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1 HEGEL Marcos Kammer 1 Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, em 1771. Filho de funcionário público, sua família propiciou-lhe condições tranqüilas para desenvolver os estudos ao longo de sua vida. Apaixonado desde a infância pelos clássicos gregos, estudou filosofia e teologia na Universidade de Tubingen onde conheceu figuras que também se tornaram importantes no âmbito da cultura alemã: Hölderlin e Schelling, com os quais celebrou os ideais revolucionários da França de 1789, plantando uma árvore em nome da liberdade. Concluída sua formação acadêmica, foi preceptor em Berna, Suiça, e, posteriormente, em Jena, Alemanha, tornando-se professor livre-docente e professor extraordinário. É por esta data, em 1806, que Hegel depara-se com Napoleão fazendo reconhecimento de suas conquistas do campo de batalha e deslumbra-se com sua imponente figura heróica – síntese e expressão dos novos tempos que viriam se impor por toda Europa. Seu maior sucesso acadêmico foi obtido como professor na Universidade de Berlim a partir de 1818, onde passou a ter forte expressão no pensamento cultural, vindo a ser conhecido como o filósofo oficial da Alemanha daquela época. É, também nesta cidade, que viria a falecer de cólera no ano de 1831. Hegel produziu uma obra intelectual muito vasta e fecunda desde a juventude. Suas principais obras são: a Fenomenologia do Espírito (1807); A Ciência da Lógica (1812-1816), A Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio (1817 reeditada em 1827 1830) e Os Princípios da Filosofia do Direito (1821). Outras obras editadas postumamente, pelos seus discípulos, foram as Lições Sobre A Filosofia Da História, Estética, Lições de Filosofia da Religião e Lições sobre a História da Filosofia. Principais comentadores do pensamento político hegeliano no Brasil: Tadeu Weber, Denis Rosenfield, Hans-Geog Flickinger, Marcos Müller. 1 Marcos Kammer é mestre em filosofia pela PUCRS - Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre e professor do Instituto Superior de Filosofia na Universidade Católica de Pelotas, UCPel.

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HEGEL Marcos Kammer1

Georg Wilhelm Friedrich Hegel nasceu em Stuttgart, Alemanha, em

1771. Filho de funcionário público, sua família propiciou-lhe condições

tranqüilas para desenvolver os estudos ao longo de sua vida. Apaixonado

desde a infância pelos clássicos gregos, estudou filosofia e teologia na

Universidade de Tubingen onde conheceu figuras que também se tornaram

importantes no âmbito da cultura alemã: Hölderlin e Schelling, com os quais

celebrou os ideais revolucionários da França de 1789, plantando uma árvore

em nome da liberdade. Concluída sua formação acadêmica, foi preceptor em

Berna, Suiça, e, posteriormente, em Jena, Alemanha, tornando-se professor

livre-docente e professor extraordinário. É por esta data, em 1806, que Hegel

depara-se com Napoleão fazendo reconhecimento de suas conquistas do

campo de batalha e deslumbra-se com sua imponente figura heróica – síntese

e expressão dos novos tempos que viriam se impor por toda Europa. Seu maior

sucesso acadêmico foi obtido como professor na Universidade de Berlim a

partir de 1818, onde passou a ter forte expressão no pensamento cultural,

vindo a ser conhecido como o filósofo oficial da Alemanha daquela época. É,

também nesta cidade, que viria a falecer de cólera no ano de 1831.

Hegel produziu uma obra intelectual muito vasta e fecunda desde a

juventude. Suas principais obras são: a Fenomenologia do Espírito (1807); A

Ciência da Lógica (1812-1816), A Enciclopédia das Ciências Filosóficas em

compêndio (1817 reeditada em 1827 1830) e Os Princípios da Filosofia do

Direito (1821). Outras obras editadas postumamente, pelos seus discípulos,

foram as Lições Sobre A Filosofia Da História, Estética, Lições de Filosofia da

Religião e Lições sobre a História da Filosofia.

Principais comentadores do pensamento político hegeliano no Brasil:

Tadeu Weber, Denis Rosenfield, Hans-Geog Flickinger, Marcos Müller.

1 Marcos Kammer é mestre em filosofia pela PUCRS - Pontifícia Universidade Católica de Porto Alegre e professor do Instituto Superior de Filosofia na Universidade Católica de Pelotas, UCPel.

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DIREITO, MORAL E ESTADO EM HEGEL

“A história... não é palco da felicidade. Períodos de felicidade são como páginas em branco da História” (Hegel: Filosofia da História)

“A realidade social, com a competição generalizada, o egoísmo e a exploração, com sua riqueza e pobreza excessivas, é a base sobre a qual a razão tem de construir. A filosofia não pode saltar a história, pois que é filha do seu tempo, do ‘seu tempo apreendido pelo pensamento’”. (Marcuse, 1988: 199-200)

É muito comum nos atirarmos criticamente à filosofia hegeliana em

função do suposto idealismo de sua obra e de sua produção intelectual. Com a

idéia de idealismo quer-se afirmar, além de uma distância, um equivoco

filosófico na compreensão teórica e metodológica (elementos internamente

imbricados) da realidade. A realidade segundo esta perspectiva idealista, seria

compreendida e tomada não por suas relações reais, complexas, mas antes

por suas idéias ou pelo entendimento meramente conceitual que dizemos ser

expressão dela, sem que antes coloquemos em questão o próprio ponto de

vista sobre o qual falamos e suas origens materiais. Isto é, tomamos as idéias

pelo mundo antes de tomarmos o mundo e dele derivarmos e compreendermos

o porquê são geridas algumas de suas idéias.

Obviamente estas questões não são simples. Mas, no caso de Hegel e

da recepção de sua obra, significa que trocamos muito facilmente a análise da

obra pela crítica já pronta de um suposto e reduzido idealismo. Ou seja,

acabamos presumindo um suposto idealismo que não nos permite mais avaliá-

lo no que essa produção, dita idealista, construiu.

Essa observação inicial deve-se ao fato de descuidarmos muito

facilmente das próprias interdependências que se fizeram entre o pensamento

idealista hegeliano e seus críticos marxistas posteriores, por exemplo, que,

pelo sabor ideológico dessa disputa, acabam desmerecendo as formulações

muito particulares colocadas nessa relação, encerrando o entendimento da

crítica, muitas vezes, apenas por ela mesma.

Por esta perspectiva, tomaremos aqui imediatamente outro caminho

para uma apresentação do pensamento de Hegel, tentando fugir das críticas

comumente realizadas. Tomaremos, muito particularmente, o caminho da

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apresentação mais elaborada de seu pensamento político, sua Filosofia do

Direito, livro de 1821, a fim de que, para além do suposto idealismo, possamos

conhecer um pouco melhor os termos de sua formulação.

Escrito no momento em que Hegel já é conhecido como filósofo oficial

do Estado Prussiano, a Filosofia do Direito é uma obra única para

compreendermos os fundamentos da sociedade liberal moderna, frente aos

destinos produzidos pela Revolução Francesa de 1789 e sua emancipação da

ordem feudal. Em sintonia com seu tempo, a filosofia política de Hegel

pretenderá dar conta de um propósito fundamental e decisivo da revolução:

organizar a compreensão de uma sociedade que se imporá afirmando um novo

princípio de universalidade para a idéia de liberdade e igualdade entre os

indivíduos.

A afirmação deste princípio ordenador da vida social, ou seja, de que

todos são igualmente livres, deveria nortear, agora, as mais diferentes esferas

da institucionalidade desta nova sociedade. O objetivo dessa trama é ordenar

construtivamente sua racionalidade interna, em seu desdobramento, visando à

totalidade dessa nova organização da vida societária e sua compreensão.

Ora, por onde expressar esse princípio afirmativo da liberdade

universal? Hegel o introduz afirmando a vontade humana como princípio

fundador da sociedade liberal. Por esta vontade, segundo Hegel, somos todos

já imediatamente livres, somos todos portadores de vontade e por ela

expressamos a forma mais particular e imediata do caráter universal de nossa

humanidade. A universalidade desta vontade afirma nossa igualdade originária.

Três são as esferas dialéticas em que esta mesma vontade se

desdobrará rumo a sua realização universal: no direito, chamado por Hegel de

Direito Abstrato – momento da tese ou da aparência da realização imediata da

liberdade –; na Moralidade – instância mediadora desse processo, momento

auto-reflexivo –; e, por fim, na Eticidade – expressão final da realização

conceitual daquela universalidade. Cada uma dessas instâncias corresponde a

uma dada divisão da obra de Hegel e, no seu avanço, apontam o grau de

complexidade a que esta vontade estará sujeita no caminho de sua possível

realização individual e coletiva.

O DIREITO ABSTRATO

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A afirmação mais imediata, mais simples, menos complexa, é a

afirmação positiva do que afirmamos cotidianamente de nossos direitos, de

nossas vontades. Por essa positividade, somos todos portadores de direitos

pelos quais expressamos nossa vontade sobre o mundo material que nos cerca

e que a sociedade moderna, em sua ideologia, concretiza como manifestação

primária de nossas individualidades. Por essas vontades, em sua

manifestação, entramos na lógica do mundo liberal e afirmamos o princípio

fundamental de sermos portadores de direito, colocando-nos, desde o

nascimento (ou mesmo até antes dele), como uma pessoa de direito.

Se nossa vontade é expressão primeira de nossa liberdade, ela,

contudo, não é algo vazio e que se basta em si mesma metafisicamente.

Assim, nossas vontades não se realizam apenas na aspiração interna de nossa

subjetividade. Elas alcançam e se dirigem diretamente para o mundo material

do que está a nossa frente visando possuí-lo, visando tê-lo como objeto de

nossa realização. A vontade desdobra aqui sua figura na forma de posse. O

mundo das vontades dirige-se para o reino da posse e nela se objetiva como

expressão mais simples da vontade universalizada dos homens. Contudo, não

estamos no mundo sozinhos. A vontade não é apenas minha vontade.

Encontramos–nos confrontados com uma infinidade de vontades, nas quais

minha posse precisa encontrar sua realização em meio às múltiplas vontades,

igualmente desejosas de sua realização. O resultado desse processo de

apropriação só se concretiza na forma do reconhecimento recíproco da posse,

na forma do contrato, figura central da sociedade liberal moderna.

Aqui, ainda em nosso início, alguns elementos da apresentação

hegeliana são fundamentais para compreendermos a lógica do caminho da

universalização da liberdade na sociedade moderna. Para que a forma

particular dessa universalização efetivamente se realize, será preciso que dois

elementos sejam aqui considerados. O primeiro, será o da abstração da

quantidade material que os diferentes indivíduos possam possuir, isto é: para

que a universalidade da liberdade se constitua, será preciso que não se leve

em conta justamente as diferentes quantidades de propriedade que os

indivíduos possam ter.

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“A distribuição da propriedade constitui algo meramente circunstancial e acidental, para Hegel. É racional que todos tenham propriedade, mas a quantidade e a qualidade da propriedade de cada um é acidental. Os homens são iguais, diz Hegel, somente enquanto pessoas, quer dizer, todo homem deveria ter propriedade (conferir Filosofia do Direito, & 49, Zus.), mas o quanto possui, aqui não entra em jogo. Ter em princípio, propriedade, é necessário, mas a quantidade dessa propriedade é contingente.” (Weber,1993: 67).

Será que compreendemos a sutileza da expressão?

O segundo elemento universalizador da liberdade é o que entra na

composição dos contratos. Para que os contratos se viabilizem, são as

qualidades dos objetos contratados que são agora abstraídas. Isto é,

“a coisa e a sua qualidade não entram em jogo, mas apenas a vontade livre das pessoas. (...) Posso, por exemplo, querer trocar meu carro novo por um de menor valor. Uma reclamação posterior deverá considerar se houve consciência e livre consentimento; a qualidade da coisa é secundária. A liberdade das vontades contratantes é fundamental para a validade do contrato. As vontades livres são, portanto, pressupostas.” (Weber,1993:71)

Portanto, são as vontades que fazem referência ao ser contratado, não

esse ser ou seu conteúdo. O objeto do contrato é assim dessacralizado. O

resultado desta abstração pertinente aos contratos, se percebermos

atentamente, é o que em última instância permite que possamos fazer

contratos de quase tudo em nossa sociedade, inclusive de nossos próprios

trabalhos abstraídos na forma do dinheiro, seja ele na quantidade que for.

Como podemos ver, o significado desse processo afirma uma questão

interessante para o sentido da realização da liberdade em nossa sociedade,

qual seja: sua realização só é pertinente à correlata abstração da base material

(isto é: das quantidades e qualidades do que está implicado no jogo contratual)

em que essa mesma liberdade se realiza. Sem ela, não poderíamos

propriamente falar em universalização da liberdade. Outro detalhe: o processo

de afirmação da liberdade universal só é pensado a partir da afirmação das

vontades originárias dos indivíduos. Se lermos isso pelo seu reverso, pelo que

se esconde do outro lado da moeda, isto é, de supostas e possíveis vontades

alienadas, vemos que estas, em hipótese alguma entrariam no jogo da

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“universalidade” da idéia da liberdade na sociedade moderna. Em outros

termos: o processo de universalização da liberdade só se dispõe aos que

podem afirmar suas vontades livremente e na forma de sua abstração.

Qualquer afirmação da materialidade da condição dessa mesma liberdade

anularia a possibilidade de efetivarmos a universalidade e os termos dessa

idéia de liberdade.

Recapitulando as figuras projetadas acima desta série, teríamos o

seguinte: vontade, posse, propriedade e contrato. Mas seu desdobramento não

pára aí. A seqüência desse processo é algo que, mesmo parecendo

inicialmente estranho, começará a fazer sentido ao compreendermos os limites

das considerações sobre o direito abstrato. Para Hegel, a seqüência desse

processo é a sempre possível forma da injustiça, ou a violação da afirmação da

vontade livre, ainda que contratada. E para não ficarmos muito teóricos para

compreendermos isso, é só observarmos a quantidade de contratos

cotidianamente descontratados e não respeitados nos termos inicialmente

previstos.

Situada a possibilidade da injustiça, Hegel a especifica em três níveis: a

injustiça de boa fé (parecerá inicialmente também estranho que uma injustiça

assim se defina, mas sua explicação se tornará posteriormente coerente), a

fraude, a violência e o delito. A primeira, a injustiça de boa fé, agora

explicando, é aquela praticada de forma involuntária, sem que tenhamos tido a

má-fé de praticá-la contra a vontade de um terceiro. É propriamente o que

fazemos contra a vontade de alguém de forma absolutamente involuntária. Por

outro lado, a fraude se constitui pelo seu grau mais intenso de lesão. Aqui, o

engano é provocado e aquele que produziu a injustiça o fez de forma

voluntária. Por último, a violência e o delito são a forma mais intensa de lesar a

vontade alheia. Aqui, se quer ser injusto e “não há o reconhecimento do direito

do outro, pois consiste na intenção direta de ferir a liberdade de alguém”.

(Weber, 1993: 78).

Correlatos à injustiça, quando violados os direitos pressupostos à livre

manifestação das vontades, situam-se os castigos e as penalidades como

formas de serem reconstituídos e fortalecidos o pacto entre os indivíduos e sua

racionalidade. Por outra parte, e no contrapé dos mesmos castigos e

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penalidades, deve a justiça, para que a vontade dos indivíduos seja respeitada,

libertar-se dos interesses e das formas subjetivas de julgamento.

Ao fim e ao cabo, o direito abstrato realiza a primeira medida de uma

série de direitos do Direito Civil liberal, inscrevendo um conjunto de preceitos

que regulam as condições dos contratos e sua legitimidade, mesmo que seu

fim seja posto e desdobrado, na análise de Hegel, nas formas da injustiça que

ocorrem em nossa sociedade. Contudo, isto tem uma intenção clara para

Hegel, qual seja: a de que não são apenas as formas do direito abstrato que

podem viabilizar, por si, a afirmação da vontade livre dos homens, a qual, muito

antes do direito, é fruto do que está para além dele e que Hegel situará em dois

novos níveis de sua dialética: a Moralidade e a Eticidade. Nas palavras de

Hegel: a injustiça denotaria apenas aquilo que ainda deveria ser concretizado

para além das formas aparentes do direito. Entramos, a partir daqui, na

instância da moralidade. Mas, antes, só para brincarmos um pouco com as

conseqüências disso, seria muito salutar que estudantes de direito pudessem

apreender isso no decorrer de suas formações, entendendo que as leis não se

sustentam apenas por si mesmas.

A MORALIDADE

Como falamos, o direito, em sua abstração, em sua imediatez ou

formalidade, não é suficiente para dar conta da relação interpessoal e do jogo

manifesto dos interesses das múltiplas vontades dos indivíduos. Para

explicarmos isso, é só nos perguntarmos, por exemplo, pelo seguinte: pode

uma relação contratual entre patrões e empregados se sustentar apenas pelo

formalismo do contrato, sem nenhuma outra espécie de vínculo pressuposto

entre eles? Obviamente você veria que tal formalismo é insustentável sem a

vigência de critérios, princípios ou entendimentos subjetivos sob os quais se

pautam a formação e o caráter destas pessoas, agora analisados e refletidos,

segundo Hegel, como sujeitos da moralidade.

Portanto, este segundo momento ou momento reflexivo da dialética da

liberdade, volta-se para os aspectos subjetivos da realização da

universalização da liberdade.

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“A moralidade representa a internalização do princípio da liberdade a ser respeitado em relação a todo agir social. A moralidade como reflexividade é uma garantia da universalidade da liberdade. A idéia da moralidade traz consigo a idéia do reconhecimento de cada um como ‘sujeito’”. (Weber,1993: 79-80)

Mas, como considerar os termos dessa universalização da liberdade, a

partir do ponto de vista de sermos agora sujeitos?

Para Hegel, a universalidade da liberdade só pode se afirmar pela

seguinte perspectiva: “Cada um deve reconhecer, através da liberdade do outro

o princípio que ele quer para si próprio. Isso significa o reconhecimento da liberdade como universal. (...) A moralidade implica o reconhecimento de todos como ‘sujeitos’, assim como o direito indica a aceitação de todos como ‘pessoas’. O reconhecimento da mesma subjetividade dos outros significa o reconhecimento da vontade de todos”. (Weber,1993: 80)

Se conhecermos o imperativo categórico de Kant, em sua Crítica da

Razão Prática: “Age de forma tal que o motivo que te levou a agir possa ser

convertido em lei universal” (Pensadores, Kant, XVI), veríamos como Hegel

dele se aproxima quando sugere a proposição acima do reconhecimento da

forma da liberdade aqui proposta.

Pois bem, qual a moral efetivamente viva numa sociedade que queira

ordenar o princípio de que todos sejam livres? Quais critérios subjetivos e

pessoais podemos prever para nossas ações?

Para Hegel, a idéia de que todos sejamos livres implica reconhecer a

condição de que todos, indistintamente, sejamos também sujeitos de nossa

moralidade, isto é, sujeitos da responsabilidade de nossa ação e propósitos.

Hegel denomina isto de “direito da vontade subjetiva”. Por este direito, a

sociedade liberal formula o direito pessoal de cada um poder afirmar seus

próprios fins naquilo que realiza de sua vida. Esse é um direito decisivo e

fundamental em relação às sociedades precedentes ao liberalismo, já que

dimensiona, claramente, a particularidade da forma de vida moderna que

introjeta, na vivência particular de cada pessoa, a responsabilização frente ao

seu próprio mundo e ao que dele vier fazer. Isto é, ao custo desse direito, nos

tornamos unicamente responsáveis por nós mesmos. Somos nós agora que

temos que querer alguma coisa de nós. Contudo, isto não quer dizer que

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possamos querer tudo, mesmo porque só somos sujeitos na medida do

reconhecimento dos outros como sujeitos desse mesmo direito.

Neste sentido, já que a sociedade liberal institui a idéia de que por

nossas vontades somos todos livres e que isso constitui um direito inalienável

expresso no direito da vontade subjetiva, então essa mesma sociedade não

pode mais ditar o que as pessoas poderão fazer ou não de si mesmas. Por isto,

esta regulação se voltará para o que é negativo, isto é, para o que, na

intermediação das relações interpessoais, atente contra esse mesmo direito

dos indivíduos. O direito se voltará para as condições dessa responsabilização.

Hegel, então, se perguntará sobre estas condições:

“Pode alguém assumir a responsabilidade ou ser

responsabilizado por um ato que não quis cometer e de cujas conseqüências não teve nenhuma intenção? A Resposta de Hegel: Quem não sabe e não quer propositadamente cometer algum delito, não pode ser responsabilizado pelo que faz” (Weber, 1993:81).

Portanto, a ação passível de responsabilidade é a que faço de propósito

sabendo dos seus efeitos.

Como agora só posso ser responsabilizado pelo que propositadamente

faço e sei de suas conseqüências, não posso ser responsabilizado por aquilo

que o Direito não prescreve em suas leis e normas, isto é, fico

desresponsabilizado de tudo aquilo que não está incluído no próprio direito. “Só

pode tornar-se conteúdo de responsabilidade de cada pessoa aquilo que o

direito prevê e impõe” (Weber, 1993: 83). Por isso, também, cumprir o que o

direito prescreve é já todo o agir moral. Com isso, Hegel faz coincidir aquilo que

poderá ser amplamente vivenciado em nossa sociedade; qual seja, a

coincidência entre moralidade e legalidade. É nessa perspectiva que podemos

entender como condutas ditas morais podem se restringir ao campo

meramente legal sem que possamos fazer nenhum apelo para além do amparo

legal. Só como exemplo, podemos nos referir aqui a uma situação bem

representativa disso: o exemplo vem do valor do salário mínimo. Todos

sabemos dos apelos morais para ampliá-lo, de sua injustiça, de seu

desrespeito para com os trabalhadores, mas nenhum destes argumentos

obtém alguma justificativa diante dos limites de caixa pelos quais se

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argumentam e “justificam” seu valor. Assim sendo, mesmo que não estejamos

presos a estes limites de caixa, ninguém nos poderá julgar por nossa suposta

imoralidade, desde que estejamos dentro das regras prescritas pelo que a lei

regula. Isto é, em nossa sociedade, ser moral é poder estar preso ao

estritamente legal, desresponsabilizando-me por tudo aquilo que a lei me

assegura. E isto vale basicamente para tudo. Um outro exemplo dessa

conseqüência é eu poder me desfazer do trabalho de um empregado em uma

situação de crise em minha empresa, sem que tenha que sequer cogitar o que

advirá para esta pessoa do problema do desemprego. Desde que estejamos

quites com as regras do jogo instituídas, tudo o mais é um problema que não

preciso efetivamente ponderar. Em relação à moralidade, elas são questões

sempre privadas.

Para Hegel, o direito da vontade subjetiva deveria ainda regular o

alcance da ação dos sujeitos, não só pelos seus propósitos, mas também pela

intenção e conseqüência do que pode decorrer de seus atos sobre o bem-estar

dos outros, isto é, de que a realização pessoal não é alheia àquilo que temos

que considerar de sua realização também com os outros. Mas, como podemos

inferir dos próprios limites sob os quais a sociedade liberal pode se afirmar, de

forma apenas negativa no trato do direito da vontade subjetiva, resta que ela

não pode oferecer nenhum critério último para o agir humano. Resta que,

desde que não atentemos contra a liberdade alheia, a sociedade liberal

moderna acabe por ter que permitir quase tudo, afirmando suas regras na

própria privatização de sua moralidade.

Neste sentido, a impossibilidade de uma fundamentação última do agir

moral dos homens, decorrido do direito da vontade subjetiva, nos remete a um

nível superior e diferenciado do que a sociedade pode constituir de suas regras

e princípios de sociabilidade. Por isto, para além do campo da moralidade, para

além da questão meramente particular de cada um, temos que ir agora para o

campo que Hegel chamou de eticidade.

MORALIDADE OBJETIVA OU ETICIDADE

Como podemos observar, Hegel não esgota em nenhum dos momentos

anteriores, seja no direito abstrato, seja na moralidade, as possibilidades

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realizadas da vontade livre. Há algo sempre a desdobrar. Igualmente para a

moralidade: sua efetividade só poderá ser concretizada na síntese de sua

própria construção histórica, vivenciada na cultura e no processo de sua

institucionalização.

Para Hegel, o campo da ética, ou mais propriamente o campo da

eticidade, é o campo da vivência moral efetiva, isto é, do que uma sociedade

constitui de sua própria cultura de valores e costumes, de seu ethos. Hegel o

define como sendo a realização do “Espírito do Povo”, no qual cada um de nós

afirma uma relação moral com o todo, ao mesmo tempo em que também o

constrói e é parte do que vive moralmente desse todo, como participação e

formação de sua individualidade no conjunto, por nós aprendido, do mundo da

cultura em suas instituições. Nesse sentido, a eticidade, a moral efetivamente

realizada em uma sociedade, é algo vivo, dinâmico e se realiza não por aquilo

que cada um quer apenas por si e para si. Pelo contrário, a moralidade

objetivada se constitui no que este conjunto de pessoas constrói interagindo,

disputando e participando da vida social como membros de uma determinada

comunidade, na qual esses valores são afirmados. Comunidade que assim se

designa, por sua particularidade histórica, por conta do que internamente

pautou e objetivou, muito além da simples moral individual, do conjunto de

princípios objetivado por esta comunidade em sua cultura e em suas

instituições. Em outros termos, a questão da eticidade situa um passo a mais

para os limites da moralidade privada. Ou seja, segundo Hegel, a moralidade

só é moralidade por conta do conjunto de valores que uma sociedade afirmou

para si em seu processo histórico-cultural de institucionalização de seus

costumes na forma da racionalidade particular de um povo. A moral, como algo

subjetivo, não tem valor algum se não se realizar socialmente segundo uma

cultura determinada de valores. Diz-se normalmente que esta é a diferença

entre a moral pensada por Kant, que a colocou como uma prerrogativa

individual, e a proposição hegeliana. Para Hegel, não basta ter um conjunto de

princípios apenas em nossa cabeça se não estivermos dispostos a disputá-los

no convívio social com outros princípios igualmente legítimos.

Nesta perspectiva, e para além das considerações anteriores, em que os

indivíduos eram retratados como pessoas e sujeitos, nos tornamos agora

membros de uma comunidade eticamente situada, que Hegel agora analisará.

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“Toda a terceira parte da Filosofia do Direito pressupõe que não exista nenhuma instituição objetiva que não esteja fundada na vontade livre do sujeito, e nenhuma liberdade subjetiva que não seja visível na ordem social objetiva.” (Marcuse, 1988: 188)

Hegel situará esse desdobramento ético em três momentos decisivos:

na família, na sociedade civil e no Estado, do quais nos ocuparemos a seguir:

A família, para Hegel é berço originário da propriedade, do casamento,

dos filhos e de sua educação. É através da família que damos os primeiros

passos em direção à comunidade e ao conjunto de valores apreendidos e

vivenciados pela educação. Pela família ascendemos ao mundo da cultura de

valores vividos em uma sociedade. Através dela, aprendemos a compartilhar

um conjunto de valores que nos formarão para uma consciência e vontade

coletiva, preparando-nos para a convivência social. Não é difícil seguirmos a

lógica dessa formação e do papel originário que a família constitui para a

formação liberal como processo constitutivo de nossa educação. É aqui que

aprendemos a “ser por nós próprios” ou “fazermo-nos por nós mesmos”, como

vulgarmente falamos da ideologia introjetada. Para Hegel, esse papel decorre e

está diretamente ligado à forma originária da propriedade da terra e, por isso

mesmo, constitui seu berço original. Contudo, seu destino como família é

contingente, haja vista sua dissolução, dada pelo crescimento dos filhos e pela

necessidade de sua reprodução na constituição de novas famílias.

“A família tem sua ‘realidade exterior’ na propriedade,

mas a propriedade também destrói a família. As crianças crescem e estabelecem com suas posses novas famílias possuidoras de propriedades. A unidade ‘natural’ da família fica, pois, partida em uma porção de grupos de proprietários em competição, proprietários que visam essencialmente seus interesses egoísticos particulares.” (Marcuse, 1988: 190-191)

Da família, como fundamento natural da ordem social, partimos agora

para o que imediatamente se impõe para além dela, qual seja: para um

conjunto de indivíduos emancipados de suas famílias que buscam a satisfação

de seus interesses pessoais na sociedade civil.

“A dissolução da família significa o aparecimento de

pessoas independentes e reconhecidas como tais pela sua

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maioridade, bem como de uma multiplicidade de novas famílias a serem constituídas. A inter-relação se faz então necessária para a realização de interesses e satisfação das necessidades. Compete à sociedade civil constituir a mediação social da liberdade” (Weber, 1993:114)

Portanto, do conjunto de indivíduos provenientes das famílias

dissolvidas, surge agora um conjunto de vontades e interesses de indivíduos

querendo realizar sua satisfação. Estamos no seio da sociedade civil que Hegel

denominou hobesianamente como “o campo de batalha do interesse privado

individual de todos contra todos” (Conferir Filosofia do Direito, &289). Esse

campo de batalha é o campo da satisfação das necessidades dos indivíduos.

“A sociedade civil é constituída a partir de todo um

conjunto de necessidades dos indivíduos. São as diferenças existentes entre os seus membros que provocam essa multiplicidade de necessidades. A sua satisfação implica uma relação de dependência universal. A ‘forma da universalidade’ requer que a satisfação de minhas necessidades inclua a satisfação das necessidades de todos os outros. Ao mesmo tempo em que os outros são meios para a satisfação de minhas necessidades sou o meio para a satisfação das necessidades dos outros. É nesse sentido que o particular se torna universal, pois a realização dos indivíduos inclui, necessariamente, a sua objetivação. É uma concepção falsa a de o indivíduo ser livre, na medida em que satisfaz as suas necessidades no estado natural (imediato), sustenta Hegel. As necessidades imediatas ou naturais só podem ser satisfeitas enquanto unidas às necessidades sociais. Nessa interdependência e reciprocidade na satisfação das necessidades, o ‘egoísmo subjetivo se transforma em contribuição à satisfação das necessidades dos demais’ (Filosofia do Direito, &199). O movimento dialético entre o particular e o universal, pensa Hegel, faz com que, cada um, ao ganhar e produzir para si, ganhe e produza, automaticamente, para todos. Constitui-se, dessa forma, a participação de cada um no patrimônio geral”. (Weber, 1993: 118-119).

Como vemos, é na apropriação da fórmula de Adam Smith – de que o

egoísmo privado vai ao encontro da satisfação do progresso coletivo – que

Hegel reencontra um caminho para definir a dimensão da sociedade liberal

moderna. Ao se constituir em campo de batalha de todos contra todos, a

sociedade civil se torna o campo da afirmação da própria interdependência

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entre os indivíduos, pelas necessidades que coletivamente temos que

sustentar e realizar por essa mesma interdependência.

Contudo, resta ainda descrever que o indivíduo é, também, neste

momento da análise Hegeliana, parte constitutiva de uma classe social

determinada, na qual se assentará a segunda base fundamental do Estado.

Por conta da tríade de elementos sob a qual o sentido dessa sociedade se

instaura, são três as classes: a classe substancial ou imediata, constituída pela

agricultura, por aqueles que trabalham diretamente com os produtos naturais

do solo; b) a classe reflexiva ou formal, que é responsável por sua subsistência

a partir do próprio trabalho e da reflexão: é a classe industrial que constitui o

núcleo central da sociedade civil. Segundo Hegel, esta classe é a classe

intermediária, a classe das mediações. Por fim, a classe universal, aqui ainda

não referida, mas que se ocupa “dos interesses gerais da situação social”

(Filosofia do Direito, &205) e que formará a burocracia estatal cujo interesse

pessoal deverá estar à serviço da coletividade.

Para Hegel, a diferença entre os indivíduos está assentada na diferença

de habilidades tida como natural e fazem, por sua vez, a diferença na

desigualdade da quantidade dos patrimônios.

Posta estas diferenças e a definição sobre as classes sociais, Hegel

situa ainda um elemento decisivo para a transição entre a sociedade e o

Estado, as corporações. As corporações são a primeira mediação rumo à

universalidade da realização dos interesses que situam a disputa interna da

sociedade civil, tomada como campo de batalha entre os indivíduos em sua

busca pela satisfação de seus interesses particulares.

As corporações são expressão da complexificação dos diferentes jogos

de interesse existentes dentro de uma sociedade internamente em luta pela

afirmação de suas necessidades e sua reprodução. São também resultado da

crescente divisão de trabalho instaurada dentro da sociedade civil.

“O que caracteriza a sociedade civil é sua multiplicação

constante em novas particularidades. Nela ocorre uma divisão de trabalho de forma cada vez mais complexa, em diferentes ramos. As corporações são organizações ou determinações surgidas a partir dessa divisão de trabalho e do que há de comum nas diferentes atividades particulares. De acordo com suas habilidades específicas, o indivíduo

15

chega a ser membro da organização, que, segundo Hegel, visa a defender os interesses comuns (Weber,1993:129).

Por isso, elas são, “acima de tudo, um instrumento ideológico, uma

entidade que exorta o indivíduo a trabalhar por um ideal desprovido de

existência, a finalidade não egoística do todo”.(Marcuse,1988:198). Mas, se as

corporações são a expressão mais organizada dos jogos de interesses

existentes dentro da sociedade, elas ainda não são a expressão da

universalidade a que o reino da liberdade deve efetivamente afirmar. Pelo

contrário. Sua própria atividade deve ser regulada pela instância superior, pelo

Estado.

Portanto, acima das corporações, coloca-se agora como centro da

atividade política, o Estado. “O estado é um sujeito no sentido estrito da

palavra, isto é, o estado é o instrumento e o fim real das ações de todos os

indivíduos que, agora, se colocam sob ‘leis e princípios universais’” (Marcuse,

1988:198) e que ao que se diz, pretende ser a forma viva pela qual os

interesses privados chegam ao seu grau de universalidade na forma dos

interesses comuns da coletividade.

Por conta disso e da expectativa de afirmação da liberdade que havia

sido a tônica do desenvolvimento da exposição hegeliana do desdobramento

do espírito liberal moderno, fica imediatamente ainda a pergunta: como seria

possível conciliar o livre jogo de interesses privados com o interesse coletivo da

própria comunidade em que estes interesses e disputas se encontram? Ou

perguntado de outra forma, como harmonizar os interesses pessoais e o jogo

egoístico da sociedade civil com os interesses da ordem pública?

Para Hegel, essa possibilidade fica transparente a partir da leitura do

parágrafo 155, de sua Filosofia do Direito: “Nessa identidade da vontade

universal e da vontade particular, coincidem o dever e o direito; por meio do

ético, os homens têm direitos, na medida em que têm deveres e deveres na

medida em que têm direitos”. Precisando: temos direitos na medida em que

temos deveres e deveres, na medida de termos direitos. Por esta medida,

considerada como afirmação da vontade livre dos indivíduos, não podemos

prescindir nem de direitos, nem de deveres. Não há como termos apenas

direitos ou apenas deveres. Se não tivermos direitos, não temos por que ter

16

deveres, justamente porque só o homem livre pode ter deveres e por eles se

responsabilizar.

Esta relação de interdependência entre direitos e deveres repõe a

questão acima da coincidência entre os interesses particulares e o interesse

coletivo. O estado não pode exigir nada além daquilo que o direito prescreve

em relação aos cidadãos. A mesma relação se impõe no sentido inverso. Nesta

reciprocidade é que coincide o particular e o coletivo na forma da

universalidade ética que o estado se propõe a gerenciar e a afirmar através da

universalidade da lei e do estado-de-direito em que todo estado deve fundar-

se.

Por último, temos que, aqui, precisar um papel particular para a teoria do

estado que Hegel propõe, superando as posições dos filósofos contratualistas

que definiam o Estado como uma criação artificial derivada do contrato entre os

membros da sociedade civil. Para Hegel, o Estado não é mais resultado desse

contrato haja vista que, por esta perspectiva, ele seria uma instância qualquer

dessa sociedade e sua legitimidade não alcançaria as mediações necessárias

que incluem a vida ética processada no conjunto de princípios que a sociedade

constrói na afirmação coletiva de valores. O Estado não é um contrato ou seu

resultado. Pelo contrário, ele se torna seu garantidor, o princípio que dá

fundamento ao direito, e, portanto, garantidor do próprio contrato e de todas as

decorrências que foram construídas, tanto da apresentação do direito abstrato,

quanto aquelas afirmadas na moralidade com o direito da vontade subjetiva. O

Estado é princípio da vida social e de seus valores. Posto ao fim, ele desmente

a ilusão de que o direito e a moral possam ser dados apenas por si mesmos

sem suas devidas mediações nas instituições éticas que a sociedade, em sua

dinâmica, concretiza na forma que Hegel denominará ser o “espírito do povo”.

Mesmo porque, o direito e a moral vividos na forma da sociedade civil e

seu espírito tornam-se profundamente inconscientes de seu sentido e de suas

conseqüências, por aquilo que podemos nos desresponsabilizar em função da

satisfação de interesses privados. Talvez por isso compreendamos mais

exatamente a necessidade de Hegel ter colocado o Estado como a instância

racional daquilo que a sociedade liberal moderna, em sua suposta autonomia,

não poderá viver por si mesma, apenas na idéia do Estado, já que, em seu

17

fundamento, a sociedade civil só pode fazer referência ao livre jogo de

satisfação dos interesses privados. OBSERVAÇÕES FINAIS

Ao longo da história de debates em torno da obra hegeliana, alguns o

acusaram de promover e defender o absolutismo alemão e ser irradiador

indireto do ideário do pensamento nazista do séc XX na forma do Estado

totalitário. Não parece ser este o caso. Outros, por óticas bem diversas e pelas

razões que também apresentamos, como por exemplo Weil e Marcuse,

analisam a obra hegeliana sob uma perspectiva radicalmente diferente, sob a

perspectiva do liberalismo que aqui também procuramos situar.

Contudo, e muito freqüentemente, a vulgarização da crítica feita a Hegel

não possibilita compreender mais diretamente a riqueza de sua apresentação e

de como a sociedade burguesa tramou sua lógica e sua ideologia na forma da

universalização da liberdade.

Nesse sentido, quando temos a oportunidade de tomar contato com as

figuras que tecem a ordem interna dessa dialética em seu processo, quando

vemos o desdobramento das figuras do direito abstrato, da moralidade e da

eticidade mostrando suas determinações, seus encadeamentos e

desdobramentos, podemos descobrir alguns importantes segredos que tramam

a eficácia do arsenal ideológico em que a sociedade burguesa se assenta.

Lidos a partir da crítica à sociedade burguesa podemos compor um conjunto

muito mais coerente do que supostamente imaginamos quando nos afixamos

apenas pelo sentido imediato de seu idealismo. Muito além da perspectiva de

uma simples totalidade em que figurariam internamente vários elementos

meramente dispersos, Hegel, na verdade, mostra a força de um conjunto de

conceitos organizados profundamente na vida moral e institucional da

sociedade. Seu entendimento é que poderá nos dar a medida da crítica da

forma particular com que a burguesia produziu e produz a idéia de liberdade.

Por conta disso, é que aqui recuperaremos brevemente alguns

elementos, que anteriormente expusemos, para dizer da apresentação

hegeliana e que achamos importantíssimos para precisar a estrutura e o

18

formato dos fundamentos da sociedade liberal e que, indiretamente, nos fazem

a medida do poder instituído e enraizado na vida dessa sociedade.

Pois bem. Recordemos brevemente alguns destes passos:

Primeiramente no direito abstrato. Aqui a vontade parece como

determinação primária, como princípio da universalização de que todos sejam

livres. Em seu contraponto, ficam esquecidas as vontades alienadas desse

processo e que, por conta disso, não mais podem entrar no jogo em que a

sociedade liberal se fundou. Poderíamos criticar este entendimento dizendo

que isso obviamente não seria mais universalização. Contudo, é isso mesmo. A

universalização só acontece por referência a esta positividade a que o próprio

direito pode afirmar deste princípio, não as condições que o tornam princípio

(Justamente porque, neste caso, não seria mais princípio). Em outros termos, o

direito só pode ter como elemento irradiador da vontade pressuposta, não sua

alienação. Brincando com seu resultado, é por isso que podemos entender

porque o direito não pode sair à cata de quem não afirmou sua vontade de

querer buscá-lo.

Na mesma seqüência de exposição ainda, a abstração da quantidade

como possibilidade de igualização das liberdades frente às diferenças entre os

indivíduos. Também a abstração da qualidade como elemento sob a qual

podemos efetuar contratos e vendermos de tudo um pouco em nossa

sociedade. Estes elementos serão fundamentais para legitimar os fundamentos

abstratos sob os quais se assentam as relações de trabalho, as relações

mercantis do trabalho e a propriedade na sociedade capitalista. Sem falar da

forma como são entendidas as diferenças entre os indivíduos, como algo

constituído por uma natureza originária, desfazendo propositadamente o

caráter histórico sobre o qual essas diferenças serão efetivamente constituídas.

Na moralidade: temos que lembrar aqui a possibilidade de como será

gerida a moral em nossa sociedade na forma da desresponsabilização dos

indivíduos por tudo aquilo que a lei não pode prever, dando conta da cultura

moral de nosso tempo, no sentido de podermos transformar a moral em algo

meramente legal, sem que tenhamos que ter nenhuma “culpa” por isso. Aqui

quero muito simplesmente não tecer maiores comentários eis que desejo evitar

ser moralista na questão. Quero apenas retratar esse campo de possibilidades,

em que a sociedade liberal acaba constituindo o conjunto das vidas privadas,

19

justamente por aquilo que ela, por força de sua razão interna, do que

afirmávamos do direito subjetivo, não pode apontar nenhuma referência última

para o que pudermos querer de nossas vidas (o que talvez, sob muitos

aspectos, seja profundamente razoável no que esta questão remete para seus

possíveis consensos).

Por fim, nossas referências à eticidade, campo que Hegel acaba por

constituir como síntese conceitual de tudo o que havia anteriormente sido

desdobrado. Acho que, na linha do que havíamos apontando, caberiam dois

pontos que, aqui também, confirmariam nossas observações. Uma, diz respeito

à sociedade civil e o que ela representa na inter-relação entre os indivíduos

quando se constitui como campo de batalha de todos contra todos que nada

mais é do que a confirmação do que é o mercado e a luta diária que travamos

a fim de nossa subsistência. A outra questão, diz da função do Estado em sua

relação com o caráter inconsciente que esta batalha da sociedade civil produz

em nossa sociedade. Hegel nos remete ao Estado, como suposta figura, que,

para além dessas competitividades, e portanto desse inconsciente, pudesse se

constituir como razão, sentido e garantia dessa mesma liberdade na forma da

reciprocidade entre deveres e direitos. Contudo, o que nos parece é que este

ordenamento não se propõe a resolver este inconsciente de uma sociedade em

luta, mas apenas assegurar a livre manifestação das vontades em seu direito,

em sua moral e em sua competição.

Portanto, tudo isso pode nos dar conta de como a liberdade na

sociedade liberal, em seu processo de abstração, nos remete às condições

mesmas da realização da sociedade capitalista na ordem dos fundamentos

egoísticos que esta sociedade organiza. Na mesma medida, podemos entender

agora como o aparato ideológico dessa sociedade, quando desvelado, pode

nos oferecer munições para sua compreensão, não apenas de sua ordem

espiritual, idealista, mas dos vínculos entre essa abstração da liberdade com

suas realizações na base material.

Sem querermos nenhum plágio, é sempre bom lermos Marx em sua

Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, segundo o qual “A filosofia alemã do

direito e do Estado é a única história alemã que está al pari com a época

moderna oficial”. Ou, de outra forma, ainda mais contundente:

20

“A crítica da filosofia alemã do direito e do Estado, que teve a mais lógica, profunda e complexa expressão em Hegel, surge ao mesmo tempo como a análise crítica do Estado moderno e da realidade a ele associada e como a negação definitiva de todas as anteriores formas de consciência na jurisprudência e política alemã, cuja expressão mais distinta e mais geral, elevada ao nível de ciência, é precisamente a filosofia especulativa do direito. Só a Alemanha poderia produzir a filosofia especulativa do direito - este pensamento extravagante e abstracto acerca do Estado Moderno, cuja realidade permanece no além (mesmo se este além fica apenas no outro lado do Reno) -, o representante alemão do Estado moderno, pelo contrário, que não toma em linha de conta o homem real, só foi possível porque e na medida em que o próprio Estado moderno não atribui importância ao homem real ou unicamente satisfaz o homem total de maneira ilusória. Em política os alemães pensaram o que as outras nações fizeram. A Alemanha foi sua consciência teórica. (grifos de Marx)” (Marx, s.d.:85).

Talvez, ao lermos Hegel possamos agora, ainda que com Marx,

desvendar um pouco mais a impossibilidade de acenarmos com a idéia do

homem concreto e os limites que cercam a trama ideológica da sociedade

liberal em sua forma de universalização da liberdade. Afinal, a sociedade liberal

moderna, na forma apresentada por Hegel, mostra ter, ao lado das proposições

que tentamos encadear, um objetivo certo e preciso: realizar a força concreta

do poder do Estado e do jogo egoístico que este Estado legitima do

ordenamento moral e jurídico das vontades presentes no reino de luta dos

interesses privados em disputa na sociedade civil.

Por esta conta, a dimensão concreta do homem fica ofuscada por aquilo

que o Estado só pode realizar abstratamente naquilo que os homens, ao

fazerem negócios privados, podem se tornar inconscientes do fim que realizam.

Esperamos, agora, ter analisado o idealismo hegeliano por outra

medida.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FLICKINGER. Hans-Georg. Marx e Hegel: o porão de uma filosofia social.

Porto Alegre, LPM & CNPQ, 1986.

21

——. Hegel: A Lógica Ambígua da Revolução Francesa. In: RIBEIRO, Renato

JANINE (Org.) Sombra e Luzes. São Paulo, Edusp, 1989. p. 33-38.

HEGEL. Coleção os Pensadores. 3 ed. São Paulo, Abril Cultural, 1985.

______. Princípios da Filosofa do Direito. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

______. Principios de la Filosofía del Derecho: o Derecho Natural y Ciencia

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KAMMER, Marcos. A dinâmica do Trabalho Abstrato na sociedade moderna –

uma leitura a partir das barbas de Marx. Porto Alegre, EDIPUCRS, 1998.

MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução: Hegel e o advento da teoria social. 4

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MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 2 ed. Brasil Editorial

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REALE, Giovanni e ANTISERI, Dario. História da Filosofia, Vol III. São Paulo,

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WEBER, Tadeu. Hegel: Liberdade Estado e História.Petrópolis, RJ, Vozes,

1993

WEFFORT, Francisco C. Os Clássicos da Política. 9 ed. Vol. 2. São Paulo, Ática, 1999.

22

EXTRATOS DA OBRA PRINCÍPIOS DA FILOSOFIA DO DIREITO2

Prefácio

A atitude do sentimento ingênuo é simplesmente a de se limitar à

verdade publicamente reconhecida, com uma confiante convicção, e de, sobre

esta firme base, estabelecer a sua conduta e a sua própria vida. A esta atitude

simples desde logo se opõe a dificuldade que resulta da infinita diversidade de

opiniões, que não permite distinguir e determinar o que nelas poderá haver de

universalmente válido; facilmente se pode, no entanto, imaginar que esta

dificuldade, verdadeira e seriamente, provém da natureza das coisas. Mas, na

realidade, aqueles que julgam tirar partido desta dificuldade ficam na situação

de não ver a floresta por causa das árvores: estão em face de um obstáculo e

de uma dificuldade que eles mesmos ergueram. Mais ainda: tal obstáculo é a

prova de que o que pretenderam não é o que é reconhecido e válido

universalmente, não é a substância do direito e da moralidade objetiva. Pois se

disso verdadeiramente se tratasse, e não da vaidade e da individualidade da

sua opinião e do seu ser, não se afastariam do direito substancial, das regras

da moralidade objetiva e do Estado, e a elas conformariam suas vidas. Mas o

homem pensa e é no pensamento que procura a sua liberdade e princípio da

sua moralidade. Esse direito, por mais nobre e divino que seja, logo se

transforma em injustiça se o pensamento só a si mesmo reconhece e apenas

se sente livre quando se afasta dos valores universalmente reconhecidos,

imaginando descobrir algo que lhe seja próprio.

(....)

O que é racional é real e o que é real é racional

Esta é a convicção de toda consciência livre de preconceitos e dela

parte a filosofia tanto ao considerar o universo espiritual como o universo

natural. Quando a reflexão, o sentimento e em geral a consciência subjetiva de

qualquer modo consideram o presente como vão, o ultrapassam e querem

saber mais, caem no vazio e porque só no presente têm realidade, eles

mesmos são esse vazio.

2 Extraído de Hegel: Princípios da Filosofia do Direito. Tradução de Orlando Vitorino. São

23

(...)

É assim que esse nosso tratado sobre a ciência do Estado nada mais

quer representar senão uma tentativa para conceber o Estado como algo

racional em si. É um escrito filosófico e, portanto, nada mais lhe pode ser mais

alheio do que a construção ideal de um Estado como deve ser. Se nele está

contido uma lição, não se dirige ela ao Estado, mas antes ensina como o

Estado, que é o universo moral, deve ser conhecido: Hic Rhodus, hic saltus.

A missão da filosofia está em conceber o que é, porque o que é é a

razão. No que se refere aos indivíduos, cada um é filho do seu tempo; assim

também para a filosofia que, no pensamento, pensa o seu tempo. Tão grande

loucura é imaginar que uma filosofia ultrapassará o mundo contemporâneo

como acreditar que um indivíduo saltará para fora de seu tempo, transporá

Rhodus. Se uma teoria ultrapassar estes limites, se construir um mundo tal

como entenda dever ser, este mundo existe decerto, mas apenas na opinião,

que é um elemento insconsciente sempre pronto a adaptar-se a qualquer

forma.

Um pouco modificada, a fórmula expressiva seria esta:

Aqui esta a rosa, aqui vamos dançar.

O que há entre a razão como espírito consciente de si e a razão como

realidade dada, o que separa a primeira da segunda e a impede de se realizar

é o estar ela enleada na abstração sem que se liberte para atingir o conceito.

Introdução

1 – O objeto da ciência filosófica do direito é a Idéia do direito, quer

dizer, o conceito do direito e a sua realização.

Nota – Do que a filosofia se ocupa é de Idéias, não do conceito em

sentido restrito; mostra, pelo contrário, que este é parcial e inadequado,

revelando que o verdadeiro conceito (e não o que assim se denomina muitas

vezes e não passa de uma determinação abstrata do intelecto) é o único que

possui realidade justamente porque ele mesmo o assume. Toda realidade que

Paulo, Martins Fontes, 2000.

24

não for a realidade assumida pelo próprio conceito é existência passageira,

contingência exterior, opinião, aparência superficial, erro, ilusão, etc. A forma

concreta que o conceito a si mesmo se dá ao realizar-se está no conhecimento

do próprio conceito, o segundo momento distinto da sua forma de puro

conceito.

2 – A ciência do direito faz parte da filosofia. O seu objeto é, por

conseguinte, desenvolver, a partir do conceito, a Idéia, porquanto esta é a

razão do objeto, ou, o que é o mesmo, observar a evolução imanente própria

da matéria. Como parte da filosofia, tem um ponto de partida definido que é o

resultado e a verdade do que precede e do qual constitui aquilo a que se

chama prova. Quanto a sua gênese, o conceito do direito encontra-se portanto,

fora da ciência do direito. A sua dedução está aqui suposta e terá de ser aceita

como dado.

(....)

4 – O domínio do direito é o espírito em geral; aí, a sua base própria, o

seu ponto de partida está na vontade livre, de tal modo que a liberdade

constitui a sua substância e o seu destino e o que o sistema do direito é o

império da liberdade realizada, o mudo do espírito produzido como uma

segunda natureza a partir de si mesmo.

33 – Segundo as fases do desenvolvimento da idéia da vontade livre em

si e para si, a vontade é:

a) Imediata. O seu conceito é portanto abstrato: a personalidade; e a sua

existência empírica é coisa exterior imediata, é o domínio do direito abstrato ou

formal;

b) A vontade que da existência exterior regressa a si é aquela

determinada como individualidade subjetiva em face do universal (sendo esta

em parte, como bem, interior, e em parte, como mundo dado, exterior), sendo

estes dois aspectos da idéia obtidos apenas um por intermédio do outro; é a

idéia dividida na sua existência particular, o direito da vontade subjetiva em

face do direito do universo e do direito da idéia que só em si existe ainda, é o

domínio da moralidade subjetiva;

25

c) Unidade e verdade destes dois fatores abstratos: a pensada idéia do

Bem realizada na vontade refletida sobre si e no mundo exterior, embora a

liberdade como substância exista não só como real e necessária mas ainda

como vontade subjetiva. É a idéia na sua existência universal em si e para si, é

a moralidade objetiva.

Por sua vez, a substância é simultaneamente:

a) Espírito natural, família;

b) Espírito dividido e fenomênico, sociedade civil;

c) O Estado como liberdade que, na livre autonomia de sua vontade

particular, tem tanto de universal como de objetiva; tal espírito orgânico e real

(a) de um povo torna-se real em ato e revela-se através (b) de relações entre

os diferentes espíritos nacionais (c) na história universal como espírito do

mundo cujo direito é o que há de supremo.

DIREITO ABSTRATO 34 – A vontade livre em si e para si, tal como se revela no seu conceito

abstrato, faz parte da determinação específica do imediato. Neste grau, é ela

realidade atual que nega o real e só consigo apresenta uma relação apenas

abstrata. É a vontade do sujeito, vontade individual, encerrada em si mesma. O

elemento de particularidade que há na vontade é que ulteriormente vem

oferecer um conteúdo de fins definidos; como, porém, ela é uma

individualidade exclusiva, tal conteúdo constitui para ela um mundo exterior

imediatamente dado.

36 – 1º É a personalidade que principalmente contém a capacidade do

direito e constitui o fundamento (ele mesmo abstrato) do direito abstrato, por

conseguinte formal. O imperativo do direito é portanto: sê uma pessoa e

respeita os outros como pessoas.

40 – O direito começa por ser a existência imediata que a si se dá a

liberdade de um modo também imediato nas formas seguintes:

a) A posse, que é propriedade; aqui, a liberdade é essencialmente

liberdade da vontade abstrata ou, em outros termos, de uma pessoa particular

que só se relaciona consigo mesma;

26

b) A pessoa que se diferencia de si se relaciona com outra pessoa e

ambas só como proprietárias existem uma para a outra; a identidade delas, que

existe em si (virtual), adquire a existência pelo trânsito da propriedade de uma

para outra, com mútuo consentimento e permanência do comum como direito.

Assim se obtém o contrato;

c) A vontade como diferenciada na relação consigo mesma (a) não

porque se relacione com outra pessoa, mas (b) porque é em si mesma vontade

particular que se opõe ao seu ser em si e para si, constitui a injustiça e o crime.

41 – Deve a pessoa dar-se um domínio exterior para a sua liberdade a

fim de existir como idéia. Porque nesta primeira determinação, ainda

completamente abstrata, a pessoa é a vontade infinita em si e para si, tal coisa

distinta dela, que pode constituir o domínio da sua liberdade, determina-se

como o que é imediatamente diferente e separável.

44 – Tem ao homem o direito de situar a sua vontade em qualquer coisa;

esta torna-se, então, e adquire-a como fim substancial (que em si mesma não

possui) , como destino e como alma, a minha vontade. É o direito de

apropriação que o homem tem sobre todas as coisas.

45 – Há alguma coisa que o Eu tem submetido ao seu poder exterior.

Isso constitui a posse; e o que constitui o interesse particular dela reside nisso

de o Eu se apoderar de alguma coisa para a satisfação das suas exigências,

dos seus desejos e do seu livre-arbítrio. Mas é aquele aspecto pelo qual Eu,

como vontade livre, me torno objetivo para mim mesmo na posse e, portanto,

pela primeira vez real, é esse aspecto que constitui o que há naquilo de

verídico e jurídico, a definição da propriedade.

62 – Só quando o uso ou a posse são temporários ou parciais (nos

casos em que a posse é apenas uma possibilidade de uso parcial e temporário)

é que podem se distinguir da propriedade.

65 – Posso eu desfazer-me da minha propriedade (porquanto ela só é

minha na medida em que nisso tenho a minha vontade), ou abandoná-la como

27

se não tivesse dono (derelinquo), ou transmiti-la à vontade de outrem – mas só

posso fazer na medida em que a coisa é, por natureza, exterior.

67 – Posso ceder a outrem aquilo que seja produto isolado das

capacidades e faculdades particulares da minha atividade corporal e mental ou

do emprego delas por um tempo limitado, pois esta limitação confere-lhe uma

relação de extrinsecidade com a minha totalidade e universalidade. Mas se eu

alienasse todo o meu tempo de trabalho e a totalidade da minha produção,

daria a outrem a propriedade daquilo que tenho de substancial, de toda a

minha atividade e realidade, da minha personalidade.

72 – A propriedade, que no que tem de existência e extrinsecidade já

não se limita a uma coisa mas inclui também o fator de uma vontade (por

conseguinte estranha), é estabelecida pelo contrato. É neste processo que

surge e se resolve, na medida em que se renuncia à propriedade por um ato de

vontade comum com outra pessoa, a antítese de ser proprietário para si

mesmo e de excluir os outros.

75 – As duas partes contratantes comportam-se uma perante a outra

como duas pessoas independentes e imediatas. Por conseguinte:

a) O contrato é produto do livre-arbítrio;

b) A vontade idêntica que tem de existir no contrato só é afirmada

por estas duas pessoas, é pois comum mas não universal em e para si;

c) O objeto do contrato é uma coisa exterior e particular, pois só

assim pode estar submetido à simples volição que as partes têm de aliená-la.

82 – No contrato, o direito em si está como algo de suposto, e a sua

universalidade intrínseca aparece como o que é comum à vontade arbitrária e à

vontade particular. Esta fenomenalidade do direito – em que ele mesmo e a

sua existência empírica essencial, a vontade particular, coincidem

imediatamente – torna-se evidente como tal quando, na injustiça, adquire a

forma de oposição entre o direito em si e a vontade particular, tornando-se

então um direito particular. Mas a verdade desta aparência é o seu caráter

negativo, e o direito, negando esta negação, restabelece-se e, utilizando este

28

processo de mediação, regressando a si a partir da sua negação, acaba por

determinar-se como real e válido aí mesmo onde começara por se em si e

imediato.

85 – O conflito em que a coisa é reivindicada com um motivo jurídico,

que é o que constitui o domínio do processo civil, contém o reconhecimento do

direito como universal e soberano, de tal modo que a coisa deverá pertencer a

quem tenha direito a ela. (...)

A MORALIDADE SUBJETIVA

106 – A subjetividade constitui agora a determinação específica do

conceito. Diferente que é do conceito enquanto tal, da vontade em si, ou,

noutros termos, como vontade do sujeito, como vontade do indivíduo que,

sendo para si, é algo que existe (e implica também um caráter imediato), assim

a subjetividade dá a existência do conceito. Um plano superior é definido para

a liberdade. Aquela parte da existência em que o elemento real se junta agora

à idéia é a subjetividade da vontade: só na vontade como subjetiva é que a

liberdade ou vontade em si pode ser real em ato.

107 – A autodeterminação da vontade é também um momento do

conceito e a subjetividade não é apenas o que ele tem de existência mas é

ainda a definição própria. Definida como subjetiva, livre de si, a vontade

começa por ser um conceito que carece de uma existência para ser também

idéia. Daqui se conclui que o ponto de vista moral assumirá a forma de direito

da vontade subjetiva. Segundo este direito, a vontade só reconhece o que é

seu e só existe naquilo em que se encontra como subjetiva.

113 – A expressão da vontade como subjetiva ou moral é a ação.

114 – O direito da vontade moral subjetiva contém os três seguintes

aspectos:

29

a) O direito abstrato ou formal da ação: o seu conteúdo em geral,

tal como é realizado na existência imediata, deve ser meu, deve ter sido

projetado pela minha vontade subjetiva;

b) O particular da ação é o seu conteúdo interior; 1º - trata-se da

intenção quando o seu caráter universal é determinado para mim, que é o que

constitui o valor da ação e aquilo pelo qual ela vale para mim; 2º - trata-se do

bem-estar quando o seu conteúdo se apresenta como fim particular do meu ser

particular;

c) Este conteúdo como interior que assume a sua universalidade,

a sua objetividade em si e para si, é o fim absoluto da vontade, o bem que é

acompanhado, no domínio da reflexão, pela oposição da universalidade

objetiva, em parte na forma de mal, em parte na forma de certeza moral.

A MORALIDADE OBJETIVA

142 – A moralidade objetiva é a idéia da liberdade enquanto vivente

bem, que na consciência de si tem o seu saber e o seu querer e que, pela ação

desta consciência, tem a sua realidade. Tal ação tem o seu fundamento em si e

para si, e a sua motora finalidade na existência moral objetiva. É o conceito de

liberdade que se tornou mundo real e adquiriu a natureza da consciência de si.

145 – Como a moralidade objetiva é o sistema destas determinações da

Idéia, dotada de um caráter racional, é, deste modo, que a liberdade, ou a

vontade que existe em si e para si, aparece como realidade objetiva, círculo de

necessidade, cujos momentos são os poderes morais que regem a vida dos

indivíduos e que nestes indivíduos e nos seus acidentes têm sua manifestação,

sua forma e sua realidade fenomênicas.

151 – Na simples identidade com a realidade dos indivíduos, a

moralidade objetiva aparece como o seu comportamento geral, como costume.

O hábito que se adquire é como que uma segunda natureza colocada no

lugar da vontade primitiva puramente natural, e que é a alma, a significação e

realidade da sua existência. É o espírito dado como um mundo cuja substância

assim ascende pela primeira vez ao plano do espírito.

30

156 – A substância moral, como o que contém a consciência refletida de

si ligada ao seu conceito, é o espírito real de uma família e de um povo.

157 – O conceito desta idéia só será o espírito como algo de real e

consciente de si se for objetivação de si mesmo, movimento que percorre a

forma dos seus diferentes momentos. É ele:

a) O espírito moral objetivo imediato ou natural: a família. Esta

substancialidade desvanece-se na perda da sua unidade, na divisão e no ponto

de vista do relativo; torna-se então:

b) Sociedade civil, associação de membros, que são indivíduos

independentes, numa universalidade formal, por meio das carências, por meio

da constituição jurídica como instrumento de segurança da pessoa e da

propriedade e por meio de uma regulamentação exterior para satisfazer as

exigências particulares e coletivas. Este Estado exterior converge e reúne-se

na

c) Constituição do Estado, que é o fim e a realidade em ato da

substância universal e da vida pública nela consagrada.

158 – Como substancialidade imediata do espírito, a família determina-

se pela sensibilidade de que é una, pelo amor, de tal modo que a disposição de

espírito correspondente é a consciência em si e para si e de nela existir como

membro, não como pessoa para si.

160 – A família realiza-se em três aspectos:

a) Na forma do seu conceito imediato, como casamento;

b) Na existência exterior: propriedade, bens de família e cuidados

correspondentes;

c) Na educação dos filhos e na dissolução da família.

181 – De um modo natural e, essencialmente, de acordo com o princípio

da personalidade, divide-se a família numa multiplicidade de famílias que em

geral se comportam como pessoas concretas independentes e têm, por

conseguinte, uma relação extrínseca entre si. Noutros termos: os momentos,

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reunidos na unidade da família como idéia moral objetiva que ainda reside no

seu conceito, por este conceito devem ser libertados a fim de adquirirem uma

realidade independente. É o grau da diferença; de início expresso

abstratamente, confere a determinação à particularidade que tem, no entanto,

uma relação com o universal. Mas nesta relação o universal é apenas o

fundamento interior e, por conseguinte, só de uma maneira formal, e limitando-

se a aparecer, existe no particular.

Assim, esta situação produzida pela reflexão apresenta primeiro a perda

da moralidade objetiva ou, como esta enquanto essência é necessariamente

aparência, constitui a região fenomênica dessa moralidade: a sociedade civil.

182 – A pessoa concreta que é para si mesma um fim particular como

conjunto de carências e como conjunto de necessidade natural e de vontade

arbitrária constitui o primeiro princípio da sociedade civil. Mas a pessoa

particular está, por essência, em relação com a análoga particularidade de

outrem, de tal modo que a cada uma se afirma e satisfaz por meio da outra e é

ao mesmo tempo obrigada a passar pela forma da universalidade, que é o

outro princípio.

187 – Como cidadãos deste Estado, os indivíduos são pessoas privadas

que têm como fim o seu próprio interesse: como este só é obtido através do

universal, que assim aparece como um meio, tal fim só poderá ser atingido

quando os indivíduos determinarem o seu saber, a sua vontade e a sua ação

de acordo com um modo universal e se transformarem em anéis da cadeia que

constitui o conjunto. O interesse da idéia, que não está explícita na

consciência dos membros da sociedade civil enquanto tais, é aqui o processo

que eleva a sua individualidade natural à liberdade formal e à universalidade

formal do saber e da vontade, por exigência natural e também por

arbitrariedade das carências, o que dá uma cultura à subjetividade particular.

188 – Contém a sociedade civil os três momentos seguintes:

A – A mediação da carência e a satisfação dos indivíduos pelo seu

trabalho e pelo trabalho e satisfação de todos os outros: é o sistema de

carências;

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B – A realidade do elemento universal de liberdade implícito neste

sistema é a defesa da propriedade pela justiça;

C – A preocupação contra o resíduo de contingência destes sistemas e a

defesa dos interesses particulares como algo de administração e pela

corporação.

198 – No entanto, o que há de universal e de objetivo no trabalho liga-se

à abstração que é produzida pela especificidade dos meios e das carências e

de que resulta também a especificação da produção e a divisão dos trabalhos.

Pela divisão, o trabalho do indivíduo torna-se mais simples, aumentando a sua

aptidão para o trabalho abstrato bem como a quantidade da sua produção.

Esta abstração das aptidões e dos meios completa, ao mesmo tempo, a

dependência mútua dos homens para a satisfação das outras carências, assim

se estabelecendo uma necessidade total.

Em suma, a abstração da produção leva a mecanizar cada vez mais o

trabalho e, por fim, é possível que o homem seja excluído e a máquina o

substitua.

199 – Na dependência e na reciprocidade do trabalho e da satisfação

das carências, a apetência subjetiva transforma-se numa contribuição para a

satisfação das carências de todos os outros. Há uma tal mediação do particular

pelo universal, um tal movimento dialético, que cada um, ao ganhar e produzir

para sua fruição, ganha e produz também para fruição dos outros. (...)

200 – A possibilidade de participação na riqueza universal, ou riqueza

particular, está desde logo condicionada por uma base imediata adequada (o

capital); está depois condicionada pela aptidão e também pelas circunstâncias

contingentes em cuja diversidade está a origem das diferenças de

desenvolvimento dos dons corporais já por natureza desiguais. Neste domínio

da particularidade, tal diversidade verifica-se em todos os sentidos e em todos

os graus e associada a todas as causas contingentes e arbitrárias que

porventura surjam. Conseqüência necessária é a desigualdade das fortunas e

das aptidões individuais.

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203 – a) A riqueza da classe substancial reside nos produtos naturais de

um solo que ela trabalha. Este solo só pode ser, rigorosamente, propriedade

privada e o que exige é não uma exploração indeterminada, mas uma

transformação objetiva. (...)

204 – b) Ocupa-se a classe industrial da transformação do produto

natural, e seus meios de subsistência vêm-lhe do trabalho, da reflexão, da

inteligência e também da mediação das carências e trabalhos dos outros. (...)

205 – c) A classe universal ocupa-se dos interesses gerais, da vida

social. Deverá ela ser dispensada do trabalho direto requerido pelas carências,

seja mediante a fortuna privada, seja mediante uma indenização dada pelo

Estado que solicita a sua atividade, de modo que, nesse trabalho pelo

universal, possa encontrar satisfação o seu interesse privado.

208 – Enquanto particularidade do querer e do saber, o princípio deste

sistema de carências não contém o universal em si e para si: o universal da

liberdade que, de um modo abstrato, é o direito de propriedade. Todavia, não

reside ele apenas em si mas também na sua realidade reconhecida, pois a

jurisdição garante a sua segurança.

215 – Do ponto de vista do direito da consciência de si, a obrigação para

com a lei implica a necessidade de que a lei seja universalmente conhecida.

255 – Ao lado da família, a corporação constitui a segunda raiz moral do

Estado, a que está implantada na sociedade civil. (...)

256 – O fim da corporação, que é limitado e finito, tem a sua verdade no

fim universal em si e para si e na sua realidade absoluta. (...) O domínio da

sociedade civil conduz, pois, ao Estado.

257 – O Estado é a realidade em ato da Idéia moral objetiva, o espírito

como vontade substancial revelada, clara para si mesma, que se conhece e se

pensa, e realiza o que sabe e porque sabe.

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258 – O Estado, como realidade em ato da vontade substancial,

realidade que esta adquire na consciência particular de si universalizada, é o

racional em si e para si: esta unidade substancial é um fim próprio absoluto,

imóvel, nele a liberdade obtém o seu valor supremo, e assim este último fim

possui um direito soberano perante os indivíduos que em serem membros do

Estado têm o seu mais elevado dever.

259 – A Idéia do Estado:

a) Possui uma existência imediata e é o Estado individual como

organismo que se refere a si mesmo – é a constituição do Direito político

interno;

b) Transita à relação do Estado isolado com outros Estados – é o

direito externo;

c) É idéia universal como gênero e potência absoluta sobre os

Estados individuais, o espírito que a si mesmo dá a sua realidade no

progresso da história universal.

267 – A necessidade no ideal é o desenvolvimento da idéia na

intrinsecidade de si mesma. Como substância objetiva distinta da anterior, é o

organismo do Estado, o Estado propriamente político.

274 – Como o espírito só é real no que tem consciência de ser, como o

Estado, enquanto espírito de um povo, é uma lei que penetra toda a vida desse

povo, os costumes e a consciência dos indivíduos, a Constituição de cada povo

depende da natureza e cultura da consciência desse povo. É nesse povo que

reside a liberdade subjetiva do Estado e, portanto, a realidade da Constituição.

289 – (...)

Nota – Assim como a sociedade civil é o campo de batalha dos

interesses individuais de todos contra todos, assim aqui se trava o conflito entre

este interesse geral e os interesses da comunidade particular e, por outro lado,

entre as duas espécies de interesses reunidas e o ponto de vista mais elevado

do Estado e suas determinações. (...).