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HELENA RODRIGUES ROCHA MARTINS DE OLIVEIRA Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite Rio de Janeiro 2011

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HELENA RODRIGUES ROCHA MARTINS DE OLIVEIRA

Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de

Carmen Martín Gaite

Rio de Janeiro

2011

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HELENA RODRIGUES ROCHA MARTINS DE OLIVEIRA

Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de

Carmen Martín Gaite

I Vol.

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Neolatinas

(Literaturas Hispânicas), Faculdade de Letras,

Universidade Federal do Rio de Janeiro, como

parte dos requisitos necessários à obtenção do

título de Doutor em Letras Neolatinas.

Orientadora: Profa Dr

a Silvia Inés Cárcamo de Arcuri.

Rio de Janeiro

2011

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Oliveira, Helena Rodrigues Rocha Martins Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martin Gaite / Helena Rodrigues Rocha Martins de Oliveira – Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras 2011 x, 215 f.: il; 31 cm Orientadora: Silvia Inés Cárcamo Arcuri Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras, 2011 Referências bibliográficas: f. 203-215

1.Carmen Martín Gaite. 2. Ensaio. 3. Autobiografia. 4. Autoficção. 5. Metaficção historiográfica. 6. Literaturas Hispânicas – Tese. I. Cárcamo Arcuri, Silvia Inés. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras. III. Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite.

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Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martin Gaite

Helena Rodrigues Rocha Martins de Oliveira

Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas).

Examinada por:

_____________________________________________________________________

Presidente: Professora Doutora Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Valéria De Marco – USP

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Elena Palmero – UFRJ

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Magnólia Brasil do Nascimento – UFF

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Sônia Monnerat – UFF

_____________________________________________________________________

Professor Doutor Júlio Dalloz – UFRJ, suplente

_____________________________________________________________________

Professora Doutora Ana Isabel Guimarães Borges – UFF, suplente

Rio de Janeiro

Abril de 2011

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Dedico esta tese:

Ao meu amoroso marido, Afrânio, pela imensa dedicação e amor com que me

acompanhou em todo o trajeto de elaboração desta tese, desde o exame de seleção para o

ingresso no curso até o dia da defesa. Por sua generosidade, paciência e carinho que tanto me

ajudaram a concluir esta pesquisa. Por partilhar todas as lutas nesse caminho em que a vida

nos uniu.

Ao meu amado filho Jorge Lucas que enche minha vida de sorrisos, abraços e

felicidade.

A meus pais que me mostraram, desde menina, que estudar é bom, incentivando-me a

buscar sempre o melhor na vida.

A meus irmãos Luisinho, Roberto e Carla e a minha sobrinha Leda, pelo carinho de

sempre.

A todos que, de alguma maneira, em algum momento, colaboraram para esta

realização.

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Agradeço a Deus pela força de cada dia.

Agradeço a toda a minha família pelo incentivo, por torcer e rezar pelo meu sucesso.

Agradeço a minha querida orientadora, Silvia Cárcamo, pelo apoio, pelo incentivo e

por partilhar o conhecimento de maneira tão simples e generosa.

A todos vocês: Muito obrigada!

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RESUMO

OLIVEIRA, Helena R. R. M. de. Ensaio de autobiografia na construção da narrativa

autoficcional de Carmen Martín Gaite. Rio de Janeiro: UFRJ, abr. 2011. 217 fls. Tese de

Doutorado (Letras Neolatinas). Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas-Faculdade

de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A escritora espanhola Carmen Martín Gaite (1925-2000) elaborou uma extensa obra literária

durante a segunda metade do século XX, cultivando uma variada gama de gêneros literários

ao longo de mais de quarenta anos de criação onde o ensaio, a autobiografia, a narrativa

ficcional intimista, o romance fantástico, os roteiros de teatro e televisão conquistaram o

apreço da crítica e dos leitores comuns, tanto na Espanha quanto em outros países. O objetivo

desta pesquisa consiste em analisar a presença dos discursos autobiográfico e ensaístico na

construção da narrativa autoficcional da escritora no romance “El cuarto de atrás”. Como

suporte teórico apresentam-se, no campo da autobiografia, as teorias de Phillipe Lejeune, em

“El pacto autobiográfico” e Georges Gurdorf, em “Condiciones y límites de la autobiografia”,

teóricos que iniciaram respectivamente em 1956 e 1975 as discussões sobre este vasto campo

de pesquisa. Suas teorias servem-nos de embasamento e pretexto para a discussão sobre a

configuração e os limites desta prática narrativa na contemporaneidade. Como contraponto

são apresentados os pontos de vista de teóricos que discutiram mais recentemente a

autobiografia a partir da perspectiva pós-moderna da ruptura dos limites genéricos. Temos

como exemplo desta linha investigativa: Darío Villanueva, Guy Mercadier, Anna Caballé e

José María Pozuelo Yvancos. No que se refere ao ensaio, fundamenta-se esta pesquisa na

teoria do ensaio desenvolvida por José Gómez Martínez e María Elena Arenas Cruz que

traçam os aspectos caracterizadores deste gênero. Como contraponto, apresentam-se opiniões

de estudiosos que analisam a especificidade do ensaio literário, como Alberto Giordano. O

terceiro campo teórico que dá suporte à tese, refere-se à Autoficção, campo literário que

caracteriza-se pela mescla do discurso autobiográfico com o discurso ficcional. Neste ponto

toma-se por base as considerações de Manuel Alberca, no livro “El pacto ambíguo”, onde

traça o histórico e constituição do gênero, aplicando a teoria à análise de obras da literatura

espanhola e hispanoamericana. Com base nos aspectos assinalados pelos teóricos dessas

áreas do fazer literário, analisa-se o livro “El cuarto de atrás”, identificando a utilização do

discurso ensaístico e autobiográfico na elaboração da autoficcionalidade do texto. Como pano

de fundo, a questão da metaliterariedade, da intertextualidade, e autorreflexividade presentes

no pós-modernismo, aspectos contitutivos das metaficções historiográfica, conceito definido

por Linda Hutcheon em sua Poética do pós-modernismo.

Palavras chave: Carmen Martín Gaite – Ensaio –Autobiografia – Autoficção – Metaficção

historiográfica – Literaturas Hispânicas

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RESUMEN

OLIVEIRA, Helena R. R. M. de. Ensaio de autobiografia na construção da narrativa

autoficcional de Carmen Martín Gaite. Rio de Janeiro: UFRJ, abr. 2011. 217 fls. Tese de

Doutorado (Letras Neolatinas). Programa de Pós-graduação em Letras Neolatinas-Faculdade

de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

La escritora española Carmen Martín Gaite (1925-2000) elaboró una extensa obra literaria a

lo largo de la segunda mitad del siglo XX, cultivando un variado espectro de géneros

literarios por más de cuarenta años de creación donde el ensayo, la autobiografía, la narrativa

ficcional intimista, la novela fantástica, los guiones para teatro y televisión han conquistado el

aprecio de la crítica y de los lectores comunes, tanto en España como en otros países. El

objetivo de esta investigación consiste en analizar la presencia de los discursos autobiográfico

y ensayístico en la construcción de la narrativa autoficcional de la escritora en la novela “El

cuarto de atrás”. Como base teórica se presentan, en el campo de la autobiografía, las teorías

de Phillipe Lejeune, en “El pacto autobiográfico” y Georges Gurdorf, en “Condiciones y

límites de la autobiografía”, teóricos que iniciaron respectivamente en 1956 e 1975 las

discusiones sobre este amplio campo de estudio. Sus teorías nos sirven de base y pretexto

para la discusión sobre la configuración y los límites de esta práctica narrativa en la

contemporaneidad. Como contrapunto se presentan los puntos de vista de teóricos que

discutieron más recientemente la autobiografía a partir de la perspectiva posmoderna de la

ruptura de los límites genéricos. Tenemos como ejemplo de esta vertiente de investigación:

Darío Villanueva, Guy Mercadier, Anna Caballé y José María Pozuelo Yvancos entre otros.

Cuanto al ensayo, se fundamenta esta investigación en la teoría del ensayo desarrollada por

José Gómez Martínez y María Elena Arenas Cruz que identifican los aspectos

caracterizadores de este género. Como contrapunto, se presentan opiniones de estudiosos que

también analizan la especificidad del ensayo literario, como, por ejemplo, Alberto Giordano.

El tercero campo teórico que sostiene la tesis, se refiere a la Autoficción, campo literario que

se caracteriza por la mescla del discurso autobiográfico con el discurso ficcional. En este

punto se toma por base las consideraciones de Manuel Alberca, en el libro “El pacto

ambiguo”, donde presenta el histórico y la constitución del género, aplicando la teoría al

análisis de obras de la literatura española e hispanoamericana. Tomando por base los aspectos

señalados por los teóricos de esas áreas del quehacer literario, se analiza el libro “El cuarto de

atrás”, identificando la utilización de los discursos ensayístico y autobiográfico en la

elaboración de la autoficcionalidad del texto. En el trasfondo, la cuestión de la

metaliterariedad, de la intertextualidad, y la autorreflexividad presentes en el pos-

modernismo, siendo aspectos constitutivos de las metaficciones historiográficas, concepto

definido por Linda Hutcheon en su “Poética del posmodernismo”.

Palabras clave: Carmen Martín Gaite – Ensayo – Autobiografía – Autoficción – Metaficción

historiográfica – Literaturas Hispánicas

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A medida que lo absurdo y lo

irracional proliferan en torno nuestro y

nos tambalea una creciente sensación

de provisionalidad, más se nos van

quitando las ganas de acudir a la

literatura en busca de soluciones ni

respuestas y más agradecemos – o por

lo menos yo – esa sombra ambigua y

confortable de los textos que espejan

nuestras propias perplejidades. Me

refiero a esos relatos que no dejan

clara la frontera entre lo vivido y lo

soñado, entre el espacio y el tiempo,

entre la mentira y la verdad…

Carmen Martín Gaite

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SUMÁRIO

Pág.

Introdução................................................................................................... 01

Cap. 1 Carmen Martín Gaite................................................................................ 06

1.1 – Carmen Martín Gaite: uma biografia literária.................................... 07

1.2 – Para uma poética literária na ficção.................................................... 28

1.3 – Narrativa e interlocução: uma questão vital........................................ 41

Cap. 2

As fronteiras fluídas da pós-modernidade: ensaio, autobiografia e

autoficção....................................................................................................

48

2.1 – O pós-modernismo nos estudos literários: uma aproximação teórica. 49

2.2 – O ensaio: um gênero para pensar e fazer pensar................................. 67

2.2.1 – O ensaio de uma ficcionista..................................................... 92

2.3 – Definições e redefinições do gênero autobiográfico........................... 105

2.4 – A autoficção: uma teoria em construção............................................. 124

Cap. 3

“El cuarto de atrás”. ¿Que obra e esta?

157

3.1 – Revisão crítica..................................................................................... 157

3.2 - Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional em

“El cuarto de atrás”......................................................................................

172

Conclusões................................................................................................................

197

Referências................................................................................................................

203

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Introdução.

A presente tese de doutorado tem como objeto de estudo a obra da escritora

espanhola Carmen Martín Gaite (Salamanca 1925 – Madrid 2000). A genialidade

expressa em seus textos é reconhecida tanto pela crítica especializada quanto por seus

milhares de leitores na Espanha e em outros países. Aclamada tanto pela crítica e pelos

leitores, a escritora salmantina possui uma obra literária que abrange mais de quarenta

anos de criação. As reflexões que pretendemos realizar sobre sua obra terá como ponto

de partida a observação da variedade de gêneros literários pelos quais a escritora

transitou com maestria e a recorrência de temas em sua obra ficcional e ensaística. Mas

não somente a variedade de gêneros existentes na obra de Carmen Martín Gaite estará

em pauta, mas também o entrelaçamento desses gêneros em uma mesma obra,

colocando em jogo a questão dos limites ou fronteiras literárias.

A escritora espanhola consagrou-se por sua produção ficcional, mas além de

uma elaborada obra narrativa, com romances e contos, Carmen Martín Gaite também

escreveu ensaios literários e históricos, poesia e roteiros para a televisão e teatro. Se

considerarmos que nesta variedade de gêneros pode-se verificar a presença de temas que

aparecem reiteradamente e são reelaborados segundo as normas internas que regem

formalmente cada gênero, podemos supor que a autora utiliza seu próprio processo

criativo como ponto de partida para novas escrituras, inclusive a autocitação é um

recurso comum em sua obra, tanto na ensaística, quanto na narrativa. Este processo de

escrita e reescrita da própria obra culminou com o ―romance‖ El cuarto de atrás (1978).

A escritura híbrida desse ―romance‖ remete o leitor a um discurso ora autobiográfico,

ora ensaístico, ora ficcional. Ou as três coisas ao mesmo tempo. As narrativas híbridas

são uma constante na literatura contemporânrea, sendo um traço bastante frequente em

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obras pós-modernistas, como observa Linda Hutcheon em sua Poética do Pós-

modernismo. O hibridismo literário é atualmente um dos traços mais presentes na

narrativa espanhola atual, com o registro de um acentuado crescimento no número de

obras com esta característica nas duas últimas décadas do século passado e na primeira

do atual. Mas, considerando que El cuarto de atrás foi escrito entre os anos de 1975 e

1978 estamos diante de uma das obras precursoras da narrativa espanhola atual.

Aspectos desenvolvidos por Carmen Martín Gaite no referido romance serão

intensamente explorados por escritores que publicarão seus relatos nas décadas

posteriores. Um desses aspectos é a autoficcionalidade. Para se ter uma idéia, das 269

autoficções espanholas e hispanoamericanas inventariadas por Manuel Alberca, ao final

de seu livro ―El pacto ambíguo‖ (2007), 222 foram publicadas após El cuarto de atrás,

principalmente nas décadas de 90 do século passado e na primeira década de nosso

século, o que comprova o pioneirismo de Carmen Martín Gaite no âmbito das literaturas

hispânicas atuais.

Todas essas obras têm como traço comum: a presença do autor, enquanto

personagem e narrador, designado por seu nome próprio, num processo narrativo que

mescla seus dados autobiográficos com elementos de criação ficcional. É este processo

narrativo que tentaremos explorar no capítulo final, buscando identificar os diferentes

tipos materiais de discurso (autobiográfico e ensaístico) e como eles se organizam na

composição da autoficcionalidade da obra.

A presença da autobiografia e do ensaio na narrativa ficcional de Carmen

Martín Gaite revela uma escritora que utiliza sua ficção para cultivar a memória, através

de uma elaborada narrativa intimista, bem como exercitar a reflexão sobre sua prática

ficcional. Esta autorreflexividade do texto literário, além de antecipar uma tendência

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pós-moderna, conecta a criação literária da escritora a uma tradição do romance

hispânico – a tradição cervantina – em que a ficção é objeto de reflexão na própria

ficção. Tradição cultivada por Torres Villaroel e Unamuno. Esta prática metaliterária é

um dos fios condutores do argumento de El cuarto de atrás, introduzindo a obra de

Carmen Martín Gaite no campo da criação literária cujo estudo e definição ainda estão

em curso na atualidade: a autoficcção. O hibridismo literário é um dos traços

caracterizadores da autoficção. O uuso do discurso autobiográfico e do ensaístico,

ambos plenos de componentes metanarrativos que são os elementos fundamentais da

autoficcionalidade de El cuarto de atrás.

Para início de trabalho, buscamos um referencial teórico que trata de definir os

gêneros literários com os quais Carmen Martín Gaite enlaça El cuarto de atrás, ou seja,

o ensaio, a autobiografia e a autoficção. Inicialmente, trabalhamos com o texto de José

Luis Gómez Martínez, ―Teoría del ensayo‖, para a exposição da teoria do ensaio de

forma didática, abrangendo desde sua conformação histórica até uma caracterização

detalhada do gênero. Em seguida, partimos para a tese de doutorado de María Elena

Arenas Cruz, em que estuda o ensaio a partir do conceito de classe de textos. Desta

forma, antes de abordar a questão do ensaio propriamente dito, Arenas Cruz busca uma

definição do que podemos considerar como uma classe de textos. Tal perspectiva nos

interessa, particularmente, por ser a classe de texto uma noção mais abrangente que a do

gênero literário, sendo aplicável ao nosso estudo já que o hibridismo dos textos de

Carmen Martín Gaite os fazem escapar de um noção estanque de gênero literário. A

concepção de classe de textos também guarda alguma relação com o conceito de gênero

do discurso, conforme aborda Mikhail Bakhtin, conforme veremos. Para ampliar nossas

reflexões sobre o ensaio, traremos para a discussão algumas observações de outros

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estudiosos que tratam especificamente do ensaio dos escritores e finalizaremos com

alguns exemplos de ensaios de Carmen Martín Gaite.

Com relação à autobiografia, baseamos-nos em diversos trabalhos que

problematizam as especifidades da autobiografia enquanto gênero literário.

Ressaltamos os números monográficos da revista Anthropos dedicados especialmente

ao tema. Um dos trabalhos fundamentais que nos oferece suporte teórico a nossa

pesquisa é ―El pacto autobiográfico‖ (1991), de Phillippe Lejeune que, ao lado de

―Condiciones y limites de la autobiografía‖ (1991), de Georges Gusdorf, nos orienta na

identificação dos aspectos mais importantes do gênero autobiográfico, pois tentam

delimitar suas fronteiras enquanto gênero literário. No entanto, falar em fronteiras

literárias é algo incerto e ao mesmo tempo instigante já que grande parte das discussões

teóricas sobre literatura na atualidade questionam a existência dessas fronteiras. Ou

seja, questionam se é possível estabelecê-las, pois elas estão cada vez mais fluídas.

Sendo assim, as reflexões sobre a autobiografia se completam com alguns estudos que

propõem a investigação da problemática dos limites e fronteiras do gênero, tema

essencial para nossa pesquisa, considerando-se a autoficção um gênero limítrofe entre a

autobiografia e a ficção.

Tendo como objetivo verificar a função desses dois gêneros – o ensaio e a

autobiografia – na construção da narrativa autoficcional de Carmen Martín Gaite, nosso

suporte teórico se completa com o estudo sobre a autoficção. Neste campo, destacam-se

os trabalhos de Manuel Alberca (1999, 2007, 2009) sobre o gênero. Autor dos

principais trabalhos sobre autoficcção em língua espanhola, além de apresentar uma

visão ampla sobre os textos autoficcionais no âmbito das literaturas hispânicas, Alberca

oferece uma perspectiva histórica da origem e evolução do gênero.

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A pesquisa chega a seu objetivo final com a aplicação dessas teorias na análise

de El cuarto de atrás, obra reconhecida pela crítica como autêntico exemplo de

autoficção e onde podemos observar tanto o discurso autobiográfico, quanto o discurso

ensaístico de Carmen Martín Gaite. No entanto, pareceu-nos impossível limitar nossa

análise a este livro, e embora seja ele o fio condutor de nossas investigações, não

pudemos deixar comentar diversos trabalhos da escritora, onde temas explorados nesse

livro são reiteradamente abordados. São de suma importância seus ensaios publicados

em coletâneas como La búsqueda de intelocutor (2.000) e Tirando del hilo (2.007).

Ambos são recopilações da obra ensaística da autora dispersa em revistas e jornais em

épocas distintas de sua vida. Sendo assim, partimos agora para uma apresentação mais

detalhada de Carmen Martín Gaite.

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Capítulo 1 – Carmen Martín Gaite.

Ao iniciar a apresentação dos resultados da pesquisa desta tese de doutorado,

façamos uma aproximação à carreira literária de Carmen Martín Gaite, através de

informações coletadas em estudos críticos sobre a escritora e em seus próprios artigos

publicados em revistas e jornais, onde recorda passagens de sua vida, sempre tendo

como referencial a carreira acadêmica e literária. Cumprimos este propósito traçando

um panorama de sua carreira literária na primeira seção deste capítulo, Carmen Martín

Gaite: uma biografia literária, onde fatos da vida da escritora são contados por ela

mesma em textos em que recorda a infância, os estudos acadêmicos e suas primeiras

experiências como escritora. A contextualização histórica da vida e da obra da escritora

também se realiza nesse momento, já que é de caráter absolutamente relevante o fato da

escritora ter vivido mais da metade de sua vida sob o regime franquista, sofrendo suas

consequências como cidadã espanhola, como mulher, como intelectual e como escritora.

Em seguida, em Para uma poética literária na ficção, discutiremos as

concepções literárias de Carmen Martín Gaite elaboradas a partir de sua própria ficção

onde, à maneira de ensaio, trata de valorizar a questão da narrativa dentro do ensaio e do

ensaio dentro da narrativa.

Em Narrativa e interlocução: uma questão vital, finalizamos esta aproximação à

escritora com um estudo sobre um tema vital em sua obra: a interlocução. Tema

presente nos ensaios literários sobre outros escritores, em sua obra narrativa e ensaística

e em algumas entrevistas que concedeu a imprensa.

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1.1 - Carmen Martín Gaite: uma biografia literária.

Neste capítulo inicial, cuja pretensão é a de traçar, em linhas gerais, a trajetória

biográfico-literária de Carmen Martín Gaite, busca-se resgatar os acontecimentos de sua

vida e de sua carreira através de dados recolhidos não só em diversas publicações de

estudiosos e críticos literários, mas também, através de depoimentos da própria escritora

relatados em vários textos de sua autoria. Desta forma, já iniciamos nosso trabalho

ressaltando a tendência autobiográfica na obra de Carmen Martín Gaite, cuja trajetória

literária e biográfica é representada em sua própria obra.

Carmen Martín Gaite nasceu na cidade de Salamanca, Espanha, no dia 8 de

dezembro de 1925, filha caçula de José Martín e María Gaite. Seus primeiros estudos

não ocorreram convencionalmente devido às convicções ideológicas de seu pai que era

contrario à educação religiosa institucionalizada e, naquela época, eram raros os bons

colégios laicos em Salamanca. Desta forma, a escritora teve sua instrução inicial em

casa com professores particulares e com seu próprio pai que lhe transmitiu os primeiros

conhecimentos em arte, história e literatura. O ambiente familiar foi bastante propício

ao desenvolvimento de seu talento desde a infância, como nos relata Isabel Laguna no

artigo ―Una rebelde poco agresiva‖, publicado na ocasião da morte da escritora:

De su madre, una mujer gallega a quien definió como medio ―meiga‖, heredó

su capacidad para llevar la fantasía a la realidad y la realidad a la fantasía, y

de su padre, un notario aficionado a la lectura, el descubrimiento de la

literatura, pues fue él quien encauzó sus gustos, desde la gran biblioteca que

tenían en casa. (LAGUNA, 2000, p. 40)

O adjetivo ―meiga” atribuído à sua mãe adquire fundamental importância, pois

significa ―bruxa‖ em português e enfatiza, portanto, a ligação da mãe da escritora com o

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que podemos chamar de esfera fantástica. Esfera esta a qual a escritora adotou como

fonte de matéria para sua criação fictícia. Além disso, em sua casa a literatura ocupava

um lugar importante e Carmen Martín Gaite teve uma infância rodeada de livros. Eles

também estavam na casa de veraneio, na Galícia, como companheiros inseparáveis de

suas horas de lazer e solidão voluntária. Testemunha dos anos de guerra civil – tinha

dez anos quando eclodiu a contenda – encontrou nos livros a necessária alternativa ao

mundo real. Eles foram ponto de partida para o desenvolvimento de uma mente

criadora, em que o sonho e a fuga da realidade configuraram-se como elementos chave

para toda a sua futura criação literária.

Essa atmosfera da infância estimulante para a leitura determinou em sua opção

pela literatura como forma e meio de vida. Seus relatos e ensaios mostram como, desde

pequena, o gosto pela literatura, assim como o hábito de refletir sobre os textos que lia,

era parte inerente de seu modo de viver e de pensar desde muito jovem. No primeiro

ensaio de La búsqueda de interlocutor1, intitulado ―Los malos espejos‖, a autora

assinala a impressão que lhe causava, em suas leituras de infância, a maneira como os

autores construíam as cenas do primeiro encontro de um par romântico nos livros que

lia naquela época:

Cuando yo era niña, recuerdo haberme sentido muy fascinada por un recurso

literario común a varias de las historias de amor primeras que leí, bien

procedentes del campo de la novela rosa (…) bien de unos folletines

decimonónicos con olor a humedad que habían alimentado también sueños

juveniles de mi madre y se guardaban en los armarios de una casa donde

veraneábamos, en Galicia. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 15)

Após os anos de estudos iniciais em casa, Carmen Martín Gaite passou à

formação secundária no Instituto Feminino de Salamanca e ingressou na Universidade

1 Esta coletânea de ensaios de Carmen Martín Gaite publicados em revistas e jornais teve sua primeira

edição em 1973. Aqui utilizamos o texto da 3a edição, de 1979, em reedição do ano 2000.

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de Salamanca, em 1943, no curso de Filologia Românica, concluindo-o em 1948. Os

anos universitários foram culturalmente muito produtivos. A escritora, além de

participar de teatro universitário, começou a publicar seus primeiros poemas na revista

Trabajos y dias2. A autora se refere a estas primeiras incursões literárias no ensaio

―Salamanca, la novia eterna‖, também publicado em La búsqueda de interlocutor.

Durante mi etapa de bachiller, en Salamanca hacía un frío tan riguroso que el

Tormes llegó a helarse y los niños lo cruzaban patinando. Mi primer poema

publicado en la revista Trabajos y días evocaba aquella larga tregua del

invierno y se titulaba ―la barca nevada‖. (MARTÍN GAITE, 2000, p.193)

Os anos de universidade foram uma época de iniciação e experimentação

literária para Carmen Martín Gaite. Esta fase se deu no período pós-guerra civil, em

plenos anos 40, em que havia um grande isolamento cultural e poucas possibilidades de

expressão artística no controlado panorama das letras espanholas daquele período

histórico. A escritora encontrou na poesia e nos amigos de universidade um refúgio e

um estímulo à criação. A poesia era o gênero literário preferido daqueles estudantes,

entre os quais figurava Ignacio Aldecoa, líder dos jovens escritores e que viria a ser, na

década seguinte, um dos mais destacados representantes do neo-realismo espanhol.

Aldecoa tornou-se grande amigo de Carmen Martín Gaite e é recordado por esta no

ensaio ―Un aviso: ha muerto Ignacio Aldecoa‖3, que escreveu como homenagem

póstuma. Neste ensaio, publicado pela primeira vez na revista La estafeta literaria, em

novembro de 1969, e compilado pela autora em La búsqueda de interlocutor, relembra-

se a importância de Ignacio Aldecoa para o grupo de poetas ao qual pertenceu e destaca

o entusiasmo dos estudantes com a poesia:

2 Revista universitária salmantina de pós-guerra publicada do ano de 1946 a 1951.

3 In.: La búsqueda de interlocutor, pp. 33-45.

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Estas cosas escribía Ignacio Aldecoa por los primeros años del cuarenta,

cuando yo lo conocí en la Facultad de Letras de Salamanca. Nos gustaba

mucho a los amigos de entonces, todos entre los diecisiete y los veinte años,

esta historia del pistolero Larrigan y la recitábamos mientras tomábamos el

sol apoyados en la barandilla de piedra del palacio de Anaya entre clase y

clase, o cuando íbamos a remar en grupo al río. (MARTÍN GAITE, 2000, p.

34)

E mais adiante:

Los versos de los otros amigos – y todos escribíamos versos entonces – no

los recitábamos en alta voz; eran versos de cuchicheo íntimo para ser leídos

en casa. Hablaban preferentemente de congojas del ánimo, de preocupaciones

metafísicas, y poco después vinieron a ver la luz en la primera revista donde

yo colaboré asiduamente, Trabajos y días, revista provinciana hecha por

universitarios a que Ignacio no se asomó nunca. (MARTÍN GAITE, 2000,

p.34)

Como veremos mais adiante, este amigo será uma das personalidades mais

presentes na vida literária de Carmen Martín Gaite. De fato, o ensaio citado apresenta

aspectos autobiográficos que nos ajudam nessa tentativa de reconstruir a biografia de

Carmen Martín Gaite, já que a escritora não chegou a escrever uma autobiografia,

propriamente dita. Observaremos que será frequente a inclusão do discurso

autobiográfico na obra ensaística da escritora, como observa Juan Senís Fernández, no

artigo ―Márgenes de la autobiografia en la obra de Carmen Martín Gaite‖ (2004).

Discutindo a questão dos limites genéricos e as possibilidades de fontes de informação

na constituição de aspectos autobiográficos na obra da escritora, o crítico revela que

seus ensaios são, além de importantes contribuições à crítica literária, uma grande fonte

de informação sobre a vida da escritora.

Además de éstos, incluidos en ―Andando el tiempo‖, hay otros textos que

también se hallan en los márgenes de lo autobiográfico y donde la propia

Carmen Martín Gaite nos da, por tanto, datos sobre su periplo vital. Pero en

este caso se trata de obras que no nacen, como en el caso anterior, con

voluntad de explicar una parte de su vida o con ocasión de acontecimientos

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relacionados directamente con su trayectoria vital; más bien estamos ante

escritos que nacen con otra intención y que, por necesidades de la materia

tratada en ellos, derivan hacia regiones muy cercanas a la autobiografía. El

caso más ejemplar es Esperando el porvenir, cuyo origen está en un ciclo de

conferencias sobre Ignacio Aldecoa que Carmen Martín Gaite impartió en la

fundación Juan March en 1994, cuando se cumplía el vigésimoquinto

aniversario de su muerte. En principio, no se trataba más de eso, de una

conferencia; pero en esta ocasión, la escritora salmantina no podía hacer unas

charlas convencionales, pues como es bien sabido, Aldecoa era su amigo,

habían coincidido en las universidades de Salamanca y Madrid y habían

iniciado sus carreras literarias a la par y arropados por el mismo grupo de

amigos y las páginas de las mismas revistas. Así, sobre todo los primeros

capítulos del libro, cuentan más la historia de esta generación de escritores y,

por lo tanto, están llenos de datos personales sobre la propia vida de Carmen

Martín Gaite, además de ilustrado con numerosas fotografías. (SENÍS

FERNÁNDEZ, 2004, pp. 625-626)

A passagem refere-se ao ciclo de conferências que ocorreu vinte e cinco anos

após a morte de Ignacio Aldecoa, promovido pela fundação Juan March. Passados vinte

e cinco anos da publicação do artigo de Carmen Martín Gaite que comunicava a morte

do amigo, homenageando-o, a escritora participa de um ciclo de conferências em que

relembrar Aldecoa serviu de motivo para homenagear também a geração de escritores

que em pleno primeiro pós-guerra buscava não asfixiar-se com as limitações dos anos

iniciais do franquismo. O fragmento do artigo de Senis Fernández além de ressaltar a

importância dos ensaios de Carmen Martín Gaite para a recomposição de sua trajetória

biogrfica e literária, alude àquele grupo de escritores que compunham uma

intelectualidade espanhola sem presunções messiânicas, mas que, nas palavras de

Vazquez Montalbán4, foram uma espécie de ―puente para sensibilidades posteriores‖.

Tratava-se da geração de ―medio siglo‖.

Antes mesmo de se formar, em 1946, aos 21 anos, a escritora teve a sua primeira

oportunidade de estudar fora da Espanha com uma bolsa de estudos da Universidade de

Coimbra. Foi a sua primeira viagem ao exterior. Em Portugal, conheceu também as

4 La literatura en la construcción de la ciudad democrática. P.73.

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cidades do Porto e Lisboa. A estadia em Portugal durou dois meses e rendeu-lhe frutos

na carreira literária e acadêmica. Além do interesse pelo cancioneiro galaico-português,

posteriormente a escritora dedicou estudos à obra de Eça de Queiroz. É importante

observar que, embora a estadia de Carmen Martín Gaite em Portugal tenha se dado

durante um período em que este país, assim como a Espanha, estava sob um regime

ditatorial, o de Salazar (que permaneceu no poder de 1932 a 1968), para Carmen Martín

Gaite, o período representou um passo para a liberdade, pois, somente o fato de uma

moça solteira viajar sozinha para o exterior, desafiava as regras impostas às mulheres

espanholas da época. Era necessário já ter cumprido suas obrigações como o ―Servicio

Social‖ dirigido pela ―Sección Femenina‖, órgão subordinado à Falange Espanhola

encarregado de dar uma formação às mulheres, preparando-as para o cumprimento de

seu papel de mãe e esposa, em consonância com a ideologia imposta pelo regime

franquista.

Esta questão é retratada detalhadamente no livro Usos amorosos de la

postguerra española (1987) . No terceiro capítulo desse ensaio histórico, intitulado ―El

legado de José Antonio‖, Carmen Martín Gaite parte de um importante acontecimento

histórico – a morte de José Antonio Primo de Rivera por fuzilamento – para comentar

alguns aspectos relativos à ―Sección Femenina‖. Este órgão político cumpriu um papel

determinante na formação e no comportamento de várias gerações de mulheres na

Espanha de pós-guerra. Dirigida pela irmã de Primo de Rivera, Pilar Primo de Rivera, a

―Sección Femenina‖ era a responsável pelo Serviço Social. Tratava-se de uma espécie

de estágio com cursos obrigatórios para as mulheres solteiras ou viúvas sem filhos, onde

obtinham conhecimentos sobre os afazeres do lar, corte e costura, puericultura,

economia doméstica etc. Ou seja, assuntos relacionados ao âmbito da casa e da família,

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ao qual a vida das mulheres deveria restringir-se. No ensaio, Carmen Martín Gaite nos

dá um testemunho bastante pessoal sobre sua experiência no Serviço Social:

Cuando empezábamos a hacer el Servicio Social nos daban una chapita roja

de esmalte con las iniciales S.S. grabadas en dorado, indicadora de que se

estaba cumpliendo. En el plazo, a veces de años, que mediaba entre la

penitencia de esa insignia provisional y la adjudicación libertadora de otra

exactamente igual pero en esmalte azul. A algunas no había dado tiempo a

terminar una carrera y soñábamos con hacerla, a despecho del mes de

formación teórica, los dos de asistencia a escuelas del hogar y los tres de

prestación que se podía cumplir en comedor infantil, taller o cocina. Además

de gimnasia y un poco de baloncesto, se había aprendido, haciendo

empanadilla de escabeche y la canastilla del bebé, que para la mujer la tierra

es la familia. (MARTÍN GAITE, 1994, 63)

O fragmento demonstra que, para algumas mulheres, como é o caso da escritora,

o Serviço Social era um sacrifício que deveria ser cumprido por mera obrigação. É

importante observar que o não cumprimento do Serviço Social representava a perda da

possibilidade de ter acesso a direitos simples como o de tirar uma carteira de motorista

ou um passaporte. O Estado exercia, através desse mecanismo, um controle total sobre

as mulheres, esperando, assim, zelar pela moral e pelos bons costumes das famílias,

preparando as mulheres para seu destino mais desejável, o casamento. Ainda que na

Espanha de pós-guerra o número de mulheres fosse consideravelmente superior ao

número de homens.

Nesse contexto, é fácil entender o significado que a primeira viagem ao exterior

teve para Carmen Martín Gaite, ainda que tenha sido para um país cujo regime político

fosse muito semelhante ao instaurado na Espanha. Segundo David González Couso,

autor do artigo ―Carmen Martín Gaite y su geografía literaria‖, ―Portugal significa la

primera apertura hacia el extranjero que experimenta la escritora y, como tal, deja en su

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obra alusiones que lo relacionan con un ámbito de libertad‖ (GONZÁLEZ COUSO,

2009).

Esta primeira saída de Carmen Martín Gaite da Espanha foi mais do que uma

simples viagem de estudos de uma jovem estudante. É preciso considerar o momento

histórico que a década de 40 representa na vida cultural da Espanha, onde o regime do

pós-guerra civil, em um primeiro momento, submergiu o país em um total isolamento,

gerando uma estagnação cultural que, somente a duras penas, podia ser vencida pelos

jovens da época. O anseio de liberdade e novidade era uma marca do espírito da

escritora. O desejo de conhecer o novo, a abertura ao mundo externo ao seu, tão cheio

de limitações e restrições a sua mente talentosa, manifestava-se em sua juventude. Isto

se reflete na relação que a escritora estabeleceu com sua cidade natal, que, embora tão

querida, não lhe bastava. É o que podemos ler nas linhas iniciais do ensaio que

novamente citamos, ―Salamanca, la novia eterna‖.

Supe muy pronto, tal vez al borde de la adolescencia, que con la ciudad

donde nací, aprendí a hablar y llevé a cabo mis estudios, nunca me uniría una

relación matrimonial, sino de noviazgo sin formular del todo, uno de aquellos

amores contrariados de los que habla santa Teresa al aludir a los suyos con

Dios. (MARTÍN GAITE, 2000, p.193)

Em 1948, ao término de sua licenciatura, Carmen Martín Gaite obteve uma bolsa

de estudos para um curso de verão na Universidade de Cannes. Nessa oportunidade,

pôde ler muitos escritores franceses e, como relatou no ensaio ―Brechas en la

costumbre‖5, conheceu o ―sabor autêntico da liberdade‖. Carmen Martín Gaite,

portanto, faz parte de uma geração de escritores que, naquele contexto de pós-guerra,

começa a viajar ao exterior e a entrar em contato com a cultura européia da época. A

5 In.: Pido la palabra, pp. 342-358

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experiência na França confirmou sua convicção de que era necessário sair da cidade

natal para buscar um ambiente mais favorável ao desenvolvimento acadêmico e

literário. Assim, em novembro de 1948, deixa Salamanca rumo a Madri para dar

prosseguimento aos estudos com um projeto de doutorado.

Em Madri, começou a publicar contos e artigos em revistas literárias. Trabalhou

confeccionando fichas para um dicionário da ―Real Academia Española‖. Nesse

período, contraiu tifo e teve que regressar a Salamanca para receber os cuidados de sua

mãe. Foram mais de quarenta dias de cama e febre. A escritora transformou a

experiência da enfermidade em uma obra que poderíamos situar entre o relato

autobiográfico, a narrativa fantástica e a metaliteratura. O livro escrito no período em

que a doença durou relata os delírios febris da autora e toda sua fragilidade humana em

uma situação de total dependência. Entre os delírios causados pela febre, revelam-se

seus pensamentos sobre a vida e a literatura, sendo esta representada pelo próprio ato de

escrever que se mostra como um elemento vital para a autora/personagem da obra.

Estamos falando de El libro de la fiebre (2007), publicado postmortem. Embora

estilisticamente o livro esteja muito mais relacionado à primeira fase da escritora, onde

predominou a poesia, marca o início de sua criação narrativa, apresentando

procedimentos literários que reaparecerão algumas vezes em sua obra, como a

alternância entre sonho e realidade. A introdução de María Victoria Calvi à primeira

edição desse livro pela Editora Cátedra afirma a conexão deste relato com a obra

posterior da escritora. No estudo, Victoria Calvi cita a própria Carmen Martín Gaite,

em ―Bosquejo autobiográfico‖6 e Cuadernos de todo. A autora de ―El libro de la fiebre‖

apresenta sua visão sobre este primeiro intento narrativo fantástico.

6 In.: Agua pasada, pp. 17-19.

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En el ―Bosquejo‖, Por lo tanto, se ostenta el rechazo por el texto juvenil;

Carmen Martín Gaite hace suya la opinión negativa de Sánchez Ferlosio,

distanciándose de su visión de entonces, distorcionada por la exaltación de

neófito. Por otra parte, los dos fragmentos no salieron en ―La hora‖, sino en

la revista universitaria ―Alcalá‖, pero la autora no manifiesta gran interés por

averiguar los datos de su publicación. (VICTORIA CALVI, 2007, p.12)

A citação acima se refere ao relato em que Carmen Martín Gaite conta como foi

desestimulada por Sánchez Ferlosio (com quem viria a casar-se posteriormente) quando

lhe mostrou o livro. O escritor lhe disse que aquela narrativa ―no valía nada, que

resultaba vago y caótico‖. Ainda que Carmen Martín Gaite estivesse muito

entusiasmada com seu livro e este lhe parecesse ―muy bonito‖, a opinião negativa de

Sánchez Ferlosio prevaleceu e a escritora não se animou a publicá-lo, salvo alguns

fragmentos na revista La hora.

Por outro lado, como assinala Victoria Calvi, a escritora apresentará comentários

mais pessoais sobre El libro de la fiebre em Cuadernos de todo:

En los Cuadernos de todo, en cambio, se encuentran referencias más

personales que nos permiten enfocar la relación entre la obra primeriza y el

conjunto de su producción. Si por un lado, se confirma el ―rechazo excitado

y pirado del Libro de la fiebre, por el otro, se reconoce la importancia de este

texto, como revelación de una incipiente llamada hacia lo fantástico:

―La llamada de lo fantástico la sentí por primera vez en 1949, en mis

intentos fallidos del Libro de la fiebre. Pero está incorrupta, aunque me haya

alejado por los caminos de un realismo acomodaticio. Ahondar en el estilo

del Balneario, sería ahora que sé muchas más cosas y tengo mejor gusto y

pulso más seguro, mi salida de los infiernos. Aquello me ha dada la

identidad, dormida en mí, que estaba empezando a olvidar, a enterrar. Ahora

desafiaré genialmente. Me tengo, al fin, que atrever. Con aparente

ingenuidad y prudencia. Despistando. Se van a quedar fríos. Dinamita pura

y – hasta ahora – no la había disparado. Ya es hora. […] En el Balneario no

debía haber terminado diciendo que era un sueño. La segunda parte se carga

todo. Es un pegote cobarde, acomodaticio‖. (CT, págs.. 391-392). (Apud

VICTORIA CALVI, 2007, pp. 12-13)

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Neste fragmento da introdução de Victoria Calvi, onde ela cita o Cuadernos de

todo, destaca-se a autocrítica de Carmen Martín Gaite, que revisa sua obra inicial e a

conecta com suas convicções literárias mais perenes, as quais poderão ser percebidas

décadas mais tarde em El cuarto de atrás. O gosto pelo fantástico já se apresentava de

forma germinal, talvez sem muito conhecimento teórico, mas que será buscado e

aperfeiçoado posteriormente.

Em 1950, Carmen Martín Gaite se mudou definitivamente para Madri. Lá

reencontrou o amigo de Universidade, Ignacio Aldecoa, figura importante na trajetória

da escritora desde a época da Faculdade de Filologia, em Salamanca. Foi através dele

que a escritora ingressou no círculo literário madrilenho da época. A admiração de

Carmen Martín Gaite por Ignacio Aldecoa se prolonga ao longo de toda a sua vida e

carreira literária, posto que, após a fase poética da universidade, o escritor destacou-se

como uma das figuras mais influentes do neorrealismo espanhol, que reuniu nomes

como Jesús Fernández Santos, José María de Quino, Alfonso Sastre e Rafael Sánchez

Ferlosio, que viria a casar-se com Carmen Martín Gaite em 1953. Estes jovens fizeram

parte de uma geração que colaborou para reconstruir a literatura espanhola, também

devastada pela guerra, assim como todos os setores da vida cultural da Espanha.

Liderados por Aldecoa, estes jovens, também chamados ―niños de la guerra‖, foram os

primeiros a tentar reconstruir o panorama cultural destruído pela guerra. A professora

doutora Valéria De Marco refere-se a este grupo no artigo ―Tira y afloja: metáfora de

construção da obra de Carmen Martín Gaite‖. :

Carmen Martín Gaite integra o grupo de ―los niños de la guerra‖, expressão

usada por Josefina Aldecoa para designar um certo conjunto de escritores

cujas vidas foram submetidas a experiências sociais marcantes, profundas e

coletivas. Tendo nascido em torno do período de 1925 a 1930, estes jovens

atravessaram a infância e a adolescência cercados pela situação de guerra – a

guerra civil espanhola e a II Guerra Mundial – e, à diferença de muitos

intelectuais mais velhos que se envolveram diretamente na luta e se exilaram,

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eles ficaram na Espanha. Sob o signo da guerra, perderam a inocência e

amadureceram sob os longos trinta e seis anos da ditadura de Franco. Os

historiadores da literatura destacam as especificidades do grupo e consideram

que ele configura uma geração – ―la generación del medio siglo‖. Seus

integrantes, além de terem começado a publicar nos anos cinquenta,

dedicaram-se à literatura, desenvolvendo obras empenhadas em falar do

contexto social em que viviam. (DE MARCO, 1993, 289)

Valéria De Marco acrescenta ainda que esta geração não vivenciou os avanços

culturais e sociais promovidos pela República. Neste período que antecedeu a Guerra

Civil, foram instaurados centros radiadores de cultura – os ―Institutos de Libre

Enseñanza‖, as ―Residencias de Estudiantes‖ e as ―Casas del Pueblo‖. Todos com

projetos de arte e cultura que eram levados a todas as cidade e aldeias. Pela ação do

governo republicano, as fronteiras haviam sido abolidas, as províncias tiveram sua

autonomia reconhecida e houve uma ―rica convivência entre regionalismos, aspirações

nacionais e ritmo cosmopolita‖. Todos esses avanços foram interrompidos pela Guerra

e o longo pós-guerra que se seguiu.

É preciso recordar que o pós-guerra civil foi um momento sombrio na vida do

povo espanhol. Os anos imediatos ao término da Guerra Civil representaram, para uma

grande parte da população, miséria e fome, num país praticamente devastado. A vida

intelectual sofreu graves danos devido ao ambiente de cerceamento ideológico que se

implantou com a vitória do general Francisco Franco Bahamonde. A guerra dispersou

os intelectuais e escritores. Vários deles tiveram que exilar-se, continuando a escrever

no exterior. Foi o caso de Max Aub, Ramón J. Sender, entre outros. Os escritores que

permaneceram no país tiveram que conviver com a censura rígida de obras estrangeiras

e, obviamente, lhes era quase impossível saber o que seus companheiros das letras

estavam escrevendo no exterior.

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Se produjo por lo tanto una brusca interrupción en la continuidad literaria.

Unamuno, Valle Inclán, Antonio Machado y Lorca habían muerto, la gran

mayoría de los mejores escritores se había ido, y los que quedaron o los que

volvían eran meros fantasmas de los que fueron. En un ambiente tenso y

generalmente hostil, preocupados por cuanto los rodeaba, tenían que empezar

de nuevo entre vacilaciones bajo la atenta mirada de una censura

todopoderosa. Los años cuarenta fueron, como era de presumir, años muy

flojos para la literatura española. (BROWN, 1998, p. 235)

Os escritores espanhóis estavam, portanto, obrigados a viver em um isolamento

cultural e político. Este quadro perdurou até a década de 50, quando, motivados pela

Guerra Fria, o ocidente democrático viu com bons olhos o anticomunismo espanhol.

Segundo Manuel Vázquez Montalbán, a ―ciudad franquista‖ começa a se desconstruir já

em 1945, com o final da Segunda Guerra Mundial:

En cierto sentido, el franquismo empezó a desconstruirse en 1945, en el

momento en que, perdido el impulso inicial imperial arropado y respaldado

por la prepotencia nazi-fascista, la ciudad franquista tiene que resituarse en

un mundo marcado por la redivisión de la segunda guerra mundial y el

inmediato desafío de la guerra fría. (VÁZQUEZ MONTALBÁN, 1998, p.60)

Para Vázquez Montalbán, o início da guerra fria fez com que os condutores do

regime franquista percebessem que poderiam vender algo às potências vencedoras da

Segunda Guerra Mundial,

―por el simple hecho de que en el fin de la segunda está ya el nacimiento de

la tercera, la trinchera de esa contradicción fundamental a nivel universal que

significa la guerra fría: un frente de lucha de clases internacional encarnado

en una política de bloques ya latente dentro de la segunda guerra mundial. El

régimen franquista es consciente de que puede vender esa fortaleza

inexpuganable en la que ha convertido a la sociedad española, arrasada

cualquier vanguardia crítica y en la que sólo permanecieron focos latentes de

resistencia en condiciones muy precarias. (VÁZQUEZ MONTABÁN, 1998,

p. 63)

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Os Estados Unidos apoiaram economicamente a Espanha em troca da

viabilização da construção de bases militares no país. A ajuda estrangeira e o

investimento no turismo facilitaram o crescimento econômico da Espanha. Ao mesmo

tempo, o isolamento em que a Espanha se encontrava deu lugar a uma tímida abertura

com o Plano de Desenvolvimento que começou a ser implantado por Franco, em 1959.

Alguns fatores como o aumento do número de estudantes universitários, a

expansão da classe média e a conscientização do proletariado modificam o quadro

sócio-cultural da Espanha, trazendo como consequência uma literatura direcionada ao

realismo social, com obras representativas como La colmena, de Camilo José Cela e

Nada, de Carmen Laforet.

Después de La colmena se produjo un súbito florecimiento (a pesar de las

enérgicas podas de la censura) de jóvenes talentos consagrados a la causa de

exponer, o al menos de dar testimonio, de las calamidades de la vida española

(...). El consciente testimonio de estos escritores, muchos de los cuales eran

todavía niños durante la Guerra Civil, pero que ahora habían llegado a una

edad en que podían denunciar sus consecuencias, fue como una bocanada de

aire fresco para las letras españolas. (BROWN, 1998, p. 241)

Para que acontecesse este ressurgimento da literatura espanhola, foi de

fundamental importância a existência desse grupo de jovens escritores que,

principalmente, em seus romances, assumiam um papel informativo em uma sociedade

onde qualquer informação era filtrada pelos meios oficiais de censura. O romance foi,

durante a década de 50, uma espécie de substituto de outros meios de informação.

Mortos ou exilados os grandes ícones da cultura espanhola, parte dos narradores

de ―medio siglo‖ encontraram no cinema neorrealista italiano uma linguagem estética

que ia ao encontro as suas inquietações e necessidades expressivas. O neo-realismo

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italiano configura-se como uma corrente artística que tem suas primeiras manifestações

a partir de 1945, com a derrota da Alemanha na Segunda Guerra Mundial e a liberação

do país. Os acontecimentos históricos de pós-guerra, bem como os imediatamente

anteriores ao fascismo e a resistência, foram o foco de análise dos escritores e cineastas,

proporcionando, assim, um clima de resgate de valores morais e civis adulterados sob o

fascismo.

O neorrealismo italiano entrou na Espanha na primeira metade dos anos 50,

através de três eventos cinematográficos: as Semanas de Cinema Italiano, realizadas em

Madri pelo Instituto Italiano de Cultura, em novembro de 1951 e maio de 1953, e as

Primeiras Conversas Cinematográficas de Salamanca, em maio de 1955. As Semanas

de Cinema Italiano marcaram os primeiros contatos dos escritores e intelectuais

espanhóis com o neorrealismo e as Conversas Cinematográficas foram os primeiros

eventos organizados por esses intelectuais contra o franquismo. Nesse momento

assumiram o neorrealismo italiano como ponto de partida para uma nova arte realista

espanhola.

A narrativa neorrealista caracterizava-se pela busca da transformação social

através de um posicionamento humanitário, baseado no amor e na bondade. A inclusão

de uma temática que chama a atenção para a dor alheia era fruto tanto para os cineastas

italianos quanto para os narradores espanhóis de uma realidade pós-guerra (Segunda

Guerra para os italianos e Guerra Civil para os espanhóis) em que a miséria e as

desigualdades eram a expressão maior do sofrimento humano.

Na narrativa de pós-guerra de Carmen Martín Gaite, em especial, vemos a

aproximação terna aos que se sentem sozinhos e desamparados, como a senhorita

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Matilde de sua primeira narrativa longa, El Balneario (1953)7 e os injustiçados, como a

empregada doméstica doconto ―Los informes‖8. O romance Entre visillos, também

apresenta uma preocupação humanitária, visível na angústia de personagens como a

jovem Natália que, por ser mulher, sofre pela falta de liberdade para realizar suas

aspirações profissionais.

A geração de escritores neorrealistas espanhóis, também chamada de geração de

―medio siglo‖, manifestou seu compromisso de renovar as letras e a cultura do país em

diversas revistas literárias. Primeiramente, nas revistas promovidas pelo Sindicato

Espanhol Universitário como La Hora, Alcalá, ou em publicações independentes como

Índice, Correo Literario. Mas foi com a Revista Española, nos seus seis números

bimestrais, publicados a partir de maio de 1953, que o movimento ganhou coesão. José

Carlos Mainer comenta a importância da revista no estudo introdutório ao romance

Ritmo lento:

Y no es nada casual que en el primer número Ignacio Aldecoa reseñara con

entusiasmo el estreno de Escuadra hacia la muerte, de Alfonso Sastre y que

apareciera el bellísimo relato de Jesús Fernández Santo, ―Cabeza rapada‖; no

es un tacto de codos entre buenos amigos sino el reconocimiento de dos

signos de alerta a propósito de la primera tragedia existencial del teatro

español de posguerra y de un primer cuento de clara vocación neorrealista

(Martín Gaite se estrenó en la segunda entrega con la narración Un día de

libertad).9

Neste comentário que se refere aos dois primeiros números da Revista Española,

estão quatro dos principais nomes do neorrealismo espanhol. Mais adiante, José Carlos

7 El balneario foi, conforme a própria Carmen Martín Gaite revelou, a primeira tentativa de passar do

conto ao romance. Escrito em 1953, ganhou o prêmio Café Gijón de 1954. Utilizamos aqui o texto incluído na coletânea Todos los cuentos, pp. 15 a 81. 8 Neste conto, também recolhido em Todos los cuentos, uma jovem empregada doméstica é acusada

injustamente de roubo sendo desumanamente humilhada. 9 Mainer, José Carlos. “Meterse a novelista”. In: Ritmo lento. p.XVII

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Mainer descreve como o cinema neorrealista italiano formou a base do movimento

literário na Espanha.

Pero en su corto año de vida Revista Española ofreció más cosas. En sus

páginas, los filmes del neorrealismo se transformaron en una suerte de

sacramento general para quienes ya habían asistido con unción a las semanas

de cine italiano celebradas en Madrid en junio de 1950 y en marzo de 1953.

Aquellas imágenes límpidas y directas, donde la trama estaba subordinada a

la eficacia de las escenas sueltas, hechas con la cámara en la calle y con

actores no profesionales, les mostraron el camino de una posible estrategia

artística para una posguerra y, sobretodo, la recuperación de la objetividad

(casi tienta escribir ―de la inocencia‖) del observador.10

Anna Mateu, na monografia Carmen Martín Gaite y el periodismo. La visión de

los medios de comunicación en los artículos de prensa (1949-2000), organiza e analisa

diacronicamente os artigos de Carmen Martín Gaite publicados na imprensa, desde os

anos 40, até a década de 90. A pesquisadora lembra a importância das revistas literárias

como meios aglutinadores daquela geração de escritores cujo traço comum era mais

político do que, necessariamente, literário.

Este grupo de amigos será la llamada ―generación del cincuenta‖ o ―del

medio siglo‖. También se la ha llamado ―generación perdida‖, ―generación

puente‖, ―generación silenciosa‖, ―generación olvidada‖ o ―generación

oscura‖. Josefina Rodríguez, miembro del grupo y esposa de Ignacio

Aldecoa, preferirá nombrarlos ―los niños de la guerra‖, y Ana María Matute,

―la generación de los niños asombrados‖. Martín Gaite escribirá, cuarenta

años más tarde, un artículo – con una inusual actitud de distanciamiento, a

pesar de incluirse como primera persona – analizando lo que unió a los

escritores de su generación. (MATEU, 2009, 21)

E mais adiante:

Estos jóvenes escritores, nascidos entre 1925 e 1930 se agruparon en sus años

universitarios en Madrid en torno a la Revista Española, auspiciada por

10

Idem. p.XVIII.

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Rodríguez Moñino – de la que hablaremos más abajo –, y en Barcelona en

torno a la revista Laye, alentada por José María Castellet y Manuel Sacristán.

Desde Catalunya, Carme Riera también dejará de lado las discusiones

teóricas sobre si se puede considerar una generación o sencillamente un

grupo de amigos dedicado a autopromocionarse a la ―Escuela de Barcelona‖,

de la que forman parte Carlos Barral, Jaime Gil de Biedma y José Agustín

Goytisolo (Mateo Gambarte, 1996: 211). Aunque entre los estudiosos hay

una gran dispersión en el concepto y la forma de nombrar esta generación,

parece que Martín Gaite acepta esta etiqueta.

Lo que comparten todos estos escritores, para Mateo Gambarte, es ―una

actitud cívica de antifranquismo‖. Esta actitud – más como personas que

como escritores – sumada ―a lo de una escuela común (la educación bajo la

dictadura uniformada y uniformante) son los elementos que en una primera

época pueden dar un cierto aire de familia a la foto, efecto muy parecido a

ese parecido que sufren las amigas adolescentes…‖ (Mateo Gambarte, 1996:

207-208). (MATEU, 2009, p. 22)

A década de 50 marcou, portanto, a primeira fase literária de Carmen Martín

Gaite, cujos relatos apresentaram muitos aspectos neorrealistas. A própria autora

analisará, anos mais tarde, essa vertente da literatura espanhola de pós-guerra,

assinalando que suas histórias se caracterizam por não ter um final feliz nem uma moral

da história. Para Carmen Martín Gaite, eram relatos que mostravam algumas visões da

realidade circundante e onde o autor não dava nenhuma solução aos problemas

apresentados, limitava-se a ser apenas uma mera testemunha de uma realidade pós-

guerra civil.

Nesse período veio à luz o romance Entre visillos (1958) e, um pouco depois,

Ritmo lento (1963). Em ambos, os personagens e conflitos apresentados são

determinados pelo franquismo. Nesse período também publicou diversos contos nas

revistas literárias há pouco mencionadas. Entre 1963 e 1974, Carmen Martín Gaite não

publicou nenhum romance.

O silêncio narrativo foi rompido em 1974, com Retahílas. Em 1975, com a

morte de Franco, iniciou-se o período de transição democrática na Espanha. Dom Juan

Carlos I de Borbón foi proclamado Rei da Espanha e teve um papel fundamental no

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processo de recuperação das liberdades democráticas na Espanha. Este processo se

desenvolveu de forma pacífica com a colaboração da maioria do povo espanhol, da

monarquia e de políticos reformistas. Em dezembro de 1976, um referendo aprovou a

Lei da Reforma Política que legalizou os partidos políticos e, em 1977, realizaram-se as

primeiras eleições por sufrágio universal desde 1936. Em 1978, com o consenso de

todos os partidos políticos, a nova Constituição foi aprovada por votação popular em

novo referendo. Foi neste clima de abertura política que Carmen Martín Gaite publicou

mais dois romances: Fragmentos de interior (1976) e El cuarto de atrás (1978). Nos

três romances da década de setenta, observa-se um posicionamento analítico do passado

histórico recente, a defesa da comunicação entre as pessoas e o desejo de renovar os

procedimentos narrativos. A abertura democrática permitiu que o franquismo e a

própria figura do ―generalísimo‖ se tornassem matéria narrativa e fossem tratados de

maneira crítica.

Após a publicação de El cuarto de atrás, deu-se mais um intervalo de doze anos

sem a publicação de romances. Somente em 1990, a escritora publica novo romance

que inicia seu período mais produtivo no tocante à sua obra narrativa. Na década de 90,

nos brinda com Caperucita en Manhatan (1990), Nubosidad variable (1992), Lo raro es

vivir (1996), La reina de las nieves (1998), Irse de casa (1998). Seu último romance,

Los parentescos, foi publicado inacabado post mortem, no ano de 2001.

Ao lado de sua obra narrativa, a autora escreveu uma obra ensaística composta

de estudos literários e históricos. Devemos destacar, entre outros, as seguintes obras: El

proceso de Macanaz. Historia de un empapelamiento (1970),

Usos amorosos del dieciocho en España, (1972), La búsqueda de interlocutor y otras

búsquedas (1973), El cuento de nunca acabar (1983), Usos amorosos de la postguerra

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española (1987), Desde la ventana (1987), Agua pasada (1993), Esperando el porvenir:

Homenaje a Ignacio Aldecoa (1994). Merece destaque especial o livro Tirando del

hilo, (2006). Trata-se de uma recopilação de artigos da escritora publicados em

periódicos entre os anos de 1949 e 2000. Por abranger praticamente toda a carreira da

escritora, esta coletânea é uma referência no estudo da evolução do pensamento crítico-

literário de Carmen Martín Gaite.

Em nossa pesquisa, verificamos uma estreita relação entre a obra narrativa de

Carmen Martín Gaite e seus ensaios, em que a escritora elabora de forma crítica alguns

temas abordados artisticamente em suas narrativas. Nas próximas páginas,

verificaremos que temas são estes e o como seu posicionamento teórico se articula de

maneira coerente com sua prática narrativa e ensaística.

A carreira de Carmen Martín Gaite foi coroada com mais de dez prêmios

literários, dos quais destacamos: Prêmio ―Café Gijón‖, em 1954, pelo romance El

balneario; Prêmio ―Nadal‖, em 1957, pelo romance Entre visillos; Prêmio ―Nacional de

Literatura‖, em 1978, pelo romance El cuarto de atrás; Prêmio ―Nacional de literatura

infantil y juvenil‖, em 1984; Prêmio ―Anagrama‖ e ―Libro de Oro de los libreros

españoles‖, em 1987, pelo ensaio histórico Usos amorosos de la postguerra española;

Prêmios ―Príncipe de Asturias de las Letras Españolas‖ e ―Acebo de Honor‖, em 1988,

e ―Castilla y León de las Letras‖, em 1992, em reconhecimento ao conjunto de sua obra;

Prêmio "Nacional de las Letras", em 1994, em reconhecimento a sua trajetória literária e

pelo romance ―La reina de las nieves‖; Prêmio ―Miguel Delibes‖, em 1994 e ―Medalla

de oro de la Villa de Madrid‖, no ano 2000.

A carreira de Carmen Martín Gaite somente encerrou-se com sua morte, em 23

de julho de 2000, vítima de câncer. Seu falecimento causou grande comoção no mundo

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das letras e da cultura. Renomados escritores destacaram, na ocasião, a importância e a

qualidade de sua obra. O escritor português José Saramago escreveu para o jornal ABC

na ocasião:

Del mundo literario de Carmen Martín Gaite me interesó mucho esa

sensibilidad que ella tenía para los entresijos del espíritu femenino. Esa

capacidad increíble de fabulación que ella poseía y que se acentuó en el

dominio de lo fantástico de los últimos tiempos. La muerte de Carmen

Martín Gaite es una pérdida irreparable para la literatura, para sus amigos y

para sus innumerables y muchísimos lectores que en esa hora nos sentimos

muy afectados.11

Da mesma forma, o escritor uruguaio Mario Benedetti declarou para Europa

Express que Carmen Martín Gaite era muito apreciada por escritores e críticos. O

secretário de Estado de Cultura da Espanha na ocasião, Luis Alberto Cuenca, também

deixou seu registro sobre a escritora: Foi-se ―una maravillosa narradora, una estupenda

dramaturga y una ensayísta formidable‖. Pretendemos com nossa pesquisa colaborar

com o estudo da obra desta versátil e querida escritora que foi membro de uma geração

que colaborou para a renovação da literatura espanhola no decorrer da segunda metade

do século XX.

11

Do artigo “Sensibilidad femenina”, publicado no jornal ABC, em 24 de julho de 2000.

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1.2– Para uma poética literária na ficção.

As considerações sobre a obra de Carmen Martín Gaite que nortearão nossas

reflexões ao longo desta tese resultam da identificação de temas que permeiam muitos

textos da escritora. Tanto sua obra narrativa quanto a crítica literária, apresentam seu

pensamento sobre o fazer literário. Personagens que escrevem impulsionados por

alguma necessidade estão presentes em seus romances, como em Nubosidad variable,

onde duas amigas que se reencontram após um longo período e passam a trocar

correspondências contando a suas histórias de vida, inquietações e angústias. Já em El

cuarto de atrás, a narradora/protagonista é uma escritora que, em determinado momento

da narrativa, compartilha com um misterioso interlocutor (e também com o leitor) que

foi após a leitura de ―Introdução à literatura fantástica‖, de Todorov, que decidiu

escrever um romance fantástico (que é o próprio livro que o leitor está lendo). Nota-se,

portanto, a identificação dessas personagens com a própria autora.

Aliar o prazer e a necessidade de escrever ao estudo e à reflexão sobre o

processo criativo é uma das propostas do projeto literário de Carmen Martín Gaite.

Entendemos que esta combinação de criação com reflexão e explicação do próprio

processo de invenção literária, em especial do processo narrativo, é um fator

determinante na criação da escritora e sua preocupação com esta questão ficou

registrada nos artigos que publicou em jornais e revistas literárias, sendo recopilados em

Agua pasada (1993), La búsqueda de interlocutor e Tirando del hilo (2006). Este

último, prologado por José Teruel, organiza cronológicamente 194 artigos publicados

entre os anos de 1949 e 2000. No prólogo, José Teruel ressalta a colaboração semanal

de Carmen Martín Gaite no Diario 16 entre os anos de 1975 e 1979, no mesmo período

em que El cuarto de atrás, El cuento de nunca acabar e La reina de las nieves estavam

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em pleno processo de elaboração. Devemos recordar que 1975 foi o ano em que Franco

morreu. O fim da ditatura marcou o início de um processo de mudanças políticas,

sociais e culturais, em que escritores que viveram mais da metade de suas vidas sob o

regime implantado em 1939 – los niños de la guerra –, viram ampliadas suas

possibilidades de expressão literária. Além disso, desde os primeiros anos da década

anterior, os pressupostos teóricos do realismo literário já vinham sendo desestabilizados

por acontecimentos e estudos que propunham uma nova estética literária mais

condizente com os novos tempos. Joan Oleza, no artigo ―La poética antirrealista de los

años 70 en la literatura española‖ (1995), faz um breve histórico da mudança da

sensibilidade estética na Espanha dos anos anos 70.

Acaeció en los primeros 60 un vertiginoso asalto al poder de la norma

realista, hegemónica desde los años 30. Los hitos de este vértigo los evoca

Santos Sanz Villanueva: la eclosión del boom latinoamericano con la

colaboración del Premio Biblioteca Breve de 1962 para La ciudad y los

perros ; el cambio de actitud de los dirigentes literarios de la generación del

medio siglo, en especial de su editor más representativo, Carlos Barral, de su

más celebrado crítico, Josep Mª Castellet, o de su novelista más avizor, Juan

Goytisolo; la irrupción de una nueva generación poética con algarada de

manifiesto, que culminó en la ruidosa antología novísima de 1970, prologada

por el citado crítico y editada por el no menos citado editor. En el prólogo de

ésta su autor explicaba que alrededor de 1962 "los postulados teóricos del

'realismo' empiezan a convertirse en pesadilla para muchos" y que esa

"pesadilla estética" desembocó en un doble movimiento de evolución y de

ruptura: evolución por parte de la propia generación del medio siglo, ruptura

por parte, en cambio, de gente muy joven, representativa de una nueva

sensibilidad, y que se había formado más que en contra, de espaldas a sus

mayores.

La nueva norma dominante habría de resultar de una triple alianza. De un

lado el impulso evolutivo de algunos de los más representativos escritores -

novelistas, sobre todo- de los 50, que encontró en Juan Goytisolo su

modulación más radical, en conexión con la vanguardia parisina de los 60.

Del otro la práctica creativa -poética, sobre todo- de los novísimos, audaz,

agresiva, brillante, y mucho más plural de lo que acertó a ver su antólogo,

pero que entonces concitó si no entre los lectores sí entre los críticos

adhesiones de conjunto. Finalmente la referencia estatuaria, de oráculo, de

Juan Benet, el más puro heredero del simbolismo internacional.

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Nos artigos de Carmen Martín Gaite referidos anteriormente podemos analisar

como são tratados os temas literários. Em 1975, por exemplo, a escritora publicou o

artigo ―El futuro de la novela. Henry James, especialista de lo inefable‖12

, a propósito

da publicação da Editora Taurus de uma seleção de ensaios do escritor americano.

Nesse artigo, a escritora analisa o ensaio de que dá nome ao livro. Convocando leitores,

críticos e escritores, ela inicia esse ensaio crítico que trata justamente de um de seus

temas prediletos: a narração.

Con este sugerente título, tomado de uno de los ensayos que integran el

volumen, acaba de aparecer en la editorial Taurus una selección de escritos de

Henry James, acerca de los problemas de la narración, obra que no vacilo en

calificar de fundamental para cuantos lectores, críticos y escritores se hayan

preguntado alguna vez por las cuestiones que plantea el quehacer novelístico y

que atañen a su propia esencia. El libro consta de una selección de prólogos a

sus propias obras – que constituye, a mi entender, la parte más original y

estimulante – y de varias reseñas y ensayos críticos sobre la labor de otros

escritores contemporáneos suyos (Balzac, Zola, Faubert, Tolstoi, Conrad), cuya

lectura le ha dado pie para extenderse en consideraciones sobre el mismo tema

de la narración, sus implicaciones y su alcance. (MARTÍN GAITE, 2007, p.

62)

Obviamente, esta pesquisa estabelece um corte na criação de Carmen Martín

Gaite e trabalharemos de maneira mais aprofundada com alguns ensaios e com o

romance El cuarto de atrás, onde a narrativa se debruça sobre a história, a memória e a

literatura. Nesta obra, aspectos como a ―autocrítica de la escritura, memoria, fantasía y

diálogo‖ são considerados prototípicos por Mélanie Valle Collado (2008), pois,

juntamente com a metaficção, expressam uma tendência formal da literatura do novo

romance espanhol. Em El cuarto de atrás, a protagonista/narradora recorda fatos da

história recente da Espanha e que, por ser recente, constitui parte de sua própria história,

12

Texto publicado originalmente em Informaciones de las Artes y las Letras, suplemento n. 354, 24 de abril de 1975. Recopilado em Tirando del hilo.

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posto que a obra retrata um período que a escritora viveu – o período pós-guerra civil

espanhola. No capítulo seguinte, veremos com detalhes os ensaios em que Carmen

Martín Gaite estabelece o elo com a sua criação literária e no capítulo final

verificaremos como o romance supracitado transita entre alguns gêneros literários e

constrói, através da combinação deles, uma narrativa autoficcional.

Ao ler a obra de Carmen Martín Gaite, o leitor se verá convidado a participar de

suas reflexões sobre o fazer literário e, em especial, com a questão da narração.

Segundo Carmen Martín Gaite, o ato de narrar expressa uma necessidade intrínseca ao

ser humano de recuperar as vivências, o passado, a história. Ao mesmo tempo, esta

necessidade vai ao encontro de outra necessidade, a de se ter um interlocutor que esteja

disponível para ―ouvir‖ suas narrações e, a partir de uma atitude receptiva, participar de

um diálogo com o escritor. Mas quando se fala em necessidades de um escritor, nos

remetemos um questionamento sobre a razão pela qual se escreve.

Pensemos um pouco: por quê e para quê se escreve? De onde vem a necessidade

de escrever? Que prazer há implícito no ato de transpor para o papel os acontecimentos,

as lembranças, as idéias, os pensamentos, as invenções, os sentimentos, etc.? A história

da literatura comprova que muitos escritores, em algum momento, pensam sobre essa

necessidade, e escrevem sobre a questão, já que se trata de uma necessidade que lhe é

tão imperativa. Possivelmente, foi num desses momentos que Roland Barthes escreveu,

em 1969, o artigo ―Dez razões para escrever‖13

onde, embora faça uma pequena

introdução dizendo que não pode dizer por quê nem para quê se escreve, acaba

enumerando dez razões pelas quais imagina escrever, das quais destacamos algumas.

13

Publicado no Corrieri della sera, em 29 de maio de 1969. Título original: “Dieci ragioni per scrivere”; inédito em francês. Artigo recopilado na série Inéditos conforme referencia.

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Como estão numeradas de um a dez, transcrevo algumas acompanhadas de sua

respectiva numeração:

1. por necessidade de prazer que, como se sabe, não deixa de ter alguma

relação com o encantamento erótico; (...)

3. para pôr em prática um ―dom‖, satisfazer uma atividade instintiva, marcar

uma diferença;

4. para ser reconhecido, gratificado, amado, contestado;(...)

7. para satisfazer amigos, irritar inimigos. (BARTHES, 2004, pp.101-102)

Das dez razões para escrever, selecionamos estas quatro por serem as que mais

podem estar relacionadas às concepções de Carmen Martín Gaite sobre a narração.

Barthes se refere a escrever e em nosso estudo relacionamos diretamente este ato ao de

narrar. Se observarmos detalhadamente cada uma dessas quatro razões para escrever,

veremos que todas estão relacionadas ao prazer e das quatro, as três últimas a algum

tipo de interação com o outro. Se na primeira, o ato de escrever pode ser visto como um

prazer solitário, nas seguintes este ato se realiza em duas direções: uma de afirmação de

uma subjetividade e outra que vai ao encontro do leitor. O prazer da escrita reside, em

certa parte, na busca por um leitor, que, na poética de Carmen Matín Gaite, será o seu

interlocutor. Podendo até mesmo ser um ―interlocutor sonhado‖, como acontece em El

cuarto de atrás. No romance, o homem com quem conversa é um leitor e crítico de sua

obra.

Das dez razões citadas pelo crítico francês, destacamos estas quatro, porque

também refletem o pensamento de Carmen Martín Gaite sobre a questão da escrita,

como veremos adiante, sendo que para ela tudo passará antes pela necessidade da

narração, principalmente a narração oral. Também Jorge Luis Borges associa a escrita

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ao prazer e à necessidade. Para o escritor argentino, ler e escrever são formas acessíveis

da felicidade e o escritor deve sentir alegria em escrever14

.

A leitura da obra de Carmen Martín Gaite nos coloca diante dessas duas

necessidades: a de narrar e a de escrever. Benjamin, em ―O narrador‖, afirma que a

questão da narração está diretamente relacionada à experiência. Um dos princípios

básicos da narração é a faculdade de intercambiar experiências, logo, concluímos que o

escritor que elege a narrativa como forma de expressão literária é impulsionado pelo

desejo de compartilhar com os outros suas experiências. E nisto consiste o seu prazer.

A busca pelo prazer é um dos aspectos inerentes ao ser humano, sendo assim, o prazer

estético da escrita é uma necessidade do escritor.

Em Carmen Martín Gaite, este prazer se reflete no alívio que a atividade de

narrar pode representar para o indivíduo. Em entrevista dada a Joaquín Soler Serrano

no programa de televisão A fondo15

de TVE, em 6 de abril de 1991, Carmen Martín

Gaite afirma que a causa de todas as neuroses humanas é a falta de diálogo entre as

pessoas. Entendendo diálogo como uma conversa em que ambos os interlocutores estão

profundamente interessados e envolvidos pelo que o outro diz, em um processo de

verdadeira interação. O diálogo resulta da necessidade de um narrador em contar ou

falar sobre algo e um ouvinte que apresenta uma atitude receptiva. Daí surge a

interação de idéias.

14

Informações retiradas de O dicionário de Borges, de Carlos Storni. 15

“A fondo” foi um famoso programa de entrevistas dirigido e apresentado pelo jornalista Joaquín Soler

Serrano e transmitido pela televisão pública espanhola (TVE) entre 1976 e 1981. Os entrevistados eram sempre personalidades do âmbito artístico, literário e científico da época. Entre os entrevistados por Soler podemos citar Juan Rulfo, Salvador Dalí, Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Mario Vargas Llosa, Rafael Alberti. A entrevista a Carmen Martín Gaite encontra-se na internet no arquivo de vídeo disponível em: http://video.google.com.br/videoplay?docid=8932946931150749996&ei=3CdSS9TWGpm-

qQLe5JjyAg&q=Carmen+Mart%C3%ADn+Gaite&hl=pt-BR#

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A vocação narrativa de Carmen Martín Gaite resulta de sua necessidade de

dialogar tanto com seus leitores quanto com a própria literatura. O diálogo com a

literatura se insere na obra narrativa da escritora através das relações intertextuais que se

apresentam revelando suas leituras e afinidades literárias. Neste ponto, sua obra

narrativa se encontra com sua obra ensaística que se concretiza em centenas de ensaios

publicados ao longo de uma prolífica carreira literária. Desta maneira, estabelece-se a

relação entre duas formas literárias cultivadas por Carmen Martín Gaite: a narrativa e o

ensaio. Ambos são terrenos férteis para a discussão de temas como a memória, a

história, a filosofia, a sociedade, a literatura, enfim, a vida.

Alberto Giordano, dá o seguinte título a uma das seções do artigo ―Del ensayo‖:

―Del ensayo como único modo de dialogar con la literatura‖. Em um primeiro

momento este subtítulo nos parece um pouco limitador, tendo em vista que há diversas

formas de se estabelecer um diálogo com a literatura, inclusive a partir da própria

literatura, como ocorre em tantos escritores que, em suas obras, buscam construir uma

rede de relações intertextuais, onde as referências a outras obras constituem a matéria

prima para suas próprias obras. Para compreender o posicionamento de Alberto

Giordano com relação ao ensaio, consideramos necessário ampliar seu significado.

Entendemos que aqui não se trata somente do ensaio como gênero literário. Vemos que

o autor discorre sobre a atitude ensaística que consiste exatamente numa busca de

dialogo com a literatura que leva ao questionamento e à reflexão. O autor explica que

―diálogo‖ aqui deve ser compreendido num sentido próximo ao da ―conversação‖

heideggeriana, ou seja, ao de uma interpelação que não vem de fora, mas sim do interior

do campo interpelado. Desta forma:

La búsqueda del ensayo, en la que el diálogo se instituye, ―acompaña‖ al

movimiento de la literatura, lo duplica, y encuentra en esa estrategia

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mimética la ocasión de dar testimonio de lo que está en juego – parafraseo a

Blanchot – por el hecho de que una palabra como la literaria se anuncie.

¿Qué se ensaya en un ensayo? ¿Cuál es la forma que adopta esa interpelación

que es, ella misma, literatura? Un sintagma hoy ya cristalizado, ―ensayo de

lectura‖, anticipa la respuesta. El ensayo como diálogo es un ensayo de

lectura. (GIORDANO, 1991, p.110)

O artigo de Alberto Giordano assinala alguns aspectos relevantes sobre a

natureza do ensaio literário, principalmente quando afirma que ―o ensaio como diálogo

é um ensaio de leitura‖. Embora a afirmação seja totalmente pertinente em nossa

pesquisa, fazemos uma ressalva quanto à exclusividade do ensaio para dialogar com a

literatura, já que em nosso objeto de estudo – a obra de Carmen Martín Gaite –

verificamos que este diálogo acontece dentro da própria narrativa. Mas se ampliarmos

nossa concepção de ensaio para atitude ensaística, vemos que a linha de pensamento que

o crítico segue apresenta questões teóricas que, além de servirem de mais um meio para

a compreensão de ensaio enquanto gênero literário, explicam a inserção do discurso

ensaístico em textos narrativos de Carmen Martín Gaite. Quando o autor pergunta o

que ―se ensaia em um ensaio‖, lança uma proposta de investigação sobre o que pode

tornar-se tema de um ensaio. Como ele mesmo limita seu estudo ao ensaio literário (o

que também é um dos nossos propósitos), conclui-se que o ensaio literário tratará de

aspectos relacionados à literatura. Mais que isto, o ensaio literário encerra uma forma de

aproximação ao saber que possui uma literariedade, independentemente do tema que

possa vir a ser tratado. E quando indaga ―qual a forma que esta interpelação‖ pode

tomar, veremos que o ensaio não tem uma forma definida. Justamente por não ter esta

forma definida, ele pode apresentar uma forma narrativa, como acontece em Carmen

Martín Gaite, que se utiliza seus textos narrativos para ―ensaiar‖ tantos temas literários e

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filosóficos, sociológicos, etc., fruto de suas leituras. Será o que Alberto Giordano

chamará de ―ensaio de leitura‖.

Nos ensaios de Carmen Martín Gaite, a narração foi um recurso frequente e

sempre muito bem empregado. A autora exercitou de forma magistral esta mescla de

gêneros, realizando seus ―ensaios de leitura‖, convidando o leitor a participar e conhecer

suas opiniões e considerações teóricas sobre a literatura. Um bom exemplo da

utilização da narração em um texto ensaístico de Carmen Martín Gaite é o artigo ―Los

malos espejos‖, de 1972. Num híbrido de crítica literária, relato memorialístico e de

reflexão sobre a vida e as relações interpessoais, a autora se baseia em lembranças de

infância para analisar recursos literários comuns nas chamadas ―novelas rosa‖16

.

Cuando yo era niña, recuerdo haberme sentido muy fascinada por un recurso

literario común a varias de las historias de amor primeras que leí, bien

procedentes del campo de la novela rosa (aquella colección en rústica desde

cuya portada solía mirarnos, por una cincuenta, cierta extraña mujer de

boquita pequeña, ojos perdidos en la lejanía y sombrero calado hasta las

cejas), bien de unos folletines decimonónicos con olor a humedad que habían

alimentado también sueños juveniles de mi madre y se guardaban en los

armarios de una casa donde veraneábamos, en Galicia. (MARTÍN GAITE,

2000, p.15)

O recurso literário ao qual a autora se refere diz respeito à criação de uma

ambientação especial para o primeiro encontro do par romântico desses romances. Um

pouco mais adiante, chamando a atenção para o caráter descritivo das cenas em que

ocorreria a primeira troca de olhares entre o mocinho e a mocinha daquelas histórias de

16

Herdeiros dos folhetins decimonônicos, os romances rosa diferenciavam-se destes basicamente por serem publicados em volume único. O argumento girava em torno de um casal romântico que poderia ser composto de uma mulher liberal que entrava em conflito com um homem ou uma moça pobre que, desprezada por seu entorno social, se apaixona por um rapaz rico e atraente. Em ambos os casos, o final sempre era feliz, ou seja, terminava em casamento. Dedicados ao público feminino, o romance rosa alimentou o imaginário das mulheres nos anos quarenta e cinquenta – período mais difícil do pós-guerra civil espanhola.

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amor, Carmen Martín Gaite descreve como esses momentos usualmente eram retratados

nos romances rosa:

A solas, casi siempre de noche o al atardecer y mediante irrupción inesperada

o violenta, cuya justificación no siempre era satisfactoria, el autor colocaba

frente a frente por vez primera a aquellos jóvenes desconocidos en el seno de

un decorado natural cuyas tintas de grandiosidad solían cargarse recurriendo

a una gama de imágenes tópicas que tocaban a veces lo grotesco. Y, sin

embargo, yo pienso que aquel ritual tenía cierto sentido: el de enmarcar el

encuentro, acentuándolo como acontecimiento en sí y, por supuesto, el

primordial de toda la novela. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 16)

Seguindo a leitura do artigo, observaremos que a escritora utiliza-se da

recordação de suas leituras para, além de fazer comentários de cunho exclusivamente

literário, questionar o comportamento humano transportando aspectos dos personagens

dos romances para a realidade. A escritora, motivada pelas lembranças do impacto de

suas leituras dos romances rosa, passará em um segundo momento do artigo, a fazer

uma crítica à falta de autenticidade das pessoas na sociedade em que vive.

Yo siempre cerraba aquellos libros, a los que tan ávidamente me había

asomado, con la certeza de que, a despecho de las caricias de aquellos

jóvenes, algo les había impedido de ser ellos mismos, relacionarse de un

modo autónomo y original, y pensaba que si yo no había logrado conocerlos

– es decir, diferenciar en algo a aquella María Victoria y a aquel Raúl de la

Esmeralda y el Jorge de otra novela – era porque ni uno ni otro habían sabido

darse nada de lo que prometían y pedían sus miradas primeras, o, dicho con

otras palabras, porque tampoco ellos se habían conocido en absoluto por

mucho velo blanco o flor de azahar que cerraba el relato. (MARTÍN GAITE,

2000, p. 17)

Este fragmento começa a inserir outro tema no ensaio. A lembrança de que

sentia que algo impedia os personagens desses romances de serem eles mesmos leva a

escritora a pensar que, também na vida real, as pessoas são levadas a estabelecer

relações em que algo lhes impede de serem verdadeiras. Sendo assim, vemos, no

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fragmento a seguir, a transposição do tema fundamentado em personagens literários

para a vida real:

Y, al revivir ahora el repetido rastro de decepción que me dejaron aquellas

novelas, tan lejano que se trata posiblemente de mis primeras decepciones,

me parece percibir en su sabor, entonces inexplicable, una analogía con la

amargura derivada después en tantas ocasiones del trato con personas a

quienes defraudé o me defraudaron con referencia a las esperanzas

concebidas para aquella amistad cuando se inició, o sea, en el momento del

encuentro. (MARTÍN GAITE, 2000, p. 17)

E num movimento de ir e vir da literatura para a vida e da vida para a literatura,

o ensaio prossegue:

Así que, a este respecto, se trataba de una retórica significativa (y a eso

atribuyo su huella en mi recuerdo), la que se desplegaba en las novelas a que

me vengo refiriendo para escenificar el encuentro de los protagonistas. La

eficacia de aquellos relámpagos, bosques, huracanes, cumbres, playas

solitarias, parques, barrancos o pueblecitos perdidos que servían de decorado

no estaba tanto en el acierto de su evocación como en su misión simbólica de

subrayar y enfatizar las posibilidades del encuentro como tal; las mismas –

desaprovechadas o no – que siguen y seguirán latiendo en la raíz de todo

nuevo conocimiento, de por sí excepcional e irrepetible. (MARTÍN GAITE,

2000, p. 17)

Na verdade, a escritora utiliza a literatura para falar da vida. E num tom

confessional, revela, através de uma analogia com as impressões que os romances rosa

lhe causaram, que muitas vezes se decepcionou em suas relações de amizade, tendo em

vista que nem sempre as expectativas do ―primeiro encontro‖ se concretizaram com o

decorrer do tempo. O artigo introduzirá nas páginas seguintes a questão da necessidade

do ser humano de relacionar-se deforma autêntica com o outro, o que nem sempre é

possível, dadas as imposições comportamentais que lhe são atribuídas por papéis que

fatalmente todos exercem na sociedade. No entanto, essa busca de autenticidade existe

de forma latente (mesmo que em maior ou menor grau) em todo ser humano. A isto

Carmen Martín Gaite denomina necessidade de espelho, ou seja, a necessidade de ser

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refletido no olhar do outro da forma exatamente como se é. Isto somente é possível

quando se está despojado do ―eu criado‖ – aquele que cada um cria para si mesmo e que

não corresponde ao que cada um é na verdade. O artigo termina enfatizando o anseio da

escritora por relações que sejam mais verdadeiras e profundas.

Y solamente aquellos ojos que se aventuran a mirarnos partiendo de cero, sin

leernos por el resumen de nuestro anecdotario personal, nos podrían inventar

y recompensar a cada instante, nos librarían de la cadena de la representación

habitual, nos otorgarían esa posibilidad de ser por la que suspiramos.

(MARTÍN GAITE, 2000, p. 17)

Carmen Martín Gaite elabora, ao mesmo tempo em que exercita, uma poética

literáriaem que propõe uma literatura sem limites, em que a fusão de gêneros é a base

estruturante seja de seus relatos ou de seus ensaios. Do mesmo modo que seus ensaios

são repletos de trechos narrativos, suas narrativas são repletas de procedimentos

ensaísticos. Em Lo raro es vivir (1996), um dos últimos romances da escritora, a

protagonista/narradora apresenta, em uma espécie de monólogo interior, em meio a

narração de um encontro com um amigo em um bar, idéias de filósofos existencialistas.

Frente a las corrientes de estirpe platónica que culminan en Hegel, se inicia una

atención hacia el propio existir como núcleo de la especulación filosófica. Yo

le escuchaba a medias, tamborileando con los dedos sobre la mesa, y cuando

nuestros ojos se encontraban se acentuaba la lejanía. El primero en plantearse

la extrañeza ante el vivir fue Kierkegaard, se anticipó a Sartre y Heidegger,

pero es que ahora la gente ve todo eso como una antigualla, ¿te das cuenta? (MARTÍN GAITE, 2002, p. 75)

O que temos aqui é exatamente o que Giordano chamou de ensaio de leitura em

que a autora estabelece um diálogo com a filosofia existencialista, já que os

questionamentos existencialistas permeiam todo o romance. E como é usual no ensaio,

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neste fragmento da narração, a autora convida o leitor a refletir sobre as afirmações que

faz. A pergunta ―¿te das cuenta?‖ é o convite ao leitor para participar do diálogo.

Pode-se dizer que a narrativa é intercalada de fragmentos de ensaio filosófico, no

mesmo movimento de ir e vir que observamos no artigo citado anteriormente,

comprovando que a proposta da autora de fundir os gêneros literários concretiza-se em

vários tipos de textos que escreveu. Sua criação constrói-se sobre os pilares da leitura,

da escritura de crítica literária (e filosófica), e da memória que confere a sua obra uma

perspectiva autobiográfica. Ou seja, tanto a obra narrativa quanto a obra ensaística de

Carmen Martín Gaite são testemunhos de suas experiências. El cuarto de atrás plasma

as concepções literárias da escritora num exercício experimentalista que busca a

integração da rememoração histórica com a construção de uma teoria que,

simultaneamente, se realiza na prática da escrita de uma narrativa autoficcional.

Em grande parte dos textos de Carmen Martín Gaite, encontraremos os

fragmentos de memória de uma ávida leitora que os utiliza como matéria prima de seus

romances e artigos de crítica literária. Percebe-se um ir e vir em que se transita com

naturalidade entre um gênero e outro. Para Carmen Martín Gaite, o narrar e o ensaiar

são as formas utilizadas ao longo de sua carreira para refletir sobre uma teoria literária

que tem como tônica principal a ruptura das fronteiras literárias existentes entre a

autobiografia e a ficção. Como veremos, ao final desta pesquisa, esta teoria alcançará,

no âmbito da obra da escritora, seu máximo expoente no livro El cuarto de atrás, onde

são plasmados os conceitos, as idéias, e os temas sobre os quais já havia escrito em sua

obra anterior e viria a escrever em sua obra posterior.

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1.3 – Narrativa e interlocução: uma questão vital.

A partir da leitura dos textos narrativos e ensaísticos de Carmen Martín Gaite, é

possível perceber que sua obra gira em torno da questão da busca de interlocução, a qual

a escritora propõe como parte essencial do processo narrativo. Para trazer ao debate a

questão da narração e da interlocução como uma questão vital, é preciso relembrar

algumas idéias de Benjamin em ―O narrador – considerações sobre a obra de Nikolai

Leskov‖. Aliás, este é um pensador com quem Carmen Martín Gaite dialoga

constantemente ao desenvolver questionamentos acerca da interlocução como requisito

vital para a narrativa. Em 1936, Benjamin dizia que a arte de narrar estava em vias de

extinção. O texto de Benjamin apresentava as inquietudes pertinentes àquele momento

de expansão industrial e de desenvolvimento da técnica e mostrava que o declínio da

narrativa era fruto de um fenômeno da época: a redução da faculdade de intercambiar

experiências.

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em

baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de

todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais

baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo

exterior, mas também do mundo ético sofreram transformações que antes não

julgaríamos possíveis. Com a guerra mundial tornou-se manifesto um

processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os

combatentes voltavam mudos do campo de batalha não mais ricos, e sim

mais pobres em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos

depois, na enxurrada de livros sobre a guerra, nada tinha em comum com

uma experiência transmitida de boca em boca. (BENJAMIN, 1994, p.198)

Neste fragmento, percebe-se a importância que Benjamin atribui à tradição da

narração oral e mais adiante o autor enfatiza que toda narração nasce da experiência que

passa ―de pessoa a pessoa‖. Vemos aqui que há em suas reflexões a consideração da

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existência de dois elementos fundamentais na narração: a experiência e a necessidade de

haver um interlocutor. Não há narração sem um ouvinte.

Tradicionalmente, a figura do narrador para Benjamin se revela em dois grupos.

Seus representantes arcaicos seriam o camponês sedentário e o marinheiro comerciante.

O primeiro representa o narrador que permanece na terra e é o elemento que conhece

profundamente sua cultura e transmite as histórias e tradições de sua comunidade. Já o

segundo, o marinheiro comerciante, traz consigo, as histórias que conheceu em suas

viagens. Para Benjamin, os dois são protótipos representantes das duas grandes famílias

de narradores e sempre interagiram entre si, enriquecendo o que denomina de reino

narrativo.

A extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico, só pode

ser compreendida se levarmos em conta a interpenetração desses dois tipos

arcaicos. O sistema corporativo medieval contribuiu especialmente para essa

interpenetração. O mestre sedentário e os aprendizes migrantes trabalhavam

juntos na mesma oficina; cada mestre tinha sido um aprendiz ambulante antes

de fixar em sua própria pátria ou no estrangeiro. Se os camponeses e os

marujos foram primeiros mestres na arte de narrar, foram os artífices que a

aperfeiçoaram. No sistema corporativo associava-se o saber das terras

distantes, trazidos para casa pelos migrantes com saber do passado, recolhido

pelo trabalhador sedentário. (BENJAMIN, 1994, p. 199)

A vida comunitária, as relações interpessoais e a troca de experiências são

condições essenciais para o desenvolvimento da narrativa. Nessas relações e trocas de

experiências, é possível identificar um caráter utilitário da narrativa que pode ser um

meio de ensinamento. Benjamin se refere a alguns narradores que utilizam suas

narrativas para dar conselhos aplicáveis à vida prática. Neste procedimento, o filósofo

encontra o que denomina de ―natureza da verdadeira narrativa‖.

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Tudo isso esclarece a natureza da verdadeira narrativa. Ela tem sempre em

si, às vezes de forma latente, uma dimensão utilitária. Essa utilidade pode

consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num

provérbio ou numa norma de vida – de qualquer maneira, o narrador é um

homem que sabe dar conselhos. (BENJAMIN, 1994, p. 200)

Mais uma vez, vemos a importância da experiência para o narrador. Dar

conselhos é fruto da experiência. O conselho é uma opinião, um ensinamento ou um

aviso quanto ao que cabe fazer. É preciso relacionar este ato à sabedoria, ―o conselho

tecido na substância viva da existência tem nome: sabedoria‖. Benjamin afirma que ―a

arte de narrar está definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em

extinção‖. Segundo Marcelo de Andrade Pereira17

será esta noção de sabedoria que

leva Benjamin a ―reconsiderar na era moderna alguns gêneros literários arcaicos como

forma de compreender a experiência – e o saber nela contido – dos antepassados‖. O

pesquisador explica:

No ensaio O Narrador – considerações sobre a obra de Nicolai Leskov,

escrito em 1936, Benjamin investigará os fatores socioculturais que teriam

ocasionado o enfraquecimento de um gênero literário em particular, a

narração, e que viriam, segundo o autor, a acentuar ainda mais o declínio da

experiência (Erfahrung) na sociedade moderna. O declínio da experiência

decorre, em termos gerais, da perda do sentido de uma espécie de sabedoria

ancestral, antiga. Esse é, certamente, um dos fatores que Benjamin aponta

como responsável pelo processo de degradação da experiência, em outras

palavras, a crescente desvalorização da tradição – leia-se a despersonalização

da cultura e o afundamento de valores éticos e morais –, a

desubstancialização do tempo e da história – por força dos novos meios de

produção capitalista e de comunicação –, como também o surgimento de

gêneros narrativos de antemão conservadores, entre eles, o romance burguês

e a informação jornalística. Tais condições socioculturais consistem para

Benjamin no golpe da vida moderna sobre a tradição, vida em que reina o

interesse pelo próximo, pelo mais fácil e pelo imediato. (PEREIRA, 2006,

p.64).

17

Saber do Tempo: tradição, experiência e narração em Walter Benjamin. Revista Educação e realidade.

V. 32, n.2, Jun-Dez 2006, pp. 61-78. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6845/4116. Acesso em: 16 nov. 2010.

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Os fatores da modernidade aqui apontados como responsáveis pelo declínio da

narração, em especial os novos meios de produção capitalista e de comunicação,

tornaram o individuo mais solitário. As atividades de produção artesanal, que eram

coletivas e obedeciam a um ritmo de vida mais lento, possibilitavam a troca de

experiências e a transmissão da tradição através da narração. O contexto sócio-

econômico-cultural a partir do final do século XIX e no século XX, nas sociedades

ocidentais e capitalistas, desenvolveu-se com base na mudança do paradigma da

produção de bens de consumo, bem como na própria mudança da relação das pessoas

com estes bens que passaram a ser a maior busca do homem. Parte inseparável da vida

do homem atual a busca pelo consumo tornou-se um símbolo da pós-modernidade. O

que antes estava relacionado à sobrevivência, agora, relaciona-se, cada vez mais, com o

prazer hedonista tão típico de nossos tempos. Junto a isto, os meios de comunicação,

aqui se inserem o romance burguês e a informação jornalística como lemos há pouco,

responsabilizaram-se por propagar os modelos da nova sociedade emergente. Porém o

mais importante é que essas manifestações culturais, como formas de escrever e de ver

o mundo, mudaram, definitivamente, a relação do homem com a narração e o papel

desta para a humanidade.

O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas

de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a

seu florescimento. Quando esses elementos surgiram, a narrativa começou

pouco a pouco a tornar-se arcaica; sem dúvida, ela se apropriou de múltiplas

formas, do novo conteúdo, mas não foi determinada verdadeiramente por ele.

Por outro lado, verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual a

imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes –

destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem

suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora

ela exerce essa influência. Ela é estranha à narrativa como o romance, mas é

mais ameaçadora e, de resto, provoca uma crise no próprio romance. Essa

nova forma de comunicação é a informação. (BENJAMIN, 1994, p. 202)

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Entende-se, pois, que a informação, que tem no jornalismo um de seus meios de

difusão mais poderosos, passou a influenciar a narração. Antes o conteúdo desta

remetia à tradição e à sabedoria dos antepassados, assumindo, portanto, um matiz

atemporal. Nesse novo contexto, a narração passa a servir a uma nova forma de

conhecimento: a informação. É curioso observar que, sendo o meio (material) através

do qual a informação é transmitida ao mesmo tempo um bem de consumo (o jornal, a

revista), ela passa também a ser ―consumida‖. A narração, portanto, por força dessa

circunstância teve que deixar de ser atemporal para tornar-se totalmente temporal,

inclusive, com prazo de validade. A informação que vale é a de hoje. A de ontem já

pode ser chamada de ―notícia velha‖. A fugacidade da informação é retratada no texto

de Benjamim:

Villemassant, o fundador de Figaro, caracterizou a essência da informação

com uma fórmula famosa. ―Para meus leitores‖, costumava dizer, ―o incêndio

num sótão do Quartier Latin é mais importante que uma revolução em

Madri.‖ Essa fórmula lapidar mostra claramente que o saber que vem de

longe encontra hoje menos ouvintes que a informação sobre acontecimentos

próximos. O saber, que vinha de longe – do longe espacial das terras

estranhas, ou do longe temporal contido na tradição – , dispunha de uma

autoridade que era válida mesmo que não fosse controlável pela experiência,

mas a informação aspira a uma verificação imediata. Antes de mais nada, ela

precisa ser compreensível ―em si e para si‖. Muitas vezes não é mais exata

que os relatos antigos. Porém, enquanto esses relatos recorriam

frequentemente ao miraculoso, é indispensável com o espírito da narrativa.

Se a arte da narrativa é hoje rara, a difusão da informação é decisivamente

responsável por esse declínio. (BENJAMIN, 1994, p. 203)

A experiência literária para Carmen Martín Gaite não pode ser entendida como

um proceso estanque à experiência humana. A escritora entende como um dos aspectos

mais importantes da experiência humana a capacidade narrativa. Esta se dá

primeiramente na oralidade e a necessidade de realizá-la é inerente a todo se humano,

pois intercambiar experiências é um ato sempre desejado (como já vimos em

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Benjamin). Em La búsqueda de interlocutor, Carmen Martín Gaite tratará da questão

da narração como atividade humana, relacionando-a essencialmente a uma necessidade

de preservação da memória das experiências vividas - o desejo de ―salvar de la muerte

nuestras visiones más dilectas, nuestras más fugaces e intensas impresiones...‖18

– o que

acontece no momento em que se consegue fazer com que o outro tome conhecimento

destas experiências. A narração, segundo Carmen Martín Gaite, é dos meios de buscar

o interlocutor. No entanto, a capacidade narrativa do ser humano nem sempre encontra

uma realização satisfatória na conversa com os outros, já que assim como a narração

está extinguindo-se, também os bons interlocutores (aqueles que sabem ouvir e partilhar

experiências em uma conversação) são raros. Para Carmen Martín Gaite, esta é uma das

grandes motivações do escritor. Se os interlocutores para as narrações orais estão cada

vez mais escassos, haverá de existir ainda para a narração escrita, este será o leitor. Ela

vai mais além. Se quiser, pode inventar seu interlocutor dentro da própria narrativa,

como faz em El cuarto de atrás19

. O escritor tem esse poder através da ficção e a

escrita passa a ser uma forma de conversa com o seu interlocutor, seja ele real – ainda

que desconhecido – o leitor, seja ele inventado, ou sonhado, como o homem misterioso

que entrevista a protagonista daquele romance.

A noção de que escrever é conversar é uma idéia que faz parte dos

posicionamentos literários da escritora. Na entrevista que concedeu a Joaquin Soler

Serrano, mencionada anteriormente, é possível confirmar o que a escritora pensa sobre

este tema:

18

Artigo publicado na Revista de Occidente em setembro de 1966 e recopilado no livro La búsqueda de interlocutor, pp.25-32. 19 Ver PALLEY, Julián. El interlocutor soñado de El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Ínsula –

Revista Bibliográfica de Ciencias y Letras. n. 404-405, p 30, 1980.

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S.Serrano: ―Una vez dijiste, Carmen, que escribir es conversar, lo cual parece

una definición hasta científica del acto literario.

M. Gaite: ―Bueno, es un sucedáneo de la conversación. Yo creo que si

siempre pudiéramos hablar bien con toda la gente tal como queremos y

tuviéramos un tiempo, un plazo narrativo, una pausa para hablar y ser

escuchados y escuchar, quizá no escribiríamos. Es como un sucedáneo, en

vista de que no encuentras ese interlocutor y pues te pones a escribir.

S.Serrano: Hay, sin duda, conversaciones que son sin duda mucho más

enriquecedoras que un libro. ¿No?

M. Gaite: Sí, por supuesto. Este es un tema completamente clave de mis

escritos, incluso tengo un libro que se llama La búsqueda de interlocutor, es

un librito de ensayos y trata de este tema, exactamente, es decir que en el

momento en que hay alguien con quien puedes hablar, para mí que se quite el

cine, el teatro, los viajes y hasta incluso placeres más fuertes.

S.Serrano: ¿No es esa acaso la obsesión fundamental del ser humano, la de

encontrar el interlocutor?

M. Gaite: Por cierto que lo es, pero no se dan cuenta. Entonces si no se dan

cuenta de que ahí está la clave de todo. Pues es como si no lo supieran, como

si no operaran de fondo en el deseo de buscarlo. Si uno supiera que lo que

realmente le hace falta, lo que realmente motiva todas las neurosis es lo mal

que habla con sus semejantes, buscaría con más ahinco la forma de encontrar

una pasarela entre tú y los demás. 20

Entende-se, portanto, a necessidade de interlocução na obra de Carmen Martín

Gaite como um desejo de buscar ser entendido pelo outro, e, assim, entender a si

mesmo. Daí recorrer insistentemente à memória, onde estão guardadas as leituras e as

experiências vividas, na tentativa de reconstruir e questionar o passado, construir a

própria identidade e buscar o sentido da própria existência.

20

Transcrição do trecho da entrevista a Joaquin Soler Serrano. Entrevista disponível em arquivo de

vídeo em: http://video.google.com.br/videoplay?docid=8932946931150749996&ei=3CdSS9TWGpm-qQLe5JjyAg&q=Carmen+Mart%C3%ADn+Gaite&hl=pt-BR# . Siglas: JSS – Joaquín Soler Solano; CMG – Carmen Martín Gaite.

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Capítulo 2 – As fronteiras fluídas da pós-modernidade: ensaio, autobiografia e

autoficção.

Este capítulo tem como objetivo fazer uma exploração teórica dos gêneros

literários presentes no livro El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Parte-se

inicialmente de uma aproximação aos conceitos teóricos do pós-modernismo nos

estudos literários, com o intuito de situar a obra da escritora espanhola em sua época,

dentro da cultura ocidental. Após esta contextualização inicial, seguimos com o estudo

do ensaio, da autobiografia e da autoficção. Temos como ponto de partida autores que

elaboram teorias que delimitan esses gêneros literários e, em seguida, apresentaremos

algumas discussões sobre as formulações teóricas sobre esses gêneros. Assim, para o

estudo do ensaio, teremos como ponto de partida o estudo do hispanista José Luis

Gómez Martínez e a tese de doutorado da Professora María Elena Arenas Cruz. Para o

estudo da autobiografia, iniciamos nossas observações com a compilação das idéias

constantes nas clássicas definições de Georges Gusdorf e Phillipe Lejeune. Para a

autoficção, nosso principal teórico é Manuel Alberca que possui diversos estudos sobre

este gênero híbrido que pode ser considerado um símbolo da narrativa pós-moderna. Os

pressupostos teóricos que serão apresentados neste capítulo serão a base para a análise

do livro El cuarto de atrás, que, como já adiantamos, é uma narrativa híbrida que reúne

e articula de forma magistral o ensaio, a autobiografia e a autoficção.

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2.1 – O pós-modernismo nos estudos literários: uma aproximação teórica.

O estudo da obra de Carmen Martín Gaite nesta pesquisa terá como base teórica

conceitos relacionados aos gêneros literários (ou discursivos, como veremos um pouco

adiante a partir de uma perspectiva bakhtiniana) presentes em El cuarto de atrás.

Também é relevante uma contextualização da referida obra no ambiente cultural

propiciado pelo advento do pós-modernismo, levando-se em consideração,

principalmente, o conceito de Metaficção Historiográfica, conforme a definição de

Linda Hutcheon21

. A escolha desta linha de análise crítica deve-se ao fato de que a obra

que se pretende investigar é constituída de aspectos discursivos que a inserem no campo

da Metaficção Historiográfica, devido a seus componentes históricos e metaliterários,

fusão tão caracterizadora das obras literárias pós-modernistas. Por outro lado, a análise

se desenvolve no campo da autoficção, que, a nosso ver, pode se inserir na área de

abrangência da Metaficção Historiográfica, já que escritora Carmen Martín Gaite se

insere em sua própria obra ficcional como um indivíduo crítico da história vivida e

como crítica literária. Portanto, a obra se escreve com um alto grau de

autorreflexividade, outro aspecto predominante no pós-modernismo.

Primeiramente, pensemos na questão dos gêneros do discurso. Analisar as

relações entre a literatura e outras construções narrativas, como a história, por exemplo,

pressupõe o enquadramento de ambos os campos do fazer humano em diferentes áreas

de criação cultural. Ou seja, textos que possuem características formais e temáticas

específicas. Caracterizar textos que possuem seus aspectos específicos, ou que

obedecem a uma tipologia nos leva a pensar na questão dos gêneros. Podemos pensar

21

Com base em Poética do pós-modernismo: história, teoria e ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

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em gêneros literários, já que a pesquisa se desenvolve na área de estudos literários. No

entanto, nos interessa a ampliar a extensão das noções que trabalharemos, justamente

porque a noção de gênero literário pode estabelecer limites que não nos proporcionam o

suporte teórico que nos ofereça uma perspectiva de análise atual.

Sendo assim, analisar a questão de uma tipologia textual baseada em gêneros

literários, pode fazer-nos incorrer no equívoco de observar as criações textuais como

objetos fechados e incomunicáveis que devem estar compostos de estruturas rígidas,

com conteúdos determinados e adequados às suas características e funções pré-

estabelecidas. Sem descartarmos totalmente a idéia de gêneros literários, é preciso

considerar a noção de gêneros discursivos. Para isto, tomamos como base os

pressupostos teóricos de Bakhtin (2002). Em ―Os gêneros do discurso‖22

, o teórico

ressalta que os gêneros literários, tanto na antiguidade quanto na contemporaneidade,

foram estudados pelo ângulo artístico-literário de sua especificidade, observando-se

sempre as diferenças intergenéricas, nos limites da literatura. Bakhtin apresenta a

questão dos gêneros vinculada mais especificamente aos tipos de enunciados, tendo em

vista a sua natureza linguística. Desta forma, haverá os gêneros de discurso primários,

ou da comunicação cotidiana, e os gêneros de discurso secundários, ou da comunicação

produzida a partir de códigos elaborados como a escrita. Cada um desses gêneros

apresentará variadas formas discursivas com elaborações que atenderão às diversas

necessidades de comunicação, contendo enunciados elaborados com possibilidades

distintas de estilização.

Para Todorov, a classificação das obras literárias segundo os gêneros é uma

herança das ciências naturais. No texto de abertura de seu livro ―Introdução à literatura

22

Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. São Paulo: HUCITEC, 2002.

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fantástica‖, o autor discorre sobre a noção de gênero e sua função e necessidade na

literatura, questionando até mesmo a sua existência na literatura contemporânea.

Mesmo que o texto de Todorov seja de 1939, ainda hoje, percebe-se sua atualidade,

posto que a discussão sobre parâmetros de classificação para as obras literárias não

deixou de existir nem mesmo na pós-modernidade. Tanto que o foco atual da teoria e

da crítica literária é, justamente, a quebra dos limites entre os gêneros. Todorov apóia-se

em Genette para afirmar a importância dos gêneros nos estudos literários: ―O discurso

literário se produz e se desenvolve segundo estruturas, ainda hoje, no campo de sua

linguagem e de sua estrutura‖. Desta forma, Todorov reconhece os gêneros, pois

considera que é através deles que uma obra literária estabelece uma relação com as

obras já existentes: ―Os gêneros são precisamente essas escalas através das quais a obra

se relaciona com o universo da literatura‖ (TODOROV, 2004, p. 12). O estudo também

se refere a Northrop Frye, em Anatomy of critcism, para explicar a questão dos gêneros

na literatura.

A partir da perspectiva do estudo dos gêneros literários, conforme estabelecida

por Frye, é possível traçar as especificidades do discurso literário apresentadas no texto

que ora comentamos. Primeiramente, observa-se que o texto literário não estabelece

uma relação referencial com o mundo, como se faz normalmente no discurso cotidiano.

A literatura é elaborada a partir da própria literatura. Contraditoriamente, porém, a

classificação que o estudo mostra dos textos literários, a nosso ver, desmente o

pressuposto acima. ―A primeira classificação define os ―modos de ficção‖. Eles se

constituem a partir da relação entre o herói do livro e nós mesmos ou as leis da

natureza‖ (TODOROV, 2004, p. 15).

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Se há algum tipo de relação estabelecida entre o herói e o leitor da obra (―nós

mesmos‖), a idéia de que a literatura se constitui somente a partir dela mesma, como se

sugere inicialmente, é questionável. As possíveis relações estabelecidas entre herói e

leitor são um componente básico da configuração do próprio gênero. Se há uma relação

de superioridade do herói, da natureza, sobre o leitor e sobre as leis da natureza,

estaremos diante do mito; se a relação é de superioridade, de grau, sobre o leitor e sobre

as leis da natureza, poderemos ter a lenda ou o conto de fadas, etc.

A verossimilhança também é uma categoria fundamental. A partir dela, as

narrativas poderão dividir-se me dois grandes grupos: o das narrativas verossímeis e o

das narrativas onde tudo é permitido. Outra categoria surge do efeito que a obra pode

provocar no leitor, de um lado, as obras que podem provocar o riso, efeito peculiar aos

gêneros cômicos; de outro, a emoção, é o caso dos gêneros trágicos.

Para uma sistematização dos gêneros literários, Todorov recorre às análises de

Frye, apresentando a seguinte divisão dos gêneros literários:

Vem em seguida a divisão em gêneros propriamente dita, que se fundamenta

no tipo de audiência que as obras deveriam ter. Os gêneros são: do drama

(obras representadas), a poesia lírica (obras cantadas), a poesia épica (obras

recitadas), a prosa (obras lidas) (...) A esta se junta a seguinte especificação:

‗a distinção mais importante, está ligada ao fato de que a poesia épica é

episódica, enquanto que a prosa é contínua‘. (TODOROV, 2004, p.16)

Mas, em seguida, Todorov questiona essa mesma sistematização alegando que

há diversas teorias do gênero e que, na verdade, todas elas podem ser falhas, partindo-se

da idéia de que essas teorias são construções discursivas que partem de algo abstrato, e

que suas ―regras‖ nem sempre se constatam nas obras literárias.

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53

Simplificando muito, poder-se-ia dizer que, aos olhos de Frye, a floresta e o

mar formam uma estrutura elementar; para um estruturalista, ao contrário,

esses fenômenos manifestam uma estrutura abstrata, produto de uma

elaboração, e que se articula alhures, digamos, entre o estático e o dinâmico.

(TODOROV, 2004, p.21)

A verdade é que Todorov tenta nos mostrar a insuficiência de qualquer teoria

dos gêneros ao questioná-las. Classificar textos segundo seus aspectos sejam eles

sintáticos, semânticos, ou quanto à natureza de seus personagens ou conteúdo, como

sempre fizeram o críticos e os teóricos, pode servir ao estudo sistemático da literatura,

até mesmo com fins didáticos, mas torna impossível verificar o seu alcance e a sua

função em qualquer contexto social, na modernidade, e principalmente na pós-

modernidade, onde falar em limites é praticamente um anacronismo.

Em consonância com o pensamento pós-moderno, Todorov apresenta o traço

fundamental do discurso literário, independentemente de qualquer noção de gênero:

Ora, a literatura, sabemos, existe precisamente enquanto esforço de dizer o

que a linguagem comum diz e não pode dizer. Por esta razão a crítica (a

melhor) tende sempre a se tornar ela mesma literatura: só se pode falar do

que faz a literatura fazendo literatura. É apenas a partir desta diferença

relativamente à linguagem corrente que a literatura pode constituir e subsistir.

A literatura enuncia o que apenas ela pode enunciar. (TODOROV, 2004, p.

27)

Daí que chegamos ao ponto que caracterizará a especificidade do discurso

literário. Se a literatura é fruto de um esforço em dizer o que a linguagem corrente não

é capaz de expressar, é porque temos como princípio fundamental a questão da

elaboração. O texto literário é aquele em que a elaboração constitui um dos seus traços

mais importantes. Basta então questionar em que consiste a elaboração neste tipo de

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discurso. Alceu Amoroso Lima, no livro O Jornalismo como gênero literário (LIMA,

1990, p. 51), aponta como componentes do discurso literário a criação, a invenção, a

originalidade e a introdução de novas formas. Podemos concordar em parte com o

pesquisador, já que para uma análise da literatura na atualidade, a questão da

originalidade é bastante questionável. Os textos pós-modernos primam justamente pelo

reaproveitamento de formas antigas, pela paródia, num diálogo constante com a tradição

literária. ―A arte dentro do arquivo‖, conforme a visão de Linda Hutcheon, ou o que

veremos como intertextualidade declarada, presente na metaficção historiográfica.

A possibilidade artística de ultrapassar os limites genéricos é praticamente uma

premissa básica de qualquer manifestação cultural na atualidade. A mescla de gêneros

ou tipos de discursos na literatura é ressaltada pela interação do discurso histórico com

o literário, em uma conjunção de vozes discursivas que se entrecruzam. Este aspecto da

literatura pós-moderna nos remete novamente à teoria de Bakhtin, que, já na década de

30 do século XX, antecipou vários conceitos empregados nos estudos linguísticos e

literários atuais.

A obra que analisaremos nesta pesquisa é um exemplo de narrativa em que o

discurso literário, o discurso histórico e o discurso memorialista se fundem, dando

origem a uma autoficção. Ao verificar a presença de diferentes tipos de construções

narrativas em um romance como El cuarto de atrás, podemos questionar até mesmo sua

classificação como romance, porém, como assinala Lukács (1962), ―A composição

romanesca é uma fusão paradoxal de elementos heterogêneos e descontínuos chamados

a constituir-se numa unidade orgânica permanentemente em causa‖ (LUKÁCS, 1962,

p.95).

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Vemos então que é peculiar ao romance a presença de elementos heterogêneos.

No livro El cuarto de atrás, esses elementos podem pertencer a distintos gêneros,

construindo-se, assim, um diálogo entre essas diferentes formas discursivas. A palavra

diálogo nos remete ao termo ―dialogismo‖, conceito fundamental da teoria bakhtiniana,

ampliando o sentido da discussão apresentada.

A partir de sua concepção e gênero, Bakhtin considera o romance um gênero

essencialmente dialógico. Um dos nossos objetivos na pesquisa que realizamos é

verificar como o dialogismo se instaura no texto de Carmen Martín Gaite e como este

aspecto contribui para a sua aproximação a um pacto literário intermediário, ou seja,

entre o autobiográfico e o romanesco, contando ainda com diversos elementos

ensaísticos. O Dialogismo é um conceito aplicado à análise linguística que Bakhtin

aplica também à teoria e análise literárias. Segundo este conceito, o discurso é

atravessado por outros discursos que trazem em si as vozes dos outros. Aplicando o

conceito à literatura, temos que todo texto se reporta a outros textos. A questão é

discutida por J. L. Fiorin, quando reflete que ―Um universo discursivo é constituído de

muitos campos: o político, o religioso, o filosófico, etc. Cada campo é formado de

vários espaços que são os interdiscursos‖ (FIORIN, 2005, p.221).

O conceito do dialogismo em Bakhtin leva a outro conceito, a polifonia. Muitas

vezes usado como sinônimos, estes conceitos distinguem-se por ser o segundo uma

manifestação do primeiro. O dialogismo é um traço inerente a todo tipo de discurso,

como define Bakhtin:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso.

Trata-se da orientação natural de qualquer discurso vivo. Em todos os seus

caminhos até o objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o

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discurso de outrem e não pode deixar de participar com ele de uma interação

viva e tensa. (BAKHTIN, 2002, p. 88)

O conceito de dialogismo guarda uma intrínseca relação com o de

intertextualidade. Ambos abordam a orientação de um texto para outros textos. A

formulação do conceito de dialogismo é mais antiga. Definido por Bakhtin em ―O

discurso no romance‖23

, escrito entre 1934 e 1935. Este ensaio está voltado

principalmente para o estudo do romance, mas traz também algumas idéias aplicáveis a

outros tipos de texto literário. O termo dialogismo aparece como uma maneira de

explicar a presença de ―vozes de outrem‖ em cada texto. Para Bakhtin, o dialogismo é

um aspecto presente em todo e qualquer discurso, mas é no romance que esta

característica se evidencia de uma maneira mais exacerbada:

A orientação dialógica do discurso para os discursos de outrem (em todos os

graus e de diversas maneiras) criou novas e substanciais possibilidades

literárias para o discurso, deu-lhe a artisticidade em prosa que encontra sua

expressão mais completa no romance. (BAKHTIN, 1993, p. 85)

As duas últimas citações se alinham com a nossa perspectiva de análise da obra

de Carmen Martín Gaite. Criada em uma época propícia à revisão da literatura e da

história, a obra em estudo é elaborada a partir de elementos diversos, apresentando um

caráter híbrido, em cuja constituição veremos tanto o aproveitamento das concepções de

teóricos da literatura, como o conceito do fantástico de Todorov, quanto uma relação

direta com a tradição literária hispânica como a metáfora vida/sonho presente nas obras

de escritores clássicos das literaturas hispânicas como Miguel de Cervantes, Calderón

de la Barca, Rosalía de Castro e Jorge Luis Borges, para citar somente alguns.

23

Questões de literatura e de estética, São Paulo, 1993, pp. 71-163.

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A presença de discursos de outros autores na obra em estudo nos faz constatar a

estreita ligação da escritora com uma tradição literária. Como lemos no primeiro

fragmento, o direcionamento de um discurso para outro (ou outros) propicia uma

interação viva. O leitor ou o ouvinte participa desta interação à medida que consegue

estabelecer as relações existentes entre os dois (ou mais) discursos envolvidos.

A noção de dialogismo de Bakhtin volta-se especificamente para o romance,

pois este gênero literário, por sua estrutura e possibilidades de abordagens temáticas,

torna-se um campo aberto para a inserção de vozes alheias à voz do narrador ou dos

personagens da obra. Para Bakhtin, é impossível que qualquer enunciado existente

deixe de ―tocar‖ outros discursos presentes na realidade de um determinado momento

histórico em uma determinada sociedade. Este enunciado é sempre um participante

ativo do diálogo social. O discurso é sempre um enunciado vivo e ao observá-lo é

necessário levar em consideração que ele ocasionará uma resposta, ou ―discurso

resposta futuro‖. No entanto, este discurso também se baseia no que já foi dito. O

dialogismo se constitui, portanto, numa espécie de dinâmica em que qualquer discurso

estabelece elos com outros.

Bakhtin chama a atenção para o fato de que só há diálogo à medida que se

estabelece uma ―compreensão ativa‖ do discurso, por meio da qual será gerada uma

resposta. Esta idéia está intimamente relacionada à Estética da Recepção, como vemos

no fragmento a seguir:

O diálogo corrente e a retórica provêem uma atuação aberta e expressa

composicionalmente pelo ouvinte e por sua resposta, mas qualquer outro

discurso é também determinado em vista da compreensão da possível

resposta, sendo que esta orientação não se isola num ato independente e não

se destaca da composição. A resposta compreensível é a força essencial que

participa da formação do discurso e, principalmente, da compreensão ativa,

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percebendo o discurso como oposição ou reforço e enriquecendo-o.

(BAKHTIN, 1993, p. 89)

Neste fragmento vemos o papel do receptor do discurso. Na verdade, ao

falarmos no termo discurso, não nos voltamos somente para a literatura como objeto de

estudo. Discurso abrange também as manifestações orais da linguagem. Podemos

pensar também em intertextualidade, talvez até com mais propriedade, já que esta

consiste nas diversas relações possíveis entre os mais variados textos. O trabalho

intertextual é inerente a toda obra literária. Segundo Laurent Jenny, em ―A estratégia da

forma‖24

, a intertextualidade faz parte da própria condição de legibilidade da obra de

arte e não é meramente um eco ou uma repetição de outros textos.

Para o escritor, o trabalho de assimilação e transformação que caracteriza

qualquer processo intertextual é a própria essência da intertextualidade. A obra literária

se constrói com uma rede dupla de relações, primeiro com os textos literários

preexistentes, segundo, com os sistemas de significação não literários. Estas relações

podem ocorrer de diversas maneiras – por plágio, citação, reminiscências, alusão,

paródia, etc. – podendo ser percebidas em maior ou menor grau, dependendo do leitor.

Linda Hutcheon assinala que a discussão a respeito do diálogo entre os textos adquiriu

espaço na construção das teorias pós-modernistas a partir da reelaboração que Julia

Kristeva faz dos conceitos bakhtinianos.

A investigação teórica do ―amplo diálogo‖ (Calinescu 1980, 169) entre as

literaturas e as histórias – e entre os componentes de cada uma das categorias

– , diálogo esse que constitui o pós-modernismo, foi parcialmente

possibilitada pela reelaboração que Julia Kristeva (1969) fez com as noções

bakhtinianas de polifonia, dialogismo e heteroglossia – as múltiplas vozes de

um texto. A partir dessas idéias, ela desenvolveu uma teoria mais

24

Intertextualidades. Poetique, n.27.

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rigidamente formalista sobre a irredutível pluralidade de textos dentro e por

tras de qualquer texto específico, desviando assim o foco crítico, da noção do

sujeito (o autor) para a idéia de produtividade textual. No final dos anos 60 e

início dos anos 70, Kristeva e seus colegas da Tel Quel organizaram um

ataque coletivo contra o ―sujeito fundamentador‖ (ou seja, a noção humanista

do autor) como fonte original e originadora do sentido fixo e fetichizado do

texto. E, naturalmente, isso também questionou toda a noção de ―texto‖

como entidade autônoma, com um sentido imanente. (HUTCHEON, 1991, p.

165)

Hutcheon observa que depois Kristeva, Barthes e Riffaterre definem que a

intertextualidade substitui o relacionamento autor-texto, por uma relação entre o leitor e

o texto. Ao tomar consciência do processo intertextual, o leitor se depara com duas

possibilidades, pois cada referência o coloca diante de duas alternativas: ou prossegue a

leitura, percebendo no texto apenas um fragmento como qualquer outro, ou retorna

mentalmente ao texto de origem, extraindo da síntese entre os dois textos um novo

significado.

Carrillo Romero, debatendo a questão da intertextualidade, reconhece a relação

do fenômeno intertextual com a recepção do texto, como vemos no fragmento abaixo:

Muy relacionadas con el debate acerca del alcance del término, están las

aportaciones llegadas a la noción de ―Intertextualidad‖ desde la Teoría de la

Recepción. Riffaterre aportó a la definición de ―intertexto‖ y de

―Intertextualidad‖ un elemento más: la teoría de la recepción, de manera que

considera que estas relaciones entre los textos son la esencia de la lectura

literaria. La cantidad de interrelaciones que se dan en un texto literario no

tiene sentido sin un lector; por lo tanto, más que proceso de producción, es un

fenómeno de recepción, fundamental en la decodificación o interpretación del

texto. Riffaterre considera así la ―Intertextualidad‖ como ―la percepción por

parte del lector de las relaciones entre una obra y otras que la preceden,

componente esencial de la literariedad por cuanto que la función estética de

un texto reposa sobre la posibilidad de integrar un texto en una tradición o en

un género‖ (Sanz Cabrerizo, 1995: 346) (CARRILLO ROMERO, 2008, p.

22)

A Estética da Recepção que surgiu na década de 60 como uma resposta às

tendências de crítica literária desenvolvidas a partir do início do século XX que estavam

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voltadas somente para o texto e sua criação, como o formalismo russo (salvo Tynianov

e Bakhtin), o ―new critcism‖ e o estruturalismo francês. Em tais tendências

predominava sempre o estudo da textualidade, das características e estruturas do texto.

A estética da recepção, embora não tenha sido uma corrente homogênea, apresenta, nos

estudos de todos os seus representantes um novo modo de se deparar a um texto, pois

passa a admitir as diversas possibilidades de leitura, atribuindo ao leitor um papel mais

significativo no processo literário.

As bases desta corrente de estudos literários foram lançadas por Hans Robert

Jauss, em uma aula inaugural no ano de 1967, em Konztanz. Era uma tentativa de

deslocar o alvo dos estudos literários para o leitor. As reflexões apresentadas por Jauss

serviram de ponto de partida para muitos estudos e a Estética da Recepção proporcionou

um grande desenvolvimento da pesquisa literária na Alemanha. A partir daí, segundo

Jauss25

, a Estética da Recepção obteve um êxito inesperado. Mas deve-se observar que

os estudiosos que seguiram esta corrente, ainda que tivessem uma idéia central em

comum, não constituíram um grupo homogêneo, pois havia algumas diferenças na

nomenclatura por eles utilizada e nos pontos a que davam relevo. Deste modo,

enquanto Wolfgang Iser fala dos ―vazios‖ no texto, Roman Ingarden usa ―pontos de

indeterminação‖. Ambos os termos se referem àqueles pontos do texto em que leitor

poderá usar sua imaginação, completando, assim, o que não foi dito explicitamente pelo

autor. Portanto, quanto maior o número de vazios, maior será a quantidade de imagens

formadas pelo leitor. Daí a possibilidade de existirem várias possiblidades de leitura

para cada texto, posto que o leitor assimila, interpreta e compreende o texto de acordo

com as experiências vividas anteriormente, bem como suas leituras prévias, trazendo-as

muitas vezes para a leitura que está realizando.

25

LIMA, Luis Costa. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção, pp. 43-61.

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Sendo assim, o leitor não pode ser considerado um ser passivo diante do texto.

Paul de Man, em Alegorías de la lectura26

diz que o processo mental da leitura estende

a função da consciência além da mera percepção passiva e deve adquirir uma dimensão

mais ampla e converter-se em ação.

O conceito de leitor ativo é base da Estética da Recepção e a partir daí, vários

conceitos são lançados. Roman Ingarden27

trabalha com o conceito de concreção, que é

a compreensão da obra por parte do leitor aliada a ―co-criação‖ da mesma que se dá

pelo preenchimento dos pontos de indeterminação presentes no texto. Dizemos que há

indeterminação quando é impossível afirmar se certo objeto ou situação objetiva possui

certo atributo. Segundo Ingarden, o leitor lê nas entrelinhas e completa ativamente

diversos aspectos que estavam indeterminados no texto. Sendo assim, o leitor é

considerado um co-criador da obra que lê. Certamente co-criação implica também

numa transformação do texto lido, pois, como Ingarden afirma, a obra literária de arte é

diferente das concreções que surgem das leituras que se fazem dela, por isso, não se

pode desprezar de maneira alguma o caráter modificador da leitura de cada indivíduo.

O papel crescente da importância do leitor no século XX é um dos aspectos

determinantes do pós-modernismo. A literatura se volta para o questionamento da

história, da arte, da cultura em geral e da literatura, demandando um leitor mais crítico e

com um conhecimento maior de sua cultura e sua época. O texto literário passará a

abranger uma multiplicidade de discursos, desafiando a capacidade do leitor de mover-

se por esses discursos e estabelecer as devidas relações destes com outros discursos,

estabelecendo o que Bakhtin chamou de compreensão ativa do discurso.

26

MAN, Paul de. Alegorías de la lectura. Barcelona: Lumen, 1990. 27

INGARDEN, Roman. Concreción y reconstrucción. In.: Estética de la recepción. Madri: Visor, 1989, pp. 35-53.

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Para que se possa compreender a significação de uma obra híbrida como El

cuarto de atrás, será necessário ter em mente que sua publicação no final dos anos 70 é

resultado do projeto literário levado a termo ao longo de décadas na segunda metade do

século XX pela escritora. O romance em questão é uma obra característica do pós-

modernismo tanto por seus aspectos formais, quanto temáticos. Para nosso estudo do

pós-modernismo tomamos como base os conceitos apresentados por Linda Hutcheon

(1991). O estudo tem como objetivo elaborar uma poética do que convencionou-se

chamar de pós-modernismo o período que historicamente abrange as últimas décadas do

século XX. A preocupação mais importante do estudo de Linda Hutcheon é a

problematização da História pelo pós-modernismo. Hutcheon afirma que o pós-

modernismo constitui-se num empreendimento cultural que abrange a maioria das

formas de arte e diversas correntes de pensamento atuais.

O ponto de partida para a poética do pós-modernismo que Linda Hutcheon se

propõe a elaborar é a afirmação de que este ―empreendimento cultural‖ é essenciamente

contraditório. Os termos que normalmente as teorias culturais relacionam ao pós-

modernismo apontam para o caráter contraditório das manifestações culturais do

período. É o que Linda Hutcheon chama de retórica negativizada, pois estas teoria

utilizam vocábulos como descontinuidade, desmembramento, deslocamento,

descentralização, indeterminação e antitotalização. Na verdade, essas palavras, diz a

autora, mostram, através de sua formação prefixal (des, in e ant), que os conceitos

expressos por elas incorporam aquilo que pretendem contestar. Da mesma forma, o

termo pós-modernismo, não deixa de incorporar o modernismo. Tão contraditório

quanto o termo que designa este vasto empreendimento cultural é também o conjunto

das teorias que tentam defini-lo. Na tentativa de dar à teoria pós-modernista uma

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contribuição que ajude a construir uma poética, Linda Hutcheon encaminha seu estudo

pela questão da contradição e dos paradoxos pós-modernos. Mas alerta que, por ser

contraditório e atuar dentro dos próprios sistemas que tenta subverter, o pós-

modernismo não pode ser considerado um novo paradigma. Além disso, a arte pós-

moderna tem como traço fundamental a autorreflexividade, que será um dos caminhos

mais explorados por artistas em geral e, o que mais nos interessa, por escritores que

também se dedicam à crítica, incorporando a reflexão sobre a criação literária à própria

construção do discurso literário. Entre as formas artísticas pós-modernas, Linda

Hutcheon escolhe o romance para elaborar sua poética do pós-modernismo:

Embora todas as formas da arte e do pensamento contemporâneos apresentem

exemplos desse tipo de contradição pós-modernista, este livro (como muitos

outros sobre o assunto) vai privilegiar o gênero romance, especialmente uma

de suas formas, que quero chamar de ―metaficção historiográfica‖. Com esse

termo, refiro-me àqueles romances famosos e populares que, ao mesmo

tempo, são intensamente auto-reflexivos e mesmo assim, de maneira

paradoxal, também se apropriam de acontecimentos e personagens

históricos... (HUTCHEON, 1991, p.21)

Este posicionamento teórico coaduna-se com nossa pesquisa de forma bastante

oportuna, tendo em vista que a obra que analisaremos pode ser considerada uma

metaficção historiográfica, à medida que Carmen Martín Gaite revela o claro propósito

de revisar o passado histórico recente, questionando não somente a história, mas

também sua própria criação literária, como veremos adiante.

Na maior parte dos trabalhos de crítica sobre o pós-modernismo, é a narrativa

– seja na literatura, na história ou na teoria – que tem constituído o principal

foco de atenção. A metaficção historiográfica incorpora todos esses três

domínios, ou seja, sua autoconsciência teórica sobre a história e a ficção

como citações humanas (metaficção historiográfica) passa a ser a base para

seu repensar e sua reeaboração das formas e dos conteúdos do passado.

(HUTCHEON, 1991, p. 22)

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O pós-modernismo desafia o que conhecemos como cultura hegemônica

dominante determinada pela burguesia por ação do capitalismo recente e pelo

desenvolvimento da cultura de massas. Estes fatores possibilitaram a partir da década

de 60, e mais intensamente nos anos 70 do século XX, o questionamento dos conceitos

dominantes de arte, literatura, história. Linda Hutcheon observa que a crença de que o

desafio e o questionamento são valores positivos seja mais uma herança dos anos 60 e

relembra Roland Barthes que, no final dos anos 50, prefigurava em ―Mitologias‖ que o

conhecimento proveniente das indagações poderia ser a única condição para mudança.

Roland Barthes prefigurou esse tipo de pensamento em seus brechtianos

desafios a tudo o que é ―natural‖ ou ―óbvio‖ em nossa cultura – ou seja, tudo

o que é considerado como universal e eterno, e, portanto, imutável. Ele

sugeriu a necessidade de questionar e desmistificar primeiro, e depois

trabalhar pela mudança. Os anos 60 foram a época de formação ideológica

para muitos dos pensadores e artistas pós-modernistas dos anos 80, e é hoje

que podemos verificar os resultados dessa formação. (HUTCHEON, 1991,

p.25)

Sendo assim, todos os questionamentos acerca da arte e da cultura em geral

propiciados pelos movimentos culturais dos anos 60 desembocaram no próprio

questionamento sobre os limites das manifestações artísticas e, mais especificamente no

caso da literatura, nos limites dos gêneros. Segundo Linda Hutcheon, a experiência

política, social e intelectual dos anos 60 ajudou a permitir que o pós-modernismo fosse

considerado como ―aquilo que Kristeva chama de ‗escrita-como-experiência-dos-

limites‘: os limites da linguagem, da subjetividade e da identidade sexual, bem como da

sistematização e da uniformização‖. Desta forma, a partir daquela década, qualquer

teorização relativa a gêneros poderia cair por terra, já que as fronteiras entre eles

tornaram-se cada vez mais fluidas. As artes passaram a relacionar-se com uma

proximidade crescente, com grande interação temática e teórica.

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Nos anos que se seguiram, essa percepção só se confirmou e intensificou. As

fronteiras entre os gêneros literários tornaram-se fluidas: quem pode

continuar dizendo quais são os limites entre o romance e a coletânea de

contos (Lives of Girls and Women I [Vidas de Meninas e Mulheres], de Alice

Munro), romance e o poema longo (Coming Trhough Slaughter [Vindo

através da Matança], de Michael Ondaatje), o romance e a autobiografia

(China Men [Homens da China], de Maxine Hong Kingston) o romance e a

história (Shame [Vergonha], de Salman Rushdie), o romance e a biografia

(Kepler, de John Banville)? Porém, em qualquer desses exemplos, as

convenções dos dois gêneros se opõem entre si: não existe nenhuma fusão

simples, não problemática. (HUTCHEON, 1991, p.27)

Devemos observar que esta ruptura de limites genéricos não se observa somente

em uma relação binária, como os exemplos acima destacados por Linda Hutcheon. El

cuarto de atrás, apresenta uma estrutura mais complexa, ou problemática, apropriando-

nos do termo utilizado pela teórica na citação. O romance de Carmen Martín Gaite joga

com mais de dois gêneros, sendo impossível classificá-lo como autobiografia, romance

ou ensaio (ao mesmo tempo histórico e literário). Estes gêneros aparecem na obra

estabelecendo um discurso híbrido, característico do pós-modernismo, embora a época

em que foi escrito (de 1975 a 1978) ainda não possa ser chamada de pós-moderna, mas,

certamente inicia o que podemos chamar de uma nova tendência literária espanhola, a

qual proliferará nos anos 90 e, principalmente, na primeira década do século XXI.

Estamos nos referindo à vertente autoficcional, que terá um grande desenvolvimento na

literatura espanhola na última década do século XX e no primeiro decênio de nosso

século.

Sendo assim, passemos agora ao estudo teórico dos gêneros que mais nos

interessam na obra que analisamos: o ensaio, a autobiografia e a autoficção.

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2.2 – O ensaio: um gênero para pensar e fazer pensar.

Iniciamos nossas reflexões sobre o ensaio, buscando compilar abordagens

teóricas que visam caracterizar este tipo de discurso definindo suas características de

modo que possamos configurá-lo como uma forma discursiva que apresenta aspectos

específicos. Desta forma, discutiremos seus aspectos discursivos e literários. Sendo

assim, as duas abordagens principais que nos levam a conceber o ensaio como um

gênero literário, no caso do primeiro teórico que abordaremos, José Luis Gómez

Martínez, ou entenderemos o ensaio como uma classe de textos pertencente ao gênero

argumentativo, noção defendida por María Elena Arenas Cruz. Também discutiremos

uma abordagem teórica direcionada especificamente para o ensaio escrito por escritores,

já que em nossa pesquisa, esta questão ganha especial relevo, pois um dos nossos

objetivos é verificar a incidência e as particularidades do uso do discurso ensaístico em

uma obra narrativa de Carmen Martín Gaite.

Partiremos das idéias de Gómez Martínez, em Teoría del ensayo28

. Neste livro

dedicado exclusivamente à construção de uma teoria geral do ensaio, o especialista

espanhol em literatura e pensamento hispânico remonta a Miguel de Montaigne, o

primeiro a utilizar o termo ―ensaio‖ com a acepção moderna para caracterizar seus

escritos. A primeira edição de Essais de Montaigne é de 1580. A obra inaugura o que

chamamos hoje de ensaio moderno. Consciente da inovação que seu trabalho

representava, Montaigne escreveu, no século XVI, uma definição que ainda hoje tem

valor nos estudos do gênero. Para Montaigne, um dos componentes mais importantes

do ensaio é o juízo, ―Es el juicio um instrumento necesario en el examen de toda clase

de asuntos, por eso yo lo ejercito en toda ocasión en estos ensayos‖ (Apud. GÓMEZ

28

Este livro encontra-se disponível na íntegra na Internet, conforme referência bibliográfica.

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67

MARTÍNEZ, 1992, p.18). Montaigne sabia que sua obra era única e expressou sua

visão da própria criação em seus escritos, introduzindo a figura do ―eu‖ nos ensaios

dotando de caráter subjetivo o conteúdo ali estudado. Marca-se assim, outro traço

significativo do gênero: a presença do autor na obra, expressando seus juízos, opiniões e

visão da matéria analisada.

Ao lado de Montaigne, no século XVI, está Francis Bacon, outro pioneiro do

ensaio moderno. Seus primeiros ensaios foram publicados em 1597. Gómez Martínez

compara as obras dos dois autores, destacando que eles representam os pilares do ensaio

atual e em suas obras encontram-se as origens de duas possíveis vertentes do gênero.

Si comparamos un ensayo cualquiera de Montaigne —"Des menteurs", por

ejemplo— con otro semejante de Bacon —"Of Truth"—, se observa que

mientras Montaigne lo basa en "vivencias", Bacon lo hace en "abstracciones".

El ensayo de Montaigne gana en "intensidad", el de Bacon en "ordem". El

primero es más "natural", el segundo más "artístico". El primero intensifica lo

"individual", el segundo lo "prototípico". En Montaigne, enfín, domina la

intuición "poética", en Bacon la "retórica". Así, desde sus comienzos,

Montaigne y Bacon representan dos opuestas posibilidades de ensayo, que

profetizan el futuro individualista del género: el ser de Montaigne está en sus

ensayos, tanto como el de Bacon en los suyos. Unos y otros son exponentes

de sus personalidades y preocupaciones. (GÓMEZ-MARTÍNEZ, 1992, pp.

23-24)

Como vemos, Gómez Martínez, além de identificar as diferenças entre esses

pioneiros do ensaio, verifica que ambos colocam-se de forma pessoal em seus trabalhos,

determinando a presença da individualidade no ensaio. Também destaca que Bacon,

embora tenha reconhecido a novidade do termo ―ensaio‖ empregado pela primeira vez

por Montaigne no sentido que estamos estudando, assinalou que a utilização de

procedimentos ditos ensaísticos não era novidade, já que no período clássico já era

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possível reconhecer alguns aspectos característicos do ensaio em textos como os

Diálogos de Platão, por exemplo.

Já na Espanha, o ensaio surgiu no século XV, com obras de Fernando de la

Torre, Fernando de Pulgar e de Monsén Diego de Valera. O crítico identifica esses

autores como iniciadores do ensaio hispânico por visualizar em sua obra o que chama de

―atitudes ensaísticas‖ como, por exemplo, uma tendência individualizadora, traço

fundamental do ensaio. É importante observar que, para Gómez Martínez, o verdadeiro

ensaísta não mostra somente seu pensamento, mas expõe o próprio processo de pensar.

Por isso, somente com Frei Antonio de Guevara pode-se considerar inaugurado de fato

o gênero na Espanha, já que este autor conseguiu introduzir suas próprias preocupações

em seus escritos.

Sólo con Fray Antonio de Guevara podemos dar comienzo, sin reservas, a la

tradición ensayística española. Guevara, en un estilo personalísimo, consigue

inyectar sus propias preocupaciones a sus escritos. Sus obras consiguen

establecer, todavía en la actualidad, a pesar de lo retórico de su prosa, un

íntimo diálogo con el lector en una comunión de pensamientos. Las Epístolas

familiares (1542), su obra más representativa, son verdaderos ensayos donde

se tratan los más diversos temas: desde valores permanentes, en las epístolas

que reflexionan sobre la "envidia" o la "libertad", hasta asuntos de inmediata

actualidad política, consejos sobre el amor o burlas llenas de gracia contra el

mal escribir. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 24)

Depois de Guevara, a Espanha teve, nos séculos seguintes, uma gama de

escritores que se dedicaram ao ensaio. No século XVI, a religiosidade dominou a prosa

ensaística apresentando ícones como Santa Teresa de Jesus, que juntamente com Frei

Luis de Granada e Frei Luis de León, iniciou uma nova etapa do ensaísmo espanhol,

com textos de conteúdo mais íntimo, sereno e pessoal. O século XVII trouxe outros

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nomes também de grande relevância não só para o ensaio, mas também para a cultura

hispânica, como Quevedo e Gracián.

O grande impulso ao gênero ensaístico se deu realmente no século XVIII, com

uma maior possibilidade de difusão da produção escrita. Surgiram diversas revistas e

jornais onde os ensaios passaram a ser publicados. Nesse momento, o diálogo com o

leitor adquiriu mais expressão e este passou, definitivamente, a fazer parte do ensaio.

Por outro lado, houve, nesse período, uma limitação acadêmica imposta aos escritores,

como afirma Gómez Martínez:

La actitud artística del siglo neoclásico no era, sin embargo, tan propicia

como la de los siglos XVI y XVII. La personalidad creativa de los escritores

se encontraba refrenada por las reglas de un academicismo riguroso. Aun

siendo abundantes los ensayos escritos, sólo podemos hablar de dos

verdaderos ensayístas: Fray Benito Jerónimo Feijoo y José Cadalso, y de un

reducido grupo de escritores con fuerte personalidad y frecuentes rasgos

ensayísticos: Gregorio Mayáns e Siscar, Martín Sarmiento, Gaspar Melchor

de Jovellanos, entre otros de menor repercusión.(GÓMEZ MARTÍNEZ,

1992, p. 25)

O ambiente literário do romantismo, caracterizado pelo individualismo, foi um

campo propício à produção do ensaio. Este constituiu uma forma de expressão

adequada para que os escritores expressassem suas reações contra a sociedade, bem

como combatessem àqueles com os quais não concordavam. Mas, para Gómez

Martínez a presença do leitor no ensaio do século XIX aparece como algo mais

importante. O ensaísta pensa em seu público frequentemente e trata de fazer-lhe

sugestões, levando-o a meditar.

Gómez Martínez termina seu breve histórico sobre a origem e desenvolvimento

do ensaio tendo já como foco não somente a Espanha, mas também a América, onde

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também se observou, no século XX, um grande desenvolvimento do gênero. Fato que

era de se esperar, já que foi notório o desenvolvimento literário da América Hispânica

nesse século.

Outra autora que escreve sobre a questão do ensaio como gênero é Maria Elena

Arenas Cruz. Em sua tese de doutorado Hacia una teoría general del ensayo.

Construcción del texto ensayístico. No primeiro capítulo desta obra, intitulado ―Bases

teóricas para la definición del ensayo como clase de textos del género argumentativo‖, a

pesquisadora delimita como objetivo a tentativa de coordenar e integrar, dentro de uma

teoria geral dos gêneros e das classes de texto, a descrição particular dos diversos

aspectos do texto ensaístico. Para isto, seu passo inicial é esclarecer, através de

definições específicas, a diferença entre os gêneros históricos e os gêneros naturais.

Los primeros constituyen agrupaciones de textos directamente observables en

la historia literaria, sometidos a factores de cambio y de convención propios

de los ámbitos culturales donde funcionan como tipos de acciones

comunicativas más o menos institucionalizadas; son géneros históricos el

cuento, la oda, el ensayo, la comedia la epopeya, etc. Por su parte, los

géneros naturales son categorías abstractas de raíz antropológica, universales

y transhistóricas, que funcionan, en palabras de A. García Berrio, como

‗condiciones-marco‘ u ‗opciones de entrada‘ relativas a ―los aspectos

expresivos o comunicativos de la enunciación y los referenciales del

enunciado‖; son géneros naturales el lírico, el dramático y el épico-narrativo,

sistema económico que da cuenta de las capacidades expresivas y modos de

representación básicos de la conciencia humana. (ARENAS CRUZ, 1997, p.

18)

Para Arenas Cruz, esta distinção encerra uma ambiguidade terminológica que,

ao longo do tempo, vem causado certa confusão teórica fazendo com que alguns autores

denominem ―gênero‖ tanto às manifestações históricas quanto as naturais. Sendo

também frequente chamar simplesmente de gênero as manifestações históricas propor

outras expressões para os modelos abstratos como: ―formas naturais da literatura‖,

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―atitudes fundamentais e universais do escritor perante o mundo e a vida‖, ―modos

literários‖, ―radicais de representação‖, ―modos de enunciação‖, ―modos de

representação ou de comunicação‖, ―formas simples‖29

, etc. Arenas Cruz observa que a

maioria dos pesquisadores contemporâneos escolhem a perspectiva histórica, preferindo

a observação direta da manifestação direta dos sistemas literários em cada época,

chegando, inclusive, a negar as categorias naturais. A autora afirma que nestes estudos

também se generalizou o uso da palavra ―gênero‖ como designação das classes

históricas de textos. No entanto, Arenas Cruz nos explica que sua postura teórica será

conciliadora entre as duas posturas:

Nuestra postura teórica en este trabajo intenta ser conciliadora de las dos

perspectivas, es decir, partimos del carácter flexible y orientador – no

normativo – de las entidades ideales respecto a las históricas, tal como

plantea A. García Berrio30

. Por esta razón, proponemos reservar el término

tradicional género para designar el modelo natural teórico, del carácter

esencial y transhistórico, y adoptar, desde la linguística textual y la semiótica,

la noción de clase de textos. (ARENAS CRUZ, 1991, p19)

Desta forma, Arenas Cruz estabelecerá sua teoría do ensaio partindo do conceito

de classe de textos. A classe de texto constutui-se quando dois ou mais textos possuem

uma ou mais característica petinentes em comum, devendo haver, portanto, um conjunto

de regras de diversos tipos (semânticas, sintáticas, pragmáticas...) que regem esse

conjunto de textos, dentro do qual cada texto possui sua personalidade e

individualidade. Desta maneira, ―la clase de texto no es más que la codificación de unas

29

Termos utilizados, respectivamente, por W. Goethe, K. Viëtor, P. Hernandi, N. Frye, G. Genette, C. Guillén e A. Jolles. Para ver referencia completa, consultar ARENAS CRUZ, 1991, pp. 18-19. 30

Para Garcia Berrio, conforme explica Arenas Cruz, “la investigación genológica debe procurar aunar los estúdios históricos de carácter empírico con la especulación teórica, de manera que sea posible integrar el sistema natural de factores universales con la variedad de sus realizaciones históricas, pues sólo así se podrán conocer, en las estructuras reales de los textos históricos, las propiedades esenciales de género y los rasgos secundarios de clase”.

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reglas básicas, sin carácter normativo, a partir de las que es posible relacionar unos

textos con otros‖.

Arenas Cruz justifica a opção pela utilização do conceito da classe de textos por

considerá-lo de grande funcionalidade teórica porque é aplicável tanto a textos literários

quanto a textos não literários, tanto a textos orais quanto a textos escritos,

desaparecendo, assim, as hierarquias institucionalizadas a partir das convenções críticas.

A autora apresenta como características básicas de todas as classes de textos, segundo a

maioria dos teóricos contemporâneos, sua constituição histórica e seu funcionamento

pragmático. A constituição histórica se apresenta como resultado dos processos de

permanência e mudança que a articulação de suas regras sofre diacronicamente devido

às marcas que os fenômenos de produção e recepção textual imprimem na história

literária. Portanto toda classe de textos é fruto da convenção no âmbito institucional da

literatura de uma determinada comunidade social e cultural.

Estas condiciones históricas determinan, por tanto, la condición pragmática

de la clase de textos, que ha de concebirse como un tipo particular de acción

comunicativa, cuya articulación de reglas expresivas y referenciales,

determinada y avalada por la tradición literaria, permite concebir la obra,

comunicarla y que sea adecuadamente leída; así, la clase de textos no es tanto

un conjunto de textos cuanto un modelo o esquema cognitivo que sirve para

la producción y para la recepción de un determinado tipo de productos

textuales en el marco convencional de la comunicación literaria. (ARENAS

CRUZ, 1991, 22)

Considerando os gêneros literários em suas chamadas categorias naturais,

estabelecidas na sua divisão tripartida em lírico, épico e dramático, Arenas Cruz afirma

que os estudos do ensaio requerem uma redivisão em quatro categorias, acrescentando-

se o gênero argumentativo, no qual o ensaio se enquadraria, situando-o assim em um

campo teórico adequado.

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Desde nuestro punto de vista y con el fin de situar el ensayo el un marco

genérico adecuado, resulta actualmente impostergable la necesidad de

ampliar el paradigma genérico a cuatro categorías, con el fin de poder perfilar

una completa teoría de los géneros literarios que dé cuenta de ese conjunto de

clases no miméticos y de carácter argumentativo pero de esencial vocación

artística que tradicionalmente han estado ausentes de la Poética. (ARENAS

CRUZ, 1991, p. 23)

A proposta de Arenas Cruz é, portanto, propor uma quarta categoria genérica, a

argumentativa que abrangeria manifestações textuais literárias y não literárias, em prosa

ou em verso. Com base no estudo de A. García Berrio e M. T. Hernández31

a autora

segue uma divisão genérica que acrescenta o gênero argumentativo literário que engloba

outros gêneros de prosa: a argumentação ensaística, a prosa doutrinal e a oratória.

Definindo as duas características fundamentais do gênero argumentativo, Arenas

Cruz assinala sua estrutura pragmática e sua ―manifiesta y cuidada voluntad de estilo‖

que dão ênfase aos aspectos formais, inclusive sobre a intrincada profundidade dos

conteúdos específicos. Desta forma, os textos que primam pela exposição do

pensamento e pela reflexão filosófica, científica (mas nunca estritamente técnica)

reunidos sob a classificação de gêneros ensaísticos, serão tratados por Arenas Cruz

como gêneros argumentativos, afim de que se possa incluir não só o ensaio, mas

também, o discurso ou o tratado, o diálogo, a glosa ou a miscelânea que foram durante

séculos meios utilizados para a expressão de uma reflexão crítica da cultura.

El género argumentativo, por tanto, como modelo general de orientación para

la producción autorial y para la recepción lectora, aparece con un referente

adecuado a la hora de clasificar toda una producción textual de carácter

eminentemente reflexivo y que, de ninguna manera, se puede vincular con las

otras categorías genéricas, fundamentalmente ficcionales. La única

matización que se impone es la necesidad de establecer una gradación de

literariedad, que sirva para delimitar dentro de cada clase los textos más

31

“La poética: tradición y modernidad”, op.cit, 157-158.

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artísticos de los más didácticos o informativos. (ARENAS CRUZ, 1991, p.

28)

Arenas Cruz designa como classes de textos pertencentes ao gênero

argumentativo o diálogo, a epístola, a miscelânea, a glossa, o ensaio, o artigo, a oratória

o prólogo e o tratado. Cada uma dessas classes de textos argumentativos constitui um

conjunto de normas internas e específicas de caráter histórico-literário,

convencionalizadas em uma sociedade. No entanto há normas universais do gênero

argumentativo. Para a descrição destas normas universais Arenas Cruz lança mão de

quatro parâmetros: o âmbito do referente (base semântica e relação texto-realidade), o

âmbito sintático-semântico (tipo de superestrutura e modo de representação lingüística),

o âmbito da comunicação, no qual veremos o plano da enunciação autorial (intenção do

enunciador e posição perante o que apresenta) e o plano da atitude recepcional.

Vejamos resumidamente a que se refere cada um desses parâmetros. O âmbito

do referente:

Lo específico de la construcción referencial o base semántica de los textos

argumentativos es que no constituye una elaboración imaginaria de estados,

procesos y acciones, como sucede en las obras de ficción, sino que sus

elementos proceden directamente de la realidad efectiva, por tanto, dependen

de un modelo de mundo de lo verdadero. Lo que se representa en el texto

argumentativo no es un mundo posible e imaginario en el que quedan

suspendidos los criterios de verdad o falsedad, sino una sección de la

realidad, cuyos contenidos semánticos se refieren a lo verdaderamente

existente o sucedido, de manera que cualquier discordancia con dicha

realidad ha de ser considerada como falsedad. Esto es así porque lo peculiar

de los textos argumentativos es que el sujeto inmanente del enunciado textual

está subordinado al autor real y éste está comprometido con aquél, de manera

que el enunciador emitirá las frases reales del autor desde un punto de vista

lingüístico, es decir, referidas a una situación o contexto de enunciación

también real (el cual puede ser tenido en cuenta para una mejor comprensión

e interpretación de los contenidos). (ARENAS CRUZ, 1991, p. 31)

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Neste âmbito, a instancia da realidade é considerada como base para análise dos

textos. É de suma importância a relação que se estabelece entre o autor e a realidade,

que transparece nas ações, objetos e personagens referidos na construção textual.

Sendo assim, pode-se concluir que o os textos do gênero argumentativo podem ser lidos

sob a perspectiva de um pacto de leitura em que o receptor identifica o sujeito do

enunciado com o autor do texto. A partir daí, torna-se possível ao leitor buscar a

confirmação na realidade de fatos ou quaisquer questões abordadas no texto.

O âmbito semântico-sintático:

Todas las clases de textos que se orientan bajo el marco de opciones del

género argumentativo sirven para la producción de textos cuya

macroestructura está organizada según las reglas y categorías de una

superestructura específicamente argumentativa. Este es por tanto un rasgo

genérico, pues se puede hablar igualmente de superestructuras narrativas,

dramáticas o líricas. La superestructuras argumentativas constan de dos

categorías fundamentales, la tesis o presentación del asunto y su justificación

argumentada mediante pruebas no demostrativas (esto es, de carácter más

efectivo y valorativo que lógico racional, pues están basadas, sobre todo, en

premisas verosímiles) La segunda categoría es la más importante, pues de

ella depende la credibilidad del asunto y, por tanto, la persuasión del

receptor. No obstante el número de categorías se puede aumentar en función

de necesidades comunicativas, argumentativas o estéticas, incorporando un

exordio o una peroración, ampliando la presentación del asunto a través de

una exposición o una narración pormenorizada, etc. (ARENAS CRUZ, 1991,

p. 33)

Este âmbito também comprova que os textos que pertencem ao gênero

argumentativo estão estruturados de maneira a levar em consideração a recepção do

texto. O leitor é o alvo dos argumentos explicitados e isto fica claro no texto, posto que

a persuasão é um dos aspectos mais importantes deste tipo de texto.

O plano da enunciação autorial:

Este parámetro se refiere tanto al modo de presentación lingüística de los

textos argumentativos como a las peculiaridades de la situación enunciativa

que en ellos predomina. (…) Este modo (de presentación) habrá de ser

entendido no desde el punto de vista de la prescripción, sino del predominio,

como modo de enunciación básico que enmarca a los demás cuando

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aparecen, que por ello le quedan subordinados. Además, la asociación

tradicional de cada género con un modo lingüístico de enunciación ha de

entenderse como un criterio flexible, adecuado a las limitaciones, variaciones

y transgresiones que imponen los textos históricos de la realidad literaria.

Teniendo esto en cuenta, el modo de presentación lingüística predominante

en el género argumentativo es el equivalente al modo retórico-gramatical

que Diomedes llamara enarrativum o exegematicum, aquél a través del cual

el sujeto de la enunciación informa, comenta, interpreta tomando él sólo la

palabra.(…) (ARENAS CRUZ, 1991, p. 37)

la exposición argumentada seria el (modo de presentación) predominante en

el género argumentativo.

Desde el punto de vista de la situación enunciativa, la enunciación propia del

género argumentativo es principalmente monológica, o sea que el monopolio

del discurso lo tiene casi siempre el sujeto de la enunciación. Según

Benveniste, todo texto monológico, en la medida en que constituye un acto

de comunicación, deviene implícitamente dialógico. Es decir, es un

monólogo que adquiere la forma de un diálogo entre el sujeto de la

enunciación, que es el único que tiene la palabra, y el destinatario, que está

siempre presente para hacer significativa la enunciación del sujeto locutor.

(ARENAS CRUZ, 1991, p.40)

Como se pode observar, este parâmetro de classificação, embora esteja voltado

para aspectos relacionados a produção textual, assim como os anteriores, tem em vista a

figura do receptor do texto, com o qual se estabelece um diálogo. Podemos ampliar esta

questão para a característica dialógica (a partir de uma perspectiva bakhtiniana) de todo

discurso. Ou seja, a presença do discurso de outrem em cada discurso. Isto sempre nos

leva a colocar em evidência a questão da recepção do texto. Fecha-se um ciclo escritura

– leitura – escritura, que já nos conecta com o ponto seguinte.

Finalmente, vejamos o plano da atitude recepcional:

Es el relativo al comportamiento y participación del receptor en los textos

literarios. Debido a la organización superestructural argumentativa de la

macroestructura y al tono textual apelativo-persuasivo, las clases de textos

del género argumentativo están especialmente encaminar a buscar una

respuesta perlocutiva por parte del receptor, ya sea una modificación de su

conducta, de sus ideas o de sus conocimientos. (ARENAS CRUZ, 1991,

p.42)

Arenas Cruz esclarece que para que esta resposta esperada do receptor seja

eficaz, deve ser precedida por uma atitude de curiosidade prévia do leitor seja ela de

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caráter intelectual, moral, política, etc. O impulso inicial que busca alcançar algum tipo

de saber ou de certeza é que garante qualquer tipo de modificação com relação ao

estado anterior à leitura. Ou seja, somente os leitores animados por uma atitude inicial

de curiosidade completam o processo comunicativo de base perlocutiva com uma

resposta relacionada com suas vidas ou suas idéias.

Estes princípios internos gerais que caracterizam o gênero argumentativo que

acabamos de resumir, segundo a visão de María Elena Arenas Cruz, constituem-se em

normas, intuídas ou aprendidas pelos leitores e escritores. Estas normas não atuam

como preceitos, mas sim como uma orientação para produzir, entender e classificar sob

um princípio comum as diferentes classes de textos que, no âmbito institucional da

comunicação literária, se estabelecem como atos comunicativos mais ou menos afins.

Considerando que cada classe de textos tem uma origem e uma evolução interna

particular que se materializam em textos artísticos concretos em que se articulam os

princípios básicos (semânticos, sintáticos, pragmáticos...) que constituem o referente

cognitivo da classe, veremos que:

Una clase histórica de textos es un tipo de acción comunicativa, es decir, un

modelo que sirve a un productor a la hora de crear una obra literaria y a un

receptor a la hora de descodificarla, situado ambos en un momento de la

historia y en el espacio creado por la institución propia de la comunicación

literaria en el seno de una sociedad y una cultura concretas. Por tanto, una

clase de textos es una noción abstracta de carácter analítico que funciona

pragmáticamente, es decir, permite la comunicación dentro de una institución

literaria determinada. (ARENAS CRUZ, 1991, p. 45)

Como referentes do ensaio, Arenas Cruz aponta os objetos físicos, tanto

animados quanto inanimados; as atitudes e opiniões pontuais que podem corresponder

ora às normas estabelecidas da sociedade sob um sistema de valores, ora ao que a

sociologia e a política chamam de correntes de opinião; comportamentos;

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acontecimentos e os fragmentos de outros textos. O ensaísta, ou autor, seleciona dentre

estes aspectos assinalados o seu objeto de estudo, o qual será comentado a partir de sua

perspectiva pessoal. Destacamos que os elementos que conformam o referente do

ensaio são oriundos do mundo externo ao autor, ou seja, não são fruto de sua

imaginação. Também cabe especial destaque aos fragmentos de outros textos, que

também fazem parte do mundo externo e estabelecem uma relação com a tradição

literária através da construção de uma rede dialógica ou intertextual.

No capítulo que aborda a ―Constituição histórica do ensaio‖, a autora traz à luz a

polêmica sobre a origem do ensaio. Para estabelecer a constituição histórica do ensaio,

Arenas Cruz parte de duas perspectivas, estabelecidas por J.M.Shaeffer:

(...) la autorial, o conjunto de relaciones a través de las que el autor va

construyendo su obra en el marco de un sistema literario determinado

históricamente; y la lectorial o conjunto de interpretaciones que desde la

recepción son responsables por la consolidación institucional da clase.

(ARENAS CRUZ, 1997, p. 49)

Considerando o que se entende por regime autorial, vemos que os críticos da

literatura, como Gómez Martínez e Arenas Cruz, ao reconhecerem em Montaigne e

Bacon os iniciadores do ensaio moderno estão construindo uma tradição literária

ensaística. Esta, como toda tradição literária, se reafirma através da criação de padrões

reproduzidos por ensaístas e corroborados pela crítica. Vejamos que padrões têm sido

considerados parte da construção desse gênero, seja no campo formal, seja no campo

das idéias.

Voltemos a José Luis Gómez Martínez, que, em sua ―Teoria del ensayo‖, aborda

seus aspectos peculiares, mapeando uma série de características que, em conjunto,

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podem auxiliar na definição desse tipo de produção como um gênero literário. Não

pretendemos esgotar todos os aspectos tratados pelo crítico em sua teoria, mas sim

selecionar aqueles que nos servem de suporte à análise de alguns ensaios de Carmen

Martín Gaite.

Gómez Martínez, após fazer um breve histórico do gênero, aborda em cada

capítulo de seu livro um aspecto do ensaio. Observa que o ensaio sempre tem como

objeto de análise algo oportuno, devendo tratar de temas que apresentem certo grau de

relevância em seu campo estudo, não pretendendo, porém, ser exaustivo, até porque,

muitas vezes, o ensaio deve ser um texto breve, posto que seus principais meios de

difusão são periódicos que, é obvio, impõe uma limitação de espaço. Talvez até por

essa limitação o ensaio traz implícitamente um tema a ser desenvolvido. Sendo assim,

vemos aqui a maior diferença entre o ensaísta e o especialista. O ensaísta escolhe seu

tema, discorre sobre ele, porém sem ter o compromisso acadêmico de tratá-lo de forma

exaustiva ou de comprovar alguma tese. Assim como Gómez Martínez, Alberto

Giordano em ―Modos del ensayo‖, estabelece as diferenças entre o ensaísta e o

especialista ressaltando que o ensaísta é um leitor ―bricoleur‖ e o especialista, um leitor

profissional. Ora, os adjetivos atribuídos a um e outro colocam em evidência a vocação

do ensaísta de abertura para escrever sobre temas diversos e a do especialista de

concentrar-se em um campo específico do saber.

Por outro lado, o ensaísta tem em comum com o especialista o fato de que

ambos tratam de assuntos já estudados por outros, mas um dos aspectos que os difere é

o tratamento dado aos textos sobre os quais escrevem. Enquanto nos trabalhos de

especialistas (autores de teses, cientistas, por exemplo) é obrigatória, por força do rigor

acadêmico que exige a padronização, a comprovação da procedência das citações por

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meio de detalhadas referências bibliográficas, o ensaísta está dispensado desse

procedimento, devido à natureza do gênero ensaístico. A utilização de citações em

ensaios não tem como objetivo a comprovação dos aspectos tratados no texto, mas sim

apoiar e dar continuidade à exposição do pensamento do autor. Aberto Giordano

assinala o uso das citações como um importante traço distintivo entre o ensaísta e o

especialista:

El modo diverso en que cada uno de ellos se vale de las citas y las referencias

confirma la distinción. Para el especialista las citas y las referencias son

fundamental, es decir, funcionan como fundamentos: lugares inmóviles, por

incuestionados, que sostienen el supuesto movimiento de su lectura. Citas de

autoridad, en las que el especialista se autoriza (sin esa autorización nada se

atrevería a decir), delimitan, incluso antes de que se inicie, el recorrido de la

lectura. Todo posible desborde (―lo que se lea…‖) es, quiere ser, obturado

por lo escolar de esas remisiones. Para el ensayista, en cambio, citar es

escribir. Lo ya dicho es menos una coartada que un pretexto para su decir.

Cualquier ensayo de Borges vale aquí como ejemplo: la puesta en escena de

las referencias, el modo dramático en que se las hace jugar (el ―saludo al

paso‖ barthesiano), testimonia que para el ensayísta lo esencial es siempre,

por sobre lo tratado, el movimiento de la escritura, movimiento que quiere

que nada, ningún fundamento, quede en su lugar. (GIORDANO, 1991, p.

119)

Tradicionalmente, o gênero tem apresentado o que Gómez Martínez chama de

―imprecisão das citações‖. Este autor assinala que, historicamente, houve uma evolução

no uso das citações, seja em seu conteúdo, seja no nome do autor. Antonio de Guevara,

por exemplo, utilizava citações fictícias, para dar um tom erudito a sua obra, atribuindo

a nomes inventados as idéias criadas por ele mesmo. Com Montaigne, as citações

deixaram de ser fictícias, mas continuaram a dar um tom erudito ao texto. Para Ortega y

Gasset e Unamuno, as citações são incorporadas ao texto, sem quebra do ritmo da prosa.

O uso impreciso de uma citação no ensaio não acarreta a perda de eficácia do texto

citado, posto que, a omissão do nome do autor, ou transcrição inexata de algum

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fragmento de texto para o ensaio, traduz a intenção do ensaísta de valorizar somente a

idéia do conteúdo transcrito, ilustrando o pensamento que deseja desenvolver.

Há no ensaio três aspectos essenciais que estão claramente relacionados entre si:

o subjetivismo, o caráter autobiográfico e o tom confessional. Podendo aparecer em

maior ou menor grau, esses traços nos mostram que o texto ensaístico representa a

própria essência da individualidade do seu autor, à medida que este escreve para

manifestar suas impressões pessoais sobre o assunto escolhido. E este subjetivismo

manifesta-se também no estilo do ensaísta, pois cada um, ao expressar suas idéias, dota

seu texto de uma singularidade manifesta tanto na maneira de tratar os temas quanto na

própria eleição destes.

Si como hemos indicado el ensayista se expresa a través de sus sentimientos,

sólo lo basado en la propia experiencia tiene valor ensayístico. De ahí que en

el ensayo no tenga cabida el pensamiento filosófico sistemático ni el

objetivismo científico, en cuanto pretenden una comunicación depositaria. La

verdad del ensayista no es un conocimiento científico ni filosófico, sino que

se presenta bajo la perspectiva subjetivista del autor y el carácter

circunstancial de la época. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 54)

Aqui, vemos que, para Gómez Martínez, o ensaísta, ao valer-se de seus

sentimentos ao escrever um ensaio, deve basear-se em sua própria experiência e não em

conhecimentos sistemáticos estabelecidos como ocorre na filosofia ou na ciência, já que

estes campos do saber, normalmente, se fundamentam em um princípio de comunicação

depositária, ou seja, aquela que tem como característica somente a transmissão do

conhecimento pronto, como verdade científica ou filosófica, sem que o receptor possa

interferir na construção desse saber em elaboração. Um ensaio vale mais pela maneira

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que o ensaísta apresenta suas idéias sobre um determinado assunto, expondo seu ponto

de vista pessoal, colocando o leitor em contato com sua personalidade, do que pela

comprovação científica de um conhecimento. Aliás, nem é este o objetivo do ensaísta.

Ao estabelecer que o ensaio baseia-se na experiência do autor, também fica

estabelecido o seu caráter autobiográfico. Este caráter deriva do fato de que o ensaísta

não só expressa seus sentimentos, mas também revela ao leitor como os adquiriu. Não é

raro que um ensaísta faça referência a passagens de sua vida em seus ensaios.

Dentro de la individualidad peculiar de cada ensayista, las notas

autobiográficas son frecuentes en todos los ensayos, con independencia del

tema de estos. Antonio de Guevara, engreído en su persona, nos comunica

desde su genealogía —"Mi abuelo se llamó don Beltrán de Guevara, y mi

padre también se llamaba don Beltrán de Guevara, y mi tío se llamaba don

Ladrón de Guevara, y que yo me llamo agora don Antonio de Guevara"

(Epístolas, I: 73)— hasta sus características físicas —"Soy en el cuerpo

largo, alto, seco y muy derecho, de las cuales propiedades no tengo y de qué

me quexar, sino de qué me preciar" (I: 75). Más distante en sus escritos,

Ortega y Gasset evita a veces proyectar su crecimiento emocional, para

entregársenos en el intelectual: "Durante diez años he vivido dentro del

pensamiento kantiano: lo he respirado como una atmósfera y ha sido a la vez

mi casa y mi prisión" (Tríptico, 65). El carácter autobiográfico es tan antiguo

como el ensayo mismo y es precisamente en Montaigne donde llega a su más

alto grado: "Estas son mis fantasías, en las cuales yo no trato de dar a conocer

las cosas, sino a mí mismo" (387). Por lo que podemos decir que el ensayo en

la prosa corresponde a la lírica en la poesía. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p.

65)

Quanto ao tom confessional do ensaio, devemos considerar que o ensaísta

escreve a partir de um desejo ou necessidade de comunicar algo a respeito de um tema

escolhido, seja para posicionar-se a favor ou contra, bem como acrescentar novas idéias

sobre o tema. Sempre em consonância com seus sentimentos e sua personalidade.

El tono confesional de los ensayos no es nada más que una manifestación del

egotismo connatural del ensayista. El escribe sobre el mundo que le rodea y

su reacción ante él. El "yo" parece ser el centro sobre el que giran las ideas

del ensayo, y sin embargo su egotismo no es desagradable, porque sólo

ofende quien adopta una posición de superioridad, y el ensayista es nuestro

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igual, dispuesto a considerar nuestras opiniones. Se nos entrega con

pensamientos y reflexiones en voz alta, como el amigo en busca de

confidente. Así, por ejemplo, el tono de Alfonso Reyes cuando nos dice: "A

este propósito, voy a contaros una modesta experiencia personal". Debemos

tener también en cuenta, como señala Alexander Smith, "que el valor del

egotismo depende enteramente del egotista. Si el egotista es débil, su

egotismo es despreciable. Si el egotista es fuerte, agudo, lleno de

personalidad, su egotismo es valioso, y se convierte en una posesión de la

humanidad" (Dreamthorp, 36). (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p. 57)

O tom confessional é um dos aspectos que mais destacam a subjetividade do

ensaio. O ensaísta revela ao leitor o íntimo de seus pensamentos, a origem deles, seus

sentimentos diante dos assuntos que se propõe avaliar. E, como toda confissão supõe a

existência de um confessor, para o ensaísta, está claro que seu confessor é o leitor.

Sendo assim, é inevitável que o ensaio apresente um caráter dialogal, ou conversacional.

Como explica Gómez Martínez:

Si hay alguna expresión común a los ensayistas de todos los tiempos, es

aquella que hace referencia al carácter dialogal del género. El ensayista

conversa con el lector, le pregunta sus opiniones e incluso finge las

respuestas que éste le da. (GÓMEZ MARTÍNEZ, 1992, p.60)

Entendemos que o aspecto dialogal do ensaio é uma das maneiras de inserir o

leitor no texto. Mas para Gómez Martínez, esse leitor, sempre presente no ensaio não é

considerado como uma pessoa determinada, mas sim como um membro da

―generalidade dos cultos‖. Esse leitor é convidado a participar das reflexões do autor

através de perguntas que o incitam a pensar junto com ele. No entanto, Gómez

Martínez alerta para o perigo da utilização da forma dialogal no ensaio, já que esta o

descaracterizaria como tal, posto que o leitor poderia sentir-se excluído da discussão

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proposta, tendo em vista que para utilizar a forma dialogal propriamente dita é

necessária a criação de personagens, transformando o leitor em espectador da discussão.

Por fim, destacamos um último aspecto do gênero ensaístico que nos interessa

neste trabalho: trata-se da inexistência de uma estrutura rígida no ensaio. Para Gómez

Martínez, ao contrário dos escritos destinados à comunicação depositária, o ensaio não

tem que obedecer a uma estrutura determinada. Entende-se como comunicação

depositária, aquela que pretende reproduzir e transmitir um conhecimento

inquestionável. O autor apresenta como exemplo desse tipo de texto, o tratado, o artigo

de revista especializada ou a monografia. É o que Gómez Martínez chama de prosa

didática. Mas, aparentemente, pode não haver diferenças entre este tipo de texto e o

ensaio. A diferença está na maneira que se desenvolve o seu conteúdo.

Acrescentamos as reflexões de Pedro Aullón de Haro sobre o Ensaio. Em seu

artigo ―El género ensayo, los géneros ensayísticos y el sistema de géneros‖32

, o teórico

aborda a dificuldade de definição do ensaio enquanto gênero. Coincide com María

Elena Arenas Cruz, observando que a tríplice distinção aristotélica dos gêneros literários

(lírico, épico e dramático) não dá conta dos textos cujas características não se

enquadram nesse esquema. No artigo, o autor faz referência à carência teórica sobre o

assunto, informando que somente no século XX veio à luz uma grande poética sobre o

gênero com Theodor Adorno. Para Aullón de Haro, o gênero ensaio é o grande

protótipo moderno, a grande criação literária da modernidade, já que é o tipo de

construção discursiva em que se pode expressar uma perspectiva histórico-intelectual de

―nosso mundo‖ (do Ocidente), de sua cultura da reflexão especulativa e a reflexão

crítica.

32

El ensayo como género literario. p. 13-23.

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Com o intuito de mapear os princípios constitutivos deste gênero, o autor

encontra em três grande pensadores da modernidade algumas reflexões que o orientam

na caracterização do gênero. Assim, Aullón de Haro resume alguns aspectos das teorias

de Lukács, Bense e Adorno sobre o ensaio.

El joven Lukács compuso en 1910 Sobre la esencia y forma del ensayo, un

escrito que constituye la primera reflexión de gran relieve acerca del género.

Para Lukács, en el ensayo la forma se hace destino o principio de destino,

pues el ensayista se instala en ―la eterna pequeñez del más profundo trabajo

mental respecto de la vida, y la subraya con modestia irónica‖, el ensayista ha

de meditar sobre sí mismo, ha de encontrarse y ―construir algo propio con lo

propio‖. A su juicio, el ensayo toma por objeto privilegiado las piezas de la

literatura y el arte, por ello es el género de la crítica; ―habla siempre de algo

que tiene ya forma, o a lo sumo de algo ya sido; le es, pues, esencial el no

sacar cosas nuevas de una nada vacía, sino sólo ordenar de modo nuevo cosas

que ya en algún momento han sido vivas. Y como sólo las ordena de nuevo,

como no forma nada nuevo de lo informe, está vinculado a esas cosas, ha de

enunciar siempre ‗la verdad‘ sobre ellas, hallar la expresión para su esencia.

Se llega así a lo que el pensador húngaro considera la paradoja del ensayo:

mientras que la poesía toma sus motivos de la vida (y del arte), para el ensayo

el arte (y la vida) sirve como modelo. En contraste a lo que sucede con la

poesía, la forma del ensayo todavía no ha concluido su proceso de

independencia, y mientras la poesía recibe la forma del destino, en el ensayo

la forma se convierte en destino. (AULLÓN DE HARO, 2005, p.20)

Neste fragmento, Aullón de Haro explicita o pensamento de Lukács sobre o

ensaio. Destacamos aqui a questão do referente do ensaio. Conforme abordamos

anteriormente, a partir de Arenas Cruz, os fragmentos de outros textos fazem parte

desses referentes. Aqui são mencionadas as ―piezas de literatura‖ que serão o motivo de

diversos ensaios. Também se destaca a opinião de Lukács sobre a utilidade do ensaio

para a elaboração crítica, devido a suas características. Outro aspecto a ser observado é

a idéia de que o ensaísta escreve a partir de uma meditação sobre si mesmo. Isto coloca

em relevo novamente o caráter autobiográfico deste tipo de escritos.

O segundo teórico estudado por Aullón de Haro, Max Bense.

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En el artículo Sobre el ensayo y su prosa, Max Bense, a partir de la

consideración de la primitiva e indiferenciada unidad con la ciencia, la moral

y el arte, entiende el ensayo como expresión de un método de

experimentación; en él se trataría de un escribir experimental y ha de hablarse

de él en el mismo sentido en que se hace de la física experimental,

delimitable con bastante claridad de la física teórica. En la física

experimental se formula una pregunta a la naturaleza, se espera la respuesta y

ésta prueba o desecha; la física teórica describe la naturaleza, demostrando

regularidades desde necesidades matemáticas, analíticamente,

axiomáticamente, deductivamente. Así se diferencia un Ensayo de un

Tratado. Escribe ensayísticamente quien compone experimentando, quien de

este modo de vueltas de aquí para allá, cuestiona, manosea, prueba,

reflexiona; quien se desprende de diferentes páginas y de un vistazo resume

lo que ve, de tal modo que el objeto es visto bajo las condiciones creadas y la

escritura. Por tanto, según Bense, el ensayo es la forma de la categoría crítica

de nuestro espíritu y representa la forma literaria más difícil tanto de dominar

como de juzgar; por ello se engañan absolutamente quienes creen que el

ensayo tiene algo que ver con divulgación. (AULLÓN DE HARO, 2005,

p.21)

Aqui, como no fragmento anterior, fica clara a vocação do ensaio para o

exercício da crítica. Primeiro por seu caráter experimental e investigativo, segundo por

―desprenderse de diferentes páginas‖. O ensaio supõe a leitura e a reflexão sobre outros

textos, sendo um meio adequado à reflexão literária.

Por último, o mais importante teórico do ensaio, segundo Aullón de Haro:

Theodor Adorno.

Es Adorno quien más penetrantemente ha reflexionado sobre el ensayo, sobre

todo en El ensayo como forma. Adorno destaca la autonomía formal, la

espontaneidad subjetiva y la forma crítica del ensayo. A su juicio, el ensayo,

a un tiempo más abierto y más cerrado que la ciencia, ―es lo que fue desde el

principio: la forma crítica par excellence, y precisamente como crítica

inmanente de las formaciones espirituales, como confrontación de lo que son

con su concepto, el ensayo es crítica de la ideología‖. Y cuando al ensayo se

le reprocha carencia de punto de vista y de relativismo, porque en su

actuación no reconoce punto de vista alguno externo de sí mismo, de nuevo

se está en presencia de ―esa noción de la verdad como cosa ‗listo y a punto‘,

como jerarquía de conceptos, la noción destruida por Hegel, tan poco amigo

de puntos de vista: y en esto se tocan el ensayo y su extremo: la filosofía del

saber absoluto. El ensayo querría salvar el pensamiento de su arbitrariedad

reasumiéndolo reflexivamente en el propio proceder, en vez de enmascarar

aquella arbitrariedad disfrazándola de inmediatez‖. El ensayo, ni comienza

por el principio ni acaba cuando se alcanza el final de las cosas sino cuando

cree que nada tiene que decir. A partir de ahí se puede concebir el ensayismo

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de Adorno como crítica del concepto filosófico de sistema u orden de la

totalidad y del antes y el después. (AULLÓN DE HARO, 2005, p.21)

Na visão de Adorno, o ensaio também é o discurso próprio da crítica, mas a

peculiaridade que se destaca no fragmento é a crítica ao conceito filosófico de sistema e

de totalidade. O ensaio não se presta a esgotar os assuntos abordados, nem

determinação de ordem nas questões que trata. O ensaio é o discurso do

questionamento, da interrogação e por isso mesmo, do inacabado.

Mas se o ensaio é o discurso da crítica, devemos ter especial atenção à crítica

escrita por aqueles que também são escritores. E esta é uma modalidade especial a qual

devemos estar atentos nesta pesquisa, pois nossa escritora, Carmen Martín Gaite, foi

uma excelente e muito produtiva crítica literária. Basta verificar seus inúmeros artigos

escritos para jornais e revistas literárias por mais de quarenta anos, onde apresentou sua

visão pessoal sobre escritores espanhóis e estrangeiros. O artigo de Ana Cecília Olmos,

―Discurso de la subjetividad: La crítica de los escritores‖33

, trata justamente das

peculiaridades de ensaios escritos por escritores. Partindo de Montaine, Lukács e

Adorno, a autora afirma que o ensaio se caracteriza pela enunciação subjetiva de um

pensamento cuja configuração se define pela abertura, a fragmentação, o dinamismo e,

inclusive, por certa arbitrariedade que evoca a disponibilidade infantil diante do lúdico.

En efecto, la espontaneidad, ese gesto que reproduce la ―esencial y definitiva

improvisación‖ de la vida, es una de las marcas fundamentales del ensayo e

la medida en que, al negarse a adoptar una vía metodológica y un régimen de

certezas, transforma en escritura un pensamiento que, dinámico y provisional,

cuestiona la idea de verdad absoluta, como saber ya sancionado sobre lo real,

para sostener la posibilidad de una verdad relativa. Por cierto, estos rasgos

del ensayo, la improvisación, el dinamismo conceptual y la ausencia de

certezas categóricas, están directamente ligados al predominio de esa

enunciación subjetiva que permite cuestionar la figura del autor como origen

33

Em: OLMOS e CASARÍN. Ensayo[s] de narradores. Córdoba: Alción Editora, 2007, pp. 41-52.

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positivo y exterior al texto y sostener la idea de una subjetividad que se

construye en el proceso de escritura. (OLMOS, 2007, p.41-42)

O ensaio é, portanto, uma forma de enunciação que serve de meio de afirmação

da própria subjetividade, a qual vai se delineando no próprio construir do discurso.

Sendo assim, o ensaio renuncia a procedimentos definitivos e a evidências conclusivas

para fazer com que o ato de escrever, ou seja, essa instância de enunciação em que se

configura a subjetividade, seja seu momento inicial e último. No caso específico dos

escritores, para Ana Cecília Olmos, seus discursos ensaísticos transitam, com

freqüência, no âmbito da ficção. Isto se dá porque nos ensaios literários dos escritores

há uma enunciação direta de uma subjetividade que normalmente se esconde nas

instâncias mediadoras do narrador e do personagem quando se trata de escrever ficção.

Es exactamente en estos términos que Aira (2001: 12-13)34

describe el pasaje

de la ficción al ensayo: como el acto que exige realizar un delicado gesto

quirúrgico que elimine esas mediaciones para permitir la inscripción de una

subjetividad directa inherente a la escritura ensayística. Muchos autores han

desarrollado su proyecto estético a partir de ese juego de posiciones de

enunciación discursiva que asumen o enmascaran la subjetividad y,

desplazándose de la ficción al ensayo, han ejercido la crítica literaria, no con

un sentido normativo ni aleccionador, sino con el claro propósito de diseñar

caminos que remiten a la experiencia de la lectura y, también, de su propia

escritura (Perrone Moisés, 1998: 11)35

. (OLMOS, 2007, p. 42)

Esta opção que muitos escritores contemporâneos têm escolhido como forma de

expressão e reflexão sobre seu ofício coloca o ensaio como meio para discussão da

própria experiência como escritor e leitor, onde a enunciação ensaística se apresenta

como um gesto onde os escritores expandem sua escritura em uma atitude auto-

reflexiva. Ana Celina Olmos exemplifica esta questão com os escritores argentinos das

34

Refere-se a: AIRA, César. “El ensayo y su tema”. Boletín 9 del Centro de Estudios de Teoría y Crítica literaria. Rosario: Universidad Nacional de Rosario, 2001, pp. 9-15. 35

Refere-se a: PERRONE MOISÉS, Leyla. Atlas literaturas. São Paulo: Cia das letras, 1998.

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últimas décadas que traçam um caminho de ―doble mano‖ entre o ensaio literário e a

narrativa ficcional:

Saer, Piglia, Gusmán, Aira, Libertella, entre otros, adoptaron la forma del

ensayo para exponer sus reflexiones literarias que, indiscretas, revelan sus

filiaciones, sus rechazos, sus habitos y, a veces, como dice Saer, ―sus

prejuicios disfrazados de conceptos‖ (1991: 11)36

. Pero, sobretodo, con estos

ensayos, los autores afirman que los actos de leer y de escribir son

inseparables y que, en el reverso de la escritura, se oculta la escena de la

lectura como un acto que conmociona; un acto que, como afirma González,

agita la conciencia y ―pone a luz ciertos temblores de la subjetividad‖37

.

(OLMOS, 2007, p.43)

A autora esclarece que essas comoções da subjetividade provocadas pela leitura

podem assumir várias formas e que uma delas é descrita por Barthes quando ele afirma

que, no ato da leitura, o escritor enfrenta um objeto que não é a obra literária, mas sim a

própria linguagem. Para Barthes, ler é ―desejar a obra no sentido de rejeitar a idéia de

duplicá-la além de outra fala que não seja a própria fala da obra‖. A passagem da

leitura para a escrita está relacionada à mudança de desejo, em não desejar mais a obra,

mas sim a linguagem. Ana Cecilia Olmos também relembra que a formulação de

noções como a de escritura de Barthes apagou as distinções discursivas destas práticas

ao desmantelar a pretendida objetividade dos métodos de análise estruturais e

reinscrever a subjetividade do crítico no trabalho de escrita que explora seus próprios

procedimentos de significação.

En otras palabras, el concepto de escritura de Barthes explicitó la conciencia

de que los actos de leer y de escribir son inseparables y, por lo tanto, permite

pensar la crítica como una modalidad discursiva que fundada en el acto de

lectura, transita por los imprecisos límites de lo literario. Todo indica que la

fisura epistemológica que se abre en el pasaje del estructuralismo al

postestructuralismo diseña un espacio apropiado para pensar estos

36

Refere-se a: SAER, Juan José. La narración objeto. Buenos Aires: Seix Barral, 1999. 37

Refere-se a: GONZÁLEZ,Horacio. “El ensayo como lectura de curación”. In.: PERCIA, Marcelo (org) Ensayo y subjetividad. Buenos Aires: Eudeba, 1998, pp. 65-71.

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desplazamientos discursivos; no porque la práctica de la crítica haya sido

desconocida por los escritores que, sabemos, la ejercen por lo menos desde el

romanticismo, sino porque ese concepto de escritura que borró las jerarquías

discursivas colocó al ensayo literario en las fronteras y, en algunos casos, en

el centro mismo de las ficciones. (OLMOS, 2007, p. 44)

As reflexões apresentadas neste fragmento podem constituir-se basicamente em

uma chave para a análise da obra de Carmen Martín Gaite. A interdependência dos atos

de ler e escrever, presente na vida de todo escritor, faz-se claramente observável nos

ensaios de escritores contemporâneos onde, certamente, observam-se zonas de

indefinição genéricas que aproximam esta escrita da ficção. Sendo assim, será possível

a inserção da ficção no ensaio, e, como observaremos em El cuarto de atrás, do ensaio

na ficção.

Vejamos agora, alguns exemplos do ensaio de Carmen Martín Gaite.

2.2.1 – O ensaio de Carmen Martín Gaite.

Carmen Martín Gaite, célebre por seus romances e relatos que cativaram um

público fiel na Espanha em quase quarenta anos de produção literária, também se

destaca no cenário da cultura hispânica como ensaísta. Aqui estudaremos duas obras

que, ao nosso ver, constituem uma referência para conhecer tanto os procedimentos

ensaísticos, bem como o pensamento da escritora a respeito da literatura, do mundo e da

vida. Trata-se de Desde la ventana: enfoque femenino de la literatura española, de

1987 e La búsqueda de interlocutor, de 1973. O primeiro trata de questões relativas à

escritura feminina. O livro traz algumas reflexões sobre o processo de composição do

texto de autoria feminina, bem como comentários sobre grandes escritoras da literatura

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espanhola. O segundo, um ensaio breve, publicado em La búsqueda de interlocutor,

leva o leitor a pensar sobre uma questão essencial para a escritora: a necessidade de

narrar e de que esta narração tenha um narratário. Um dos temas recorrentes da obra de

Camen Martín Gaite. Analisaremos estes dois ensaios, tendo em vista alguns aspectos

teóricos aqui apresentados e verificaremos os traços do gênero ensaístico que se

confirmam nos textos de Martín Gaite.

Desde la ventana: enfoque femenino de la literatura española foi publicado em

1987. O livro reúne quatro conferências da autora realizadas na Fundação Juan

March38

, em 1986. Este ciclo de conferências, intitulado O ponto de vista feminino na

literatura espanhola39

, apresentou uma série de reflexões sobre autoras espanholas

clássicas e contemporâneas.

Carmen Martín Gaite, na introdução, assinala que as peculiaridades da escritura

feminina nunca haviam sido objeto de sua curiosidade até que leu o ensaio de Virginia

Woolf, A room of one´s own (Um teto todo seu), em 1980, quando morava em Nova

York. Podemos observar, já na introdução do livro, vários aspectos que caracterizam o

seus estudos apresentados como ensaios. Primeiramente, observa-se que Carmen

Martín Gaite revela ao leitor como um determinado tema passou a fazer parte de suas

reflexões. Ao revelar ao leitor a primeira vez que começou a pensar no tema que

desenvolverá ao longo das quatro conferências, Carmen Martín Gaite também ressalta o

aspecto autobiográfico de seu estudo, traço característico do ensaio. A leitura que a

escritora espanhola faz de Virginia Woolf, no livro mencionado, mostra a importância

de que a mulher escritora possua um espaço próprio, com privacidade e liberdade para

38

A Fundação Juan March é uma Instituição familiar, patrimonial e operativa que desenvolve atividades no campo da cultura humanística e científica. 39

Estão disponíveis no site da Fundação Juan March os arquivos de áudio dessas conferências de Carmen Martín Gaite.

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escrever. Para a escritora inglesa, este foi um dos motivos pelos quais durante muito

tempo a mulher permaneceu excluída dos processos literários ao longo da história.

Carmen Martín Gaite, ao introduzir seus estudos sobre a literatura de autoria feminina

na Espanha, não só faz menção ao clássico de Virginia Woolf, como destaca que

identificou-se com a obra, não somente pelo tema tratado, mas também pelas

circunstâncias em que se encontrava quando a leu.

Tal vez mi identificación con el discurso sobre mujer y literatura que Virginia

Woolf tituló de A room of one’s own, y que llevaba esperando cincuenta años

(desde 1929) a que yo lo leyera aquel otoño neoyorquino, requiere una

explicación de las circunstancias en que lo leí. Había ido a dar un curso en

Bernard College y por primera vez vivia completamente sola en un

apartamento muy agradable de la calle 119, sin tener que dar cuenta a nadie

de mi tiempo libre, que era mucho, ni sentirme interferida por requerimientos

o problemas de seres humanos vinculados a mí. (MARTÍN GAITE, 1999,

p.26)

É importante observar que o livro de Virginia Woolf também era uma coletânea

de conferências. Carmen Martín Gaite se inspira na escritora inglesa e, seguindo seu

exemplo, reúne suas conferências sobre a literatura feminina. O que, a nosso ver, parece

ser um dos ecos da obra da escritora inglesa em Carmen Martín Gaite. Também a

maneira como a inglesa fazia o leitor inteirar-se do processo de elaboração de suas

reflexões encontra a admiração da escritora espanhola. Isto se observa no seguinte

fragmento:

Virginia Woolf nos va dando a cada momento referencias del camino

concreto que va recorriendo al filo de su viaje intelectual. Nos enteramos de

diferentes asuntos, pero sobre todo, cuándo y donde ha ido Ella pensando en

esos asuntos. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 28)

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Carmen Martín Gaite utiliza o mesmo artifício de Virgínia Woolf, mostrando ao

leitor os fatos de sua vida que estimularam as reflexões sobre a literatura feminina. A

experiência de morar sozinha em Nova York e participar de um ciclo de conferências

assemelha-se um pouco da experiência de Virginia Woolf que também em A room of

one’s own recolhe conferências suas sobre literatura feminina.

Embora na introdução do livro se evidencie o caráter autobiográfico no texto de

Carmen Martín Gaite, este se manifesta sempre com fatos relativos a sua atividade

profissional ou as suas experiências de leitura, nunca a fatos relativos a suas vivências

particulares, como podemos verificar no fragmento a seguir:

Cuando, dos años más tarde, Televisión Española me requirió para elaborar

un guión de varios episodios sobre la vida de Teresa de Jesús, y me vi

obligada a leer atentamente toda su obra (tarea que nunca se me habría

ocurrido emprender sin tal estímulo), la cuestión de si existe o no un

particular modo de escritura femenina se me volvió a plantear y me llevó a

simultanear mi elaboración de los diálogos para aquella serie televisiva con

algunos comentarios que iba anotando en cuadernos... (MARTÍN GAITE,

1999, p. 28)

Com essas informações, o leitor toma conhecimento praticamente de um

histórico da criação do ensaio que está lendo. Carmen Martín Gaite também deixa claro

que seu processo de escritura está baseado em um processo de leitura, que neste caso

surgiu de uma necessidade profissional. Outras leituras citadas também são motivadas

pela necessidade de conhecer o tema, como, por exemplo, a especialista em literatura

feminina Elaine Showalter40

que estabelece dois campos do estudo da literatura

feminina: o da mulher como leitora e o da mulher escritora. Outras críticas norte-

40

Elaine Showalter é uma das mais destacadas críticas literárias feministas. Um de seus trabalhos estabelece duas linhas básicas da crítica literária feminista: uma que trata da mulher como leitora de textos escritos por homens (crítica feminista) e outra que trata da mulher como escritora (ginocrítica).

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americana são citadas a fim de enriquecer as reflexões sobre o tema, como Judith

Fetterley, Sandra Gilbert e Susan Gubar41

(autoras do famoso ―The madwoman in the

attic‖), Adrienne Rich. A apresentação dessas críticas feministas se dá pelas diversas

citações que são feitas ao longo da introdução e apontam para a relevância do tema a ser

tratado nas conferências apresentadas. As citações são outro aspecto característico do

ensaio a ser destacado, pois, como é característico do gênero, vão aparecendo de

maneira imprecisa. Sem a pretensão de comprovar as idéias apresentadas, há nesta série

de conferências uma variação na utilização das citações dos autores que iluminam o

texto de Carmen Martín Gaite. Não há uma preocupação da autora em registrar de

forma precisa a origem dos textos que destaca. A maneira de citar os textos aos quais a

autora recorre varia no desenvolvimento do assunto tratado. Devemos lembrar que a

obra é a transcrição das conferências que Carmen Martín Gaite apresentou na Fundação

March. E como numa conferência detalhes da referência bibliográfica tornariam a

apresentação maçante, além de interromper a fluidez da leitura do texto. Sendo assim,

a autora opta por mencionar, na maioria das vezes, o nome do autor, a obra e o ano. No

capítulo introdutório, segue este padrão, como podemos ver nos exemplos a seguir:

Eso es lo que viene a decir Adrienne Rich diz em seu trabalho de 1979

Reading as a Revision:

Una crítica literaria radical, de impronta feminista, tendería a considerar la

obra antes que nada como una clave para entender como vivimos... (MARTÍN GAITE, 1999, p. 31)

Ou:

41

Juntamente com Elaine Showalter, Sandra Gilber e Susan Gubar estabeleceram um marco teórico importante no estudo da literatura de autoria feminina. Em The Madwoman in the attic, Gilber e Gubar, conforme análise de Liliana Gallo em sua tese de doutorado (p.40) (ver bibliografia), apresentam um estudo das principais escritoras do século XIX, que em meio a uma cultura masculina dominante, conseguiram se expor, embora de forma indireta, assaltando e revisando, destruindo e reconstruindo as imagens da mulher herdadas da literatura masculina.

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Elaine Showalter en su reciente estudio de 1985, Feminist criticism in the

wilderness, hace una salvedad muy interesante (...). Showalter observa que:

No puede existir literatura ni crítica totalmente al margen de la escritura

dominante... (MARTÍN GAITE, 1999, p. 31)

No capítulo 1, de Desde la ventana, intitulado ―Mirando a través de la ventana‖,

Carmen Martín Gaite aborda a questão da literatura feminina a partir das grandes

escritoras do mundo hispânico dos séculos XVI ao século XIX. A partir desse capítulo,

a autora passa a prescindir do ano de publicação das obras citadas. Já no início do

capítulo, a referência se limita ao nome da obra e do autor, como podemos constatar:

Repasando los Apuntes para una biblioteca de escritoras españolas, de

Manuel Serrano Sanz, que abarca de 1404 a 1833, llaman la atención dos

particularidades comunes a la gran mayoría de estas mujeres, que podrían

ayudar como punto de partida para el examen de su trabajo. (MARTÍN

GAITE, 1999, p. 35)

Este capítulo se inicia tendo como foco o autodidatismo e a satisfação pela

leitura que as mulheres escritoras de séculos passados tinham. São comentadas as obras

de Santa Teresa de Jesus e Soror Juana Inés de la Cruz entre outras. Seguindo um

esquema de citações sem ano de publicação da obra, como acabamos de dizer, a

primeira a ser citada é Santa Teresa:

Mi madre – nos cuenta en el Libro de su vida -, era muy aficionada a los

libros de caballerías; de esto pesaba tanto a mi padre que se había de tener

aviso a que no la viese. Yo me acostumbré también a leerlos; ... y parecía no

era malo gastar muchas horas del día y de la noche en tan vano ejercicio, a

escondidas de mi padre. Era tan en extremo lo que en esto me embebía que

si no tenía libro, no me parecía tener contento. (MARTÍN GAITE, 1999, p.

36)

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Há também citações em que nem mesmo o nome da obra citada aparece,

servindo como referência somente o nome da autora, é o que acontece nos exemplos a

seguir:

Pero incluso para dar un paso tan Elemental como salir del analfabetismo, no

siempre encontraban estímulo o ayuda. Emilia Pardo Bazán nos aporta el

siguiente testimonio:

De cierta bisabuela mía – dice – procediendo de una casa gallega muy ilustre,

he oído contar que tuvo que aprender a escribir sola, copiando as letras de un

libro impreso, sirviéndole de pluma un palo aguzado y de tinta un poco de

sumo de moras… Todavía en mi niñez me enseñaba mi madre, como trabajo

de mérito, unas almohadas zurcidas por mi bisabuela, donde casi los zurcidos

formaban un tejido nuevo. (MARTÍN GAITE, 1999, p. 37)

De Sor Juana Inés de la Cruz, destaca-se uma famosa redondilha, que também

aparece sem ano de publicação. ―La monja mexicana sor Juana Inés de la Cruz, en las

Redondillas contra las injusticias de los hombres al hablar mal de las mujeres se expresa

así: Hombres necios que acusáis/ a la mujer sin razón‖. ( MARTÍN GAITE, 1999, p.

43)

Também no segundo capítulo, cujo tema é o a maneira como as mulheres falam

do amor em seus escritos, e no terceiro capítulo que faz uma reflexão sobre o modelo de

mulher propagado pelo romantismo, segue-se o mesmo esquema de citações, ou seja, na

maioria das vezes se menciona somente o autor do fragmento citado. Referências mais

completas só voltarão a aparecer no último capítulo: ―Con la publicación en 1944 de

‗Nada‘, la primera novela ganadora del recién creado premio Eugenio Nadal, (...)

Carmen Laforet, la autora de ‗Nada‘, era una muchachita de veintitrés años‖...

(MARTÍN GAITE, 1999, p.101)

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E em: ―En una encuesta realizada por la Estafeta literaria, en 5 de marzo de

1944, Julia Maura declaró que la novela rosa era un ―pomo de veneno en manos

femeninas...‖ (MARTÍN GAITE, 1999, pp. 101-102)

A respeito da forma como o texto de Carmen Martín Gaite apresenta as citações,

devemos destacar que este traço faz parte da natureza ensaística da obra. Como vimos,

na teoria de Gómez Martínez, as citações no ensaio tem a função de colaborar para a

exposição do pensamento do autor sobre determinado assunto e não apresentar provas

para uma argumentação. Assim, ao expor em seu ensaio que, do século XVI ao século

XIX, as mulheres estavam condenadas ao analfabetismo e aquelas que quisessem fugir

desse destino tinham que aprender a ler e escrever sozinhas e, muitas vezes, ler às

escondidas, utiliza os depoimentos de Santa Teresa ou de Cecília Bohl de Faber. A

referência aos textos dessas escritoras vale pela idéia que acrescenta ao pensamento

desenvolvido pela autora.

Quanto à temática do livro, vemos que está intrinsecamente relacionada à

própria carreira literária de Carmen Martín Gaite. Ao falar de escritoras hispânicas que

tiveram que lutar para conseguir expressar-se no contexto de uma literatura dominada

pelo gênero masculino, observa-se que Carmen Martín Gaite fala de si mesma. O

referido capítulo que se inicia com uma menção à Carmen Laforet é o que mais traz

referências que podem ser relacionadas à obra da própria Martín Gaite, pois se refere à

literatura de autoria feminina da Espanha do pós-guerra, abordando um grupo de

escritoras no qual podemos incluí-la. O tema da ―chica rara‖ que, segundo Martín

Gaite, foi iniciado na literatura espanhola por Carmen Laforet, é um tema presente na

sua obra de pós-guerra, como vemos no romance Entre visillos. As reflexões

apresentadas neste capítulo encontram ecos na obra de Carmen Martín Gaite, não só em

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sua ficção, mas também em estudos como Usos amorosos de la postguerra española

(1999), em que a autora analisa vários aspectos da vida das mulheres nos anos que se

seguiram ao fim da guerra civil espanhola.

A chamada ―novela rosa‖ reproduzia esquemas literários em que a mulher

sempre aparecia à espera de um príncipe encantado com que se casaria e viveria feliz

para sempre. Com o surgimento da ―chica rara‖ nas páginas dos romances, a literatura

começou a representar um tipo de moça existente na sociedade, que não se contentava

com o mundo doméstico e de contos de fadas que lhe era permitido almejar. A ―chica

rara‖ recusa-se a seguir os padrões de comportamento feminino impostos pela

sociedade. Carmen Martín Gaite considera a protagonista Andrea de ―Nada‖ uma

precursora da ―chica rara‖, que começa a configurar-se na década de quarenta.

Este paradigma de mujer, que de una manera o de otra pone en cuestión la

―normalidad‖ de la conducta amorosa y doméstica que la sociedad mandaba

acatar, va a verse repetido con algunas variantes en otros textos de mujeres

como Ana María Matute, Dolores Medio y yo misma. E por ser Andrea el

precedente literario de la ―chica rara‖, en abierta ruptura con el

comportamiento femenino habitual en otras novelas anteriores escritas por

mujeres, es por lo que interesa analizar los componentes de su rareza,

relacionándolos con la época en que este tipo de mujer empieza a tomar

cuerpo. (MARTÍN GAITE, 1999, pp. 111-112)

Aqui vemos que Carmen Martín Gaite se coloca como escritora, revelando fazer

parte de um grupo de mulheres que inovaram a literatura espanhola de autoria feminina,

inovando na maneira como os personagens femininos eram tratados nos romances. O

ensaio é, pois, uma forma de explicação de sua própria obra literária.

Também a metáfora da janela, observada no título do livro, é frequentemente

utilizada nos livros de Carmen Martín Gaite como símbolo de liberação feminina. Era

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através da janela que a mulher sonhava com mundos que lhe eram proibidos, já que seu

papel na sociedade lhe restringia ao espaço doméstico. A janela, em quase todos os

seus romances, aparece como símbolo de busca ou necessidade de liberdade. Seu

ensaio está, pois, em consonância com sua própria obra de ficção além de revelar suas

precursoras e seus referenciais teóricos.

O livro La búsqueda de interlocutor, publicado em 1974, reúne diversos artigos

publicados anteriormente em periódicos. O artigo de mesmo nome, objeto de nossa

análise foi publicado no ano de 1966 na Revista de Occidente e faz parte dessa

compilação na qual os artigos, em sua grande maioria, abordam superficial ou

profundamente o tema da necessidade de interlocução. Este tema é um dos mais

recorrentes na obra de Carmen Matín Gaite e está presente tanto em sua obra ensaística

quanto em sua obra ficcional.

O artigo ―La búsqueda de interlocutor‖ é um ensaio breve. Em suas dez

páginas, a autora tece diversas considerações sobre a necessidade de narrar e de que

essa narração seja destinada a um interlocutor. A capacidade narrativa é intrínseca a

todo ser humano e, segundo Carmen Martín Gaite, nem sempre encontra uma realização

satisfatória na conversação com os outros. Em um primeiro momento, esse impulso

narrativo se realiza interiormente. Ou seja, antes de contar aos outros qualquer

acontecimento, este já é narrado para si mesmo, em seguida vem a necessidade de narrar

aos outros. Desta necessidade deriva a busca de interlocutor.

A busca desse interlocutor, para a escritora, é uma constante na vida das pessoas.

Carmen Martín Gaite diferencia a narração oral da escrita. Na primeira, a existência de

um interlocutor é uma condição para a realização da própria narração. Já na narração

escrita a existência de um interlocutor é necessária, mas não imprescindível, já que ele

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pode até ser inventado pelo escritor e inserido na própria narração. Este procedimento é

um recurso tradicional na literatura como vemos no fragmento a seguir:

La narración dentro de la narración es un recurso que se repite desde la más

remota literatura hasta nuestros días. No sé resistirme a traer como ejemplo,

al respecto de la implicación del interlocutor en la órbita del narrador, un

caso extremo de sabiduría literaria: el de la sultana de las Mil y una noches,

quien dejando pendiente para el otro día un fragmento de narración

comenzada, cautivó a su señor mucho más profundamente que con el mayor

refinamiento de lascivia.(MARTÍN GAITE, 2000, p. 27-28)

Para Carmen Martín Gaite, a recorrência desta técnica na literatura não é

somente um recurso herdado de gerações anteriores de escritores, mas sim, corresponde

a própria necessidade da existência de um interlocutor dentro do relato. Este é um

artifício que, muitas vezes, serve para dar suporte ao relato.

Bien o mal empleado, este recurso, cada vez que aparece, es reflejo de una

intrínseca necesidad del relato, y, aunque no niego que puede pesar la

herencia literaria, me inclino a suponer que si no estuviera inventado, se

inventaría espontáneamente siempre que el escritor, al considerar su soledad,

en esos momentos que la narración parece no tener soporte y amenazar con

venirse abajo, necesitara apuntarla nuevamente contra algo, o mejor dicho,

contra alguien. (MARTÍN GAITE, 2000, p.28)

A busca de interlocutor é também, para Carmen Martín Gaite, a concretização de

um desejo de acabar com a solidão, com a incomunicabilidade. É a experiência da

incomunicabilidade que leva o escritor a buscar sempre a quem possa destinar seus

relatos.

Y con esto creo llegado el momento de aventurar una suposición que para mi

tiene muchos visos de evidencia: la de que nunca habría existido invención

literaria alguna si los hombres, saciados totalmente en su sed de

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comunicación, no hubieran llegado a conocer, con la soledad, el acuciante

deseo de romperla. (MARTÍN GAITE, 2000, p.28)

A autora também chama atenção para o aspecto lúdico da narração. Entenda-se

como lúdico algo que dá prazer e diverte. Certamente, ao empreender um processo

narrativo, o escritor o faz tanto para atender aquela necessidade já abordada

anteriormente de buscar um interlocutor rompendo com sua solidão, quanto para

realizar algo que lhe dê prazer, satisfação e divertimento. Nisto consiste o caráter lúdico

da literatura. Para Carmen Martín Gaite, este aspecto lúdico revela um exercício de

liberdade individual pleno do prazer de opinar e de intervir na conjuntura da vida.

A autora também explica que não há originalidade na literatura. Não é possível

escrever nada novo, pois tudo já foi criado. No entanto, a esperança de criar obras

novas, ou seja, o anseio de originalidade motiva os escritores a continuar criando. E

mesmo diante da impossibilidade de produzir algo totalmente novo, o desejo de

consegui-lo o move. Além disso, a certeza de que seus escritos encontrarão, em algum

momento, com o público que irá lê-los, é o estímulo necessário para sua criação

literária.

Em ―La búsqueda de interlocutor‖, também é possível aplicar a teoria sobre o

gênero ensaístico desenvolvida por Gómez Martínez, conforme vimos no início deste

trabalho, já que há vários aspectos do gênero assinalados pelo teórico que se

concretizam no texto de Carmen Martín Gaite. A primeira característica que nos chama

a atenção é o uso da primeira pessoa ao longo do ensaio, o qual pode nos remeter ao

subjetivismo do gênero o qual se manifesta de várias maneiras em obras que são

consideradas ensaios. Este subjetivismo marca a posição que a autora ocupa no próprio

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trabalho, apresentando suas opiniões sobre o tema tratado. Mais que isto, a autora

revela suas concepções a respeito do processo de criação literária, mais especificamente,

a narração. Sendo Carmen Martín Gaite uma escritora que, fundamentalmente, constrói

seu percurso literário na composição de obras narrativas, vemos que este subjetivismo

presente em ―La búsqueda de interlocutor‖ remete-nos diretamente ao caráter

autobiográfico do ensaio, o qual se manifesta de duas maneiras diferentes, neste ensaio.

Primeiramente, vemos a autora colocar-se como escritora dentro do próprio ensaio,

expressando sua necessidade de criar e de narrar, revelando os sentimentos que

acometem um escritor em seu processo de elaboração de uma obra narrativa.

Pero el escritor, aunque haya pensado esto42

muchas veces, aunque haya

vislumbrado la vanidad de su aportación personal e incluso el aumento de

caos que supone, escribe, a pesar de todo. No le basta con consumir, quiere

crear, decir lo suyo, nuevo o viejo. Y cuanto más suyo lo haya hecho antes

de decirlo, cuanto más lo grite desde su limitación y soledad, desde su

objetividad insatisfecha, más fuerza tendrá para atravesar un día esa muralla

opresora que le sofoca. (MARTÍN GAITE, 2000, pp. 31-32)

Percebe-se pela intensidade sentimental deste fragmento que a autora descreve

as emoções que o processo de criação desperta nela mesma. Palavras ou expressões

como ―limitação‖, ―solidão‖, ―subjetividade insatisfeita‖, ―muralha opressora‖,

―sufoca‖, utilizadas neste contexto, são dotadas de uma carga semântica emocional e

psicológica que demonstra que a autora fala de si mesma, pois não poderia estar falando

de outro escritor, a menos que ele lhe houvesse confessado tais sentimentos. Aliás, são

justamente esses termos que assinalam o caráter confessional presente em ―La búsqueda

de interlocutor‖. A autora revela que o ato de escrever constitui para ela um momento

de liberação onde encontra alívio para a solidão e a insatisfação.

42

Refere-se à questão da busca da originalidade na criação literária.

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Outra manifestação do caráter autobiográfico refere-se ao posicionamento da

escritora como leitora. O ensaio apresenta várias leituras que a autora realizou. Carmen

Martín Gaite inclui em seu texto o pensamento de outros escritores, ao mesmo tempo

que constrói um discurso em primeira pessoa. Com isso, ela coloca diante do leitor de

seu ensaio uma seleção de leituras que, além de corroborar seu pensamento, revelam

preferências literárias, já que utiliza na composição de seu ensaio referências a autores

que enriquecem e ilustram suas próprias idéias a respeito da elaboração do texto

narrativo.

Deve-se salientar que o texto de Carmen Martín Gaite faz transparecer suas

leituras, o que faz parte do processo de construção de seu próprio pensamento sobre o

tema tratado. Alberto Giordano, inicia o capítulo ―Del ensayo‖43

, apresentando como

epígrafe um fragmento de texto de Eduardo Grüner que ressalta o aspecto

autobiográfico do ensaio, relacionando-o à leitura:

... permita-se-me sugerir – y es una idea que tomo en préstamo de Roland

Barthes – que si me siento a escribir el relato de todas las veces que ―he

levantado la cabeza‖ provocado por la lectura, eso es un ensayo. Y esto

transformaría al ensayo en una especie de autobiografía de lecturas: no tanto

en el sentido de los ―libros en mi mi vida‖, sino más bien en el de los libros

que han apartado al ensayísta de ―su‖ vida: que lo hicieron escribir, derramar

su lecturas sobre el mundo...- Eduardo Grüner (GIORDANO, 1991, p. 109)

Refletindo sobre este fragmento, vemos que em ―La búsqueda de interlocutor‖,

Carmen Martín Gaite concretiza parte de sua autobiografia literária, realizando um

diálogo entre suas concepções a respeito da criação de seus relatos e as leituras em que

são retratadas um pouco dessas idéias. Nota-se, no entanto, que, em ―La búsqueda de

interlocutor‖, o aproveitamento das leituras se dá através de citações indiretas, onde as

43

Em: GIORDANO, Alberto. Modos del ensayo. Rosario: Beatriz Viterbo, 1991.

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referências aos textos lidos não são completas. Normalmente, há alusão ao nome do

autor e a incorporação das idéias desse autor no próprio corpo do texto. Portanto, na

maioria das vezes a autora prescinde da citação.

Certamente, este procedimento vem determinado pelo tipo de ensaio que temos.

―La búsqueda de interlocutor‖ é um ensaio breve que foi publicado na Revista de

Occidente. Deve-se, pois, considerar que a limitação espacial de uma revista literária

também é uma condicionante da forma do ensaio.

Para concluir, ressaltamos que a importância do ensaio para Carmen Martín

Gaite revela-se no jogo intertextual estabelecido entre as reflexões elaboradas nesse tipo

de texto e sua prática ficcional. A análise de um corpus ensaístico e ficcional da

escritora comprova a coerência de seu pensamento teórico com o exercício de criações

fictícias como El cuarto de atrás, para citar somente uma obra. Porém, sabemos que

esta obra sintetizou o pensamento expresso em toda sua criação anterior e antecipou

aspectos que viriam a ser tratados posteriormente, como vimos em Usos amorosos de la

postguerra española. Não podemos deixar de mencionar a relação de seus ensaios com

sua própria biografia, que, como vimos no capítulo inicial, é uma biografia literária de

uma escritora que dedicou mais de quarenta anos de vida à literatura, seja escrevendo ou

lendo. Uma leitura que certamente se converteu em escritura.

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2.3 – Definições e redefinições do gênero autobiográfico.

Nossa reflexão inicial sobre o gênero autobiográfico terá como ponto de partida

os estudos de Georges Gusdorf em ―Condiciones y límites de la autobiografia‖44

e

Philippe Lejeune em ―El pacto autobiográfico‖45

. O primeiro autor que vamos estudar

estrutura seu texto a partir da tentativa de definição da autobiografia. Gusdorf afirma

que a autobiografia é um gênero literário firmemente estabelecido cuja história

apresenta uma série de obras mestras. Segundo ele, o gênero serviu a muitos homens

para contar seus feitos e glorias, desde chefes militares, ministros e exploradores, até

homens de negócios. Já no início do texto, Gusdorf apresenta como objetivo o

estabelecimento das condições que cercam a criação de obras autobiográficas. A

primeira condição apontada no texto é que este gênero está limitado no tempo e no

espaço, prova disto é que não existiu sempre e nem em todos os lugares. A

autobiografia é uma manifestação cultural típica do homem ocidental e, segundo

Gusdorf, somente pode ocorrer em um meio cultural em que exista a consciência de si.

Nas sociedades primitivas a autobiografia seria um produto inviável visto que nelas não

havia consciência da personalidade individual, já que a coletividade se sobrepunha à

individualidade.

A necessidade de se contar a vida de um indivíduo veio com a saída do quadro

mítico das sabedorias tradicionais e entrada no ―reino perigoso da história‖. A partir de

uma consciência histórica, a memória passa a ser a forma de preservação do passado

para as gerações futuras.

44

GUSDORF, Georges. Condiciones y limites de la autobiografía. Anthropos Suplemento, 29. La autobiografía y sus problemas teóricos. Dez, 1991, pp. 9-18. 45

LEJEUNE, Phillipe. “El pacto autobiográfico”. Idem., pp. 47-61.

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La historia quiere ser la memoria de una humanidad que marcha hacia destinos

imprevisibles, lucha contra la descomposición de las formas de los seres. Cada

hombre es importante para el mundo, cada vida y cada muerte; el testimonio

que cada uno da de sí mismo enriquece el patrimonio común de la cultura.

(GUSDORF, 1991, p.10)

Gusdorf associa o interesse (e o assombro) do homem pelo seu próprio destino à

revolução copernicana da entrada na história. Se antes a humanidade subordinava o seu

futuro aos grandes ciclos cósmicos, a partir desse momento se percebe dona do seu

próprio destino e do domínio das ciências. O homem se conscientiza de seu poder

criador, construtor de reinos, inventor de um código de sabedoria. Nesse contexto surge

o personagem histórico cuja trajetória é digna de ser registrada e preservada para o

futuro.

...la biografía representa, junto a los monumentos, las inscripciones, las

estatuas, una manifestación de su deseo de permanencia en la memoria de los

hombres. Las vidas ejemplares de los hombres ilustres, de los héroes y de los

príncipes, les conceden una especie de inmortalidad literaria y pedagógica para

la edificación de los siglos futuros. (GUSDORF, 1991, p.10)

A autobiografia, fruto do mesmo desejo de permanência que inspirava a

biografia, tem como impulso uma nova revolução espiritual, ―o artista e o modelo

coincidem, o historiador torna a si mesmo como objeto. Gusdorf ressalta a importância

de questões psicanalíticas referentes ao ―duplo‖ (doble) na evolução da autobiografia e

toma o mito de Narciso e a imagem do espelho como base para sua teoria da

autobiografia. A imagem no espelho passa a fazer parte da vida cotidiana a partir do

final da Idade Média. Os psicanalistas puseram em evidência o papel dessa imagem na

consciência progressiva que a criança vai tomando de sua personalidade. Este é um fator

importante na descoberta de sua própria identidade. O olhar sobre si mesmo é um ato

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revelador da própria identidade. A autobiografia, para Gusdorf, também constitui uma

espécie de espelho. O teórico situa o surgimento da autobiografia no início da idade

Moderna e o associa à ascésis do exame de consciência, dando-nos como exemplo as

Confissões de Santo Agostinho.

El cristianismo hizo prevalecer una antropología nueva, cada destino, por más

humilde que sea, supone una suerte de apuesta sobrenatural. Tal destino se

desarrolla como un diálogo con Dios, en el que, y hasta el final, cada gesto,

cada pensamiento o cada acto pueden ponerlo todo en entredicho. (GUSDORF,

1991, p.11)

A confissão dos pecados, regra da doutrina católica, dá ao exame de consciência

um aspecto sistemático e obrigatório. Santo Agostinho, em seu livro, responde a esta

exigência dogmática. O olhar cristão sobre si mesmo, presente na obra do santo, é um

olhar determinado pela relação espiritual com Deus, é um olhar permeado pela noção de

pecado e culpa, trazendo certa angústia no ato da autocontemplação.

Da Idade Média, Gusdorf parte para o Renascimento, destacando que a

desintegração de dogmas trazida pelo renascimento e pela reforma faz com que o

homem passe a ver-se como é, longe de qualquer premissa transcendental. Como

exemplo de texto autobiográfico desta época, Gusdorf aponta os Ensaios de Montaigne,

fruto de uma época em que se cultiva a individualidade. E é nesse tipo de autobiografia

que vemos a origem da autobiografia tal qual a concebemos hoje em dia. Gusdorf parte,

então, para uma caracterização do gênero, visando explorar basicamente as intenções de

seus autores e seus traços predominantes.

Primeiramente, vemos que o autor de uma autobiografia tem como objetivo

contar a sua própria história, reunindo os elementos dispersos de sua via pessoal,

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agrupando-os num esquema conjunto. Para tal feito, é preciso que o autor se situe a

uma certa distância de si mesmo, a fim de reconstituir-se em sua unidade e em sua

identidade através do tempo.

La intención consubstancial a la autobiografía y su privilegio antropológico en

tanto género literario, se muestran así con claridad: es uno de los medios del

conocimiento de uno mismo, gracias a la reconstitución y al desciframiento de

una vida en su conjunto. Un examen de consciencia limitado al momento

presente no me dará más que un trozo fragmentario de mi ser personal. Al

contar mi historia, tomo el camino más largo, pero ese camino que constituye

la ruta de mi vida me lleva con más seguridad a mí mismo. (GUSDORF, 1991,

p.13)

Mas é importante perceber que a autobiografia não é uma simples recuperação

do passado, já que esta corresponde a um mundo que se foi para sempre. O simples fato

de que o ser que busca essa recuperação já não é o mesmo do tempo que se foi, torna

impossível tal recuperação absoluta. O mais importante do processo é a própria busca

de si mesmo, já que ―El paso de la experiencia inmediata a la consciencia en el

recuerdo, la cual lleva a cabo uma especie de recapitulación de esa experiencia, basta

para modificar el significado de esta última‖ (GUSDORF, 1991, p.14).

A modificação do significado da experiência vivida passa também por um

processo de seleção dos fatos que deverão compor a narrativa. O autor, em sua

transposição da experiência vivida para a experiência narrada, fará uso de

procedimentos voluntários ou não, que deformarão aquele passado que pretende

recuperar.

Los olvidos, las lagunas y las deformaciones de la memoria se originan ahí: no

son la consecuencia de una necesidad puramente material resultante del azar,

por el contrario, provienen de una opción del escritor, que recuerda y quiere

hacer prevalecer determinada versión revisada y corregida de su pasado, de su

realidad personal (GUSDORF, 1991, p.15)

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Gusdorf aponta para a necessidade de se buscar o significado da autobiografia.

Nessa busca de significação, nos deparamos com a questão da verdade no texto

autobiográfico. Sendo a autobiografia um documento sobre uma vida, o historiador

pode comprovar a veracidade dos fatos narrados. Mas além de testemunho de uma vida,

a autobiografia também é uma obra literária, cujo valor artístico é inquestionável. Para

Gusdorf a função literária tem mais importância que a função história. Por outro lado,

sua significação antropológica é mais importante ainda que a significação literária. Este

tipo de produção é a expressão de uma necessidade humana de contar o que se viveu,

revelar o passado, guardar a memória testemunhando fatos que poderiam ser perdidos

para sempre, além disso, autobiografar-se é uma experiência de autodescobrimento, de

autoanálise e de reconstrução de si mesmo.

Toda autobiografía es una obra de arte, y al mismo tiempo, una obra de

edificación; no nos presenta al personaje visto desde fuera, en su

comportamiento visible, sino a la a persona en su intimidad, no tal como fue, o

tal como es, como cree y quiere ser y haber sido. Se trata de una especie de

recomposición realzada del destino personal; el autor, quien es al mismo

tiempo el héroe de la historia, quiere elucidar su pasado a fin de discernir la

estructura de su ser en el tiempo. (GUSDORF, 1991, p. 16)

Gusdorf reflete sobre a autobiografia destacando que nela o autor se esforça para

dotar de sentido a sua própria vida. Se no texto de Gusdorf vimos, algumas questões

filosóficas que permeiam a criação autobiográfica, no texto de Philippe Lejeune, ―El

pacto autobiográfico‖, estudaremos mais detalhadamente seus aspectos teóricos. O

crítico francês inicia seu estudo questionando se é possível definir a autobiografia. A

partir de uma perspectiva de leitor, como ele mesmo afirma, apresenta sua definição:

―Relato retrospectivo em prosa que uma pessoa faz de sua própria existência,

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110

enfatizando sua vida individual e, em particular, a historia de sua personalidade‖

(LEJEUNE, 1991, p. 48).

De maneira esquemática, Lejeune verifica que esta definição coloca em jogo

elementos de quatro categorias diferentes. A primeira categoria é a forma de linguagem

(narração em prosa); a segunda, o tema tratado (história de uma personalidade); a

terceira, a situação do autor (cujo nome remete a uma pessoa real) e do narrador; por

último, a posição do narrador (identidade narrador/ personagem principal, perspectiva

retrospectiva do narrador).

Todo o estudo de Lejeune se desenvolverá a partir dessas categorias

identificáveis nos textos autobiográficos. A questão da identidade do autor que coincide

com a do personagem principal e com o narrador, apresenta-se como a principal

condição para que o texto se configure como uma autobiografia. Como se manifesta

essa identidade no texto? Basicamente pelo uso da primeira pessoa (EU), no entanto,

Lejeune assinala a existência de textos considerados autobiográficos, mas com o uso da

terceira pessoa.

Este procedimiento ha sido empleado por razones muy diversas y ha

producido efectos muy diferentes. El hablar de uno mismo en tercera

persona puede implicar un inmenso orgullo (caso dos Comentarios de César,

o de algunos textos del General De Gaule), o de cierta forma de humildad

(caso de ciertas autobiografías religiosas antiguas, en las que el autobiógrafo

llama a sí mismo ―siervo del señor‖). (LEJEUNE, 1991, p.49)

Através desse procedimento, o narrador estabelece uma distância entre a pessoa

que é no presente e a pessoa que foi no passado. Com relação ao uso da primeira

pessoa, nota-se que se define pela articulação de dois níveis, o da referência e o do

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enunciado. No primeiro, o pronome pessoal só tem referência real no interior do

discurso, no segundo, os pronomes pessoais de primeira pessoa assinalam a identidade

do sujeito da enunciação e do sujeito do enunciado.

Outra questão tratada por Lejeune é a do nome próprio. O nome próprio remete

a uma identidade. Para o autor a pessoa e o discurso se articulam através do nome

próprio, antes mesmo de articular-se com a primeira pessoa. ―Todas as identificações

(fáceis, difíceis ou indeterminadas) sugeridas antes a partir de situações orais, levam

fatalmente a converter a primeira pessoa em um nome próprio.‖ (LEJEUNE, 1991,

p.51)

A questão do nome próprio na autobiografia é essencial, visto que nesse tipo de

texto o nome próprio que aparece na capa do livro remete ao autor, personagem da

narrativa apresentada. O nome é também o indício de uma realidade extratextual

(verídica), que remete a uma pessoa real. Esta relação com o mundo real também indica

a responsabilidade do autor com a verdade dos fatos narrados e, por conseguinte, a

verificabilidade desses fatos por parte do leitor. Para Lejeune, isto caracteriza uma

espécie de contrato social. O autor não será somente uma pessoa, mas uma pessoa que

escreve e publica, no caso do autor de autobiografia, é preciso que ele tenha escrito e

publicado outros textos anteriormente, tornando-se conhecido dos leitores e criando o

Lejeune chama de ―espaço autobiográfico‖.

El autor es, por lo tanto, un nombre de persona, idéntico, que asume una serie

de textos publicados diferentes. Obtiene su realidad de la lista de esas otras

obras que suelen encabezar el libro ―Del mismo autor‖. La autobiografía

(narración que cuenta la vida del autor) supone que existe una identidad de

nombre entre el autor (tal como figura, por su nombre, en la cubierta), el

narrador y el personaje de quien se habla. Este es un criterio muy simple, que

define, al mismo tiempo que a la autobiografía e, todos los demás géneros de

literatura íntima (diario, autorretrato, ensayo). (LEJEUNE, 1991, p.52)

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Associada à questão do nome próprio está a do uso de pseudônimos ou nomes

fictícios. Um texto que apresenta o nome próprio dessa forma seria uma autobiografia?

Para Lejeune esse texto se enquadraria em outro tipo de gênero: o romance

autobiográfico. A autobiografia supõe, portanto, uma identidade assumida através do

nome próprio do autor e é a partir dessa identidade que Lejeune estabelece sua

formulação de ―pacto autobiográfico‖. Comparando um romance autobiográfico com

uma autobiografia propriamente dita, pode-se notar que não há diferença entre um tipo

de texto e outro, se os analisarmos somente internamente. O que caracteriza um ou

outro gênero é justamente o pacto de leitura que se firma com o leitor. O pacto

autobiográfico se estabelece a partir da identidade entre autor, narrador e personagem e

o conhecimento do leitor sobre essa identidade. Este conhecimento é transmitido ao

leitor de maneira implícita ou explícita. Implicitamente, esta identidade pode tornar-se

evidente através de títulos (Historia de mi vida); através da parte inicial do texto onde o

narrador se comporta como autor do texto, deixando claro que a primeira pessoa remete

ao nome do autor expresso na capa.

Paralelamente ao pacto autobiográfico teremos o pacto romanesco ou fictício,

onde ocorre exatamente o contrário; a afirmação da não identidade entre autor e

personagem. Lejeune esquematiza um quadro teórico referente a esses pactos de leitura,

articulando os elementos da narrativa envolvidos, ou seja, autor, narrador e

protagonista. Através deste quadro, pode-se observar as possíveis combinações que

geram os diferentes pactos de leitura. Observemos o quadro de Lejeune:

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113

Nome do personagem

Pacto

≠ nome do autor

= 0

= nome do autor

Romanesco 1a

Romance

Romance

= 0 1b

Romance

2b

indeterminado

Autobiografia

Autobiográfico 2c

autobiografia

2b

Autobiografia

Explorando o quadro acima, confirmamos algumas idéias já expostas

anteriormente, como a identidade entre o nome do personagem e o nome do autor no

pacto autobiográfico e a não identidade entre esse elementos da narrativa no pacto

romanesco.

Os textos Gusdorf e Lejeune comentados acima, têm servido como ponto de

partida para a elaboração de uma teoria da autobiografia nas últimas décadas. Como

vimos, ambos os teóricos, a partir de perspectivas diferentes, tem o propósito de

delimitar este gênero literário. No entanto, estudos mais recentes caminham na direção

de uma teoria que contempla justamente a indefinição dos limites entre a autobiografia e

a ficção. Para Darío Villanueva, em ―Realidad y ficción: la paradoja de la

autobiografía‖46

, a autobiografía é ficção quando a consideramos a partir de uma

perspectiva genética, pois com ela o autor não pretende reproduzir, mas sim criar seu

46

Em: Escritura autobiográfica. Actas del II seminário Internacional del Instituto de Semiótica Literaria y Teatral. Madrid: Visor Libros, 1993, pp. 16-29.

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eu; mas a autobiografia é verdade para o leitor, que faz dela, com maior facilidade que o

do que com qualquer outro texto narrativo, uma leitura intencionalmente realista.

Villanueva considera que a autobiografia, enquanto gênero literário, possui uma

virtualidade criativa, mais que referencial, sendo, portanto instrumento mais propício

para construção de identidade do ―eu‖ que para a reprodução. Citando Carlos Castilla

del Pino47

, Villanueva acrescenta que a autobiografia é, antes de tudo, auto-engano. Pois

o autor se autocensura, e, para os leitores é simplesmente mentira, ou talvez, uma meia

verdade. E a partir de Paul de Man, afirma que o que a autobiografia apresenta é uma

―ilusão de referência‖, e, enquanto fenômeno literário, está submetida pragmaticamente

a um determinado modo de leitura e compreensão. ―Su identidad es, pues, no solo

representacional y cognitiva sino contractual, basada no en tropos sino en actos de

habla‖. A citação reforça o aspecto pragmático do texto autobiográfico, já que, por

estabelecer uma relação de confiança com o leitor, no chamado contrato de leitura,

realiza-se como ato de comunicação. Mas o que se comunica na autobiografia? Vimos

em Lejeune que se trata de um relato retrospectivo de uma vida, contado pela própria

pessoa que a viveu. Entretanto, o que estamos questionando aqui, é o estatuto de

―verdade‖ ou ―realidade‖ defendido pelos iniciadores da teoria autobiográfica, em

especial Lejeune, ou seja a questão da verificabilidade dos fatos narrados. Na verdade,

neste relato retrospectivo é evidente que há uma seleção, bem como os esquecimentos,

como já comentamos aqui. Estes são os primeiros passos para a possibilidade de

ficcionalização na autobiografia. À medida que o autobiógrafo, com a autoridade de

autor, determina que fatos de sua vida merecem ser recordados em uma autobiografia,

há o que se pode chamar de construção da identidade do autor. Este processo de

47

Comenta a partir de CASTILLA DEL PINO, Carlos. Autobiografías. Temas. Hombre, cultura, sociedad. Barcelona: Península, 1989.

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construção também é, em certa medida, um processo de descoberta, onde o escritor,

além de se descobrir a si mesmo, deve perceber o quanto suas vivências se conectam

com as alheias, bem como deve prever o impacto dessas vivências no outro, já que deve

levar em consideração a recepção de seu texto. Em ―Figuras de autobiografia‖, Anna

Caballé retrata bem esta questão, referindo-se à literatura do ―eu‖, a qual abrange a

autobiografia:

Pero muy pocos, decíamos, emprenden un acto de escritura encaminado a

descubrir la mismidad (concepto que surge a la medida en que el yo se ha ce

a sí mismo) convirtiéndola en sujeto de la acción, en argumento de la obra.

Y la literatura del yo, o del mí, atiende precisamente al conjunto de esos actos

de escritura en los que el autor se enfrenta explícitamente con experiencias

para descubrir después en qué medida sus vivencias conectan con las de otros

y, en definitiva, con el lector. Claro que la necesidad de tener en cuenta a

quienes han de recibir la obra obliga al autobiógrafo, en general, a

seleccionar su material en una determinada dirección; a no enfrentarse

demasiado, por ejemplo, con los sentimientos y las opiniones imperantes; a

respetar en lo posible convicciones y tradiciones culturales; a reprimir, en fin,

la libre reflexión sobre uno mismo y reducirla a cauces aceptables por temor

a ser penetrado, descifrado, desposeído de todos sus secretos, juzgado.

(CABALLÉ,1987, p.105)

Aquí está em evidência a recepção do texto autobiográfico. Esta certamente

exerce influência na construção do texto, posto que, como acabamos de ler, sempre

estará presente a possibilidade do julgamento, o qual o autobiógrafo possivelmente não

deseje enfrentar com todos os detalhes de sua vida à mostra. Aliás, Villanueva, no

artigo que já comentamos, afirma que escrever autobiografia implica em um certo tom

irônico, do qual o leitor, por sua vez, não deixará de participar. Ou seja, a autobiografia

pode instituir-se em um jogo de verdades e mentiras (talvez omissões), realidade e

ficção Vemos, então, a possibilidade de ultrapassar limites genéricos, já que há uma

desestabilização do gênero autobiográfico pela ficcionalização.

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Neste ponto, vale a pena trazer a revisão e os questionamentos que Manuel

Alberca faz da teoria de Lejeune em um artigo que trata da autobiografia e da autoficção

intitulado ―Es peligroso asomarse (al interior). Autobiografía vs. Autoficción‖. Para o

crítico espanhol, a teoria da autobiografia escrita pelo estudioso francês tem o mérito de

sistematizar e desfazer confusões em torno ao tema da autobiografia.

A la teoría de Lejeune se le han hecho a veces oportunamente observaciones

y matizaciones, pero no se le podrá negar la virtud de haber fijado unas

pautas precisas de lectura y escritura que consiguieron sacar del

confusionismo las erróneas ideas por las que se igualaban novela y

autobiografía, las cuales no solían distinguir el autobiografismo difuso o

intencional del autor del verdadero compromiso autobiográfico, de tal modo

que nunca clarificaban cuándo el lector estaba legitimado para tomar un

indicio textual como signo autobiográfico y cuando como confesión del

autor. (ALBERCA, 2009, p.2)

A contribuição da noção de pacto autobiográfico pode ser considerada um

avanço no estudo do gênero. Inicialmente, Alberca enfatiza a relação que se estabelece

entre o autobiógrafo e o leitor. Repetindo as palavras de Lejeune, o autobiógrafo pede

ao leitor que confie nele, que acredite nele, porque se compromete a contar-lhe a

verdade de sua vida. Alberca também relembra a contribuição de Gerard Genette que

―batizou‖ de paratexto o conjunto de informações que cercam o texto, mas que não são

o texto propriamente dito. No caso da autobiografia, são elementos fundamentais, como

o título, o nome do autor, a classificação genérica, os elementos gráficos e icônicos, etc.

Estes elementos conectam a texto autobiográfico com o mundo real, ou seja, são

elementos de referencialidade externa. O que fica em evidência no pacto autobiográfico,

e que provoca a grande discussão sobre o gênero literário em questão, são os princípios

ou as aspirações do autor: o princípio de identidade e princípio de veracidade.

El primero es el compromiso o el esfuerzo del autor para convencer al lector

de que quien dice ―yo‖ en un texto autobiográfico es la misma persona que

firma en la portada y, por lo tanto, se responsabiliza de lo que es ―yo‖ dice.

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El llamado ―principio de identidad‖ consagra o establece que autor, narrador

y protagonista son la misma persona, puesto que compartem y responden al

mismo nombre propio, que cobra el valor de signo textual y paratextual y de

clave de lectura. (ALBERCA, 2009, p.3)

Por ser este um princípio controvertido, o nome próprio torna-se um recurso

indispensável na distinção entre autobiografia e romance. O nome próprio, com seu

referente preciso (o autor do texto), é o primeiro indício de veracidade do texto. Além

disso, como acrescenta Alberca, o nome não é uma simples etiqueta, mas sim está

intimamente ligado à construção da própria personalidade, individual, familiar e social.

A importância da identidade nominal tanto na autobiografia quanto na vida cotidiana é

mais do que uma questão de registro civil, pois as pessoas não existem socialmente até

que se lhe seja dado um nome. A identidade se firma em torno de um nome.

O segundo compromisso assumido pelo autobiógrafo constitui o princípio de

veracidade:

La otra promesa o compromiso del autor con el lector alude a la

referencialidad externa de la realidad que el texto enuncia, es decir, su

veracidad. Lo que se cuenta en el texto se hace como un expediente de

realidad, de algo realmente acaecido y comprobable a veces por el lector, que

espera o exige el máximo de correspondencia entre el texto y la realidad

nombrada por éste. El autor puede equivocarse o confundirse, pero lo cuenta

convencido o persuadido de su veracidad, además, como dije antes, de

anunciarlo y prometerlo al lector. A este principio Lejeune le llama ―pacto de

referencialidad‖. (ALBERCA, 2009, p. 4)

Alberca explica que a referencialidade do gênero autobiográfico, ao contrário do

que se possa pensar, não está ameaçada pela possível desconfiança que o leitor possa ter

com relação à verdade dos fatos narrados. Ao contrário, este sentimento reafirma o

pacto, já que aumenta a exigência e a expectativa a respeito da veracidade do texto que

o leitor acumula diante de uma autobiografia.

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118

Mas esta questão da veracidade é muito discutida, já que é impossível alcançar a

verdade absoluta, em particular de uma vida humana, mas a busca e o desejo de

alcançá-la definem, a partir de uma perspectiva do autobiógrafo e do leitor uma

expectativa que não é ilusória, mas bastante real e humana. É importante ressaltar que a

autobiografia, por pretender contar a vida de uma pessoa, acaba por abranger também a

vida das pessoas que compõe a rede de relações pessoais, familiares ou amorosas, bem

como profissionais do autor, logo a violação do princípio de veracidade pode ter

consequências reais fora do texto, inclusive de caráter judicial, como ressalta Alberca.

―El pacto autobiográfico produce consecuencias reales fuera del texto, e incluso de

carácter judicial, si éste incurre en la mentira, en el perjurio o en la difamación y

también cuando se entromete en la vida privada de otros‖.

Para encerrar nossas reflexões sobre o gênero autobiográfico, pensemos um

pouco sobre a evolução de gênero, já que no contexto pós-moderno, não se pode falar

em gêneros estáveis como o que parece ser configurado a partir da teoria de Lejeune. Há

certamente uma desestabilização da autobiografia, a qual se faz evidente no pós-

modernismo, pois, como afirma Villanueva, ao pretender articular mundo, texto e o

―eu‖, a autobiografia não deveria ignorar o asédio crescente a que estão sendo

submetidos conceitos como história, poder, sujeito, temporalidade, memória,

imaginação, representação ou retórica.

No artigo ―Filiações e rupturas do modelo autobiográfico na pós-modernidade‖,

de Christine Delory-Momberger, faz-se uma reflexão a respeito de como, atualmente,

ou seja, no contexto pós-moderno, os indivíduos representam suas vidas. O artigo tem

como objetivo identificar as formas, ou modelos que impregnam as construções

biográficas nas sociedades ditas pós-modernas. Para isto, a autora lança mão de uma

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119

revisão de alguns pressupostos relacionados à própria natureza da representação

biográfica. O primeiro pressuposto é o da representação biográfica em si mesma. A

autora afirma que os homens não têm uma relação direta com o vivido. Eles apreendem

as experiências vividas a partir de esquemas, de figuras, que tomam formas narrativas.

Enfim, os homens representam sua vida na linguagem, na sintaxe das narrativas,

fazendo de suas vidas uma ou várias histórias...

E isso não apenas quando a contam em atos de narrar deliberados, dirigidos a

outros ou a si mesmos, mas de forma incessante; na atividade mental de

representação e de construção de se, pela qual cada indivíduo verifica,

mantém, elabora a figura interior e exterior que ele reconhece, ou sente Omo

sendo si mesmo. Essas figuras da vida representada, que não devem ser

confundidas com a realidade, a facticidade do vivido, é que eu chamo de

biografia (etimologicamente escritura da vida, e chamo biografização o

trabalho psico-cognitivo de configuração temporal e narrativa, pelo qual os

homens dão uma forma própria ao desenrolar e às experiências de suas vidas.

(DELORY-MOMBERGER, 2009, p.99)

O segundo pressuposto que a autora aborda relaciona-se com a dimensão

histórica e cultural construída, portanto, dos modelos biográficos e com sua

variabilidade histórica.

O relato, e em particular o relato biográfico ou autobiográfico que nos

interessa aqui, antes de tudo, não é um sistema rígido em uma estrutura

imutável. As formas às quais os indivíduos recorre para biografar sua vida

não são apenas seus feitos, elas não lhes pertencem propriamente e eles não

podem decidir, eles mesmos, integralmente sobre elas: são formas coletivas

que pertencem à história, à cultura, ao social e que obedecem às variações e

às evoluções sócio-históricas. Particularmente, os modelos narrativos que

constituem, de algum modo, os padrões das construções biográficas varia

com os tipos e os modos de relação que os indivíduos mantêm com a

coletividade segundo as épocas e as culturas. (DELORY-MOMBERGER,

2009, p.99)

Neste sentido a autora apresenta como uma das formas narrativas consideradas

como um modelo biográfico o ―Bildungsroman‖ ou ―romance de formação‖. O

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―romance de formação‖ tem como característica estar estruturado a partir das etapas de

desenvolvimento do herói, desde a juventude até a idade madura. A narrativa se abre

com a entrada do personagem no mundo, e, em seguida vão se sucedendo as etapas

marcantes de sua aprendizagem da vida, encerrando-se no momento em que ele atinge o

autoconhecimento e a consciência de seu lugar no mundo. Conforme Christine Delory-

Momberger, o percurso de formação da personagem do ―Bildungsroman‖ inscreve-se

em um horizonte finalista ou teleológico. O trajeto da aprendizagem do personagem tem

uma linha de evolução com ―errâncias‖ e ―retornos‖, onde há uma progressão na

intensidade desta aprendizagem de maneira que cada fase de desenvolvimento traz uma

lição qualitativamente superior a anterior.

A dinâmica da narrativa, entre uma situação inicial de inocência e de

inexperiência e uma situação terminal de maturidade ou maestria, encadeia

os acontecimentos segundo uma causalidade final. Que convida a uma

leitura retrospectiva: é a partir do fim, do objetivo atingido (ou não atingido)

que se articulam as relações de causa e efeito e que o movimento da

aprendizagem ganha sentido para o leitor, ou seja, encontra, ao mesmo

tempo, sua orientação e sua significação Ora, essa construção acabada, que

no romance de formação é, simultaneamente, um efeito da arte (não nos

esqueçamos de que se trata de obras literárias, obras de ficção), e que

responde a uma intenção didática (trata-se de instruir o leitor e relação a sua

própria vida), vai se transportar, não obstante, a curva ideal que ele desenha,

para o modelo de narrativa biográfica da modernidade. (DELORY-

MOMBERGER, 2009, p.102)

Segundo Christine Delory-Momberger, o modelo narrativo inaugurado pelo

―Bildungsroman‖ ou narrativa de formação está relacionado a um estágio sócio-

histórico da relação entre indivíduo e sociedade correspondente ao período histórico

vivenciado pela sociedade européia do final do século XVIII. Um período marcado

pelo aumento do poder e pela dominação progressiva da burguesia. Christine Delory-

Momberger acrescenta que a sociedade burguesa, que estabeleceu suas bases no capital

e na transformação do mundo pelo capital, definiu-se não só pelas relações de produção

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e poder, mas também, ―por um conjunto de representações que dizem respeito à relação

do indivíduo com a sociedade e que determinam uma estrutura da consciência de si‖. A

―concepção de indivíduo‖ gerada por esta nova configuração social é a de um ser

responsável e autônomo, que agente de seu próprio caminho, um ser que se faz por si

mesmo e deve encontrar seu lugar na sociedade.

Essa representação de um devir individual portador de trans-formação

integra as noções de concorrência, de risco, de luta pela vida, mas também de

amostragem de possíveis, de alternativas, de escolha. Não é de se espantar

que a noção filosófica e moral de Bildung seja elaborada nesse contexto

sócio-histórico e que encontre um terreno favorável nas representações do

indivíduo a ela vinculadas. É nesse modelo de projeção biográfica, nascido

da inscrição particular do indivíduo nas sociedades burguesas liberais, que

marcará por muito tempo e continuará a marcar, amplamente, as

representações e as práticas biográficas. (DELORY-MOMBERGER, 2009,

p.102)

A investigação de Christine Delory-Momberger pretende responder ao

questionamento sobre a que modelos de construção biográfica e a que tipos de

narrativas os indivíduos das sociedades pós-modernas recorrem. Recorrendo à pesquisa

do sociólogo americano Richard Senett, que no final dos anos setenta observou que os

operários e os funcionários contavam a história de suas vidas de maneira linear e

contínua, tendo como eixo estruturador e integrador a sua vida profissional, vinte anos

mais tarde, o sociólogo pode verificar que a capacidade de produzir uma narrativa

unificada da vida havia sido consideravelmente reduzida. No lugar daquelas narrativas

lineares, o sociólogo pode coletar de seus informantes histórias fragmentadas relatadas

com dificuldades para estabeldecer a continuidade e a permanência.

O modelo narrativo ao qual apelam os primeiros informantes de Richard

Senett é ainda herança do relato de formação, que faz do curso da vida, como

já foi visto, um princípio dinâmico e prospectivo de desenvolvimento interno,

contando as etapas de desenvolvimento de uma individualidade. E

transforma as experiências da existência em ocasiões de aprendizagem de

formação do ser individual. Banalizado, vulgarizado, este modelo de

narrativa permanece na época moderna mais recente, ou seja, até os anos 70 –

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como padrão biográfico de base. Ele responde à concepção de um indivíduo

que tem um lugar na sociedade e que deve encontrá-lo através da experiência:

corresponde ao mesmo tempo a uma estratificação econômica e social, em

que as posições são claramente identificadas em termos de categorias sócio-

profissionais, e onde os indivíduos desenvolvem um sentimento de identidade

pessoal em relação ao seu percurso e sua atividade profissional. (DELORY-

MOMBERGER, 2009, p.104)

Em contraposição a estas narrativas lineares que o sociólogo verificou em

pesquisa até os anos setenta, as narrativas colhidas nos anos noventa já não eram

dotadas da mesma unificação e integração. A vida profissional já não era o motivo

organizador da narrativa dos informantes da pesquisa. Suas narrativas, por não estarem

mais baseadas na atividade profissional, acabaram recorrendo ao que Delory-

Momberger chama de ―superestimulação de seus recursos biográficos‖. As diferenças

constatadas levam a pesquisadora a interrogar sobre as modificações sociais e sua

influência no modo de narração biográfica.

As transformações estruturais ocorridas nas sociedades ocidentais, a partir da

década de setenta, tornaram muito mais complexas as relações sociais e de

pertencimento dos indivíduos, potencializando os modelos biográficos correspondentes.

A diversificação dos mundos sociais, as descontinuidades dos percursos

pessoais e profissionais, a coexistência na vida dos indivíduos de múltiplas

redes de socialização multiplicam as biografias típicas, mas ao mesmo tempo

diluem sua importância: as antigas programações biográficas perdem sua

centralidade e sua rigidez e os indivíduos são levados a ―escolher‖ entre

opções biográficas múltiplas e a forjar, por si próprios, o desenrolar de suas

vidas. Mais que por relações de integração e identificação, a atividade social

do indivíduo pós-moderno é conduzida por relações temporárias e reversíveis

de inclusão em subsistemas aos quais ele acede conforme é conduzido por

setores de sua vida... (DELORY-MOMBERGUER, 2009, p.105)

Sendo assim, em uma sociedade complexa e profusa como a que temos na era

pós-moderna multiplicam-se os modelos biográficos. Temos então uma ―oferta

biográfica‖ muito mais aberta e diversificada. Por outro lado, menos hierarquizada e

coerente como nas sociedades mais estáveis e mais centralizadas do passado. Tudo isto

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quer dizer que, como vimos no início deste capítulo, se a pós-modernidade trouxe o

questionamento dos conceitos dominantes de arte, literatura, história, as possibilidades

da narrativa biográfica também foram questionadas e consequentemente as da narrativa

autobiográfica. Certemente, esta nova ―existência múltipla‖, com o indivíduo

exercendo múltiplos papéis sociais, favoreceu que os discursos (e aqui incluímos os

literários – ficcionais ou autobiográficos, ensaísticos, não-ficcionais) se tornassem

também múltiplos. Acreditamos ser este o novo modelo narrativo da pós-modernidade:

o discurso da multiplicidade. Como veremos, na análise de El cuarto de atrás, estas

questões se manifestam claramente. Não é por acaso que esta obra tornou-se um ícone e

um modelo de uma nova forma narrativa na Espanha das últimas décadas: a

autoficcional.

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2.4 – A autoficção: uma teoria em construção.

Nas últimas décadas do século XX e na primeira do século XXI, observou-se um

considerável aumento da produção literária caracterizada pela ―escrita do eu‖, bem

como uma consequente abundância de teorias que estudam este tipo de escritos.

Também chamados ―escrita íntima‖, ―gêneros íntimos‖, ou ―escrita de si‖, essas

denominações denotam um corpus de textos que abrangem diversos gêneros como as

autobiografias, os diários, relatos de viagens, memórias, etc. Os estudos literários acerca

desses gêneros, invariavelmente, tendem a associar essas formas literárias à categoria de

verdade. Assim como o gênero romanesco pode vir a reclamar a ausência da

contaminação pela vida do autor. A verdade é que para alcançar uma compreensão

plena desses gêneros, especialmente na contemporaneidade, é preciso flexibilizar essas

relações tão estanques e buscar um suporte teórico que viabilize análises mais acertadas

de obras que ultrapassam os limites genéricos entre os ―escritos de si‖ e a ficção.

Na busca de uma proposta teórica que nos auxilie na análise e El cuarto de atrás,

recorremos à teoria da autoficção, tendo em vista que este romance é reconhecidamente

uma narrativa autoficcional. O olhar sobre este texto deverá vir permeado pela

consciência e o reconhecimento da novidade que Carmen Martín Gaite apresentou

naquele momento, final da década de setenta do século XX. Hoje, mais de 30 anos

depois, vemos que a teoria literária, definitivamente, determinou a produção dos textos.

Tanto que, observou-se um ―boom‖ autoficcional após a criação e caracterização do

gênero. É certo que esta caracterização vem sendo construída à medida que as obras

vão sendo escritas. Sendo assim, percebe-se o ciclo teoria – criação – teoria. Mas o

verdadeiro desafio que se nos apresenta, a esta altura do século XXI, é ler a autoficção

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de Carmen Martín Gaite, após mais de 30 anos, depois de tantas transformações, tanto

do gênero quanto da teoria em si, com o olhar crítico, isento do preconceito e da repulsa

que os críticos atualmente já começam a ter pelo gênero, fruto da banalização de seus

recursos literários característicos e do uso indiscriminado do termo ―autoficção‖.

No Brasil, por exemplo, Luís Antônio Girón, crítico de cinema e literatura da

revista Época, escreveu em julho de 2009, um artigo bem humorado intitulado ―A onda

(e a praga) da autoficção‖ em que esclarece a origem do termo (como fazem todos que

escrevem sobre este tipo de produção literária. Também não escaparemos a isto, como

veremos adiante), mas antes mostra como a palavra autoficção banalizou-se nas rodas

literárias e hoje representa claramente um produto comercial bastante rentável. Para

Girón, a evolução no uso do termo autoficção seguiu o mesmo caminho que tantos

outros termos que saem do meio universitário e ganham popularidade até que seu

significado se esvazie.

Nas mesas de bar dos literatos brasileiros não se fala em outra coisa. E essa

outra coisa atende pelo nome de autoficção. Seja por causa do ano da França

no Brasil ou da incurável congestão de blogueiros na internet, todo mundo

quer falar ou praticar a tal da autoficção. Surgem autoficcionistas

instantâneos no mundo inteiro, e com eles a eleição dos antepassados. Sem

que a pessoa saiba, um autoficcionista pode estar operando diante de seus

olhos, num site de relacionamento, em e-mails ou mesmo na redação escolar.

Sim, prezado leitor, os autoficcionistas estão em toda parte. Cuidado para não

tropeçar em um sem se dar conta. Mas o que é de fato autoficção? Vou tentar

explicar, embora o termo seja mesmo traiçoeiro. Prometo evitar a moda e não

mentir...

É o eterno retorno do mesmo fenômeno: um conceito teórico discutido em

círculos acadêmicos de repente transborda para as mesas de bar e cai na boca

do povo. Eu me lembro que isso aconteceu com termos como "signo",

"desconstrução", "paradigma" e "pós-modernidade", para citar quatro. Cada

um deles tem uma origem nobre, universitária, e fazia parte do vocabulário

dos iniciados. (Revista Época on-line, 14 de julho de 2009 )

Girón afirma que o termo autoficção, assim como os outros citados acima, com o

tempo, deixou de ser um conceito discutido somente em meios acadêmicos para fazer

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parte do vocabulário do dia a dia. Certamente, a Internet teve grande influência nisto.

Mas o que nos chama a atenção nos comentários do crítico é a relação que ele

estabelece entre a autoficção e a mentira. Cabe perguntar: como pensar em mentiras ou

verdades se falamos de ficção? Girón finaliza seus comentários sobre a autoficção, ou

melhor, as impressões que ele tem sobre o gênero:

O escritor em especial parece ter a necessidade de criar uma personagem que

lhe dê um sentido, uma envergadura metafísica, um toque de tragédia que ele

não possui na sua vida medíocre neste mundo real e sem graça. Antigamente,

esse tipo de coisa era chamada de armação. Agora ganhou um novo nome e

virou bacaninha. A autoficção parece um sucedâneo do teatro. É a máscara

descartável que os escritores precisam exibir para não ser descobertos.

Não importa se o método é bom ou mal. O que é interessante no surgimento

da autoficção é que o conceito ilumina a história da literatura. Ora, todos os

escritores, ficcionistas ou não, de Platão ao mais anônimo dos twitteiros,

jamais deixaram de fazer ficção consigo próprios. (Revista Época on-line, 14

de julho de 2009)

Apesar de considerar seu julgamento ligeiramente radical, ao referir-se aos

procedimentos autoficcionais como ―armação‖, vemos que Girón sinaliza para algumas

questões éticas, pois fica claro que, atualmente, a proliferação da autoficção como uma

moda literária, cinematográfica ou ―blogueira‖, atende a interesses puramente

comerciais, deixando de ser uma autêntica expressão artística para transformar-se num

mero produto comercial. Ora, isto nada tem de novo, pois, desde os velhos folhetins, o

mercado editorial alimenta-se de obras literárias produzidas em série visando lucro.

Também não é uma invenção da pós-modernidade a veiculação da imagem do autor

como personagem de si mesmo. Mas há que se separar a verdadeira expressão literária

da produção autoficcional em série, a qual alcança vários meios, sejam eles impressos,

audiovisuais ou eletrônicos. De qualquer forma, a autoficção é mais uma das inúmeras

possibilidades de expressão do ―eu‖.

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No campo da literatura brasileira, vemos em Silviano Santiago, escritor e crítico,

uma interessante relação com a autoficção. Em seu artigo, ―Meditação sobre o ofício de

criar‖, o escritor explica como encontrou na autoficcção a possibilidade de expressão

literária após passar por um processo de diferenciação, preferência e contaminação.

Falo primeiro da diferenciação e da preferência. Parti da distinção entre

discurso autobiográfico e discurso confessional. Os dados autobiográficos

percorrem todos meus escritos e, sem dúvida, alavanca-os, deitando por terra

a expressão meramente confessional. Os dados autobiográficos servem de

alicerce na hora de idealizar e compor meus escritos e, eventualmente, podem

servir ao leitor para explicá-los. Traduz o contato reflexivo da subjetividade

criadora com os fatos da realidade que me condicionam e os da existência

que me conformam. Do ponto de vista da forma e do conteúdo, o discurso

autobiográfico per se – na sua pureza – é tão proteiforme quanto camaleão e

tão escorregadio quanto mercúrio, embora carregue um tremendo legado na

literatura brasileira e na ocidental.

Já o discurso propriamente confessional está ausente de meus escritos. Nestes

não está em jogo a expressão despudorada e profunda de sentimentos e

emoções secretos, pessoais e íntimos, julgados como os únicos verdadeiros

por tantos escritores de índole romântica ou neo-romântica. Não nos

iludamos, a distinção entre os dois discursos tem, portanto, o efeito de marcar

minha familiaridade criativa com o autobiográfico e o consequente

rebaixamento do confessional ao grau zero da escrita. Em que pese seu

legado insuspeito para as culturas nacionais, o discurso autobiográfico jamais

transpareceu per se em meus escritos, ou seja, não me apropriei dele em sua

pureza subjetiva e intolerância sentimental. Não escrevi minha autobiografia.

Uma pergunta se impõe: Então, como tenho valido do discurso

autobiográfico nos escritos? Para respondê-la, passemos ao terceiro

movimento, o da contaminação. (SANTIAGO, 2007)48

O fragmento destaca os primeiros passos do processo de escolha da autoficcção

como opção de criação literária de um escritor. Como se observa, a autobiografia não

faz parte do repertório de Silviano Santiago. O autor afirma não ter escrito uma

autobiografia, mas como veremos no fragmento seguinte, o ―discurso autobiográfico‖

está presente em sua obra, através do que ele denomina processo de ―contaminação‖.

Ao reconhecer e adotar o discurso autobiográfico como força motora da

criação, coube-me levá-lo a se deixar contaminar pelo conhecimento direto

48

Artigo disponível em: http://www.pacc.ufrj.br/z/ano5/1/z_silviano.php

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"atento, concentrado e imaginativo" do discurso ficcional da tradição

ocidental, de Miguel de Cervantes a James Joyce, para ficar com extremos.

Não foi por casualidade que, na juventude, o crítico de cinema se matriculou

na Faculdade de Letras e se tornou, na maturidade, professor de literatura. Se

minha vida é a que me toca viver, minha formação foi e é estofada pela

leitura dos ficcionistas canônicos e dos contemporâneos – independente de

nacionalidade. Com a exclusão da matéria que constitui o meramente

confessional, o texto híbrido, constituído pela contaminação da autobiografia

pela ficção – e da ficção pela autobiografia –, marca a inserção do tosco e

requintado material subjetivo meu na tradição literária ocidental e indicia a

relativização por esta de seu anárquico potencial criativo.

Inserir alguma coisa (o discurso autobiográfico) noutra diferente (o discurso

ficcional) significa relativizar o poder e os limites de ambas, e significa

também admitir outras perspectivas de trabalho para o escritor e oferecer-lhe

outras facetas de percepção do objeto literário, que se tornou diferenciado e

híbrido. Não contam mais as respectivas purezas centralizadoras da

autobiografia e da ficção; são os processos de hibridização do autobiográfico

pelo ficcional, e vice-versa, que contam. Ou melhor, são as margens em

constante contaminação que se adiantam como lugar de trabalho do escritor e

de resolução dos problemas da escrita criativa. (SANTIAGO, 2007)

Deve-se observar que Silviano Santiago considera a autobiografia como um

gênero cambiante e embora afirme não ter escrito uma autobiografia, reconhece a força

que o discurso autobiográfico tem como matéria prima para a criação literária. Sendo

assim, apresenta sua relação com a autoficção, quando relata fazer uso da hibridização

do autobiográfico com o ficcional tendo como resultado a autoficcção. A este processo

Silviano Santiago chama de ―contaminação‖. Esta contaminação acaba por tornar

incertas as margens que delimitariam um e outro campo da criação. Para o escritor, não

é mais o produto - autobiografia ou ficção – o mais importante, mas sim o processo de

hibridização que torna possível a escritura de obras em que os limites entre um e outro

campo já não podem mais ser definidos. Aprofundaremos estas idéias com as reflexões

do teórico espanhol que estudaremos a seguir. Manuel Alberca, não utilizará o termo

―margens‖ como Silviano Santiago, mas sim ―fronteiras‖. No entanto, perceberemos

que o conceito apresentado será bastante similar.

O campo das literaturas hispânicas, e aqui destacamos a Espanha pós-franquista,

tem acompanhado o desenvolvimento, o auge e um possível declínio (ou transformação)

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da autobiografia. Estudos de Manuel Alberca (1999, 2007 e 2009) mostram que este

fenômeno está diretamente relacionado à proliferação de um gênero literário em que a

invenção literária une-se à narração de fatos biográficos do autor, resultando em textos

híbridos que se encontram entre a autobiografia e a ficção. Trata-se da autoficção.

Para realizar um estudo deste gênero literário, primeiramente é preciso observar

que sua existência, como observa Alberca (2007) é anterior à criação do neologismo que

lhe deu nome. O termo autoficção é uma criação do escritor francês Serge Doubrovsky

em resposta ao questionamento de Philippe Lejeune em ―O Pacto autobiográfico‖

(1975), onde este levantava a possibilidade de existir um romance em que o

protagonista tivesse o mesmo nome do autor. Sem lembrar-se de nenhuma obra que

exemplificasse o caso, Lejeune não aprofunda a questão. Como vimos anteriormente, o

ensaio de Lejeune propõe um quadro onde cada célula estabelece a relação entre o nome

do autor, o nome do personagem e o pacto que se configura (autobiográfico ou

romanesco). Sendo assim, de acordo com a proposta de Lejeune, o pacto autobiográfico

se estabelece quando há identificação entre autor, narrador e personagem e o pacto

romanesco se configura quando o nome do autor não corresponde ao nome do

personagem da obra.

Em 1977, Doubrovsky, explorando as possibilidades literárias da célula superior

direita do quadro de Lejeune (que havia sido deixada vazia), a que estaria relacionada

ao romance em que o nome do personagem seria igual ao nome do autor, decide

explorar as possibilidades literárias de um terceiro pacto e ―cria‖ em seu romance Fills o

novo gênero. Ou melhor, cria um neologismo que viria a batizar este tipo de criação

literária. O texto da contracapa do livro expressa a intenção do escritor francês:

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Al despertar, la memoria del narrador, que rápidamente toma el nombre del

autor, cuenta una historia en la que aparecen y se entremezclan recuerdos

recientes (nostalgia de un amor loco), lejanos (su infancia, antes de la guerra

y durante la guerra), y también problemas cotidianos, avatares de la profesión

(…) ¿Autobiografía? No. Es un privilegio reservado a las personas

importantes de este mundo, en el ocaso de su vida, y con un estilo

grandilocuente. Ficción, de acontecimientos y de hechos estrictamente

reales; si se quiere, autoficción, haber confiado el lenguaje de una aventura a

la aventura del lenguaje. Reencuentro, hilo de las palabras, aliteraciones,

asonancias, disonancias, escritura del antes y del después de la literatura,

concreto, como se dice en música. O todavía, autofricción, pacientemente

onanista, que espera ahora compartir su placer. (Apud ALBERCA, 2007,

p.146)

O texto marca a abertura de um campo teórico, que, ao mesmo tempo em que foi

sendo (e ainda está) construído, alimentou a profusão da criação de obras que se

manifestam como realizações do gênero em questão. Como um vasto campo de

experimentação literária desde a década de setenta do século passado até a atualidade, a

autoficção estendeu seus domínios para outras artes, além da literatura. Hoje, fala-se

em autoficção no cinema, nos quadrinhos, e até mesmo nos blogs de escritores na

internet.

No artigo ―El las fronteras de la autobiografía‖ (1999), Manuel Alberca

apresenta sua proposta de pesquisa no campo da autoficção, a qual tem três propósitos:

primeiramente, caracterizar um conjunto de relatos da literatura espanhola que,

apresentando-se ou não como romances, possuem conteúdos autobiográficos que seus

autores tentam de disfarçar; o segundo propósito é situar esses relatos que se encontram

entre a autobiografia e o romance; por último, Alberca pretende verificar até que ponto

esses relatos superam as limitações do ―pacto autobiográfico‖, rompendo, portanto, suas

fronteiras.

A principal motivação para o estudo de Alberca está no auge autobiográfico da

literatura espanhola verificado nas últimas décadas do século XX. O artigo é de 1999 e

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busca nos 25 anos anteriores o campus de análise para sua pesquisa. A pesquisa foi

ampliada e desenvolvida no livro El pacto ambíguo: de la novela autobiográfica a la

autoficción (2007). Vários aspectos elaborados no artigo de 1997 foram incluídos no

livro como parte do terceiro capítulo em que Alberca relata as origens e o

desenvolvimento da autoficção focalizando seu estudo nos trinta anos de história do

gênero. Alberca começa traçando um breve histórico da autoficção. Destrinchando o

debate teórico sobre o novo gênero, o autor constata um desenvolvimento da questão no

período compreendido entre 1982 a 1997, apresentando o posicionamento de alguns

estudiosos. Alberca inicia o debate sobre a autoficção com Jacques Lecarme49

, que, em

alguns trabalhos nas décadas de 80 e 90, mostrou que, antes de Doubrosvsky, outros

escritores realizaram experimentos narrativos na área da autoficção, mesmo sem a

utilização do termo. Lecarme também define a autoficção como relato onde autor,

narrador e protagonista compartilham a mesma identidade nominal.

O debate é alimentado por idéias de Vincent Colonna50

, que, em sua tese de

doutorado, dirigida por Gerard Genette, amplia o valor conceitual do termo com sua

definição, onde afirma que a autoficção é um tipo de relato caracterizado pela invenção

literária de uma personalidade ou de uma existência, ou seja, uma espécie de

ficcionalização da própria experiência vivida. Segundo Alberca, a maior contribuição

de Colonna para o estudo da autoficção foi ampliar o âmbito da prática textual da

autoficção.

49

Alberca debate as idéias de Jacques Lecarme em “Autofiction un mauvais genre”, Autofictions & Cie, Paris, Ritm, 6. 50

A obra de Vincent Colona pode ser consultado na Internet em http://tel.archives-ouvertes.fr/docs/00/04/70/04/PDF/tel-00006609.pdf

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Su mayor aportación, con respecto a Doubrovsky y Lecarme, es la de

ampliar el marco de la práctica textual de la autoficción, no solo en el tiempo

(cita la Comedia de Dante o El Quijote de Cervantes entre los precedentes

más ilustres) sino también conceptualmente, al sacarla de su relación

exclusiva con la autobiografía, en la que los críticos anteriores la habían

situado, para entroncarla con la ficción literaria en su sentido más amplio,

pues allí se defendía que la ―ficcionalización del yo‖ tenía un carácter

universal ancestral‖. (ALBERCA, 2007, p. 151)

Outro crítico que contribuiu para a discussão foi Gerard Genette. Para este, a

identidade de autor e narrador em um texto de ficção é inviável. Para o teórico,

defender a identidade entre autor e narrador em um texto ficcional é algo insustentável.

No entanto, para Alberca, esta aparente incoerência é o que o gênero traz de mais

interessante já que as possibilidades narrativas através da simultaneidade de dissociação

e identidade de autor, narrador e protagonista se ampliam.

Es decir, (Genette) encuentra insostenible defender la identidad Autor y

Narrador (A = N) en un texto que se reclama la ficción. Sin embargo, ésta es

justamente la apuesta y el riesgo de la autoficción: mostrar al mismo tiempo

tanto la disociación de autor y narrador (A ≠ N) como su identidad (A = N),

en una alternacia o incertidumbre por la que un autor vendría a significar que

A es + N (Soy yo y no soy yo). (ALBERCA, 2007, p.153)

É perceptível que a autoficção constituirá, portanto, num ocultamento ou

embaralhamento da figura do autor, ao mesmo tempo em que este se coloca na ficção

como parte dela. Alguns estudiosos vem neste procedimento uma estratégia da

literatura contemporânea de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção,

tornando híbridas as fronteiras entre o real e o fictício.

Outra abordagem sobre a autoficção trazida por Alberca é a da escritora Marie

Darrieussecq que a considera uma variante subversiva do romance em primeira pessoa,

e não da autobiografia, já que transgride diretamente o ―último reduto do realismo: o

nome próprio‖. Na opinião da escritora, o uso do nome próprio do autor para identificar

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um personagem de romance subverte a regra romanesca que estabelece o princípio de

distanciamento ou de não-identificação através do qual o há um apagamento do autor no

texto. Diz a escritora:

Hay aquí por supuesto una suerte de fraude; pero, realmente, subversivo. ¿Por qué

no tomar la autoficción al pie de la letra y relacionarla, como ella misma reclama,

con ―la novela en primera persona‖ antes que con la autobiografía? Nada impide

imaginar, y escribir, una novela en primera persona donde el nombre del narrador

sea el mismo que el de la portada. Nada prohíbe - ¿qué ley literaria? – inventarse

una vida apoyándose en los códigos autobiográficos. Es entonces cuando la

autoficción, se hace vertiginosa: la identidad, última muralla de lo real, último

‗criterio legal‘ del pacto autobiográfico, la identidad se convierte en ficción. (Apud

ALBERCA, 2007, p. 154)

É interesante observar o posicionamento da Marie Darrieussecq, que enquanto

escritora percebe o estatuto fictício da autoficção como algo que prevalece sobre o

estatuto autobigráfico. No entanto, poderemos verificar um pouco mais adiante que há

diferentes graus de ambigüidade nas autoficções que podem aproximá-las mais da

autobiografia ou da autoficção, gerando o que Alberca chamará de ―clases de

autoficción‖.

Mas antes de chegarmos a este ponto de nossa pesquisa, gostaríamos de concluir

o breve histórico dos estudos que tem tentado definir a autoficção, mencionando o que

Alberca define como última etapa da autoficção que é justamente o da sua ―explosão‖ e

da normalização dentro da crítica literária. Parodiando a literatura hispanoamericana,

Alberca refere-se ao ―boom‖ autofictício como um auge no desenvolvimento tanto da

criação quanto da crítica sobre o tema. Já na primeira década do século XXI, os estudos

de Philippe Gasparini51

, Vicente Colonna52

e Philippe Vilain53

revelam os diferentes

posicionamentos e diferentes maneiras de compreender este fenômeno literário,

51

Refere-se a: Est-il jê? Roman autobiographique et autofiction. Paris: Seuil, 2004. 52

Refere-se a: Autofiction & autres mythomanies litteraires. Auch: Tristan, 2004. 53

Refere-se a: Defense de Narcisse. Paris: Grasset, 2005

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comprovando realmente que a teoria deste gênero ainda está em construção. Alberca

resume as teorias desenvolvidas pelos três críticos, identificando suas contribuições ao

desenvolvimento da teoria da autoficção, mas sem deixar de apontar o que considera

como deficiências nesses estudos. Mostra também os antagonismos dessas propostas

teóricas. Sendo assim, para Alberca, a tese de Phillipe Gasparini tem o mérito de

recuperar o conceito de romance autobiográfico, (noção menosprezada pela poética

narrativa) e relacioná-lo com a autoficção, porém, nesta aproximação, não estabelece

critérios claros para distinguir esses dois tipos de narrativa. Quanto ao livro de Vicent

Colonna, que é resultado de sua tese de doutorado, Alberca aponta que o autor, a partir

de uma tríplice classificação tipológica da autoficção (que veremos mais adiante),

assinala a superioridade da autoficção do tipo ―imaginária‖, rebatizada como

―fantástica‖. Collona atribui à obra de Luciano Samosata54

o papel de ―protótipo‖

prestigioso da autoficção, mas Alberca considera a análise equivocada, como vemos a

seguir:

Collona se remonta a la obra del escritor latino Luciano de Samosata (siglo

II), llena de elementos mitológicos, legendarios y fantásticos, que resultan

parodiados y desmitificados, y en la que Collona encuentra el ―prototipo‖

prestigioso de la autoficción y un ejemplo pintiparado para defender que

autofabulación está en los orígenes de la novela y en la misma expresión del

concepto de autoría literaria, es decir, desde que e escritor firma su obra y por

tanto comienza a instituirse el mito del autor. Collona hace una apuesta

arriesgada para fijar y ennoblecer el origen de la autoficción en la obra de

Luciano, pero incurre consciente o inconscientemente en el ilusionismo

histórico, que supone revisar el pasado, en este caso literario, con conceptos

actuales, realmente anacrónicos. Al no existir en el siglo II el sentido

54

Luciano de Samosata(125-? - 192) Filósofo grego. De origem humilde, foi escultor e advogado. Dedicou-se a percorrer o mundo dando conferências. Estableceu-se em Atenas (163-185) e acabou novamente como sofista ambulante. Além de exercícios de retórica, “Elogio da mosca”, e do escrito autobiográfico “O sonho e o galo”, é autor de um “Tratado sobre como escribir a história”, de numerosos escritos mais ou menos filosóficos como “A pantomima” e “O pecador”, de diálogos satíricos e morais “Diálogos dos deuses”, “Diálogos dos mortos”, “Diálogos das cortesãs, “Caronte o cínico”, “Prometeu”, “A assembléia dos deuses”, de diálogos literários “O parasita”, de libelos “O mestre da retórica”, de relatos satíricos “Historia verdadera, “O asno” e de paródias trágicas “O pé leve”, “La tragédia da gota”). Imitado por Erasmo e por Quevedo e muito lido pelos renascentistas, Luciano de Samosata é um grande crítico e o criador do diálogo satírico. (Biografías y vidas, 2004 -11- Disponível em: http://www.biografiasyvidas.com/biografia/l/luciano_de_samosata.htm - Tradução nossa)

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moderno de individuo ni el concepto de vida privada actual, con respecto a

los que entendemos hoy la autoficción, no se puede comparar ni comprender

con respecto a que se establece la deriva ficticia del yo, es decir, es

prácticamente imposible delimitar dónde comienza la impronta personal de

Luciano y dónde la tradición y la retórica literarias. (ALBERCA, 2007, p.

156)

Embora Alberca reconheça que o ―eu‖ fictício presente na obra de Luciano seja

formalmente semelhante ao da autoficção que tenta definir em suas pesquisas sobre o

tema, afirma que Collona comete um ―flagrante ahistoricismo‖ ao tentar analisar uma

obra do século II com preceitos literários da atualidade.

Por fim, Alberca faz referência ao livro do escritor Philippe Vilain. Com

elaborações teóricas inferiores às dos críticos anteriores, Vilain, escreve um texto

dotado de uma exposição amena, mas que carece de precisão em diversas ocasiões.

Trata-se de uma apologia do valor literário do gênero autobiográfico em que pretende

desfazer o estigma de ―escritura vergonzosa‖ e narcisista. Assim, Vilain defende sua

própria literatura, muito próxima da autobiografia. Para isso, acaba estabelcendo uma

equivalência entre a autobiografia e a autoficção, neutralizando a diferença entre os dois

gêneros.

Sin embargo, el reconocimiento literario de la autobiografía, que exige

Vilain, se basa equívocamente e los mismos presupuestos que, desde las

posiciones aristotélicas de todas las épocas, han considerado la ficción como

el territorio exclusivo de la literatura y han desterrado de este reino de lo

artístico cualquier forma de relato histórico. Al defender el carácter ficticio

de la autobiografía le hace un flaco favor a ésta, pues se esfuerza en

demostrar que la literatura autobiográfica, tal como él la concibe, puede

competir en lo imaginario con la escritura novelesca. (ALBERCA, 2007,

157)

Alberca acredita que esta assimilação da autobiografía e do romance proposta

por Vilain tem o grave inconveniente de ocultar a questão central do pacto

autobiográfico e sua proposta de leitura que diferencia a autobiografia do romance. E

conclui categoricamente: ―Desde luego no es haciendo pasar por fictícia la autobiografía

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como ésta podrá alcanzar su reconocimiento y especificidad literarias, sino el desafío de

la veracidad‖ (p.157).

Com esses exemplos de explorações teóricas da questão da autoficção, Alberca

demonstra as incertezas que rodeiam este tipo de relato. Pensamos que estas tentativas

de definição, às vezes tão díspares, revelam a própria indefinição do gênero que, por

caracterizar-se pela ruptura dos limites literários, abre possibilidades múltiplas de

realização e de propostas teóricas de estudo. A verdade é que, em nosso entender, não

deveríamos falar de ―autoficção‖, como um gênero com suas características definidas,

mas sim de ―autoficções‖, como um gênero multifacetado que pode aproximar-se mais

da ficção ou da autobiografia, numa espécie de gradação. E nessa gradação,

multiplicam-se as possibilidades de combinação dos materiais autobiográficos e

fictícios.

Em consequência, devem ser considerados as diversas formas e graus da

ambiguidade na autoficção. O escritor de autoficção, ao realizar uma transação entre o

seu ―eu‖ que realmente existiu o que gostaria que houvesse existido, pode imaginar o

que nunca lhe aconteceu, mas como se realmente houvesse acontecido. Esta é uma

premissa básica da autoficção. Este procedimento gera uma mescla de materiais

narrativos diferentes que poderiam, em princípio, parecer antagônicos, mas que podem

ser fundidos de forma harmoniosa e ambígua na autoficção. A maneira como isto

ocorre, ou seja, privilegiando mais ou menos os materiais biográficos ou os fictícios é

que determina os graus de ambigüidade a partir dos quais se estabelecerão as ―classes de

autoficção‖, conforme classifica Alberca.

Sendo assim, Alberca aponta dois tipos de ambiguidade, que não são exclusivas

da autoficção, mas, neste tipo de relato adquirem relevância e intensidade definitórias.

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Trata-se da ambiguidade paratextual e da ambigüidade textual. Vejamos como Alberca

define cada um desses tipos de ambigüidade. Primeiramente a paratextual:

Esta clase de ambiguedad se produce al clasificar como ―novela‖ un relato

autobiográfico, por lo general sin elementos ficticios, en alguno de los espacios

del paratexto (portada, contraportada, solapa, prólogo, epílogo, entrevistas

promocionales, etc). Esto no llega, por si solo, a suponer una propuesta

contradictoria de géneros, pues el lector la resuelve enseguida decantándose

hacia una interpretación autobiográfica. En este caso, la mezcla resulta sólo

superficial, y por tanto la vacilación se desvanece inmediatamente, si el texto

no viene a refrendar lo que era sólo un efecto del paratexto. Si la contradicción

de pactos se produce en ese nivel, la ambigüedad es de carácter efímero, pues

el lector, una vez que comienza a leer el texto, se inclina hacia a autobiografía,

al disiparse sus dudas enseguida. (ALBERCA, 2007, p. 175)

Neste tipo de relato a invenção é praticamente nula e a ambiguidade é somente

um recurso a entrada de uma obra autobiográfica no prestigiado lugar da ficção. Para

Alberca, este recurso responde ao desejo do autor e do editor de prestigiar o relato

literariamente.

O segundo tipo de ambiguidade é a textual. Segundo Alberca, este tipo de

ambigüidade caracteriza as autoficções cuja indeteminação está presente em toda a sua

construção narrativa, sendo projetadas não só no paratexto, mas também no texto,

prolongando e acentuando as possíveis dúvidas criadas pela instância enunciativa.

Valendo-se da descrição de Tomás Abaladejo55

que utiliza proposta de Thomas Pavel

em Mundos de ficción para estabelecer três tipos de acontecimentos, personagens ou

infrmações que conformam a ambigüidade textual:

1. Uno hechos, personajes y datos, que son inequívocamente

autobiográficos y reales, como el nombre propio de autor, de familiares y

amigos, la fecha y el lugar de nacimiento o cualquier referencia personal,

como puede ser el título de una obra literaria, perteneciente al autor, etc, que

se puedan refrendar de manera efectiva fuera del texto.

55

Refere-se a: ABALADEJO, Tomás. Semántica de la narración: la ficción realista. Madri: Taurus-Universitaria, 1991, pp. 49-62.

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2. Otros, que parecen inventado o reales, pseudo-autobiográficos o

autobiográficos y, puesto que lo parecen, podrían serlo, pero su clarificación

resulta prácticamente insoluble.

3. Por último, una clase de hechos o personajes inequívocamente

ficticios e incluso fuertemente irreales, que, mezclados o superpuestos a los

comprobados biográficamente, el lector reconoce como imposibles de

atribuir al autor. Para que un lector considere un relato autoficción como una

obra de ficción, éste tiene que percibir la historia como imposible o

incompatible con la información que de antemano ya tiene del autor, para lo

qual es imprescindible conocer los datos biográficos necesarios. (ALBERCA,

2007, p. 178)

Nota-se que o papel do leitor é fundamental na decodificação do texto

autoficcional. Devemos observar que há inúmeras possibilidades de leituras, pois

haverá os leitores que desconhecem totalmente a vida do autor. Sua leitura será

limitada, pois não poderá reconhecer os materiais narrativos biográficos que compõem a

obra. Desta forma poderá incorrer no erro de interpretar uma autoficção em que haja a

ambigüidade paratextual como um verdadeiro romance, já que carece de ferramentas

para identificar seus componentes autobiográficos. Por outro lado, haverá os leitores

que conhecem dados biográficos do autor, bem como seus outros textos, podendo

estabelecer muitas relações. Estes vivenciarão uma leitura realmente mais rica e

perceberão as possíveis ambigüidades. Estas idéias nos fazem retornar à primeira parte

deste capítulo onde falávamos sobre a Estética da Recepção, a qual preconiza o papel do

leitor na obra literária.

No que diz respeito à estrutura dos relatos autofictícios, nota-se que a

assimilação dos elementos autobiográficos e ficcionais pode ocorrer de duas maneiras

distintas resultando, portanto, dois tipos de estrutura narrativa:

a) Los que mezclan los pactos de manera más o menos inconsútil, hasta hacer

con los diferentes elementos arriba enumerados un texto más o menos

uniforme, y b) los relatos que se construyen o desarrollan por la alternativa de

diferentes registros narrativos o por la yuxtaposición en paralelo de una serie

autobiográfica a otra novelesca, que permite reconocer con cierta facilidad

los diferentes registros, ficticios y factuales que componen el relato.

(ALBERCA, 2007, p. 180)

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Para exemplificar esses dois tipos de estrutura, Alberca cita para o primeiro os

romances El hijo de Greta Garbo, de Francisco Umbral e La velocidad de la luz de

Javier Cercas, em que os elementos narrativos se sobrepõem de maneira a compor uma

síntese do real com o fictício. Já o segundo tipo de estrutura é verificado no livro de

Unamuno , Cómo se hace uma novela em que os variados registros narrativos se

sucedem sem que haja exatamente uma mescla, assim se perceberá uma autobiografia,

um metarromance autofictício, um ensaio e um diário.

Quanto às classes de autoficção, utilizando-se da análise de obras da

literatura espanhola para respaldar suas definições56

, Alberca nos apresenta três tipos de

narrativa autoficcional: as autoficções biográficas, as autoficções fantásticas e as

autobioficções. Aqui, vamos ater-nos somente a suas definições, as quais nos auxiliarão

na análise de El cuarto de atrás. Assim teremos:

As autofições biográficas:

En este tipo de relato autofoctición, el punto de partida es la vida del escritor

que resulta ligeramente transformada al insertar-se en una estructura

novelesca, pero sin perderse la evidencia biográfica en ningún momento. El

autor es el héroe de su historia, el pivote en torno al cual se ordena la materia

narrativa, en la que fabula su existencia real a partir de datos que le

identifican. En muchos casos de estos relatos la invención tan débil que la

ambigüedad se desvanece prácticamente (…) lo ficticio reside en la

denominación novelesca del relato y en la voz narrativa que cuenta. La

ficcionalización es mínima y se hace evidente por la inclusión en la trama de

algún episodio o aspecto aislado inventado, que en la práctica resulta una

declaración de autobiografismo apenas encubierto (…) (ALBERCA, 2007,

p183)

56

Alberca analisa obras de Sonia García Soubriet, Julio Llamazares (autoficções biográficas); de César Aira, Justo Navarro e Francisco Umbral (autoficções fantásticas); de Mário Vargas Llosa e Javier Cercas (autobioficções). Consultar

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140

Alberca explica que este tipo de autoficção está muito próximo da autobiografia,

sendo possível saber tratar-se de ficções somente pela indicação paratextual de romance

e por um ou outro signo similar. Para o crítico espanhol, um dos objetivos deste tipo de

autoficções é fazer com que o leitor acredite que está diante de um verdadeiro texto

autobiográfico designado como romance, o que realmente pode acontecer mediante ―a

ilusión novelesca‖. A estrutura de relato autobiográfico ou memorialístico, com a

utilização de referências à documentação gráfica ou escrita, como cartas, fotos, jornais,

reforça uma verossimilhança que lhe aproximaria, se isto no fosse um contrasenso, à

veracidade.

O segundo tipo abrange as autoficções fantásticas, definidas por Alberca, a partir

de Vicente Colonna, no trabalho referido há pouco:

El narrador, bajo el mismo nombre del autor, se convierte em protagonista de

aventura que el lector percibe enseguida como novelescas, pues el más

elemental cotejo con la biografía del autor o con el sentido común hace que

se rechacen como verdaderas, a veces incluso como posibles desde una óptica

realista, las acciones de la historia que se levanta. Es decir, este tipo de

autoficciones se caracteriza por la manera fuertemente ficticia con que se

desrealizan los datos autobiográficos de los que arranca el autor o por la

manera en que éste se inventa una personalidad y una historia radicalmente

distinta a la suya, y que sin embargo, a la manera de sosias grotescos o un

doble imperfecto de sí mismo, también le representa. (…) (ALBERCA, 2007,

p183)

O terceiro tipo autoficções é denominado por Alberca autobioficções:

A diferencia de las autoficciones biográficas y fantásticas que basculan

respectivamente hacia el pacto autobiográfico y hacia el novelesco, las

autobioficciones se caracterizan por su equidistancia con respecto a ambos

pactos y por forzar al máximo el fingimiento de los géneros, su hibridación y

mezcla. No son novelas ni autobiografías, o son ambas cosas a la vez, sin

que el lector pueda estar seguro (mientras las lee) en qué registro se mueve,

ni tampoco está facultado en ciertos pasajes para determinar dónde empieza

la ficción y hasta dónde llega lo autobiográfico. (…) (ALBERCA, 2007,

p194-195)

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Resumindo, portanto as três categorias segundo as quais poderemos,

objetifivamente, chegar a classificar uma autoficção, temos os ―tipos de ambigüidade‖

(paratextual e textual), os tipos de estrutura narrativa (mescla de pactos com texto

uniforme e mescla de pacto com alternância de registros narrativos) e os tipos de

autoficção (autoficção biográfica, autoficção fantástica e autobioficção). Esperamos, ao

final da pesquisa, analisar o romance El cuarto de atrás dentro desses parâmetros. Com

a consciência que, por ser o campo a da utoficção tão avesso aos limites, possamos

talvez, chegar a outra ou outras categoria(s) de relatos autoficcionais. Esta afirmação

não é uma ambição nossa, mas uma possibilidade, tendo em vista as peculiaridades de

El cuarto de atrás.

De todo modo, o olhar sobre esta obra deve, necessariamente, vir perpassado

pela idéia de que na contemporaneidade a literatura é um meio de construção de

identidade, reforçado pelos meios de comunicação de massas que favorecem a

exacerbação do ―eu‖. Neste sentido, a professora Luciene Azevedo colabora com a

discussão ao apresentar suas reflexões em artigo intitulado ―Autoficção e literatura

contemporânea‖ (2008)57

. Para a estudiosa, a autoficção está permeada por dispositivos

que permitem a invenção de si. Embora seja um procedimento literário em voga na

contemporaneidade, o recurso de (re)inventar-se em outros é muito antigo:

(Re)inventar-se em outros é uma estratégia ficcional tão antiga que levou

Platão a expulsar os poetas da Cidade Real, mas mesmo um procedimento tão

antigo pode ter renovado seu estatuto, uma vez consideradas as

circunstâncias de seu (re) aparecimento. (AZEVEDO, 2008, p. 33)

57

Luciene Almeida Azevedo é Professora Doutora de Teoria Literária da Universidade Federal de Uberlânida (MG).

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O fragmento ilustra a questão do reaparecimento do autor, em diálogo com a

pós-moderna ―morte do autor‖, pois, para a autora do artigo, na autoficção ocorre a

incorporação do autobiográfico como uma estratégia para eludir a própria autobiografia

tornando híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional. Desta forma as discussões se

voltam para o novo papel do autor que retorna não como uma instância capaz de

controlar o que se diz, mas como uma entidade que deseja ―performar a própria imagem

de si‖. Entendemos, pois, que a matéria autobiográfica será a base para o relato de

autoficcção, mas perde substancialmente sua referencialidade, posto que se mescla com

a ficção.

A figura do autor (eu que escreve ou ego scriptor?) é ao mesmo tempo

evocada como referente do texto e ao mesmo tempo borrada pela

indecibilidade que inquieta o leitor chamado a participar de um pacto em que

as regras não estão dadas de antemão. (AZEVEDO, 2008, p. 35)

Fica claro que, embora a figura do autor seja um elemento fundamental nas

narrativas autoficcionais, esta figura sofre, de certa forma, uma apagamento como

consequência do processo de construção desta personalidade que atuará em um contexto

que será elaborado com base no real, porém, passará por um processo de

ficcionalização. O ―eu‖ do autor será, na verdade, fruto de uma produção textual.

A autoficção é entendida, então, como um apagamento do eu autobiográfico,

capaz de constituir-se apenas nos deslizamentos de seu próprio esforço por

contar-se como um eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente.

Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do semi-oculto com

as sinceridades forjadas que escreve. (AZEVEDO, 2008, p. 35)

Esse apagamento do ―eu‖ autobiográfico será, pois, um dos traços mais

evidentes das obras autoficcionais. Ocorrerá à medida que, no processo de escritura (e

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143

também de leitura), as noções de realidade e de ficção se misturam a ponto de não se

poder separar uma da outra. É o que ocorre na obra de um dos mais conhecidos

autoficcionistas da literatura espanhola contemporânea, Enrique Vila-Matas. Sua obra

tem sido lida pela crítica, sob a perspectiva autoficcional. No artigo ―La autoficción en

París no se acaba nunca de Enrique Vila-Matas‖ (2009), Alba del Pozo García,

professora da Universidade Autônoma de Madri, diz que o escritor espanhol coloca em

jogo nesse relato várias ferramentas destinadas a romper com a mimese do real. Pozo

García afirma que vários estudos críticos coincidem em assinalar a mescla de realidade

e ficção na obra de Vila-Matas, bem como ―o protagonismo da escrita, convertida em

tema principal de seu projeto literário‖.

O artigo de Pozo García nos ajuda a delinear diversos aspectos desse gênero que

vamos buscando caracterizar. Na análise que a autora empreende sobre o referido livro

de Vila-Matas, constata-se o uso de procedimentos que ela qualifica como próprios dos

textos autoficcionais. Veremos que, como assinalam outros estudos teóricos sobre

obras autoficcionais, a autora estabelece como um dos pilares básicos da autoficção a

identificação de autor e narrador. Sendo assim, é comum nesse tipo de modalidade

narrativa que a própria literatura seja um dos temas da narrativa. No caso de París no se

acaba nunca, o foco é o aprendizado literário de um escritor. Desta maneira, o jogo

intertextual estabelecido com diversas obras literárias consta como um dos aspectos

através dos quais o escritor se insere em seu próprio texto, compartilhando suas leituras

com seus leitores. Outro aspecto recorrente nos textos autoficcionais presente na obra de

Vila-Matas é o desdobramento da voz narrativa que se manifesta na presença dos

―dobles‖ na narração. Estes aparecem em vários momentos da narrativa onde o

narrador ora encontra consigo mesmo, ora é incitado por outros personagens a fabricar

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144

um ―doble‖ de si mesmo, o que realmente vem a fazer. Com isto, o autor consegue criar

o efeito de tornar-se invisível por detrás de sua própria identidade, o que é um

procedimento comum nos relatos de Vila-Matas, segundo Pozo García.

Um item importante do trabalho de Pozo García que contribui com nossa

exploração teórica é o que trata dos recursos formais da autoficção. Usando o exemplo

de Vila-Matas, a autora busca uma caracterização do gênero. Veremos, que, ao

aproximar as fronteiras entre o real e o fictício, a autoficção desestabiliza o processo

realista da mimese. Na autoficção não se pretende reduplicar ou imitar a realidade,

como nas narrativas realistas. Há, portanto, um afastamento do realismo. Este

afastamento se concretiza através de alguns procedimentos formais que são

identificados por Pozo García em París no se acaba nunca.

Para poder llevar a cabo un alejamiento del realismo y, de paso, mostrar el

artificio literario que supone cualquier autobiografía, la autoficción se sirve

de varios recursos que entroncan con el modernismo y las vanguardias de

principios de siglo. En París no se acaba nunca destacan de forma especial el

hibridismo genérico, el manejo de las distintas temporalidades y el

metadiscurso. (POZO GARCÍA, 2009, p.95)

No fragmento acima, destaca-se o hibridismo genérico, outro aspecto levantado

pela autora como elemento próprio da narrativa autoficcional. Assim como ocorre com

a obra de Carmen Martín Gaite que analisaremos no último capítulo desta pesquisa, o

livro de Enrique comprova, já nos elementos paratextuais, a ocorrência da mescla de

gêneros, já que na contracapa do livro faz-se a alusão a fusão da autobiografia, da ficção

e do ensaio. Como veremos mais adiante, o mesmo acontece na contracapa de El cuarto

de atrás onde leremos que a obra participa do romance de mistério, do livro de

memórias e da refelxão sobre o próprio fazer literário.

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145

Neste marco de hibridismo literário, surge a intertextualidade através da qual

integram-se diversas formas literárias inseridas no relato, as quais podem dar origem a

outro recurso formal também aproveitado pelo escritor de autoficção. Sendo assim:

Si a un lado del relato aparecen la conferencia y el ensayo, al otro lado la

balanza se equilibra (y el pacto se hace más ambiguo) con los recursos de la

novela y de la ficción. Uno de esos recursos es el de la estructura temporal.

Comparado con otros textos del mismo autor, París no se acaba nunca

presenta una temporalidad doble que corresponde al esquema de muchas

autobiografías clásicas: un yo que responde en el presente que rememora sus

años de aprendizaje en el pasado, procurando dotarlos de sentido. Sin

embargo, esta estructura se ve alterada e interrumpida continuamente. (POZO

GARCÍA, 2009, p.96)

Além desses recursos formais identificados por Pozo García na autoficção

vilamatiana, chama-nos a atenção a metatextualidade que se manifesta através do uso do

mise en abyme, efeito também presente em El cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite,

onde a escritura do livro se insere como ação da personagem/autora na narrativa. A

presença do autor como personagem da obra que escreve e como leitor de muitas obras

também abre espaço para a intertextualidade com inúmeras obras literárias que fazem

parte da ―biblioteca‖ do autor. As referências a essas obras, às idéias e concepções

literárias de outros autores também compõem um traço peculiar às autoficções.

Tanto Carmen Martín Gaite, nos anos setenta do século passado, como Vila-

Matas, já no século XXI, lançaram mão deste recurso, caracterizando a narrativa

autoficcional como um espaço em que se insere a tradição literária. Ao mesmo tempo,

assistimos, na literatura espanhola atual, à construção de uma tradição literária

autoficcional, da qual Carmen Martín Gaite, é, sem dúvida, uma precursora.

Obviamente, esta afirmação não ignora que, conforme Alberca (2009), a autoficção

hispânica tem seus precursores muito anteriores à escritora salmantina.

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146

Mas nosso entendimento é que a autoficção espanhola atual, que é fruto, em

grande parte, das condicionantes histórico-culturais geradas pelas quatro décadas da

ditadura franquista, tem na obra de Carmen Martín Gaite uma de suas primeiras

manifestações literárias importantes.

Independentemente do caminho que a autoficção espanhola percorreu ao longo

das três últimas décadas do século XX, análises críticas de escritores atuais, como Vila-

Matas, que encontraram na autoficção sua forma de expressão, demonstram que os

artifícios literários empregados nas criações neste início de século, já se encontravam-se

bastante desenvolvidos em El cuarto de atrás de Carmen Martín Gaite. Vejamos o que

Pozuelo Yvancos diz no artigo ―La tinta, la vida, la escritura‖ (2003), publicado em no

ABC Cultural:

Es formidable el modo como el lector queda atrapado en una trama donde

parece que no la hay, y es genial la proverbial inventiva y fértil imaginación

de Vila-Matas para mezclar cuentos, encuentros con escritores, reflexiones

sobre citas leídas, situaciones chistosas o tragicómicas, alguna directamente

patética. Todo ello en el marco de una reflexión que quiere ser realmente una

poética de Cómo se hace una novela, convencido de que no puede ser hoy

género que soporte recetas sobre armonía, unidades, estructuras y

composiciones (cuyas pautas se descontruyen), sino en cierto modo la gama

sutil de elementos narrativos entreverados de ensayo, autobiografía (ficción),

citas reales, citas inventadas y un no saber el lector qué es experiencia y qué

es literatura, qué es ficción y qué es real, o mejor, leyendo la novela para

saber que la discusión sobre ese límite es un viejo cuento de los manuales,

que ya nadie cree.58

Dois aspectos fundamentais podem ser explorados nesta citação. O primeiro

refere-se ao que Pozuelo Yvancos chama de ―poética de Cómo se hace una novela‖. A

referência direta a Unamuno, além de reiterar o que dissemos há pouco sobre a

autoficção como um espaço da tradição literária, ressalta um de seus aspectos genéricos

58

Artigo disponível em: http://hemeroteca.abc.es/nav/Navigate.exe/hemeroteca/madrid/cultural/2003/10/25/009.html

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147

essenciais: a metanarração. Neste diálogo que Pozuelo Yvancos percebe entre a obra de

Vila-Matas a de Unamuno, fica evidente um dos antecedentes literários do gênero

atualmente tão em voga na Espanha. Naquele ensaio de 1927, Unamuno ficcionalizou

suas angústias de escritor em processo de criação de um romance. Uma obra única,

texto inquietante para o período, onde os limites entre os gêneros estavam somente

começando a ser quebrados pelas propostas vanguardistas. Alí já se encontravam

alguns dos principais recursos literários frequentes nas autoficções contemporâneas,

como a metanarração, caracterizada pelas reflexões acerca do fazer literário, mais

especificamente, do processo de criação de uma obra, bem como inúmeras referências

literárias.

O segundo aspecto que podemos destacar da citação do texto de Pozuelo

Yvancos acima nos remete imediatamente ao âmago das questões teóricas e da prática

autoficcional. Trata-se da mescla de gêneros literários na autoficção. Já que esta se

caracteriza exatamente por embaralhar os limites entre os gêneros literários através da

escrita de uma narrativa que lança mão de variados tipos de discurso. Sendo assim, ao

nos remeter a Cómo se hace una novela em sua análise de París no se acaba nunca,

Pozuelo Yvancos indica uma filiação dos autoficcionistas espanhóis contemporâneos a

Unamuno. Ou seja, a tradição autoficcional espanhola (que está sendo construída) passa

necessariamente por Miguel de Unamuno.

Carmen Martín Gaite, nascida e criada em Salamanca, cidade natal do escritor, o

conheceu ainda menina, pois Unamuno era amigo de seu pai e frequentava sua casa.

Unamuno era amigo de mi padre y a veces le venía a visitar. Aunque yo

tenía ocho años, me acuerdo. Él fue el primer escritor que puso su mano, al

descuido, sobre mi cabeza infantil.

Ahora tiene una estatua delante de sus balcones, obra del escultor Pablo

Serrano. Es como un aguilucho sacando la cabeza de una mole de pliegues

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rígidos, venteando la nada con sus ojos de visionario sin poder alejar de sí, ni

aun convertido en piedra, las obsesiones de muerte que presidieron su vida.

(MARTÍN GAITE, 2000, p.195-196)59

Nas recordações de infância de Carmen Martín Gaite destacadas na citação

acima, é significativa a lembrança de que Unamuno pôs a mão sobre sua cabeça.

Interpretamos a recordação desde gesto como uma escolha de filiação literária de

Carmen Martín Gaite com relação a Unamuno. Como realmente poderemos verificar em

sua obra, principalmente em El cuarto de atrás, as relações estabelecidadas entre os

textos de Carmen Martín Gaite e a obra de Unamuno são inúmeras. Basta recordar que

Unamuno, em Cómo se hace uma novela teorizava sobre questões relativas à mescla da

ficção com a autobiografia, o que Carmen Martín Gaite coloca em prática em vários de

seus textos, em especial, em El cuarto de atrás.

Voltando novamente nosso olhar aos estudos de Manuel Alberca, encontraremos

no livro El pacto ambíguo: De la novela autobiográfica a la autoficción, um amplo

estudo sobre este gênero literário que representa as inquietações do escritor de final do

século XX e início do século XXI. Lembramos que nosso foco é especificamente a

literatura espanhola. A produção autoficcional na Espanha aparece como um fenômeno

estreitamente relacionado à extraordinária expansão da literatura autobiográfica que

ocorre a partir dos anos setenta do século passado. Alberca vê no fenômeno uma das

manifestações do processo de recuperação do autor, que se caracterizará justamente pela

sua inclusão na obra literária como personagem.

Alberca nos mostra que antes do século XVIII a presença do autor na obra de

arte (e aqui não nos restringimos somente à literatura) era algo muito raro, certamente

devido às inúmeras condicionantes políticas, sociais e religiosas. Mas ainda assim, é

59

Fragmento do artigo “La novia eterna” em Búsqueda de Interlocutor.

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possível verificar na literatura espanhola origens essa presença já no século XVI,

caracterizando-se assim as origens do gênero.

Pero si quisiéramos ascender a la fuente del origen, con bastante propiedad

podríamos remontarnos hasta Juan Ruiz, arcipreste de Hita, que, en el siglo

XVI, con su magistral Libro de Buen Amor, puede ser considerado, sin

espejismo alguno, pionero en la literatura española de la presencia del autor

en su obra, bajo su nombre propio y con un calculado artificio de doblez

moral, doctrinal y biográfica. Después de este origen se podría seguir a

corriente cronológica histórica para considerar la presencia de la autoficción

en El Quijote, en los Sueños de Quevedo, del Estebanillo González, etc., para

llegar, de la sabia de Guy Mercadier, hasta uno de nuestros más cualificados

autoficcionarios, mixtificador de su propia biografía en su obra que fue Diego

de Torres Villarroel en libros como Correo de otro mundo (1725).

Como vemos a autoficção não é uma invenção literária do século XX, embora o

final desse século tenha registrado uma proliferação do gênero. O texto acima faz

referência ao estudo de Guy Mercadier sobre o Correo del otro mundo. O artigo

intitulado ―Los albores de la autobiografia moderna: el Correo del outro mundo (1725)

de Diego Torres Villarroel‖ (1991) observa algumas características da obra de Torres

Villarroel que a inserem no campo da autoficção, já que a mescla de ficção e

autobiografia se faz presente. Um elemento que se destaca na obra é a questão do nome

próprio do autor, item decisivo para considerarmos o livro um antecedente da autoficção

espanhola. Como assinala Guy Mercadier:

Sobre la pantalla del relato, un autor que se llama Torres proyecta la imagen

de un personaje que se llama Torres; imagen desdibujada, cuya puesta a

punto definitiva se rehúsa deliberadamente. Por momentos, tenemos la

impresión de que se vuelve más nítida, que sus contornos gemelos se

fusionan finalmente, pero es solamente para volverse a esfumarse al

momento. En esas incesantes vibraciones visuales, en ese ir y venir entre el

Torres de fuera del texto y el Torres del texto, reside la dinámica profunda de

la obra. ¿Cómo distinguir en esta contaminación, lo ―real‖ de la ―ficción?(…)

El pacto concertado con el lector es muy complejo: ¿ novelesco? ¿

autobiográfico? Bien mirado, ambos a la vez, con afirmada preeminencia del

segundo. (MERCADIER, 1991, p.34)60

60

Revista Anthropos,n. 125, outubro de 1991.

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Mercadier observa que em Correo del otro mundo o essencial não reside nos

vestigios de uma ―verdade objetiva‖, mas sim no fato de que o ―eu‖ que se confessa

através de um sonho não difere fundamentalmente daquele que se revela nos textos

considerados explicitamente como autobiográficos. Nas páginas dessa espécie de

confissão múltipla em que a obra de Villarroel se estrutura, os críticos da atualidade

podem perceber o caminho aberto para os romancistas da introspecção moderna. Em

outras palavras, Torres Villarroel é, de fato, um precursor da autoficção espanhola.

A eclosão da subjetividade em manifestações artísticas foi algo que adquiriu

visibilidade e relevância somente a partir do século XVIII. A partir deste período,

começam a surgir grandes pintores que optam pelo autorretrato pictórico como forma de

expressão artística. No entanto, ressalta Alberca, esses artistas tiveram que romper com

padrões estabelecidos e preconceitos que dominavam a livre expressão do ―eu‖ artístico.

El autorretrato pictórico es la demostración de la presencia inequívoca del

artista en su obra, que está también sometido al mismo tipo de resistencia a la

libre expresión del yo en la literatura, dejando aparte las específicas

dificultades técnicas de este género pictórico. Los autorretratistas tuvieraon

que vencer los prejuicios sociales y sin duda las propias reservas o temores

personales por los que se asimilaba el hecho de representarse a sí mismo

como una manifestación de fatuidad narcisista o aún peor, del pecado o la

soberbia. (ALBERCA, 2007, pp. 20-21)

Se até o século XVIII a exposição do artista como parte de sua obra era algo que

desafiava preceitos de sociedades profundamente ancoradas na religião, em que a

exaltação do ―eu‖ não era facilmente aceitável, pois, como lemos na citação, associava-

se a soberba e ao narcisismo, no século XIX, em pleno Romantismo, o sujeito passa a

ser o foco principal das manifestações artísticas, abrindo espaço para a expansão da

literatura de caráter autobiográfico. Ao ocupar um lugar de maior prestígio social, o

artista e o escritor, encarnam como ninguém, segundo Alberca, o individualismo

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151

burguês. Esse caráter mais individualista da sociedade permitiu que a arte assumisse

nuances mais subjetivas, sendo assim, a personalidade e a vida do artista e do escritor

passam a ser objeto de sua própria criação.

Construirse una personalidad, única y extraordinaria, fue sinónimo de vivir

intensamente y de dar sentido a la existencia personal. El artista y el escritor

crearon sus propios códigos, pues para ser uno mismo era preciso distanciarse

de los demás. Ser diferente y distanciarse del resto de los hombres se alzó

como la máxima ética y estética de la creación moderna, pues la meta del

artista moderno consistía en hacer de su vida y de sí mismo una obra de arte.

Ahora bien, para eso, para elevar su figura y obra a categoría artística, el

escritor y el creador en general se vieron emplazados a transgredir las

barreras sociales, a traspasar los límites establecidos y a desafiar las

instituciones sociales. En ese contexto estaba cantado que los artistas y los

escritores se convertirían en héroes y, en consecuencia, en modelos de la

rebeldía y de la insatisfacción. (ALBERCA, 2007, p.22)

Alberca aponta que o processo de consolidação da figura do escritor/artista no

cenário social completou-se com a valorização mercantil da subjetividade e da

assinatura do artista, a qual estimulou uma exagerada ―afición por singularizarse‖.

Nesse contexto, a vida do escritor/artista passa a ser mais uma obra de sua criação.

Alberca explica que nos últimos dois séculos deu-se um incremento na necessidade de

construção de um ―eu‖ público, a qual fazia parte da estratégia promocional da

comunidade dos artistas. Paralelamente, o conceito de autoria, que já tinha séculos de

existência, se ratificou e se reforçou.

O certo é que sendo a autoficção um gênero que está incluído entre as chamadas

―novelas del yo‖ – romances do eu -, seu surgimento estará relacionado a esses

aspectos. Para definir esta categoria de romances, Alberca elabora dois quadros

semelhantes ao quadro de Lejeune. No primeiro quadro, dialogando com as noções de

pacto autobiográfico e pacto romanesco propostas por Lejeune, Alberca introduz a idéia

do pacto ambíguo, onde se inserem as ―novelas del yo‖.

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152

Cuadro 1

PACTO

AUTOBIOGRÁFICO

PACTO

AMBIGUO

PACTO

NOVELESCO

Memorias

Autobiográficas

Novelas del yo Novelas, cuentos

1.A=N=P →

(identidad)

2.Factualidad →

Veracidad

(− invención)

1.A+N+P/A ≠N−A≠P

2.Ficción/Factualidad

← 1. A ≠N−A≠P

(No identidad)

← 2. Ficción

Verosimilitud

(+invención)

A, Autor; N, Narrador; P, Personaje; =, idéntico; ≠, no idéntico;‒, menos; +, más; /, y-o

(Alberca, 2007, p.65)

Já o segundo quadro faz um detalhamento das ―novelas del yo‖, esclarecendo

que estas se encontram entre o romance e a autobiografia, caracterizando-se por uma

espécie de pacto ambíguo, entre o romanesco e o autobiográfico, existindo uma espécie

de gradação, segundo o romance se aproxime mais da autobiografia ou do romance.

Desta forma, a partir dos mesmos elementos – autor, narrador, personagem –, do

princípio de identidade entre esses elementos e da proposta de leitura que se apresentam

nas obras, Alberca caracteriza essas variantes de ―novelas del yo‖, sendo elas o

Romance autobiográfico, a Autoficção e a Autobiografia fictícia, de forma que o

primeiro está mais próximo da autobiografia e a última mais próxima do romance. A

Autoficção fica justamente entre os dois, mantendo uma equidistância entre o pacto

autobiográfico e o romanesco. Tendo com exemplo o quadro em que Lejeune lança

alguns pressupostos teóricos sobre a autobiografia, o quadro que Alberca propõe a

possibilidade de estabelecer limites entre gêneros literários. Vejamos o quadro proposto

por Alberca:

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Cuadro 2

PACTO AMBIGUO

LAS NOVELAS DEL YO

Novela autobiográfica

(+ prox. a la

autobiografia)

Autoficción

(equidistancia de

ambos pactos)

Autobiografía ficticia

(+prox. a la novela)

1.Principio de

identidad

A≠N // A≠P

Identidad nominal

fictícia o anonimato

N≠P // N≠P

1.Principio de

identidad

A=N=P

Identidad nominal

Expresa

1.Principio de identidad

A≠N // A≠P

Identificación nominal

fictícia

N=P // A = editor

2. Propuesta de lectura

Ficción/Fatualidad

Autobiografismo

escondido

(falso/verdadero)

2.Propuesta de

lectura

Ficción/Factualidad

Autobiografismo

transparente

Propuesta de lectura

Ficción/Fatualidad

Autobiografismo

simulado

A, Autor; N, Narrador; P, Personaje; ‒, menos; +, más; =, idéntico; ≠, no idéntico; /, y-o

(ALBERCA, 2007, p.92)

O quadro resume e esclarece de maneira teórica porque as ―novelas del yo‖

correspondem a um pacto ambíguo. Para Alberca, os romances do eu são um tipo

peculiar de autobiografias e/ou ficções. Na verdade, são romances que parecem

autobiografias, mas também poderiam ser autobiografias com uma aparência de

romances. Sendo assim, este teórico reconhece que a tanto a autoficção quanto suas

formas narrativas vizinhas quebram as regras dos grandes pactos narrativos, mas não

podem ser estudadas sem que, necessariamente se recorram a essas regras, a fim de

verificar onde estão e como funcionam seus limites. É preciso conhecer as regras tanto

do pacto autobiográfico quanto do pacto romanesco para observar a maneira como o

pacto ambíguo subverte essas regras.

Como es sabido, si se quiere comprender lo real o intentar explicarlo, no

podemos conformarnos con estudiar sus leyes, sino también las excepciones

a esas leyes, y en ese sentido los relatos novelescos que estudio constituyen

un caso límite del protocolo y las reglas de funcionamiento de los dos

grandes pactos narrativos.(ALBERCA, 2007, pp. 64-65)

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Para Alberca, as formas narrativas autoficcionais, por estarem entre os principais

estatutos narrativos, o autobiográfico e o ficcional, podem parecer confusas com relação

às regras, inclusive, podem dar a impressão de que as apagam, neutralizando as marcas

de oposição. No entanto, essas formas narrativas são uma verdadeira demonstração de

que as regras e os limites existem.

Por eso, para describir el estatuto de la autoficción y del resto de las formas

novelescas vecinas, es preciso relacionarlo, en sus coincidencias y

divergencias, con los dos pactos narrativos más importantes. Entre ambos y

en su zona intermedia, entre los confines de uno y otro, se abre un territorio

cada vez más extenso y variado, un amplio laboratorio de experimentación

literaria (falta por saber si autobiográfica o novelesca), distante de las

obligaciones de la autobiografía y equidistantemente separado de la libertad

para imaginar que consagra el estatuto novelesco para el lector y novelista; en

ese espacio liminar es donde hay que situar las novelas del yo. (Alberca,

2007, p. 65)

Passados mais dez anos da publicação do artigo de Manuel Alberca que tratava

das ―fronteiras da autobiografia‖, observa-se que, nesse período, pôde-se perceber tanto

um elevado número de escritos ditos autoficcionais, bem como uma evolução do

significado do termo ―autoficção‖. Teoria e prática autoficcionais sofreram

modificações. Recentemente, e depois de muitas criações autoficcionais, observaremos

novas reflexões em seu artigo e 2009, ―Es peligroso asomarse (ao interior).

Autobiografía vs. Autoficción‖, referido anteriormente.

O artigo tem como proposta levantar algumas questões que derivam da

proliferação dos relatos autobiográficos e autoficcionais na Espanha das últimas

décadas. Com relação à autoficção, autor relaciona o crescente número desse tipo de

relato às trasnformações sofridas pelo sujeito no século passado, as quais determinaram

novas formas de autorrepresentação. A dissolução do sujeito na pós-modernidade,

juntamente com um procedimento crescente nas manifestações artísticas em nossos

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tempos, a ficcionalização do real, facilitou sobremaneira a expansão da autoficção. Por

outro lado, a permeabilidade do romance, gênero aberto a uma multiplicidade de

discursos, como já apontava Bakhtin, facilitou e continua facilitando o surgimento de

inúmeras autoficções em todas as suas variantes.

Hay que reconocer, no obstante, que a la novela moderna, cuyo prototípico

ejemplo español lo constituye Vida y andanza de Lazarillo de Tormes, la ha

guiado el objetivo de parecer real (verosímil) desde sus orígenes. Así,

cuando a novela utiliza materiales históricos, periodístico o sociológicos, lo

hace con el fin de parecer más real y de disimular el artificio que supone

proponer como verdadero algo que el autor y lector saben que no lo es. La

permabilidad de la novela y su libertad de apertura a todos los discursos lo

hace posible. Los materiales ―verdaderos‖ incrustados en una novela no

atentan a su principio ficticio, dado que su estatuto narrativo radica

precisamente en que el relato parezca lo más verosímil posible. La novela

puede absorber todo, tomar prestado o robar cualquier material de la

autobiografía o de la Historia, sin dejar de ser una novela ni de proponer una

interpretación verosímil. (ALBERCA, 2009, p. 11-12)

O mesmo não se pode dizer da autobiografía cuja assimilação de

elementos fictícios a faz violar seu próprio protocolo de leitura, que prevê que o leitor

tenha a possibilidade de comprovar a veracidade dos fatos biográficos narrados pelo

autor.

En cambio, si una autobiografia incorpora materiales ficticios, imposibles de

documentar o que no se corresponden con la verdad del autobiógrafo, se

produce una alteración, que atenta al principio báscico de la veracidad.

(ALBERCA, 2009, pp. 11-12)

Desta forma, Alberca assinala uma diferença fundamental entre a autobiografía e

o romance. Este, ao incorporar dados autobiográficos se enriquece, enquanto aquela,

quando assimila elementos de ficção, simplesmente se desvanece. Este enriquecimento

do romance através de dados histórios ou autobiográficos é um elemento bastante

utilizado nas autoficções e responsáveis pela sua hibridização, uma das suas

características principais.

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Por fim, Alberca lança, como questionamento a idéia de que a autoficção pode

funcionar como um ―refúgio‖ para o escritor que, ao mesmo tempo que deseja contar

sua vida, quer escapar do compromisso autobiográfico e suas possíveis condicionantes

sociais.

El fenómeno de la autoficción se presta a dos explicaciones que en principio

pueden parecer irreconciliables, pero que no lo son en absoluto. En fin, lo

diré de manera interrogativa: 1) ¿es la autoficción una forma narrativa

avanzada de hablar de sí mismo fuera de las constricciones de las

autobiografías y de las memorias? o 2) ¿representa una manera de escapar,

una vez más, al compromiso y al control del lector, refugiándose en la

ficción, como un desconfiado lector autobiográfico podría barruntar? Ambas

preguntas plantean, a manera de dilema, la interpretación de la autoficción,

según se considere prioritaria la relación de ésta con la vertiente novelística o

con la autobiografía, pero es evidente que caben las dos opciones, que no son

excluyentes, y ambas se mezclan en algunos relatos. (ALBERCA, 2009, p.

16)

As interrogações do texto acima resumen as posibilidades de interpretação e de

leitura do texto autoficcional, levando em consideração a intenção do autor.

Consideramos o questionamento válido, mas devemos ressaltar que a interpretação da

autoficção, a partir desses dois pontos de vista propostos acima, necessita de outras

informações fora do texto, já que a simples análise textual não permite desvendar, ou

melhor, esclarecer a dúvida. Esta somente pode ser elucidada apartir da identificação

dos variados materiais narrativos que compõem a obra, aproximando-a mais da

autobiografia ou do romance. Nosso intuito, a partir de agora, é justamente este:

identificar em El cuarto de atrás os materiais narrativos que a compõem, delimitando

nosso foco nos elementos autobiográficos e ensaísticos, verificando como ambos

participam a elaboração do relato e qual papel estes tipos e discurso exercem na

tessitura do texto. Passemos, então, à análise da obra.

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Capítulo 3 – El cuarto de atrás: que obra é esta?

Chegamos ao capítulo final desta tese onde analisaremos o romance El cuarto de

atrás a partir das perspectivas teóricas abordadas no capítulo anterior. Antes de

passarmos a nossa análise do referido livro consideramos relevante apresentar alguns

estudos críticos sobre o romance, já que vários deles também compõem a base para

nossa análise. Esta revisão crítica nos serve também como pretexto para apresentar de

forma diluída o contexto histórico que a narrativa estudada representa. Vimos no

capítulo inicial que Carmen Martín Gaite é uma escritora que começou a escrever no

período pós-guerra e que teve alguns anos de sua infância entrecortados pelos anos da

Guerra Civil, cujos vencedores implantaram um regime autoritário que submeteu a

Espanha a décadas de uma sombria e falseada realidade.

Os estudos críticos aqui apresentados fazem, invariavelmente, uma referência ao

perído pós-guerra, cujas limitações e imposições sócioculturais determinaram de

maneira definitiva a criação literária de Carmen Martín Gaite. Portanto, esta parte incial

do capítulo, além apresentar algumas perspectivas críticas sobre El cuarto de atrás,

elucida pontos relativos ao contexto político e cultural em que a obra se insere. Mais do

que isto: o contexto do qual El cuarto de atrás deriva.

3.1 – Revisão crítica.

Antes de empreender nossa análise sobre El cuarto de atrás, faremos uma

aproximação a alguns estudos sobre a obra narrativa da escritora e, especialmente, sobre

o livro em questão, através de uma revisão crítica através de alguns estudos realizados

por especialistas em literatura espanhola. Esta revisão consistirá em breves sínteses de

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trabalhos que analisam os aspectos da obra de Carmen Martín Gaite que mais nos

chamaram a atenção ao longo de nossa pesquisa. Inciamos nossos comentários com o

livro de José Jurado Morales sobre a escritora. Em La trayectoria narrativa de Carmen

Martín Gaite (2003), um dos estudos mais completos sobre a obra narrativa de Carmen

Martín Gaite, o autor faz uma revisão completa de todos os romances da autora, levando

em consideração os seguintes aspectos: o contexto histórico, o contexto literário, a

perspectiva do leitor, o mundo ficcional e os aspectos narratológicos de cada um dos

romances estudados. Levando em consideração que a obra narrativa de Carmen Martín

Gaite abrange um período de mais de quarenta anos, propõe-se identificar os períodos

produtivos, relacionando a criação da escritora a cada uma das etapas históricas da

Espanha da qual Carmen Martín Gaite foi testemunha. A partir desta perspectiva,

verifica-se também o amadurecimento pessoal e intelectual da escritora que se refletiu

em sua obra.

Jurado Morales justifica a importância de sua pesquisa, repassando alguns

estudos sobre Carmen Martín Gaite, e advertindo que, embora esses estudos sejam de

grande valia, não abrangem a totalidade de sua obra narrativa, ou quando o fazem, têm

uma perspectiva única, analisando a obra a partir de uma visão feminista. Sendo assim,

o objetivo principal do estudo de Jurado Morales é integrar as perspectivas histórica,

literária e biográfica.

Essa perspectiva ampla gira sobre um dos eixos que une a trajetória humana e

literária da autora: a busca da identidade pessoal a partir da constatação de uma série de

carências. Uma busca obsessiva se estabelece como verdadeira estrutura básica sobre a

qual a escritora constrói seus mundos de ficção. A busca da identidade, presente na

maioria dos personagens de Carmen Martín Gaite, revela-se como meio de realização

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pessoal. O mundo ficcional representa o desejo e a luta desses personagens para sanar

suas carências, em geral de ordem afetiva, para assim optar pela afirmação da

identidade. Essa luta será maior ou menor de acordo com o panorama social com o qual

se deparam os personagens, seja a sociedade homogeneizadora dos anos cinquenta e

sessenta, a sociedade do período de transição dos anos setenta ou a sociedade

individualista dos anos noventa.

São estes justamente os períodos assinalados na obra narrativa de Carmen

Martín Gaite. É desse eixo central que surgirão os temas recorrentes em toda a sua

obra: a falta de comunicação, a liberdade, a revisão do passado, a memória, os sonhos, a

fantasia, o amor, a amizade, a reivindicação dos sentimentos, etc. Além disso, esses

temas repercutem na escolha dos personagens e nos modos narrativos selecionados para

cada ocasião, ou seja, realista, fantástico, metaliterário, intimista, autobiográfico,

experimental, tradicional. Já vimos até aqui que a obra que analisaremos é um pouco de

tudo isso ao mesmo tempo. Certamente como marco do término do período relativo ao

regime ditatorial de Franco, El cuarto de atrás reflete toda a ânsia de liberação após

quatro décadas de repressão e censura. Com sua visão histórica particular, Carmen

Martín Gaite rememora o período pós-guerra Civil, especialmente as décadas de 40 e

50, fase em que começou sua carreira literária integrando o grupo de escritores neo-

realistas espanhóis.

O artigo ―El acercamiento humanitario a la realidad: um aspecto del

neorrealismo español‖(1991), de Luis Miguel Fernández, contribui para o estudo da

literatura da época ao ressaltar a preocupação humanitária da literatura neo-realista

espanhola. No período pós-guerra Civil, a literatura manifestou um caráter realista em

que se procurava mostrar a sociedade deteriorada pela guerra. A partir da década de 50,

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um grupo de escritores começa a escrever obras com um aspecto em comum: os traços

neo-realistas influenciados pelo cinema italiano da época. Os neo-realistas destacaram-

se por sua preocupação humanitária, diferenciando-se dos outros companheiros de

geração cuja criação era essencialmente realista.

O autor do artigo ressalta que o neo-realismo entrou na Espanha a partir de 1951,

com a Semana de Cinema Italiano. Outros dois eventos, em 1953, a Segunda Semana, e

em 1955, as Primeiras Conversações Cinematográficas Nacionais de Salamanca,

propiciaram a aproximação de intelectuais com os cineastas italianos, destacando-se De

Sica e Savatini.

Carmen Martín Gaite, Sáchez Ferlosio, Ignacio Aldecoa, Jesús Fernando Santos,

Ana María Matute e Juan Goitisolo eram os escritores que se destacaram na literatura

neorrealista espanhola. Carmen Martín Gaite, em especial, foi considerada participante

deste grupo pela preocupação humanitária em sua obra, traços reconhecidos pela crítica

em geral. Assim, verifica-se, em seus contos e, especialmente, no romance Entre

visillos, o procedimento de mostrar os personagens desvinculados de seu contexto,

sofrendo impotentes as agressões do meio. Também através da rebeldia e dos sonhos

dos personagens, nota-se a tendência humanitária em mostrar um mundo de

insatisfações, onde a realização só é possível nos sonhos.

A importância deste artigo na pesquisa deve ser ressaltada por focalizar o

período inicial da criação literária de Carmen Martín Gaite, posto que, ao nosso

entender, alguns aspectos, como a falta de comunicação e a solidão do ser humano, que

já naquela época se verificavam na obra da escritora, serão recorrentes ao longo de sua

carreira literária, e aparecem de forma destacada em El cuarto de atrás. Ambos os

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aspectos se resolvem, nas narrativas martingaiteanas, pela busca do interlocutor, pelo

sonho e pela escritura.

Estabelecendo uma ponte entre a literatura e as artes plásticas, no artigo

―Carmen Martín Gaite y Remedios Varo: trayecto hacia el interior a través de la

literatura‖ (2002), María Alejandra Zanetta, realiza um estudo comparativo entre a

literatura de Carmen Martín Gaite e a pintura de Remedios Varo. Artistas

contemporâneas, ambas sofreram com o isolamento imposto pela ditadura franquista. A

primeira viveu o que pode ser chamado de exílio interior, no isolamento intelectual, sem

sair da Espanha. A segunda, exilada efetivamente e definitivamente no México com o

estalar da Segunda Guerra Mundial, logo após o término da Guerra Civil Espanhola.

Através de uma perspectiva de análise baseada na crítica feminista de orientação

psicanalítica, autora encontra vários paralelismos entre o livro El cuarto de atrás e os

quadros da pintora Remedios Varo.

María Zanetta considera que as duas artistas utilizaram a arte como um processo

de transformação espiritual que as direciona a uma profunda reavaliação da situação

pessoal e histórica experimentada por elas. Para analisar esse processo, utiliza os

conceitos desenvolvidos por Annis Pratt sobre os chamados romances de renascimento

e transformação espiritual e o estudo de Bárbara Frey Waxman sobre o romance de

maturação. Também pretende com o ensaio demonstrar de que maneira a experiência

do exílio, que coincide com a etapa de maturação em ambas, motiva a superação dos

aspectos negativos da marginalização, transformando a situação marginal em uma

experiência de criação subversiva e liberada.

Ao iniciar-se a Guerra Civil, Remedios Varo apoiou a causa republicana, mas a

violência da Guerra bem como seu envolvimento amoroso com o revolucionário francês

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Benjamin Perét levaram-na a refugiar-se em Paris, onde passa a fazer parte do grupo

surrealista de André Breton e faz alguns trabalhos com eles. A perseguição aos

intelectuais dissidentes, iniciada com a Segunda Guerra Mundial, leva-a ao exílio

definitivo no México. A partir daí, começa a desenvolver uma arte mais pessoal, de

caráter autobiográfico. Da mesma forma, Carmen Martín Gaite sentirá os efeitos da

sociedade opressora e especialmente restritiva para as mulheres na Espanha durante e,

principalmente, após a Guerra Civil. Zanetta assinala que, no romance El cuarto de

atrás, a narradora transmite a asfixiante presença da Seção Feminina, do Serviço Social

e da figura de Isabel, a Católica, como modelo para as mulheres, assim como os slogans

destinados a determinar o comportamento feminino.

A arte será nesse contexto um instrumento de liberação. A ensaísta afirma que

esta função liberadora que a mulher artista atribui ao processo criativo se relaciona

diretamente à situação política e social à qual foram submetidas durante décadas de

ditadura franquista. O exílio não é somente o afastamento espacial do lugar de origem,

mas, antes de tudo, uma condição mental de isolamento. Neste sentido, pode-se dizer

que Martín Gaite compartilhou as mesmas condições psicológicas que Remédios Varo

para criar em docorrência do franquismo.

A intensificação de uma ordem patriarcal durante o pós-guerra civil foi sofrida

especialmente pelas mulheres. A partir de uma visão embasada na crítica literária

feminista, o estudo de María Zanetta mostra que, diante da pressão de todos os setores

sociais que apoiavam o governo franquista, as mulheres intelectuais se viam obrigadas a

voltar-se para dentro de si mesmas, já que explorar criativamente o mundo exterior

resultaria na própria anulação.

En España, como ya hemos señalado anteriormente dicha intensificación del

orden patriarcal es lógicamente, especialmente sufrida por las mujeres. No es

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extraño pues. Que, ante la presión del gobierno y de todos aquellos sectores

sociales que apoyaban la ideología franquista, la mujer intelectual se viese

obligada a explorar hacia a dentro, pues el afuera equivalía a la propia

anulación. Los textos de todas aquellas autoras que escriben bajo un sistema

patriarcal intensificado por la existencia simultánea de un sistema dictatorial

constituyen no sólo actos de resistencia o de transgresión de la autoridad sino

intentos activos de transformación simbólica. (ZANETTA, 2002, p.281)

Citando a tese de doutorado de Josefa Lago Graña 61

, María Zanetta destaca que

o impacto da repressão franquista foi desatrosa para as mulheres, mas que elas

encontraram um caminho de liberação através da arte.

En El cuarto de atrás la represión franquista inspira el trabajo de la

protagonista C., que decide reivindicar la posición de la mujer durante la

dictadura de Franco. La liberación de ese espacio interior se hace de forma

no consciente ya que las páginas de denuncia de este sistema autoritario se

escriben por si solas, técnica que libera a la protagonista de toda

responsabilidad sobre el texto. De igual manera, la decisión de escribir esta

denuncia sólo se produce una vez desaparecido el dictador. (LAGO GRAÑA,

1997 apud ZANETTA, 2002, p. 279)

Os textos das escritoras que mesmo naquele contexto conseguiram expressar-se

literariamente constituem atos de resistência e de transformação simbólica. Um dos

símbolos mais utilizados, a metáfora do espelho, presente na obra das duas artistas, é a

representação de busca de recostrução da identidade feminina que resiste à aniquilação

imposta pelo regime político, sendo, portanto, esta matáfora, um símbolo de subversão

na obra.

Pensando no caráter subversivo de El cuarto de atrás, a especialista em literatura

espanhola de autoria feminina, Estrella Cibreiro (1995), escreve o artigo

―Transgridiendo la realidad histórica y literária: el discurso fantástico em El cuarto de

atrás. O ensaio identifica nos temas e nos procedimentos narrativos do livro de

61

Refere-se a: LAGO GRAÑA, Josefa. Más allá de la esfera privada: Escritura como espacio de autoafirmación en Martín Gaite, Esquivel y Cisneros. Tese de doutorado. Lincoln, Nebraska: Universdade de Nebraska, 1997.

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Carmen Martín Gaite uma transgressão política e literária. Segundo a autora, a obra

revisa um período específico da história espanhola – o pós-guerra – através da

combinação de dois discursos literários radicalmente diferentes: o romance de memórias

e o romance fantástico. Para a autora, essa mescla de fantasia e história transgride

simultaneamente as normas e os esquemas da política e da literatura, criando um texto

contestador tanto no nível conceitual quanto formal.

La combinación de dichos discursos antitéticos y su interacción dentro de la

obra hacen de ésta un ejemplo de hibridez literaria inusitado en la narrativa

española contemporánea y único dentro de la producción novelística de la

autora. Este ensayo examina los componentes históricos y fantásticos

presentes en El cuarto de atrás, enfocándose específicamente en las

conexiones que se desarrollan en el texto entre forma narrativa y propósito

ideológico. (CIBREIRO, 1995, pp.29-30)

O ensaio examina os componentes históricos e fantásticos de El cuarto de atrás,

detendo-se especificamente nas conexões que se desenvolvem no texto entre a forma

narrativa e o propósito ideológico. Para Estrella Cibreiro, a Guerra Civil Espanhola tem

um papel crucial dentro da obra, não pela sua importância política, mas sim pelas suas

consequências no âmbito pessoal. Carmen Martín Gaite rememora em seu livro o que

foi a Guerra que transformou o quarto dos fundos, utilizado para jogos infantis, em

despensa. Também a morte de Franco tem sua consequência no âmbito pessoal. É o que

a impulsiona e, ao mesmo tempo, lhe permite escrever um livro em que trata de maneira

crítica o período do pós-guerra e da ditadura franquista.

El acontcer histórico-político se infiltra progresivamente a lo largo de la obra

en el mundo interior de la narradora poniendo al descubierto la relación entre

la circunstancia exterior y la evolución psicológica interior. Los conceptos

de historia, por una parte, e individualidad o mismidad, por otra, aparecen

vinculados y se manifiestan en la novela como procesos entrelazados y en

continua revisión. Identidad e historia devienen realidades inseparables

coexistiendo en una relación de sibiosis dentro de la obra. (CIBREIRO, 1995,

p 30).

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Estrella Cibreiro afirma que o impacto do tempo histórico sobre o tempo

subjetivo remonta à Guerra Civil, trazendo à memória da narradora a infância. O

conflito irrompe na ilusão ou espelhismo de atemporalidade que caracteriza esta etapa

da vida.

El papel de la guerra civil es crucial dentro de la obra pero no

específicamente por la importancia política y social del acontecimiento en la

esfera nacional sino por las consecuencias e implicaciones que de ella

derivaron en el ámbito personal. (…) De igual manera, la muerte de Franco –

acontecimiento histórico concreto que da ímpetu a la creación de la obra –

supone la posibilidad para la narradora de adentrar-se en la maraña del

pasado y enfrentar-se a la totalidad de su existencia por medio de la

exploración rememorativa de la época franquista. (CIBREIRO, 1995, p. 31)

Quanto à utilização de elementos fantásticos (o homem vestido de negro, o

aparecimento de uma barata, a figura do diabo, todos relacionados à cor negra) nesta

obra que propõe a revisão crítica de um período histórico é, para a autora do ensaio, um

sinal de rebelião intelectual contra o discurso tradicional, demonstrando com seu

ecletismo narrativo a condenação ao discurso mítico e unívoco do pós-guerra. Carmen

Martín Gaite incorpora de maneira ágil e sem solução de continuidade os elementos

fantásticos que se integram aos elementos históricos de maneira excepcional ao longo

de toda a narrativa.

La incorporación de figuras y elementos pertenecientes al mundo de lo

fantástico contribuye a su función como marco temático y estructural, de

manera idéntica a la función del componente histórico. La autora sostiene

este paralelismo durante toda la novela, manipulando con gran exactitud y

acierto la coexistencia equilibrada de discursos por naturaleza antitéticos y

manteniendo dicho equilibiro hasta el final. (CIBREIRO, 1995, p. 31)

Em nossa pesquisa este ensaio ganha relevância ao apresentar alguns aspectos

autoficcionais da obra de Carmen Martín Gaite, mesmo que não utilize o termo

autoficção, além de apresentar vários aspectos dialógicos e polifônicos narrativa,

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revelados pela sua relação com a narrativa fantástica, que surge não somente como uma

prática narrativa, mas também como um campo de estudo, a partir das considerações

que a narradora faz sobre este tipo de literatura, baseando-se no livro Introdução à

literatura fantástica que surge na obra como um dos elementos de referencialidade do

texto, dando-lhe um caráter, ao mesmo tempo, autobiográfico e ensaístico.

A inserção de elementos fantásticos na narrativa também é um dos temas

destacados no artigo ―Elementos de la narración – El cuarto de atrás: estructura y punto

de vista‖ (2009), no qual o crítico Agustín Faro Forteza observa que, assim como o

narrador (no caso a narradora) é homodiegético, o narratário, o misterioso homem de

negro, também o é. Fazendo uma análise capítulo a capítulo, Faro Forteza assinala os

aspectos mais relevantes da obra no tocante a sua estrutura e pontos de vista

apresentados, passando pela temática da narrativa. Assim, destaca-se que Carmen

Martín Gaite escreveu suas memórias de forma indireta, utilizando o recurso da

narrativa dialogada. Observa-se que há uma identificação entre a narradora, a autora e a

protagonista e que a estrutura dialogada já havia sido utilizada pela escritora em

Retahílas‖, romance anterior a El cuarto de atrás.

A aproximação da obra à literatura fantástica, para Faro Forteza, se apresenta

primeiramente pela referênia ao livro de Todorov, mencionado pela

narradora/protagonista para reafirmar seu propósito de escrever um relato fantástico;

outra referência é a alusão feita a El balneario, primeiro relato longo de Carmen Martín

Gaite, cuja primeira parte é um relato de ficção e mistério. O artigo também mostra

como o livro concilia estruturas diferentes, desde uma biografia segundo os padrões

canônicos, no primeiro capítulo, ao monólogo interior, no terceiro capítulo, ou uma

conversação telefônica no quinto.

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Há a vários aspectos que vêm sendo observados nesta pesquisa, principalmente,

a variedade dos discursos presentes em El cuarto de atrás, em sua junção de discursos

heterogêneos, onde os limites são apagados, traço bastante presente nas narrativas pós-

modernas, como as metaficçoes historiográficas, conforme o estudo de Linda Hutcheon,

que vimos anteriormente. A menção à obra de Todorov, como uma autoexplicação da

narrativa fantástica que Carmen Martín Gaite elabora em El cuarto de atrás é um dos

aspectos autorreflexivos da narrativa, caracterizando sua metaliterariedade.

Outros aspectos da narrativa em El cuarto de atrás são observados por Dunia

Grãs no artigo ―El cuarto de atrás: Intertextualidad, juego y tiempo‖ (2007). O artigo

inicia-se sinalizando a vocação eclética na obra de Carmen Martín Gaite, observando

que a autora cultivou uma gama variada de gêneros literários ao longo de sua carreira.

Dunia Grãs menciona as incursões poéticas, os artigos publicados na imprensa, os

ensaios sobre literatura e história, as traduções, as edições críticas, as adaptações

teatrais, os roteiros para cinema e televisão e os contos infantis. Para a autora do artigo,

essas são variantes de uma mesma obra literária, mais conhecida, como sabemos, em

sua vertente romanesca, onde se ressalta o aspecto narrativo, construído a partir da

mescla de história – pessoal ou social – com literatura, fundindo as recordações com a

imaginação. O resultado será o surgimento de textos híbridos, onde, mais que ficção,

encontramos a metaficção.

Como exemplo do tratamento dado por Carmen Martín Gaite aos ―materiais da

memória‖, Dunia Grãs seleciona uma passagem em El cuarto de atrás localizada no

capítulo IV. O capítulo intitula-se ―El escondite inglés‖, nome de uma brincadeira

infantil correspondente ao nosso esconde-esconde. Também há referências a La

búsqueda de interlocutor y otras búsquedas e El cuento de nunca acabar, ambos livros

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de ensaios em que Carmen Martín Gaite reflete sobre temas relacionados à criação

literária, especialmente sobre a narração.

Interpretando ao início o título da obra, Dunia Grãs explica o que representa o

―cuarto de atrás‖:

Ese ―cuarto de atrás‖ al que hace referencia el título de la novela es el cuarto

de jugar que tenía la autora con su hermana Anitirrín en Salamanca. Es el

espacio de su infancia, donde descubrió a Elena Fortún y a Antoniorrobles y

donde, felizmente, reinaba el caos, lo dionisíaco… en fin, su paraído perdido.

Ese espacio idealizado y mítico del juego desaparecerá durante la guerra,

cuando la necesidad hace que se convierta en despensa: paso de lo lúdico a lo

útil, en cierta forma, de la infancia a la madurez, de lo ideal a lo real. No

obstante, en su obra narrativa, Carmen Martín Gaite ha logrado revisitar ese

espacio del pasado, como si – tomándole prestado ese ―como si‖ tan suyo –

fuera Peter Pan y volviera periódicamente a su particular país de Nunca

Jamás, recuperando así ese pasado idílico que les es tan querido y haciéndole

recuperar, con su memoria, a otros Niños Perdidos, compañeros de viaje.

(GRÃS, 1998)

Em sua análise de El cuarto de atrás, Dunia Grãs observa que há um

desdobramento da autora/narradora com ―voz em off‖ ou narradora/observadora e

narradora/personagem, dialogante, que participa da conversação. A

narradora/observadora, a partir de uma suposta realidade, a do momento da escritura,

transcreve a obra de ficção, o diálogo fictício como realidade que ocorreu de fato, dessa

forma o ―eu‖ autobiográfico aparece no plano da ficção. Vemos nesta linha de análise

uma sinalização ao aspecto autoficcional da obra, cujo estudo constitui um dos objetivos

desta pesquisa.

No livro há uma referência constante ao jogo do ―escondite inglés‖. O jogo

infantil é a metáfora de uma vida inteira onde a verdadeira ralidade era negada à

protagonista da obra, que ao refletir sobre a morte de Franco, relembra que sentiu

durante toda a sua vida como se estivesse ―jugando al escondite inglés‖, com toda a

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realidade acontecendo as suas costas sem que ela pudesse ver o que realmente se

passava.

O artigo nos interessa especialmente por apresentar aspectos que estamos

desenvolvendo nesta pesquisa. Primeiramente, apresenta, mesmo sem assim

denominar, a questão da autoficção, reconhecendo a identidade entre narradora,

protagonista e autora. Outro aspecto que nos interessa é o da intertextualidade que se

verifica através da relação entre El cuarto de atrás com textos da própria Carmen

Martín Gaite e com outros textos literários e ensaísticos. Este traço está relacionado ao

aspecto dialógico do romance, caracterizando a autora como leitora, cujas leituras são

reelaboradas em uma nova forma literária: a autoficção.

Outro artigo cuja análise de El cuarto de atrás também nos leva a ler esse livro

sob o protocolo autofictício, também sem o uso do termo, é ―El interlocutor soñado de

El cuarto de atrás‖ (1980), de Julián Palley. A metáfora vida/sonho presente na obra de

diversos autores clássicos da literatura hispânica como Miguel de Cervantes, Calderón

de La Barca, Adolfo Bécquer, Rosalía de Castro, Antonio Machado e Jorge Luis

Borges, é utilizada também por Carmen Martín Gaite. Julián Palley observa que a

escritora espanhola criou relatos fantásticos baseados nos sonhos de suas protagonistas,

como ocorre em El balneario, seu primeiro romance e El cuarto de atrás.

El cuarto de atrás es um libro sobre libros. Martín Gaite, o la narradora

quizá recordando a Cervantes, comenta, durante su diálogo, sus propios

libros anteriores: Ritmo lento y, sobre todo El balneario. Su primer relato

tiene una estrecha relación con El cuarto de atrás, ya que los dos son, o

parecen ser, sueños. (PALLEY, 1980, p. 30)

Mas o artigo propõe questionamentos que nos interessam desde o início da

pesquisa sobre El cuarto de atrás. O autor procura verificar a que gênero pertence essa

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obra e verifica o que denomina ―mescla surpreendente de gêneros‖: romance fantástico,

confissão autobiográfica, ensaio, crítica social, romance dentro de romance onírico.

Nesse sentido, consideramos a proposta metaliterária de Carman Martín Gaite um dos

aspectos mais interessantes do relato. Denotando seu caráter experimental, a escritora

expõe, através da voz da narradora, a motivação para a construção do romance híbrido.

La narradora tuvo la ocurrencia el mismo día del entierro de Franco, de

escribir una novela con el título de Usos amorosos de la postguerra. El

hombre de negro critica – con razón – ese título provisional. La narradora

antes había anunciado la intención de hacer tal libro, y ―precisamente el libro

se me ocurrió la mañana que enterraron (al padre de Carmencita Franco)…

cuando la vi a ella en la televisión‖. Sucede que Carmen Martín Gaite

también empezó a escribir El cuarto de atrás en noviembre de 1975, el mes

de la muerte del dictador. Después la narradora rechaza la idea por la

proliferación de libros de memoria en la época posfranquista, pero ―espera a

ver si me ocurre una forma divertida de enhebrar los recuerdos. Pensado en

Todorov, se pregunta: ―Y si mezclara las dos promesas en una?‖. Claro está

que el libro que tenemos en lasmanos es esa mezcla de ―las dos promesas, el

libro de memorias y la novela fantástica, que se va escribiendo en el

trasfondo de El cuarto de atrás. (PALLEY, 1980, p. 30)

Julián Palley explica que a ambiguidade gerada pelo sonho da protagonista no

romance, que ao final do relato não sabemos se foi sonho ou realidade, não se resolve e

por isso o texto se enquadra na definição de Todorov de narrativa fantástica. O autor

também lembra que o artifício do romance que se escreve durante o transcurso de uma

obra de ficção não é novo. Cervantes e Unamuno já haviam utilizado o recurso no

Quijote e em Niebla. Para Julián Palley, a novidade do texto de Carmen Martín Gaite

reside no fato de que a narradora é a autora. Ou seja, uma característica autobiográfica

em uma obra de ficção, configurando-se a autoficção. A obra é, em parte, uma

autobiografia, e o livro que ela escreveu está sendo escrito durante a própria narração.

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Observa-se que, neste artigo, o autor, sem utilizar o termo autoficção, assinala

aspectos que inserem o livro nesse tipo de relato, corroborando a idéia que estamos

desenvolvendo nesta pesquisa.

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3.2 – Ensaio e autobiografia na construção da narrativa autoficcional em El

cuarto de atrás.

O desenvolvimento de nossa pesquisa nos trouxe a este ponto em que nosso

objetivo final é o estudo da presença do discurso ensaístico e do discurso autobiográfico

no romance El cuarto de atrás e a análise da articulação desses dois discursos na

construção desta narrativa autoficcional. Como pudemos observar nos estudos

mencionados há pouco (3.1), trata-se de uma obra com múltiplas facetas e que pode ter

diversas possibilidades de abordagem. Escolhemos estudar suas características

autoficcionais por considerar a obra pioneira desta prolífica vertente literária na

Espanha contemporânea. A metodologia que seguiremos nesta fase da pesquisa será a

de identificar traços ensaísticos e traços autobiográficos na obra, verificando seu papel

na conjuntura autoficcional do texto. Para isto, seguiremos as definições teóricas

apresentadas a respeito desses gêneros (Gómez Martínez, Arenas Cruz, Gusdorf,

Lejeune e outros, em 2.2)

A partir dos aspectos teóricos que vimos sobre os gêneros em questão,

desenvolveremos nossa análise com a consciência de que adentrar nos aspectos

biográficos de Carmen Martín Gaite não é tarefa fácil, já que as informações sobre a

vida da escritora encontram-se dispersas em muitos textos, seja em seus artigos, seja em

seus ensaios mais longos, seja em sua obra ficcional ou em entrevistas que a escritora

concedeu. Nosso trabalho também consistiu em fazer este levantamento. Mas, como

vimos no início desta pesquisa, a biografia que mais nos ocupará, será a biografia

literária da escritora (1.1), a qual, obviamente, está mais acessível pelos testemunhos

que ela mesma deixou em sua obra e em entrevistas e palestras. Aliás, vida e obra são

inseparáveis no labor desta narradora/ensaísta.

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No campo da autobiografia, podemos perceber os dados biográficos de caráter

mais pessoal e os que estão mais relacionados à história da Espanha testemunhada pela

escritora, com a alusão aos efeitos dos fatos históricos no âmbito pessoal. A biografia

estritamente pessoal estará relacionada aos fatos da sua vida e da sua carreira literária.

Já a biografia inserida na história, ou a história inserida na biografia, poderá ser

percebida pela inclusão dos aspectos histórico-sociais que causaram impacto na

sociedade, na família e na própria rotina da escritora, especialmente, durante o pós-

guerra civil, período criticamente revisado no romance.

Retomaremos Alberca (2007) para relembrar as três categorias segundo as quais

poderemos, objetifivamente, classificar uma autoficção (2.4). Trata-se dos ―tipos de

ambiguidade‖ (paratextual e textual), os ―tipos de estrutura narrativa‖ (mescla de pactos

com texto uniforme e mescla de pacto com alternância de registros narrativos) e os

―tipos de autoficção‖ (autoficção biográfica, autoficção fantástica e autobioficção).

Analisaremos o romance El cuarto de atrás a partir desses parâmetros com a

consciência de que, por ser o campo a da autoficção tão avesso aos limites, possamos

talvez, chegar à conclusão de que El cuarto de atrás participa de outra, ou outras

categoria(s) de relatos autoficcionais. Esta afirmação não é uma ambição nossa, mas

uma possibilidade, tendo em vista as peculiaridades de El cuarto de atrás e da própria

autoficção.

Iniciemos nossa análise de El cuarto de atrás tomando como ponto de partida a

apresentação na contracapa do livro62

tendo em vista a importância dos elementos

paratextuais na construção das narrativas autoficcionais, os quais, segundo Alberca, se

apresentam como elementos que inserem a ambiguidade no texto autoficcional.

62

Utilizamos a 5a ed, de 2002, de Destino Libros. A partir de agora, indicaremos nas citações somente o

número das páginas desta edição.

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En ―El cuarto de atrás – Premio Nacional Literatura 1978 – Carmen Martín

Gaite, sin abandonar sus temas esenciales, inaugura un nuevo género

absolutamente original que participa de la novela de misterio, el libro de

memorias y la reflexión sobre el propio quehacer literario. En una noche de

insomnio y de tormenta, la escritora, inopinadamente, recibe la visita de un

desconocido vestido de negro, cuya identidad permanece ambigua a lo longo

de todo el relato. La extraña relación que se va creando entre ella y ese

interlocutor desconcertante, que en nada se parece a los entrevistadores de

oficio, mantiene en suspenso el ánimo del lector, pendiente de las pistas del

enigma y de su desenlace. La autora se sirve de este esquema argumental

para romper el hilo de una serie de recuerdos de infancia y de juventud, que

se desgranan confundidos con sus reflexiones sobre los sueños, el amor y la

memoria. (contracapa)

Este elemento paratextual já se apresenta como uma indicação da ambiguidade

paratextual (conforme definida por Alberca anteriormente, 2.4) que verificaremos no

relato. O Editor apresenta o livro como participante de gêneros diferentes: o romance de

mistério que o associa ao romance fantástico; o livro de memórias que conecta a obra

com a autobiografia; a metranarraliteratura onde há a reflexão sobre o próprio fazer

literário associando a obra ao discurso ensaístico, base da autorreflexividade, no sentido

de que traz a metadiscursividade que perceberemos na obra. O texto volta sobre si

mesmo para explicar o seu próprio processo de criação.

A apresentação do livro nos chama a atenção por tentar mostrar a novidade da

obra (lembremos que a obra foi escrita na década de 70 do século passado), tratada

como ―gênero absolutamente original‖. Vemos que esta originalidade resulta de uma

mescla de procedimentos narrativos que ora nos remetem à autobiografia – quando a

autora relata fatos ocorridos em sua infância e juventude -, ora nos remetem à ficção –

quando opta por procedimentos típicos da literatura fantástica, como a indefinição entre

sonho e realidade. A presença do interlocutor inventado também se apresenta como um

aspecto inovador devido a sua ambiguidade. O homem de preto não só é um narratário

que escuta os relatos e reflexões da escritora, mas também contribui com comentários e

perguntas. Além disso, este homem misterioso se converte, em certo ponto do relato,

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em um personagem independente com sua própria história. A história desse

personagem é introduzida pela narradora/protagonista no relato com alta dose de

mistério, já que ela mesma desconhece a vida de seu interlocutor, posto que não é uma

narradora onisciente.

Toda a narrativa se constrói a partir da conversa da narradora/protagonista com

esse interlocutor misterioso. A forma de diálogo utilizada por Carmen Martín Gaite no

relato funciona como um eixo argumental na narrativa. A conversa com o homem de

preto é um recurso literário utilizado para tecer as recordações da

narradora/protagonista, que aparecem através de vários tipos de estruturas narrativas ao

longo da obra. No artigo ―Elementos de la narración en El cuarto de atrás: estructura y

punto de vista‖, Agustín Faro Forteza apresenta uma análise do livro em que observa as

diferentes estruturas narrativas utilizadas por Carmen Martín Gaite nos sete capítulos da

obra. Tomaremos alguns aspectos de sua análise como ponto de partida para

desenvolver algumas questões referentes à autobiografia e à autoficção presentes no

relato.

Os sete capítulos de El cuarto de atrás funcionam de forma mais ou menos

independente e com estruturas e recursos narrativos distintos. Segundo Faro Forteza, o

primeiro capítulo é uma biografia narrada segundo os cânones estabelecidos. Diríamos

que, em vez de biografia, temos uma autobiografia, já que é possível perceber que a

narradora e a autora têm a mesma identidade, o que pode ser confirmado quando a

narradora revela pela primeira vez na narrativa o seu nome, como observamos no

fragmento: ―Pinto, pinto ¿qué pinto? ¿con qué color y con que letrita? Con la C de mi

nombre..‖ (p.15). Este e outros indícios de ambiguidade textual comprovarão que se

trata do nome próprio da escritora. E como, para a escritora (personagem e autora),

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assim como para todos os escritores, a criação literária está sempre relacionada às

leituras que realiza, observaremos que, no capítulo 1 do livro (p.22), a

narradora/protagonista remete-nos à sua relação com a literatura e teoria literária.

Primeiramente, nota-se um cômodo em desordem e repleto de livros.

Sigo bajando los ojos. Más libros, formando dos paredes encima del

radiador, y entre ellas, sujetándolas, la cesta de costura que fue de la abuela

Rosario. Casi no cierra de puro llena, no puedo imaginar cómo caben dentro

tantas cosas; siempre acudo a ella en casos de perpejidad, aquí acaba

viniendo a parar todo, seguro que, al abrirla, me acordaré de lo que venía a

buscar. Tiro de una de sus asas, las paredes que estaba sujetando pierden

apoyo y varios libros se desploman en cascada aparatosa; cuando voy a

agacharme a recogerlos, con la cesta en la mano, tropiezo con uno y también

yo ruedo por el suelo. (pp.21-22)

Este episódio relata um pequeno acidente doméstico causado pelo excesso de

livros em desordem na casa e revela que a personagem/narradora é uma leitora ávida.

Na sequencia narrativa também poderemos observar que a personagem/narradora, assim

como a autora do livro, é escritora e assinala o impacto da leitura de um livro de

Todorov, em seus conhecimentos literários:

Ahí está el libro que me hizo perder pie: Introducción a la literatura

fantástica, vaya, a buenas horas, lo estuve buscando antes no sé cuánto rato,

habla de los desdoblamientos de personalidad, de la ruptura de límites entre

tiempo y espacio, de la ambiguedad y la incertidumbre; es de esos libros que

te espabilan y te disparan a tomar notas, cuando lo acabé, escribí en un

cuaderno: ―Palabra que voy a escribir una novela fantástica‖, supongo que se

lo prometía a Todorov, era a mediados de enero, cinco meses han pasado, son

proyectos que se encienden como los fuegos fatuos, al calor de ciertas

lecturas, pero luego, cuando falla el entusiasmo, de poco sirve volver a la

fuente que lo provocó, por que lo que se añora, como siempre, es la chispa

del encuentro primero.( p.22)

O fragmento apresenta um elemento da ambiguidade textual, ao fazer referência

a uma obra clássica da teoria literária moderna. Uma personagem fictícia se apresenta

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como leitora de uma obra real. Ou seja, o livro de Todorov se mostra como o primeiro

exemplo claro e inquestionável de que podemos estar diante de um relato

autobiográfico, pois dá uma referencialidade inequívoca no texto. Também

perceberemos a afinidade literária que a narradora/protagonista/escritora tem com as

propostas literárias de Todorov. Ao mesmo tempo, insere-se por meio desta referência

o discurso ensaístico, pois a personagem/narradora analisa a obra e, a maneira de ensaio,

transmite ao leitor suas impressões sobre o texto lido, bem como os sentimentos que a

obra lhe despertou. Da mesma forma a intenção revelada de escrever um romance

fantástico nos coloca diante da informação de que a narradora é a própria escritora de El

cuarto de atrás. No fragmento lido observamos vários aspectos típicos do discurso

ensaístico além do diálogo com outra obra literária. Vemos que a

personagem/narradora faz um comentário crítico sobre um texto, mas de maneira

bastante subjetiva, ressaltanto seus sentimentos com relação à leitura, revelando o

íntimo dos seus pensamentos. Também o exercício de crítica literária que se revela ao

tratar de um assunto elaborado por outro escritor, é um elemento que configura a

inclusão do ensaio na ficção, já que, como vimos em nossa abordagem teórica sobre o

gênero ensaístico (2.2), este é o discurso próprio da crítica literária.

A relação da personagem/narradora com a leitura também se evidencia no

fragmento abaixo:

¡Qué aglomeración de letreros, de fotografías, de cachivaches, de libros…!;

libros que, para enredar más la cosa, guardan dentro fechas, papelitos,

telegramas, dibujos, texto sobre texto: docenas de libros que podría abrir y

volver a cerrar, y que luego quedarían descolocados, apilados unos sobre

otros, proliferando como la mala hierba. Decía una señora, que en paz esté, y

que vivió en lucha contra la anarquía de los objetos, que en cuanto dejas un

libro encima de un radiador, en seguida cría. (p. 19-20)

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Novamente a relação com outros textos é assinalada. As relações intertextuais

são representadas pela expressão ―texto sobre texto‖. A consciência de que cada livro

está impregnado de textos de outros escritores e dela própria que, com ―papelitos‖ e

―dibujos‖, marca suas anotações e impressões sobre o texto lido. Procedimento muito

comum no exercício da leitura crítica de um livro.

Todo o capítulo 1 é um longo monólogo onde a escritora evoca a sua infância,

numa atmosfera de sonho e realidade. Nas recordações aparecem, por exemplo, um

quarto da casa da infância e o universo feminino da década de quarenta. Esta evocação

da memória é entrecortada por diversas passagens em que a personagem/narradora

pensa sobre a atividade de criação literária. As recordações de experiências vividas se

entrelaçam com a própria atividade literária da escritora, que é, ao mesmo tempo,

narradora e personagem do livro. Neste capítulo, inicia-se um monólogo interior que

pode ser compreendido como um convite ao leitor para uma ―conversa‖ sobre as

múltiplas possibilidades de uma narrativa, antecipando o que se encontrará nos

capítulos seguintes. Na sequência narrativa que encontramos entre as páginas 23 e 25, a

personagem/narradora encontra uma carta de um remetente misterioso, pois sua

identidade só pode ser decifrada com poucos indícios, já que a assinatura está apagada

(parece que por lágrimas). Sabe-se que se trata de um homem com que teve uma relação

amorosa – es un hombre porque los adjetivos que se refieren a él vienen en masculino

―mutilado, anulado sin ti‖ – (p.24). Em meio a sugestões do conteúdo amoroso da carta,

a personagem/narradora divaga sobre o que entendemos como bases fundamentais da

poética literária de Carmen Martín Gaite – a narração e a interlocução.

Me da pena que se pierda a lo lejos sin conseguir reconocer su figura, ¿será

alto?, ¿qué edad tendrá?, la playa es más fácil de imaginar porque todas se

parecen un poco, podría ser la misma donde yo me entretenía en hacer

dibujos hace un rato, si el tiempo real y el de los sueños coincidieran, cabría

la posibilidad de que se encontrara conmigo un poco más allá, antes de llegar

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a las últimas rocas, se detendría, me preguntaría que por qué estaba dibujando

una casa, un cuarto y una cama y yo le diría: ―si quieres que te lo diga,

siéntate, porque es largo de contar‖ y, al contarlas en voz alta, salvaría del

olvido todas las cosas que he estado recordando y sabe Dios cuántas más, es

incalculable lo que puede remificarse un relato cuando se descubre una luz de

atención en otros ojos, él seguramente también tendría ganas de contarme

cosas, se sentaría a mi lado, nos pondríamos a cambiar recuerdos como los

niños se cambian cromos y la tarde caería sin sentir, saldría un cuento fresco

e irregular, tejido de verdades y mentiras como todos los cuentos. (pp.24-25)

A questão da interlocução de que tratamos no início desta pesquisa (1.3),

começa a delinear-se como tema fundamental da obra. O fragmento que acabamos de

ler é um dos momentos em que este tema é apresentado, pois narradora imagina um

possível interlocutor com quem partilharia suas recordações. Este fragmento, como

tantos outros que encotraremos no livro, reúne vários aspectos das concepções literárias

de Carmen Martín Gaite, ressaltando ao mesmo tempo o caráter ensaístico e

autobiográfico da obra. Podemos perceber a importância da memória para a narração.

No tocante a sua relação com aspectos formais da autobiografia, vemos que a escritora

acredita na necessidade de um narratário inserido na própria narração e aponta para o

conteúdo autoficcional do relato onde a mescla de realidade e ficção (verdades e

mentiras) sugerem uma atmosfera ambígua.

O tema da interlocução, recorrente em grande parte da obra ensaística e ficcional

de Carmen Martín Gaite, é expresso no desejo da personagem/narradora que, ao

encontrar-se sozinha, imagina alguém com quem possa conversar sobre suas

recordações. A importância deste tema é destacada pela própria escritora Carmen

Martín Gaite em seus ensaios e também em entrevista concedida a Marie-Lise Gazarian

Gautier, em 1981, na cidade de Nova York. Questionada sobre a importância do

interlocutor, Carmen Martín Gaite revela sua identificação com a personagem/narradra

de El cuarto de atrás.

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G. Gautier: Tú tienes um libro de ensaios que que se llama la Búsqueda de

interlocutor. ¿Tanto te importa encontrar interlocutor?

M. Gaite: Bueno a mí y a todo el mundo, un interlocutor es lo que andamos

buscando todos siempre. Piensa en toda esa gente que va a los psiquiatras

para contarles su caso o que anda hablando sola por la calle. Si uno pudiera

encontrar el interlocutor adecuado en el momento adecuado, talvez nunca

cogiera la pluma. Se escribe por desencanto de ese anhelo, como a la deriva,

en los momentos en que el interlocutor real no aparece, como para

convocarlo. (GAZARIAN GAUTIER, 1981, p. 10)

Em ambas as passagens, há uma relação muito próxima entre narração e

interlocução (como vimos no capítulo 1.3) e destas com a literatura. Se de uma conversa

com um interlocutor ideal pode surgir ―un cuento fresco e irregular, tejido de verdades y

mentiras como todos los cuentos‖(p.25) e se ―Se escribe por desencanto de ese anhelo,

como a la deriva, en los momentos en que el interlocutor real no aparece, como para

convocarlo‖, a relação entre a criação literária e a conversação, para Carmen Martín

Gaite intrínseca. Como vemos, o início da obra já marca um aspecto que estará presente

nos capítulos seguintes: a reflexão sobre a arte de escrever.

O segundo capítulo intruduzirá o interlocutor com quem C. partilhará suas

lembranças de infância e juventude. Será o misterioso ―hombre vestido de negro‖ que

facilitará à narradora/personagem a rememoração do passado e autocrítica literária,

intensificando tanto o caráter autobiográfico quanto o caráter metaliterário da obra. Este

aspecto metaliterário da narrativa, ao nosso ver, é um dos traços que constroem a sua

autoficcionalidade, posto que, quando a personagem/narradora se coloca como escritora,

apresentando suas concepções literárias, citando obras que leu e mais adiante, citando e

comentando livros escritos pela própria autora do livro, constatamos a coincidência de

identidades da autora, narradora e protagonista, aspecto fundamental do pacto

autoficcional ou ambíguo como define Alberca. Aqui vale observar que a autocitação é

um recurso também utilizado nos ensaios de Carmen Martín Gaite. Tanto em sua

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ensaística quanto nesta narrativa, o recurso da autocitação, além de demonstrar a

necessidade de reafirmar seus propósitos literários, como a valorização da memória

como elemento da narrativa, a escritora dota ambos os tipos de disurso de um caráter

dialógico, atualizando temas e conceitos literários a partir de pontos de vista diferentes e

distantes no tempo e no espaço. Assim, Carmen Martín Gaite, C., faz uma revisão

crítica de sua própria obra. Como exemplos de autocitação que aproximam sua ficção

do ensaio, temos o diálogo entre C. dialoga e o homem de preto sobre seu primeiro

romance, El balneario.

A entrada desse interlocutor no relato modifica a estrutura narrativa, que a partir

desse capítulo passa a alternar a forma de diálogo direto com o monólogo, com a

prevalência do primeiro. Entendemos que as pistas autoficcionais deste capítulo

encontram-se no seu tema que é a reflexão sobre a literatura, mais especificamente,

sobre a criação literária.

As poucas referências à identidade do interlocutor misterioso nos levam a crer

que ele é um jornalista, já que chega a casa da escritora para uma entrevista que havia

sido previamente marcada. A entrevista passa a ser o pretexto para uma longa

conversação cujo centro temático será a própria criação literária de Carmen Martín

Gaite. São várias as referências ao seu primeiro romance El balneario, mas as

lembranças de sua infância e juventude também ajudam a construir este capítulo.

As referências a El balneario iniciam-se com a pergunta do interlocutor sobre o

gosto da escritora pela literatura de mistério.

- ¿La literatura de misterio? Sí. Siempre me ha gustado mucho. ¿Por qué?

- Como no la cultiva.

Se ha sentado, sin que yo le invitara a hacerlo, en el rincón de la izquierda del

sofá. (…)

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Bueno, mi primera novela era bastante misteriosa. (p. 33)

- ¿Hace mucho que vive en esta casa?

- Desde el año cincuenta y tres.

Suspiro. He vuelto a coger el hilo, como siempre que me acuerdo de una

fecha. Las fechas son los hitos de la rutina.

Precisamente ese año – reanudo – es cuando empecé a escribir mi primera

novela, esa que le decía antes que es bastante misteriosa…, cuando no me

oyó.

Era esta misma casa, sí, recuerdo la luz gris que entraba por la ventana

de una habitación pequeña que había, según se sale a la derecha, casi no tanía

muebles, estaba la máquina de coser, abrí un cuaderno con tapas de hule y

escribí: ―Hemos llegado esta tarde, después de varias horas de autobús…‖ No

sabía muy bien como iba a seguir, pero el principio me gustó, me quedé con

la pluma en alto, mirando por la ventana, amenazaba lluvia. (pp. 47-48)

A autocitação ocorre neste fragmento de maneira direta com a primeira frase de

El balneario entre aspas 63

. Como vemos, recordações pessoais como a lembrança do

momento em que começou a escrever o livro começam a aparecer mescladas com a

trajetória literária da romancista, que se inicia com El balneario. Segundo Carmen

Martín Gaite, na nota preliminar à 3a edição desse livro, este romance foi a sua primeira

tentativa de passar do conto ao romance64

.

O diálogo com o interlocutor misterioso prossegue:

- ¿Qué novela? - dice - ¿Aquella que ocurría en un balneario?

Me parece haber percibido cierta decepción en su voz.

- Sí, esa. ¿No le parece que tiene misterio?

- Hubiera podido ser una buena ser una buena novela de misterio, sí –

dice lentamente – empezaba prometiendo mucho, pero luego tuvo usted

miedo, un miedo que ya no ha perdido nunca, ¿qué le pasó?

- No me acuerdo, ¿miedo?... no sé a qué se refiere.

- ¿Se acuerda usted de la llegada?... La llegada al balneario, digo. (p.

48)

63

Cf. MARTÍN GAITE, 2004, p. 17. 64

Diz a autora nesta nota preliminar: “Revisando ahora las pruebas de la tercera edición, me doy cuenta de lo que significó este relato en el arranque de mi trayectoria como novelista. A pesar de ciertas ingenuidades y de la clara influencia kafkiana – de la que ningún modo reniego – sigue gustándome bastante y creo que hubiera podido constituir, tratado el tema con mayor amplitud, una buena novela de misterio”. (Op.cit. p.13)

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A voz do visitante misterioso, como num desdobramento da consciência da

narradora/personagem, direciona o fluxo do pensamento e da memória de C. num

exercício de memória e de autocrítica literária. A autobiografia e o ensaio começam a

fundir-se de maneira inseparável na narrativa.

Na sequência, a narradora/escritora esclarece a sua motivação para escrever o

referido romance, lembrando-se das chegadas aos balnearios da vida real. Também

deve ser destacada sua lembrança do medo quando escreveu El balneario, em 1953.

Considerando, que a Espanha estava em pleno pós-guerra, e no período em que a

repressão franquista contra os inimigos do regime implantado estava mais acirrada, este

fragmento é uma alusão ao seu medo de uma escritora que não podia criar livremente. A

censura oficial torna-se autocensura em El balneario. A escrita do primeiro romance e

o medo a que se refere a narradora são importantes referências autobiográficas em sua

obra de ficção.

La llegada a los balnearios siempre me producía zozobra y exaltación. Y no

entendía por qué, si era todo tan normal, un mundo inmerso en la costumbre,

rodeado de seguridades, habitado por personas aquiescentes y educadas que

se dirigían sonrisas y saludos, inmediatamente dispuestas a acogernos en su

círculo, a cambiar con nosotros tarjetas de visita de cuyo intercambio

nacerían amistades perennes y obligatorias, alimentadas por la inconsistencia

de un banal encuentro en los pasillos, en las escaleras que bajaban al

manantial o en la sala de juegos. (p. 48)

A recordação dos balneários ―reais‖ se alternam com as observações do

interlocutor e as suas sobre a escritura daquela narrativa. A narradora/protagonista

explica que a sensação de estranheza que aqueles ambientes lhe causavam foi uma

inspiração para a escritura do livro. Foi esta sensação que Carmen Martín Gaite

reproduziu em El balneario. Para o interlocutor misterioso, o gérmen do fantástico está

aí. Analisando a primeira parte do relato, o interlocutor observa o efeito que se causa no

leitor.

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... y el lector siente que no puede creerse ni dejarse de creer lo que vaya a

pasar en adelante, ésa es a base de la literatura de misterio, se trata de un

rechazo a todo lo que luego, en aquel hotel, se empeña en manifestarse ante

usted como normal y evidente, ¿no? (p. 50)

Esse efeito no leitor que a literatura de fantástica causa também se sente ao

longo de todo o relato. Não se sabe se a longa entrevista com o interlocutor aconteceu

ou foi um sonho da protagonista. Aliás, este é um elemento de ambiguidade textual que

é reforçado pela própria escritora na entrevista à Gazarián Gautier que mencionamos

agora há pouco. Assim, a ambiguidade textual é reforçada por um elemento que gera a

ambiguidade paratextual, a entrevista. Leiamos outro trecho da entrevista:

G. Gautier: Alastair Reid, del New Yorker, me dijo hace poco que la

ambiguedad es tal vez el tema más importante de la novela española de hoy.

Y, en ese sentido, tu última novela está totalmente en esa onda, por la

ambigua frontera que establece entre el sueño y la realidad. ¿Qué ocurrió,

dime?, ¿vino a verte aquel hombre?, ¿lo soñaste despierta o lo soñaste

dormida?

M. Gaite: Bueno, para contestar a eso, que no sé si podré, lo primero que

tendría que contar es cómo se me ocurrió el libro.

G. Gaitier: Pues dímelo, ¿cómo se te ocurrió?

M. Gaite: En fin, ya que te empeñas… La noche que se me ocurrió, porque se

me ocurrió de noche, había tormenta con truenos y relámpagos, estaba yo

sola en casa, porque mi hija había hecho una excursión a la Sierra y tardaba

en volver, y me empezó a entrar un insomnio muy malo, no sé, pensaba en

cosas angustiosas y tenía miedo, lo que se llama un insomnio malo, el cual

está narrado en el primer capítulo de la novela, aunque transformado, claro,

mediante un tratamiento literario especial. Y pensé si pudiera hablar con

alguien, se me disiparía la angustia, pero como no tenía a nadie a mano, se

me ocurrió levantarme de la cama y ponerme a escribir. Y estando allí

sentada, con la tomenta fuera y ya muy tarde, más de la una de la madrugada

sería, pensé de repente: ―¡Qué agradable sería que se presentara alguien a

verme! Alguien que no tuviera prisa y que tuviera ganas de escuchar todo lo

que necesitaría contar esta noche‖. Y en esto me dije: ―¿Y por qué no? En un

libro mando yo y puedo hacer que pase lo que yo quiera, convoco a un

visitante y ya está, lo invento, lo hago venir, y vino. Llamaron a la puerta y se

me apareció. ¿Qué si es verdad o mentira? Ya te digo que no sé. Yo, por lo

menos, me lo creí. (GAZARIAN GAUTIER, 1981, p.10)

Como num jogo com o leitor, Carme Martín Gaite não desfaz a ambiguidade do

relato, ao contrário, reforça indefinição entre sonho e realidade, tão peculiar ao romance

fantástico. Desta forma a partir do efeito provocado no leitor por essa ambiguidade El

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cuarto de atrás afirma-se como um romance fantástico. Outros elementos inusitados

como veremos na cena da barata na cozinha e ―cajita dorada‖ deixada pelo ―interlocutor

sonhado‖, introduzem o fantástico na obra.

Segundo a classificação de Manuel Alberca, este tipo de relato possui alguns

elementos que o enquadrariam no tipo ―autofições fantásticas‖, mas acreditamos, como

poderemos comprovar mais adiante que El cuarto de atrás encontra-se numa zona

intermediária entre a autoficção fantástica e a autobioficção. A primeira apresenta fatos

que podem ser interpretados como impossíveis, a partir de uma perspectiva realista,

tendendo mais para a ficção do que para a autobiografia. A segunda se caracteriza pela

equidistância com relação aos pactos autobiográfico e romanesco e por forçar ao

máximo o fingimento dos gêneros, sua hibridização e mescla.

Juntamente à essas reflexões sobre a literatura fantástica, encontramos no

segundo capítulo as recordações de infância e juventude de Carmen Martín Gaite, que

tem como referência histórica o período da guerra e pós-guerra civil espanhola.

Alternam-se, portanto, a biografia pessoal (memória individual) e a biografia

relacionada ao momento histórico da Espanha com muitas referências sócio-culturais

(memória coletiva). Desse período destacam-se referências culturais como a revista

Lecturas e a ―novela rosa‖ e históricos como o próprio ditador Francisco Franco e sua

filha Carmencita Franco.

A revista Lecturas e as ―novelas rosa‖ tinham como alvo o público feminino e

serviam como veículo ideológico que reforçava as normas de conduta, delimitando o

papel da mulher na sociedade. Em Usos amorosos de la postguerra española, ensaio

publicado pela autora em 1987, esses temas são revisados em forma de estudo histórico.

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O diálogo entre El cuarto de atrás e este ensaio pode ser visto nos fragmentos abaixo. O

segundo deles é reaproveitado integralmente no ensaio.

Influida por la lectura de las novelas rosa, que solían poner un énfasis

lacrimoso en las insatisfacciones de las ricas herederas, pensaba en la niña de

Franco como en un ser prisionero y sujeto a maleficio, y me inspiraba tanta

compasión que hasta hubiera querido conocerla para poderla consolar, se me

venían a la mente los versos de Rubén Darío que aprendí de memoria:

La princesa está triste,

¿Qué tendrá la princesa? (p. 62)

Podría decirle que la felicidad en los años de guerra y posguerra era

inconcebible, que vivíamos rodeados de ignorancia y represión, hablarle de

aquellos deficientes libros de texto que bloquearon nuestra enseñanza, de los

amigos de mis padres que morían fusilados o se exiliaban, de Unamuno, de la

censura militar, superponer la amargura de mis opiniones actuales a las otras

sensaciones que esta noche estoy recuperando, como un olor inesperado que

irrumpiera en oleadas. (p. 67)

O terceiro capítulo retoma a forma de monólogo e gira em torno da infância e

juventude da escritora com inúmeras referências ao ambiente cultural do pós-guerra

civil. Também observamos as relações intertextuais com a própria obra de Martín Gaite

que trata os mesmos temas em um de seus primeiros romances, Entre visillos, e em

Usos amorosos de la postguerra española. O mais interessante é que estas referências

colocam El cuarto de atrás no meio do percurso literário entre aquele romance de pós-

guerra e o ensaio que viria a escrever somente na década de oitenta.

La conversación con este hombre me ha estimulado y ha refrescado mi viejo

tema de los usos amorosos de posguerra. Hace dos años empecé a tomar

notas para un libro que pensé que podría llevar ese título, un poco el mundo

de Entre visillos, pero explorando ahora, con mayor distancia, en plan de

ensayo o de memorias, no sé bien, la forma que podría darles es lo que no se

me ha ocurrido todavía; lo ordené todo por temas: modistas, peluquerías,

canciones, bailes, novelas, costumbres, modismos de lenguaje, bares, cine, en

un cuaderno de tapas verdes y azules, fue a raíz de la muerte de Franco.

(p.69)

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Este fragmento está repleto de elementos que reforçam a ambiguidade textual do

livro: a referência a obra literária da própria escritora, tanto a anterior, quanto a futura,

cujo tema coincide com o ambiente social do período pós-guerra; o fato histórico – a

morte de Franco. Ao mesmo tempo, destaca-se a ausência de limite temático para

ensaio e ficção na obra de Carmen Martín Gaite. Ambos os discursos alimentam-se da

mesma matéria: a história e a literatura. O jogo intertextual, com a reflexão da

narradora/personagem sobre uma obra escrita na década de 50 e outra que viria a ser

escrita na década seguinte à publicação de El cuarto de atrás, realçam a

autoficcionalidade da obra configurada nos capítulos anteriores e lhe conferem um

caráter intertextual, o qual é próprio das metaficções.

Neste sentido, também identificamos a presença do discurso ensaístico,

caracterizado pela intertextualidade e pela autocrítica que a escritora realiza de sua

própria obra. Mélanie Valle Collado (2008) refere-se a estas questões em seu estudo

comparativo de El cuarto de atrás e Don Julián de Juan Goytisolo:

Como último punto, es importante acordarnos de que las referencias

intertextuales afectan directamente al lector. Se puede decir que El cuarto de

atrás y Don Julián son dos telarañas más o menos enredadas con otras obras

literarias. Por consiguiente, e toca al lector identificar éstas y desenhebrarlas,

mas también entender cuál es el sentido que cogen al ser incluídas en un

nuevo (con)texto. Así, los lectores no tenemos más remedio que leer activa,

atenta y críticamente y éste es uno de los propósito de las metaficciones

(VALLE COLLADO, 2008, p. 8)

Aqui retornamos ao capítulo 2 (2.1), onde debatíamos a questão da

intertextualidade e suas implicações na recepção do texto. O leitor de metaficções, e

nesta análise já estamos vislumbrando que a obra estudada é uma metaficção

historiográfica (conforme definido no em 2.1), é um leitor capaz de estabelecer as

relações sugeridas pelo texto, indentificando as referências, os fragmentos de outros

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textos, as idéias de outros escritores, em uma leitura ativa e curiosa. Em nossa opinião,

a genialidade de Carmen Martín Gaite fica patente na capacidade que ela demonstra

neste livro de estabelecer as relações intertextuais com sua própria obra, com a que já

havia escrito e a que estava escrevendo, pois tudo indica que estava escrevendo Usos

amorosos de la postguerra española simultaneamente com El cuarto de atrás.

O caráter dialógico deste capítulo se constrói em dois sentidos. O primeiro é o

que acabamos de ver com o diálogo com outros textos da autora. O segundo é o que se

estabelecerá pela presença do discurso oficial da sociedade española de pós-guerra no

discurso da narradora/personagem. Esse discurso se realiza pela descrição de hábitos e

costumes da época, através da voz da própria narradora e pela voz de personagens como

a mãe e a avó de C. Como exemplo temos o papel da mulher como mantenedora da

ordem doméstica, já que o lar, segundo o discurso franquista, representava o pólo

irradiador da desejada ordem social do seu sistema político autoritário. No primeiro

caso, percebe-se a atitude irônica de C. com relação à obsessão pela limpeza e pela

ordem.

Mucho más que en mi casa de Salamanca, ni en la de verano de Galicia, fue

en esa de Madrid, cuando veníamos en vacaciones de Semana Santa o

Navidad, donde se fraguó mi desobediencia a las leyes del hogar y se

encubaron mis primeras rebeldías frente al orden y la limpieza, dos nociones

distintas y un solo dios verdadero al que había que rendir culto, entronizado

invisiblemente junto a las imágenes de san José y la Virgen del Perpétuo

Socorro, por todos los rincones de aquel piso tercero derecha del número

catorce de la calle Mayor, convento que regentaba mi abuela con dos criadas

antiguas – tía y sobrina – naturales de la provincia de Burgos. (p. 71)

Aquí faz-se uma ironia com a relação que as mulheres tinham com a limpeza e

arrumação da casa, uma atividade quase que sagrada e elogiada no discurso unívoco do

pós-guerra. A idéia se completa na voz da ―abuela‖:

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―Esa niña, ¡qué mania de ponerse a leer com la cara pegada al balcón! – se

quejaba la abuela -. ¿no ves que dejas la marca de los dedos y de las narices

en el cristal? ¡Dios mío, los cristales recién limpios!‖ (p. 82)

Em seguida a personagem/narradora ironiza:

Pero ¿qué cosa no estaba recién limpia, recién doblada, recién guardada en su

sitio? ¿Y por qué no podía ser el sitio de los objetos aquel en que, a cada

momento, aparecían? ¿Y, sobre todo, por qué castigarlos con aquella

continua y sañuda purga de quitarles el polvo, como se arrancan las costras

de una enfermedad? El polvo se descolgaba en espirales por los rayos de sol,

se posaba silenciosamente sobre los objetos, era algo tan natural y tan

pacífico, yo lo miraba aterrizar con maligno deleite, me sentía cómplice del

enemigo descarado, que con mayor terquedad reduplicaba sus minúsculos

batallones cuánto más asediado se veía por las batidas implacables. (p.82)

Com uma linguagem irónica e ambigua o relato adquire um tom subversivo,

aludindo indiretamente às perseguições que o regime franquista imprimiu a seus

inimigos não só durante o imediato pós-guerra, mas em todos os anos em que a ditadura

durou. Assim, palavras que remetem ao campo semântico militar surgem nesta

passagem e na continuação do texto. Teremos então a personificação da poeira, como

perigoso inimigo da ordem. Palavras como: ―pacífico‖, ―enemigo‖, ―batallones‖,

―perseguido‖, ―implacable‖, ―diligencias‖, ―captura‖, etc, revelam não só a

discordância da narradora com a obsessão pela limpeza, mas insinuam de forma velada

sua revolta com o regime franquista.

A volta aos anos cinquenta através da memória é portanto um exercício de

revisão crítica da história e uma autocrítica da própria criação literária de Carmen

Martín Gaite. Nota-se, neste capítulo, que a autora em seu percurso literário constrói sua

obra utilizando temas recorrentes, em que o pós-guerra e as suas consequências no

âmbito pessoal, familiar e na formação da cultura espanhola ocupam lugar privilegiado.

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No quarto capítulo, a narrativa retoma a forma de diálogo. Intitulado com o

nome de uma brincadeira infantil, ―El escondite inglês‖, o capítulo segue com muitas

recordações de infância. A narrativa girará em torno de três pontos principais: a

memória (sempre relacionada ao pós-guerra), a criação literária, e impossibilidade de

afirmação da mulher. Neste sentido, a evasão, através da literatura surge como uma

alternativa às normas rígidas estabelecidas, principalmente para as mulheres. O

interlocutor faz sugestões sobre a escritura do livro que C. está escrevendo, e começa a

vislumbrar a mescla de história e literatura que pretende fazer em seu livro :

Y me quedo em suspenso, quería dejar apuntadas todas las sugerencias que se

me agolpan, necesitaría un hilo para enhebrarlas; el libro sobre la posguerra

tengo que empezarlo en un momento de iluminación como el de ahora,

relacionando el paso de la historia con el ritmo de los sueños, es un panorama

tan ancho y tan revuelto, como una habitación donde cada cosa está en su

sitio precisamente al haberse salido de su sitio, todo parte de mis primeras

perplejidades frente al concepto de historia, allí, en el cuarto de atrás, rodeada

de juguetes y libros tirados por el suelo. (p.98)

Aqui, ―el cuarto de atrás‖, usado como metáfora da memoria, pois guarda

relação com o tempo pasado, tempo este representado pelos objetos que preenchiam sua

infância – ―juguetes y libros‖. Mas o diálogo com o interlocutor misterioso apresentará

mais discussões literárias sobre o processo de elaboração da própria narrativa que

estamos lendo. Na verdade, percebece a escrita simultânea de duas obras baseadas na

história – uma autoficção, El cuarto de atrás e um ensaio – Usos amorosos de la

postguerra española, oriundas dos mesmos materiais históricos e autobiográficos da

escritora. O ensaio e a autobiográfia participam ao mesmo tempo da construção desta

narrativa autoficcional, tanto na própria obra realizada (pelos procedimentos formais,

pela temática), como já vimos anteriormente, quanto na apresentação ao leitor do

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processo de ―gestação‖65

de ambas, que, como as evidências nos mostram, situam-se em

um mesmo espaço autobiográfico. Neste processo de ―gestação‖ literária, vemos que El

cuarto de atrás ―nasceu‖ antes de Usos amorosos de la postguerra española,

possivelmente pela necessidade da rigorosa pesquisa que este último exigiu de sua

autora, pois esta obra, também repleta de referências da época, vem devidamente

documentada com a indicação e citações de dezenas de revistas, jornais, obras literárias,

documentação oficial.

O interesse da narradora/protagonista em escrever um romance fantástico

suscitado pela leitura de Todorov, novamente é mencionado neste capítulo. Chama-nos

a atenção o fato de que nesse mesmo capítulo vermos a inserção de outro elemento

fantástico na narrativa: a caixinha dourada. Essa caixinha contém pílulas que ativam a

memória e induzem ao sonho, ou, podemos assim dizer, a uma viagem do imaginário,

provocando um misto de recordações e fantasias.

Outro aspecto que podemos destacar no capítulo é a questão do esgotamento da

autobiografia constatado pela narradora. Ao relatar ao seu interlocutor seu projeto de

escrever um livro de memórias, diz-se desestimulada pela quantidade de livros desse

tipo. No fragmento a seguir, a protagonista/narradora se coloca como uma

escritora/leitora que já havia sentido o desejo de escrever um ―libro de memorias‖, mas

desanima-se com a proliferação deste tipo de relato desde a morte de Franco. Este

fragmento mostra a opinião da autora sobre o esgotamento do gênero autobiográfico nos

anos que seguiram a morte de Franco, daí, concluímos que a escritura de El cuarto de 65

Valle Collado (2008) escreve: “Autocrítica de la escritura: obra en gestación e intertextualidad: Por este término (“autocrítica de la escritura”) Sobejano no entiende sólo un proceso de crítica de la obra que se está elaborando desde ella misma, sino que, en opinió del crítico, se trata de “ir elaborando la novela misma ante el lector, entregarle a éste la novela en su proceso de gestación, autocriticarse y exigir al que lee el máximo de clarividencia y esfuerzo en la hechura y en la recoposición del texto como forma” (Sobejano, 1979, p. 22) En resumen, la novela autocrítica de Sobejano corresponde a lo que hemos llamdado “metaficción”.”

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atrás foi uma tentativa, por sinal, muito exitosa de renovar a narrativa autobiográfica

española, tendo como resultado uma narrativa autoficcional.

- ¿Se me enfrió? Me lo enfriaron las memorias ajenas. Desde la muerte de

Franco habrá notado cómo proliferan los libros de memorias, ya es una peste,

en el fondo, eso es lo que me ha venido desanimando, pensar que, si a mí me

aburren las memorias de los demás, por qué no le van a aburrir a los demás

las mías. (p. 119)

Sendo assim, o desejo de escrever um livro de memórias e um romance

fantástico se unem, por sugestão de seu ―interlocutor sonhado‖. A narradora/autora

chega à conclusão de que para isso necessitará da ―caixinha dourada‖ e decide que

realmente escreverá o livro.

- Gracias. Ahora si que voy a escribir el libro.

En seguida de decirlo, pienso que eso mismo le prometí a Todorov en enero.

Claro que entonces se trata de una novela fantástica. Se me acaba de ocurrir

una idea. ¿Y si mezclara las dos promesas en una?

(p. 120)

O trecho contém toda a essência do livro que estamos lendo que, como podemos

perceber que faz uma releitura do recurso utilizado no Quijote quando revela-se uma

obra que se escreve durante o transcurso de uma obra de ficção. A junção das duas

promessas da escritora em uma – escrever um livro de memórias e um romance

fantástico – mostra-nos que Carmen Martín Gaite está teorizando sobre a autoficção, ao

mesmo tempo que produz esse tipo de narrativa. Neste sentido, cabe observar que a

criação de um romance com estas características, na década de setenta, conecta

definitivamente a escritora com tendências que se haviam iniciado nos anos sessenta

(como a metaliteratura, por exemplo) indica a passagem da literatura espanhola do

experimentalismo para a literatura em que se incrementa a intertextualidade, a ironia, a

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inserção da história na literatura, com apagamento dos limites entre uma e outra,

aspectos que estarão no centro do ―empreendimento cultural‖ chamado pós-

modernismo, como vimos em 2.1.

O capítulo cinco segue com a questão da literatura fantástica, em que a

protagonista e seu interlocutor discutem a obra de Todorov. Também é neste capítulo

que a identidade do interlocutor é revelada, posto que a autora intercala uma conversa

telefônica com uma mulher que teria uma relação amorosa com ele. A conversa

intensifica o mistério, aumentando a curiosidade do leitor acerca do personagem, já que

deixa de ser somente o interlocutor da personagem/narradora, para tornar-se um

personagem com vida própria e uma também misteriosa e conturbada história de amor.

No campo das memórias da narradora, destacam-se as referências à ―Sección

Femenina‖, instituição franquista que tinha como objetivo formar as moças da

sociedade espanhola, preparando-as para cumprir seu destino de esposa e mãe de

família.

En el mundo de anestesia de la posguerra, entre aquella compota de sones y

palabras – manejados al alimón por los letristas de boleros y las camaradas de

la Sección Femenina – para mecer noviazgos abocados a un matrimonio sin

problemas, para apuntalar creencias y hacer brotar sonrisas, irrumpía a veces,

inesperadamente, un viento sombrío en la voz de Conchita Piquer, en las

historias que contaba. Historias de chicas que no se parecían en nada a las

que conocíamos, que nunca iban a gustar las duzuras del hogar apacible con

que nos hacían soñar a las señoritas, gente marginada, a la deriva,

desprotegida por la ley. (p.141)

Aqui nesta referência à ―Sección Femenina‖ e à cantora Concha Piquer vemos

lado a lado o discurso oficial e seu contraponto. Muitas das canções populares no pós-

guerra, cantadas pelas mulheres, nada tinham a ver com a moral propagada pelo regime.

Manuel Vázquez Montalbán (2003) afirma que as canções populares refletiam crenças

que não estavam de acordo com a ―superestrutura moral‖ que pairava sobre a Espanha.

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O escritor, em sua Crónica sentimental de España comenta a popularidade entre o

público feminino de canções como ―Tatuaje‖, um dos maiores sucessos na voz de

Concha Piquer:

¿Y qué tenía que ver com esa moral superestructura esa extraordinária

canción llamada Tatuaje? La cantaban con toda el alma aquellas mujeres de

los cuarenta. Aquellas pluriempleadas del hogar y de los turnos en trabajos

fabriles afeminados. La cantaban para quien quisiera oírlas a través de sus

ventanas de par en par. Era una canción de protesta no comercializada, su

prostesta contra la condición humana, contra su propia condición de

Cármenes de España a la espera de maridos demasiado condenados por la

Historia, contra una vida ordenada como una cola ante el colmado, cartilla de

Abastos en mano y así uno y otro día, sin poder esperar al marino que llegó

en un barco, al que muy bien hubieran podido encontrar en el puerto al

anochecer.

Era alto y rubio como la cerveza

¡Señores! En un momento en que la talla media del homo hispánicus era 1,58

y la brillantina abastecía el pequeño derecho a ser Clark Gable todos los

domingos. Y fascinada por el mítico, rubio, alto marino extranjero, la mujer

de la canción cn voz emborrachada, va perguntando por él a todo navegante

que llega al puerto… era más dulce que la miel… era gallardo y altanero.

(VÁZQUEZ MONTALBÁN, 2003, p. 38-39)

Como posibilidade de evasão para as mulheres de pós-guerra, as canções

populares eram o espaço dos sonhos proibidos das mulheres, que paradoxalmente,

podiam cantá-las livremente. Aqui, certamente, começa-se a perceber o poder da

cultura de massas que começava a tomar forma na Espanha.

No sexto capítulo o diálogo volta-se para o imaginário da autora na infância,

pois a narradora traz à memória a recordação da ―Isla de Bergai‖, lugar imaginário

compartilhado com uma amiga na infância. Bergai simboliza o sonho, a fantasia, a

evasão de um mundo de restrições vivido no pós-guerra. A ―Isla de Bergai‖ se apresenta

como uma metáfora da própria literatura, refúgio onde a escritora sempre encontrou

abrigo. Outro espaço que permitia a evasão era El cuarto de atrás. Como já lemos

anteriormente, este era o cômodo da casa da infância em Salamanca, que significava

para a autora e sua irmã o local da desordem permitida, das brincadeiras, do sonho.

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Com a guerra Civil, o quarto foi, paulatinamente, sendo transformado em despensa para

que a família pudesse armazenar alimentos, já que a guerra provocou um longo período

de escassez na Espanha.

No sétimo capítulo último, fechando uma estrutura cíclica, há uma a volta à

realidade e ao presente. O interlocutor desaparece e a narradora é despertada pela filha.

A ambiguidade da cena deixa o leitor em dúvida se o que estava sendo narrado era

sonho ou realidade para a narradora. O diálogo da narradora/protagonista com sua filha

insere alguns elementos de ambigüidade no texto, potencializando a possibilidade tanto

de que a noite de conversa com o homem de vestido de preto tenha sido real, tanto como

a possibilidade de que tudo não tenha passado de um sonho ou uma alucinação.

Ha cogido un libro que había encima de la colcha y se pone a hojearlo,

mientras fuma, en silencio.

- Todorov… - dice -. ¿Qué tal este libro?

Me encojo de hombros sin contestar nada.

- Pero ¿qué te pasa?

- Nada, me duele la cabeza.

- Será de la tormenta. ¿No has salido?

- Me parece que no, no me acuerdo.

- Pero ha venido a verte alguien, ¿verdad?

Echo los pies fuera de la cama con un repentino sobresalto, me quedo

inmóvil con los ojos fijos en la cortina roja, luego miro a ella.

- ¿Por qué me miras con esa cara de susto?

- Dices que ha venido alguien… ¿Por qué lo has dicho?

- Porque he visto ahí fuera una bandeja con dos vasos. (p.187)

Até este momento no capítulo a narradora/protagonista que acabara de acordar,

parecia não se lembrar exatamente do que havia acontecido. A bandeja com os dois

copos mencionada pela filha a faz lembrar de seu interlocutor da noite anterior,

comprovando sua existência. No entanto, logo a seguir, o diálogo novamente nos

coloca diante da ambiguidade do relato, quando a filha pergunta à mãe se esta havia

tomado um medicamento:

- No te preocupes, que no te fisgo nada. ¿Has estado escribiendo algo?

- Sí, un poco.

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Instintivamente finjo ordenar los otros objetos que hay sobre la mesa. Veo el

grabado de Lutero y debajo de él, doblada, la carta azul.

- ¡Qué bien!, ¿no?, decías que no eras capaz de arrancar con nada estos

días.

- Pues ya ves, hay insomnios que cunden.

- ¿Has tomado dexedrina?

Me vuelvo, apoyándome ne la mesa y me encuentro con sus ojos intrigados.

Antes de que apareciera la carta azul, fui a la cesta de costura en busca de

algún fármac, sí, tal vez…

- No me acuerdo – digo. (p.188)

A possibilidade de que a narradora/protagonista tenha tomado ―dexedrina‖ nos

remete novamente à possibilidade de que os acontecimentos narrados tenham sido fruto

da imaginação de C., pois este medicamento é uma anfetamina, que, como se sabe, pode

causar insônia (o que a narradora/protagonista acredita ter tido) e alucinações. Por outro

lado, é um medicamento que provoca o aumento da atenção, o qual seria necessário para

a escritura de um livro, como se sugere durante o relato.

Esta ambiguidade textual se acentua quando, ao final do livro, a narradora

encontra a ―caixinha dourada‖ que lhe teria sido dada de presente pelo interlocutor

misterioso. Esses aspectos do capítulo final, aliados a menção a Todorov, em

Introdução à literatura fantástica, texto com o qual a obra dialoga constantemente,

indicam o traço fantástico do texto. O leitor fica suspenso entre o real e o imaginário,

sendo impossível desfazer-se esta encruzilhada. O capítulo resume, portanto. a duas

intenções da escritora ao construir esta narrativa: a primeira consiste em mesclar

acontecimentos de sua vida com a ficção e a segunda de teorizar ao mesmo tempo em

que coloca em prática aspectos da construção de uma narrativa fantástica. Ou seja, o

ensaio e a autobiografia na construção de uma narrativa autoficcional.

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Conclusões.

A primeria conclusão a que podemos chegar ao terminar esta pesquisa sobre a

obra de Carmen Martín Gaite, e mais especificamente, sobre seu instigante romance El

cuarto de atrás, é que múltiplas são as leituras que se podem fazer deste liro. As

inúmeras referências textuais e contextuais às quais esta obra nos remete impõem-nos a

necessidade de buscar outros textos que possibilitam uma compreensão mais ampla da

obra. Adotar a postura do leitor ativo é fundamental para empreender a viagem através

do tempo e da memória, por meio da literatura, tornando-nos os interlocutores que a

escritora sonhou. Interlocutores abertos, dedicados e sem pressa para partilhar com a

personagem/narradora/autora o mesmo desejo de interlocução que se concretiza nesta

narrativa híbrida feita de fragmentos de discurso autobiográfico, ensaístico e ficcional

entrelaçados, os quais se sucedem em diferentes estruturas narrativas: ora monólogo

interior, ora diálogo com um interlocutor misterioso, ora diálogo intercalado pelo

monólogo interior da narradora.

O hibridismo literário, tão presente nas tendências da literatura ocidental do

século XXI, começava a ganhar força no contexto das profundas transformações sociais

das décadas de 60 e 70. Na Espanha, especialmente, o fim do franquismo, marcado pela

morte do ditador, permitiu que as transformações iniciadas desde a década de 50, como

o plano de desenvolvimento e o desejo de mudanças realmente efetivas latente na

sociedade, pudessem concretizar-se. Assim, as relações com os países vizinhos tiveram

consequências importantes não só no âmbito político, quanto nos campos social e

cultural. A literatura, como caldeirão de cultura em todas as épocas, reflete a

necessidade de renovação estabelecendo, em primeiro lugar, uma ruptura com os

pressupostos realistas, e, em segundo lugar, buscando a revisão crítica do passado

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recente, naquele momento em que já era permitido escrever sobre os traumas, as

angústias, frustrações e ressentimentos de um período caracterizado pelo mascaramento

da dor e das verdadeiras emoções, num resgate nem sempre fácil da história.

A pós-modernidade encontra-se com a abertura política na Espanha finissecular.

Neste encontro, percebemos que a literatura busca novos caminhos, como as

alternativas à linguagem unívoca do realismo social, expressão literária inevitavelmente

associada ao período político anterior. Como testemunha de mais de meio século de

história de seu país, Carmen Martín Gaite, busca, como muitos escritores, escrever a

memória da Guerra Civil (bastante remota) e a memória do pós-guerra, com uma visão

especiamente feminina, não necessariamente feminista, do período. El cuarto de atrás

plasma o desejo da autora de resgatar o passado, mas de uma maneira inovadora,

marcando definitvamente a ruptura com o realismo e com parte de sua própria literatura

anterior. A inovação se faz com uma narrativa que alia a autobiografia ao ensaio. A

obra resultante é a fusão desses dois gêneros de caráter personalístico, com a inclusão

da literatura fantástica como tema de reflexões e como prática de experimentação

literária, ao mesmo tempo. A narrativa configura-se como uma autoficção, gênero cuja

definição tem sido buscada na teoria literária atual.

A autobiografia é um gênero que apresenta um paradoxo, o de estar entre a

realidade e a ficção. A realidade se constrói na narrativa autobiográfica à medida que

há o compromisso do escritor em contar suas experiências da forma como aconteceram,

devendo haver uma verificabilidade para o leitor. Como vimos no ―Pacto

autobiográfico‖ de Philippe Lejeune, a identidade entre autor, narrador e protagonista é

um dos aspectos essenciais deste gênero. Esta identidade supõe que, ao constituir-se

narrador e contar as experiências vividas, o autor estabelece um pacto com o leitor que

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crê que os fatos narrados fizeram parte da vida do escritor. Também é traço básico da

autobiografia uma visão retrospectiva, através da qual o autor reconstrói sua existência.

É nesta reconstrução que encontraremos a ficcionalidade do texto autobiográfico, já

que, literariamente, esta reconstrução se fará mediante um processo de criação do

próprio ―eu‖ por parte do escritor, visto que a reprodução do passado tal qual foi

realmente é um feito impossível.

A autobiografia é um gênero literário que obteve grande profusão na Espanha,

após o término da ditadura franquista. Esse auge provocou, de certo modo, um

esgotamento do gênero. Com o auge da autobiografia e seu consequente esgotamento,

escritores como Carmen Martín Gaite uniram ao desejo de reconstrução da própria

identidade (oprimida por décadas de liberdade cerceada) ao experimentalismo

necessário à renovação do gênero, cujos recursos narrativos tradicionais já não atendiam

às necessidades expressivas da nova ordem social e, em última instância, da pós-

modernidade. Se esta propiciou o questionamento da própria história, do sujeito, da

temporalidade, da imaginação, etc, de forma a provocar o descrédito dos grandes relatos

legitimadores, como a autobiografia deixaria de ser afetada por essa onda de renovação

e revisão da literatura e da cultura?

Mas a autobiografia nas últimas décadas tem sido vista cada vez mais como um

campo literário incerto, cujos limites não podem ser definidos a partir de teorias estáveis

como a proposta por Lejeune, que consegue defini-la. Atualmente, ao contrário de

teorias que buscavam estabelecer os limites entre os gêneros literários, ou as fronteiras

literárias, busca-se desestabilizar as certezas sobre os gêneros, muitas vezes a partir da

própria literatura.

Na verdade, no contexto pós-moderno em que categorias, como sujeito,

referencialidade, verdade e mentira, ficção e realidade são postos à prova, há uma

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progressiva imbricação dos discursos que têm o ―eu‖ como referência com o discurso

literário. Como consequência, a autobiografia tem sofrido um processo progressivo de

literaturização, tendência acentuada a partir do último decêncio do século XX. O

resultado tem sido a proliferação de relatos híbridos que mesclam a ficção e a história

com a biografia do autor, apresentando como narrador/personagem/protagonista o

próprio autor da obra.

Por outro lado, o ensaio, gênero da crítica literária por excelência, não ficou

imune à onda de hibridização dos discursos gerada, inicialmente, pela revolução cultural

dos anos sessenta. Também esta forma discursiva, ou gênero, se abre para a inclusão de

outros discursos, principalmente o autobiográfico. Nesse sentido, o conceito de classes

de textos, defendido por María Elena Arenas Cruz, vem em nosso auxílio, posto que

coloca em um mesmo campo – a classe de textos argumentativos – os gêneros ensaio e

autbiografia. O que justifica, em grande parte, a sua proximidade e interpenetrabilidade.

A autoficção, como vimos, responde a um tipo de pacto literário que se situa

entre o autobiográfico e o romanesco. Igualmente ao que ocorre na autobiografia, na

autoficção autor, narrador e protagonista compartilham a mesma identidade, só que,

desta vez, em uma obra de ficção. Sendo assim, a mistura de realidade com ficção

determina a ambiguidade do relato. O pacto autoficcional consiste exatamente no fato

de que o leitor não identifica claramente o limite da realidade e da ficção, o que é

autobiográfico e o que faz parte da invenção literária do autor. É o que acontece em El

cuarto de atrás, de Carmen Martín Gaite. Com inúmeras referências autobiográficas, a

obra da escritora espanhola persegue o propósito de aliar a escritura de um livro de

memórias à criação de um romance fantástico, como lemos em um dos fragmentos

citados neste trabalho. Mas o trabalho da escritora vai além desse propósito. O livro

que resulta é uma obra prima que reúne a autobiografia, a literatura fantástica, a teoria

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literária e o ensaio histórico. Constitui-se, ao mesmo tempo, numa síntese de sua obra

anterior, com diversas alusões aos romances El balneario, Entre visillos e Ritmo lento e

gérmen de seu posterior ensaio histórico em que reelabora de forma científica temas

relacionados aos efeitos dos acontecimentos históricos no âmbito pessoal.

Ao ficcionalizar sua historia de vida, sua carreira, suas concepções literárias e a

própria história da Espanha, Carmen Martín Gaite elabora uma narrativa autoficcional,

onde o pacto com o leitor passa pelas inúmeras relações intertextuais que se

estabelecem com os livros que a escritora leu e escreveu. Além disso, propõe uma

renovação formal na literatura espanhola da década de setenta, em que o aumento

considerável do número de relatos autobiográficos após a morte de Franco esgotaram o

gênero, tornando-se necessária a busca de novos caminhos para a expressão do ―eu‖.

Relembrando, Alberca define em sua teoria três tipos de autoficção: as

autoficções biográficas, as autoficções fantásticas e as autobioficções, como vimos em

2.3. Dessas três classes de autoficção, as primeiras são as que possuem maior grau de

aproximação com a autobiografia, possuindo pouca ficcionalização. As ―fantásticas‖

colocam o escritor no centro de uma autobiografia, mas com sua existência

transfigurada por uma história irreal. O último tipo, as ―autobioficções‖ encontram-se

exatamente entre o pacto autobiográfico e o romanesco. Nesse tipo de relato, que

Alberca afirma não serem nem romances, nem autobiografia, força-se ao máximo o

fingimento dos gêneros e a hibridização.

Através da análise da incorporação do discurso autobiográfico e do discurso

ensaístico na obra, concluímos que El cuarto de atrás constitui-se numa autobioficção,

em que o discurso autobiográfico é reforçado pelo discurso ensaístico que exerce um

papel de atestador de referencialidade. Juntamente com o discurso autobiográfico, o

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discurso ensaístico colabora com a ilusão de realidade que a narrativa provoca, mesmo

tendo fortes componentes de irrealidade: os elementos fantásticos. A ambiguidade

textual é introduzida por elementos que: 1) nos remetem à vida ―real‖ da escritora

(nome próprio, data de nascimento, nome dos pais, amigos, escritores que conheceu; 2)

acontecimentos que parecem inventados ou reais (a entrevista com o ―hombre vestido

de negro‖); 3) acontecimentos ou personagens indiscutívelmente fictícios e inclusive

fortemente irreais (a entrevista com o ―hombre vestido de negro‖). Exatamente isto.

Até o momento, não conseguimos desfazer a ambiguidade deste personagem, aliás, nem

tentamos, pois esta é a essência da autoficção. Este é o argumento que nos leva a

afirmar que El cuarto de atrás é uma autobioficção. Exatamente no meio do caminho

entre a autobiografia e a ficção. Na incerta fronteira da autoficção.

Como considerações finais, gostaríamos de compartilhar com nossos leitores a

idéia de que Carmen Martín Gaite é uma das principais precursoras da tão bem sucedida

autoficção espanhola atual que nas figuras de Enrique Vila-Matas, Javier Marías, Javier

Cercas, Laura Freixas, alcança grande êxito editorial, com suas propostas de revisão

contínua da literatura a partir da própria literatura.

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