfica. As peculiaridades do existir do serhumano, no tempo e no espao, esto em um sistema aberto sempre em interao com a transcendncia do ser. Pelo sistema aberto, torna-se inteligvel a relao metafsica entre o sujeito finito e situado e o Absoluto transcendente, como movimento do homem de significar

30

LIMA VAZ, H.C., EF V - Escritos de Filosofia V: Introduo tica Filosfica 2 , 2 edio,So Paulo: Loyola, 2004, p. 209 31 Cf. Ibid, p. 12-15 32 Ibid, p. 16 33 SAMPAIO, op cit, p. 316

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o mundo e a si, expressando sua experincia com o Absoluto para a realidade exterior e para si mesmo. Ento, para Lima Vaz o sistema possui uma significao dinmica que no permite uma viso engessada da realidade por ele compreendida, mas possibilita sua aplicao riqueza e criatividade da experincia concreta34 . O sistema jamais se fecha sobre os seus prprios termos, mas permanece aberto articulao contnua entre a sua multiplicidade e a unidade transcendente, permitindo a evoluo do conhecimento por aprofundamento, atendendo infinitude intencional do sujeito pelo Absoluto, aquele penetrar sempre mais no mesmo35 que caracterstico da metafsica . Pode-se afirmar que o sistema aberto como evolutivo corresponde ao mtodo dialtico de Lima Vaz marcado pela circularidade do caminho , e pela caracterstica teleolgica do seu pensamento, que determina o absoluto transcendente como Princpio e Fonte do existir, e ao mesmo tempo como Fim e consequentemente o Bem para o qual ser humano tende, em vista de sua abertura transcendental ao ser ou de sua infinitude intencional 36 O sistema de seu pensamento marcado pela articulao dialtica das categorias at alcanar o nvel mximo de profundidade e unidade, que seria o momento em que se coloca a questo do Absoluto, mas, paradoxalmente, esse roteiro revela o seu estgio final como seu prprio ponto de partida, como condio de possibilidade de todo discurso antropolgico, tico ou metafsico37. Na metafsica, essa circularidade se manifesta no conhecimento do Absoluto como fim, e tambm como incio e condio de possibilidade do prprio discurso. A circularidade dialtica do sistema apresenta a metafsica como a chave de inteligibilidade do pensamento Vaziano, sendo o incio e o fim do discurso, e ainda como a condio de possibilidade para uma antropologia filosfica e para uma tica .38

34 35

SAMPAIO, op cit., p. 322 Maritain, Jaques, Sete Lies sobre o Ser, traduo de Nicols Nyimi Campanrio, So Paulo, Loyola, 2ed, 2001, p. 17 36 SAMPAIO, op. cit, p. 323 37 Ibid, p. 288. 38 A prpria produo de Lima Vaz, por ele organizada entre os volumes I e VII de seus escritos , pode ser sistematizada por essa tica de circularidade dialtica. Iniciando sua produo filosfica com um texto sobre metafsica, ao analisar as respostas pergunta Que Metafsica (Giornale di metafsica) , e tendo como termo final e conclusivo de seu pensamento ser as reflexes metafsicas de Razes da Modernidade Escritos de Filosofia VII. O roteiro circular entre esses dois termos se apresenta em duas direes: a via compositionis, que seria o discurso para-ns da inteligibilidade do sistema e da elaborao de cada categoria, e a via resolutionis, o

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Pela perspectiva do que o sistema para Vaz , a crise da modernidade expressa o predomnio do sistema fechado na racionalidade moderna, que estaria obstruindo a rota para um Absoluto transcendente que fundamente o movimento de significao universal do homem. Resultado disso ento uma realidade em que no se compartilha a experincia de um mesmo sistema de sentido, onde a cada indivduo se oferece uma gama de sentidos, ficando a sua escolha o que antes era determinado como nico pela tradio do ethos. A imanentizao da significao do seu existir na realidade, seja como natureza, sociedade ou individualidade, pelas formas de expresso das cincias modernas, no compromente contudo a essncia do o homem : um ser para-o-sentido. Os sentidos que a pluralidade de universos culturais oferecem no satisfazem essa essncia que se exprime como uma necessidade humana de significao universal, que permitiu ao homem erigir sua civilizao. Prevalece ento um reencontro com a tradio e sua concepo de homem, de forma que, como sistema aberto e circular, a sua filosofia sobretudo rememorao. Rememorar, tal qual como concebido em Hegel, a reinveno dos problemas originais da filosofia, onde se capta o tempo que foi e o tempo que flui no agora do filosofar39, permitindo o reencontro com o passado em um movimento helicoidal, em que se tem um retornar tradio como um aprofundamento das questes originais, no mera repetio e arqueologia mas sim uma compreenso renovada 40 necessria ao presente. A rememorao participa sem conhecer a histria da filosofia para Lima Vaz do prprio ato de filosofar, sendo o41

primeiro passo metodolgico da sua exposio , afirmando ser impossvel fazer filosofia , de forma que a vitalidade do rememorar em Vaz

atestada por ele biograficamente, quando ele entrelaa a sua prpria vida intelectual com a rememorao42. Como ato dotado de vitalidade, no se trata de mero culto ao passado, mas

discurso em-si da ordem de fundamentao das categorias. A via compositionis da obra vaziana teria como sequncia: 1- antropologia; 2- tica e 3) metafsica. J para a via resolutionis teramos: 1 metafsica, 2 tica, 3- antropologia. Essa dupla direo demonstraria a metafsica como incio e fim da reflexo vaziana, tendo como sustentculo, como iremos ainda analisar, a metafsica do existir de Toms de Aquino, ou seja, como incio e fim da jornada, representando a proposta de reencontro com a metafsica. (SAMPAIO, ibid, p. 288 290)39 40

LIMA VAZ, H.C, Morte e Vida da Filosofia, in SNF, n. 55 - Sntese Nova Fase, v. 18. N. 55 (1991), p. 685 Ibid, p. 687 41 SAMPAIO, op. cit, p. 251 42 Cf. SNF, n. 55, p. 684 - 688

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sim expresso da filosofia como cincia em progresso tendo como inteno pensar a histria da filosofia como elemento intrnseco da estrutura terica do filosofar 43. O progresso da filosofia para Lima Vaz um esforo de reinveno, na adivinhao da face nova das aporias concretas que solicitam o esprito, sob a conjuno de dado cu histrico44, destacando o destino do homem em confrontar as questes perenes de sua existncia. Essa reinveno seria livre e espontnea criao, em que cada resposta formulada s perenes questes fundamentais se apresentaria como um momento original. O progresso da filosofia consiste ento em desocultar o dado autntico que est no passado e libertar ao mesmo tempo a pulso criadora com que o esprito mesmo dilata o objeto medida de suas exigncias concretas45. Assim, a permanncia de certos problemas exige que retomemos a histria da filosofia para nos certificarmos do progresso filosfico, e compreendermos a formao de cada momento original que o ato filosfico ofereceu para as questes fundamentais. A rememorao como parte da reflexo filosfica assume a forma de uma aportica, pois as formulaes do passado se articulam dialeticamente em oposies e snteses

convergindo ao presente filosfico do sujeito, que partir delas para repropor o problema em consonncia com a sua realidade vivida46.Como observa Lima Vaz, a prtica filosfica psHegel descobriu na histria da filosofia uma espcie de retorno reflexivo da filosofia sobre si mesma na sua realizao no tempo 47. A prpria estrutura das obras de Lima Vaz, destaca a importncia da rememorao em seu pensamento, onde sempre temos, aps a um introduo do problema, uma exposio do tema pela perspectiva histrica, para somente aps adentrar uma parte sistemtica, tal como se d, por exemplo, na partes introdutrias da Introduo tica Filosfica e da Antropologia Filosfica. A rememorao permite a Lima Vaz diante da aportica histrica, atestar a constante de seu pensamento que a permanncia do esforo metafsico do ser-humano, e da sua natureza como ser para transcendncia. Portanto, o voltar-se tradio no uma fuga para o passado, mas a mediao refletida do tempo passado para captar no conceito o tempo43 44

LIMA VAZ, H.C., EF VII - Escritos de Filosofia VII: Razes da Modernidade, So Paulo: Loyola, 2002, p.252 LIMA VAZ, H.C., EF VI - Escritos de Filosofia VI: Ontologia e Histria, So Paulo: Loyola, 2001, p. 58 45 Loc. cit 46 Cf. LIMA VAZ, H.C., AF I - Antropologia Filosfica I, 3 edio, So Paulo: Loyola, 2001, p. 25 47 EF VII, p. 252

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presente, mediao que conduz a reinventar o arqutipo platnico-aristotelico do filosofar, reintegrando a experincia do logos.48 A preocupao do pensamento de Lima Vaz recuperar, diante da crise da modernidade, o Absoluto transcendente como experincia humana, experincia que vivificante para o homem, que no sobreposio do Absoluto e anulao da existncia humana. Para Vaz, o Ser como Absoluto, no se identifica com a negao em sua plenitude, e voltar-se para Ele no libertar-se da contingncia do existir, mas sim dar significado ao existir, e compreender porque o homem vive em um mundo de significaes. No seu pensamento o homem dotado de um estatuto ontolgico prprio como quem participa de alguma forma do Absoluto, tendo com o universal uma identidade intencional, que fundamenta o operar do homem no mundo como uma busca pelo Absoluto como a Verdade e o Bem do existir.49 Compreender a crise de sentido da modernidade a partir da experincia de sentido do passado da tradio e empreender a possibilidade, tanto terica como vital, de reinscrever o sentido em um agora da razo moderna na compreenso desse passado; o que prentende expor o presente trabalho a partir da relao do homem com o Absoluto transcendente, como causa e fim, do movimento para o sentido. Como um recorte da rememorao presente na filosofia de Lima Vaz, centralizando a exposio no reencontro com a tradio do homem como ser-para-o-Absoluto, luz de uma compreenso renovada do processo de formao da subjetividade a partir da tradio crist. Diante desse panorama, exporemos o tema da crise da modernidade, expondo que, para Lima Vaz, o domnio do sentido universal somente aquele onde vige a referncia viva a um Absoluto transcendente, de forma que a cultura tcnico-cientfica e sua forma de leitura do mundo sejam descritas como terreno infrtil para os anseios do homem. No primeiro captulo, trataremos da ruptura com a tradio da razo clssica e a exigncia de sentido diante dessa ruputura, concluindo com paralelo traado por Lima Vaz entre a epocalidade da obra de Toms de Aquino e a crise da modernidade, expressando o necessrio reencontro com a metafsica que a crise assinala. No segundo captulo, exporemos os paradigmas cristos da experincia de sentido e sua realidade na modernidade, definindo o tema dentro das noes do48 49

Cf; SNF - 55, p. 687 MAC DOWELL, Pe. Joo Augusto A. A., Histria e transcendncia no pensamento de Henrique Vaz, in Perine, Marcelo (Org), Dilogos com a cultura contempornea Homenagem ao Pe. Henrique C. Lima Vaz, SJ. So Paulo, Loyola, 2003, p. 21.

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que experincia e linguagem em seu pensamento. No terceiro captulo, nossa inteno detalhar os fundamentos categorias presentes na Antropologia Filosfica da afirmao de que o homem um ser-para-o-Absoluto, e a partir disso detalhar o movimento de significao como um retorno a si mesmo na concepo de Vaz do que Histria. No quarto e conclusivo captulo, exporemos a situao das categorias antropolgicas do ser-para-o-Absoluto diante da cultura tcnico-cientfica e a imanentizao do Absoluto transcendente na tentativa de inscrev-lo como experincia moderna, para ento delinear a segurana de Lima Vaz de que o projeto de um sentido universal somente pode partir de um reencontro, como rememorao, com quem o homem .

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CAPTULO I - METAFSICA RUPTURA E REENCONTRO

1.1 RAZO MODERNA E A CRISE DE SENTIDOPartindo de uma sinptica narrao dos anos ps-guerra, Lima Vaz apresenta o quadro da crise da modernidade como uma crise vivida no terreno das razes de viver e dos fins capazes de dar sentido aventura humana sobre a terra50

, tem-se uma crise do ser,

como resultado da prpria lgica que conduz a razo humana exigncia de um sentido. Essa narrativa apresenta a sequncia de trs conceitos, a predominarem nos anos ps-guerras, e que definem a exigncia do sentido na modernidade, so eles: desenvolvimento, cultura e tica. Com o fim da Segunda Guerra, aps a disseminao de um novo way of life , tem-se os chamado trinta anos glorioso, onde se manifesta um nico momento histrico de crescimento tecnolgico e econmico que torna o conceito de desenvolvimento na ideologia da poca transgredindo as fronteiras do econmico e estendendo-se a todos os domnios da atividade humana51. Com o fim desse perodo, surge o discurso pelo desenvolvimento cultural das naes, tendo como marco histrico a conferencia da Unesco em Helsinque de 1972. Por fim, em meados dos anos 80, a preocupao com a tica passa a marcar presena nos vrios campos de conhecimento da sociedade internacionalizada. A sequncia desses trs conceitos , estaria expondo a lgica interna da trajetria histrica recente do ocidente.52 Os primeiros anos do ps-guerra tiveram como foco a reconstruo material das naes atingidas pelos suplcios blicos; tarefa consumada na dcada de 50, e que possibilitou um movimento desenvolvimentista e industrial. O resultado desse crescimento no universo material foi a assimetria entre a esfera material e esfera simblica da vida, o que possibilitou o discurso pelo desenvolvimento cultural entre as naes. Por outro lado, o desenvolvimento do discurso cultural, traria a luz a necessidade tica da nova ordem mundial, ou seja, a cultura, teria aberto o horizonte das necessidades vitais do homem ao mundo das formas simblicas e do sentido53. Pelo conceito de cultura foi possvel manifestar-se a necessidade humana de confrontar-se com a realidade como fonte de normas.

50 51

LIMA VAZ, H.C, in SNF 68, tica e Razo Moderna, Sntese Nova Fase, v. 22. N. 68 (1995), p. 55. loc. cit 52 loc. cit. 53 Ibid, p. 56

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Assim, alcanando hoje uma satisfao material indita, um domnio tcnicocientfico em contnuo avano, o problema do sentido se torna a tarefa mais importante a desafiar a modernidade. A anlise das dcadas do ps-guerra assinala para o homem atual o manifesto desejo de equilbrio entre o universo material e o universo simblico, e

consequentemente a sede por sentido que vige em uma sociedade materialmente satisfeita, e segura de seu domnio tcnico-cientfico. As concluses a partir da histria recente, reala principalmente a prpria lgica da racionalidade do homem, como ser- para o sentido, desde o nascimento da tica na antiguidade grega. Esse movimento recente de demanda pelo sentido, encontra, portanto, um paralelo na antiguidade grega, que como sabemos, forma o paradigma racional que acompanhar o homem por milnios. A evoluo para os gregos, descrita pelos primeiros filsofos e legisladores, pela sequncia de problemas a serem superados : trabalho e riqueza, cultura e, finalmente, a tica. Em outras palavras, a satisfao material, simblica e por fim a espiritual, como unificao e sentido para os demais planos. A sequncia desses conceitos deve ser vista como um movimento dialtico de suprassuno das racionalidades dominantes: das racionalidades tcnicas-cientficas, onde se opera a satisfao material, segue-se para as racionalidades hermenuticas, que trazem o problema do sentido, e ento tem-se as racionalidades ticas, que tematizam as normas e fins do universo humano. Mas sempre considerado como movimento dialtico de suprassuno, movimento de elevao e aprofundamento que conserva as passagens antecedentes visando a unidade ontolgica, pois a Razo que cria o sistema de objetos a mesma que se interroga sobre as razes, os caminhos e os fins. 54 O que marcar os nossos tempos, ser a presena dessa lgica dialtica entre as racionalidades, mas que no encontra um paradigma nico de sentido. A exigncia por um sentido , e a conseqente regio tica que se desdobra, como modelo de unidade e de alcance universal hoje o grande tema para o ser-humano, figurando ento como o que Lima Vaz descreve ser o enigma da modernidade: a dificuldade de estabelecer uma ethos de alcance similar ao seu universalismo material. Diversamente, vige hoje a pluralidade de discurso ticos, o que banaliza e esvazia a tica; atendendo a disperso moderna da razo em uma rede de racionalidades.

54

SNF 68, p. 57

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A co-existncia de mltiplas racionalidades na modernidade sem uma referncia de unidade metafsica, acaba por obscurecer o universo de sentido para o sujeito. Podemos compreender as redes de racionalidade, como multiplicidade desordenada, a partir da comparao entre o paradigma da razo clssica, sob domnio da filosofia, e o paradigma da razo moderna, regida pelos ditames das cincias, destacando a unidade que as mltiplas racionalidade tinham na tradio metafsica. Pela razo clssica, a primeira diferenciao da Razo foi proposta por Plato entre razo provvel e razo verdadeira, tendo como contexto o conflito entre a razo sofstica e a razo socrtico-platnica. Essa diferenciao era no entanto ordenada na unidade de uma razo superior, representada pela Filosofia. A diferenciao aristotlica do saber em teortico, prtico e poitico, tambm ter na Filosofia, como saber terico, o princpio organizador e unificador. Na tradio antigo-medieval esse mesmo paradigma estar presente, e at realado quando uma forma transracional de saber, a f, passou a ser reconhecida como o fecho de abbada do conhecimento humano 55. Nesse estgio da razo clssica, o saber filosfico , sobretudo, sabedoria, por remeter experincia profunda da ordem divina que se eleva sobre a aparente desordem do mundo. A razo filosfica, como razo metafsica, seria o analogado principal a ordenar as demais formas de racionalidades , conferindo a unidade da Razo. A razo metafsica, por evocar a unidade da transcendncia do Ser, apresentou-se como o principal analogado da tradio, mantendo a unidade ontolgica na auto-diferenciao da Razo. 56 Em contraposio, o que caracterizar a modernidade a diferenciao da Razo em vrias formas de racionalidades sem uma referencia de unidade analgica, de forma que cada racionalidade est fechada em seus prprios termos, isolando a metafsica como modelo de unidade. A singularidade da Razo moderna frente razo clssica, tanto pelo seu mtodo como pelo seu sujeito, que explicaria esse isolamento da metafsica. O mtodo da razo moderna o mtodo no sentido cartesiano-galileiano, ou seja, que parte de hiptese e dedues, valorizando a verificao experimental, erguendo como

paradigma a cincia emprico-formal. Esse modelo cientfico permite que o sujeito seja o55 56

SNF 68, p. 60 Ibid, p. 61

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construtor de seu prprio objeto, definindo uma homologia entre o sujeito e o mundo dos objetos criados. Assenta-se a partir dessa homologia o desaparecimento da distino entre a theoria e a poiseis, ou seja, o objeto criado pelo sujeito, o prprio objeto contemplado.57 O espao de validez do conhecimento se restringe ento na correlao entre a razo construtora do sujeito e a inteligibilidade construda do objeto.58 O perfil cognoscitivo do sujeito da razo moderna tambm profundamente distinto daquele que vigia na razo clssica, tendo como paradigmas o Eu cogitante de Descartes, e o Eu transcendental de Kant, em oposio ao sujeito da tradio como esprito finito e analogado inferior do Ser. As tentativas de se estruturar uma unidade metafsica a partir dos paradigmas da razo moderna, no prosperaram, seja pelo modelo metafsico Kantiano, seja o modelo historiocentrico de Hegel, ao contrrio, no impediram a dissoluo final da unidade analgica da Razo, com o comprometimento da unidade ontolgica que decorria da contemplao metafsica como analogado principal59. No s a perda desse unidade analgica da razo seria uma das causas da multiplicidade desordenada de racionalidade, mas tambm, a prpria versatilidade do mtodo que consegue propor o procedimento hipottico-dedutivo e a verificao experimental para diversas reas de conhecimento. Para Lima Vaz, em Kant definiu-se a figura arquetpica da racionalidade moderna, ao estabelecer o dualismo intransponvel entre o pensar metafsico ( procedimento da Razo) e o conhecimento ( procedimento do Entendimento).60

O pressuposto Kantiano era de que o

modelo emprico-formal, notadamente o paradigma mecanicista de Newton, seria o nico procedimento vlido para o conhecimento dos fenmenos, e estes se apresentariam como a cortina indevassvel que cobre o noumenon, o que, consequentemente, exilou a metafsica das fronteiras do conhecimento terico da realidade61. Esse mesmo pressuposto vige na razo moderna, onde a multiplicidade das racionalidade se distanciam da unidade de uma razo analogada.

57 58

SNF 68 , p. 61 Ibid, p. 62 59 Loc. cit 60 Loc. cit 61 SNF 68, p. 63

25

V-se que as racionalidades modernas no possuem uma matriz de universalidade que lhes confira unidade. A unificao das racionalidades na tradio dava-se pela relao que elas tinham com a idia universal de Razo, como razo metafsica. Trata-se de uma relao entre particularidade e universalidade, que distingue as racionalidades e a Razo. A Razo opera a partir de princpios e obedecendo as regras da demonstrao, a racionalidade remete aos usos distintos da razo, conforme o objeto e o mtodo, ou seja, racionalidade designa as diversas figuras da Razo. A relao entre a Razo e as racionalidades, ou entre o universal e o particular, se d como relao dinmica, pela presena da Razo como conceito analgico do qual participam as diversas racionalidades. 62 Essa relao implica a presena de uma Razo absoluta, que tem por isso identidade absoluta com o Ser, ou seja, absoluta reflexividade do Ser em si mesmo, a Razo nesse nvel Nos ou intellectus. Na razo finita, essa identidade com o Ser intencional (cognoscitiva), uma identidade na diferena: admite a diferena real com que o Ser subsiste em si mesmo, independente do nosso conhecimento. A razo finita, nessa identidade na diferena com a universalidade do ser, expresso da inteligncia espiritual, em sua abertura ao transcendente. A participao das racionalidades na forma universal da Razo, possvel pela identidade da razo finita com o intellectus, como identidade intencional da razo finita ou particularizada com o universo do Ser. Dada dessa estrutura analgica, que compreendese a capacidade da Razo desdobrar-se historicamente num processo sem termo de autodiferenciao das suas formas de racionalidade.63 A partir de sua infinitude intencional, a razo finita desdobra-se em dois plos de inteligibilidade: o plo metafsico, onde se pensa a infinitude real do Ser; e o plo lgico, onde se opera com a infinitude intencional da razo. Esse desdobramento tem conseqncia na distino entre a razo clssica e a razo moderna. A razo clssica ordenou a estrutura analgica em torno do plo metafsico, ou seja, tendo como referncia de unidade a contemplao do Absoluto real; j a razo moderna, ir dar primazia ao plo lgico, com o predomnio do mtodo de Descartes, e da figura do sujeito transcendental de Kant que avoca para si o lugar e a dignidade do Absoluto real 64. Em Kant, a modernidade chega conscincia clara de si mesma, pelo uso pblico da razo como62 63

SNF 68, p. 63-64 Ibid, p. 64 64 Ibid, p. 65

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emancipao humana, de forma que a fonte de sentido no decorre heteronomamente de um todo maior, mas sim da absoluta autonomia do sujeito65. Assim, a razo moderna ir ordenar a multiplicidade das racionalidades a partir desse plo lgico, marcado pela experimentao e construo lgica do objeto, sendo por isso, notadamente, uma razo operacional e calculadora. A organizao das mltiplas racionalidades por ordem de universalidade e alcance gnosiolgico estar agora submetida racionalidade lgico-matemtica como racionalidadematriz, essa ordenao permite a Lima Vaz esboar a tipologia das racionalidades que forma o campo da razo moderna66

que so:

1)A racionalidade lgico-matemtica, por seu aspecto instrumental, a que atende exigncia de exatido e clareza que vige na razo moderna, atendendo a sua primazia cientfica, sendo por isso a racionalidade matriz pela qual se mede as demais racionalidades para que possam ter legitimidade como conhecimento. 2)A racionalidade emprico-formal a que vige nas cincias da natureza, sendo a mais representativa da razo moderna, tendo a Fisca como paradigma fundamental. A inteligibilidade da natureza se submeter medida matemtica e definio emprica, desprovendo a physis de qualquer finalidade. O critrio de objetividade reside assim na aplicao metdica do formalismo matemtico e na obstruo de qualquer sentido para a natureza que no seja o dado pela razo instrumental. 3)A racionalidade hermenutica Trata-se de uma cincia de interpretao de segunda potncia, pois o objeto interpretado tambm obra do prprio sujeito, e portanto expresso daquele que interpreta. Como frisa Lima Vaz, o objeto da hermenutica a cultura, obra humana que no mais do que o universo humano das significaes objetivadas nas tradies, no ethos, nas obras, nas instituies e nas aes do homem histrico67

. A

hermenutica sofre influncia da racionalidade emprico-formal, porm tem uma relao constante e prxima da reflexo filosfica. O que a destacar em oposio metafsica tradicional essa implicao da expressividade do sujeito no prprio objeto por ele

interpretado, onde o resultado encontrar na sua obra as razes do sujeito finito e situado.

65 66

Cf. OlIVEIRA, Manfredo Arajo de, SNF 45, p. 16. SNF 68, p. 66 67 Ibid, p. 67

27

4)A racionalidade filosfica Refletindo o predomnio do plo lgico sobre o plo metafsico, o tema do Absoluto ser submetido logicizao, como se averigua na Lgica de Hegel. Em outras palavras, est marcada pela logicizao do Ser, na tentativa de encontrar a expresso do Ser no logos do sujeito finito, enquanto que na razo clssica, vigia o problema da inscrio do Ser como transcendente ao sujeito finito. Esses modelos modernos de racionalidade expressam a ausncia do transcendncia por um Absoluto real, visto que diante do objeto voltam-se sobre os prprios plos de inteligibilidade do qual partem, ficando o conhecimento restrito representao matemtica e empirista que se tem do universo. Firma-se a ruptura com o fundamento transcendente pela imanentizao das coordenadas metafsicas do homem, situando-o como referncia do universo inteligvel, afastando o fundamento transcendente, seja cristo, seja da tradio grega, estatuindo-se normas e fins de acordo com as coordenadas da razo moderna, que Lima Vaz caracteriza como razo operacional ou instrumental: uma razo que prope a si mesma a partir da sua representao da realidade , tendo como critrio para a sua validade os seus resultados concretos pela primazia do emprico sobre o metafsico. Dessa forma, a crise da modernidade tem como ponto de partida uma ruptura com a transcendncia da tradio, remetendo teoria moderna da representao que, obstruindo a rota para um Ser transcendente possibilita a descrio da ausncia de uma experincia de sentido universal para o homem. Assim, a compreenso da teoria moderna da representao baliza tambm o entrelaamento entre o sentido e a relao com o Ser.68

Inicialmente, deve-se se ater ao uso do vocbulo sentido na sua acepo existencial, aquela que remeter reflexo filosfica grega, que tinha o ser como contedo significado da linguagem, seja ele o cosmos, a vida, o homem, o divino, ou mesmo o prprio ser na sua unidade absoluta, como na especulao eletica. Estando presente, sobretudo, no questionamento socrtico uma reflexo sobre o ser que seja tambm uma proposta de sentido para o existir: O problema da definio da aret como forma da vida melhor , orientada para

68

Destaca-se o entendimento de que Lima Vaz afirma as razes comuns da modernidade e do niilismo tico PERINE, Marcelo - Niilismo tico e filosofia, in Dilogos com a cultura contempornea homenagem ao Pe. Henrique C. de Lima Vaz, SJ Loyola, So Paulo, 2003 p. 57- 69

28

o Bem, pode ser considerado o primeiro surgir da questo do sentido na sua acepo existencial, no horizonte da reflexo filosfica.69 O sentido seria expresso do logos verdadeiro, abrindo ao sujeito a universalidade do Bem do Ser, onde se traduziria a verdade do ser na verdade do conhecer. Portanto, por essa acepo, a forma como apreendemos o ser ir refletir diretamente no universo de sentido para o nosso existir: O problema gnosiolgico da representao do ser na inteligncia sob a forma do conceito universal ser, assim, a vertente notica do problema do sentido na sua acepo existencial70

.

Para a razo clssica a representao do objeto seria um primeiro movimento em direo ao conhecimento do ser , assegurada a prioridade da verdade objetiva sobre a sua representao subjetiva 71 . Por isso, a transio da tradio da razo clssica para a teoria da representao moderna, que prope a prioridade da representao do ser conforme as regras de

inteligibilidade da experincia do sujeito, teria o mesmo significado que a revoluo copernicana tem na descrio da passagem da idade mdia para os tempos modernos. 72 A teoria da representao na modernidade tem como postulado fundamental o fato de a representao deixar de ser um sinal formal dentro do movimento intencional rumo ao conhecimento do objeto como real. Ela passa a ser o termo imediato da inteno cognoscitiva, no mais um meio pelo qual se realiza a primazia do ser, restando ao objeto em seu ser real ficar subordinado primazia da representao.73 Sem a referncia a um ser, o movimento intencional de conhecimento limita-se representao, dependendo sua inteligibilidade to somente dos termos propostos pelo prprio sujeito cognoscente, predominando a forma de saber poitico, que rege o fazer e o usar dos objetos. O objeto assim estaria inserido em um campo ilimitado de possibilidades poietica, em suma, como reflexo do querer do homem-construtor.74

a

merc da determinao pelo sujeito cognoscente, como produto legtimo da sua atividade

69 70

EF III, p. 155 Ibid, p. 157 71 Ibid, p. 159 72 Ibid, p. 156 73 Ibid, p. 162 74 Ibid, p. 163

29

Assim, o homem perante o mundo tem como primazia o seu prprio operar poitico, como presena ativa que cria para si o mundo de acordo com suas representaes, sem a referncia a um Ser transcendente, e que, a partir das suas regras de inteligibilidade, ir ordenar o seu operar tico e contemplativo. Na tradio da razo Clssica a primazia cabe prxis , como saber do agir conforme o Bem, que permite ao homem abrir-se ao conhecimento do transcendente, enquanto contemplao (theoria) do Uno-Bem, e a partir desse conhecimento normatizar o operar humano enquanto tcnico e poitico. O campo teortico, como conhecimento desinteressado da verdade do ser , e o campo do conhecimento prtico, como conhecimento do agir virtuoso conforme a bondade do ser, estaro tambm submetidos ao campo poitico do sujeito. O que permite a Lima Vaz afirmar que: Um dos efeitos mais notveis da teoria moderna da representao foi a supresso, pelo menos virtual, da distino aristotlica entre trs grandes formas de conhecimento, o teortico, o prtico e o poitico.75 A submisso dos saberes teortico e prtico primazia da representao, reordenou as linhas de inteligibilidade com que o homem pensa e interpreta a realidade, dado o ilimitado plano de interpretao reservado sua subjetividade, que antes se media com a presena de um absoluto transcendente. Fica, por isso, reservado ao sujeito um projeto demirgico de estatuir normas, valores e fins de acordo com os princpios axiolgicos por ele mesmo estabelecidos76, que caracteriza a metafsica da subjetividade, deslocando o centro unificador das racionalidade ao plo lgico da razo. O deslocamento do centro unificador das racionalidades para o plo lgico, ao invs do plo metafsico da tradio, teve como conseqncia a distino que temos entre a tica moderna e a a tica clssica, qual seja, a caracterizao da primeira como tica constitutivamente autonmica, posicionando o sujeito como legislador moral, em constraste com a caracterstica ontonmica da segunda, onde o ser seria a fonte da moralidade.77 Remete-se esse aspecto autonmico da tica moderna, proposta inaugural de Descartes de formular uma tica sujeita ao modelo de razo do mtodo , proposta no consumada pelo pensador que entendia que at a realizao de tal projeto, deveria manter-se a75 76

EF III, p. 163 Ibid , p. 164 77 SNF 68, p. 71

30

ordem do ethos tradicional. As tentativas de formular essa tica a luz do mtodo, evidenciou a irredutibilidade da prxis racionalidade instrumental , que tantos avanos alcanara nas cincias da natureza e nas matemticas, levando os pensadores modernos a buscar no prprio sujeito e na sua liberdade situada os fundamentos ticos. Outro paradigma inaugural da tica moderna, est em Hobbes, que transpondo o mecanicisimo galileiano para a tica, considerando o corpo como o primum ontologicum78

,

rejeitar a teleologia do Bem em prol de uma tica egosta e utilitarista79. Assim, a tica s se realiza como normas que visem superar a natural averso sociabilidade do ser humano para faz-lo migrar do seu estado selvagem para a sociedade civil, atendendo a lei primeira de manutenao da paz que visa a sobrevivncia. Em Hobbes a tica est absorvida pela poltica, o que expressa o carter puramente poitico do seu pensamento que no admite a tendncia do indivduo a um Bem metafsico, mas que v somente na sociedade poltica a possibilidade da constituio de um universo tico. Esboa-se no seu pensamento a noo de autonomia e relativismo, pois ele admite que a condio do indivduo ( homem da natureza, cidado, soberano ) influa na postura diante dos valores, no havendo uma unidade do saber tico80 .81 A autonomia do sujeito nas ticas modernas enfrentam o desafio de ser formular uma tica universal que atenda amplitude material dos nossos tempos, partindo da finitude, da contingncia, da situao e do livre arbtrio do sujeito82, sendo que tal universalidade somente seria possvel por uma intencionalidade transemprica, de uma razo voltada para a homologia com o ser. A exigncia dessa universalidade tica faz com que essa intencionaldade transemprica, que na tradio se voltava para o plo metafsico, se volte para o plo lgico, representado pela autonomia do sujeito, tornando este princpio da ordem racional do

78 79

EF IV, p. 298 SNF 68, p. 72 80 EF IV p. 305 81 A interpretao dos fundamentos dos direitos dos homens de Paolo Flores dArcais resume a continuidade desse paradigma na atualidade, vendo no fundamento cristo uma forma de sectarismo e excluso, opta pela poder poltico. Ele profere a f no progresso e nas instituies do Estado de forma que a sua crtica ao criacionismo se torna uma clara apologia poltica e ao poder imanente das instituies. Ao tratar do direito vida e do aborto, ele sustenta a cincia como paradigma tico e o subjetivismo como juzo legtimo. DARCAIS, Paolo Flores. in Deus existe? , Joseph Ratzinger e Paolo. Flores dArcais , traduo de Sandra Martha Dolinsky Ed. Planeta. 2009 p. 73-74 82 SNF 68, p. 73

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discurso tico. Assim, resta o desafio de fundar no logos humano a universalidade objetiva do dever-ser83. Esse desafio expe os dois principais termos que a tica contempornea precisa articular que so : a autonomia do sujeito, como fonte das normas consolidada; e a

universalidade da razo tica, exigncia do alcance material de nossos tempos. Os diversos modelos lgicos buscam explicar a passagem do agir tico individual para o nvel do

consenso na comunidade tica, sem que se descaracterize, no primeiro caso , a autonomia do sujeito como princpio, e no segundo , a universalidade da razo tica84. Os modelos de teorias ticas articulando esses termos so dividas em dois grande grupos por Lima Vaz: de um lado tem-se os modelos da lgica do sujeito, de outro, tem-se os modelos da lgica da experincia. As lgicas do sujeito, so os que partem do agir do sujeito em sua autonomia na constituio de uma tica. As formas de racionalidade regidas como lgicas do sujeito impem o dever-ser ao agir humano a partir de uma demonstrao rigorosa ou pela inferncia provvel. Por essas racionalidades o sujeito tico se torna apenas o suporte de um consenso ou de um clculo das conseqncias de um agir erigido em principio puramente lgico. A preocupao principal dos modelos de lgicas do sujeito a integrao do sujeito comunidade ou histria, no h uma preocupao em investigar e demonstrar as razes imanentes ao ethos, no apresentando as razes para o tornar-se bom, como integrao uma verdade transcendente. No outro grupo figuram as lgicas da experincia, que partem de um paradigma de experincia do sujeito, em sua autonomia como sujeito tico, que se prestar funo de primum logicum no discurso da tica. Nessa proposta, entende-se que o sujeito encontrar as razes de seu agir, a partir do seu juzo de quais aes devam ser eticamente justificveis. Essas aes, no remetem porm aquelas experincias que carregam em si a imanncia do ethos, mas sim, refere-se a experincias eticamente neutras, que possam ser objetos da anlise racionalmente neutra. Na escolha dessas experincias iro prevalecer critrios como o prazer, a satisfao, a utilidade e a cincia, para a composio da racionalidade tica. 85 As racionalidades modernas imperando sobre o pensamento tico, demonstram a imanentizao do sentido na razo finita, em oposio ao universo metafsico e Absoluto83 84

SNF 68, p. 73-74 Ibid, p. 74 85 Ibid, p. 75

32

sobre o qual se realizou a idia de sentido e definem a transcendncia da tradio como arcasmo. A nossa modernidade, buscando atender necessidade lgico-histrica do ciclo desenvolvimento-cultura-tica, se depara com a dificuldade de propor um sentido para sua vida material e simblica , dada a obstruo aos caminhos para um Absoluto transcendente. Assentando-se a caracterstica dualidade entre o inteligvel das mltiplas racionalidades e a busca humana por um sentido universal para as experincias do homem, como plos que no encontram convergncia, dada a obstruo a relao com o Absoluto. Estando a concepo do sentido, na tradio pontuada pela relao com o ser, ou seja, pela presena de uma teoria do conhecimento regida pela primazia do ser, resta evidente que o sentido, como expresso do logos verdadeiro, estar agora sujeito a um nova leitura, correspondendo a sobreposio da representao ao ser. Esse novo contexto ir comprometer a presena do sentido para o homem, permitindo colocar o no-sentido como conseqncia do modelo poitico na tica. Lima Vaz apresenta duas perspectivas86 da inscrio do sentido na tradio filosfica que permitem expor a primazia do poitico como o domnio do no-sentido : a) O entrelaamento dialtico entre verdade, existncia e sentido

que deu origem a tica, como cincia das razes verdadeiras do ethos. Tal evento inscreveu o problema do sentido da existncia na histria espiritual ocidental, propondo uma vida de acordo com o bem segundo uma experincia com a verdade transcendente de uma cincia do ser. b) A crtica sofstica como primeira manifestao do no-sentido,

que reinvindicava a physis como nica fonte do bem para os indivduos, por ela suprir as necessidades naturais. Lima Vaz descreve esse evento como uma sombra do no-sentido, pois, surgia ao mesmo tempo que o sentido comeava a se constituir no discurso filosfico.

Se a primeira perspectiva mostra o evento tico como pertinente a uma primazia do ser, a segunda via demonstra que a alternativa de buscar o sentido, em um modelo sem a primazia do ser, estaria colocando o homem como medida, propugnando pela substituio da aparncia ao ser e do simulacro verdade86 87

87

, visto que o sujeito estaria se limitando ao

EF III, p. 167 Ibid, p. 168

33

mundo sensvel, no se voltando a uma verdade do ser que est alm da satisfao de suas necessidades naturais. Tais perspectivas situam o sentido como pertencente ao universo da primazia do ser, e da sua viabilidade a partir dos saberes teortico e prtico. J pela forma de saber poitico, a experincia de sentido redunda nas concluses sobre o homem medida; ou seja, pelo paradigma da satisfao de necessidades ou pelo paradigma da utilidade, a idia do sentido estaria prejudicada, justamente por no estar voltada para um ser objetivo, mas sim, delimitada pelo campo da subjetividade e representao. A presena do sentido a partir da questo tica, melhor compreendida a partir da anlise do exerccio da liberdade, considerando que no curso do seu movimento que o sentido se constitui como sentido da vida, devendo nele transluzir a verdade do ser.88

.A

liberdade tendo como finalidade a adeso ao bem, operando em sinergia com a razo no seu uso contemplativo, torna possvel o exerccio da inteligncia espiritual, na qual ela , fundamentalmente, consentimento ao bem, sendo consentimento ao ser. 89A liberdade, luz da tradio inaugurada em Plato, seria o lugar do nascimento do sentido, onde encontraramos a primazia do ser no exerccio do agir conforme o bem. A partir do pressuposto socrtico de que o agir virtuoso se submete Razo, Plato faz a correlao entre Liberdade e Razo, que corresponde sistematicamente, tica e a Metafsica. A Metafsica apresenta-se como horizonte ltimo da tica pela homologia que se faz entre virtude e conhecimento, de forma que a tica platnica prope o horizonte do BemUno para a liberdade. Por conseguinte, para Lima Vaz, o paradigma platnico decisivo e inaugural para o pensamento ocidental, elevando a liberdade humana ao plano da metafsica, como autodeterminao segundo a lgica imanente e a necessidade inteligivel que regem o movimento para a verdade do ser90. Com o predomnio do saber poitico a liberdade ficar restrita ao livre-arbtrio, associada liberdade emprica em contraposio liberdade tica e metafsica91, ou seja, no88 89

EF III, p. 171 Ibid , p. 172 90 LIMA VAZ, H.C., EF VIII - Escritos de Filosofia VIII: Platnica, So Paulo: Loyola, 2011, p. 109 91 Partimos aqui da distino que Lima Vaz faz entre liberdade emprica como livre-arbtrio, e a liberdade racional como liberdade tica. A liberdade emprica exterior ao ethos, de forma que o sujeito ainda est aberto ao no-sentido na sua recusa ou ignorncia da universalidade normativa do ethos. O ethos cumpre uma funo educadora para que o indivduo se torne um universal concreto, de forma que a liberdade emprica torne-se liberdade tica , interior ao ethos, e assim consentimento universalidade normativa do ethos ( Cf

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se voltar a transcendncia da verdade do ser, e ,por isso ,avocando para si a poisis do sentido. Assim, tem-se a figura da liberdade como absoluto imanentizado do sentido, onde as reivindicaes do ser-livre, que marcaram as revolues liberais, se voltam somente

prerrogativa do livre arbtrio, sem considerar o sentido do ser-livre. Voltada para o prprio sujeito, a prerrogativa da liberdade se submete ao hedonismo e ao utilitarismo. Estando a liberdade invertendo a direo do seu movimento, da verdade do ser para a imanncia do sujeito e suas representaes da realidade, ela se torna ento a gnese do no- sentido. Ao invs do movimento para a verdade do ser, na liberdade predominar o modelo de representao, o modelo poitico, onde o homem experimenta uma contradio vivida entre seu ser finito e situado e a pretenso ontolgica, de alcance infinito, de ser criador absoluto do sentido. 92 A perspectiva do predomnio da physis, destaca a experincia grega do no-sentido, como forma de descobrir a operao lgica secreta que transforma a produo humana do sentido em fbrica da aparncia e do no-sentido como o universo da aparncia. Trata-se sobretudo da interpretao adotada por Lima Vaz sobre o dilogo Sofista:Essas pginas clebres, ao mesmo tempo em que estabelecem as articulaes lgicas elementares de uma cincia do ser, levam a seu termo a longa querela que vinha opondo o philosophos, na concepo de Plato, ao sofista. Este retirado da sombra do no-ser, onde se refugiara, para ser definido, luz da cincia do ser, como artfice da aparncia. essa a demonstrao decisiva que se eleva no prtico da cultura ocidental e estabelece, com irrefutvel necessidade, a referncia do sentido ao ser, circunscrevendo o no-sentido ao domnio da aparncia, cujo lugar lgico justamente a 94 imanncia absolutizada do sujeito.93

, situando o universo do no sentido

Remete-se essa constatao ao realismo acrtico do qual parte a crtica sofista, como forma de alienao do sentido, onde se cr no isomorfismo entre o mundo apreendido pelos sentidos e a verdade, como primazia da aparncia, de forma que a Razo no tem ento um alcance ontolgico, ficando reduzida o seu uso para o xito social e poltico95; o sentido partir de uma verdade transcendente est ento inviabilizado. O realismo platnico rege-se deLIMA VAZ, H.C., EF II - Escritos de Filosofia II: tica e Cultura, 4 edio, So Paulo: Loyola, 2004, p. 26-27) Esse movimento de inscrio de sentido que eleve o indivduo a condio de sujeito tico est descrito na introduo da presente dissertao (cf. pg. 15). 92 EF III, p. 172 93 Ibid, p. 169. 94 Ibid, p. 168 - 169 95 Cf. EF VIII, p. 136

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outra parte pela primazia da Idia, de forma que nada seja real fora da Idia, sendo a realidade verdadeira a que realidade conhecida , a realidade que no conhecimento da Idias; portanto, a Idia fundamento e condio de todo realismo96; na concepo platnica realidade apreendida pela sensibilidade deve ser conferido um sentido transcendente para que seja realidade verdadeira. Prevalecendo nos tempos modernos a ampla elaborao terica da lgica da aparncia97 e sob o domnio de um universo poitico, onde o sujeito cumpre a funo de substncia primeira como fonte de inteligibilidade, o sentido se submete lgica da

aparncia, conduzindo a constatao de que os tempos modernos oferece apenas a aparncia do sentido, que equivale ao no-sentido. Os paradigmas dessa aparncia de sentido esto representadas nos ditames da necessidade e utilidade que regem o papel demirgico do homem moderno. Esse universo da aparncia, na amplitude dos tempos atuais, estrutura um mundo objetivo dominado pelas formas produzidas pela tecnocincia; um mundo que proclama o fim da metafsica e que assinala o domnio do universo das formas fabricadas restritas s necessidades humanas e ordenadas pela tica da produo e utilidade. 98 V-se que para Lima Vaz impera uma concepo prpria de Razo como condio para se atender plenitude de um sentido universal. Essa Razo tal qual o modelo da tradio clssica, caracterizada ento pelos seguintes elementos constitutivos: como aberta ao ser transcendente, ou seja, voltada intencionalmente para uma identidade formal com a verdade e o bem do ser; como reflexiva em si mesma, pois uma unidade na diferena consigo mesma enquanto se desdobra em formas de racionalidades; e consequentemente, como unidade analgica segundo a qual suas formas se diferenciam em virtude da referncia a uma forma paradigmtica na qual se manifesta a idia de Razo99. A primazia do saber e operar poitico do homem caracteriza a ruptura com essa tradio, demarcando o predomnio das formas criadas pelo homem sobre as formas naturais, implicando em uma referncia ao papel demirgico do homo technicus que imprime no seu universo poitico sua imagem e semelhana100.Esse processo de criao do prprio universo e das prprias referncias, assinala a relao de reciprocidade entre o mundo criado e o criador, de forma tal que o ato de

96 97

Cf. EF VIII, p. 70-71 EF III, p. 169 98 Ibid, p. 339 99 AQUINO, Marcelo Fernandes de. Metafsica da Subjetividade e Linguagem III. in SNF 71, p. 475 100 EF III, p. 340

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conhecer no insere mais o sujeito quela abertura ao ser da tradio. O sujeito conhece em seu mundo criado apenas as suas necessidades e seus paradigmas de utilidade. O estrangulamento metafsico pela razo moderna advm da atividade fabril incessante do operar poitico, em que uma gerao de novos objetos, novas teorias imanentistas e novas necessidades e utilidades, se relacionam em um crculo vicioso que aprisiona o lan do homem para o Absoluto, restringindo o ato de existir ao existir da multido das formas produzidas que , em um sentido antropolgico, no so seno os simulacros da sua finitude e da sua indigncia.101 Mas, ainda que sob o predomnio da aparncia, e do uso da liberdade como gnese do no-sentido, permanece a aspirao inata do ser-humano, confirmando a sua tarefa de buscar o sentido, pois s a ele, aberto constitutivamente ao ser e verdade, oferecido o supremo risco de enunciar o sentido verdadeiro e, assim, de interpretar as razes do ser em razes do seu prprio viver.102

1.2 REENCONTRO COM A METAFSICA - a epocalidade de Toms de Aquino.Inicialmente, deve-se compreender a presena de Toms de Aquino dentro do mtodo de Lima Vaz, que prioriza a rememorao como via para realizar a retomada dos problemas originais do ser humano. Para Lima Vaz a filosofia do sculo XXI se render a rememorao histrica, tendo por objeto a prpria possibilidade e legitimidade do exerccio do pensamento filosfico ao longo do tempo103

, o que dentro da sua concepo de histria

da filosofia como um retorno reflexivo, permitir modernidade o reconhecimento de momentos singulares onde a intuio de um grande pensador descobre uma direo nova104

. Nesse retorno reflexivo que para Lima Vaz se erguer a presena de Toms de Aquino. A presena de Toms de Aquino como termo dessa rememorao atenderia a duas

tarefas erigidas no pensamento de Vaz: recuperar a vitalidade da Teologia prejudicada na modernidade; de outro, reencontrar a metafsica do sentido transcendente na analogia entre a rememorao filosfica e a rememorao essencial e constitutiva da f crist.

101 102

EF III, p. 341 Ibid, p. 167 103 EF VII, p. 251 104 Ibid, p. 252

37

A

analogia entre a rememorao filosfica e a rememorao da f crist,

possibilitaria a retomada da relao de analogia que Toms de Aquino propunha entre filosofia e teologia, sendo cada qual, um caminho para a verdade transcendente; a verdade racionalmente alcanada e a verdade revelada. Tal analogia reprope o universo do sentido transcendente ao ato de filosofar, ao permitir que a rememorao seja tambm a rememorao de uma presena sempre misteriosamente presente ao logo do tempo e que d unidade, direo e sentido histria. 105 Esse reencontro com Tomas de Aquino, e por conseguinte, com a teologia, somente ser possvel quando se tem na rememorao, tambm uma interpretao. A rememorao parte da possibilidade de que experincia expressa em textos tericos do passado possa se fazer presente nossa experincia atual no momento mesmo em que nossa prpria leitura do texto antigo se traduz, por sua vez, em expresso, ou exatamente, em interpretao 106. Trata-se da caracterstica leitura de uma obra epocal , que seria aquela que nos aparea envolvida na indecisa claridade de antemanh do que ser o dia da histria que vivemos. Consequentemente, a experincia do presente interpelada pela presena da experincia do passado, graas leitura de uma obra epocal, ou seja, recuperando uma obra do passado, no como literal retorno, mas pela interpretao da sua atualidade.107 Deve-se se supor que a condio de possibilidade para a interpretao de uma obra epocal, est na presena de uma mnima continuidade terica entre o presente e passado, ou seja, que o horizonte histrico-cultural em que a interpretao tem lugar possa conter o horizonte da obra interpretada, de forma que, autenticamente, a interpretao do passado seja interpelao do presente.108

Por isso, na anlise da crise da modernidade importante

ter-se em conta a significao epocal da obra de Toms de Aquino para Lima Vaz, a ser compreendida a partir da caracterizao do seu pensamento como o encerramento do ciclo da metafsica cosmocntrica, e a inaugurao de um ciclo de cultura teolgica ainda presente na modernidade. Em Lima Vaz, o tema do fim do homem, como beatitude, revelar a epocalidade de Toms de Aquino, apresentando os delineamentos do mundo humano como um mundo

105 106

EF VII, p. 266 EF I, p. 37 107 Ibid, p. 38 108 Ibid, p. 39

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dotado de sentido a ser realizado na histria: o fim do homem como um fim transcendente natureza, e como a realizao na liberdade de um sentido ltimo. De outra parte, a sua separatio como ato do juzo, afirmando a primazia da existir como identidade entre o Ser e Deus, descreve a epocalidade do aquinatense na recuperao do que seria o objeto da ontologia e dos delineamentos da busca pelo Absoluto, que estaria presente como herana teolgica da busca moderna por um sentido universal. Esse carter epocal de Toms de Aquino estaria no equilbrio que o seu pensamento alcana entre a consistncia da natureza humana essencial ao cosmocentrismo antigo, e a descentrao do homem histrico implicada no teocentrismo cristo109, superando, atravs da sua metafsica do ser, homem 110. A metafsica de Toms de Aquino, transmite ao homem moderno a noo de que existir existir para um Absoluto transcendente, o redirecionando a questo fontal do existir, convergindo na sua metafsica a epocalidade das suas concepes de beatitude e de ontologia. Para compreender essa convergncia, devemos considerar o entendimento de Toms de Aquino de posicionar a metafsica como cincia primeira, e como tal de natureza sapiencial: se existe uma cincia primeira, deve ser uma sabedoria111. Assim, a metafsica se apresentaria como um saber desinteressado onde desenhado o perfil de uma atitude espiritual e de uma disposio intelectual que abrem o esprito ao apelo da sabedoria.112 Lima Vaz expe a metafsica do existir de Toms de Aquino por duas vertentes que se unem para afirmar a verdade do existir absoluto: a vertente gnosiolgica, que trata da representao ao ser, e a vertente teolgica, que trata da passagem do ser ao absoluto. Referese a distino entre Razo e F do aquinatense, que se expressa na relao entre filosofia e teologia: o uso correto da filosofia conduz ao acordo da verdade com a verdade, ela , junto a representao a-histrica da physis, possibilitando um pensamento absoluto do ser, e do mundo como horizonte histrico da realizao da razo do

109 110

EF I, p. 40 Ibid, p. 58 111 EF III, p. 313 112 Ibid, p. 315

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com a teologia, ainda que se diferenciem pelos mtodos, fazem parte de uma verdade total, de forma que a filosofia segundo a ordem teolgica113. Pela vertente gnosiolgica, Lima Vaz trata Plato como o momento objetivo do itinerrio da ontolgica clssica e Aristteles como o momento reflexivo, apontando a metafsica de Toms de Aquino como o ltimo grande itinerrio gnosiolgico rumo altitudes metafsicas na histria do pensamento ocidental114

, como o cume do qual parte

ento o caminho descendente do ser representao que caracterizar o contexto moderno da predominncia da razo operacional. De fato, como demonstra Lima Vaz, o tema da inteligibilidade primeira como passo da estrutura metafsica estar tambm presente na metafsica moderna. A noo de uma inteligibilidade radical como primeiro princpio de uma metafsica trazida por Toms de Aquino, representada pela radicalidade do existir, ser em Descartes substituda pelas regras de clareza e evidencia do cogito. Assim, do cume da metafsica tomsica se extrai o elemento principal para a abertura do projeto cartesiano que ir inaugurar a obstruo metafsica tradicional.115 Plato, como autor do primeiro estatuto cientifico da ontologia116, representaria o momento objetivo do itinerrio da ontologia, ao situar o Ser como Idia, revelada pelo juzo, a partir da sntese que opera do uno e do mltiplo, como sntese progressiva das participaes do ser. O alcance ontolgico em Plato reside somente na inteligibilidade contemplativa, referindo-se a uma imobilidade de uma contemplao pura, que absorve a originalidade da inteligncia finita pela transcendncia inteligvel do ser, que se sobrepe como objeto formal na sua identidade com a Idia. 117 Aristteles, no itinerrio da ontologia, para Lima Vaz o momento reflexivo. Concebendo o principio de contradio de que algo no pode ser afirmado como sendo e no sendo ao mesmo tempo, como principio primeiro da cincia do ser pela sua absoluta inteligibilidade e necessidade, e, portanto, como a lei do ser e a lei do pensar, Aristteles situa o ser como revelado no prprio ato judicativo, que sempre partiria de uma plano de inteligibilidade mnima de que algo , o que mantm a originalidade do ato da inteligncia, no referindo-se ao ser como Idia separada, mas como noo percebida em cada ato da113

GILSON, tienne. A Filosofia na Idade Mdia; traduo de Eduardo Brando. 2 edio, So Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 655-657 114 EF III, p. 311 115 Cf. EF VII, p. 95-103 116 EF VI, p. 61 117 Cf. Ibid, p. 64

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inteligncia. Mas, ainda que no redunde na objetividade platnica, a inteligibilidade do ser em Aristteles no penetra os seres em sua existncia, permanecendo a unidade do ser na inteligibilidade de uma substncia primeira em sua universalidade. A soluo aristotlica para Lima Vaz uma inteligibilidade universal incuravelmente lgica, por no se caracterizar como um inteligvel transcendente que seja plenitude de existncia e ao mesmo tempo subsistente inteleco.118 Toms de Aquino ir propor a unidade do ser, pela primazia existncia como o ato primeiro, e a perfeio das perfeies119, assim a inteligibildade do ser coroa-se pela inteligibilidade da existncia120que est presente em todo ato do juzo . Essa presena se entende pela ontologia de Toms de Aquino atravs da separatio, ato judicativo que liberta o ser da contingencia e do fluxo dos fenmenos, e afirma o ser como o existir em sua amplitude transcendental. Ele define que o objeto da metafsica no deriva de um processo de abstrao que resultasse em uma noo universal do ser, mas da intencionalidade dinmica do ato judicativo como identidade dialtica entre a forma do juzo (est) e o ato ou perfeio suprema (existir, esse)121

, ou seja, o ser revelado em cada ato do juzo, pois o

conhecimento pela inteligncia finita somente possvel por uma determinao mnima do objeto, de modo tal que todo ato do juzo expressa a afirmao de que algo , atestando a primazia do existir. A rota para o objeto primeiro que o objeto da metafsica parte ento das coisas sensveis, que so as primeiras coisas que conhecemos, para chegar a primeira coisa que permite esse conhecimento, que a existncia pura, ou seja, do mundo sensvel somos conduzido perfeio do existir. Em suma, todo ato de conhecimento estar afirmando que algo , pois se partisse do nada, no haveria conhecimento, mas agora, mesmo partindo do principio da no-contradio aristotlico, a determinao mnima no se refere ordem das essncias, mas primazia do existir; um principio que em Aristteles vlido para todo saber demonstrativo, aqui encontra analogia com a ordem do saber conceitual para situar o objeto da metafsica como o conceito primeiro do qual parte todo a possibilidade do conhecer122. A afirmao do ser refere-se ento a um ato puro, compreendendo o ser como118 119

Cf. EF VI, p. 68 Ibid, p. 73 120 Ibid, p. 75 121 EF III, p. 320 122 ARSTEN, Jan A., Por natureza, todas as pessoas anseiam pelo saber. In KOBUSCH, Theo (Org.), Filsofos da Idade Mdia. 2 reimpresso, Rio Grande do Sul, Unisinos, 2005, p. 254

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verbo, sendo o acto primitivo e fundamental em virtude do qual um determindado ser realmente ou existe123. Definido o plano metafsico, partindo principalmente da leitura de Joseph Marchal dos textos tomsicos124, Lima Vaz prossegue com uma breve exposio sobre a teoria tomsica do juzo, para desdobrar a rota terica que conduz da representao ao ser. A leitura marechaliana parte da dupla funo do ato judicativo, quais sejam, a

funo representativa e a funo afirmativa, correspondendo estrutura fundamental do juzo expressa na passagem do lgico (primeiro nvel) ao metafsico ( segundo nvel) 125. O primeiro nvel, chamado tambm de sntese concretiva, seria o nvel do conhecimento cientfico, e da funo representativa do ato judicativo, onde encontramos a atribuio de uma essncia ou quididade universal a um sujeito concreto126

. Enquanto que

o segundo nvel, seria o do conhecimento metafsico, como funo afirmativa do juzo, na afirmao de que algo existe, onde se afirma como real e existente aquilo que representado. A analise da articulao entre esse dois nveis a chave para a compreenso da passagem da representao ao ser , como a vertente gnosiolgica da metafsica do existir. Assim, seguindo a lio de Toms de Aquino, a passagem da representao ao ser divida em dois aspectos: o psicolgico e o gnosiolgico. Psicologicamente tem-se o intelecto agente que apreendendo uma quididade pela sensibilidade , sendo essa quididade inerente a um sujeito concreto. Gnosiologicamente, a quididade o primeiro objeto do conhecimento intelectivo, e conhecida, pela chamada sntese concretiva como sendo a forma de um sujeito concreto. 127 Esses dois aspectos evidenciam a insuficincia do momento da sntese concretiva, dado que ela implica a alteridade do seu objeto como a quididade que apreendida pelo intelecto, de forma que a unidade concretiva limita-se a atribuio de uma quididade: Tratase, no caso, de uma unidade predicamental , pois resulta da atribuio do ser no nvel

123

GILSON, tienne. Deus e a Filosofia; traduo de Aida Macedo. Lisboa. Edies 70, 2003, p. 55

124 125

EF III, p. 312 Ibid, p. 321 126 Ibid, p. 322 127 Ibid, p. 323.

42

predicamental ou categorial, circunscrito pela limitao eidtica da quididade

128

. A

cincia primeira no poderia se limitar a esse momento do juzo sob o risco de limitar-se s quididades , que so limitaes subjetivas, oriundas do mundo sensvel, no permitindo a abertura exigida por Toms de Aquino de que uma cincia primeira teria uma natureza sapiencial e portanto universal: Sem essa passagem da sntese concretiva ao ser na sua amplitude transcendental, a fsica seria a cincia primeira. 129 Na identidade ontolgica entre o objeto e o ser, como afirmao do juzo, que teria lugar a passagem da representao ao ser, dando lugar operao denominada separatio que pe em evidncia a natureza do existir (esse) como ato e perfeio suprema do ser 130. Pela separatio se eleva o objeto ao nvel da universalidade do ser (ens commune), o que implica, por sua vez, referi-lo ao Absoluto real ( Ipsum Esse Subsistens)131,