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Febre Robin Kook Prólogo As moléculas venenosas do benzeno chegavam num crescendo à medula óssea. A substância estranha chegava com o sangue e era transportada por entre as trabéculas ósseas para os recantos mais íntimos do delicado tecido. Era como. se uma furiosa horda de bárbaros estivesse caindo sobre Roma. E o resultado era igualmente desastroso. A complicada natureza da medula, destinada a fabricar a maior parte dos elementos celulares do sangue, sucumbia ante os invasores. Todas as células expostas ao benzeno eram atingidas. A natureza da substância química que seccionava a membrana celular era como o aço que corta a manteiga. Células vermelhas ou glóbulos brancos, jovens ou maduros, não fazia diferença. Dentro de algumas células felizes, onde apenas entravam umas poucas moléculas de benzeno, as enzimas eram capazes de inativar a substância química. Na maioria das outras, a destruição das membranas interiores foi imediata. Em minutos, a concentração do benzeno havia atingido tal grau que milhares de moléculas venenosas tinham alcançado o próprio cerne da medula, as células primitivas, originais, delicadamente estruturadas. Eram unidades que se dividiam ativamente, servindo como fonte das células sangüíneas circulantes, e sua atividade trazia o testemunho de centenas de milhões de anos de evolução. Aqui, representado a cada instante, estava o incrível mistério da vida, uma organtástica do que o mais tumultuoso dos so. As moléculas de benzeno penetravam indis- nessas atarefadas células reprodutoras, ordenada reprodução das moléculas de ADN. dessas células interrompiam o processo num suspiro de agonia ou, libertadas do central, caíam como animais raivosos, numa atividade, até que adviesse a morte. as moléculas de benzeno roram lavadas pé-

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Febre

Robin Kook

Prólogo As moléculas venenosas do benzeno chegavam num crescendo à medula óssea. A substância estranha chegava com o sangue e era transportada por entre as trabéculas ósseas para os recantos mais íntimos do delicado tecido. Era como. se uma furiosa horda de bárbaros estivesse caindo sobre Roma. E o resultado era igualmente desastroso. A complicada natureza da medula, destinada a fabricar a maior parte dos elementos celulares do sangue, sucumbia ante os invasores. Todas as células expostas ao benzeno eram atingidas. A natureza da substância química que seccionava a membrana celular era como o aço que corta a manteiga. Células vermelhas ou glóbulos brancos, jovens ou maduros, não fazia diferença. Dentro de algumas células felizes, onde apenas entravam umas poucas moléculas de benzeno, as enzimas eram capazes de inativar a substância química. Na maioria das outras, a destruição das membranas interiores foi imediata. Em minutos, a concentração do benzeno havia atingido tal grau que milhares de moléculas venenosas tinham alcançado o próprio cerne da medula, as células primitivas, originais, delicadamente estruturadas. Eram unidades que se dividiam ativamente, servindo como fonte das células sangüíneas circulantes, e sua atividade trazia o testemunho de centenas de milhões de anos de evolução. Aqui, representado a cada instante, estava o incrível mistério da vida, uma organtástica do que o mais tumultuoso dos so. As moléculas de benzeno penetravam indis- nessas atarefadas células reprodutoras, ordenada reprodução das moléculas de ADN. dessas células interrompiam o processo num suspiro de agonia ou, libertadas do central, caíam como animais raivosos, numa atividade, até que adviesse a morte.

as moléculas de benzeno roram lavadas pé-

las repetidas ondas de sangue limpo, a medula pôde se recuperar, com exceção de uma única célula original. Havia anos que essa célula vinha produzindo uma notável progênie de glóbulos brancos, cuja função, ironicamente, era ajudar o corpo a combater os invasores estranhos. Ao penetrar no núcleo dessa célula, o benzeno danificou uma parte muito específica do ADN, porém não matou a célula. Teria sido melhor que ela houvesse morrido, pois o benzeno destruiu o delicado equilíbrio entre a reprodução e a maturação. Instantaneamente, a célula se dividiu, e as céliilas-filhas resultantes apresentaram o mesmo defeito. Não mais obedeceram ao misterioso controle central, amadurecendo em glóbulos brancos normais. Em vez disso, responderam a um desenfreado impulso para se reproduzirem de modo alterado.

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Embora parecessem relativamente normais dentro da medula, eram diferentes dos outros jovens glóbulos brancos. A habitual espessura de sua superfície estava ausente, e elas absorviam os nutrientes a uma taxa alarmante. Haviam se tom ado parasitas dentro de sua própria casa. Depois de apenas vinte divisões, havia mais de um milhão dessas células indisciplinadas. Por volta de vinte e sete divisões, mais de um bilhão; e elas começaram a se libertar da massa total. Primeiro, um pequeno número de .células doentes entrou na circulação; depois, uma corrente contínua, e por fim um dilúvio. Essas células investiram pelo corpo, impacientes para estabelecerem colônias férteis. Ao chegarem às quarenta divisões, seu número alcançava mais de um trilhão. Isso foi o início de uma agressiva e aguda leucemia mieloblástica no corpo de uma garota adolescente, que começou no dia 28 de dezembbro, dois dias após o seu décimo segundo aniversário. Seu nome era Michelle Martel, e ela não fazia idéia do que estava ocorrendo a não ser por um único sintoma: febre! 10

Uma fria manhã de janeiro aos poucos se insinuava pela frígida paisagem de Shaftesbury, New Hampshire. Relutantemente, as sombras começaram a se desfazer à medida que o céu de inverno se iluminava lentamente, revelando uma inexpressiva abóbada cinzenta e cheia de nuvens. Ia nevar, e apesar do frio pairava uma umidade no ar, um agudo lembrete de que ao longe, para o leste, jazia o Atlântico. Ao longo do rio Potomac, como uma cidade fantasma, aglomeravam-se os edifícios de tijolos vermelhos da velha Shaftesbury. O rio tinha sido o suporte, o elemento vivificador da cidade; ele brotava nas White Mountains cheias de neve, ao norte, e corria para o mar, a sudeste. Ao passar pela cidade, seu curso lento era interrompido por uma represa em ruínas e uma grande roda-d'água que não mais girava. Alinhados nas margens do rio havia quarteirões e quarteirões de fábricas vazias, reminiscências de uma era mais próspera, quando os moinhos da Nova Inglaterra constituíam o centro da indústria têxtil. No extremo sul da cidade, ao pé da Main Street, o último prédio de tijolos era ocupado por uma instituição química chamada Recycle, Ltd., uma fábrica de reciclagem de borracha, plástico e vinil. Uma nuvem de fumaça cinzenta e acre escapava de uma grande chaminé fálica e desaparecia nas nuvens. Por sobre toda a área pairava um desagradável e sufocante cheiro de borracha e plástico. Cercando o prédio havia enormes pilhas de pneumáticos abandonados, como excrementos de um monstro gigantesco. Ao sul da cidade, o rio corria por entre uma sucessão de montes arborizados, entremeados por prados cobertos de neve e orlados por cercas de pedra levantadas pelos colonos trezentos anos antes. Mais ou menos a nove quilômetros ao sul da cidade, o rio fazia uma curva preguiçosa para leste e formava uma idílica península de seis acres de terras. No 11

centro havia um lago raso, ligado ao rio por uma passagem. Por trás do lago erguia-se um monte, encimado por uma casa de fazenda branca de estilo vitoriano, com um teto de duas meias-águas e um madeiramento de evidente mau gosto. Um longo e coleante caminho, marginado de carvalhos e bordos, conduzia à Rodovia Interestadual 301, que rumava para o

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sul, na direção de Massachusetts. Cerca de vinte e cinco metros ao norte da casa havia um celeiro batido pelas intempéries, aninhado num bosque de coníferas. Na margem do lago, construída sobre pilares, havia uma cópia em miniatura da casa principal; era um galpão transformado em casa de brinquedo. Era uma linda paisagem da Nova Inglaterra, como uma figura invernal de um calendário, a não ser por um detalhe ligeiramente macabro: no lago não havia peixes, e nenhuma vegetação numa faixa circundante de cerca de dois metros. Dentro da pitoresca casa branca, a luz pálida da manhã se difundia através de cortinas rendadas. Aos poucos, a aurora que nascia fez Charles Martel sair das profundezas de um sono reconfortante. Ele girou sobre seu lado esquerdo, desfrutando de um contentamento que tivera medo de admitir nos dois últimos anos. Agora havia uma sensação de segurança e ordem em sua vida; Charles jamais esperara experimentar isso de novo depois que haviam diagnosticado que sua primeira mulher era portadora de um linfoma. Ela morrera havia nove anos, deixando Charles com três filhos para criar. A vida tinha se tornado algo duro de suportar. Mas agora tudo aquilo fazia parte do passado, e a terrível ferida tinha sarado lentamente. E então, para surpresa de Charles, até o vazio fora preenchido. Casara-se de novo havia dois anos, mas ainda receava admitir o quanto sua vida mudara para melhor. Era mais seguro e mais fácil concentrar-se em seu trabalho e nas necessidades diárias da família do que reconhecer sua nova satisfação, daí admitindo a mais fundamental de suas vulnerabilidades, a felicidade. Mas Cathryn, sua nova mulher, tomrnava essa contestação difícil, porque era uma criatura alegre e altruísta. Charles apaixonara-se por ela no dia em que a conhecera. Tinham se casado cinco meses depois. Os dois últimos anos só tinham feito crescer sua afeição. À medida que a escuridão se desfazia, Charles podia ver o perfil sereno de sua mulher adormecida. Ela estava deitada de costas, o braço direito displicentemente dobrado 12

sobre o travesseiro acima de sua cabeça. Parecia muito mais jovem do que seus trinta e dois anos, fato que inicialmente havia ressaltado a diferença de treze anos entre suas idades. Charles tinha quarenta e cinco anos, e sabia que os aparentava. Mas Cathryn parecia ter vinte e cinco. Apoiado no cotovelo, Charles contemplava as feições delicadas da mulher. Seguia o contorno do provocante bico-de-viúva, descendo por todo o comprimento do macio cabelo castanho até os ombros. O rosto, iluminado pela primeira luz da manhã, parecia-lhe radiante, e os olhos dele acompanhavam a linha ligeiramente curva do nariz de Cathryn, notando o movimento de suas narinas ao respirar. Observando-a, ele sentia um reflexo que se agitava no íntimo do seu ser. Olhou para o despertador; teria ainda vinte minutos antes que o alarme soasse. Agradecido, deixou-se escorregar para o ninho formado pela colcha e recostou-se contra sua mulher, maravilhado com a sensação de bem-estar. Pensou em seus dias futuros no instituto. O trabalho estava progredindo a um ritmo cada vez mais rápido. Experimentou uma pontada de excítação. E se ele, Charles Martel, o garoto de Teaneck, Nova Jersey, desse o primeiro passo real para solucionar o mistério do câncer? Charles sabia que aquilo estava se tornando cada vez mais possível, e a ironia consistia em que ele não era um, cientista pesquisador formalmente treinado. Era um clínico especialista em alergia quando sua primeira mulher adoeceu. Depois da morte de Elizabeth, abandonara sua lucrativa clínica para tornar-se um pesquisador em tempo integral no Weinburger Research Institute. Tinha sido uma reação

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contra a morte da mulher, e, embora alguns dos colegas lhe tivessem dito que uma mudança de carreira não era um meio saudável de solucionar o problema, ele havia vicejado no novo ambiente. Cathryn, sentindo que o marido estava acordado, virouse e viu-se envolvida num abraço apertado. Esfregando os olhos cheios de sono, ela olhou para Charles e sorriu. Ele parecia tão insolitamente travesso! - O que está se passando nesta cabecinha? - perguntou ela, sorrindo. - Eu estava apenas contemplando você. - Maravilhoso! Não há dúvida de que estou com a melhor de minhas aparências - disse Cathryn. - Você está formidável - zombou Charles, afastando uma espessa mecha de cabelo da testa da mulher. Cathryn, agora mais desperta, percebeu a premência

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da excitação dele. Correndo as mãos pelo corpo do marido, ela encontrou um pênis ereto. - E o que é isso? - indagou ela. - Não assumo a responsabilidade por isso - replicou Charles. - Esta parte de minha anatomia pensa por si mesma. -- Nosso papa polonês diz que um homem não deve alimentar pensamentos libidinosos por sua mulher. - Mas eu não estava fazendo isso. Pensava apenas no trabalho - brincou Charles. Quando os primeiros flocos de neve se assentaram sobre os telhados inclinados, eles se uniram num profundo sentimento de paixão e ternura que jamais deixava de dominar Charles. Então, o relógio despertou. O dia começara. Michelle podia ouvir Cathryn chamando-a de muito longe, interrompendo seu sonho; ela e o pai estavam atravessando um campo. Michelle tentou ignorar o chamado, mas ele tornou a se fazer ouvir. Ela sentiu a mão sobre seu ombro e, ao se virar, deparou com o rosto sorridente de Cathryn. - Está na hora de levantar - disse a madrasta animadamente. Michelle suspirou fundo e fez que sim com a cabeça, reconhecendo que estava acordada. Tivera uma noite ruim, repleta de sonhos perturbadores que a deixaram empapada de suor. Sentira calor debaixo das cobertas e frio fora delas. Várias vezes durante a noite pensara em procurar Charles. E o teria feito, se o pai estivesse sozinho. - Meu Deus, você parece corada - falou Cathryn, enquanto abria o cortinado. Estendeu a mão e tocou na testa de Michelle. Estava quente. - Acho que você está novamente com febre - prosseguiu Cathryn bondosamente. - Está se sentindo mal? - Não - retrucou Michelle rapidamente. Ela não queria ficar doente de novo. Não queria ficar em casa, sem ir à escola. Queria levantar-se e preparar o suco de laranja, o que sempre tinha sido sua tarefa. - De qualquer modo, seria melhor tomarmos sua temperatura outra vez -- falou Cathryn, dirigindo-se para o banheiro ao lado. Reapareceu sacudindo e examinando o termômetro. - Não vai levar mais do que um minuto, e então teremos certeza - falou, enfiando o termômetro na 14

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boca de Míchelle. - Coloque debaixo da língua. Voltarei depois que os meninos se levantarem. A porta fechou-se, e Michelle tirou o termômetro da boca. Mesmo naquele pequeno lapso de tempo o mercúrio tinha subido até 37,2 graus. Ela sabia que estava com febre. Suas pernas doíam, e havia uma sensação de vazio na boca do estômago. Michelfe tornou a pôr o termômetro na boca. De onde estava, podia olhar pela janela e ver sua casa de brinquedo, que Charles tinha feito de um abrigo para o gelo. O teto estava coberto de neve recém-caída, e ela estremeceu ante a cena fria. Ansiava pela primavera e por aqueles5 dias ociosos que passava naquela casa de fantasia. Apenas ela e seu pai. Quando a porta se abriu, Jean Paul, de quinze anos de idade, já estava acordado, apoiado na cama com seu livro de física. Por trás de sua cabeça o pequeno rádio-relógio tocava um suave rock and roll. Ele usava um pijama de flanela vermelha com bolinhas azuis, presente de Natal de Cathryn. - Você tem vinte minutos -- disse Cathryn, animada. - Obrigado, mãe - respondeu Jean Paul com um sorriso. Cathryn fez uma pausa, olhando para o garoto, e seu coração se derreteu. Sentiu vontade de lançar-se sobre ele e abraçá-lo. Mas resistiu à tentação. Havia aprendido que todos os Martels eram um tanto avessos ao contato físico direto, fato cuja aceitação fora para ela inicialmente um tanto difícil. Cathryn vinha do North End italiano de Boston, onde o tocar e o abraçar eram uma constante. Seu pai era um letão, mas fora embora de casa quando Cathryn estava com doze anos, e ela crescera sem a influência dele. Sentia-se totalmente italiana. Jean Paul sabia que Cathryn adorava quando ele a chamava de mãe e a satisfazia prazerosamente. Era um preço muito baixo a pagar por todo o afeto e atenção que ela lhe dedicava. Jean Paul fora educado por um pai muito atarefado e tinha se visto eclipsado por seu irmão mais velho, Chuck, e sua irresistível irmãzinha, Michelle. Então chegara Cathryn, e a excitação do, casamento, seguido pela adoção legal, por parte de Cathryn, de Chuck, Jean Paul e Michelle, Jean Paul a teria chamado de "vovó" se ela assim o quisesse. Ele achava que amava Cathryn tanto quanto sua mãe ver- 15

dadeira; pelo menos até onde se recordava dela. Tinha seis anos quando ela morreu. Chuck piscou os olhos assim que a mão de Cathryn o tocou, mas fingiu dormir, conservando a cabeça debaixo do travesseiro. Ele sabia' que, se esperasse mais, ela tornaria a tocá-lo, só que com um pouco mais de força. E tinha razão. Desta vez, ele sentiu duas mãos que o sacudiam pelos ombros antes de levantar o travesseiro. Chuck tinha dezoito anos e estava na metade do seu primeiro ano na Universidade Northeastern. Não estava indo muito bem e temia as provas finais do semestre, que se aproximavam. Ia ser um desastre. Em todas as matérias, exceto psicologia. - Quinze minutos - disse Cathryn, remexendo na longa cabeleira do rapaz. - Seu pai quer estar cedo no laboratório. - Merda! - exclamou Chuck. - Charles Jr.! - disse Cathryn, fingindo-se escandalizada. - Não vou me levantar! - Chuck arrancou o travesseiro das mãos de Cathryn, tornando a enfiar a cabeça sob ele. - Ah, você vai, sim - falou Cathryn, puxando as cobertas. O corpo de Chuck, só de cuecas, ficou exposto ao frio da manhã. Ele deu um salto, puxou os cobertores e enrolouse neles. - Já lhe disse para não fazer isso - falou asperamente. - E eu já lhe disse para deixar seu linguajar no banheiro - continuou Cathryn, ignorando a grosseria de Chuck. - Quinze minutos! Girando sobre os calcanhares, Cathryn saiu do quarto. A face de Chuck ficou ruborizada de frustração. Ele observou-a caminhando para o hall, rumo ao

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quarto de Michelle. Ela usava uma camisola de seda de modelo antigo, que comprara numa loja de artigos de segunda mão. Tinha uma cor de pêssego queimado, não muito diferente da de sua pele. Não era difícil imaginá-la nua. Ela não tinha idade bastante para ser sua mãe. Ele estendeu a mão, alcançou a porta e bateu-a. Só porque o pai gostava de estar no laboratório antes das oito ele precisava se levantar ao romper da aurora, como qualquer maldito fazendeiro. O grande cientista! Chuck esfregou o rosto e reparou no livro aberto que estava sobre a cama,

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ao seu lado. Crime e castigo. Ele havia passado a maior parte da noite anterior lendo-o. Não se destinava a nenhum de seus cursos, razão pela qual provavelmente estava gostando dele. Devia ter estudado química, pois estava a ponto de ser reprovado. Meu Deus, o que Charles não diria se isso acontecesse! Fora uma confusão enorme quando Chuck não conseguira entrar na universidade de Charles, Harvard. Agora, se ele fosse reprovado'em química. . . Química sempre tinha sido a matéria preferida de Charles. - De qualquer modo, não quero ser uma droga de médico - explodiu Chuck, enquanto se levantava e se metia numa calça Levi's suja. Ele se orgulhava do fato de que ela jamais tinha sido lavada. No banheiro, decidiu não se barbear. Pensou que talvez devesse deixar crescer a barba. Vestindo uma calça de flanela que infelizmente realçava os quase sete quilos que havia engordado nos últimos dez anos, Charles ensaboava o queixo. Tentava ordenar a miríade de fatos associados com seu atual projeto de pesquisa. A imunologia das formas vivas envolvia uma complexidade que jamais deixava de espantá-lo e alegrá-lo, em particular agora que ele acreditava estar se aproximando muito de algumas respostas reais sobre o câncer. Mas ele já se havia entusiasmado antes, e havia errado. E sabia disso. Mas agora suas idéias se baseavam em anos de laboriosas experiências e estavam apoiadas por fatos facilmente reproduzíveis. Charles começou a organizar o programa para o dia. Queria começar o trabalho com a linhagem de camundongos HR7, portadores de câncer hereditário da mama. Esperava tornar os animais "alérgicos" aos seus próprios tumores, objetivo do qual sentia estar se aproximando cada vez mais. Cathryn abriu a porta e passou por ele. Arrancando a camisola pela cabeça, ela se meteu no chuveiro. O vapor d'água embaçou a cortina do boxe. Depois de um instante, Cathryn afastou a cortina e chamou Charles. - Acho que tenho de levar Michelle a um bom médico - falou ela, antes de tornar a se meter por trás da cortina. Charles interrompeu o seu barbear, tentando não se aborrecer com a sarcástica referência a um "born" médico. Era um assunto delicado entre os dois. - Eu pensei que, casando-me com um médico, pelo menos garantiria uma boa atenção clínica para minha família 17

- gritou Cathryn por sobre o barulho do chuveiro. - Eu estava errada! Charles estava ocupado, examinando a metade do rosto já barbeada e notando que suas pálpebras estavam um pouco

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inchadas. Ele procurava evitar uma briga. Os "problemas médicos" da família, que se resolviam espontaneamente em vinte e quatro horas, eram agora motivo de alvoroço desde a chegada de Cathryn. Seus instintos maternos recém-despertados exigiam especialistas para cada resfriado, dor de cabeça ou surto de diarréia. - Michelle ainda está se sentindo indisposta? - perguntou Charles. Era melhor falar especificamente. - Eu não devia ter-lhe dito. Há algum tempo que a menina vem se sentindo adoentada. Aborrecido, Charles estendeu a mão e puxou a cortina do chuveiro. - Cathryn, sou um pesquisador de câncer, e não um pediatra. - Oh, desculpe - disse Cathryn, levantando a cabeça para apanhar água no rosto. - Pensei que você fosse médico. - Não vou deixá-la me fisgar numa discussão - prosseguiu Charles. - Há uma onda de gripe por aí. Michelle pegou uma gripe. Durante uma semana as^pessoas se sentem indispostas e depois tudo termina. Tirando a cabeça de sob o chuveiro, Cathryn olhou diretamente para Charles. - O caso é que ela vem se sentindo mal há quatro semanas. - Quatro semanas? - perguntou ele. O tempo tinha a propriedade de se dissolver diante de seu trabalho. - Quatro semanas - repetiu Cathryn. - Não me parece que eu esteja entrando em pânico ao primeiro sinal de gripe. Acho melhor levar Michelle ao Hospital Pediátrico e consultar o dr. Wiley. Além do mais, posso fazer uma visita ao garoto Schonhauser. - Muito bem, vou dar uma olhada em Michelle concordou Charles, retornando à pia. Quatro semanas era um tempo muito longo para uma gripe. Talvez Cathryn estivesse exagerando, mas era melhor não discutir. com efeito, era melhor mudar de assunto. - Que há de errado com o garoto Schonhauser? Os Schonhausers eram vizinhos que moravam cerca de um quilômetro rio acima. Henry Schonhauser era químico 18 j..

no MIT' e uma das poucas pessoas com quem Charles se dava. O garoto Schonhauser, Tad, era um ano mais velho do que Michelle, mas devido ao mês em que caíam seus aniversários os dois estavam na mesma classe. Cathryn saiu do chuveiro, satisfeita de que sua tática para fazer com que Charles examinasse Michelle houvesse funcionado tão bem. - Há três semanas que Tad está no hospital. Ouvi dizer que ele está muito doente. Mas desde que ele foi para lá que não falo com Marge. - Qual é o diagnóstico? - perguntou Charles, colocando a navalha abaixo de sua costeleta esquerda. - Algo de que jamais ouvi falar. Anemia elástica ou coisa assim - falou Cathryn, enxugando-se. - Anemia aplástica? - perguntou Charles, descrente. - Qualquer coisa semelhante. - Meu Deus! - exclamou Charles, apoiando-se na pia. - Isso é terrível. - O que é? - indagou Cathryn, experimentando um sobressalto de pânico. - É uma doença na qual a medula óssea pára de fabricar células sangüíneas. - É grave? - É sempre grave, e muitas vezes fatal. Os braços de Cathryn pendiam molemente ao longo do corpo; seu cabelo molhado parecia um esfregão espremido. Ela podia sentir uma mistura de compaixão e medo. - É doença contagiosa? - perguntou ela. -: Não - respondeu Charles distraidamente. Ele estava procurando lembrar-se do que sabia sobre aquele mal. Não era uma doença comum. - Michelle e Tad passavam muito tempo juntos disse Cathryn com certa hesitação na voz. Charles contemplou-a, percebendo que ela ansiava por ser tranqüilizada. - Espere um minuto. Você não está pensando que Michelle possa ter anemia aplástica, está? - Ela pode? - Não. Meu Deus, você parece uma estudante de medicina. Ouve falar numa doença nova e, cinco minutos

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depois, você ou os garotos a têm. A anemia aplástica é rara ' Massacbusetts Institute of Technology, Instituto de Tecnologia de Massachusetts. (N. do E.)

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pra burro. Está geralmente associada a alguma droga ou substância química. É um envenenamento ou uma reação alérgica. Embora, na maior parte das vezes, jamais se possa determinar sua verdadeira causa. De qualquer modo, não é contagiosa; mas. . . pobre garoto! - E pensar que nem falei com Marge - disse Cathryn. Ela inclinou-se para a frente e mirou-se no espelho. Tentava imaginar a tensão emocional pela qual Marge estava passando e decidiu que era melhor voltar às listas de tarefas que fazia antes de se casar. Não havia desculpas para tal desleixo. Charles barbeou o lado esquerdo do rosto, pensando se a anemia aplástica era o tipo de doença que ele devesse pesquisar. Seria possível que ela abrigasse alguma pista sobre a organização da vida? Onde estava o controle que parava o trabalho da medula? Essa era, afinal de contas, uma pergunta importante, pois se tratava do controle que Charles sentia ser a chave para entender o câncer. Charles bateu de leve na porta do quarto de Michelle. Só ouvia o ruído do chuveiro que vinha do banheiro anexo. Calmamente, abriu a porta. Michelle estava deitada na cama, virada para o outro lado. De repente, ela se voltou e seus olhos se encontraram. Um fio de lágrimas, brilhantes à luz da manhã, descia por suas faces vermelhas. O coração de Charles ficou apertado. Sentado na borda da cama coberta de ilhoses, ele inclinou-se e beijou-a na testa. Pelo contato dos lábios ele podia dizer que ela estava com febre. Empertigando-se, Charles olhou para a garotinha. Ele podia ver facilmente Elizabeth, sua primeira mulher, no rosto de Michelle. O mesmo cabelo negro e espesso, os mesmos ossos malares, os lábios carnudos, a mesma pele impecável. De Charles, Michelle havia herdado olhos intensamente azuis, dentes retos e alvos e, infelizmente, um nariz um tanto largo. Charles a considerava a garota de doze anos mais bonita do mundo. com o dorso da mão, ele limpou as lágrimas de suas faces, . ~ - Desculpe-me, paizinho - disse Michelle por entre as lágrimas. - O que você quer dizer com "desculpe-me?" indagou Charles suavemente'. 20

Desculpe-me por eu estar doente de novo. Não gosto de ser um incômodo. Charles abraçou-a fortemente. Ela parecia frágil dentro de seus braços. - Você não é um incômodo. Nunca mais quero ouvila dizer isso. Deixe-me olhá-la. Constrangida por suas lágrimas, Michelle desviava o rosto, enquanto Charles o puxava para examiná-la. Segurando o queixo da filha na palma de sua mão, ele levantoulhe o rosto para vê-lo melhor. - Diga-me como se sente. O que a está incomodando? - Sinto-me um pouco fraca, é só. Posso ir à escola. Claro que posso. - A garganta dói? - Um bocadinho. Não muito. Cathryn disse que eu não podia ir à escola. - Mais

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alguma coisa? Dor de cabeça? - Um pouco, mas já está melhor. - Os ouvidos? * - Ótimos. - Estômago? - Talvez uma ligeira dorzinha. Charles abaixou as pálpebras inferiores de Michelle. A conjuntiva estava pálida. De fato, todo o rosto estava pálido. - Deixe-me ver sua língua. Charles pensou que há muito tempo não fazia um exame clínico. Michelle esticou a língua e ficou observando os olhos do pai em busca de um sinal de preocupação. Charles apalpou por baixo do ângulo do seu maxilar, e ela tornou a pôr a língua para dentro. - Sente alguma coisa? - perguntou Charles, ao perceber alguns pequenos nódulos linfáticos. - Não - retrucou Michelle. Charles a fez sentar-se na beira da cama, olhando para o outro lado, e começou a tirar sua camisola. Pela porta do banheiro anexo apareceu a cabeça de Jean Paul, para dizer a ela que o banheiro estava livre. - Saia daqui - gritou Michelle. - Pai, diga a Jean Paul para ir embora. - Caia fora! - falou Charles. Jean Paul desapareceu. Podia-se ouvi-lo rindo-se com Chuck. Charles pescutiu as costas de Michelle um tanto desa- !^ta^amente> mas sufrcienternente bem para se convencer de que os pulmões

estavam limpos. Então, fez com que ela 21

se deitasse de costas na cama e repuxou a camisola até abaixo dos seios que brotavam. Sua barriga magra elevava-se e descia ritmicamente. Ela era suficientemente magra para possibilitar-lhe ver o recuo de seu coração após cada batida. com a mão direita, Charles começou a apalpar o abdome. - Procure relaxar. Se eu machucar você, avise. Michelle tentou ficar quieta, mas contorceu-se sob a mão fria de Charles. Depois, sentiu dor. - Onde? - perguntou Charles. Michelle apontou, e ele passou a apalpar com muito cuidado, constatando que o abdome de Michelle estava sensível na linha mediana. Colocando os dedos bem por baixo das costelas à direita, ele lhe pediu que inspirasse. Quando ela o fez, ele pôde sentir a borda do fígado passar por baixo de seus dedos. Ela disse que doía um pouco. Depois, com a mão esquerda apoiando-a por baixo, ele procurou apalpar o baço. Para surpresa sua, não teve qualquer problema em apalpá-lo. Ele sempre tivera problemas com aquela manobra quando clinicava e ficou imaginando se o baço de Michelle não estaria aumentado. Levantando-se, olhou para Michelle. Ela parecia magra, mas sempre fora delgada. Charles passou a correr sua mão pelas pernas da garota, para sentir o tônus muscular, e parou ao notar uma série de equimoses. - Onde arranjou todas essas marcas azuis e pretas? Michelle encolheu os ombros. - Suas pernas a incomodam? - indagou ele. - Um pouco. Principalmente meus joelhos e tom ozelos, após a ginástica. Mas não preciso fazê-la, se levar um bilhete. Tornando a se endireitar, Charles examinou a filha. Ela estava pálida, tinha pequenas dores, alguns nódulos linfáticos crescidos e febre. Talvez se tratasse de qualquer doença sem importância, causada por um vírus..Mas quatro semanas? Talvez Cathryn estivesse certa. Talvez ela devesse ser examinada por um médico "de verdade". - Por favor, paizinho - disse Michelle. - Não posso perder mais aulas, se vou ser uma médica pesquisadora, como você. Charles sorriu. Michelle sempre fora uma criança precoce, e aquela lisonja indireta era um bom exemplo disso. - Faltar à escola alguns dias, na sexta série, não vai comprometer sua carreira - disse Charles. - Cathryn vai 22

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levá-la hoje ao Hospital Pediátrico, para consultar o dr. Wiley. Ele é médico de bebês - argumentou Michelle desafiadoramente. - Ele é um pediatra, e atende pacientes até dezoito anos, sua metida. - Quero que você me leve. - Não posso, querida. Tenho de ir para o laboratório. Por que você não se veste e desce para tomar seu desjejum? - Não estou com fome. - Michelle, não se faça de difícil. - Não estou sendo difícil. Apenas não estou com fome. - Então desça para tomar um pouco de suco - continuou Charles, beliscando delicadamente a bochecha da filha. Michelle ficou observando o pai sair do quarto. Então, suas lágrimas tornaram a correr. Sentia-se muito desconfortável e não queria ir ao hospital; mas pior que tudo era seu sentimento de solidão. Ela queria que o pai a amasse mais do que tudo no mundo e sabia que Charles ficava impaciente quando qualquer um dos garotos adoecia, Ela lutou para se sentar e concentrou suas energias contra uma onda de tonteira. - Meu 'Deus, Chuck - falou Charles com asco. Você mais parece um porco. Chuck ignorou a observação do pai. Colocou no prato um punhado de flocos de cereais, derramou leite em cima deles e sentou-se para comer. A regra para o desjejum era a de que cada qual se servia e preparava sua refeição, com exceção do suco de laranja,. que geralmente era Michelle quem fazia. Naquela manhã, Cathryn o tinha feito. Chuck estava usando um suéter manchado e jeans sujos, com os fundilhos esfiapados de tanto uso. Seu cabelo estava despenteado, e o fato de não ter se barbeado era dolorosamente aparente. - Você realmente precisa ser tão desleixado? - continuou Charles. - Pensei que a moda hippie já tivesse passado e que os garotos da universidade estivessem se tom ando novamente respeitáveis. - Você tem razão. Hippie já era - disse Jean Paul, 23

entrando na cozinha e servindo-se de suco de laranja. Legal agora é ser punk. -- Punk? - perguntou Charles. - Chuck é punk? •- Não - riu Jean Paul. - Chuck é apenas Chuck. Chuck levantou os olhos de seu prato de cereais para articular umas obscenidades para o irmão mais moço. Jean Paul ignorou-o e abriu seu livro de física. Ocorreu-lhe que seu pai jamais reparava no que ele estava usando. Era sempre Chuck. -- Realmente, Chuck - continuava Charles. - Sinceramente, você acha que tem de parecer tão esmolambado? Chuck ignorou a pergunta. com crescente exasperação, Charles observava o jovem comer. - Chuck, estou falando com você. Cathryn estendeu a mão e segurou o braço de Charles. - Não vamos discutir isso na hora do desjejum. Você sabe como são esses garotos da universidade. Deixe-o ser o que é. - Mas acho que pelo menos mereço uma resposta insistiu Charles. Tomando uma inspiração profunda e exalando o ar pelo nariz com bastante ruído, para acentuar sua insatisfação, Chuck fitou o rosto do pai. - Não sou um médico - disse. - Não tenho que aderir a nenhum código de vestuário. Os olhares de pai e filho se cruzaram. Chuck disse consigo mesmo: "É isso, seu filho da puta, só porque você obteve boas notas em química pensa que sabe tudo, mas não sabe". Charles examinou o rosto do filho, admirandose da arrogância que ele era capaz de exibir sobre uma base tão insignificante. Ele era bastante inteligente, mas incorrigivelmente preguiçoso. Seu desempenho no curso secundário tinha sido tal que Harvard o havia rejeitado; e Charles tinha um pressentimento de que ele não estava indo bem na Northeastern.

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Costumava pensar onde ele, como pai, havia errado. Mas era difícil chegar a uma conclusão devido à personalidade de Jean Paul. Charles relanceou o olhar para o outro filho: limpo, cordato, estudioso. Era difícil acreditar que os dois rapazes tivessem saído do mesmo conjunto genético e sido educados juntos. Charles voltou sua atenção para Chuck. A atitude de desafio do rapaz não se havia alterado, mas Charles sentiu seu interesse no assunto se desvanecer. Tinha coisas mais importantes em que pensar. - Espero - disse Charles calmamente - que sua 24

aparência e suas notas nada tenham em comum. Espero que esteja indo bem na universidade. Não temos ouvido falar muito sobre isso. - Estou indo bem - disse Chuck, baixando novamente os olhos para sua refeição. Desafiar o pai era algo de novo para Chuck. Antes de entrar para a faculdade ele havia evitado qualquer confrontação. Agora ele o encarava de frente. Chuck não tinha dúvidas de que Cathryn notava isso e o aprovava. Afinal de contas, Charles também era um tirano com ela. - Se tenho de dirigir a caminhonete para Boston, vou precisar de um dinheiro extra - falou Cathryn, esperando mudar de assunto. - E, por falar em dinheiro, o pessoal do posto de gasolina telefonou e disse que não vai fornecer mais até a conta ser paga. - Lembre-me disso esta noite - retrucou Charles rapidamente. Ele não queria discutir sobre dinheiro. - E a minha taxa semestral também não foi paga disse Chuck. Cathryn levantou os olhos do prato e relanceou o olhar para Charles, esperando que ele refutasse a alegação de Chuck. A taxa do semestre perfazia um bocado de dinheiro. - Ontem recebi um bilhete - continuou Chuck dizendo que a taxa já estava mais do que vencida e que eu não conseguiria os créditos para minhas matérias se ela não fosse paga. - Mas o dinheiro foi retirado da conta - observou Cathryn. - Usei o dinheiro no laboratório - explicou Charles. - O quê? - fez Cathryn, aborrecida. - Vamos repô-lo. Eu precisava de uma nova linhagem de camundongos e não havia mais dinheiro disponível até março. - Você comprou ratos com o dinheiro da taxa de Chuck? - perguntou Cathryn. - Camundongos - corrigiu Charles. com um delicioso sentimento de voyeurismo, Chuck observava o desenrolar da discussão. Há meses que ele vinha recebendo bilhetes do tesoureiro, mas não os trazia para casa, aguardando uma ocasião em que pudesse apresentar o problema sem ter de questionar sua atuação na faculdade. Não poderia ter funcionado melhor. - Maravilhoso - disse Cathryn. - E como espera 25

que possamos comer daqui até março, depois que a conta de Chuck for paga? - Eu cuidarei disso - retrucou Charles bruscamente. Suas defesas estavam se exteriorizando na forma de raiva. - Acho que eu devia arranjar um emprego - falou Cáthryn. - Não estão precisando de uma datilografa extra no instituto? - Pelo amor de Deus! Isso não é uma crise! - disse Charles. - Tudo está sob controle. O que você deve fazer é acabar aquela sua tese de doutorado, a fim de conseguir um emprego onde possa usar seus conhecimentos. - Há quase três anos Cáthryn vinha tentando terminar sua tese em literatura. - Então, agora é porque não consegui meu diploma que a taxa de Chuck não está paga - argumentou Cáthryn, com sarcasmo. Michelle

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entrou na cozinha. Cáthryn e Charles olharamna, esquecendo momentaneamente sua conversa. Ela vestia um suéter cor-de-rosa sobre uma blusa de algodão de gola alta, que a fazia parecer mais velha do que seus doze anos. Seu rosto, emoldurado pelos cabelos negros, parecia extremamente pálido. Ela dirigiu-se ao aparador e serviu-se do suco de laranja. - Uh! - exclamou Michelle, provando-o. - Detesto o suco quando está cheio de bolhas. - Ora, ora - disse Jean Paul. - Apareceu a princesinha, fazendo-se de doente para não ir à escola. - Não aborreça sua irmã - ordenou Charles. De repente, a cabeça de Michelle inclinou-se com um violento espirro, salpicando suco no chão. Ela sentiu uma onda líquida sair pelo nariz e automaticamente inclinou-se para a frente, colhendo a torrente na palma da mão aberta. Para seu horror, era sangue. - Pai! - gritou ela, enquanto o sangue enchia a mão em concha e salpicava o chão. Simultaneamente, Charles e Cáthryn se levantaram de um salto. Cáthryn agarrou um pano de pratos, enquanto Charles pegava Michelle e a carregava para a sala de estar. Os dois rapazes olharam para a pequena poça de sangue e depois para a comida, procurando decidir que efeito o episódio causara em seus apetites. Cáthryn veio correndo, tirou uma bandeja de cubos de gelo do congelador e voltou às pressas para a sala de estar. - Uh! - disse Chuck. - Nem que você me pagasse

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um milhão de dólares faria de mim um médico, Não suporto ver sangue. Michelle consegue sempre centralizar as atenções - comentou Jean Paul. Diga isso de novo. Michelle consegue sempre ser... - repetiu Jean Paul. Era fácil e divertido mexer com Chuck: Cale-se, idiota. - Chuck levantou-se e atirou os restos de seu cereal na lata de lixo. Depois, contornando o sangue no chão, subiu para seu quarto. Depois de quatro colheradas, Jean Paul acabou seu mingau e pôs o prato na pia. com uma toalha de papel, limpou o sangue de Michelle. - Só faltava isso - disse Charles ao sair, passando pela porta da cozinha. A tempestade havia trazido um vento nordeste e, com ele, o mau cheiro de borracha queimada da fábrica de reciclagem. - Que fedor! - Que merda de buraco para se viver! - falou Chuck. Charles conteve suas emoções ante o descaramento e nada disse. A manhã já havia sido bastante ruim. Apertando os maxilares, enfiou o queixo em seu casaco de pele de carneiro, para se proteger da neve, e se encaminhou penosamente para o celeiro. - Assim que eu puder, vou-me embora para a Califórnia - disse Chuck, seguindo as pegadas de Charles. Agora havia cerca de dois centímetros de neve. - Vestido assim, você está perfeito para o ambiente - disse Charles. Jean Paul, que vinha na retaguarda, riu, seu hálito concentrando-se em baforadas de vapor. Chuck voltou-se e empurrou Jean Paul para fora do caminho aberto, onde a neve •era mais funda. Seguiram-se algumas palavras zangadas, mas Charles ignorou-as. Estava frio demais para parar. As pequenas rajadas de vento eram abrasivas, e o cheiro, terrível. Nem sempre fora assim. A fábrica de borracha abrira em 71, um ano depois que ele e Elizabeth tinham comprado a casa. A idéia da mudança partira realmente de Elizabeth. Ela queria que os filhos crescessem no ar

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puro e límpido do campo. Que ironia!, pensou Charles enquanto destrancava o celeiro. Mas não era mau de todo. Eles só sentiam o cheiro da fábrica quando o vento vinha do nordeste e, graças a Deus, isso não era muito comum.

- Droga - disse Jean Paul, fitando o lago. - com esta nova nevada vou precisar limpar de novo todo o meu 27

l rinque de hóquei. Ei, pai, por que é que a água jamais congela em tom o da casa de brinquedo de Michelle? Deixando o pedaço de cano contra a porta, para mantêla aberta, Charles olhou para o lago. - Não sei. Nunca pensei nisso. Deve ser algo ligado com a correnteza, porque a área da água livre se une à passagem que vem do rio e a passagem também não congela. - Uh! - fez Chuck, apontando para além da casa de brinquedo. Ali, no pátio de lama congelada que contornava o lago, estava um pato selvagem morto. - Outro pato morto. Acho que eles também não conseguem agüentar o cheiro. - Isso é estranho - comentou Charles. - Há vários anos que não víamos patos. Logo que nos mudamos para cá costumávamos caçá-los na casa de brinquedo de Michelle. Depois, eles desapareceram. - Ali está mais um - gritou Jean Paul. - Mas não está morto. Está se debatendo. - Parece bêbado - comentou Chuck. - Vamos lá, vamos socorrê-lo. - Não temos muito tempo - advertiu Charles. - Ora, vamos. - Jean Paul retirou a crosta de neve. Nem Charles nem Chuck partilhavam do entusiasmo de Jean Paul, mas assim mesmo o seguiram. Quando o alcançaram, ele estava curvado sobre o pobre animal, que se debatia nos espasmos de um ataque. - Meu Deus, ele está com epilepsia! - disse Chuck. - Quê é que há com ele, pai? - perguntou Jean Paul. - Não faço a menor idéia. A medicina avícola não é um dos meus temas mais fortes. Jean Paul inclinou-se e tentou reduzir as lastimáveis convulsões e espasmos do pato. - Acho que vocês não deviam tocar nele - falou Charles. - Não sei se a psitacose é transmitida pelos patos. - Acho que devíamos matá-lo e acabar com seu sofrimento - disse Chuck. Charles olhou de relance para o filho mais velho, cujos olhos estavam colados na ave doente. Por algum motivo, Charles achou a sugestão de Chuck cruel, embora provavelmente ele tivesse razão. - Posso pô-lo dentro do celeiro para passar o dia?

- pediu Jean Paul. - vou pegar meu rifle de ar comprimido e acabar 28

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com o sofrimento dele - falou Chuck. Era sua vez de se vingar de Jean Paul. Não! - exigiu Jean Paul. - Posso pô-lo no celeiro, pai? Por favor? Está bem - concordou Charles -, mas não toque nele. Arranje uma caixa ou qualquer coisa parecida. Jean Paul saiu correndo como um coelho. Charles e Chuck se entreolharam por sobre a ave doente. - Você não sente nenhuma compaixão? - perguntou Charles. - Compaixão? Você está me pedindo para ter compaixão, depois do que faz com todos aqueles animais no laboratório? Que piada! Charles estudou o filho. Achou que estava presenciando mais do que um desrespeito. Achou que via ódio. Chuck tinha sido um mistério para Charles desde o dia em que atingira a puberdade. com certa dificuldade, ele reprimiu o impulso de esbofetear o rapaz. com _sua habitual presteza, Jean Paul tinha achado uma grande caixa de papelão, bem como um velho travesseiro. Havia aberto o travesseiro e enchido a caixa de penas. Usando o travesseiro esvaziado como um trapo protetor, ele apanhou o pato e o pôs dentro da caixa. Conforme explicou a Charles, as penas impediriam que o pato se machucasse, se tivesse outro ataque, e o conservariam aquecido. Charles aprovou com um sinal de cabeça e todos entraram no carro. O velho e enferrujado Ford de cinco anos de idade gemeu quando Charles ligou o motor. Devido à série de buracos no silencioso, o Ford roncava como um tanque AMX quando finalmente o motor pegou. Charles saiu de marcha à ré da garagem, deslizou para o caminho e virou para o norte na Interestadual 301, dirigindo-se para Shaftesbury. A medida que o velho automóvel ganhava velocidade, Charles sentia-se aliviado. A vida de família jamais podia correr suavemente. Pelo menos no laboratório as variáveis tinham uma reconfortante previsão e os problemas se resolviam pelos métodos científicos. Charles apreciava cada vez menos os caprichos humanos. - Muito bem! - gritou ele. - Nada de música! E desligou o rádio. Os dois rapazes tinham-sè empenhado numa disputa sobre qual estação ouvir. - Um pouco de silenciosa contemplação é um bom modo de começar o dia. 29

Os irmãos se entreolharam e reviraram os olhos. A estrada os conduzia ao longo do rio Potomac, e eles olharam de relance trechos da água que coleava pelo campo. Quanto mais se aproximavam de Shaftesbury, mais intenso era o mau cheiro que vinha da Recycle, Ltd. A primeira visão da cidade era a chaminé da fábrica vomitando seu penacho de fumaça negra no ar. Um apito dissonante rompeu o silêncio quando eles passaram ao lado da fábrica, anunciando uma mudança de turno. Uma vez deixada para trás a fábrica química, o mau cheiro desapareceu como que por mágica. Os moinhos abandonados se dispersavam à esquerda, à medida que eles subiam pela Main Street. Não se via vivalma. Era como uma cidade fantasma às seis e quarenta e cinco da manhã. Três pontes de aço enferrujadas estendiam-se sobre o rio, relíquias adicionais da era de progresso anterior à guerra. Havia até mesmo uma ponte coberta, mas ninguém a usava. Era totalmente insegura e reservada apenas para os turistas. O fato de os turistas, jamais virem a Shaftesbury não havia desanimado os próceres da cidade. Jean Paul saltou do automóvel diante da escola municipal, na extremidade norte da cidade. Sua impaciência para começar o dia era evidente no modo rápido com que se despediu. Mesmo àquela hora, um grupo de amigos o esperava. Entraram juntos na escola. Jean Paul estava no time juvenil de basquete, e eles tinham de treinar antes das aulas. Charles contemplou o filho desaparecer e então dirigiu o carro rua acima, encaminhando-se para a

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193, em direção a Boston. Não enfrentaram muito tráfego até entrarem no Estado de Massachusetts. Para Charles, dirigir tinha um efeito hipnótico. Em geral sua mente divãgava pelas complexidades de antígenos e anticorpos e pela formação da estrutura protéica, enquanto ele dirigia o carro com as partes mais inferiores e primitivas de seu cérebro. Mas naquele dia ele se descobriu sensibilizado com o habitual silêncio de Chuck, e depois irritado. Charles tentava imaginar o que se passava ria mente do. filho mais velho. Contudo, por mais que tentasse, -viu que não fazia a menor idéia. Olhando intermitentemente para o rosto entediado e sem expressão, ele imaginava se Chuck estaria pensando nas garotas. De repente percebeu que nem sabia se Chuck tinha encontros com pequenas. - Como vai a escola? - perguntou Charles o mais casualmente possível. 30

Ótima! - respondeu Chuck, imediatamente pondo- ' se em guarda. De novo tudo silenciou. Você já sabe o que pretende ser? - Não. Ainda não. - Você deve ter alguma idéia. Não precisa começar a planejar seu programa para o ano que vem? - Não por enquanto. - Muito bem, qual foi a matéria de que você mais gostou este ano? - Psicologia, acho. - Chuck pôs-se a olhar pela janela. Ele não queria falar sobre a escola. Mais cedo ou mais tarde, eles iam acabar chegando na química. - Psicologia, não - disse Charles, sacudindo a cabeça. Chuck olhou para o rosto bem-barbeado de seu pai, para seu nariz largo mas bem-definido, para seu modo condescendente de falar, com a cabeça levemente inclinada para trás. Parecia sempre seguro de si mesmo, era rápido para fazer julgamentos, e Chuck podia perceber o escárnio na voz dele ao pronunciar a palavra "psicologia". Chuck reuniu toda a sua coragem e perguntou: - O que há de errado com a psicologia? Tratava-se de uma área na qual Chuck estava convencido de que seu pai não era um especialista. - A psicologia é um desperdício de tempo - disse Charles. - Baseia-se num princípio fundamentalmente falso, o estímulo-resposta. Não é assim que o cérebro'funciona. O cérebro não é um sistema em branco, uma tabula rasa, e sim um sistema dinâmico gerador de idéias e até de emoções, muitas vezes independentes do ambiente. Entende o que quero dizer? - Sim! - E Chuck desviou o olhar. Não tinha idéia do que seu pai estava dizendo, mas, como sempre, ele parecia estar certo. Era mais fácil concordar, e foi o que. ele fez durante os quinze minutos seguintes, enquanto Charles mantinha um apaixonado monólogo sobre os efeitos da abordagem behaviorista da psicologia. - Que tal ir ao laboratório esta tarde? - continuou Charles, após um intervalo de silêncio. - Meu trabalho está se desenvolvendo maravilhosamente, e acho que estou prestes a fazer uma descoberta espetacular. Gostaria de partilhála com você. ~ Hoje eu não posso - retrucou Chuck rapidamente, ultima coisa que ele queria

era ser guiado pelo instituto 31

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onde todo mundo se curvava ante Charles, o famoso cientista. Aquilo sempre o fazia sentir-se pouco à vontade, especialmente porque ele não entendia nada do que Charles estava fazendo. As explicações do pai estavam sempre tão acima da sua compreensão, que Chuck vivia num terror constante de uma pergunta que pudesse revelar a profundidade de sua ignorância. - Você pode ir quando lhe convier, Chuck. - Charles sempre desejara poder partilhar seu entusiasmo por sua pesquisa com Chuck, porém ele jamais havia demonstrado qualquer interesse. Charles achava que, se o rapaz pudesse ver a ciência em ação, seria irresistivelmente atraído por ela. - Não. Tenho uma aula de laboratório. E depois tenho alguns encontros. - É pena - disse Charles. - Talvez amanhã. - Sim, talvez amanhã - concordou Chuck. Chuck saltou do automóvel na Huntington Avenue e, depois de um breve até logo, afastou-se em meio à neve umedecida de Boston. Charles observou-o partir. Ele parecia uma caricatura dos anos 60, deslocada entre seus pares. Os outros estudantes pareciam mais brilhantes, mais cônscios de sua aparência, e quase invariavelmente andavam em grupos. Chuck andava só. Charles imaginava se a doença e a morte de Elizabeth haviam magoado mais a Chuck do que aos outros. Ele havia esperado que a presença de Cathryn o ajudasse, mas desde o casamento Chuck havia se tom ado mais retraído e distante. Engrenando o carro, Charles dirigiu-se através do Fenway para Cambridge. 32

Atravessando o rio Charles através da ponte da Universidade de Boston, ele começou a planejar seu dia. Era infinitamente mais fácil lidar com as complicações da vida intracelular do que com as incertezas da educação do filho. No Drive Memorial, Charles virou para a direita e, depois de percorrer uma curta distância, para a esquerda, para a área de estacionamento do Weinburger Research Institute. Sua boa disposição começou a surgir. Ao sair do carro, reparou num significativo número de carros já estacionados ali, o que não era comum àquela hora da manhã; até o Mercedes azul do diretor estava em seu lugar. Sem ligar para o tempo, Charles ficou parado por um momento, intrigado com todos aqueles automóveis, antes de se encaminhar para o instituto. Era um edifício de quatro andares, moderno, uma construção de tijolos e vidro, um tanto semelhante ao Hyatt Hotel, que ficava próximo, mas sem o perfil piramidal. O local ficava exatamente sobre o rio Charles, aninhado entre Harvard e o MIT, exatamente do lado oposto ao do campus da Universidade de Boston. Não era pois de admirar que o instituto não tivesse dificuldades em preencher seus claros. A recepcionista viu Charles se aproximar através do vidro espelhado e apertou o botão que fazia correr a porta de vidro grosso. A segurança era muito intensa, devido ao valor dos instrumentos científicos e à natureza de algumas pesquisas, em particular a pesquisa genética. Charles começou a atravessar a área atapetada da recepção, cumprimentando a recém-empregada e tímida srta. Andrews, que baixou a cabeça e o observou por baixo de suas sobrancelhas cuidadosamente depiladas. Charles começou a imaginar quanto tempo ela duraria. A vida das recepcionistas no instituto era muito curta. com um excesso de precaução, parou no bali principal, 33

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de modo a poder ver a sala de espera. Em meio à fumaça de cigarros mexia-se, agitada, uma pequena multidão. - Dr. Martel. . . dr. Martel - chamou um dos homens. Surpreso por ouvir seu nome, Charles entrou na sala e foi instantaneamente envolvido pelas pessoas, todas falando ao mesmo tempo. O homem que primeiro chamara por ele chegou um microfone a poucos centímetros de seu nariz. - Sou do Globe - gritou o homem. - Posso fazerlhe umas perguntas? Afastando o microfone para o lado, Charles começou a retroceder para o hall. - Dr. Martel, é verdade que o senhor vai assumir a pesquisa? - gritou uma mulher, agarrando Charles pelo bolso do casaco. - Não dou entrevistas - berrou Charles, enquanto se livrava da pequena multidão. Inexplicavelmente, os repórteres pararam no limiar da sala de espera. - Que diabo está acontecendo? - murmurou, apressando gradualmente o passo. Ele odiava os meios de comunicação. Por algum motivo, a morte de Elizabeth atraíra a atenção da imprensa, e Charles sentia sua intimidade repetidamente violada cada vez que sua tragédia particular era "trivializada" para as pessoas que a liam durante o café da manhã. Entrou em seu laboratório, batendo a porta. Ellen Sheldon, assistente de laboratório de Charles nos últimos seis anos, deu um salto. Ela estava concentrada na calma dó laboratório, enquanto preparava o equipamento para separar as proteínas do soro. Como de hábito, chegara às sete e quinze, a fim de ter tudo pronto para a invariável chegada de Charles, às sete e quarenta e cinco. Às oito horas Charles gostava de já estar trabalhando, especialmente agora que as coisas estavam indo tão bem. - Se eu batesse a porta assim, ia ouvir uma bronca que não teria fim - disse Ellen, irritada. Era uma atraente mulher de trinta anos, que usava o cabelo amarrado no alto da cabeça, exceto por alguns cachos esparsos que desciam ao longo do pescoço. Quando a contratara, Charles tinha sido alvo de algumas piadas ciumentas de seus colegas, mas, para falar a verdade, ele só havia apreciado a exótica beleza de Ellen depois de ter trabalhado com ela durante vários anos. Suas feições individuais não tinham nada de excepcional; era o conjunto que impressionava. Mas para Charles os as- 34

pectos mais importantes eram sua inteligência, sua vivacidade e seu soberbo treinamento no MIT. Desculpe-me se a assustei - disse Charles, pendurando seu casaco. - Há um bando de repórteres lá fora, e você sabe como me sinto a respeito dessa gente. - Todos nós sabemos como você se sente a respeito dos repórteres - concordou Ellen, retornando ao seu trabalho. Charles sentou-se à escrivaninha e começou a examinar seus papéis. Seu laboratório era um grande aposento retangular, ligado a um escritório particular por uma porta nos fundos. Charles dispensara o escritório e colocara uma mesa metálica funcional no laboratório, convertendo o escritório num biotério. A principal área para os animais era uma ala separada atrás do instituto, mas Charles queria que algumas de suas cobaias estivessem perto, para que ele pudesse supervisioná-las mais de perto. Os bons resultados das experiências dependiam em grande parte dos bons cuidados dedicados aos animais, e Charles era particularmente ligado aos detalhes. - Afinal, o que estão esses repórteres todos fazendo aí? - perguntou Charles. - Será que nosso destemido líder fez alguma descoberta científica em sua banheira a noite passada? - Seja um pouco mais elegante - censurou Ellen. Alguém tem que fazer o trabalho administrativo. - Perdoe-me - retrucou Charles com exagerado sarcasmo. - Na verdade, é algo de grave - falou Ellen. - O episódio com Brighton transpirou e chegou ao

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conhecimento do New York Times. - Naturalmente esta nova geração de médicos gosta de publicidade - falou Charles, sacudindo a cabeça com nojo. - Eu achava que depois daquele delirante artigo na revista Time há um mês ele estaria satisfeito. Que diabo foi que ele fez? - Não me diga que você não soube! - disse Ellen, incrédula. - Ellen, venho aqui para trabalhar. Mais do que ninguém, você devia saber disso. " - Certo, mas este caso do Brighton. . . Todo mundo sabe dele. Tem sido o prato preferido dos mexericos da casa na pelo menos uma semana. Se eu não a conhecesse bem, pensaria que você você 35

estava tentando ferir meus sentimentos. Se você não quer l me contar, não me conte. Realmente, pelo tom de sua voz, l estou começando a achar que é melhor eu não saber. i - Bem, a coisa está ruim - concordou Ellen. - O ' l chefe do departamento animal informou ao diretor que o l dr. Thonías Brighton tinha se infiltrado no biotério e subs- l tituído seus próprios animais cancerosos por camundongos i sadios. l •- Maravilhoso! - exclamou Charles, com sarcasmo. j - Obviamente, a idéia era fazer com que sua droga pare- f cesse milagrosamente eficiente. l - Isso mesmo. O que é ainda mais interessante, pois J foi sua droga, Canceran, que criou para ele toda a publi- j cidade recente. . - E sua posição aqui no instituto - acrescentou f Charles, sentindo seu rosto ruborizado de desdém. Ele havia desaprovado toda a publicidade que o dr. Thomas Brighton conseguira, mas quando externara sua opinião muita gente achara que estava com ciúmes. - Tenho pena dele - disse Ellen. - Provavelmente, isso vai ter um grande impacto em sua carreira. - Será que ouvi direito? - perguntou Charles. Você está com pena daquele sacana conivente? Espero que o expulsem da medicina com um pontapé no rabo. E esse tipo é médico! Fraudar uma pesquisa é tão grave quanto fraudar o tratamento de um paciente. Não!.E pior ainda. Na pesquisa você pode acabar prejudicando muito mais gente. - Eu não faria um julgamento tão precipitado. Tal- > vez ele estivesse sob uma grande pressão, devido a toda !• aquela publicidade. Pode haver circunstâncias atenuantes. - Quando se trata de integridade, não há circunstân- j cias atenuantes. . .< - Bem, eu discordo. As pessoas têm problemas. Nem todos nós somos super-homens como você. - Não me venha com essa merda de psicologia disse Charles. Ele estava surpreso ante a malícia subentendida no comentário de Ellen. - Está bem, mas um pouco de condescendência humana não faria mal, Charles Martel. Você não dá a menor importância aos sentimentos dos outros. Tudo o que você :: faz é tomar. - Ellen falava com a voz trêmula de emoção.

Um silêncio tenso caiu sobre o laboratório. Ellen, aparentemente, retornou ao seu trabalho. Charles abriu seu livro, mas não conseguiu concentrar-se. Ele não dese- ! 36 ' '

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jara parecer tão zangado e, obviamente, havia ofendido Ellen. Seria realmente insensível aos sentimentos alheios? Era a primeira vez que Ellen dizia algo de negativo sobre ele. Charles imaginava se aquilo tinha algo a ver com o breve caso que haviam tido pouco antes de ele conhecer Cathryn. Depois de trabalharem juntos tantos anos, aquilo tinha acontecido mais em função da proximidade do que de romance, numa ocasião em que Charles finalmente saíra da imobilizante depressão causada pela morte de Elizabeth. Só havia durado um mês. Então Cathryn chegara ao instituto como auxiliar temporária de verão. Depois disso, ele e Ellen jamais haviam discutido o caso. Na ocasião, Charles achara melhor deixar o episódio deslizar para o passado. - Desculpe-me se pareci irado - disse Charles. Não era o que pretendia. Fui envolvido. - E eu lamento o que disse - falou Ellen, a voz refletindo ainda uma profunda emoção. Charles não estava convencido. Queria perguntar a Ellen se realmente ela o achava insensível, mas não teve coragem. - A propósito - acrescentou Ellen -, o dr. Morrison quer vê-lo o mais breve possível. Telefonou antes de você chegar. - Morrison pode esperar - disse Charles. - Deixemos as coisas correrem. Cathryn estava irritada com Charles. Ela não era o tipo de pessoa que procurava reprimir essa espécie de sentimento; além disso, sentia-se justificada. Em virtude da hemorragia nasal de Michelle, ele podia ter alterado seu sagrado programa e levado pessoalmente a filha ao Hospital Pediátrico. Afinal de contas, ele era o médico. Cathryn tinha horríveis visões de Michelle sangrando por todo o carro. Poderia ela sangrar até morrer? Cathryn não estava certa disso, mas a possibilidade parecia bastante real para aterrorizá-la. Ela detestava tudo o que se associasse com doença, sangue e hospitais. Não sabia bem por que essas coisas a incomodavam, embora uma experiência má, ocorrida aos dez anos de idade, com um caso complicado de apendicite, pudesse ter concorrido para isso. Houvera dificuldade em fazer o diagnóstico,, primeiro no consultório do médico, depois no hospital. Desde aquele dia ela se lembrava vividamente dos ladrilhos brancos e do cheiro dos anti-sépticos. Mas o pior 37

fora a provação do exame vaginal. Ninguém lhe explicava nada. Limitavam-se a mantê-la deitada. Charles sabia de íj tudo isso, mas havia insistido em ir ao laboratório, deixando que ela acompanhasse Michelle. Decidindo que havia uma certa segurança, Cathryn sentou-se junto ao telefone da cozinha a fim de telefonar a Marge Schonhauser, para ver se ela queria dar um passeio até Boston. Se Tad ainda estivesse no hospital, haveria uma boa chance de que ela aceitasse o convite. O telefone foi atendido ao segundo toque. Era Nancy, a filha de dezesseis anos dos Schonhausers. - Minha mãe já está no hospital. - Bem, eu só queria saber - disse Cathryn. - Verei se posso encontrá-la lá. Mas se não a encontrar, diga-lhe que i telefonei. - Certo - disse Nancy. - Sei que ela teria prazer em falar com você. - Como vai Tad? - perguntou Cathryn. - Ele vai voltar logo para casa? - Ele está muito doente, sra. Martel. Teve de fazer um transplante de medula. Eles testaram todos os garotos aqui em casa, e a pequena Lisa foi a única que serviu para isso. Ele está vivendo dentro de uma tenda, a fim de se proteger contra os germes. - Sinto muito - falou Cathryn. Ela podia sentir um pouco de sua força se escoando. Não fazia idéia do que fosse um transplante de medula, mas parecia coisa grave e i apavorante, Despediu-se de Nancy e desligou o telefone, Sentou-se por um instante, temendo o aspecto emocional do encontro com Marge, sentindo-se culpada por não havê-la procurado

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mais cedo. A doença de Tad fez com que seus temores sobre a hemorragia nasal de Michelle parecessem insignificantes. Suspirando, Cathryn passou para a sala de estar. Michelle estava assistindo ao programa Today, recos- tada no divã. Depois de um suco de laranja e um pouco de repouso, ela se sentia consideravelmente melhor, mas ainda estava assustada. Embora Charles não o houvesse dito, Cathryn achava que ele estava desapontado com ela. A hemorragia nasal tinha sido a gota d'água. - Telefonei para o consultório do dr. Wiley - falou Cathryn, o mais animada que pôde - e a enfermeira me disse que devíamos ir o mais cedo possível. Do contrário, 38 l

talvez tenhamos que esperar muito. Assim, vamos acabar de ouvir o programa na estrada. - Estou me sentindo muito melhor - comentou Michelle, forçando um sorriso. Mas seus lábios tremiam. - bom - disse Cathryn. - Mas fique quieta. vou apanhar seu casaco e suas coisas. - E Cathryn dirigiu-se para as escadas. - Cathryn, acho que agora já estou bem. Acho que posso ir à escola. - Michelle pôs as pernas no chão e levantou-se. E sorria nervosamente em meio à sua fraqueza. Cathryn voltou-se e olhou para a filha adotiva, experimentando uma onda de afeição por aquela garotinha que Charles tanto amava. Cathryn não sabia por que Michelle queria negar sua doença, a não ser que tivesse medo do hospital, como ela. Adiantando-se, colocou os braços em tom o da garota, apertando-a contra si. - Não precisa ter receio, Michelle. --.Eu não estou com medo - disse Michelle, oferecendo resistência ao abraço de Cathryn. - Não está? - perguntou Cathryn, mais para ter alguma coisa que dizer. Ela sempre se surpreendia por ver suas manifestações de afeto recusadas. Sorriu, constrangida, as mãos ainda apoiadas nos ombros de Michelle. - Acho que eu devia ir à escola. Não precisarei fazer ginástica, se você escrever um bilhete. - Michelle, há um mês que você não vem se sentindo bem. Esta manhã teve febre. Acho que está na hora de fazermos alguma coisa. - Mas agora estou ótima e quero ir para a escola. Retirando as mãos dos ombros de Michelle, Cathryn ficou contemplando o rosto desafiador à sua frente. Em muitos sentidos, Michelle constituía um mistério. Ela era uma garota tão séria, que parecia madura demais para sua idade, mas, por algum motivo, conservava sempre Cathryn a distância de um braço. Cathryn especulava o quanto dessa atitude se devia ao fato de Michelle ter perdido a mãe aos três anos de idade. Cathryn achava que sabia algo sobre crescer com apenas um dos pais, porque seu próprio pai a havia abandonado. - vou lhe dizer o que vamos fazer - falou Cathryn, lutando consigo mesma para encontrar a melhor maneira de cuidar do problema. - Vamos tomar novamente sua temperatura. Se você ainda estiver com febre, iremos. Senão, "caremos em casa. 39

Michelle estava com 38,2. Hora e meia mais tarde, Cathryn entrava com a velha caminhonete Dodge na garagem do Hospital Pediátrico e tirava um bilhete da máquina. Felizmente, a viagem tinha decorrido sem novidades. Michelle falara muito pouco durante o percurso, respondendo apenas a perguntas diretas, j Para Cathryn ela parecia exausta, suas mãos jazendo imóveis no colo, como as de uma marionete esperando que fossem puxadas para cima. - Em que está pensando? - perguntou Cathryn, rompendo o silêncio. Não havia lugares vagos para estacio nar, e elas ficaram andando de um andar para o outro. - Em nada - retrucou Michelle sem se mover. Cathryn olhava a menina pelo canto do olho. Ela que ria tanto que

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Michelle lhe permitisse cuidar dela, amá-la - Você não gosta de partilhar seus pensamentos? - insistiu Cathryn. - Não estou me sentindo bem, Cathryn. Estou me sentindo realmente mal. Acho que você vai ter de me ajudar a sair do carro. Cathryn olhou para o rosto de Michelle e, abruptamente, parou o carro. Estendeu os braços e envolveu a garota. A menina não ofereceu resistência. Mexeu-se e aninhou a cabeça no peito de Cathryn, que sentiu lágrimas quentes tocarem seu braço. - Será um prazer ajudá-la, Michelle. Eu a ajudarei toda vez que você precisar de mim. Prometo-lhe. Cathryn teve a sensação de que finalmente atravessara um limiar indefinido. Tinha lhe custado dois anos e meio de paciência, mas o resultado fora compensador. O clangor das buzinas dos carros fez Cathryn retornar ao presente. Engrenou o carro e avançou, satisfeita de que Michelle continuasse a se agarrar a ela. Cathryn sentia-se uma mãe mais real do que jamais tinha sido. Ao passarem pela porta giratória, Michelle revê- > lou-se muito fraca e deixou que Cathryn a ajudasse. No saguão foi rapidamente preenchido um pedido para uma cadeira de rodas e, embora resistindo inicialmente, Michelle deixou que Cathryrí a empurrasse. A felicidade da nova intimidade com Michelle ajudou Cathryn a suportar o espectro do hospital. A decoração também auxiliava; o saguão era pavimentado de lajotas mexicanas agradáveis, e os assentos, forrados de cores alaranjadas 40

e amarelas. Havia uma porção de plantas. Mais parecia um hotel de luxo do que o hospital de uma grande cidade. Da mesma forma, os consultórios pedíátricos não eram atemorizadores. Já havia cinco pacientes na sala de espera do dr. Wiley. Para desgosto de Mkhelle, nenhum deles tinha mais de dois anos de idade. Ela teria se revoltado se não houvesse olhado de relance as salas de exame por uma das portas abertas e não se lembrasse do motivo por que estava ali. Inclinando-se para Cathryn, perguntou: - Você acha que vou tomar injeção? - Não sei - disse Cathryn. -- Mas depois, se você estiver disposta, podemos fazer algo para nos divertirmos. O que você quiser. - Poderíamos ir visitar, meu pai? - indagou Michelle, os olhos brilhando. - Claro - respondeu Cathryn. Parou a,cadeira de rodas de Michelle perto de um assento vago e sentou-se. De uma das salas de exame saiu uma mulher com um garotinho de cinco anos que choramingava. Outra mãe, com um bebezinho no colo, levantou-se e entrou. - vou perguntar à enfermeira se posso usar o telefone - disse Cathryn. - Quero saber onde está Tad Schonhauser. Você está bem, não está? - Estou bem - retrucou Michelle. - De fato, estou melhor de novo. - bom - disse Cathryn, levantando-se. Michelle observava o longo cabelo castanho de Cathryn balançar sobre seus ombros enquanto ela se dirigia para a enfermeira e discava o telefone. Lembrando-se de que seu pai dÍ2Ía que gostava muito daqueles cabelos, Michelle desejava que os seus fossem da mesma cor. De repente, quis ter realmente mais idade, por exemplo vinte anos, para que pudesse ser uma médica e conversar com Charles e trabalhar com ele no laboratório. Charles dissera que os médicos não tinham de aplicar injeções; quem fazia isso eram as enfermeiras. Michelle esperava que não tivesse de tomar injeção. Ela as detestava. - Dr. Martel - falou o dr. Peter Morrison, de pé à Porta de entrada do laboratório de Charles. - Ó senhor não recebeu meu recado? Charles, que estava curvado, colocando amostras de soro num contador radioativo automático, endireitou o corpo 41

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e olhou para Morrison, chefe administrativo do departamento de fisiologia. O homem estava encostado no portal, a luz fluorescente das lâmpadas do teto refletindo-se nas lentes de seus estreitos óculos de tartaruga. Seu rosto estava tenso e zangado. - Estarei lá dentro de dez ou quinze minutos - disse Charles. - Tenho agora algumas coisas mais importantes para fazer. Morrison considerou o comentário de Charles por um instante. - Estarei esperando em meu escritório. - E fechou a porta lentamente atrás de si. - Você não devia irritá-lo - disse Ellen, depois que Morrison saiu. - Ele só pode lhe arranjar complicações. - Isso é bom para ele - falou Charles. - Vai dar-lhe algo em que pensar. Na verdade, não sei o que mais ele faz naquele escritório. - Alguém tem de tratar da administração - observou Ellen. - A ironia é que ele já foi um pesquisador decente - continuou Charles. - Agora toda a sua vida está dominada pela ambição de se tornar diretor, e tudo o que ele faz é escrever artigos, comparecer a reuniões, almoços e festas de caridade. - Essas festas levantam dinheiro. - Suponho que sim. Mas você não precisa de um diploma em fisiologia para fazer isso. Acho que é um desperdício. Se as pessoas que doam dinheiro para esses fundos soubessem como é pouca a verba aplicada em pesquisa, ficariam apavoradas. - Concordo com você. Mas por que não me deixa acabar de colocar essas amostras? Vá ver Morrison e resolver tudo, porque vou precisar de você para ajudar a tirar sangue dos ratos. Dez minutos mais tarde, Charles subia as escadas de incêndio de metal para o segundo andar. Ele não tinha a menor idéia do que Morrison queria, embora achasse que se tratava de exortá-lo a publicar um artigo para alguma próxima reunião. As idéias de Charles sobre publicações eram muito diferentes das de seus colegas. Jamais tivera a inclinação de correr para as impressoras. Embora a carreira de um pesquisador fosse muitas vezes medida pelo número de artigos que publicava, a obstinada e brilhante dedicação de Charles conferia-lhe um maior respeito por parte dos colegas, 42

muitos dos quais diziam freqüentemente que eram homens como Charles que faziam as grandes descobertas científicas. Era apenas a administração que se queixava. O escritório do dr. Morrison ficava na área administrativa no segundo andar, onde os balls eram pintados de um agradável bege, e as paredes, repletas de sombrios retratos a óleo de antigos diretores em trajes acadêmicos. O ambiente constituía um mundo à parte dos úteis laboratórios do térreo e do primeiro andar. Parecia mais um bem-sucedido escritório de advocacia do que de uma organização médica não lucrativa. Aquele fausto sempre deixava Charles irritado; ele sabia que o dinheiro era proveniente de pessoas que acreditavam estar contribuindo para a pesquisa. Assim pensando, Charles dirigia-se para o escritório de Morrison. Estava prestes a entrar quando notou que todas as secretárias da área da administração o observavam. Havia no ar aquela mesma sensação de excitação reprimida que Charles tinha experimentado ao chegar naquela manhã. Era como se todo mundo estivesse à espera de algum acontecimento. Quando Charles entrou, Morrison levantou-se de sua ampla mesa de mogno e atravessou o aposento com a mão estendida. Sua anterior irritação havia desaparecido. Por hábito, Charles apertou-lhe a mão, mas ficou meio aturdido com aquele gesto. Ele nada tinha em comum com aquele homem. Morrison trajava um terno listrado recém-passado, camisa branca engomada e gravata de seda; seus sapatos feitos à mão estavam perfeitamente engraxados. Charles usava sua habitual camisa azul, aberta no pescoço, com a gravata, de laço frouxo, enfiada entre o segundo e o terceiro botões da camisa; as mangas estavam arregaçadas até acima dos cotovelos. As calças eram de tecido caqui, balofas, e seus sapatos uma espécie de sandálias de

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couro. - Seja bem-vindo - disse Morrison, como se já não tivesse visto Charles naquela manhã. Acenando com a mão, fez com que Charles se sentasse no divã nos fundos do escritório, de onde ele podia ver o rio Charles. - Aceita um café? - perguntou Morrison, sorrindo e exibindo dentes pequenos, muito brancos e regulares. Charles recusou o café e, sentando-se no divã, cruzou os braços. Algo de estranho ocorria, e sua curiosidade estava espicaçada. - Leu o New York Times de hoje? - perguntou Morrison. 43

Charles acenou com a cabeça negativamente. Morrison caminhou até sua mesa, apanhou o jornal e chamou a atenção de Charles para um artigo na primeira página. Sua pulseira de identificação escorregou de dentro da manga da camisa enquanto ele apontava. ESCÂNDALO NO WEINBURGER INSTITUTE. Charles leu o primeiro parágrafo, que parafraseava o que Ellen já lhe dissera. Era o suficiente. - É terrível, não? - enfatizou Morrison. Charles balançou a cabeça, num meio assentimento. Embora soubesse que tal incidente teria um efeito negativo durante algum tempo sobre o levantamento de fundos, sentia também que o caso afastaria uma ênfase imerecida da nova droga, Canceran, e esperançosamente a transferiria para áreas mais promissoras. Para Charles, o Canceran era apenas mais um agente alquilante. Ele achava que a resposta para o câncer estava na imunologia, não na quimioterapia, embora reconhecesse o aumento do número de curas conseguidas nos anos recentes. - O dr. Brighton devia ser mais comedido - disse Morrison. - Acontece que ele é muito jovem, muito impaciente. Charles esperou que Morrison fosse direto à questão. - Vamos ter que deixar o dr. Brighton ir embora continuou Morrison. Charles assentiu, enquanto Morrison se lançava em suas explicações sobre o comportamento de Brighton. Charles contemplava a careca brilhante do diretor. O pouco cabelo que ele tinha achava-se localizado acima de suas orelhas e se ligava na nuca por uma faixa bem aparada. •- Espere um minuto - interrompeu Charles. Tudo isso é muito interessante, mas tenho uma importante experiência em andamento lá embaixo. Há alguma coisa específica que o senhor queira me dizer? - Certamente - retrucou Morrison, ajustando o punho da camisa. Sua voz assumiu um tom mais grave, e ele juntou as pontas dos dedos em cone. - A junta de diretores do instituto antecipou-se ao artigo do New York Times e convocou uma reunião de emergência na noite passada. Decidimos que, se não agíssemos rapidamente, a verdadeira vítima do caso Brighton seria a nova e promissora droga, o Canceran. Admito que você possa compreender essa preocupação. 44

- Claro - respondeu Charles, sentindo porém formar-se uma nuvem negra no horizonte de sua mente. - Ficou também decidido que a única maneira de salvar o projeto era o instituto apoiar publicamente a droga, indicando o mais prestigioso de seus cientistas para completar os testes. E tenho a satisfação de dizer, Charles Martel, que você foi o escolhido. Charles fechou os olhos e bateu com a mão na testa. Ele queria sair correndo do escritório, mas conteve-se. Aos poucos, reabriu os olhos. Os finos lábios de Morrison estavam repuxados num sorriso. Charles não podia dizer se o homem sabia qual era a sua reação e estava, portanto, caçoando dele, ou se Morrison acreditava mesmo que lhe estava dando boas notícias. - Não posso lhe dizer o quanto estou satisfeito - continuou Morrison - de que a junta de diretores tenha escolhido alguém de meu departamento. Não que isso me surpreenda, entenda. Todos nós

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vimos trabalhando incansavelmente para o Weinburger. É ótimo receber esse tipo de reconhecimento de vez em quando. E, naturalmente, você foi o meu escolhido. - Bem - começou Charles, numa voz tão firme quanto podia manter. - Espero que o senhor transmita meus agradecimentos à junta de diretores por este voto de confiança, mas infelizmente não estou em posição de assumir o projeto Canceran. O senhor sabe, meu próprio trabalho está progredindo extremamente bem. Eles precisam encontrar outra pessoa. - Espero que você esteja brincando - disse Morrison. Seu sorriso reduziu-se e depois desapareceu. - De modo algum. com o progresso que estou fazendo, não há como deixar meu trabalho atual. Minha assistente e eu temos sido extremamente bem-sucedidos, e as coisas estão caminhando cada vez mais depressa. - Mas há anos que você não publica um só artigo. Não vejo nenhuma rapidez nisso. Além disso, os recursos para o seu trabalho provêm quase que totalmente dos fundos para operações gerais do instituto; há muito tempo que você não é responsável por nenhuma contribuição maior para ° instituto. Sei disso porque você vem insistindo em perjnanecer no campo da pesquisa imunológica do câncer, e até noje eu o tenho apoiado em tudo. Mas agora seus serviços são necessários. Assim que você terminar o projeto Canceran, pode retornar ao seu trabalho. Isso é muito simples. 45

E Morrison levantou-se e encaminhou-se para trás de sua mesa, como a indicar que, de sua parte, a reunião estava terminada, a questão decidida. - Mas não posso abandonar meu trabalho - insistiu Charles, experimentando uma sensação de desespero. - Não agora. As coisas estão indo muito bem. E quanto aos meus progressos no processo do hibridoma? Isso deve valer alguma coisa. - Ah, o hibridoma. Um trabalho maravilhoso! Quem teria pensado que um linfócito sensibilizado poderia se fundir com uma célula cancerosa para formar uma espécie de fábrica de anticorpo celular? Brilhante! Há apenas dois problemas. Primeiro: isso foi há muitos anos; e segundo: você não publicou a descoberta! Poderíamos tê-la capitalizado. Em vez disso, uma outra instituição recebeu o crédito. Eu não contaria com a criação do hibridoma para assegurar sua posição ante a junta de diretores. - Não publiquei o processo do hibridoma por se tratar apenas de um simples passo no andamento de minha experiência. Nunca tive pressa de procurar a impressora. - Todos nós sabemos disso. com efeito, é talvez a principal razão de você permanecer onde está e não na chefia de um departamento. - Não quero ser chefe de nenhum departamento gritou Charles, começando a perder a paciência. - Quero fazer pesquisa, não ficar empurrando artigos e correndo atrás de benefícios. - Devo considerar isso como um insulto pessoal? - Pode considerar como quiser -- retrucou Charles, que desistira de seus esforços para controlar a raiva. Levantando-se, aproximou-se da mesa de Morrison, apontando-lhe um dedo acusador. - vou lhe dizer a principal razão pela qual não posso assumir o projeto Canceran. Não acredito nele! - Que diabo isso quer dizer? - A paciência de Morrison também havia se esgotado. - Quer dizer que os venenos celulares como o Canceran não constituem a última resposta ao câncer. Presume-se que eles matem as células cancerosas mais depressa do que as células normais, de modo que, depois que o tumor acaba, o paciente ainda tem bastantes células normais para viver. Mas isso é apenas uma abordagem provisória. A cura do câncer só pode advir de um melhor conhecimento dos pro- 46

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cessos celulares da vida, particularmente da comunicação química entre eles. Charles começou a passear pela sala, correndo nervosamente os dedos pelos cabelos. Morrison, ao contrário, não se movia. Limitava-se a seguir os deslocamentos de Charles com os olhos. - Eu lhe digo - gritou Charles - que toda a ofensiva contra o câncer está vindo de uma perspectiva errada. O câncer não pode ser considerado uma doença como uma infecção, porque encoraja o falso conceito de que pode haver uma bala mágica para curá-lo como um antibiótico. - Charles parou de andar e debruçou-se sobre a mesa, na direção de Morrison. Sua voz estava mais calma, porém mais apaixonada. - Venho pensando muito nisso, dr. Morrison. O câncer não é uma doença no sentido tradicional, mas o mascaramento de uma forma de vida mais primitiva, como as que existiam no início dos tempos, quando estavam evoluindo os organismos multicelulares. Há muitas eras, houve uma época em que só viviam criaturas unicelulares, que, egoisticamente, se ignoravam umas às outras. Mas então, depois de alguns milhões de anos, algumas delas se associaram, porque era mais eficiente. Elas se comunicavam quimicamente, e essa comunicação tornou possível a formação de organismos multicelulares como nós. Por que uma célula hepática só faz o que faz, ou uma célula do coração, ou do cérebro? A resposta está na comunicação química. Mas as células cancerosas não são receptivas a esta comunicação química. Elas se libertaram, retornaram a um estágio mais primitivo, como aqueles organismos unicelulares que existiam há milhões de anos. O câncer não é uma doença, mas uma pista para a organização básica da vida. E a imunologia é o estudo dessa comunicação. Charles encerrou seu monólogo com as mãos apoiadas sobre a mesa de Morrison. Seguiu-se um silêncio constrangedor. Morrison pigarreou, limpando a garganta, puxou sua cadeira de couro e sentou-se. - Muito interessante - disse ele. - Infelizmente não estamos tratando de um negócio metafísico. E devo lembrar-lhe que há mais de uma década o aspecto imunologico do câncer vem sendo abordado como uma contribuição muito pequena para o prolongamento da vida das vitimas. - Aí é que está o ponto - interrompeu Charles. A imunologia vai representar uma cura, não um paliativo. 47

- Por favor - disse Morrison, suavemente. - Eu o escutei, agora você vai me escutar. Atualmente, há muito pouco dinheiro disponível para a imunologia. Isso é um fato. O projeto Canceran traz uma enorme dotação, tanto do Instituto Nacional de Câncer quanto da Sociedade Americana de Câncer. O Weinburger precisa desse dinheiro. Charles tentou interromper, mas Morrison impediu-o. Charles deixou-se cair pesadamente sobre uma cadeira. Podia sentir o peso da burocracia do instituto envolvendo-o como um gigantesco polvo. Ritualmente, Morrison retirou seus óculos e colocou-os sobre o mata-borrão. - Você é um cientista soberbo, Charles. Todos nós sabemos disso, e eis por que precisamos de você neste momento. Mas é também um sujeito do contra e, neste sentido, mais tolerado do que apreciado. Você tem inimigos aqui, talvez motivados pelo ciúme, talvez pelo seu orgulho. Eu já o defendi no passado. Mas há os que gostariam de vê-lo pelas costas. Estou lhe dizendo isso para seu próprio bem. Na reunião da noite passada eu disse que você podia recusar-se a assumir o projeto Canceran. Ficou decidido que, se você o fizesse, seria o fim de sua posição aqui. Deve ser bastante fácil arranjar uma outra pessoa para pôr em seu lugar num projeto como este. O fim! A palavra ecoou dolorosamente na mente de Charles. Ele tentava reunir seus pensamentos. - Posso falar agora? - perguntou Charles. - Claro. Diga-me que vai assumir o projeto Canceran. Isso é tudo o que quero ouvir. - Tenho estado muito ocupado lá embaixo -

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falou Charles, ignorando o último comentário de Morrison -, e estou andando muito depressa. Tenho guardado segredo propositadamente, mas acredito que estou bem perto de compreender o câncer e encontrar possivelmente uma cura. Morrison estudava o rosto de Charles, tentando colher uma indicação de sua sinceridade. Seria aquilo um truque? Uma ilusão de grandeza? Morrison mirou os olhos azuis brilhantes e a testa franzida de Charles. Ele sabia tudo sobre o passado de Charles, sobre a morte de sua mulher, sua súbita mudança da medicina clínica para a pesquisa. Sabia que Charles era um trabalhador brilhante, mas um lobo solitário. Ele suspeitava que a idéia de Charles de "estar bem perto" podia muito bem significar dez anos. - A cura do câncer - disse Morrison, sem se impor- 48

tar de emprestar um fio de sarcasmo à sua voz. Ele conservava os olhos fixos no rosto de Charles. - Isso seria ótimo. Todos nós nos sentiríamos orgulhosos. Mas... isso terá de esperar até que se resolva o projeto Canceran. A Lesley Pharmaceuticals, que tem a patente, está impaciente para iniciar a produção. Agora, dr. Martel, se o senhor me desculpar, tenho o que fazer. O assunto está encerrado. Os livros do laboratório do Canceran estão à sua disposição e, portanto, mãos à obra. Boa sorte. Se tiver algum problema, comunique-me. Charles deixou o escritório de Morrison estonteado, abatido ante a perspectiva de ser obrigado a abandonar sua própria pesquisa numa hora tão crítica. Consciente do esquisito olhar da afetada secretária de Morrison, Charles dirigiuse em passo acelerado para as escadas de incêndio, batendo a porta. Desceu lentamente, com a cabeça num torvelinho. Jamais em sua vida alguém ameaçara despedi-lo. Embora ele se sentisse confiante de poder arranjar um emprego, a idéia de ser rejeitado, mesmo por um curto período, era devastadora, principalmente com todas as suas obrigações financeiras. Quando abandonara sua clínica particular, Charles havia abandonado seu slalus de uma situação moderadamente abastada. com seu salário de pesquisador, eles mal conseguiam viver, especialmente com Chuck na faculdade. Alcançando o primeiro andar, Charles virou no hall em direção ao seu laboratório. Precisava de algum tempo para pensar.

Era a vez delas. Uma enfermeira que parecia ter saído de um filme de Doris Day da década de 50 chamou o nome de Michelle e manteve a porta aberta. Michelíe agarrou fortemente a mão da madrasta ao entrarem no consultório. Cathryn não sabia qual das duas estava mais tensa. O dr. Wiley ergueu os olhos de uma papeleta, espiando por sobre os óculos de meia-lua. Cathryn jamais tinha visto o dr. Jordan Wiley, mas todas as crianças o conheciam. Michelle dissera a Cathryn que se lembrava de tê-lo consultado por causa de uma varicela, quatro anos antes, quando estava com oito anos de idade. Cathryn foi imediatamente conquistada pela simpatia do homem. Ele estava no fim dos seus cinqüenta anos e exalava aquele ar confortavelmente paternal que as pessoas costumam associar aos médicos. Era um homem alto, com o cabelo grisalho cortado ,rente e um espesso bigode cinzento. Usava uma pequena gravata-borboleta feita à mão, que lhe dava uma aparência única, enérgica. Suas mãos eram grandes, mas delicadas, enquanto ele depositava a papeleta sobre a mesa e se curvava para a frente. - Ora, ora - disse o dr. Wiley. - Srta. Martel, você se tornou uma moça. Está muito bonita, um pouco

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pálida, mas linda. Agora apresente-me à sua nova mãe. - Ela não é minha nova mãe - retrucou Michelle, indignada. - Ela é minha mãe há mais de dois anos. Cathryn e o dr. Wiley riram e, após um instante de indecisão, Michelle juntou-se a eles, embora sem ter certeza de haver entendido a piada. - Por favor, sente-se - disse o dr. Wiley indicando uma cadeira diante de sua escrivaninha. Como um clínico perfeito, o dr. Wiley já havia iniciado o exame no momento em que Michelle entrara em seu consultório. Além de sua palidez, ele havia notado a tentativa da menina de se manter equilibrada, sua postura curvada, o aspecto vidrado de seus 51

olhos azuis. Abrindo sua ficha, que ele já havia visto antes, pegou uma caneta. - E agora, qual é o problema? Cathryn descreveu a doença, enquanto Michelle acrescentava comentários aqui e ali. Disse que tudo havia começado com uma febre e um mal-estar generalizado. A princípio pensara que se tratasse de um resfriado, mas o mal não queria ir embora. Em certas manhãs ela estava ótima, noutras sentia-se muito mal. Concluiu dizendo que decidira ser melhor submeter Michelle a um exame, para o caso de ela precisar de alguns antibióticos ou qualquer outra coisa. - Muito bem - falou o dr. Wiley. - Agora eu gostaria de ficar um pouco sozinho com Michelle. Se a senhora não se importa, sra. Martel. - E, contornando sua mesa, abriu a porta que dava para a sala de espera. Momentaneamente perplexa, Cathryn levantou-se. Ela esperava ficar com Michelle. O dr. Wiley sorriu cordialmente e, como se estivesse lendo sua mente, disse: - Michelle ficará bem comigo; somos velhos amigos. Dando um ligeiro apertão no ombro de Michelle, Cathryn dirigiu-se para a sala de espera. Na porta, fez uma pequena pausa. - Vai demorar muito? Terei tempo de visitar um paciente? - Acho que sim. Estaremos prontos em cerca de trinta minutos. - Estarei de volta antes disso, Michelle - falou Cathryn. Michelle acenou com a mão, e a porta fechou-se. Orientada por algumas indicações fornecidas pela enfermeira, Cathryn voltou pelo mesmo caminho para o saguão principal. Só depois que entrou no elevador foi que seu antigo medo de hospitais retornou. Olhando fixamente para uma garotinha triste sentada numa cadeira de rodas, Cathryn sentiu que os hospitais infantis eram particularmente assustadores. A idéia de uma criança doente fazia com que se sentisse fraca. Ela procurava concentrar sua atenção no indicador dos andares acima da porta, mas um impulso poderoso e incompreensível a obrigava a conservar os olhos sobre a criança doente. Quando a porta se abriu no quinto andar, suas pernas pareciam de borracha, e as palmas das mãos estavam molhadas de suor. Cathryn dirigia-se para o isolamento Marshall Memorial, mas o quinto andar abrigava também a unidade de terapia intensiva e a sala de recuperação de cirurgias. Em 52

seu estado de sensibilidade emocional, Cathryn estava sujeita a todas as visões e sons associados a agudas crises médicas. O bip dos monitores cardíacos misturado ao choro de crianças apavoradas. Por toda parte havia uma profusão de tubos, frascos e máquinas que assobiavam. Era um mundo estranho, povoado por uma multidão atarefada que, para ela, parecia alheia ao horror que a cercava. Cathryn esquecia que aquelas crianças estavam sendo assistidas. Parando para tomar fôlego numa estreita passagem ladeada por janelas, Cathryn viu que estava passando de um edifício para outro dentro do centro médico. Aquela passagem era uma ponta de paz. Ficou sozinha um instante, até que passou por ela um homem numa

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cadeira de rodas, em cuja parte traseira, motorizada, estava escrito EXPEDIDOR. Tubos de ensaio e toda espécie de frascos cheios de fluidos tilintavam, presos a uma estante de metal. Ele sorriu, e Cathryn retribuiu o sorriso. Ela sentiu-se melhor e, fortalecida, prosseguiu. A unidade de isolamento Marshall Memorial era mais condizente com o estado de espírito de Cathryn. As portas de todos os quartos estavam fechadas e não se via nenhum doente. Cathryn aproximou-se do posto das enfermeiras, que mais parecia um balcão de passagens de um moderno aeroporto do que o centro nervoso de uma enfermaria de hospital. Era uma grande área quadrada, com uma bancada de monitores de TV. Um funcionário olhou-a e vivamente perguntou-lhe se poderia ajudá-la. - Estou à procura de Tad Schonhauser - disse Cathryn. - No 521 - informou o funcionário, apontando com o dedo. Cathryn agradeceu-lhe e encaminhou-se para a porta, que estava fechada. Bateu de leve. - Entre - falou o funcionário. - Mas não se esqueça do seu avental. Cathryn experimentou a maçaneta. A porta se abriu e ela se viu numa pequena antecâmara com uma prateleira para roupas de cama e outros suprimentos, um armário de remédios, uma pia e uma cesta de vime para roupa suja. Além da cesta, havia uma outra porta fechada, com uma pequena janela de vidro. Antes que Cathryn se mexesse, a porta interna se abriu e um vulto de máscara e metido num avental entrou no quarto. com movimentos rápidos, o vulto iivrou-se da máscara e do capuz de papel, jogando-os no 53

depósito de lixo. Era uma jovem enfermeira de cabelos ruivos e sardas. - Oi - disse ela. - As luvas vão para o lixo, o avental, para a cesta. Você vai ver Ted? - Espero que sim - retrucou Cathryn. - A sra. Schonhauser também está lá dentro? - Sim. Ela passa o dia todo lá, coitada. Não se esqueça de pôr o avental. As precauções são muito severas. - Eu... - ia dizer Cathryn, mas a enfermeira, apressada, já havia atravessado a porta. Cathryn deu uma busca nas prateleiras até achar os capuzes e as máscaras. Colocou-os, sentindo-se ridícula. A seguir foi a vez do avental, mas ela o vestiu como um casaco. As luvas de borracha foram mais difíceis, e ela não conseguiu encontrar a da mão esquerda. com os dedos meio vazios e pendentes da mão, abriu a porta interna. A primeira coisa que viu foi um grande envoltório de plástico como uma gaiola circundando a cama. Embora o plástico deformasse a imagem, Cathryn conseguiu discernir a forma de Tad Schonhauser. À luz fluorescente, o menino estava pálido, com uma cor ligeiramente esverdeada. Ouviase um leve zumbido do oxigênio. Marge Schonhauser estava sentada à esquerda da cama, lendo junto à janela. - Marge - murmurou Cathryn. A mulher mascarada e vestida no avental ergueu os olhos. - Sim? - Sou eu, Cathryn. - Cathryn? - Cathryn Martel. - Santo Deus! - exclamou Marge quando conseguiu associar o nome à pessoa. Levantou-se e depôs o livro. Em seguida, pegando Cathryn pela mão, levou-a de volta à antecâmara. Antes que a porta se fechasse por trás delas, Cathryn virou-se e olhou para Tad. O menino não se movera, embora seus olhos estivessem abertos. - Muito obrigada por ter vindo - disse Marge. Deu-me muito prazer. - Como estatele? - perguntou Cathryn. O quarto estranho, as vestimentas. . . nada era encorajador. - Muito mal - replicou Marge, arrancando sua máscara. Seu rosto estava tenso; seus olhos, vermelhos e inchados. - Ele já recebeu dois transplantes de medula de Lisa, mas não adiantou. Não adiantou nada. 54

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- Falei com Nancy esta manhã - disse Cathryn. Não sabia que ele estava tão mal assim. Cathryn podia sentir a emoção de Marge. Era como se estivesse sob a superfície de um vulcão prestes a entrar em erupção. - Eu nunca havia ouvido falar em anemia aplástica - prosseguiu Marge, tentando rir. Mas em vez do riso, vieram as lágrimas. Cathryn viu-se também chorando de compaixão, e as duas mulheres ficaram ali, chorando, uma no ombro da outra. Por fim, Marge suspirou, afastou-se delicadamente e olhou para o rosto dê Cathryn. - Oh, que bom que você tenha vindo! Não imagina como aprecio isso. Uma das coisas difíceis numa doença grave é que as pessoas ignoram a gente. - Mas eu não fazia idéia - repetiu Cathryn com remorso. - Não a estou censurando. Falo das pessoas de um modo geral. Acho que elas apenas não sabem o que dizer, ou talvez tenham medo do desconhecido. Mas é quando você mais precisa delas. - Sinto muitíssimo - disse Cathryn, à falta de outra coisa para dizer. Ela desejara ter feito aquela visita há semanas. Marge era mais velha do que ela; sua idade se aproximava mais da de Charles. Mas ambas se davam muito bem, e Marge tinha sido muito atenciosa e obsequiosa quando Cathryn se mudara para Shaftesbury. Os outros habitantes da Nova Inglaterra tinham sido muito frios. - Não quero descarregar em cima de você - continuou Marge -, mas estou tão assustada! Os médicos me disseram hoje que Tad pode estar nas últimas. Estão procurando me preparar. Não quero que ele sofra, mas também não quero que morra. Cathryn estava pasma. Nas últimas? Morrer? Eram palavras que podiam se referir a gente velha, não a um garoto que havia poucas semanas estava em sua cozinha, exuberante de vida e energia. com dificuldade, ela resistiu à vontade de descer correndo pelas escadas. Em vez disso, apertou Marge em seus braços. - Eu nada posso fazer senão perguntar por quê soluçava Marge, lutando para se controlar e deixando que Cathryn a segurasse. - Dizem que o bom Deus tem suas razões, mas eu gostaria de saber por quê. Ele era um menino tão bom ! Isso me parece injusto. Reunindo suas forças, Cathryn começou a falar. Ela não

havia planejado o que iria dizer. As palavras apenas iam saindo. Falou de Deus e da morte de um modo que a surpreendeu, pois não era-religiosa no sentido tradicional. Fora educada como católica, e tinha mesmo pensado brevemente em tornar-se freira quando tinha dez anos. Mas durante o período de colégio rebelara-se contra o ritual da Igreja e tinha se tom ado uma espécie de agnóstica, não se incomodando em examinar suas crenças. No entanto, o que disse deve ter tido sentido, porque Marge reagiu; se era pelo conteúdo do que havia dito ou apenas por sua companhia e humanidade, Cathryn não saberia dizer. Contudo, Marge acalmou-se e chegou mesmo a esboçar um sorriso. - Tenho de ir - falou, por fim, Cathryn. - Preciso me encontrar com Michelle. Mas voltarei e telefonarei esta noite, prometo. Marge assentiu e beijou Cathryn, antes de retornar para junto do filho. Cathryn saiu para o hall. Junto à porta, parou, respirando rapidamente. O hospital tinha lhe feito sentir todos os seus medos, afinal. - Não me parece que tenhamos muita escolha disse Ellen, depositando sua caneca de café sobre o balcão. Ela estava sentada num banco de laboratório, olhando para Charles, que se achava derreado na cadeira diante de sua escrivaninha. - É um absurdo termos que reduzir nosso trabalho neste ponto, mas que podemos fazer? Talvez devêssemos ter mantido Morrison informado do nosso progresso. - Não - disse Charles. Tinha os cotovelos apoiados sobre a mesa e o rosto entre as mãos. O café não tinha sido tocado. - Se tivéssemos feito isso, ele nos teria interrompido uma dúzia de vezes a fim de nos fazer escrever algum maldito artigo. Estaríamos anos atrasados. - Teria sido a única maneira de evitar isso - disse Ellen, estendendo a mão e

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segurando o braço de Charles. Talvez mais do que ninguém, ela compreendia o quanto era difícil para ele. Charles detestava qualquer interferência em seu trabalho, particularmente uma interferência administrativa. - Mas talvez você tenha razão. Se eles soubessem o que estamos fazendo, estariam aqui todos os dias. - Ela continuou a segurar o braço dele. - Tudo vai dar certo. Vamos apenas reduzir um pouco o trabalho. Charles olhou dentro dos olhos de Ellen, que eram 56

tão escuros que as pupilas se fundiam com as íris. Ele estava consciente do contato da mão dela. Desde o caso entre eles que ela evitava escrupulosamente tocá-lo. Agora, na mesma manhã, ela o havia acusado de insensibilidade e segurava seu braço; eram sinais confusos. - Este negócio absurdo do Canceran vai levar algum tempo - falou ele. - De seis meses a um ano. E isso se tudo correr bem. - Por que não nos dedicarmos ao Canceran e ao nosso próprio trabalho? - perguntou Ellen. - Podemos estender nosso horário de trabalho, trabalhar à noite. Eu o farei por você. Charles levantou-se. Trabalhar à noite. Olhou para Ellen, lembrando-se ainda vagamente de ter dormido com ela; parecia que fora há muito tempo. Sua pele era da mesma cor azeitonada da de Elizabeth e Michelle. Embora ele houvesse sido fisicamente atraído por Ellen, jamais lhe parecera correto; eles eram parceiros, colaboradores, colegas, não amantes. Tinha sido um caso embaraçoso; e seu ato de amor fora desajeitado, como o de adolescentes. Cathryn não era tão bonita quanto Ellen, mas, desde o início, fora mais confortável, mais gratificante. - Tive uma idéia melhor - disse Charles. - Por que não passo por cima de Morrison, vou ao diretor e ponho as cartas na mesa, explicando que é infinitamente mais importante para nós ficarmos com nosso próprio trabalho? - Não creio que isso possa ajudar - advertiu Ellen. - Morrison disse que a decisão veio da junta de diretores. O dr. Ibanez não vai voltar atrás. Acho que você está apenas procurando encrenca. - Acho que vale a pena correr o risco. Ajude-me a reunir os relatórios. vou mostrar a ele o que estamos fazendo. Ellen deixou-se escorregar de seu banco e encaminhouse para a porta que dava para o hall. - Ellen? - chamou Charles, surpreendido pela atitude dela. Ela não parou. - Faça o que você quiser, Charles. Você sempre faz. " E fechou a porta atrás de si. O primeiro impulso de Charles foi correr atrás dela. Mas essa vontade esfriou rapidamente. Ele esperara o apoio de Ellen. Além disso, tinha coisas mais importantes a fazer do que se preocupar com o humor e o comportamento da

moça. Aborrecido, Charles tirou-a de seu pensamento e concentrou-se em apanhar o principal livro de protocolo de sua escrivaninha e os relatórios mais recentes de sua bancada de trabalho. Ensaiando o que iria dizer, retornou às escadas de incêndio. A fileira de secretárias administrativas controlavam cuidadosamente seu progresso pelo hall. Todo mundo sabia que lhe haviam ordenado que assumisse o projeto Canceran e que ele não estava feliz com a idéia. Charles ignorou os olhares, embora se sentisse como um lobo num galinheiro ao se aproximar da srta. Verônica Evans, secretária do dr. Carlos Ibanez. Consoante com seu status, sua área era separada do resto do aposento por divisórias apaineladas. Ela estava em Weinburger há mais tempo do que Ibanez. Era uma mulher bem-arrumada, de vastas proporções e de uma indeterminada meia-idade. - Gostaria de ver o diretor - disse Charles numa voz firme. - Tem

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entrevista marcada? - Ninguém intimidava a srta. Evans. - Basta dizer-lhe que estou aqui. - Lamento. . . - começou a falar a srta. Evans. - Se você não lhe disser que estou aqui, vou entrar de qualquer jeito. - Charles procurava controlar a voz. Assumindo uma de suas famosas expressões de desdém, relutantemente a srta. Evans levantou-se e desapareceu no escritório interior. Ao voltar, simplesmente deixou a porta entreaberta e fez sinal a Charles para entrar. O escritório de Ibanez era uma grande sala de canto que dava para o sul e para o leste. Além do campus da Universidade de Boston, podia-se ver parte da silhueta da cidade através do rio Charles parcialmente congelado. Ibanez estava sentado junto a uma monstruosa e antiga escrivaninha espanhola. A paisagem ficava às suas costas. Sentado diante da escrivaninha achava-se o dr. Thomas Brighton. Rindo de alguma coisa engraçada dita antes da chegada de Charles, o dr. Ibanez indicou-lhe uma cadeira com o comprido charuto que estava fumando. Por sobre a cabeça do diretor pairava um círculo de fumaça, como uma nuvem de chuva sobre uma ilha tropical. Era um homem pequeno, no início dos seus sessenta anos, dado a fazer movimentos rápidos, em especial com as mãos. Seu rosto, eternamente bronzeado, era emoldurado por um cabelo e um cavanhaque prateados. Sua voz era surpreendentemente forte.

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Charles sentou-se, perturbado pela preseça do dr. Brighton. Por um lado ele estava furioso com o homem, tanto no terreno profissional quanto no pessoal. Por outro, tinha pena dele, tendo de enfrentar um escândalo e a súbita dissolução de sua vida. O dr. Brighton relanceou o olhar rápida mas animosamente para Charles antes de tornar a se virar para o dr. Ibanez. Aquele simples olhar foi o suficiente para minar a empa tia de Charles. Estudou o perfil de Brighton. Era jovem; trinta e um anos. E parecia mais jovem do que isso:- louro e belo, com uma espécie de elegância universitária fora de moda. - Ah, Charles - falou Ibanez, algo constrangido -, eu estava justamente me despedindo de Thomas. É uma pena que em seu zelo para acabar o projeto Canceran ele tenha agido tão loucamente. - Loucamente? - explodiu Charles. - Criminosamente seria mais exato. Thomas enrubesceu. - Ora, Charles, seus motivos foram os melhores. Sabemos que ele não pretendia embaraçar o instituto. O verdadeiro criminoso foi a pessoa que passou a informação para a imprensa. E temos todo o interesse em descobri-la e puni-la exemplarmente. - E o dr. Brighton? - perguntou Charles, como se o homem não estivesse na sala. - O senhor vai ignorar ou justificar o que ele fez? - Claro que não - disse Ibanez. - Mas o que ele sofreu nas mãos da imprensa já me parece um castigo suficiente. Vai ser difícil ele arranjar um emprego digno dos seus talentos nos próximos anos. Não há dúvida de que o Weinburger não pode mais financiar sua carreira. Eu estava acabando de lhe falar sobre um grupo de medicina clínica na Flórida, onde estou certo de que ele poderá conseguir uma posição. Seguiu-se uma pausa desconfortável. - Bem - disse o dr. Ibanez, erguendo-se e contornando sua escrivaninha. Brighton levantou-se quando Ibanez se aproximou dele. O dr. Ibanez pôs o braço sobre o ombro de Brighton e caminhou com ele até a porta, ignorando a Presença de Charles. - Eu apreciaria qualquer auxílio que o senhor pudesse tne dar - disse Brighton. 59

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- Espero que você entenda as razões pelas quais deve deixar o instituto tão depressa - acrescentou Ibanez. - Claro - retrucou Brighton. - Quando a imprensa se mete numa coisa dessas, quer sugá-la até o fim. Estou satisfeito de sair do palco, de deixar de ser alvo da atenção pública. Fechando a porta atrás de Brighton, Ibanez voltou à mesa e sentou-se. Sua atitude havia mudado subitamente para uma irritada exaustão. - Na verdade, há duas pessoas que eu gostaria de estrangular. A pessoa que deixou escapar a história e o repórter que a escreveu. A imprensa tem o hábito de exagerar as coisas, e este é um bom exemplo. Primeira página do New York Times! Absurdo! - Parece-me - disse Charles - que o senhor está censurando as pessoas erradas. Afinal de contas, isso é uma "questão moral", não apenas uma inconveniência. O dr. Ibanez fitou Charles por sobre a mesa. - O dr. Brighton não devia ter feito o que fez, mas a questão moral não me aborrece tanto quanto o dano potencial causado ao instituto e à droga Canceran. Isso faz de uma coisa de somenos importância uma grande catástrofe. - Não acho que a integridade profissional seja uma coisa de somenos importância. - Espero que o senhor não esteja me admoestando, dr. Martel. Deixe-me dizer-lhe uma coisa. O dr. Brighton não foi levado por qualquer má intenção. Ele acreditava no Canceran e queria acelerar sua disponibilidade para o público. Sua fraude foi o resultado de uma impaciência juvenil, da qual todos nós temos sido culpados num ou noutro ponto. Infelizmente, neste caso, seu entusiasmo escapou-lhe das mãos, e com isso perdemos um homem muito talentoso, um fenomenal levantador de fundos. Charles chegou-se para a beira do assento. Para ele a questão era clara como cristal, e estava admirado de que ele e Ibanez pudessem encarar o caso de pontos de vista tão fundamentalmente diferentes. Quando estava a ponto de fazer uma crítica acerba sobre a diferença entre o certo e o errado, Charles foi interrompido pela srta. Evans. - Dr. Ibanez - chamou a srta. Evans do vão da porta. - O senhor me disse que lhe avisasse quando o sr. Bellman chegasse. Ele está aqui. - Mande-o entrar! - gritou Ibanez, pondo-se de pé de um salto, como um pugilista ao soar do gongo. 60

Jules Bellman, o relações-públicas do instituto, passou pela porta como um cachorrinho com o rabo entre as pernas. - Até hoje de manhã eu nada sabia sobre este caso do Times -- esganiçou ele. - Não sei como isso aconteceu, mas não foi ninguém do meu escritório. Infelizmente, havia muita gente que sabia. - Minha assistente me falou que o fato estava sendo comentado em todo o instituto - disse Charles, acorrendo em socorro de Bellman. - Acho que eu era o único que nada sabia a respeito do caso. Ibanez ficou um instante carrancudo. - Bem, quero que seja descoberta a falha - falou, sem convidar o relações-públicas para se sentar. - Sem dúvida - disse Bellman, com a voz mais forte. - Até acho que já sei quem foi o responsável. - Oh! - exclamou Ibanez, arqueando as sobrancelhas. - O guardador dos animais, que foi o primeiro a lhe informar sobre Brighton, Ouvi dizer que ele ficou agastado por não ter recebido uma gratificação. - Meu Deus! Todo mundo quer uma medalha por fazer seu trabalho - disse Ibanez. - Fique de olho nisso até ter certeza. Agora temos de falar com a imprensa. Eis como quero que você trate do caso. Convoque uma coletiva. Admita que foram encontrados erros no protocolo experimental do Canceran devido à exigüidade de tempo, mas não admita qualquer fraude. Diga apenas que os erros foram descobertos pelo processo habitual de supervisão, seguido rotineiramente pela administração, e que foi conferida uma dispensa indeterminada ao dr. Brighton. Diga que ele se achava sob uma tremenda pressão para acelerar a entrega da droga ao público. Acima de tudo, enfatize que o Canceran é a droga

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anticâncer mais promissora que se conhece há muito tempo. Depois acentue que o erro foi de Brighton e que o Instituto Weinburger ainda deposita inteira confiança no Canceran. E o modo de dizer isso é anunciando que vamos passar o projeto ao nosso mais renomado cientista, o dr. Charles Martel. - Dr. Ibanez - começou Charles a falar. - Eu. . . - Um instante, Charles - interrompeu Ibanez. Deixe-me despachar Jules. Acha que entendeu tudo, Jules? - Dr. Ibanez - insistiu Charles. - Eu realmente quero dizer algo. - Num minuto, Charles. Escute, Jules, quero que você 61

faça Charles parecer a reencarnação de Louis Pasteur, entendido? - Assim o farei - falou Bellman, excitado. - Agora, dr. Martel, pode me dizer quais foram seus últimos artigos publicados? - Vá para o diabo! - gritou Charles, batendo os relatórios sobre a mesa de Ibanez. - Isso é uma conversa absurda. Você sabe que faz tempo que não publico nada, principalmente porque não queria perder tempo. Mas, com artigos ou sem artigos, venho fazendo progressos extraordinários. E tudo está aqui nestes livros. Deixe-me mostrar-lhe uma coisa. Charles estendeu a mão para abrir um dos livros, mas o dr. Ibanez segurou seu braço. - Charles, acalme-se, pelo amor de Deus. Você não está sendo julgado. Na verdade, é até melhor que não tenha publicado nada. Agora mesmo reduziram-se os fundos para a pesquisa imunológica do câncer. É provável que não seja bom para Jules admitir que você tenha trabalhado exclusivamente nessa área, porque a imprensa pode achar que não seja qualificado para assumir a direção do projeto Canceran. - Dê-me forças - grunhiu Charles para si mesmo entre dentes. Olhava fixamente para Ibanez, respirando com dificuldade. - Deixe-me dizer-lhe uma coisa! Toda a comunidade médica está abordando o câncer do ponto de vista errado. Todo esse trabalho com agentes quimioterápicos, como o Canceran, só serve para fins paliativos. Uma verdadeira cura só pode advir de um melhor conhecimento das comunicações químicas entre as células, das quais o sistema imunizador é um descendente direto. A resposta está na imunologia! - A voz de Charles fora se fortalecendo num crescendo, e a última sentença trazia o fervor de um fanático religioso. Bellman baixou o olhar e arrastou os pés. Ibanez tirou uma longa baforada de seu charuto e soprou a fumaça, fazendo com ela uma linha fina. - Muito bem - falou o dr. Ibanez, rompendo o silêncio embaraçoso. - Eis um ponto interessante, Charles, mas receio que nem todo mundo concorde com você. A, verdade é que, ao passo que existem muitos fundos para a pesquisa quimioterápica, há muito poucos para os estudos imunológicos. . . - Isso é porque os agentes quimioterápicos como o Canceran podem ser patenteados, enquanto os processos imu- 62

nológicos, na maior parte, não o podem - falou Charles, impulsivamente, interrompendo o dr. Ibanez. - Parece-me - disse Ibanez - que o velho ditado "não cuspa no prato em que comeu" se aplica aqui. Dr. Mârtel, a comunidade do câncer o tem apoiado. - E eu lhe sou grato. Não sou um rebelde ou um revolucionário. Longe disso. Tudo o que quero é ficar sozinho para fazer o meu trabalho. com efeito, foi por isso que vim até aqui para lhe dizer que não me sinto capaz de assumir o projeto Canceran. - Absurdo! Você é mais do que capaz. É óbvio que a junta de diretores pensa assim. - Não estou falando de minha capacidade intelectual - continuou Charles bruscamente. - Estou falando da minha falta de interesse. Não acredito no Canceran e

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no que ele representa para o câncer. - Dr. Mârtel - falou o dr. Ibanez lentamente, fixando o olhar no rosto de Charles. - O senhor sabe que nos achamos no meio de uma crise? Vai ficar sentado aí e me dizer que não pode ajudar devido à falta de interesse? O que acha que estou dirigindo? Um colégio financiado com verbas federais? Se perdermos os fundos para o Canceran, todo o instituto correrá um risco financeiro. Você é a única pessoa que ainda não está trabalhando com uma bolsa do Instituto Nacional do Câncer, e seu prestígio na comunidade de pesquisas é tal que todo este barulho desaparecerá quando assumir o projeto. - Mas estou num ponto crucial no que toca à minha própria pesquisa. Sei que não tenho publicado artigos e que tenho me mantido um tanto reservado. Talvez isso seja errado. Mas venho obtendo resultados, e acho que fiz uma notável descoberta. Está tudo aqui. - E Charles bateu de leve na capa de um de seus relatórios. - Escute, posso pegar uma célula cancerosa, qualquer célula cancerosa, e isolar a diferença química entre ela e uma célula normal do mesmo indivíduo. - Em quais animais? - Camundongos, ratos e macacos. - E quanto aos seres humanos? •- Ainda não experimentei, mas não tenho dúvida de que vai funcionar. Vem funcionando sem uma falha em todas as espécies em que tenho experimentado. •- Será que essa diferença química antigênica está no animal hospedeiro? 63

- Deve estar. Em todo caso, a proteína parece ser bastante diferente para constituir um antígeno, mas infelizmente ainda não fui capaz de sensibilizar um animal canceroso. Parece haver uma espécie de mecanismo bloqueador, ou o que chamo de fator bloqueador. E é onde me encontro em meu trabalho, tentando isolá-lo. Uma vez que o consiga, pretendo usar a técnica do hidridoma para obter um anticorpo para o fator bloqueador. Se puder eliminá-lo, espero que o animal então reaja imunologicamente ao tumor. - Não diga! - assobiou Bellman, sem saber o que escrever em seu bloco. - O mais excitante - prosseguiu Charles, entusiasmado - é que tudo tem sentido do ponto de vista científico. Hoje o câncer é um aspecto remanescente de um antigo sistema pelo qual os organismos podiam aceitar novos componentes celulares. - Desisto - disse Bellman. E fechou o seu bloco de anotações. -7- O que você está dizendo, dr. Martel - observou o dr. Ibanez -, é que tem ainda um longo caminho a per-_ correr neste trabalho. - Certamente. Mas o passo vem se acelerando. - Mas não existe qualquer razão, exceto sua preferência, para que o senhor não possa afastar-se desse trabalho por algum tempo. - Só que ele parece muito promissor. E se for fecundo, conforme espero, seria trágico, se não criminoso, não dispor dele o mais cedo possível. - Mas é só em sua opinião que ele parece ser tão promissor. Devo admitir que ele parece interessante e posso assegurar-lhe que o Weinburger o apoiará, conforme sempre tem feito. Mas primeiro você vai ter que ajudar o Weinburger. Seus interesses pessoais devem ser adiados; você deve assumir o projeto Canceran imediatamente. E agora, dr. Martel, se recusar, vai ter que continuar suas pesquisas noutro lugar. Não quero mais discussões. O assunto está encerrado. Charles ficou sentado por um momento, o rosto inexpressivo refletindo sua incerteza interior. O 'entusiasmo de que ele se cercara para apresentar -seu trabalho havia elevado suas expectativas, de modo que a rejeição de Ibanez tivera um efeito paralisante, especialmente quando combinado com a ameaça de ser afastado de seu laboratório. A sugestão de ser despedido era muito mais terrível vinda de Ibanez do 64

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que de Morrison. Seu trabalho estava tão ligado à sua consciência de individualidade que ele não podia imaginá-los separados. com esforço, juntou seus relatórios. - Você não é o homem mais popular da equipe acrescentou Ibanez delicadamente -, mas isso pode mudar, se quiser. Agora diga-me, dr. Martel está conosco? Charles assentiu, com uma inclinação de cabeça e sem erguer o olhar, sofrendo a indignidade final de uma rendição incondicional. Levantou-se e saiu, sem dizer mais uma palavra. Depois que a porta se fechou, Bellman tornou a olhar para Ibanez. - Que reação estranha! Espero que ele não fique perturbado. Aquela atitude evangélica me assusta muito. - Sinto a mesma coisa - disse Ibanez, pensativamente. - Infelizmente, ele se tornou um cientista fanático e, como todos os fanáticos, pode ser difícil. Isso é muito mau, pois ele é um pesquisador de primeira classe, talvez o melhor que temos. Mas gente assim pode acabar conosco, especialmente nesta era de dotações reduzidas. Imagino se Charles sabe de onde vem o dinheiro para dirigir este lugar. Se as pessoas do Instituto Nacional do Câncer ouvissem seu monólogo sobre a quimioterapia, iam ter um acesso de raiva. - vou ter de conservar a imprensa afastada dele disse Bellman. O dr. Ibafiez riu. - Essa parte pelo menos vai ser fácil. Charles nunca ligou para a publicidade. - O senhor tem certeza de que ele é o melhor homem para assumir o Canceran? - Ele é o único homem. Não dispomos de mais ninguém com sua reputação profissional. Tudo o que ele tem a fazer é terminar o projeto. - Mas se ele espernear, de qualquer modo. . . - Nem sugira isso. Se ele não dirigir direito o Canceran, nesta altura dos acontecimentos, vamos ter que tomar uma decisão drástica. Do contrário, todos nós vamos ter que procurar outro emprego. Enojado consigo mesmo, Charles retornou vagarosaniente para o seu laboratório. Pela primeira vez em quase dez anos, recordava com nostalgia sua clínica particular. Não era da clínica em si que ele tinha saudades, mas sim da 65

autonomia. Estava acostumado a manter o controle, e até aquele momento não percebera como era pouco o poder que tinha no Weinburger. Pela segunda vez naquele dia, Charles bateu a porta, de seu laboratório, fazendo tilintar os vidros nas prateleiras! e aterrorizando os ratos e os camundongos no biotério. Tambem pela segunda vez assustou Ellen, que habilmente apa nhou uma pipeta que tinha deixado cair sobre o balcão quando se voltara. Ela estava prestes a protestar, mas, aol ver o rosto de Charles, ficou em silêncio. Num impulso de raiva indireta, Charles arremessou os pesados relatórios sobre o balcão. Um deles atingiu o chão, enquanto outros quebravam um aparelho de destilação, espalhando fragmentos de vidro por toda a sala. Ao mesmo tempo que recuava, Ellen levou a mão aos olhos para sei proteger. Ainda não satisfeito, Charles apanhou um frasco de Erlenmeyer e sacudiu-o dentro da pia. Ellen jamais tinhal visto Charles assim nos seis anos em que trabalhavam juntos. - Se você me disser que me preveniu, vou gritar - falou Charles, jogando-se em sua cadeira giratória de metal. - O dr. Ibanez não quis escutar? - perguntou Elleni cautelosamente. - Ele escutou. Apenas não quis aceitar, e eu cedi comol um tigre de papel. Foi horrível. - Acho que você não tinha qualquer escolha. Por tanto, não se mortifique. De qualquer modo, qual é o pro grama? - O programa é que vamos terminar o eficaz projeto Canceran. - Vamos começar logo? - Imediatamente - replicou Charles com uma voz cansada. - Na verdade, por que você não vai apanhar os relatórios do Canceran? Por enquanto não quero falar coJ ninguém. - Muito bem - disse Ellen calmamente. Ela estaw feliz por ter arranjado algo para fazer que a tirasse do laoB ratório por alguns minutos. Sentia que o próprio ChaoB precisava de tempo. Depois que Ellen saiu, Charles não se mexeu e procurou não pensar em nada. Mas sua solidão não durou muito

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tempo. A porta se abriu e Morrison irrompeu como um furacão pelo laboratório. Charles virou-se e olhou para Morrison, cujas veias das 66 ' l

têmporas estavam salientes como fios de espaguete. O honmem estava furioso. - Já agüentei o que podia - gritou ele, com os lábios brancos. - Estou cansado de sua falta de respeito. O que o faz pensar que é tão importante que não precisa seguir o protocolo normal? Não deveria ter que lembrá-lo de que sou o chefe de seu departamento. O senhor deve me procurar quando tiver questões sobre a administração, não ao diretor. - Morrison, faça-me um favor: saia do meu laboratório e vá para o inferno. Os olhinhos de Morrison ficaram injetados. Diminutas gotas de suor porejaram em sua testa enquanto ele falava: - Tudo o que posso dizer é que, se não fosse pela nossa situação atual, Charles, eu providenciaria para que você fosse despedido hoje. Felizmente para você, não podemos nos permitir mais um escândalo. Mas é melhor caprichar neste projeto Canceran, se pretende permanecer aqui. Sem esperar por uma resposta, Morrison saiu arrogantemente do laboratório. Charles ficou sozinho com o zumbido dos compressores do refrigerador e as pulsações do contador automático de radioatividade. Eram sons familiares, e tiveram sobre ele um efeito calmante. Talvez, pensou ele, o caso Canceran não fosse tão ruim; talvez ele pudesse prosseguir com o estudo rapidamente, desde que o protocolo experimental fosse decente; talvez Ellen tivesse razão e eles .pudessem tratar de ambos os projetos trabalhando algumas noites. De repente, o telefone começou a tocar. Ele hesitou em responder, ouvindo a campainha soar três, quatro vezes. Na quinta chamada, ele tirou o fone do gancho. - Alô - disse a pessoa do outro lado da linha. Aqui fala a sra. Grane, da tesouraria da Universidade Northeastern. - Sim - respondeu Charles. Levou um segundo para associar a escola com Chuck. - Desculpe-me incomodá-lo - disse a sra. Grane -, Mas foi seu filho que nos deu seu número. Parece que a ta*a semestral de mil seiscentos e cinqüenta dólares está atrasada. Charles ficou brincando com um pequeno grampo de Papéis, pensando no que dizer. Não poder pagar as contas era uma experiência nova para ele. - Sr. Martel, está me ouvindo? 67

- Dr. Martel - replicou Charles, embora se sentisse i meio idiota assim que fez a correção. j - Desculpe-me, dr. Martel -- falou a sra. Grane, ver- i dadeiramente constrangida. - Podemos esperar o dinheiro i num futuro próximo? l - Claro. Mandarei já um cheque. Lamento o descuido, Charles desligou. Sabia que tinha de arranjar um en préstimo imediatamente. Esperava que Chuck estivesse indo, razoavelmente, e que não fosse só em psicologia. tornou a pegar no telefone, mas não discou nenhum número. Decidiu que economizaria tempo se fosse diretamente ao banco; além disso, sentia que um pouco de ar fresco lhe faria bem, assim como livrar-se temporariamente dos Morrisons e Iba nez do mundo. 68

Folheando as páginas de um velho exemplar da revista Time, Cathryn lutava contra o reaparecimento de um sentimento de ansiedade. No início, a sala de espera do dr. Wiley tinha sido um abrigo contra os horrores do resto do hospital, mas à medida que o tempo ia passando a dúvida e um mau pressentimento começavam a se afirmar. Olhando para seu

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relógio, percebeu que Michelle estava na sala de exames havia mais de uma hora. Alguma coisa devia estar errada. Começou a se remexer, cruzando e descruzando as pernas, consultando o relógio repetidamente. Para seu desconforto, ninguém conversava na sala, e não havia qualquer movimento, exceto pelas mãos de uma mulher que tricotava e pelos gestos erráticos de dois bebês brincando com blocos. De repente, Cathryn percebeu o que a estava incomodando. Tudo estava quieto demais, sem emoção. Era como ver uma imagem bidimensional de uma cena em três dimensões. Ergueu-se, incapaz de continuar sentada por mais tempo. - Desculpe-me - disse Cathryn, dirigindo-se à enfer^ tneira. - É minha garotinha Michelle Martel. Você tem alguma idéia de quanto tempo ela ainda vai ficar lá? - O médico não nos disse - retrucou polidamente a enfermeira. Ela estava sentada ereta, de modo que suas nádegas fartas derramavam-se de cada lado da cadeira. - Há muito tempo que ela está lá - prosseguiu Cathryn, buscando uma reafirmação. - O dr. Wiley fez um exame muito completo. Estou certa de que ela sairá logo. - É comum ele levar mais de uma hora? - Cathryn achava, supersticiosamente, que com aquelas perguntas poderia apressar as coisas. - Sem dúvida - disse a recepcionista. - Ele leva o tempo que for preciso. Jamais tem pressa. j L 69

Mas por que ele precisava de tanto tempo, perguntou Cathryn a si mesma enquanto voltava a seu lugar. A imagem de Tad dentro de sua cela plástica retornou à sua mente perturbada. Era um choque terrível verificar que as crianças contraíam doenças graves. Ela havia acreditado que aquilo era uma ocorrência rara, que acontecia a outras crianças, a crianças desconhecidas. Mas Tad era um vizinho, um amiguinho de sua filha. Cathryn estremeceu. Apanhando outra revista, começou a olhar os anúncios; havia gente feliz, sorridente, em assoalhos brilhantes, comprando carros novos. Tentou decidir o que preparar para o jantar, mas não conseguia concluir seu pensamento. Por que Michelle estava demorando tanto? Mais duas mães che garam, com embrulhos cor-de-rosa, que eram obviamente" bebês. Depois, veio outra mãe com o filho: um garotinho de • cerca de dois anos com um enorme exantema violáceo co-j brindo metade de seu rosto.

Agora a sala de espera estava cheia, e Cathryn começou a sentir dificuldade para respirar. Levantando-se para dar lugar à mãe que trazia o filhinho, Cathryn procurou não ver a horrível lesão exantematosa que desfigurava o menino de dois anos. Já fazia mais de uma hora e vinte minutos que ela deixara Michelle ali, e sentiu que estava tremendo. Mais uma vez ela se aproximou da enfermeira e, cons trangida, parou diante da escrivaninha até a mulher tomar conhecimento de sua presença. - Em que lhe posso ser útil? - perguntou a enfermeira, de um modo elaboradamente cortês. Cathryn teve vontade de avançar e sacudir a mulher, cuja brancura imaculada do uniforme engomado feria suas precárias emoções. Não queria polidez: precisava era de ca lor humano e de compreensão, de um grama de sensibili dade. - Você acha que seria possível - perguntou Cathryril - saber por que está demorando tanto? Antes que a recepcionista pudesse responder, a porta `a sua esquerda abriu-se e o dr. Wiley se inclinou para a sala de espera, procurando encontrar Cathryn. - Sra. Martel, posso lhe falar por um momento? - Sua voz era reservada, e ele voltou ao consultório, deixando a porta entreaberta.

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Cathryn correu atrás dele, arrumando seu penteado para ter certeza de que estava correto, e fechou cuidadosa mente a porta atrás de si. Wiley tinha voltado à sua mesal 70

mas não se sentara. Em vez disso, sentara-se na borda da mesa, os braços cruzados sobre o peito. Excessivamente sensível a qualquer atitude, Cathryn examinou o rosto largo do dr. Wiley. Sua testa estava cheia de rugas, coisa que Cathryn não havia notado quando de seu primeiro encontro. O homem não sorria. - Precisamos de sua permissão para fazer um exame - disse o dr. Wiley. - Está tudo bem? - perguntou Cathryn. Ela procurava parecer normal, mas sua voz estava muito fraca. - Tudo está sob controle. - Descruzando os braços, ele estendeu a mão e pegou um papel sobre a mesa. - Mas precisamos realizar um exame de diagnóstico específico. vou precisar de sua assinatura neste formulário. - E estendeu o papel para Cathryn, que o pegou, tremendo. - Onde está Michelle? - Os olhos de Cathryn percorreram o pedido de exame. Estava escrito em jargão médico. - Ela está numa das salas de exame. Poderá vê-la, se quiser, embora eu preferisse me antecipar com esse teste antes que o faça. Trata-se de uma aspiração de medula óssea. - Medula óssea? - Cathryn sentiu um estalo na cabeça. Aquelas palavras evocavam a terrível imagem de Tad Schonhauser em sua tenda de plástico. - Não é nada alarmante - disse o dr. Wiley, notando a reação chocada de Cathryn. - Trata-se de um exame simples, muito semelhante à retirada de um pouco de sangue. - Michelle está com anemia aplástica? - Cathryn deixou escapar inadvertidamente.. - De modo algum. - O dr. Wiley ficou perplexo com a reação de Cathryn. - Queremos realizar o teste a firn de fazermos um diagnóstico, mas posso assegurar-lhe que Michelle não tem anemia aplástica. Se não se importa, por que foi que perguntou isso? - Há alguns minutos visitei um vizinho nosso que está com anemia aplástica. Quando o senhor falou em medula óssea... - Cathryn lutou para completar a frase. -• Compreendo - disse o dr. Wiley. - Não se preocupe. Posso assegurar-lhe que a anemia aplástica não é uma das possibilidades no caso. Mas, de qualquer maneira, ainda precisamos fazer o teste. . . só para termos um resultado completo. - O senhor acha que eu devia chamar Charles? Cathryn ficou aliviada ao saber que Michelle não podia 71

ter anemia aplástica, e muito grata ao dr. Wiley por eliminar aquela possibilidade. Embora Charles houvesse dito que a anemia aplástica não era contagiosa, sua proximidade era assustadora. - Se acha que deve chamar Charles, chame-o. Mas deixe-me explicar uma coisa. A aspiração da medula óssea é feita com uma seringa semelhante à que se usa para retirar sangue. Usamos uma pequena anestesia local, de modo que ela é praticamente indolor e dura somente uns instantes. E, uma vez que tivermos os resultados, estará tudo pronto. Ei realmente um processo bem simples e o praticamos comj freqüência. i Cathryn tentou sorrir e disse que ele podia prosseguir com o teste. Ela gostava do dr. Wiley e sentia muita con fiança no homem, especialmente desde que Charles o havia escolhido sem titubear dentre um grupo de pediatras que conhecia bem, quando Chuck havia nascido. Ela assinou os i formulários, na linha que o dr. Wiley lhe apontava, e deixou se acompanhar para fora do consultório, voltando à sala de espera, que estava repleta. Michelle estava deitada muito calma na mesa de exa mês. Mesmo com a cabeça reclinada no travesseiro, a maior parte do teto visível eram os vidros foscos que cobriam as lâmpadas fluorescentes. Mas ela podia ver também um pé

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dacinho do papel de parede, com figuras de palhaços sorri dentes, cavalos saltando e crianças com balões de gás. Na sala havia uma pia e, embora ela não pudesse vê-la de ondel estava, podia ouvir a água gotejando. Para Michelle, o hospital tinha correspondido aos seus temores. Ela havia sido furada com agulhas três vezes. Umal vez em cada um dos braços e outra num dedo. De cada vez ela perguntara se era a última, mas, como ninguém responJ dia, receava que torasse a acontecer, especialmente se se mexesse muito, razão pela qual ficava bem quietinha. Michelle sentia-se embaraçada por estar tão pouco vesB tida. Usava uma espécie de camisola aberta nas costas podia sentir sua pele sobre o papel que cobria a mesa. Olhar" do para baixo, podia ver as saliências formadas pelos dedoa de seus pés por baixo do lençol branco que os cobria. Ata suas mãos estavam embaixo da coberta, cruzadas sobre o estômago. Ela tremera um pouco, mas não dissera a ninguém* Tudo o que ela desejava era vestir suas roupas e voltar para 72 . l

casa. Contudo, sabia que a febre voltara e temia que alguém notasse e então quisesse segurá-la de novo. Tinham-lhe dito que queriam seu sangue para saber por que ela estava tendo febre. Houve um arrastar de pés no chão, e a porta que dava para a sala de exames se abriu. Era a enfermeira gorda que retornava à sala, seu vulto tomando toda a porta. Ela puxava alguma coisa, e Michelle ouviu o som característico de metal batendo contra metal. Uma vez livre da porta, a enfermeira deu uma volta, empurrando uma pequena mesa sobre rodas. A mesa estava coberta por uma toalha azul. Para Michelle aquilo não parecia nada bom . - Que é isso? - perguntou ela ansiosamente. - Uma coisa para o doutor, queridinha - disse a srta. Hammersmith, como se estivesse falando de petiscos. A etiqueta com seu nome estava pregada com um alfinete no ombro, como uma condecoração de batalha, acima do volume de seu busto, que contornava o tórax como uma câmara de ar. Parecia haver tanta carne nas costas quanto na frente. - Vai doer? - perguntou Michelle. - Queridinha, por que pergunta isso? Estamos tentando ajudá-la. - A srta. Hammersmith parecia ofendida. - Tudo o que o doutor faz dói - argumentou Michelle. - Ora, isso não é verdade - brincou a srta. Hammersmith. - Ah, a minha paciente favorita! - exclamou o dr. Wiley, abrindo a porta com o ombro. Ao entrar na sala, ele conservou as mãos afastadas do corpo porque estavam úmidas e pingando no chão. A srta. Hammersmith abriu um embrulho de papel e o dr. Wiley cuidadosamente tirou de dentro dele uma toalha esterilizada, segurando-a entre o polegar e o dedo indicador. O que mais alarmou Michelle foi o fato de ele estar usando uma máscara cirúrgica. - Que é que vai fazer? - perguntou ela, abrindo os olhos o mais que pôde. Esqueceu sua decisão de se manter quieta e ergueu-se, apoiando-se num dos cotovelos. - Bem, receio que tenho boas e más novas. Acho que você vai ter que levar mais uma espetadela. Mas a boa nova e que, por enquanto, vai ser a última. Que é que você me diz? O dr. Wiley atirou a toalha sobre um balcão junto à 73

pia e retirou um par de luvas de borracha de um pacote que a srta. Hammersmith mantinha aberto para ele. com crescente pavor, Michelle contemplava-o calçar as luvas, uma em cada mão, colocando o punho no lugar e enfiando cada dedo por sua vez. - Não quero mais saber de injeções - disse Michelle, com os olhos cheios de lágrimas. - Quero ir para casa. Ela procurava

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não chorar, mas quanto mais tentava menos o conseguia. - Vamos, vamos. - A srta. Hammersmith procurava acalmá-la, passando a mão por seus cabelos. Michelle afastou a mão da srta. Hammersmith e tentou sentar-se, mas foi impedida por uma cinta passada na altura de seu peito. - Por favor - implorava ela. - Michelle! - falou o dr. Wiley asperamente, suavizando depois a voz. - Sei que você não está bem e que isso é difícil para você, mas é preciso fazer. Se você cooperar, num momento tudo estará acabado. - Não! - gritou Michelle, desafiadora. - Quero meu pai. O dr. Wiley fez um gesto para a srta. Hammersmith: - Talvez a sra. Levy pudesse chegar até aqui para nos. dar uma mãozinha. A srta. Hammersmith saiu pesadamente da sala. -, Muito bem, Michelle, deite-se e relaxe por um momento - falou o dr. Wiley. - Estou certo que seu pai se sentirá orgulhoso quando eu disser a ele como você foi corajosa. Isso vai durar um instantinho só. Prometo. Michelle deitou-se e fechou os olhos, sentindo as lágrimas lhe escorrerem pelo rosto. Intuitivamente, ela sabia que Charles ficaria decepcionado se soubesse que ela havia se comportado como um bebê. Afinal de contas, ia ser a última picada. Mas os dois braços já haviam sido furados, e ela estava imaginando onde seria a próxima. A porta tornou a abrir-se e Michelle se apoiou, erguendo-se, para ver quem era. A srta. Hammersmith entrou, seguida de duas outras enfermeiras, uma das quais trazia algumas correias de couro.- - Não vamos precisar de correias, acho que não disse o dr. Wiley. - Muito bem, Michelle, agora deite-se e fique quietinha por um momento. - Vamos, queridinha - falou a srta. Hammersmith, chegando-se para o lado de Michelle. Uma das enfermeiras 74

fc. foi para o lado oposto, enquanto a outra, a que trazia as correias de couro, ficou aos pés da mesa. - O dr. Wiley é o melhor médico do mundo, e você vai se sentir grata por ele cuidar de você - falou a srta. Hammersmith, enquanto puxava os lençóis até as pernas da menina. Firmando os braços dos lados, Michelle tentou resistir quando a srta. Hammersmith puxou a camisola, expondo seu corpo desde os mamilos até os joelhos ossudos. Ela observava enquanto a enfermeira arrancava a toalha da mesa de rodas num movimento rápido. O dr. Wiley, ocupado com os instrumentos, estava de costas. Ela podia ouvir o barulho do vidro e o som do fluido. Quando o médico se voltou, tinha um pedaço de algodão molhado em cada uma das mãos. - vou só limpar sua pele um bocadinho - explicou ele, enquanto esfregava o osso ilíaco de Michelle. Para Michelle a água pareceu extremamente fria ao escorrer pelo quadril e juntar-se sob suas nádegas. Era uma experiência nova, não como a anterior, com as agulhas. Ela se esticou para ver o que estava acontecendo, mas o médico delicadamente forçou-à a ficar deitada. - Num momento tudo estará terminado - disse a srta. Hammersmith. Michelle olhou para os rostos das enfermeiras. Todas estavam sorrindo, mas eram sorrisos fingidos. Michelle começou a entrar em pânico. - Onde é que vocês vão me espetar? - gritou ela, procurando erguer-se • e sentar-se de novo. Tão logo ela se mexeu, sentiu fortes braços que a agarravam e a obrigavam a voltar para a posição anterior. Até seus tom ozelos foram seguros com uma garra de ferro. Ela foi firmemente subjugada de encontro à mesa, e a imobilização fez crescer seu pânico. Tentou lutar, mas sentiu que a compressão sobre seus membros aumentava. - Não! - gritou Michelle. - Agora é fácil - falou o dr. Wiley, enquanto fazia ondular um lençol cor de metal com um buraco no centro sobre a pelve de Michelle e o colocava sobre o osso ilíaco. Voltando-se para a mesinha, o dr. Wiley manteve-se ocupado. Quando reapareceu aos olhos de Michelle, ela viu que ele segurava uma enorme seringa com

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três anéis de aço inoxidável nos dedos. - Não! - berrou Michelle, tentando livrar-se da pressão das enfermeiras com toda a força que lhe era possível. 75

Logo ela sentiu o peso esmagador da srta. Hammersmith sobre seu peito, tornando-lhe a respiração difícil. Depois a dor aguda de uma agulha que atravessava sua pele sobre o osso ilíaco, em seguida uma sensação de queimadura. Charles pegou com o canto da boca um pedaço de carne de seu sanduíche, segurando outro pedaço com os dedos, antes que caísse em cima do tampo do balcão. Era um sanduíche gigante, a única coisa boa que a lanchonete do instituto servia. Ellen o havia ido buscar, já que Charles não queria ver ninguém, e, exceto por sua rápida fuga até o First National Bank, permanecera em sua mesa estudando atentamente o protocolo experimental do projeto Canceran. Já tinha corrido todos os relatórios, e, para sua surpresa, encontrara-os bem organizados. Começou a sentir um certo otimismo. Não seria tão difícil terminar o estudo, conforme inicialmente imaginara; talvez eles pudessem fazê-lo em dois meses. Ele engoliu o que tinha na boca e acabou de empurrá-lo pela goela abaixo com um gole de café morno. - A única coisa boa a propósito deste projeto - disse Charles, limpando a boca com as costas da mão - é o tamanho de suas dotações. Pela primeira vez temos dinheiro para queimar. Acho que podemos obter aquele novo contador automático que queríamos, bem como uma nova ultracentrifugadora. - Acho que deveríamos arranjar uma nova unidade de cromatografia - comentou Ellen. - Por que não? Depois que terminarmos este projeto, devemos isso a nós mesmos. - Ele depositou o sanduíche sobre o papel laminado e pegou seu lápis. - Eis como vamos fazer a coisa. Começaremos com uma dose de 1/16 de LD50. - Espere. Como estou muito tempo na imunologia, não me lembro mais como se faz isso. Refresque minha memória. O LD50 é a dose de uma droga que provoca cinqüenta por cento de morte numa grande população de animais de teste. Certo? - Certo. Temos LD50 para camundongos, ratos, coelhos e macacos, de cujos estudos sobre sua toxicidade partiram os estudos feitos sobre o Canceran quanto à sua eficácia. Comecemos com os camundongos. Usaremos a linhagem RX7 para os tumores de mama, porque Brighton pediu-os e eles estão aqui. 76

Charles começou a fazer um fluxograma do projeto. Enquanto escrevia, ia explicando a Ellen cada etapa, particularmente como aumentariam a dosagem da droga e como expandiriam o estudo para incluírem ratos e coelhos, assim que tivessem alguns dados preliminares dos camundongos. Como os macacos eram muito caros, só seriam usados no fim, depois que as informações obtidas com os outros animais pudessem ser extrapoladas e aplicadas a um grupo estatisticamente significativo. Então, admitindo-se que os resultados fossem positivos, seria adotado um método aleatório para cada espécie, a fim de assegurar resultados convenientes. Esses animais novos seriam então tratados com um nível ótimo de dosagem do Canceran, determinado pela primeira parte do estudo. Essa parte do projeto seria realizada sem que Charles ou Ellen soubessem quais os animais que tinham sido tratados, até que cada um houvesse sido sacrificado, estudado e registrado. - Ufa - suspirou Ellen, esticando os braços para trás. - Acho que eu não fazia idéia do que isso implicava. - Infelizmente ainda há mais.

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Depois de autopsiado, cada animal tem de ser estudado não somente microscopicamente, mas também com o microscópio eletrônico. E. .

. - Já está tudo bem! Peguei o quadro. Mas e o nosso trabalho? Que vamos fazer? - Não sei ao certo. - E depôs o lápis. - Acho que isso depende de nós dois. - Acho que depende mais de você - disse Ellen. Ela estava sentada numa banqueta alta, encostada num quadro de anotações. Usava um avental branco de laboratório, desabotoado, que revelava um suéter bege e um colar de uma só volta de pequenas pérolas naturais. As mãos macias estavam unidas e repousavam em seu colo. - Você estava falando sério quando sugeriu trabalhar à noite? -.- perguntou Charles. Mentalmente, ele procurava calcular a possibilidade de continuar o trabalho sobre o misterioso fator bloqueador enquanto se ocupavam do Canceran.- Seria possível, embora eles tivessem de dedicar longas horas ao trabalho e conduzi-lo mais lentamente. Contudo, se fossem capazes de isolar uma única proteína em pelo menos um animal que funcionasse como agente bloqueador, já teriam conseguido alguma coisa. Mesmo que um só camundongo se tom asse imune ao seu tumor, seria espetacular. Charles estava consciente de que o sucesso com um único caso era difícil de generalizar, mas achava que uma única cura pro- 77

que se via face a face com ele parecia que seus sentimentos eram feridos. Ellen sabia que isso era absurdo, mas não podia evitá-lo. E agora experimentava uma tal mistura de desapontamento e raiva que poderia ter chorado. Permitira que a idéia de trabalharem juntos à noite a excitasse. Mas era uma idiotice, coisa de adolescente. No íntimo, sabia que isso não levaria a nada e acabaria criando-lhe ainda mais angústia.- Agradecida por ter algo específico para fazer, Ellen debruçou-se sobre o balcão onde tinham sido deixados os frascos esterilizados do Canceran. Era um pó branco como açúcar, ao qual se devia adicionar água. Não era tão estável em solução quanto na forma sólida, de modo que tinha de ser preparado antes de ser usado. Ela apanhou a água esterilizada e usou o computador da mesa para determinar a diluição a ser empregada. Enquanto manejava as seringas, o dr. Morrison entrou no laboratório. - O dr. Martel não está - disse Ellen. - Eu sei - retrucou Morrison. - Eu o vi quando saía do prédio. Não é ele que estou procurando. Quero falar com você um instante. Depondo a seringa sobre o balcão, Ellen enfiou as mãos nos bolsos do avental e foi até a extremidade da mesa, a fim de encarar o homem. Não era comum que o chefe do departamento de fisiologia a procurasse, especialmente na ausência de Charles. Todavia, com tudo o que tinha acontecido naquela manhã, ela não estava surpresa. Além disso, o rosto de Morrison tinha um ar tão maquiavélico que aquela intriga parecia apropriada. - Chegando-se perto dela, Morrison tirou uma elegante cigarreira de ouro, abriu-a e estendeu-a para Ellen. Esta abanou a cabeça, e Morrison retirou um cigarro. - Posso fumar aqui? - perguntou ele. Ellen deu de ombros. Charles não o permitiria; não que houvesse perigo, mas porque ele detestava o cheiro do fumo. Ellen experimentou uma ponta de alegria rebelde ao aquiescer tacitamente. Morrison tirou um isqueiro de ouro que combinava com a cigarreira do bolso de seu colete e realizou um elaborado ritual para acender o cigarro. Era um gesto teatral, destinado a manter Ellen esperando. t - Suponho que você esteja a par do que aconteceu' 80 l

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disse Morrison final-

senhor pode confiar em que ele realizará o estudo do Canceran. Morrison descontraiu-se e sorriu, deixando entrever seus pequenos dentes por trás dos lábios finos. - Muito obrigado, srta. Sheldon. Era isso exatamente o que eu queria ouvir. - Aproximando-se da pia, ele deixou a água correr sobre seu cigarro meio fumado e jogou-o na cesta do lixo. - Mais uma coisa. Eu estava imaginando se você podia prestar a mim e ao instituto mais um grande favor. Gostaria que informasse qualquer procedimento anormal da parte de Charles em relação ao projeto Canceran. \ Sei que se trata de um pedido estranho, mas toda a junta de diretores apreciaria sua cooperação. - Perfeitamente - retrucou Ellen logo em seguida, sem muita certeza do que realmente estava sentindo àquele respeito. Ao mesmo tempo, ela achava que Charles bem o merecia. Ela se esforçara um bocado por ele, e ele não havia apreciado seu gesto. - Farei isso com a condição de que tudo o que eu disser fique em segredo. - Certamente - concordou Morrison. - Isso nem se discute. E, claro, você trará as informações diretamente a mim. - Na porta, Morrison fez uma pausa. - Foi ótimo falar com você, srta. Sheldon. Há tempo que eu queria fazer isso. Se precisar de alguma coisa, meu escritório estará sempre aberto. - Obrigada. \ - Talvez possamos até jantar um dia. - Talvez. Ela ficou observando a porta fechar-se. Ele era um homem de aspecto estranho, mas decidido e poderoso. 82

5. Atravessando o rio pela Ponte Harvard, Charles lutava com um calefator recalcitrante. Não conseguia controlar a alavanca para ligar o aquecedor. Em conseqüência de seus esforços, o Ford mudava de direção a toda hora, para terror dos motoristas próximos, que reagiam tocando as buzinas. Desesperado, ele bateu no painel com a palma da mão, apenas para ser recompensado com a queda da alavanca no chão. Resignando-se a agüentar o frio, Charles tentou concentrar-se na estrada. Assim que pôde, virou à direita na Massachusetts Avenue e contornou o Back Bay Fens, um local de estacionamento negligenciado e cheio de lixo, no centro do qual houvera outrora uma zona residencial. A seguir, passou pelo Museu de Belas-Artes de Boston e pelo Museu Gardner. À medida que o tráfego ia ficando fácil, sua mente começou a vaguear. Parecia-lhe emocionalmente cruel que Cathryn o deixasse como uma vítima suspensa de sua própria imaginação. Será que a hemorragia de Michelle havia retornado? Não, isso parecia simples demais. Talvez eles quisessem fazer um teste de punção intravenosa e Cathryn não quisesse dar permissão. Não, não havia motivos para ela não explicar isso pelo telefone. Tinha de ser algum problema médico. Talvez uma apendicite. Charles lembravase do abdome ligeiramente dolorido, da temperatura não muito alta. Talvez fosse uma apendiciíe aguda e eles quisessem operar. E ele sabia como os hospitais afetavam Cathryn, deixando-a louca. Ao entrar no consultório do dr. Wiley, Charles foi envolvido por um mar de mães ansiosas e crianças que choravam. A sala de espera apinhada... aquela era uma parte da clínica particular que Charles não esquecera. Como todos os Cediços, suas secretárias tinham uma irritante propensão Para registrar consultas novas em espaços reservados para sitnples consultas de segunda vez, resultando num acúmulo S}

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de pacientes. Por mais que Charles falasse, de nada adiantava. Ele estava sempre atrasado no consultório e pedindo desculpas aos clientes. Charles procurou Cathryn no meio das mulheres e das crianças, mas não a viu. Foi abrindo caminho até a enfermeira, assediada por um bando de mães que queriam saber quando seriam atendidas. Charles tentou interromper, mas logo viu que tinha de esperar sua vez. Por fim, conseguiu atrair a atenção da mulher e ficou impressionado com sua calma. Se ela estava afetada pelo caos que a cercava, fazia um trabalho soberbo, nada deixando transparecer. - Estou à procura de minha mulher - disse Charles. Teve de falar alto para se fazer ouvir. - Qual é o nome? - indagou a enfermeira, com as mãos cruzadas sobre uma pilha de fichas. - Martel. Cathryn Martel. - Um momento. - Quando ela girou na cadeira e se levantou, seu rosto estava sério. As mulheres agrupadas em tom o da mesa olhavam Charles com uma mistura de respeito e irritação. Estavam claramente com ciúmes da rápida resposta que havia conseguido. A enfermeira retornou quase que imediatamente, seguida de uma mulher de dimensões impressionantes, que Charles achou que daria uma boa companheira para o homem que fazia o anúncio dos pneus Michelin. Ele notou o nome em sua plaqueta: srta. A. Hammersmith. Ela fez um sinal para Charles, que, obedientemente, contornou a mesa. - Por favor, siga-me - disse a enfermeira. Sua boca, metida entre as duas dobras das bochechas, era a única parte do rosto que se movia quando ela falava. Charles fez o que lhe mandavam, vendo-se levado às pressas por um hall, atrás do corpanzil da srta. Hammersmith, que efetivamente bloqueava sua visão. Passaram por

uma série do que Charles imaginou serem salas de exame, No fim do hall, ela abriu uma porta apainelada e afastou-se para um dos lados, a fim de que Charles entrasse. - com licença - falou Charles, espremendo-se ad passar por ela. i - Acho que ambos podíamos perder alguns quilos - disse a srta. Hammersmith. Quando Charles entrou na sala, a srta. Hammersmith ficou no hall e suavemente fechou a porta atrás dela. Uma das paredes estava forrada por várias prateleiras cheias de pilhas de revistas médicas e alguns livros. No centro da sala 84 i

havia uma mesa amarela e circular de carvalho, cercada de meia dúzia de poltronas. De repente, uma delas foi arrastada para trás, enquanto Cathryn se levantava. Sua respiração estava forte; Charles podia ouvir o ar entrar e sair por seu nariz. Não era um som calmo. Era trêmulo. - O que. . . - começou Charles. Cathryn correu para ele antes que pudesse dizer alguma coisa e enlaçou seu pescoço. Charles colocou as mãos na cintura da mulher por alguns momentos, deixando que ela o segurasse para restabelecer seu equilíbrio. - Cathryn - disse ele por fim, começando a experimentar o amargo sabor do medo. O procedimento de Cathryn estava minando sua suposição de uma apendicite, uma operação, ou qualquer coisa assim. Uma lembrança horrível invadiu a mente de Charles: a do dia em que ele soube do linfoma de Elizabeth. - Cathryn - falou ele, mais bruscamente. Cathryn! O que está acontecendo? Que é que você tem? - A culpa é minha - disse Cathryn, começando a chorar assim que falou. Charles podia sentir seu corpo tremer com a força das lágrimas. Ele esperava, relanceando o olhar pela sala, reparando no retrato de Hipócrates na parede oposta à das prateleiras, no rico soalho de tacos em mosaico, no tratado de pediatria de Nelson sobre a mesa. - Cathryn - falou Charles por fim. - Diga-me, por favor, o que está acontecendo. O que é sua culpa? - Eu devia ter trazido Michelle ao médico mais cedo. Eu sabia que devia. - A voz de Cathryn estava entrecortada por soluços. - Que há de errado com Michelle? - Charles podia sentir o pânico

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comprimir-lhe o peito. Havia uma terrível sensação de coisa já vista. Cathryn apertou o pescoço de Charles com mais força, como se ele fosse sua única salvação. Todo o controle que ela conseguira reunir antes de sua chegada tinha desaparecido. Usando da maior parte de sua força, Charles conseguiu afrouxar o aperto de Cathryn em seu pescoço. Quando o fez, pareceu que ela ia desabar. Ele ajudou-a a sentar-se numa cadeira, sobre a qual Cathryn caiu como um balão murcho. Então, sentou-se ao seu lado. -- Cathryn, você precisa me dizer o que está acontecendo. 85

Ela ergueu o olhar com grande esforço, os olhos azuis lavados de lágrimas. Abriu a boca, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa a porta se abriu e o dr. Jordan Wiley entrou na sala. com as mãos ainda pousadas nos ombros de Cathryn, Charles virou-se quando a porta se fechou. Ao ver o dr. Wiley, ele levantou-se, buscando no rosto do médico uma explicação para o que estava se passando. Fazia quase vinte anos que ele conhecia o dr. Wiley. Era um relacionamento mais profissional do que social, tendo começado quando Charles estava na escola de medicina. Wiley tinha sido seu mestre no terceiro ano de pediatria e havia impressionado Charles pelo seu conhecimento, inteligência e empa tia. Mais tarde, sempre que precisava de um pediatra, chamava Jordan Wiley. - Que bom vê-lo de novo, Charles - disse o dr. Wiley, apertando-lhe a mão. - Lamento que seja nessas , circunstâncias penosas. - Talvez o senhor possa me dizer quais são essas cir cunstâncias penosas - falou Charles, permitindo que a irri tação camuflasse o seu medo. - Ainda não lhe disseram? - perguntou o dr. Wiley. Cathryn abanou a cabeça. - Talvez eu devesse sair por um momento - disse o dr. Wiley. Ele começava a se dirigir para a porta, mas Charles segurou-o pelo braço. - Acho que o senhor devia dizer-me o que significa tudo isso. O dr. Wiley olhou de relance para Cathryn, que assentiu com a cabeça. Ela não estava mais soluçando, mas sabia que lhe seria difícil falar. - Está bem - continuou o dr. Wiley, encarando Charles mais uma vez. É sobre Michelle. - Eu já imaginava. - Por que você não se senta? - Por que o senhor não me diz de uma vez? O dr. Wiley observou atentamente o rosto ansioso de Charles. Viu que ele havia envelhecido um bocado desde os tempos de estudante, e lamentou que tivesse de ser o mensageiro de mais angústia e sofrimento; era uma das poucas responsabilidades de médico que ele detestava. - Michelle está com leucemia, Charles - disse o dr. Wiley, por fim. 86 l

L A boca de Charles abriu-se lentamente. Seus olhos azuis ficaram vidrados como se ele estivesse num transe. Não movia um músculo; nem chegava mesmo a respirar. Era como se a notícia do dr. Wiley houvesse liberado um dilúvio de lembranças esquecidas. Repetidamente, Charles ouvia: "Lamento informar-lhe, dr. Martel, mas sua mulher, Elizabeth, tem um linfoma ativo..." "Estou tremendamente triste de lhe dizer que ela não está reagindo ao tratamento..." "Dr. Martel, lamento dizer-lhe, mas sua senhora entrou numa crise final de leucemia. . ." "É muito penoso dizer-lhe que sua mulher morreu há alguns momentos." - Não! Não é verdade. É impossível! - gritou Charles, com tal veemência que o dr. Wiley e Cathryn se assustaram. - Charles - começou a falar o médico, estendendo a mão e pousando-a compassivamente no ombro de Charles. com um movimento brusco, Charles tirou a mão do dr. Wiley de seu ombro. - Não tenha pena de mim! Apesar de suas lágrimas, Cathryn deu um pulo e segurou o braço de

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Charles, enquanto o dr. Wiley recuava, surpreso. - Tudo isto é alguma piada? - indagou bruscamente Charles, afastando a rnão de Cathryn. - Não se trata de uma piada - falou Wiley, de um modo delicado porém firme. - Charles, sei o quanto isto é difícil para você, especialmente devido ao que aconteceu a Elizabeth. Mas você tem de se controlar. Michelle precisa de você. A mente de Charles era um torvelirího de pensamentos e emoções incompletos. Ele se debatia consigo mesmo, procurando ordenar os pensamentos. - O que o faz pensar que Michelle esteja com leucemia? - falou ele, com grande esforço. Cathryn permanecia sentada. - O diagnóstico é inequívoco - retrucou calmamente o dr. Wiley. - Que tipo de leucemia? - perguntou Charles, passando a mão por entre os cabelos e "olhando através da janela para a vizinha parede de tijolos. - Linfocíticá? - Não. Lamento dizer, mas é do tipo mieloblástico agudo. "Lamento dizer. .. Lamento dizer. . .", uma fase que °s médicos tinham estocada e de que lançavam mão para 87

dizer que não sabiam o que fazer, e que ecoava desagra davelmente na cabeça de Charles. "Lamento dizer que sua mulher morreu..." Era como uma faca mergulhando em seu coração. - Células leucèmicas circulantes? - perguntou Charles, forçando a inteligência a lutar contra a lembrança. - Lamento dizer, mas são. Sua contagem de glóbulos brancos acusa mais de cinqüenta mil. Um silêncio mortal desceu sobre a sala. De repente, Charles começou a andar de um lado para outro. Ele se deslocava com passos rápidos, enquanto suas mãos batiam uma contra a outra como se fossem inimigas. - Não se pode fazer um diagnóstico de leucemia com certeza até que se pratique uma coleta de medula óssea disse Charles abruptamente. :- Já foi feita. - Não é possível! - exclamou bruscamente Charles. - Eu não dei permissão. - Eu dei - disse Cathryn com a voz hesitante, temerosa de ter feito algo errado. Ignorando Cathryn, Charles continuou a olhar, carran- ; cudo, para o dr. Wiley. - Eu mesmo quero ver os esfregaços. - Já fiz com que um hematologista revisse as lâminas.! - Não me interessa - retrucou Charles, zangado. - Eu quero vê-los. - Como você quiser - disse o dr. Wiley. Ele se lem brava da impetuosidade de Charles, mas como estudante. Aparentemente, ele não havia mudado. Embora soubesse que era importante para Charles comprovar o diagnóstico, na quele momento ele teria preferido falar sobre os cuidados devidos a Michelle. - Acompanhe-me - disse por fim, conduzindo Char lês para fora da sala de conferências até o bali. Quando a porta da sala de conferências se abriu, o ambiente foi invadido por uma cacofonia de choros de criança. A princípio sem saber ao certo o que fazer, Cathryn correu atrás dos dois homens. Na extremidade oposta do corredor, entraram num aposento estreito que servia como um pequeno laboratório clínico. Havia espaço suficiente para uma bancada e uma fileira de bancos. Estantes cheias de vidros de urina emprestavam um cheiro duvidoso ao ambiente. Uma moça com o rosto cheio de espinhas, metida num avental branco todo mancha- 88

do, desceu do banco mais próximo. Estava ocupada em rotineiros exames de urina. - Aqui, Charles - disse o dr. Wiley, indicando um microscópio coberto. Ele tirou a capa de plástico. Era um Zeiss binocular. Charles sentou-se, ajustou as oculares e acendeu a Iu2. O dr. Wíley abriu uma gaveta próxima e puxou um depósito de papelão cheio de lâminas. Delicadamente, retirou uma delas, tendo todo o cuidado de só tocar nas bordas. Ao passá-la para Charles, seus

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olhos se encontraram. Para o dr. Wiley, ele parecia um animal acuado. com a mão esquerda, Charles apanhou a lâmina entre os dedos polegar e indicador. No centro da lâmina havia uma lamínula de vidro que parecia cobrir um bocadinho de sujeira. Na parte maior do vidro estava escrito: MICHELLE MARTEL, n.° 882673, MEDULA ÓSSEA. A mão de Charles tremeu enquanto colocava a lâmina na platina do microscópio e punha uma gota de óleo de cedro sobre a lamínula. Olhando de lado, ele observou a lente de imersão descer aos poucos sobre a lâmina até mergulhar no óleo. Tomando uma respiração profunda, Charles colocou os olhos nas oculares e tensamente começou a manejar o parafuso micrométrico. Imediatamente, uma multidão de células azul-pálidas entrou em foco, o que descontrolou e sufocou sua respiração, forçando o sangue a pulsar em suas têmporas. Um estremecimento de medo, tão real quanto se ele estivesse olhando para seu próprio atestado de óbito, percorreu-o. Em vez da habitual população de células em todos os estágios de maturação, a medula de Michele tinha sido toda substituída por células grandes, indiferenciadas, com núcleos grandes e irregulares, contendo múltiplos nucléolos. Ele foi engolfado por uma sensação de pânico total. - Acho que você concorda com o que é mais do que conclusivo - disse delicadamente o dr. Wiley. com um empurrão, Charles pôs-se de pé, derrubando o banco para trás. Uma raiva incontrolável, nascida na exasperante manhã que tivera e agora exarcebada pela doença de Michelle, o cegava. - Por quê? - gritou ele para o dr. Wiley, como se o pediatra participasse de uma conspiração que o cercava. Agarrando o homem pela camisa, sacudiu-o violentamente. Cathryn interpôs-se entre os dois, lançando os braços em tom o do marido. - Charles, pare com isso! - gritava ela, apavorada por se indisporem com a única pessoa que poderia ajudá-los. 89

- O dr. Wiley nada tem a ver com isso. Se há algum culpado, somos nós. Como se acordasse de um sonho, Charles, embaraçado, soltou a camisa do dr. Wiley, deixando o laço da gravata do surpreso médico num ângulo agudo. Depois, curvou-se e endireitou o banco; a seguir, tornou a se endireitar, cobrindo o rosto com as mãos. - Não se trata de culpa - disse o dr, Wiley, arrumando nervosamente a gravata. - A questão agora é tratar da criança. - Onde está Michelle? - perguntou Charles. Cathryn não largou seu braço. - Ela já foi internada no hospital - falou o dr. Wiley. - Está na Anderson 6, um andar com um maravilhoso grupo de enfermeiras. - Quero vê-la - disse Charles, com a voz fraca. - Claro que vai vê-la - continuou o dr. Wiley. Mas acho que primeiro temos que discutir o seu tratamento. Escute, Charles. - O dr. Wiley estendeu uma das mãos como sinal de conforto, mas pensou melhor. A fúria de Charles o havia desalentado. Então, ele meteu as mãos nos bolsos. - Temos aqui na pediatria uma das autoridades mundiais em leucemia infantil, o dr. Stephen Keítzman, e, com a permissão de Cathryn, já entrei em contato com ele. Michelle está muito doente, e quanto mais cedo colocarmos um oncologista pediátrico no caso, melhor. Ele concordou em se encontrar conosco assim que você chegasse. Acho que devíamos falar com ele antes de ver Michelle. No início, Cathryn não teve muita confiança no dr. Stephen Keitzman. Exteriormente, ele era o oposto do dr. Wiley. Era um homenzinho de aparência jovem, com uma cabeça grande e espessos cabelos negros e cacheados. Usava óculos sem aros sobre um nariz afilado, cujos poros eram mais do que evidentes. Seus modos eram bruscos, seus gestos, nervosos, e tinha um tique peculiar que se evidenciava nas pausas que fazia enquanto falava. Súbito, seu lábio superior se curvava para cima como se ele fosse espirrar, deixando momentaneamente seus dentes à mostra e arregaçando suas narinas. Isso durava apenas um instante, mas tinha um

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efeito desagradável nas pessoas que o viam pela primeira vez. Mas era um homem seguro de si mesmo e falava com uma autoridade que fez Cathryn sentir confiança nele. Certa de que esqueceria o que lhe seria dito, ela puxou um caderninho de notas e uma caneta esferográfica. Confun- / 90

dia-a o fato de Charles parecer não estar ouvindo. Em vez disso, ele olhava pela janela, aparentemente observando o tráfego que fluía ao longo da Longwood Avenue. O vento nordeste trouxera o ar do Ártico para Boston, e a mistura de chuva ligeira e neve havia se transformado numa pesada nevasca. Cathryn ficou aliviada por Charles estar ali para assumir o controle de tudo, porque ela se sentia incapaz de fazê-lo. Contudo, ele estava agindo estranhamente: irado num minuto, desligado no outro. - Em outras palavras - resumiu o dr. Keitzman -, o diagnóstico de leucemia mieloblástica aguda está estabelecido, sem nenhuma dúvida. Girando a cabeça, Charles observou o quarto. Ele sabia que tinha um controle precário sobre suas emoções, e isso tornava difícil fazê-lo concentrar-se no que Keitzman tinha a dizer. Revoltado, ele achava que tinha passado a manhã toda vendo gente minar a sua segurança, transtornar sua vida, destruir sua família, roubar-lhe sua recém-encontrada felicidade. Racionalmente, ele sabia que havia uma grande diferença entre Morrison e Ibanez, por um lado, e Wiley e Keitzman, pelo outro, mas no momento todos eles desencadeavam nele a mesma fúria irracional. Charles sentia uma grande dificuldade em admitir, em acreditar que Michelle tivesse leucemia, particularmente do pior tipo possível, da espécie mais mortífera. Ele já havia passado por aquele tipo de desastre; era a vez de alguém mais. Ouvindo meio debilmente, Charles examinava o dr. Keitzman, que tinha assumido aquele típico ar condescendente do médico encarregado, distribuindo informações como se estivesse dando uma aula. Era evidente que Keitzman já havia passado por essa situação muitas vezes antes e seu estoque de frases como "Lamento dizer" tinha um tom gasto, insincero. Charles experimentou a desconfortável sensação de que o homem estava se divertindo, não do mesmo modo que se divertia vendo um filme ou comendo uma boa refeição, porém de um modo mais sutil, presunçoso: ele era o centro da atenção de uma crise. Essa atitude irritou as já eriçadas emoções de Charles, especialmente porque ele era mais familiarizado com o material geral sobre o qual estava discorrendo Keitzman. Charles obrigava-se a ficar em silêncio enquanto, com a imaginação, conjurava as imagens caleidoscópicas de Michelle à medida que elas cresciam. - A fim de mitigar o inevitável sentimento de culpa continuava Keitzman enquanto desnudava os dentes su- 91

periores numa de suas caretas nervosas -, quero enfatizar que a causa e a data do início de uma leucemia como a de Michelle são desconhecidas. Os pais não devem tentar considerar os acontecimentos específicos como responsáveis pelo início.da doença. O objetivo será tratar a situação e procurar conseguir uma remissão. Tenho o grato prazer de informarlhe que temos obtido resultados muito favoráveis com a leucemia mieloblástica aguda; algo que não tínhamos há dez anos. Agora somos capazes de conseguir uma remissão em cerca de oitenta por cento dos casos. - Isso é maravilhoso! - disse Charles, falando pela primeira vez. - Mas, ao contrário das curas de cinco anos que o senhor diz ter alcançado nas outras formas de

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leucemia, pode nos dizer quanto tempo dura a remissão na forma da doença de Michelle? - Era como se Charles estivesse aguilhoando Keitzman para revelar p pior de uma vez. Keitzman empurrou os óculos para trás e limpou a garganta. - Dr. Martel, estou certo de que o senhor sabe mais sobre a doença de sua filha do que os outros pais com os quais costumo tratar. Mas como seu campo não é especificamente a leucemia infantil, não faço idéia do que o senhor sabe e do que não sabe. Acho melhor discutirmos este assunto como se o senhor não soubesse nada. E mesmo que esses fatos já lhe sejam familiares, talvez eles sejam úteis à sra. Martel. - Por que o senhor não responde à minha pergunta? - disse Charles. - Acho que é mais útil concentrarmos nossa abordagem em obtermos uma remissão - disse o dr. Keitzman. Seu tique nervoso tornou-se mais freqüente. - Minhas experiências têm demonstrado que, com os avanços na quimioterapia, a leucemia deve ser tratada diariamente. Temos visto remissões espetaculares. - Exceto no tipo da de Michelle - resmungou Charles. - Vamos, diga-nos qual é a probabilidade de uma sobrevivência de cinco anos numa leucemia mieloblástica aguda. ; O dr. Keitzman desviou o olhar dos olhos desafiadores de Charles para o rosto assustado de Cathryn. Ela havia parado de tomar notas. Engoliu em seco e olhou para o dr. Keitzman. Ele sabia que a reunião não estava transcorrendo muito bem. Olhou para o dr. Wiley de relance, como que pedindo apoio, mas ele havia baixado a cabeça e observava 92 "í

seu polegar brincando com os outros dedos. Procurando evitar o olhar fixo de Charles, Keitzman disse, em voz baixa: - A sobrevivência de cinco anos na leucemia mieloblástica aguda não é muito freqüente, mas não é impossível. - Agora o senhor está se aproximando da verdade disse Charles, levantando-se e enconstando-se na mesa do dr. Keitzman. - Mas, para sermos mais exatos, a sobrevivência média da leucemia mieloblástica aguda, se for conseguida uma remissão, é de apenas um a dois anos. E no caso de Michelle, com células léucêmicas circulantes, suas chances de uma remissão são muito menores do que oitenta por cento. O senhor não concorda, dr. Keitzman? Tirando os óculos, o dr. Keitzman pensou na melhor maneira de responder. - Existe alguma verdade no que o senhor diz, mas não é uma maneira positiva de encararmos a doença. Existe uma porção de variáveis. - Charles encaminhou-se abruptamente para a janela, observando a neve suja. - Por que o senhor não diz à sra. Martel que o tempo de sobrevivência daquele que não reage é. . . dos pacientes que não têm uma remissão? - Não sei do que isso adiantaria. . . - começou a falar o dr. Keitzman. Charles girou sobre si mesmo. -- Do que adiantaria? O senhor ousa perguntar? Eu lhe digo o que adianta. A pior coisa sobre uma doença é a incerteza. Os seres humanos são capazes de se adaptar a qualquer coisa, desde que a conheçam. É a desesperança em que se debatem que leva as pessoas à loucura. Enquanto falava, Charles voltou como um furacão para a mesa do dr. Keitzman. Vendo o bloco de Cathryn, agarrou-o e atirou-o na cesta de lixo. - Não queremos notas nesta reunião! Isso não é uma aula. Além do mais, conheço muito bem a leucemia. - E, tornando a voltar-se para o dr. Keitzman, com o rosto vermelho, indagou: - Vamos, Keitzman, fale-nos sobre o tempo de sobrevivência dos que não reagem. Keitzman mexeu-se em sua cadeira e agarrou a borda da mesa, como se estivesse preparado paira fugir. E disse, Por fim: - Não é bom . - Isso ainda não basta - explodiu Charles. - Seja ttais específico. 93

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- Muito bem! - prosseguiu Keitzman. - Semanas, meses no máximo. Charles não respondeu. Tendo encurralado o dr. Keitzman, ficou subitamente à deriva. Aos poucos, deixou-se cair em sua cadeira. O rosto de Keitzman recuperou-se de uma série de repuxamentos, enquanto trocava olhares de simpatia com o dr. Wiley. Virando-se para Cathryn, prosseguiu em suas recomendações. - Conforme eu estava dizendo, é melhor procurar pensar na leucemia como uma doença não-fatal e aceitar a cada dia o que vier. - Isso é como dizer a um homem que está no corredor da morte para não pensar na morte - murmurou Charles. - Dr. Martel - disse Keitzman asperamente -, como médico eu esperava que o senhor reagisse a essa crise de um modo muito diferente. - É fácil reagir diferentemente quando não se trata de um membro de sua própria família. Infelizmente, já passei por isso antes. - Acho que devíamos discutir a terapêutica - interveio o dr. Wiley, falando pela primeira vez. - Concordo - disse o dr. Keitzman. - Devemos iniciar o tratamento o mais cedo possível. com efeito, gostaria de iniciá-lo hoje, imediatamente depois que forem feitos todos os estudos básicos. Mas é claro que vamos precisar de uma autorização para o tratamento, dada a natureza das drogas. - com uma chance de remissão tão pequena, o senhor tem certeza de que vale a pena submeter Michelle aos efeitos colaterais? -- Charles agora falava mais calmamente, porém tinha uma terrível visão de Elizabeth durante os últimos meses, da náusea violenta, da perda dos cabelos. . . E fechou os olhos. - Sim, tenho - disse com firmeza o dr. Keitzman. - Acho que está estabelecido que temos feito significativos progressos no tratamento da leucemia infantil. - Isso é absolutamente real - confirmou o dr. Wiley. - Tem havido progressos - concordou Charles -, mas infelizmente em outros tipos de leucemia que não o de Michelle. Os olhos de Cathryn se moviam rapidamente de Charles para Keitzman e para Wiley. Ela esperava e queria 94

uma unanimidade sobre a qual pudesse construir sua esperança. Em vez disso, ela nada sentia além de animosidade e dissensão. - Bem - dizia o dr. Keitzman -, acredito em tratar agressivamente todos os casos, sejam quais forem as chances de remissão. Cada paciente merece uma oportunidade de vida, a qualquer preço. Cada dia, cada mês é precioso. - Mesmo que o paciente prefira pôr fim aos seus sofrimentos - observou Charles, lembrando-se dos últimos dias de Elizabeth. - Quando as chances de uma remissão.

. . para não dizer de uma cura. . . são de menos de vinte por cento, não sei se vale a pena submeter uma criança às dores adicionais. O dr. Keitzman ergueu-se de súbito, empurrando sua cadeira para trás. - É evidente que encaramos o valor da vida muito diferentemente. Acredito na quimioterapia como uma arma realmente notável contra o câncer. Mas o senhor tem direito à sua opinião. Todavia, parece evidente que o senhor preferiria arranjar um outro oncologista ou dirigir o tratamento de sua filha por si mesmo! Boa sorte! - Não! - gritou Cathryn, levantando-se de um salto, apavorada ante a perspectiva de ser abandonada pelo dr. Keitzman, que o dr. Wiley dissera ser o melhor. - Dr. Keitzman, precisamos do senhor. Michelle precisa do senhor. - Não acredito que seu marido concorde com seu ponto de vista, sra. Martel - falou o dr. Keitzman. - Ele concorda, ele está apenas fora de si - disse Cathryn. - Por favor, dr. Keitzman. - E, virando-se para Charles, pôs uma das mãos em seu pescoço. - Charles, por favor! Não podemos enfrentar esta luta sozinhos. Esta manhã você disse que não era um pediatra. Precisamos do dr. Keitzman e do dr. Wiley. - Creio que poderíamos cooperar - apressou-se a

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dizer o dr. Wiley. Charles cedeu ante o peso de sua melancólica impotência. Ele sabia que não podia cuidar de Michelle, mesmo que estivesse convencido de que o atual critério de abordagem de sua doença estivesse errado. Ele nada tinha a oferecer, sua mente estava sobrecarregada, numa verdadeira confusão emocional. - Charles, por favor - implorava Cathryn. 95

- Michelle é uma garotinha doente - disse o dr. Wiley. - Muito bem - concordou Charles calmamente, uma vez mais forçado a se render. Cathryn olhou para o dr. Keitzman. - Aí está! Ele disse que está bem. - Dr. Martel - perguntou o dr. Keitzman. - O senhor quer que eu atue como oncologista neste caso? com um suspiro que sugeria um grande esforço respiratório, Charles relutantemente fez que sim com a cabeça. O dr. Keitzman sentou-se e rearrumou alguns papéis sobre sua mesa. - Muito bem - falou ele por fim. - Nosso protocolo para a leucemia mieloblástica envolve essas drogas: Daunorubicin, Thioguanina e Cytarabine. Após nosso entendimento, começaremos imediatamente com 60 mg/m2 de Daunorubicin aplicado intravenosamente em infusão rápida. Enquanto o dr. Keitzman delineava o programa de tratamento, Charles se torturava mentalmente, lembrando-se dos efeitos colaterais potenciais do Daunorubicin. Provavelmente a febre de Michelle era causada por uma infecção devida à reduzida capacidade de seu corpo de combater as bactérias. O Daunorubicin tornaria isso ainda pior. E, além disso, deixando-a basicamente sem defesas para uma horda de bactérias e fungos, a droga também devastaria seu aparelho digestivo e possivelmente seu coração.

. . sem contar. .. que. . . seu cabelo. . . Meu Deus! - Quero ver Michelle - disse ele de repente, erguendo-se de um salto, procurando abafar seus pensamentos. Imediatamente, ele percebeu que havia interrompido o dr. Keitzman no meio de uma frase. Todos o fitaram como se ele tivesse feito algo chocante. - Charles, acho que você deve ouvir - disse o dr. Wiley, estendendo a mão e segurando o braço de Charles. Tinha sido um gesto reflexo, e só depois do contato o dr. Wiley questionou sua conveniência. Mas Charles não reagiu. Na verdade, deixou pender frouxamente o braço e, depois de um ligeiro empurrão, tornou a sentar-se. -- Conforme eu ia dizendo - continuou o dr. Keitzman -, acho que é importante estabelecer o critério psicológico da abordagem da paciente. Costumo agir segundo a idade: abaixo dos cinco, na idade escolar, e nos adolescentes. Abaixo dos cinco anos é simples: uma constante e afetuosa terapêutica de apoio. Os problemas começam no grupo em 96

idade escolar, onde o medo da separação dos pais e dos processos hospitalares constituem as maiores preocupações da criança. Charles contorceu-se em sua cadeira. Ele não queria pensar no problema do ponto de vista de Michelle; era doloroso demais. Os dentes do dr. Keitzman brilharam, quando seu rosto se convulsionou momentaneamente; depois ele continuou: - Ao paciente em idade escolar não se diz mais do que ele especificamente quer saber. O apoio psicológico se concentra em aliviar as ansiedades da criança no que toca à separação. - Acho que Michelle vai sentir muito a questão da separação - interrompeu Cathryn, lutando para seguir a explicação do dr. Keitzman, querendo cooperar para agradar ao médico. - com os adolescentes - disse o dr. Keitzman, sem tomar conhecimento de Cathryn -, o tratamento se

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aproxima do de um adulto. Cria-se o apoio psicológico para eliminar a confusão e a incerteza, sem destruir a questão de que isso faça parte do mecanismo de defesa do paciente. Infelizmente, no caso de Michelle, o problema se situa entre a idade escolar e a adolescência. Não estou certo de qual seja o melhor meio de abordá-lo. Talvez vocês, como pais, possam ter uma opinião. - O senhor está sugerindo que devemos dizer a Michelle que ela está com leucemia? - perguntou Cathryn. - Isso é uma das partes - concordou o dr. Keitzman. Cathryn olhou para Charles, mas ele tornara a cerrar os olhos. O dr. Wiley retribuiu seu olhar com uma expressão de simpatia que fez Cathryn sentir-se um pouco confortada. - Bem - disse o dr. Keitzman -, é um assunto que exige meditação. Não se precisa tomar qualquer decisão agora. com o tempo Michelle pode saber que estamos tentando mostrar o que há de errado com ela. Antes de prosseguirmos: Michelle tem irmãos? - Sim - respondeu Cathryn. - Dois irmãos. - Bem. Seus tipos sangüíneos e tissulares devem ser determinados, para ver se se adaptam aos de Michelle. Provavelmente vamos precisar de plaquetas, granulócitos e talvez até de medula óssea, de modo que espero que um deles sirva. Cathryn olhou para Charles em busca de apoio, porém 97

os olhos dele ainda se conservavam fechados. Ela não fazia idéia do que o dr. Keitzman estava falando, mas admitiu que Charles o sabia. Mas Charles parecia estar mais perturbado com as notícias do que ela. Subindo pelo elevador, Charles lutava para se controlar. Ele jamais experimentara antes um conflito de emoções \ tão doloroso. Por um lado, mal podia esperar para ver a filha, segurá-la e protegê-la; por outro, temia vê-la, porque ia ter de concordar com o diagnóstico. E, nesse sentido, ele sabia demais. Ela o perceberia em seu rosto. O elevador parou. As portas se abriram. Adiante esten dia-se um hall azul-pálido com figuras de animais afixadas como decalques diretamente sobre a pintura. O hall estaval cheio de crianças de várias idades em pijamas, de enfermei ras, de pais, e até de um grupo de homens da manutenção! do hospital, trepados numa escada para consertar as lâm padas. O dr. Wiley levou-os pelo hall, desviando-se da escada! e passando pelo posto das atarefadas enfermeiras. Ao ver oi dr. Wiley, a enfermeira encarregada saiu correndo de tráfl das pilhas de fichas e alcançou-os. Charles ficou olhandH para o chão, para seus pés. Era como se estivesse olhandH para uma outra pessoa. Cathryn estava ao seu lado, o braçH metido sob o dele. Michelle tinha um quarto isolado, pintado com umáj cor da mesma nuança que o azul-pastel do corredor. Na parede à esquerda, ao lado da porta que dava para o b nheiro, havia um enorme hipopótamo dançando. Na extrMI midade do quarto havia uma janela obscurecida. À direiB um armário, uma cômoda, uma mesinha-de-cabeceira e unH cama padrão de hospital. Na cabeceira da cama, um suporâl de metal inoxidável sustentava um pequeno saco plástico 8 um frasco para injeções endovenosas. O tubo de plásticdj descia coleando e penetrava no braço de Michelle. Ela voltou os olhos da janela por onde espiava quando ouviu o grupo entrar. - Alô, garotinha! - disse alegremente o dr. Wileyl - Olhe quem eu trouxe para ver você. À primeira visão da filha, o temor de Charles em vê-ti desapareceu numa onda de afeição e preocupação. Ele coijl réu em sua direção, aninhou a cabeça em seus braço pressionando o rosto dela contra o seu. Ela corresponde" atirando o braço livre em tom o do pescoço dele e ape" tando-o. • 98

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Cathryn dirigiu-se para o outro lado da cama. Buscou os olhos de Charles e viu que ele estava lutando para reter as lágrimas. Após alguns minutos, ele relutantemente afrouxou seu abraço, deitando a cabeça de Michelle sobre o travesseiro e espalhando seu belo cabelo negro, que formou uma espécie de leque emoldurando o rosto pálido. Michelle esticou o braço, pegou a mão de Cathryn e apertou-a com força. - Como vai você? - perguntou Charles. Ele receava que seu precário estado emocional se tom asse visível para Michelle. - Agora estou me sentindo muito bem - disse Michelle, evidentemente contentíssima por ver os pais. Mas então seu rosto se anuviou e, vírando-se para Charles, perguntou: - É verdade, paizinho? O coração de Charles deu um salto dentro do peito. Ela sabe, pensou ele, alarmado. Relanceou o olhar para o dr. Keitzman e tentou lembrar-se do que ele dissera sobre a abordagem psicológica adequada. - É verdade o quê? - perguntou casualmente o dr. Wiley, aproximando-se do pé da cama. - Paizinho - lamentou-se Michelle -, é verdade que tenho de passar a noite aqui? Charles piscou, no início não querendo acreditar que Michelle não lhe estivesse pedindo para confirmar o diagnóstico. Depois, ao certificar-se de que ela não sabia que tinha leucemia, ele sorriu, aliviado. - Apenas umas poucas noites. - Mas não quero faltar à escola - disse Michelle, - Não se preocupe com a escola - falou Charles, com um riso nervoso. E olhou por um momento para Cathryn, que também riu do mesmo modo vago. - O importante é que você fique aqui para realizar alguns exames, a fitn de que possamos saber o que está provocando sua febre. - Não quero mais saber de exames - disse Michelle, arregalando os olhos com horror. Ela já sofrerá bastante. Charles admirou-se ao ver como seu corpo era pequenino na cama do hospital. Seus bracinhos finos pareciam 'ncrivelmente frágeis, saindo pelas mangas da camisola. Seu Pescoço, que sempre parecera forte, tinha agora a grossura uo antebraço; toda a sua aparência era a de uma ave delicada, vulnerável. Charles sabia que em algum lugar no cerne de sua medula óssea havia um grupo de suas próprias célu- 99

las travando uma guerra contra o corpo. E não havia nada , que ele pudesse fazer para ajudá-la - absolutamente nada. - O dr. Wiley e o dr. Keitzman só farão os exames quando acharem que são absolutamente necessários - falou

Cathryn, afagando o cabelo de Michelle. - Você vai ter que ser uma moça corajosa. O comentário de Cathryn despertou um sentimento de proteção em Charles. Ele reconhecia que não podia fazer a nada por Michelle, mas pelo menos podia protegê-la de umB trauma desnecessário. Sabia muito bem que os doentes coraj moléstias raras eram muitas vezes submetidos a todos ofl tipos de tormentos físicos ao capricho do médico encarreB gado do caso. com a mão direita, Charles virou o fraseai macio de plástico, de modo que pudesse ver o rótulo. PlaíjM quetas. com a mão ainda segurando o saco, voltou-se para o dr. Wiley. - Nós achamos que ela necessitava das plaquetas imediatamente - disse Wiley. - Ela estava com apenas vináB mil. m Charles assentiu com a cabeça. - Bem, preciso ir andando - disse o dr. KeitzmaiM Segurando um dos pés de Michelle através das cobertasjM disse: - Vejo-a mais tarde, srta. Martel. Hoje virão taniB bem outros médicos conversar com você. Vamos lhe aplicaJM alguns remédios por aquele tubo, portanto conserve seiJB braço bem quietinho. • Charles espiou o tubo plástico: Daunorubicin! UmsfB nova onda de medo o invadiu, acompanhada por uma nejB cessidade premente de descer e salvar sua amada filha dafl garras do hospital. Um pensamento irracional atravessouB sua mente: talvez o pesadelo

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desaparecesse se ele arrancasse Michelle de toda aquela gente. - Estou à disposição a qualquer hora que vocês quei ram falar comigo - disse o dr. Keitzman, encaminhando-se" para a porta. " Cathryn recebeu o oferecimento com um sorriso e um cumprimento de cabeça. Ela reparou que Charles não tirava" os olhos de Michelle. Estava sentado na borda da caa e sussurrava qualquer coisa em seu ouvido. Cathryn espew rava que seu silêncio não atraísse ainda mais a antipati" do oncologista. - Estarei aí fora - disse o dr. Wiley, seguindo o dr Keitzman. A enfermeira encarregada, que nada tinha ditojB também saiu. . 100

No hall o dr. Keitzman reduziu seus passos, dando ao dr. Wiley a oportunidade de alcançá-lo. Juntos, dirigiram-se para o posto das enfermeiras. - Acho que Charles Martel vai tornar este caso muito difícil - comentou o dr. Keitzman. - Receio que você tenha razão - concordou o dr. Wiley. - Se não fosse por aquela pobre criança doente, eu teria dito a Martel que se danasse - falou Keitzman. -- É possível acreditar naquela conversa de querer recusar a quimioterapia? Por Deus! Era de se "sperar que uma pessoa na posição dele soubesse dos progressos que temos feito com a quimioterapia, especialmente na leucemia linfocítica e na doença de Hodgkins. -- Ele sabe - disse o dr. Wiley. - Está apenas chocado. É compreensível, particularmente quando se sabe que ele já passou por tudo isso quando sua mulher morreu. - Ainda estou ressentido com seu comportamento. Ele é um médico. - Mas dedica-se à pesquisa pura. Há quase dez anos que está afastado da clínica. É um bom argumento para que os pesquisadores mantenham um pé na clínica, a fim de conservar vivo seu senso de perspectiva. Afinal de contas, cuidar das pessoas é o que vale. Chegando ao posto das enfermeiras, ambos se encostaram no balcão, contemplando com olhos que não viam a agitada cena que os cercava. - Por um momento a raiva de Charles me assustou - admitiu o dr. Wiley. - Pensei que ele tivesse perdido totalmente o controle. - Ele não esteve muito melhor em meu consultório - disse o dr. Keitzman, abanando a cabeça. - Já tratei com gente irada antes, como estou certo de que você também, mas não igual a ele. As pessoas se desesperam contra o destino, não contra os diagnósticos dos médicos. Os dois homens observaram um atendente da sala de operações conduzir habilmente um recém-operado pelo corredor até o elevador dos pacientes. Por um instante, ambos ficaram calados. O carrinho que trazia a criança da sala de recuperação desapareceu num dos quartos, e várias enferrneiras correram atrás .dele. - Será que você está pensando o mesmo que eu? Perguntou o dr. Keitzman, 101

-1 - É provável. Estou pensando até quando se conservará estável o dr. Charles Martel. - Então estamos pensando a mesma coisa. Aquelas súbitas mudanças de atitude em meu consultório. ... O dr. Wiley concordou com um aceno de cabeça. - Mesmo consideradas as circunstâncias, sua reação pareceu imprópria. Mas ele sempre foi um tipo esquisito. Mora num lugar isolado em New Hampshire. Dizia que fora idéia de sua primeira mulher, mas depois que ela morreu ele não se mudou. E agora mora ali também com esta mulher. Não sei. Acho que cada um faz o que lhe agrada. - Sua nova mulher parece admirável. - Oh, ela é um doce. Adotou os filhos dele, trata-os como se fossem seus. Quando eles se casaram, temi que ela quisesse dominar mais do que podia, mas ela se adaptou notavelmente. Ficou arrasada quando eu lhe disse que Michelle estava com leucemia, mas eu tinha certeza de que ela

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enfrentaria a situação melhor do que Charles. Na verdade, foi por isso que disse a ela em primeiro lugar. " - Talvez devêssemos falar com ela um instante sugeriu o dr. Keitzman. - Que é que você acha? - Vamos tentar. - O dr. Wiley virou-se para o posto das enfermeiras. - Srta. Shannon! Pode vir até aquffi um instante? A enfermeira encarregada dirigiu-se para os dois mé dicos. O dr. Wiley explicou que eles queriam falar com a sra. Martel a sós e lhe perguntaram se ela se importaria

de ir até o quarto de Michelle e arranjar isso. Ao observarem a srta. Shannon caminhar apressada mente pelo hall, os músculos do rosto do dr. Keitzman se contraíram: - Nem preciso dizer que a criança está tremenda mente mal. -- Pensei o mesmo quando vi o esfregaço de seul sangue periférico - comentou o dr. Wiley. - Então, quan-1 do vi sua medula óssea, tive certeza. - Ela pode ser um caso irrecuperável, receio. Acho que" seu sistema nervoso já está comprometido. O que significa que temos de começar o tratamento hoje. Quero que os doutores Nakano e Sheetman a vejam logo. Martel está certo numa coisa: sua chance de remissão é muito pequena. 102

- Mas você ainda tem de tentar. Nessas horas, não invejo a sua especialidade. - Claro que tentarei - respondeu o dr. Keitzman. - Ah, aí vem a sra. Martel. Cathryn tinha seguido a srta. Shannon até o hall, esperando talvez ver Marge Schonhauser, porque a enfermeira lhe dissera que alguém pedira para vê-la. Não fora capaz de pensar em mais ninguém que soubesse que ela estava no hospital. No entanto, tão logo saíram do quarto, a srta. Shannon lhe segredara que os médicos queriam falar-lhe em particular. Aquilo lhe pareceu agourento. - Obrigado por ter vindo - disse o dr. Wiley. - Não há de quê - retrucou Cathryn, desviando o olhar de um homem para o outro. - Há algo de errado? - É sobre seu marido - começou o dr. Keitzman, cauteloso. E fez uma pausa, procurando escolher adequadamente as palavras. - Estamos temerosos de que ele possa interferir no tratamento de Michelle - disse o dr. Wiley, terminando o pensamento. - É muito difícil para ele. Em primeiro lugar, ele próprio sabe muito sobre a doença. E, depois, já viu alguém que ele amava morrer, apesar da quimioterapia. - Não é que não entendamos seus sentimentos. Apenas achamos que Michelle deve ter todas as oportunidades de uma remissão, apesar dos efeitos colaterais. Cathryn examinou as estreitas feições de falcão do dr. Keitzman e o rosto largo e arredondado do dr. Wiley. Embora fossem exteriormente tão diferentes, mostravam-se porém muito semelhantes em sua firmeza. - Não sei o que os senhores querem que eu diga. - Gostaríamos apenas que a senhora nos desse uma idéia do seu estado emocional - disse o dr, Keitzman. Gostaríamos de saber o que nos espera. - Acho que ele está ótimo - assegurou Cathryn. Ele teve muita dificuldade em se ajustar quando sua primeira mulher morreu, mas nunca interferiu no tratamento dela. - Ele costuma se descontrolar como .fez hoje? - indagou Keitzman. - Ele teve um choque terrível - continuou Cathryn. - Acho que é compreensível. Além disso, desde que sua primeira mulher morreu, a pesquisa no câncer tem sido sua Paixão. -- É uma ironia terrível - comentou o dr. Wiley. 103

- Mas quanto ao tipo de explosão emocional que ele demonstrou hoje? - perguntou o dr. Keitzman. - Ele tem muito gênio, mas habitualmente o controla bem. - bom , isso já é encorajador - prosseguiu Keitzman. - Afinal de contas, talvez não seja tão difícil. Muito obri

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gado, sra. Martel. A senhora foi muito útil, especialmente sabendo-se que a senhora também teve um-choque ter- rível. Lamento se dissemos algo quê a perturbou, mas farer-à mos o melhor possível por Michelle, isso eu posso IhdB assegurar. - Voltando-se para o dr. Wiley, disse: - TenhcB que manter as coisas em andamento. Mais tarde falarei com você. - E andando muito depressa, quase correndo, enjl segundos estava fora de vista.

- Ele tem uns modos estranhos - disse o dr. Wi ley -, mas você não poderia ter conseguido um melhor oncologista. Ele é uma das mais altas autoridades do mundo

em leucemia infantil. - Temi que ele nos abandonasse quando Charles fez aquela cena. - Ele é um médico bom demais para isso - afirmou o dr. Wiley. - Ele só está preocupado com a atitude de Charles com relação à quimioterapia. E o tratamento agressivo tem de ser iniciado agora mesmo, para que se possa conseguir uma remissão. - Estou certa de que Charles não interromperá o tra tamento. - Esperemos que não. Mas vamos contar com sua força, Cathryn. - Minha força? - indagou Cathryn, horrorizada. - Os hospitais e os problemas médicos não são meus pontosj fortes. - Receio que tenha de superar isso. O curso dínioa de Michelle vai ser muito difícil. Naquele momento ela viu Charles, que saía do quarto de Michelle. Ele avistou Cathryn de longe e se dirigiu paraf o posto das enfermeiras. Ela correu ao seu encontro. Porl um momento os dois permaneceram em silêncio, abraçados procurando apoiar-se mutuamente. Ao se dirigirem para o dr. Wiley, Charles parecia mais controlado. - Ela é uma boa garota - disse ele. - Por Deus! o que a preocupa é ter de passar a noite aqui. Ela queria estar em casa de manhã para fazer o suco de laranja. Acre dita nisso? 104

- Ela se sente responsável - observou Cathryn. Até minha chegada ela era a mulher da casa. Ela temia perder você, Charles. - É espantoso o que a gente ignora sobre os próprios filhos - disse Charles. - Perguntei-lhe se ela se incomodava de que eu voltasse para o laboratório. Ela disse que não, desde que você permanecesse aqui, Cathryn. Cathryn ficou sensibilizada. - A caminho do hospital tivemos uma pequena conversa e, pela primeira vez, senti que ela realmente me aceitava. - Ela é feliz por ter você. E eu também. Espero que não se importe que eu saia agora, deixando você aqui. Espero que compreenda. Sinto-me terrivelmente incapaz. Preciso fazer alguma coisa. - Compreendo. Acho que você tem razão. Não há nada que possa fazer agora, e seria melhor você se dedicar a outra coisa qualquer. Ficarei bem aqui. De qualquer forma, vou chamar minha mãe. Ela virá e tomará conta das coisas. O dr. Wiley observava o casal caminhar em sua direção, satisfeito de ver a afeição franca e o apoio mútuo que demonstravam. Era bom o fato de reconhecerem e partilharem sua dor; era um bom sinal, e isso o encorajou. Ele sorriu, até certo ponto por não saber o que dizer quando eles chegassem. Precisava regressar ao seu consultório, que sabia estar num caos, mas queria estar ali se ainda precisassem dele. - O senhor ainda tem um pouco de sangue de Michelle? - perguntou Charles. Sua voz era puramente profissional. - É provável. - Ele não esperava aquela pergunta. Charles tinha a estranha habilidade de enervá-lo. - Onde está? - perguntou Charles. - No laboratório clínico. - Ótimo. Vamos até lá. - E encaminhou-se para o elevador. - Ficarei aqui com Michelle - disse Cathryn. Telefonarei se houver novidade. Do contrário, verei

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você ern casa para jantar. - OK. - E partiu decididamente. Confuso, o dr. Wiley correu atrás de Charles, acenando 105

um rápido adeus para Cathryn. Seu encorajamento a propósito do comportamento de Charles fora rapidamente minado. Aparentemente, a disposição de Charles escapara por uma nova e curiosa tangente. O sangue de sua filha? Bem, ele era um médico. 106

Agarrando o frasco de sangue de Michelle, Charles corria pelo saguão do Instituto Weinburger, Ele ignorou os cumprimentos da tímida recepcionista e do guarda de segurança e desceu pelo corredor para o seu laboratório. - Muito obrigada por voltar - escarneceu Ellen. Eu podia ter precisado de alguma ajuda para injetar o Canceram nos camundongos. Charles ignorou-a, carregando o pequeno frasco com o sangue de Michelle para o aparelho que eles usavam para separar os componentes celulares do sangue. E começou o complicado processo de preparar a unidade. Curvando-se para espiar Charles por baixo das prateleiras de vidros, Ellen observou-o por um momento: - Ei! Eu disse que podia ter precisado dê ajuda. . . Charles ligou uma bomba circulatória. Enxugando as mãos, Ellen contornou a extremidade da bancada de trabalho, curiosa para ver o objeto da evidente concentração de Charles. - Acabei de injetar no primeiro love de camundongos - repetiu ela, ao se achar bastante perto de Charles para ter absoluta certeza de que ele podia ouvi-la. - Ótimo - disse Charles, desinteressado. Cuidadosamente, ele introduziu uma parte do sangue de Michelle na máquina. Então, ligou o compressor. - Que é que você está fazendo? - Ellen seguia todos os seus movimentos. - Michelle está com leucemia mieloblástica - disse Charles. Ele falava calmamente, como se estivesse dando o boletim do tempo. - Oh, não! - exclamou Ellen, ofegante. - Charles, sinto muito. - Ela quis estender a mão para confortá-lo, mas se conteve. - Espantoso, não é? - riu Charles. - Se os desastres do dia se limitassem aos problemas aqui no Weinbur- 107

ger, provavelmente eu me limitaria a chorar. Mas com a doença de Michelle, tudo é um pouco demais. Meu Deus! O riso de Charles tinha um som cavo, mas chocou Ellen como algo inadequado. - Você está bem? - perguntou Ellen. - Maravilhosamente - retrucou Charles, abrindo a pequena geladeira para retirar uns reagentes. - Como se sente Michelle? 1 - Agora muito bem, mas ela não faz idéia do que a l espera. Receio que as coisas piorem muito. Ellen não encontrava palavras para dizer. Inexpressivamente, contemplava Charles, enquanto ele continuava a l completar o seu teste. Finalmente, ela achou o que falar. - Charles, o que você está fazendo? - Tenho um pouco do sangue de Michelle. vou ver se nosso método de isolar um antígeno canceroso funciona com suas células leucêmicas. Isso me dá a falsa impressão

de que estou fazendo algo para salvá-la. - Oh, Charles - disse Ellen, compassivamente. Ha via algo de doloroso no modo pelo qual ele reconhecia sua i vulnerabilidade. Ellen sabia o quanto Charles era diligente, e ele lhe dissera que a pior coisa para ele tinha sido o sentimento de impotência quando Elizabeth estivera doente. Ele fora obrigado a se sentar e vê-la morrer. E agora Michelle! - Decidi que não vamos interromper nosso trabalho - disse Charles. - Vamos

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continuar com ele enquanto trabalhamos no Canceran. Trabalhar noites a fio, se for preciso. - Mas Morrison está insistindo muito em que nos concentremos exclusivamente no Canceran. Enquanto você esteve fora, ele veio para enfatizar isso. - Por um instante, Ellen ficou em dúvida se devia dizer a Charles a verdadeira razão pela qual Morrison tinha ido lá, mas com tudo o mais que havia acontecido, teve medo de fazê-lo. - Eu não poderia ligar menos para o que Morrison diz. com a doença de Michelle, o câncer tornou-se, de novo, mais do que um conceito metafísico para mim. Nosso tra balho promete muito mais do que criar um outro agente quimioterápico. Além disso, Morrison não precisava saber o que estamos fazendo. Trabalharemos no projeto Canceran e ele ficará feliz. - Não sei se você está a par do quanto a administração está contando com o Canceran. Realmente, não acho 108 à

aconselhável ir contra eles nisto, em particular quando o motivo é pessoal. Por um instante, Charles ficou parado, estático, depois explodiu. Bateu com a mão aberta sobre a pedra de cobertura dó balcão com tal força, que vários frascos saltaram das prateleiras. - Chega! - gritou ele para acentuar seu gesto. - Já estou cheio de gente me dizendo o que devo fazer. Se você não quer trabalhar comigo, então foda-se e dê o fora daqui! Charles retornou de súbito ao seu trabalho, passando a mão pelos cabelos em desalinho. Durante alguns momentos, trabalhou em silêncio; depois, sem se virar, disse: - Não fique parada aí em pé; dê-me os nucleotídeos radioativos rotulados. Ellen foi até a área de estocagem das substâncias radioativas. Ao abrir o armário, notou que suas mãos estavam tremendo. Era evidente que Charles mal conseguia se controlar. Ela ficou pensando no que dizer ao dr. Morrison. Estada certa de que queria dizer algo, pois na medida em que seu medo se reduzia, a raiva crescia. Não havia atenuantes para Charles tratá-la daquele jeito. Ela não era uma criada. Ellen trouxe as substâncias químicas e as dispôs em ordem sobre o balcão. - Muito obrigado - limitou-se ele a dizer, como se nada houvesse acontecido. - Assim que tivermos alguns linfócitos-B, quero incubá-los com os nucleotídeos marcados e algumas das células leucêmicas. Ellen fez um sinal afirmativo com a cabeça. Ela não podia acompanhar alterações emocionais tão rápidas. - Enquanto eu estava vindo para cá, tive uma inspiração - continuou Charles. - A maior barreira em nosso trabalho tem sido este fator bloqueador e nossa incapacidade para arrancar uma reação anticorpo ao antígeno do câncer no animal afetado. Bem, tenho uma idéia: eu estava tentando pensar num meio de economizar tempo. Por que não injetar o antígeno canceroso num animal correlato, nãocanceroso, onde possamos ter certeza absoluta de criarmos uma resposta de anticorpos? Que acha disso? Ellen examinou atentamente o rosto de Charles. Em segundos ele havia se metamorfoseado de uma criança furiosa no pesquisador dedicado. Ellen achou que era sua maneira de lidar com a tragédia de Michelle. Sem esperar por uma resposta, Charles continuou: 109

- Tão logo o animal não-canceroso fique imune ao antígeno canceroso, isolaremos os linfócitos- responsáveis, purificaremos o fator protéico de transferência e transferiremos a sensibilidade para o animal canceroso. É tão fundamentalmente simples, que não sei como não pensamos nisso antes. Bem. . . qual é sua impressão? Ellen encolheu os ombros. Na verdade, estava com medo de dizer alguma coisa. Embora a premissa básica parecesse

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promissora, Ellen sabia que o misterioso fator de transferência não atuava bem nos sistemas dos animais que eles estavam usando; de fato, ele agia melhor nos seres humanos. Mas as questões técnicas não vinham em primeiro lugar em sua mente. Ela imaginava se não se tornaria muito evidente se se desculpasse e fosse diretamente para o escritório do dr. Morrison. - Que tal pegar o glicol-polietileno? - disse Charles. - Vamos preparar o equipamento para produzir um hidridoma com os linfócitos-T de Michelle. Telefone também para o biotério e diga que queremos um love novo de camundongos de controle, nos quais injetaremos o antígeno de um tumor mamário. Meu Deus, quem me dera que o dia tivesse mais de vinte e quatro horas! - Passe o purê de batatas - disse Jean Paul, após debater durante vários minutos consigo mesmo se devia ou não! romper o silêncio que havia descido sobre a mesa de jantar. Ninguém tinha falado desde que ele anunciara que o pato que ele pusera na garagem estava "mais morto do que uma maçaneta, tão rijo quanto uma pedra". Por fim, sua fome tinha decidido a questão. -- Troco pelas costeletas de porco - disse Chuck, sacudindo a cabeça para tirar uma mecha de cabelos de seus olhos. Os rapazes trocaram as travessas. Ouviu-se o tilintar do metal contra a porcelana. Gina Lorenzo, mãe de Cathryn, contemplava a família de sua filha. Cathryn parecia-se com ela. Elas tinham a mesma proeminência óssea sobre a ponte do nariz, e a mesma boca grande, expressiva. A principal diferença, além da óbvia distância de mais de vinte anos, era que Gina era muito mais gorda. Ela admitia que tinha cerca de dez quilos a mais, porém, na verdade eram mais de trinta. As massas eram a paixão de Gina, que não se privava delas. 110

Erguendo a tigela defettucáni, Gina fez um gesto como se quisesse encher o prato intocado de Cathryn. - Você precisa se alimentar. Forçando um sorriso, Cathryn balançou negativamente a cabeça. - Que é que há? Você não gosta? - perguntou Gina. - Está uma maravilha. Apenas não estou com muita fome. - Você precisa comer - insistiu Gina. - Você também, Charles. Charles assentiu. - Eu trouxe cannoli frescos para a sobremesa disse Gina. - Oba! exclamou Jean Paul. Como se cumprisse um dever, Charles pôs um pouco de fettuccifii na boca, mas seu estômago se rebelou. Deixou que a massa ficasse em sua boca antes de engoli-la. Os desastres do dia haviam-no atingido com a força de um furacão, tão logo deixara o ambiente frenético que havia criado no laboratório. O trabalho tinha agido como um anestésico emocional, e ele ficara triste quando chegara a hora de pegar Chuck e voltar de carro para casa. E Chuck não ajudara em nada. Charles havia esperado até saírem do tumulto da hora do rush, em Boston, para dizer ao filho que sua irmã estava com um tipo muito grave de leucemia. A resposta de Chuck fora um simples "Oh!", seguido pelo silêncio. Depois, Chuck perguntara se havia possibilidade de contraí-la também. Na ocasião Charles nada dissera, limitando-se a apertar com mais força o volante, espantado com a impassível profundidade do egoísmo de seu filho mais velho. Nem por uma vez Chuck perguntara como estava Michelle. E agora, ao vê-lo devorar avidamente suas costeletas de porco, sentiu vontade de pôr o garoto egoísta para fora de casa. Mas não se mexeu. Em vez disso, começou a mastigar mecanicamente o fettuccini, embaraçado com seus próprios pensamentos. Chuck era imaturo. Pelo menos Jean Paul reagira adequadamente. Chorara e depois perguntara quando Michelle voltaria para casa e se podia ir vê-la no hospital. Era um bom garoto. Charles olhou para Cathryn, que conservava a cabeça baixa, empurrando a comida para a borda do prato, fingindo estar comendo para

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satisfazer a mãe. Ele não achava que pudesse tratar da doença de Michelle sozinho. Ao mesmo 111

tempo, percebeu quanto aquilo era difícil para Cathryn. Por isso, nada lhe dissera sobre os problemas no instituto, nem pretendia fazê-lo. Cathryn já tinha muito com que se preocupar. - Pegue mais umas costeletas, Charles - disse Gina, estendendo o braço sem qualquer cerimônia e depositando uma costeleta de porco no seu prato já cheio. Ele tinha tentado dizer não, porém a costeleta já estava à sua frente. Ele desviou o olhar, procurando manter-se calmo. Charles achava Gina chata, mesmo sob as melhores circunstâncias, principalmente desde que ela jamais ocul- . tara sua desaprovação ao ver sua filha única casar-se com um homem treze anos mais velho e com três filhos. Charles ouviu outro baque denunciador e abriu os olhos para ver que seu monte de fettucdni tinha crescido. - Vamos - disse Gina. - Você precisa de mais ' carne em seus ossos. Charles conteve-se para não pegar um bocado de fettucdni e jogá-lo de volta na tigela. ' - Como é que eles sabem que Michelle tem leucemia? - perguntou Jean Paul ingenuamente. Todo mundo se voltou para Charles, com medo de sua reação àquela pergunta. - Examinaram seu sangue e depois sua medula óssea. - Medula óssea? - indagou Chuck, enojado. Como é que se consegue medula óssea para examinar? Charles olhou para o filho, admirado por ver com que facilidade Chuck era capaz de irritá-lo. Para todos os de-i mais, a pergunta de Chuck podia parecer inocente, porém; Charles estava certo de que o rapaz estava motivado por um interesse mórbido, e não pela preocupação com a irmã. - Eles chegam à medula óssea cravando uma agulha grande no esterno ou no osso ilíacp, e depois aspirando a medula - explicou Charles, esperando, com o choque, criar em Chuck um pouco de simpatia por Michelle. - Uh! Dói? - Terrivelmente. Cathryn ficou rija sob um relâmpago imaginário de dor, lembrando-se de que tinha sido ela quem consentira na realização do teste. - Meu Deus! - exclamou Chuck. - Ninguém vai fazer um exame de medula óssea em mim! - Não estou tão certo assim - disse Charles sem pensar. - O médico de Michelle quer determinar os tipos 112

de vocês dois. Há uma chance de que um de vocês se adapte ao tipo dela e possa servir como doador de plaquetas, granulócitos, ou até mesmo para um transplante de medula. - Não eu! - falou Chuck bruscamente, depondo o seu garfo. - Ninguém vai enfiar agulhas em meus ossos. De modo algum! Lentamente, Charles colocou os cotovelos sobre a mesa e inclinou-se para Chuck. -, Não estou perguntando se você está ou não interessado, Charles Jr. Estou lhe dizendo que você vai ao Hospital Pediátrico para ter seu tipo sangüíneo e medular classificados. Está me entendendo? - Isso não é coisa para se discutir na hora do jantar - interrompeu Cathryn. - Eles vão mesmo enfiar uma agulha em meu osso? - perguntou Jean Paul. - Charles, por favor! - gritava Cathryn. -.Isso não é modo de falar com Chuck sobre esse assunto! - Não? Pois bem, já estou cansado do egoísmo desse rapaz - gritou Charles. - Ele não teve uma palavra de preocupação ou carinho para com Michelle. - Por que eu? - berrou Chuck. - Por que eu tenho de ser o doador? Você é o pai. Por que você não pode ser o doador, ou é vedado aos bostas de médicos doarem medula? Charles deu um salto, cheio de fúria, apontando um dedo trêmulo para Chuck. - Seu egoísmo só é comparável à sua ignorância. É de se supor que você tenha

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estudado biologia. O pai só passa metade de seus cromossomos para o filho. Não há como eu poder servir a Michelle. Se pudesse, trocaria de lugar com ela. - Claro, claro - ironizou Chuck. - Falar é fácil. Charles começava a contornar a mesa, mas Cathryn pulou e agarrou-o. - Charles, por favor - exclamou ela, desfazendo-se em lágrimas. - Acalme-se! Chuck estava petrificado em sua cadeira, agarrando-se às bordas com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos. O rapaz sabia que só Cathryn se interpunha entre ele e o desastre. - Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo - 113

disse Gina, benzendo-se. - Charles! Peça perdão a Deus. Não ajude o trabalho do Demônio. - Oh, meu Deus! - gritou Charles. - Agora vamos ter um sermão! - Não provoque o Senhor - falou Gina, com convicção. - Para o diabo com Deus - gritou Charles, livrando-se das mãos de Cathryn. - Que tipo de Deus é esse que dá leucemia a uma indefesa criança de doze anos? - Você não pode questionar os desígnios de Deus disse Gina solenemente. - Mamãe! - exclamou Cathryn. - Chega! O rosto de Charles estava escarlate. Sua boca articulou algumas palavras inaudíveis antes que ele, abruptamente, girasse sobre seus calcanhares, abrisse com um puxão a porta de trás e saísse como um temporal pela noite adentro. À porta bateu com tanta força que sacudiu as antigüidades da sala de estar. Rapidamente, Cathryn retraiu-se pelo bem das crianças, ocupando-se em tirar a mesa e manter o rosto alerta. - Que blasfêmia! - exclamou Gina, descrente. Receio que Charles tenha se entregue ao Demônio. - Que tal um cannolo? - perguntou Jean Paul, levando seu prato para a pia. com a. partida do pai, Chuck experimentou uma sensação de contentamento. Ele sabia agora que podia enfrentar o pai e vencê-lo. Observando Cathryn tirar a mesa, procurou seu olhar. Ela devia ter reparado como ele havia agüentado o repuxo, e Chuck sem dúvida notara como Cathryn o havia defendido. Arrastando a cadeira, ele carregou o prato até a pia e, como se fosse seu dever, lavou-o. Charles saiu de casa sem outro objetivo que não o de fugir àquela atmosfera furiosa. Esmagando e esfarelando a neve, correu até o lago. O tempo na Nova Inglaterra tinha mudado completamente. A tempestade de nordeste tinha sido levada para o mar e fora substituída por uma frente ártica que congelava tudo em sua passagem. Apesar de estar correndo, ele podia sentir um calafrio, principalmente porque não havia trazido o casaco. Sem uma decisão consciente, ele se desviou para a esquerda, na direção da casa de brinquedo de Michelle, notando que a mudança do vento 114

havia efetivamente eliminado o cheiro da fábrica de produtos químicos. Graças a Deus! Depois de bater os pés no pórtico para remover a neve, Charles curvou-se e entrou na casa em miniatura. O interior media apenas três metros de comprimento e era grosseiramente dividido em duas partes por um arco central: metade era a sala de estar, com uma banqueta construída nela; a outra era a cozinha, com uma mesinha e uma pia. A casa de brinquedo tinha água corrente (no verão) e uma tomada elétrica. Dos seis aos nove anos de idade, Michelle tinha feito chá ali para Charles, nas tardes de verão aos domingos. A pequena chapa elétrica que ela usava ainda estava funcionando e Charles ligou-a, para aquecer um pouco o ambiente. Sentando-se na banqueta, esticou e cruzou as pernas, conservando o máximo de calor corporal possível. Contudo, logo começou a tremer. A casa de bonecas era apenas um refúgio

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contra o vento gelado, não contra o frio. Conforme ele esperava, a solidão rapidamente o acalmou, fazendo-o admitir que havia tratado Chuck muito mal. Charles sabia que ainda tinha de chegar a termos com aquele dia desastroso. Admirava-se do modo como se permitira embalar num falso sentimento de segurança nos últimos anos. Seu pensamento retornou à manhã. .. ao fazer amor com Cathryn. Em apenas doze horas todos os fios de setMnundo cuidadosamente tecido tinham se desfeito. Debruçando-se para a frente, a fim de poder olhar pela janela, Charles contemplava a abóbada do céu. A noite tinha se tornado limpa, pontilhada de estrelas, e ele podia ver as eternas e distantes galáxias. A vista era linda mas sem vida, e, de repente, ele experimentou uma opressiva sensação de futilidade e de isolamento. Seus olhos encheram-se de lágrimas, e ele recuou para não ver a terrível beleza do céu de inverno. Em vez disso, olhou para a paisagem coberta de neve do lago gelado. Imediatamente à sua frente achava-se a porção de água aberta no gelo e sobre a qual Jean Paul lhe perguntara naquela manhã. Charles assombrava-se com a intensidade de sua solidão, como se Michelle já lhe tivesse sido arrebatada. Não compreendia esses sentimentos, embora achasse que podiam ter algo a ver com o sentimento de culpa: se -ele tivesse prestado mais atenção aos sintomas de Michelle; se tivesse prestado mais atenção à sua família; se houvesse realizado sua pesquisa mais depressa. 115

Ele desejava poder colocar tudo de lado e trabalhar apenas em seu próprio projeto. Talvez pudesse descobrir uma cura a tempo de salvar Michelle. Mas sabia que era um objetivo impossível. Além disso, não podia se opor tão abertamente ao dr. Ibanez. Não podia se permitir perder o emprego ou o uso de seu laboratório. De repente, compreendeu a sagacidade dos diretores em colocá-lo no projeto Canceran. Não gostavam dele devido à sua heterodoxia, mas ele era respeitado pela sua capacidade científica. Charles era um adorno que emprestava a desejada legitimidade de que o projeto necessitava e um perfeito bode expiatório caso o projeto falhasse. Era uma decisão de um gênio administrativo. À distância, Charles ouvia Cathryn chamando seu nome. No ar frígido o som parecia quase metálico. Charles não se mexeu. Num segundo ele estava chorando, no outro, tão fraco que qualquer tipo de atividade física era-lhe impossível. Que faria ele com Michelle? Se a chance de uma remissão falhasse, poderia ele agüentar vê-la sofrer com o tratamento? Dirigindo-se para a janela, limpou a camada de gelo que sua respiração havia criado. Através das áreas limpas, podia ver a paisagem de um azul prateado e a mancha de água diretamente à sua frente. Calculando que a temperatura estava próxima a zero, Charles começou a especular sobre a água em aberto, líquida. Sua explicação original para Jean Paul naquela manhã fora a de que a corrente a impedia de se congelar. Mas isso teria sido possível quando a temperatura estava perto do ponto de congelamento. Agora ela estava vários graus abaixo disso. Charles ficou imaginando se havia tanta correnteza naquela época do ano. Na primavera, quando a neve se derretia na montanha ao norte, o rio se enfurecia e o lago subia cerca de quarenta e cinco centímetros. Então havia uma correnteza, não agora. De repente, Charles tomou consciência de um cheiro doce, aromático. Tinha estado ali o tempo todo, porém nãp havia penetrado sua consciência até aquele momento. Eralhe algo vagamente familiar, mas fora do contexto. Ele já o sentira antes, mas onde? Impaciente por se distrair, Charles começou a cheirar em tomrno. O odor era de igual intensidade nos dois quartos e mais forte perto do soalho. Cheirando repetidas vezes, tentou localizar o odor em seu passado. Então, lembrou-se: o laboratório de

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química no colégio! Ele estava cheirando um solvente orgânico como o benzeno, o tolueno, ou o xileno. Mas o que estaria aquilo fazendo na casa de brinquedo? 116

Enfrentando o vento frio, Charles saiu para o ar cortante da noite. com a mão direita, aconchegou bem o suéter em tomrno do pescoço. Do lado de fora o odor se reduzia devido ao vento, mas, curvando-se ao lado da casa de boneca, Charles determinou que o cheiro vinha em parte da lama congelada que cercava a construção. Caminhando para a beira do lago, colheu um pouco da água gelada com a mão em concha e levou-a ao nariz. Não havia dúvida: o cheiro vinha do lago. Ele seguiu a curva do lago, andando ao longo da borda até a parte aberta, onde a água se misturava com a passagem que vinha do rio. Debruçando-se novamente, levou mais um pouco de água ao nariz. O odor era mais forte. Caminhando aos solavancos, Charles seguiu a passagem até a junção com o rio Potomac. Ele também não estava congelado. De novo, Charles levou uma amostra ao nariz. O cheiro era ainda mais intenso. O cheiro vinha do rio. Levantando-se, tremendo de frio, Charles olhou rio acima. A Recycle, Ltd., a fábrica de reciclagem de borracha plástica, estava lá. Charles sabia, dos seus conhecimentos passados de química, que o benzeno era usado como solvente tanto para o plástico quanto para a borracha. Benzeno! Um poderoso pensamento agarrou-se à sua mente: o benzeno provoca leucemia; na verdade causa leucemia mieloblástica! Virando a cabeça, Charles seguiu com os olhos a linha-d'água não congelada. Ia diretamente para a casa de brinquedo: o lugar em que Míchelle havia passado mais tempo do que em outro qualquer. Como um louco, Charles correu precipitadamente para casa. A neve desigual o embaraçou, e ele caiu, batendo na neve com o peito e as mãos espalmadas. Não se feriu, a não ser por um pequeno corte no queixo. Erguendo-se, correu mais devagar. Ao chegar a casa, subiu rapidamente os degraus dos fundos e abriu a porta com um empurrão. Cathryn, já tensa como uma corda de arco retesada, deu um grito estridente quando Charles, ofegante, entrou na cozinha. A travessa que ela segurava escapou de suas mãos e espatifou-se no chão. - Preciso de um jarro - falhou Charles, mal podendo articular as palavras e ignorando a reação de Cathryn. Gina apareceu na porta da sala de jantar, seu rosto exprimindo horror. Chuck materializou-se por trás dela e depois forçou passagem para a cozinha, interpondo-se entre Charles 117

e Cathryn, sem se importar que seu pai fosse maior do que ele. A respiração de Charles era difícil. Após alguns segundos, ele conseguiu repetir seu pedido. - Um jarro? - perguntou Cathryn, que havia readquirido um pouco de calma. - Que tipo de jarro? - De vidro. De vidro, que possa ser bem fechado. - Para quê? - perguntou Cathryn. Parecia um pedido absurdo. - Para a água do lago - respondeu Charles. Jean Paul surgiu ao lado de Gina, que segurou seu braço para impedi-lo de entrar na co2Ínha. - Para que você quer água do lago? - insistiu Cathryn. - Por Deus! -- gritou Charles. - Isso é um iriterroga^tório? - E partiu para a geladeira. Chuck tentou colocar-se em seu caminho, mas Charles simplesmente afastou o rapaz. Chuck cambaleou, e Cathryn agarrou seu braço, impedindo que ele caísse. Ante o tumulto, Charles virou-se e viu Cathryn contendo seu filho. - Que diabo está se passando aqui? - perguntou, gritando. Chuck lutou um instante, olhando ferozmente para o pai. Charles olhava de um rosto para o outro. Gina e Jean Paul pareciam chocados; Chuck, furioso; e Cathryn, assustada. Mas

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ninguém falava. Era como se uma cena de filme tivesse sido paralisada. Charles abanou a cabeça, descrente, e voltou sua atenção para a geladeira. Tirou um jarro de suco de maçã e fechou a porta. Sem um instante de hesitação, despejou o conteúdo na pia, lavou cuidadosamente o jarro e arrancou o casaco de pele de carneiro de seu cabide. Na porta, tornou a relancear o olhar pela família. Ninguém se movera. Charles não sabia o que estava acontecendo, mas como sabia o que queria fazer, saiu, fechando a porta sobre aquele cenário estranho. Afrouxando o aperto no braço de Chuck, Cathryn olhava inexpressivamente para a porta, enquanto sua mente voava para a perturbadora conversa que tivera com os doutores Keitzman e Wiley. Na ocasião, ela achara que as perguntas feitas por ambos sobre as emoções de Charles tinham sido ridículas, mas agora não estava mais tão certa disso. Semi l 118 j

dúvida, sair de casa, irado, no rigor do inverno, sem um casaco, apenas para retornar meia hora mais tarde tomado de grande excitação, procurando um jarro para colher água do lago, era, na melhor das hipóteses, estranho. -. Eu jamais deixaria que ele a machucasse - disse Chuck. E empurrou o cabelo para trás nervosamente. - Machucar-me? - indagou Cathryn, apanhada de surpresa, - Seu pai não vai me machucar! - Receio que ele tenha se deixado possuir pelo Diabo - disse Gína. - E se isso acontecer, não se pode dizer o que ele fará. - Mamãe, por favor! - gritou Cathryn. - Charles vai ter um esgotamento nervoso? - zombou Jean Paul lá do portal, - Ele já está com um -respondeu Chuck. - Isso já está demais - falou Cathryn severamente. - Não quero ouvir nenhum desrespeito ao seu pai. A doença de Michelle o transtornou terrivelmente. Cathryn dirigiu sua atenção para a travessa quebrada. Estaria Charles realmente com um esgotamento nervoso? Cathryn decidiu que na manhã seguinte discutiria essa possibilidade com o dr. Wiley. Era um pensamento apavorante. Atravessando com cautela a lama parcialmente congelada, Charles aproximou-se da margem e encheu o jarro. E apertou bem a tampa, antes de voltar correndo para casa, Embora sua chegada repentina tivesse surpreendido Cathryn, não causou o mesmo efeito de sua entrada anterior. Quando Charles se dirigia para a geladeira, Cathryn pôde reagir e, estendendo a mão, agarrou o braço do marido. - Charles, diga-me o que é que você está fazendo. - Há benzeno na água do lago - sibilou Charles, livrando-se da mão de Cathryn com uma sacudidela. A seguir, colocou o jarro com água do lago na geladeira. - E pode se sentir o cheiro na casa de brinquedo. Charles voltou correndo para a porta. Cathryn foi ao seu encalço, tentando segurar-lhe o casaco. - Charles, aonde você vai? Que é que está acontecendo com você? com uma força desnecessária, Charles libertou seu casaco. - vou à Recycle, Ltd. É de lá que está vindo o maldito benzeno. Tenho certeza disso. 119

Charles saiu com o Ford vermelho da Main Street e parou diante do portão do muro que cercava a Recycle, Ltd. O portão não estava trancado e abriu facilmente, Ele voltou para o carro e dirigiu-o para a área de estacionamento da fábrica. A turma da noite não deveria ser muito grande, porque havia apenas cerca de meia dúzia de carros muito usados perto da entrada dos velhos edifícios de tijolos. À esquerda da fábrica erguiam-se enormes pilhas de pneumáticos rejeitados, como miniaturas de montanhas cobertas de neve. Entre os pneus usados e o edifício havia montes menores de restos de plástico e vinil. À direita havia uma área

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com lixo espalhado por toda parte, cortada ao meio pelo muro que seguia até o rio Potomac. Para além do muro, edifícios desertos se estendiam por cerca de quatrocentos metros ao norte. Assim que Charles saiu do carro, foi envolvido pelo mesmo mau cheiro que havia assolado sua casa naquela manhã. Ele se admirou de que houvesse gente capaz de viver imediatamente a oeste da cidade, na direção em que os ventos predominavam. Fechando o carro à chave, ele se encaminhou para a entrada, uma imponente porta externa de alumínio protegida contra as intempéries. Acima dela estava escrito em letras gravadas a mão: RECYCLE, LTD. PROIBIDA A ENTRADA A PESSOAS ESTRANHAS. Colado na parte interna do vidro havia um cartaz de papelão que dizia: INFORMAÇÕES, seguido do número de um telefone local. Charles forçou a porta, que não estava trancada. Se já achara o odor lá fora ruim, dentro estava muito pior. Sentiuse sufocado pelo ar pesado, carregado de substâncias químicas, uma espécie de pequeno escritório. Era um aposento de paredes chapeadas de madeira compensada e onde havia um surrado balcão de fórmica, com uma cesta de arame para cartas, e uma campainha de aço inoxidável, dessas que a gente tem de tocar com a palma da mão. E foi o que Charles fez, 121

mas o som foi engolfado pelos silvos e estrondos que vinham do interior da fábrica propriamente dita. Charles decidiu experimentar a porta interna. No princípio ela ofereceu resistência, mas quando ele empurrou com mais força ela se abriu para dentro. Nesse momento, Charles viu por que ela era isolada. Era como um portal para o próprio inferno. A combinação do mau cheiro com o barulho era terrível. Charles entrou num aposento com a altura de dois andares, pobremente iluminado e dominado por uma fileira de gigantescos aparelhos como fogões de pressão. Escadas,e passarelas de metal se entrecruzavam, subindo e descendo numa tremenda confusão. Grandes e barulhentas esteiras rolantes traziam pilhas de restos de plástico e vinil, misturados com todo tipo desagradável de lixo. As primeiras pessoas que Charles viu foram dois homens de camisetas sem mangas, os rostos sujos e manchados de negro como se fossem mineiros de carvão, que retiravam vidros, objetos de madeira e recipientes vazios de plástico. - Há um gerente aqui? - berrou Charles, tentando se fazer ouvir acima de toda aquela balbúrdia. Um dos homens ergueu o olhar por um momento, indicou que não podia ouvir e retornou ao trabalho que estava fazendo. Aparentemente, -a esteira rolante não parava, e eles eram obrigados a acompanhar seu ritmo. Na extremidade de cada esteira havia um grande depósito, que, quando cheio, se erguia, se posicionava sobre um dos fogões de pressão ei derramava ali seu conteúdo de plástico. Sobre a fenda da passarela, Charles viu um homem com uma grande faca, se melhante a uma cimitarra, abrir dois sacos de produtos quí micos, um com uma substância branca, outro com uma subs tância negra. com o que pareceu um grande esforço, ele esvaziou os dois sacos sobre os fornos, levantando uma gran de nuvem de pó. Por um instante, o homem desapareceu de vista. Quando reapareceu, já tinha fechado a fenda

.e ativado o vapor, provocando uma mistura fresca de fumo, cheiro e barulho no ambiente. Embora Charles não conseguisse a atenção de ninguém, também ninguém lhe pediu para sair. Ousadamente, ele se esgueirou por entre as esteiras rolantes, mantendo os olhos no chão todo sujo de lixo e manchas de óleo e graxa. Passou por uma espécie de casamata, que abrigava a maquinaria automática que trazia os pneumáticos para serem fundidos.

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Era dessa área que provinha o cheiro que Charles associara com a fábrica. De perto, ela era muito mais forte. Bem para além da parede do abrigo, Charles encontrou uma grande gaiola de arame, fechada e trancada com um forte cadeado. Tratava-se evidentemente de um depósito, pois Charles podia ver lugares vagos nas prateleiras, ferramentas e recipientes de substâncias químicas industriais. As paredes eram feitas do mesmo material que formava o muro de fora. Charles colocou os dedos na grade para se apoiar, enquanto examinava os rótulos dos recipientes. Achou o que estava procurando bem à sua frente. Havia dois tambores de aço onde a palavra "benzeno" havia sido marcada dos lados. Havia também os familiares desenhos com a caveira e os dois ossos cruzados, advertindo que o conteúdo era venenoso. Ao olhar para os tambores, Charles foi abalado por uma nova onda de raiva. Certa mão agarrou o ombro de Charles e ele girou, comprimindo-se contra a mixórdia de arames. - Em que lhe posso ser útil? - gritou um homem enorme, procurando ser ouvido acima do trovejante barulho das máquinas. Mas no instante em que ele falou, um apito soou de um dos fornos de pressão para os plásticos, que completava seu ciclo de operação, tornando impossível prosseguir com a conversa. O forno abriu-se e vomitou enorme quantidade de um plástico negro, viscoso e despolimerizado. O líquido quente foi despejado nas cubas de resfriamento, levantando nuvens de vapores acres. Charles olhou para o homem à sua frente. Media bem uma cabeça a mais do que ele. Seu rosto suarento era tão gordo que os olhos não passavam de fendas. Estava vestido como os outros operários. Sua camiseta sem mangas esticava-se por sobre um ventre de impressionantes dimensões. O homem estava carregando um carrinho, e Charles notou que seus maciços antebraços estavam profissionalmente tatuados com dançarinas de bula-bula. No dorso de sua mão esquerda havia uma suástica, que aparentemente ele tinha feito por si mesmo. Assim que o barulho voltou ao seu tom ensurdecedor, o operário tentou de novo: - Você está checando nossos produtos químicos? perguntou, tendo de gritar. Charles confirmou com um aceno de cabeça. - Acho que precisamos de mais negro-de-fumo berrou o homem.

Charles notou que o operário pensava que ele fosse dali. - E quanto ao benzeno? - gritou em troca Charles. - Temos bastante benzeno. Ele vem em tambores de cem galões. - Que é que vocês fazem com ele, depois de usá-lo? - Você está se referindo ao benzeno "usado"? Venha cá, vou lhe mostrar. O homem encostou seu carrinho contra a gaiola de arame e conduziu Charles através do aposento principal, por entre dois dos fornos de borracha, onde era intenso o calor radiante. Mergulharam sob uma saliência e entraram num / corredor que ia dar no refeitório, onde o barulho era um pouco menor. Ali havia duas mesinhas, um aparelho distri- buidor de soda e uma máquina de cigarros. Entre os distri buidores de soda e cigarros havia uma janela. O homem levou Charles até ela e apontou para fora. - Está vendo aqueles tanques lá? Charles protegeu os olhos com as mãos em concha e espiou. Cerca de quinze metros adiante, e bem perto da a margem do rio, havia dois tanques cilíndricos. Mesmo com a lua brilhando, ele não conseguia distinguir qualquer detalhe, - O rio recebe alguma porção do benzeno? - Per guntou Charles, virando-se para o operário. - A maior parte dele é levada por caminhões só Deus sabe para onde. Mas você sabe como são essas companhias! que recolhem restos. Quando os tanques ficam cheios demais,! nós os drenamos para o rio; não há

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problemas. Nós o faze mos à noite e tudo desaparece. Vai para o oceano. Para falar a verdade - o homem inclinou-se, como se fosse contar um segredo -, acho que a porra daquela companhia também o descarregado rio. E cobram um dinheirão. Charles apertou os maxilares. Podia ver Michelle no leito do hospital, com a aparelhagem de injeção endovenosa no braço. - Onde está o gerente? - perguntou Charles de súbito, deixando transparecer sua raiva. - Gerente? - indagou o operário. E contemplou Charles com curiosidade. - Capataz, supervisor. Quem quer que seja o encarregado - falou Charles bruscamente. - Quer dizer o mandachuva - disse o operário. - Nat Archel. Está no escritório dele. - Mostre-me onde é - ordenou Charles. Intrigado, o operário fitou Charles, voltando depois 124

pelo mesmo caminho para o salão principal, onde indicou uma porta com uma janelinha no fim de uma passarela de metal, um andar acima. - Lá em cima - limitou-se a dizer. Ignorando o operário, Charles correu pela escada de metal. O operário contemplou-o por um instante, depois virou-se e apanhou um telefone interno. Do lado de fora do escritório, Charles hesitou um momento e a seguir empurrou a porta. Esta abriu-se facilmente, e ele entrou. O escritório era uma espécie de vigia à prova de som, com janelas que davam para todo o salão de operações. Assim que Charles atravessou a porta, Nat Archer virou-se em sua cadeira e levantou-se com um sorriso de evidente perplexidade. Charles estava prestes a gritar com o homem quando viu que o conhecia. Era o pai de Steve Archer, um amigo íntimo de Jean Paul. Os Archers eram uma das poucas famílias negras de Shaftesbury. - Charles Martel! - exclamou Nat, estendendo a mão. - Você era a última pessoa que eu esperava ver transpor aquela porta. - Nat era um homem afetuoso, que se movia devagar, de maneira controlada, como um atleta reprimido. Tomado de surpresa e desapontado por encontrar alguém que conhecia, Charles gaguejou que não estava fazendo uma visita social. - OK - disse Nat, olhando Charles mais de perto. - Por que você não se senta? - vou ficar de pé - retrucou Charles. - Quero saber quem é o dono da Recycle, Ltd. Nat hesitou. Finalmente, quando falou, pareceu fazê-lo com muita cautela. - Breur Chemicals, de Nova Jersey, é a matriz. Por que você pergunta? - Quem é o gerente aqui? - Harold Dawson, que mora na Covered Bridge Road. Charles, acho que você devia me dizer a que vem tudo isso. Talvez eu possa poupar-lhe algum problema. Charles examinou o capataz, que havia cruzado os braços sobre o peito, assumindo uma postura firme, defensiva, em contraste com sua cordialidade inicial. - Hoje foi diagnosticado que minha filha tem leucemia. 125

- Lamento ouvir isso - retrucou Nat, num misto de confusão e empa tia. - Aposto que você lamenta. Sua gente tem despejado benzeno no rio. O benzeno provoca leucemia. - Que é que você está falando? Nós não despejamos benzeno. Ele é transportado para fora. - Não diga besteira - falou Charles bruscamente. - Acho melhor você dar o fora daqui, cara. - vou lhe dizer o que vou fazer - disse Charles, encolerizado. - vou providenciar para que esta fábrica de merda seja fechada! -- Que está havendo com você? Ficou maluco ou o quê? Já disse que nós não despejamos nada! - Bah! Aquele tipo grande com os braços tatuados me disse, lá embaixo, que vocês despejavam benzeno no rio. Portanto, não procure negar. Nat Archer pegou seu telefone. E disse a Wally Crab para subir ao seu escritório imediatamente. Depondo o fone no

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gancho, virou-se para Charles. - Rapaz, você precisa mandar examinar sua cabeça. Vir aqui no meio da noite para falar do benzeno! Que é que há? Nada de bom esta noite na televisão? Lamento realmente o caso de sua garota. Mas de fato você está se excedendo, invadindo o recinto aqui. - Esta fábrica representa um risco para toda a comunidade. - Sim? Bem, não estou tão certo de que a comunidade concorde com você. Wally Crab passou pela porta como se já esperasse uma explosão. - Wally, este homem está dizendo que você falou que despejamos benzeno no rio. - Claro que não! - retrucou Wally, ofegante. - Eu lhe disse que o benzeno é levado embora pela Draper Brothers Disposal. - Você é um mentiroso de merda! - gritou Charles. - Ninguém me chama de mentiroso de merda - grunhiu Wally, avançando para Charles. - Cuidado - berrou Nat, pondo uma das mãos no peito de Wally. - Você me disse - continuou Charles aos berros e apontando um dedo acusador para o rosto irado de Wally - que quando os tanques estão cheios demais vocês os es- 126

vaziam no rio à noite. Isso é tudo de que preciso. vou fechar este lugar. - Acalme-se - berrou Nat, soltando Wally e segurando por sua vez o braço de Charles e começando a levá-lo para a porta. - Tire suas mãos de cima de mim - gritou Charles, enquanto se soltava. A seguir, empurrou Nat para longe. Nat recuperou seu equilíbrio e encostou Charles contra a parede do pequeno escritório. - Não tom e jamais a me tocar - disse Nat. Intuitivamente, Charles teve o bom senso de ficar quieto. - Deixe-me dar-lhe um conselho - continuou Nat. - Não provoque barulho por aqui. Você já invadiu um local proibido, e se voltar vai se dar mal e lamentar muito. E agora desapareça, antes que nós o botemos para fora. Por um minuto, Charles ficou sem saber se queria correr ou brigar. Depois, vendo que não tinha escolha, virou-se e desceu trovejando pela escada de metal, em meio àquela balbúrdia no salão principal. com passos firmes, saiu do edifício e irrompeu no lado de fora, agradecido pelo ar frio e relativamente puro da área de estacionamento. Uma vez no carro, ele acelerou impiedosamente o motor antes de passar voando pelo portão. Quanto mais se afastava da Recycle, Ltd., menos medo e mais raiva e humilhação ele sentia. Esmurrando o volante, jurou que haveria de destruir a fábrica pelo bem de Michelle, desse no que desse. Tentou pensar como procederia, mas estava raivoso demais para pensar com clareza. O instituto se valia dos serviços de uma firma de advocacia; talvez ele começasse por ali. Charles saiu da 301 para o caminho de sua casa, pisando até o fim no acelerador, fazendo as rodas derraparem e jogarem cascalho para dentro dos pára-lamas. O carro derrapou primeiro para um lado, depois para o outro. com o canto do olho, ele pôde ver a cortina de rendas de uma das janelas se abrir, deixando aparecer durante um segundo o rosto de Cathryn. Ainda com uma derrapagem, ele parou além da porta dos fundos e desligou o motor. Durante um instante ele ficou sentado, agarrando o volante, ouvindo o motor esfriar no ar gelado. A viagem agitada havia acalmado suas emoções e tinha lhe dado uma oportunidade para pensar. Talvez tivesse sido uma estupidez lr até a Recycle, Ltd., àquela hora da noite, embora tivesse 127

que admitir que tinha conseguido uma coisa: sabia agora com certeza de onde vinha o benzeno do lago. No entanto, ao pensar nisso agora, ele reconheceu que o principal era cuidar de Michelle e tomar as decisões difíceis sobre o tratamento. Como cientista, sabia que a

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simples presença do benzeno no lago não constituía uma prova de que fosse a causa da leucemia de Michelle. Ninguém ainda havia provado que o benzeno causava leucemia nos seres humanos, apenas nos animais. Além disso, Charles reconhecia que estava usando a Recycle, Ltd. para desviar a raiva e a hostilidade causadas pela doença de Michelle. Lentamente saiu do carro, desejando uma vez mais que tivesse trabalhado mais depressa nos últimos quatro ou cinco anos em sua pesquisa, de modo que pudesse ter algo a oferecer à sua filha. Imerso em seus pensamentos, admirouse ao ver Cathryn esperando-o na entrada. Seu rosto estava lavado de lágrimas recentes e seu peito tremia na luta para controlar os soluços. < - Que foi que houve? - perguntou Charles com horror. Sua primeira idéia foi que algo houvesse acontecido a Michelle. - Nancy Schonhauser telefonou - conseguiu Cathryn dizer. - O pequeno Tad morreu esta noite. Pobre criança! Charles adiantou-se e puxou sua mulher para si, confortando-a. A princípio, ele experimentou uma sensação de alívio, como se Michelle houvesse sido poupada. Mas então ele se lembrou de que o garoto vivera no rio Potomac, tal como eles, só que mais perto da cidade. - Pensei em ir ver Marge - continuou Cathryn. - Mas ela também foi hospitalizada quando lhe comunicaram a morte de Tad. Você acha que eu devia ir de qualquer modo à casa dela, para ver se há alguma coisa que eu possa fazer? Charles não estava mais ouvindo. O benzeno causava anemia aplástica tanto quanto a leucemia! Ele havia esque cido Tad. Agora Michelle não era mais um único e iso lado caso de doença da medula óssea. Charles imaginou quantas outras famílias que moravam ao longo do rio Pó totnac teriam sido atingidas. Toda a raiva que havia sentido antes retornou com um ímpeto devastador, e ele soltou Cathryn. i Você me ouviu? - perguntou Cathryn, abandonada no centro da sala, vendo Charles dirigir-se para o tele 128

fone e discar um número. Ele parecia ter-se esquecido de que ela estava ali. - Charles - chamou Cathryn -, eu lhe fiz uma pergunta. Ele olhou-a distraidamente, até que a ligação se completou. Então, sua atenção se fixou no telefone. - É Harold Dawson? - perguntou Charles. - Sim - retrucou o gerente. - Meu nome é Charles Martel. Estive na Recycle, Ltd. esta noite. - Eu sei. Nat Archer me telefonou há pouco. Lamento qualquer descortesia por que tenha passado. Preferiria que o senhor tivesse feito sua visita durante o horário normal, para que eu pudesse tê-lo recebido. - As descortesias não me incomodam - disse bruscamente Charles. - Mas despejar no rio um dejeto tóxico como o benzeno, sim. - Nós não estamos despejando nada no rio - replicou enfaticamente Harold. - Todas as nossas licenças para uso 'de produtos químicos tóxicos estão de acordo com a Agência de Proteção Ambiental e acham-se em dia. - Licenças - zombou Charles. - Há benzeno no rio, e um de seus operários disse que é a Recycle que o está despejando. E o benzeno é terrivelmente tóxico. Minha filha acaba de contrair leucemia, e um gare f o que mora mais acima de mim, ao longo do rio, morreu hoje de anemia aplástica. Isso não é uma coincidência. vou fechar a fábrica de vocês. Faço votos para que tenham um bom seguro. - Essas acusações são muito sérias e irresponsáveis - respondeu Harold calmamente. - Devo dizer-lhe que a Recycle, Ltd. é uma sucursal da Breur Chemicals Corporation e que eles mantêm essa instalação por acharem que estão prestando um serviço à comunidade. Posso assegurarlhe que, se pensassem de modo contrário, eles próprios fechariam a fábrica. - Bem, está claro que a maldita fábrica deve ser fechada - gritou Charles. - Cento e oitenta operários nesta cidade podem discordar - redargüiu Harold, perdendo a paciência. - Se o senhor criar

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problemas, meu senhor, posso garantir que vai tê-los. - Eu... - começou Charles a falar quando percebeu que estava segurando um telefone mudo. Harold Dawson tinha desligado. 129

Merda! - gritou Charles, batendo furiosamente com 0 receptor. Cathryn afastou o telefone e o recolocou no gancho. Ela só havia ouvido o lado da conversa de Charles, mas estava assustada. Obrigou-o a sentar-se "à mesa da cozinha, e enxotou sua mãe quando ela apareceu à porta. Seu rosto es tava sulcado pelas lágrimas, porém ela não estava mais chorand o - Acho que é melhor que você me fale sobre o bénzeno disse Cathryn. - É um veneno - respondeu Charles, encolerizado. Ataca a medula óssea. - E você não precisa ingeri-lo para ficar envenenado? - Não. Não é preciso ingeri-lo. Basta respirá-lo. Ele vai Diretamente para a corrente sangüínea. Por que tinha eu de fazer aquela casa de brinquedo daquele velho abrigo? - E você acha que ele pode ter provocado a leucemia de Michelle? - Sem dúvida que acho. Ela inalava o benzeno todas as vezes que ia brincar lá. O benzeno causa o tipo raro de leucçrma que ela tem g uma coincidência. Especialmente com a anemia aplástica de Tad. - O benzeno também pode ter sido a causa? - com toda a certeza,- -- E você acha que a Recycle tem despejado benzeno no rio? - Eu sei que sim. Foi o que descobri esta noite. E vão pagar por isso. vou dar um jeito de fechar a fábrica. - E como é que você vai conseguir isso? - Ainda não sei. vou falar com algumas pessoas amanhã.. vou entrar em contato com a Agência de Proteção Ambiental. Alguém vai querer saber disso. Cathryn estudou o rosto de Charles, pensando nas per- guntas que lhe haviam feito os doutores Keitzman e Wiley. - Charles - começou ela a falar, reunindo coragem. Tudo isso é interessante, e provavelmente importante, ma-s me parece um pouco impróprio nesta ocasião. - Impróprio? - repetiu Charles, incrédulo. - Sim. Acabamos de saber que Michelle está com leucemia. Acho que nosso principal objetivo deve ser tratar dela e não procurar fechar uma fábrica. Para isso sempre haverá tempo, mas agora Michelle precisa dê você. Charles fitou sua jovem mulher. Ela era uma sobrevive nte, enfrentando uma situação difícil com grande esforço- 1*0 A

Como podia ele esperar fazê-la entender que o centro do problema era que ele, na verdade, nada tinha a oferecer a Michelle senão amor? Como pesquisador de câncer, ele conhecia muitíssimo bem a doença de Michelle; como médico, não podia ser embalado pela falsa esperança do moderno arsenal da medicina; como pai, estava aterrorizado com o que Michelle ia enfrentar, porque já havia passado por uma situação semelhante com sua primeira mulher. No entanto, Charles era um homem ativo. Tinha de fazer alguma coisa, e a Recycle, Ltd. estava ali para impedi-lo de não ver a realidade da doença de Michelle e a deterioração para a qual caminhava sua situação no Instituto Weinburger. •• Charles reconhecia que não podia comunicar tudo isso a Cathryn, porque provavelmente ela não entenderia; e, se entendesse, veria solapadas suas próprias esperanças. Apesar, do intenso amor que um dedkava ao outro, Charles admitia que ele devia suportar suas cargas sozinho. O pensamento era opressivo, e ele caiu nos braços de Cathryn. - Foi um dia terrível - murmurou Cathryn, apertando Charles o mais forte que podia. - Vamos para a cama ver se conseguimos dormir. Charles assentiu, pensando: - Se eu pelo menos tivesse trabalhado mais depres- sa. Por um processo bastante lento para ser imperceptível, Michelle tomou conhecimento de que seu quarto estava mais

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claro. O estore na janela parecia agora mais escuro, com uma borda iluminada, em vez de claro cercado de escuro. Justamente com o gradativo aumento da iluminação, o dia que nascia também era anunciado pelo aumento da atividade no saguão. A porta do quarto de Michelle estava aberta cerca de quinze centímetros, e a esteira de luz incandescente amarela que passara por ali tinha sido um insignificante conforto para ela durante a noite interminável. Michelle pôs-se a pensar quando Charles ou Cathryn viriam. A garota esperava que fosse logo, porque, mais do que tudo, queria voltar para casa. Não compreendia por que precisara ficar no hospital, pois após o jantar, em que mal tocara, ninguém tinha feito outra coisa a não ser olhá-la de vez em quando e perguntar se estava bem. Jogando as pernas para um dos lados da cama, Michelle esforçou-se por ficar sentada. De olhos fechados, lutou con- 131

tra uma onda de tonteira. O movimento havia exacerbado a náusea que a incomodara a noite toda. Ela se levantara uma vez, mas a saliva que se juntara por baixo de sua língua causara-lhe ânsias de vômito, embora ela não tivesse vomitado. Amparando-se aos lados do sanitário, ela dera uma golfada mas não vomitara nada. Em seguida, precisara de toda a sua força para retornar ao leito. Michelle estava certa de que não havia dormido nada. Além das ondas de náusea, experimentara dores nas articulações e na barriga, bem como calafrios. A febre que desaparecera na tarde anterior retomara. Aos poucos, Michelle esgueirou-se da cama e ficou de pé, agarrando o suporte da injeção endovenosa. Segura ao suporte à sua frente, foi arrastando os pés até o banheiro. O tubo de plástico da injeção endovenosa ainda penetrava em seu braço, que ela mantinha o mais imóvel possível. Michelle sabia que havia uma agulha na extremidade daquele tubo e temia que, se' mexesse o braço, a agulha pudesse feri-la. Depois de usar o banheiro, voltou para a cama. Não podia sentir-se mais isolada e infeliz. - Bem, bem - exclamou uma enfermeira ruiva, entrando afobada pelo quarto. - Já acordada! Isso é que é ser diligente. - De um golpe, ergueu o estore da janela, revelando um novo dia. Michelle observava-a, mas não falava. A enfermeira passou para o outro lado da cama e tirou um termômetro de um estreito copo de aço inoxidável. - Que é que há? O gato comeu sua língua? - Bateu o termômetro, examinou-o e enfiou-o na boca de Michelle. - Volto num instante. Michelle esperou que a enfermeira saísse e tirou o termômetro da boca. Não queria que ninguém soubesse que ela ainda estava com febre, caso isso a forçasse a permanecer no hospital. Ficou com o termômetro na mão direita, junto ao rosto, de modo que quando a enfermeira voltasse ela pudesse recolocá-lo rapidamente na boca. A próxima pessoa a passar pela porta constituiu um falso alarme. Michelle pôs o termômetro de volta na boca, mas quem entrou foi um homem metido num casaco branco sujo, com centenas de canetas enfiadas no bolso. Trazia uma cesta de arame cheia de tubos de ensaio para exames, fechados com tampos de diferentes cores. Das bordas de sua 132

cesta pendiam pedaços de tubos de borracha. Michelle sabia o que ele queria: sangue. Apavorada, ela observava seus preparativos. Ele passou um tubo de borracha em tom o de seu braço, apertando-o tanto que seus dedos doeram, e bruscamente esfregou a parte interna de seu cotovelo com uma mecha de algodão embebida em álcool, no mesmo local macio de onde lhe haviam tirado sangue no dia anterior. A seguir, com os dentes, arrancou o protetor de uma

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agulha. Michelle teve vontade de gritar. Em vez disso, virou a cabeça para o outro lado, procurando esconder suas lágrimas silenciosas. O garrote de borracha foi desapertado, causando tanta dor quanto a que provocara ao ser colocado. Ela ouviu o barulho de um tubo de vidro que caía na cesta de arame. Depois outra dor pungente, quando a agulha foi arrancada de repente. A seguir, o homem aplicou uma bola de algodão no lugar da picada, flexionou-lhe o braço de mo,do a fazer pressão contra o algodão, juntou suas coisas e saiu sem dizer uma só palavra. com um braço prendendo o algodão e o outro com a agulha da injeção endovenosa, Michelle sentia-se totalmente imobilizada. Aos poucos, ela abriu o braço. A bola de algodão caiu de lado, deixando ver um pontinho vermelho cercado por uma área azul-escura. - Muito bem - disse a enfermeira rui vá, entrando no quarto. - Vamos ver quanto você tem. Michelle lembrou-se, em pânico, de que o termômetro ainda estava em sua boca. Habilmente a enfermeira o retirou, anotou a temperatura e colocou-o dentro do recipiente de metal, sobre a mesinha-de-cabeceira de Michelle. - O café virá num instante - disse ela animadamente, sem mencionar porém qual a febre da garota. E saiu com a mesma precipitação com que havia entrado. "Oh, paizinho, venha me pegar", disse Michelle consigo mesma. "E depressa, por favor." Charles sentiu que o sacudiam pelos ombros. Tentou ignorar o fato porque queria continuar dormindo, mas as sacudidelas prosseguiram. Ao abrir os olhos, viu Cathryn, já vestida, de pé ao lado da cama, segurando uma caneca de café. Apoiando-se num dos cotovelos, Charles tomou o café. - São sete horas - disse Cathryn com um sorriso. - Sete? - Charles relanceou o olhar para o desper- 133

tador, achando que dormir demais não era a maneira de acelerar o ritmo de seus esforços de pesquisa. - Você estava dormindo tão profundamente - falou Cathryn, beijando sua testa - que não tive coragem de acordá-lo mais cedo. Temos um bom desjejum nos esperando lá embaixo. Charles sabia que ela se esforçava por parecer alegre. - Desfrute seu café - continuou Cathryn, dirigindose para a porta. - Gina levantou-se e preparou tudo antes mesmo que eu acordasse. Charles olhou para a caneca de café em suas mãos. O fato de Gina ainda estar ali era irritante. Ele não queria que a primeira coisa a experimentar de manha fosse o olhar observador da sogra, mas ao olhar para o café que estava segurando sabia que ela ia perguntar-lhe como estava e vangloriar-se pelo fato de haver acordado quando todo mundo ainda dormia. Charles sacudiu a cabeça. Esses pensamentos aborrecidos não eram um bom modo de começar o dia. Experimentou o café. Estava quente, cheiroso e estimulante. Admitiu que o estava apreciando e decidiu que diria isso a Gina antes que ela tivesse uma oportunidade de perguntar; e depois lhe agradeceria por ter-se levantado mais cedo que os outros antes que ela tivesse a oportunidade de lhe dizer. Carregando sua caneca de café, Charles caminhou de mansinho para o saguão, para o quarto de Michelle. Parou do lado de fora da porta e depois abriu-a lentamente. Ele como que esperava ver sua filhinha dormindo em segurança, mas, naturalmente, sua cama estava perfeitamente intacta, seus livros e seus pertences, compulsivamente arranjados, o quarto, limpo como um espelho. "Muito bem", disse Charles consigo mesmo, como se estivesse barganhando com um árbitro todo-poderoso, "ela está com leucemia mieloblástica. Espero apenas que seu caso seja sensível ao tratamento atual. Isso é tudo o que eu peço." O desjejum foi um ato tenso, dominado pela exaltação de Gina e pela reserva de Charles. Um alimentava o outro com a expectativa de realização de suas esperanças, até que Gina começou a falar sem parar, enquanto o genro continuava

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completamente silencioso. Cathryn interrompeu o falatório com complicados planos sobre quem ia fazer o quê e quando. Charles se conservava fora da decisão doméstica, concentrando-se em planejar seu dia de trabalho no instituto. A primeira coisa que ele queria fazer era checar os camun- 134

dongos inoculados com ^ntígeno canceroso, em busca de uma atividade imunológica. Mas provavelmente não haveria resposta com uma dose tão leve, e ele teria de preparar tudo para lhes aplicar uni outro desafio naquela tarde. A seguir, ele examinaria os camundongos inoculados com o Canceran e os rejeitaria. Depois, começaria a trabalhar numa simulação computadorizada do modo pelo qual ele imaginava que atuasse o fator bloqueador. - Está bem para você, Charles? - perguntou Cathryn. - O quê? - indagou Charles, que se havia alheado completamente de toda a conversa. - vou com você no Ford esta manhã e você me deixa no hospital. Chuck pega a caminhonete, deixa Jean Paul e segue para a Northeastern. Gina concordou em ficar aqui e fazer o jantar. - vou fazer o meu prato favorito - disse Gina, entusiasmada. - Nhoque. Nhoque! Charles nem sabia o que era nhoque. - Se eu quiser voltar mais cedo - continuou Cathryn para Charles -, vou até a Northeastern e pego a caminhonete. Se não, volto com você. Que é que você acha? Charles não podia compreender como todos esses planos poderiam tornar as coisas mais fáceis. O antigo método de ele levar os rapazes e deixar a caminhonete para Cathryn parecia muito mais simples, mas ele não se importou. Na verdade, se decidisse trabalhar naquela noite, talvez fosse melhor que Chuck ficasse com o carro, porque então Cathryn poderia voltar para casa com ele à tarde. - Para mim está ótimo - retrucou Charles, observando Chuck, que se achava em sua habitual postura ao desjejum, estudando a caixa de cereal como se fosse a Sagrada Escritura. O rapaz usava as mesmas roupas do día anterior e parecia tão ruim quanto antes. - Recebi um telefonema da tesouraria ontem - falou Charles. - Eu sei, eu lhes dei o número - replicou Chuck, sem erguer o olhar. - Entrei em entendimentos com o banco para arranjar um empréstimo. Deve estar aprovado em um ou dois dias, e então a conta será paga. - bom - disse Chuck, virando a caixa, a fim de poder estudar o valor nutritivo na parte lateral. - Isso é tudo o que você tem a dizer? bom ? - Char- 135

lês voltou a cabeça para Cathryn com um olhar que signifi- cava: "Pode se acreditar neste garoto?" Chuck fingiu que não tinha ouvido a pergunta. / - Acho que está na hora de irmos - disse Cathryn, ; levantando-se e recolhendo o leite e a manteiga para pôr na geladeira. - Deixe tudo aí - falou Gina, magnânima. - Eu cuido de tudo. Charles e Cathryn foram os primeiros a sair de casa. Um pálido sol de inverno pairava baixo no céu a sudeste. Por mais frio que estivesse dentro do Ford, Cathryn sentiu-se aliviada ao sair do vento cortante. - Diabo! - exclamou Charles, soprando os dedos. - Esqueci-me da água do lago. Por atenção a Cathryn, Charles ligou o motor do carro, o que não era tarefa fácil, antes de voltar correndo para a cozinha a fim de apanhar o frasco com água do lago. Cuidadosamente, enfiou-o atrás do seu assento, para impedir que derramasse, antes de entrar no carro e ajustar seu cinto de segurança. Cathryn observou seu comportamento para com a água do lago com uma certa desconfiança. Depois de sua pequena conversa com Charles na noite anterior, ela esperava

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que ele se concentrasse em Michelle. Mas Charles tinha agido de modo estranho desde o momento em que ela o acordara naquela manhã. Cathryn tinha a assustadora sensação de que sua família estava se desintegrando. Contemplando Charles de perfil, silencioso, enquanto guiava o carro, Cathryn iniciou uma porção de conversas, abandonando porém uma após outra por vários motivos, principalmente porque temia que qualquer discussão desencadeasse a ira do marido. Quando a Rodovia 301 juntou-se com a Interestadual 93, Cathryn obrigou-se finalmente a falar: - Como está se sentindo hoje, Charles? - Hum? Oh, ótimo. Ótimo mesmo. - Você está tão quieto! Não parece você. - Apenas pensando. - Em Michelle? - Sim. E também em meu trabalho. - Você não está mais pensando na Recycle, Ltd., está? Charles olhou de relance para Cathryn e depois voltou a se concentrar na estrada. 136

- Um pouco. Ainda acho que o lugar é uma ameaça, se é a isso que você quer se referir. - Charles, você não está escondendo nada de mim, está? - Não - respondeu Charles rapidamente. - Por que pergunta? - Não sei - admitiu Cathryn. - Você parece tão distante desde que soubemos de tudo sobre Michelle! Seu temperamento parece mudar tão repentinamente! - Os olhos de Cathryn fitaram Charles, esperando uma reação ao seu último comentário. Mas ele apenas continuou a dirigir e, se houve uma reação, Cathryn não a percebeu. - Acho que tenho muita coisa na cabeça - disse Charles. - Você não quer dividir comigo, Charles? Quero dizer, é para isso que estou aqui. Eis por que quis adotar as crianças. Quero que você partilhe tudo comigo. - Cathryn estendeu a mão e colocou-a sobre a coxa de Charles. Charles concentrava-se na estrada à frente. Cathryn estava exprimindo uma convicção que ele mantivera até a véspera, mas agora ele via que não podia partilhar tudo. Seu passado como médico havia-lhe conferido experiências que Cathryn não poderia compreender. Se contasse o que sabia sobre o curso da doença de Michelle, ela ficaria arruinada. Tirando uma das mãos do volante, Charles colocou-a sobre a de Cathryn. - As crianças não sabem o quanto são felizes - disse ele. Durante algum tempo seguiram em silêncio. Cathryn não estava satisfeita, porém não sabia mais o que dizer. Ao longe, ela podia ver apenas o cimo do Prudential Building. O tráfego começava a aumentar, e foi necessário reduzir a velocidade para sessenta quilômetros horários. - Não entendo nada de determinação de tipos de tecidos e tudo isso - falou Cathryn, rompendo o silêncio. - Mas acho que não devemos obrigar Chuck a fazer algo que ele não quer. Charles olhou para Cathryn por um instante. - Estou certa de que ele acabará se ajustando - continuou ela, ao ver que Charles não ia falar. - Mas ele tem que concordar por si mesmo. Charles retirou a mão de cima da de Cathryn e apertou com força o volante. A simples menção de Chuck era como 137

a sensação de um fogo ardente. No entanto, o que Cathryn estava dizendo era incontestavelmente real. - Não se pode obrigar ninguém a ser altruísta prosseguiu Cathryn. - Especialmente Chuck, porque isso só iria reforçar as preocupações que ele tem com seu próprio ego. - O sentido do ego é tudo o que ele tem - disse Charles. - Ele não expressou o menor cuidado para com Michelle. Nem uma palavra. - Mas ele sente. Apenas é difícil para ele expressar essas coisas. Charles riu cinicamente. - Eu gostaria de acreditar. Ele não passa de um maldito egoísta. Você reparou no embaraçoso comentário que ele fez, quando eu lhe disse

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que tinha pedido um emprésti-' mo para pagar sua taxa? - O que você queria que ele fizesse? Que desse saltos mortais? Essa taxa já devia ter sido paga há meses. Charles apertou os maxilares. "Ótimo", pensou. "Você quer se aliar ao sacaninha. . . ótimo!" Cathryn ficou instantaneamente triste por ter dito o que ela pensava ser verdade. Estendendo o braço, colocou sua mão no ombro de Charles. Ela queria atraí-lo, não fazê-lo calar-se. - Lamento o que disse, Charles, mas você tem de compreender que Chuck não é obrigado a ter a sua personalidade. Ele não é um concorrente, nem é o mais belo dos rapazes. Mas no fundo é um bom garoto. É que é difícil crescer à sua sombra. Charles olhou de soslaio para a mulher. - Quer saiba ou não, você é uma pessoa difícil de ser imitada - continuou ela. - Você tem sido bem-sucedido em tudo o que tem tentado. Charles não partilhava aquela opinião. Podia citar uma dúzia de episódios em que tinha falhado miseravelmente. Mas a questão não era essa: era Chuck. - Acho que ele é um garoto egoísta e preguiçoso, e já estou cansado disso. Sua reação à doença de Michelle já era mais do que prevista. - Ele tem o direito de ser egoísta. A universidade é a última das experiências egoístas. - Bem, não há dúvida de que ele está tirando o melhor proveito dela. 138 Eles pararam no ponto em que a 93 se.juntava com a via expressa que vinha do sudeste e a Storrow Drive. Nenhum dos dois falou enquanto avançavam pouco a pouco. - Não era sobre isso que devíamos estar falando disse por fim Cathryn. - Tem razão - suspirou Charles. - E tem razão sobre não forçarmos Chuck, Mas se ele não endireitar, vai ter que esperar muito tempo antes que eu pague sua próxima conta da universidade. Cathryn fitou Charles profundamente. Se aquilo não era uma coerção, ela não fazia idéia do que era. Embora naquela hora da manhã fossem poucos os visitantes, o hospital achava-se em plena agitação, e Charles e Cathryn tinham que se esquivar de uma porção de maças de rodas que transportavam os pequenos pacientes tirados da cama para os vários exames. Gathryn sentia-se infinitamente mais confortável com Charles ao seu lado. As palmas de suas mãos estavam úmidas, o que era o seu método habitual de revelar ansiedade. Ao passarem pelo atarefado posto 'das enfermeiras na Anderson 6, a enfermeira encarregada viu-os e acenou um cumprimento. Charles parou junto ao balcão. - Desculpe - disse ele -, sou o dr. Martel. Eu queria saber se minha filha iniciou sua quimioterapia. Propositalmente, Charles mantinha a voz o mais natural possível. - Acho que sim - disse a enfermeira -, mas deixe-me verificar. A atendente que havia escutado a conversa entregou a papeleta de Michelle. - Ela tomou seu Daunorubicin ontem à tarde. Tomou sua primeira dose oral de Thioguanine esta manhã e vai começar com a Cytarabine esta tarde. Os nomes sacudiram Charles, mas ele se obrigava a manter um sorriso. Conhecia muito bem os possíveis efeitos colaterais, e a informação ecoava silenciosamente em sua cabeça. "Por favor", dizia para si mesmo, "por favor, que ela entre em remissão." Charles sabia que, se isso fosse possível, ocorreria imediatamente. Agradeceu à enfermeira, virou-se e caminhou na direção do quarto de Michelle. Quanto mais próximo, mais nervoso ficava. Afrouxou o laço da gravata e desabo toou o botão do colarinho. - Ficou ótima a decoração que eles fizeram para ale- L 139

grar o ambiente - observou Cathryn, reparando nos decalques dos animais pela primeira vez. Charles parou um instante na porta, procurando acalmar-se. - É este - falou Cathryn, pensando que Charles estivesse incerto quanto ao número do quarto. Empurrou a porta, entrou e puxou

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Charles para dentro, atrás dela. Michelle estava sentada, apoiada numa pilha de travesseiros. Ao ver Charles, seu rosto se contorceu e ela explodiu em lágrimas. Charles ficou chocado com sua aparência. Embora ele tivesse achado que não era possível, a menina estava ainda mais pálida do que no dia anterior. Seus olhos estavam visivelmente afundados nas órbitas e circundados por um halo negro, tão negro que pareciam contundidos. No ar pairava o cheiro rançoso de vômito fresco. Charles quis correr e abraçá-la, mas não pôde se mover. A agonia de sua incapacidade o mantinha parado, embora ela houvesse estendido os braços para ele. Sua doença era muito poderosa, e ele nada tinha a lhe oferecer, conforme sucedera com Elizabeth oito anos antes. O pesadelo havia retornado. Numa avalancha de horror, Charles reconheceu que Michelle não ia melhorar. De repente sentiu, sem a menor dúvida, que todo o tratamento paliativo do mundo não impediria o inevitável progresso do mal. Sob o peso dessa conclusão Charles cambaleou, afastando-se um passo da cama. Embora Cathryn não entendesse, viu o que estava acontecendo e apressou-se em preencher o vazio entre os braços estendidos de Michelle. Espiando por sobre os ombros de Cathryn, Michelle encontrou os olhos do pai. Charles sorriu fracamente, mas Michelle decidiu que o pai estava zangado com ela. - Que bom ver você! - disse Cathryn, olhando para o rosto de Michelle. - Como está passando? - Estou ótima - retrucou a menina, enxugando as lágrimas. - Só quero é ir para casa. Posso voltar para casa, paizinho? As mãos de Charles tremiam quando ele se aproximou dos pés da cama. Ele firmou-as na armação de metal. - Talvez - respondeu ele evasivamente. Talvez Charles a retirasse do hospital, a levasse para casa e a mantivesse confortável. Talvez fosse o melhor. - Michelle, você tem de ficar aqui até estar bem - 140

apressou-se Cathryn a dizer. - O dr. Keitzman e o dr. Wiley estão providenciando para que fique boa o mais cedo possível. Sei que é difícil para você> e sentimos muito sua falta, mas você precisa ser uma menina corajosa. - Por favor, paizinho - lamentou-se Míchelle. Charles sentia-se impotente e indeciso, duas emoções estranhas e enervantes. - Michelle - continuou Cathryn -, você tem de ficar no hospital. Lamento que assim seja. - Por quê, paizinho? O que há de errado comigo? - implorou Michelle. Charles olhou em vão para Cathryn em busca de socorro, porém ela ficou calada. Ele era o médico. - Quem me dera saber! - falou Charles, odiando-se por mentir, por ser incapaz de dizer a verdade. - É a mesma coisa que minha mãe de verdade teve? - Não - replicou Charles rapidamente. - Absolutamente não. - Até isso era uma meia mentira; embora Elizabeth tivesse tido um linfoma, morrera com uma crise final de leucemia. Charles sentia-se encurralado. Ele precisava pensar no que dizer. - O que é então? - insistiu Michelle. - Não sei - respondeu Charles, consultando o relógio com um sentimetno de culpa. - É por isso que está aqui. Para descobrirmos. Cathryn vai ficar fazendo companhia a você. Eu tenho que ir para o laboratório. Voltarei depois. Sem qualquer aviso, Michelle vomitou abruptamente. Seu corpinho magro arquejou, e ela expeliu uma pequena quantidade do desjejurn recentemente ingerido. Cathryn procurou esquivar-se do caminho, mas um pouco do vômito atingiu sua manga esquerda. Charles reagiu imediatamente, saindo para o corredor e gritando por uma enfermeira. Uma atendente que se achava apenas duas portas adiante veio correndo, esperando uma crise, e ficou satisfeita ao descobrir que se tratava de um falso alarme. - Não se preocupe, princesinha - disse a mulher casualmente, retirando a coberta de cima, que estava suja. •- Num segundo nós limpamos tudo isso. Charles pôs o dorso da mão na

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testa de Michelle. Estava úmida e quente. A febre ainda estava ali. Charles sabia o que provocava o vômito: era o remédio. Sentiu-se invadido 141

por uma onda de ansiedade. O pequeno quarto o estava deixando com claustrofobia. Michelle pegou a mão do pai e segurou-a, como se fosse escorregar para o fundo de um abismo e Charles fosse a única salvação. Olhou dentro de seus olhos azuis, que eram Um reflexo dos seus. Mas ela pensou ver firmeza em vez de condescendência; irritação em vez de compreensão. Soltou a mão e deixou-se cair sobre o travesseiro. - Voltarei mais tarde, Michelle - disse Charles, assustado com que o remédio já estivesse provocando efeitos colaterais potencialmente perigosos. Dirigiu-se à atendente: - Receitaram alguma coisa para ela tomar contra a náusea e os vômitos? - Realmente, sim. Há uma ordem para dar Compazine PRN. vou buscá-la num minuto. - Isso é coisa de agulha? - choramingou Michelle. - Não, é uma pílula - disse a atendente. - Desde que sua barriga a guarde lá dentro. Senão, vamos ter de Usar o seu bumbum. - E deu um aperto carinhoso no pé da menina. , - vou acompanhar Charles até o elevador, Michelle -- disse Cathryn, vendo o marido se dirigir para a porta, Ela o alcançou no saguão e segurou seu braço. - Charles, que é que há com você? Charles não parou. - Charles! - gritou Cathryn, .dando-lhe um puxão para que ficasse de frente para ela. - Que é? - Tenho que sair daqui! - respondeu Charles, co fiando nervosamente o cabelo. - Não agüento ver Michelle í sofrer. Ela está com uma aparência horrível. Não sei o que fazer. Não sei se ela devia tomar mais daquele remédio. - Não tomar os remédios? - exclamou Cathryn. No mesmo instante, ela se lembrou de que os doutores Keitzman e Wiley estavam preocupados com que Charles pudesse interromper o tratamento de Michelle. - Seu vômito - falou Charles, irado. - Isso é só o começo. - Charles ia principiar a dizer que estava certo de que Michelle não ia entrar em remissão, mas segurou a língua. Cathryn teria tempo para ouvir outras notícias más e no momento ele não queria destruir-lhe a esperança. - Mas o remédio é sua única chance - implorou a mulher. - Tenho de ir - continuou Charles. - Chame-me, se houver qualquer mudança. Estarei no laboratório. •• 142 • l

Cathryn contemplou Charles sair às pressas pelo corredor apinhado. Ele nem esperou pelo elevador. Ela o viu descer pelas escadas. Quando o doutor Wiley lhe dissera que eles iam depender de sua força, não tinha idéia do que ele queria dizer. Agora estava começando a compreender. 143

Charles entrou na área de estacionamento do instituto, saltou do carro e pegou o frasco de água do lago que estava atrás do assento. Correu pelo caminho pavimentado de betume e cascalho e teve de esmurrar a porta de vidro antes que a recepcionista a abrisse. No saguão principal, em vez de virar à esquerda, ele seguiu pela direita e correu para o laboratório de análises. Um dos técnicos que Charles respeitava estava sentado em cima do balcão, com o seu café da manhã. - Quero analisar esta água para comprovação de contaminantes - disse Charles, ofegante. - Assunto de urgência? - ironizou o técnico, reparando na excitação de Charles. - Mais ou menos. Estou particularmente interessado em solventes orgânicos. Mas

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tudo o que você puder me dizer sobre a água será útil. O técnico abriu a tampa do frasco, aspirou um pouco e piscou. - Ei, espero que você não use esta coisa no seu scotch. Charles voltou correndo para o seu próprio laboratório. Sua cabeça era uma pulsante confusão de pensamentos que surgiam e desapareciam de sua consciência com espantosa rapidez. , Ele reconhecia que não tinha meios de resolver racionalmente o dilema que experimentava sobre o tratamento de Michelle. Em vez disso, decidiu pôr sua pesquisa no ritmo máximo, .na f útil esperança de que seria capaz de conseguir algo de extraordinário a tempo de aplicar na menina; e tentar fechar a Recycle, Ltd. A vingança era uma emoção poderosa, e sua presença reduzia a ansiedade quanto a Michelle. Ao chegar à porta de seu laboratório, Charles notou que estava com os punhos fechados. Hesitou, lembrando-se de seu juramento daquela manhã, de usar mais sua inteligência do 145

que suas inseguras emoções. Acalmando-se, abriu delicadamente a porta. Ellen, que estivera ocupada lendo os registros do Canceran na mesa de Charles, baixou o livro lentamente. Seus movimentos eram deliberadamente estudados, o que aborrecia Charles mesmo em seu estado de alheamento. - Todo o love de camundongos recebeu o antígeno do câncer de mama? - perguntou ele. - Recebeu - respondeu Ellen. - Mas. .. - Ótimo - interrompeu Charles, dirigindo-se para o seu pequeno quadro-negro. A seguir, apanhou um pedaço de giz e, depois de apagar o que já estava no quadro, começou a diagramar o método que usariam para testar as reações dos linfócitos-T dos camundongos inoculados, a fim de cartografar sua reação imunológica. Ao acabar, o pequeno quadronegro estava cheio de uma elaborada progressão de etapas. - E também - continuou Charles, pondo o giz embaixo vamos experimentar algo diferente. Não quer dizer que isso seja científico. O objetivo é o de proporcionar uma exploração rápida. Quero fazer um grande número de,diluições do antígeno canceroso e injetar cada diluição num único camundongo. Sei que não tem significado estatístico. É-uma pesquisa ao acaso, mas pode ser útil. Agora, enquanto você examina os camundongos de ontem e injeta uma segunda dose do antígeno canceroso, vou dar uns telefonemas. - Charles limpou o giz de suas calças e estendeu a mão para pegar o telefone. - Agora posso falar? - indagou Ellen, inclinando maliciosamente a cabeça para a lado, com uma expressão de "Eu lhe disse". - Claro - retrucou Charles, segurando o receptor. - Examinei os camundongos que receberam a primeira dose do Canceran. A seguir, fez uma pausa. - Sim? - perguntou Charles, imaginando o que estaria por vir. - Quase todos morreram na noite passada. O rosto de Charles nublou-se, descrente. - Que aconteceu? - Ele pôs o fone no gancho. - Não sei - admitiu Ellen. - Não há explicação, a não ser o Canceran. - Você examinou a diluição? - Sim. Estava bem precisa. 146

- Algum sinal de que eles tenham morrido por um agente infeccioso? . " - Não. Providenciei para que o veterinário desse uma olhada. Ele ainda não fez a autópsia, mas acha que morreram de um ataque cardíaco. e es rnor" - Toxicidade da droga! - exclamou Charles sacudindo a cabeça. - Acho que sim. - Onde está o registro original do Cancceran, perguntou Charles, sentindo a preocupação crescer. - Aqui mesmo, em cima de sua mesa. estava

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examinando quando você entrou. Charles pegou o volume e foi direto examinar a toxicidade. Depois, pegou o registro prelimin secao de tinham feito no dia anterior. Examinou os númeto

de .acabou, atirou o novo registro e o original sobre a mesa e saiu

voando. - Que bom filho da puta! - - Isso tem que ser a explicação - coricord TJII - Brighton deve ter falsificado também o§ a toxicidade. Merda, isso significa que todo soe Canceran, no qual Brighton gastou dois anos • O Canceran deve ser muito mais tóxico do òü " Pr^stainformou. Que piada! Sabe quanto o Instituto vr .righton Câncer pagou até agora pelo teste desta droga;> Clonal - Não, mas imagino. - Milhões e milhões! - Charles bateu a mão

na testa. - Que vamos lazer? - Nós? O que eles vão fazer! Todo o Ptoiet ser recomeçado, o que significa um adicional j .em e anos! de mais três Charles sentia que seu juramento de manter tância desapaixonada ia se desfazendo. Acabar 0 ^ f~ eficácia era uma coisa, mas reiniciar todo o projeto 1° "a era algo mais. Não seria ele quem o faria, espeç{ai anceran rã que, com Michelle doente, precisava acelerai- n e^te a^?" seu próprio trabalho. ° ntmo de - Tenho a sensação de que eles ainda querem tinuemos a trabalhar no Canceran - disse ÜUen ^Ue con" - Bem, para mim pouco se me dá -^ £ / , mente Charles. - Para nós o Canceran acabo^ o ,, scae Ibanez nos causarem problemas, nós lhes esfree ornson nariz a prova de que o estudo da toxicidade n§0 ^ti os n(? em que está impresso. Ameaçaremos levar tu^p. v . ° PaPe^ MU a imprensa. 147

com um tal escândalo, acho que até o Instituto Nacional do Câncer pode questionar onde está aplicando seu dinheiro. - Não creio que vá ser fácil. Acho que devíamos. . . - Chega, Ellen! - berrou Charles. - Quero que você comece a fazer os testes para os anticorpos em nosso primeiro love de camundongos e depois os inocule de novo. Tratarei da parte administrativa do caso do Canceran. Ellen voltou-lhe as costas, zangada. Como de hábito, Charles tinha ido longe demais. Ela começou a trabalhar, fazendo o máximo de barulho possível com o material de vidro e os instrumentos. O telefone tocou sob o braço de Charles. Ele o atendeu ao primeiro toque. Era o técnico do laboratório de análises. - Você quer um relatório preliminar? - perguntou o químico. - Por favor. - O principal contaminante é o benzeno, e em grande quantidade. Mas existem também porções menores de tolueno, bem como um pouco de tricloroetileno e tetracloreto de carbono. Que água imunda! Praticamente você poderia lavar todos os seus pincéis nela. Esta tarde lhe enviarei um relatório completo. Charles agradeceu e desligou. O relatório não constituía surpresa, mas ele estava satisfeito de ter à prova documentada. Involutariamente, a imagem de Michelle apareceu diante dele, que se obrigou a apagá-la, tirando a lista telefônica de Boston da prateleira e levando-a para sua escrivaninha. Procurou a seção do governo federal, encontrando uma série de números da Agência de Proteção Ambiental. Discou o número de informações gerais. Uma gravação respondeu que a agência estava aberta das nove às cinco. Ainda não eram nove horas. Charles passou então para a seção da Agência de BemEstar de Massachusetts. Queria descobrir a incidência da leucemia e do linfoma ao longo do curso do rio Potomac. Mas não havia uma listagem para Registro de Tumores ou Cânceres. Em vez disso, seus olhos caíram sobre as palavras "Estatísticas Vitais". Ele chamou o número, mas obteve a resposta numa gravação idêntica à que tinha conseguido ao discar para a Agência de Proteção Ambiental. Verificando a hora,

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Charles viu que ainda faltavam cerca de vinte minutos para os escritórios burocráticos abrirem. Dirigiu-se para Ellen e começou a ajudá-la nos preparativos para analisar se algum dos camundongos em que tinham 148

injetado o antígeno do câncer mamário revelava algum sinal de aumento de atividade imunológica. Obviamente Ellen continuava calada. Charles percebeu que ela estava zangada e que se aproveitava da familiaridade existente entre os dois. Enquanto trabalhava, Charles permitiu-se fantasiar sobre sua última pesquisa. E se os camundongos inoculados com o antígeno canceroso mamário reagissem rapidamente e a sensibilidade adquirida pudesse ser facilmente transferida para os camundongos cancerosos através de um fator de transferência? Então os camundongos cancerosos poderiam se curar daquela determinada cepa. Era lindamente simples. . . talvez simples demais, pensou Charles. Se a coisa funcionasse. Se apenas ele pudesse acelerar o processo para Michelle. . . Quando ele ergueu os olhos já passava das nove. Deixando Ellen embirrada, Charles voltou para sua mesa e discou para a seção de informações gerais da Agência de Proteção Ambiental. Dessa vez, foi atendido por uma mulher com um aborrecido sotaque bostoniano. Charles apresentou-se e disse que queria denunciar o despejo de material venenoso num rio. À mulher não se mostrou surpresa. Mandou que ele esperasse. Outra mulher atendeu, e sua voz era tão semelhante à da primeira que Charles ficou admirado quando ela lhe pediu para repetir sua denúncia. - O senhor caiu no ramal errado. Aqui é a Divisão de Programas, e nós não tratamos de dejetos. O senhor quer é o Programa de Substâncias Químicas Tóxicas. Espere um minuto. Uma voz idêntica respondeu. Charles ficou imaginando se se faziam clones na Agência de Proteção Ambiental. Repetiu sua denúncia, mas quem atendeu lhe informou que o Programa de Substâncias Químicas Tóxicas nada tinha a ver com as infrações, e que ele devia ligar para o número de Derramamento de Óleos e Materiais Perigosos. Deu-lhe o número e desligou antes que ele pudesse dizer qualquer coisa. Ele tornou a discar, e o fez com tanta força que a ponta de seu dedo médio latejou em protesto. Outra mulher. Charles repetiu a denúncia, sem tentar esconder seu aborrecimento. - Quando ocorreu o derramamento? - perguntou a mulher. 149

- Trata-se de um despejo contínuo e não de um acidente casual. - Lamento. Só tratamos de derramamentos. - Posso falar com seu supervisor? - rosnou Charles. - Um minuto, por favor - suspirou a mulher. Charles aguardou, impaciente, esfregando o rosto com as mãos. Estava suando. - Posso lhe ser útil? - perguntou ainda uma outra mulher, entrando na linha. - Sem dúvida, espero que possa - prosseguiu Charles. - Estou comunicando que há uma fábrica despejando regularmente benzeno, que é um tóxico. - Bem, naio tratamos disso - interrompeu a mulher. -J- O senhor teta de chamar a agência estadual adequada. - O quê? - berrou Charles. - Que diabo faz então a Agência de Proteção Ambiental? ,s - Somos uma agência reguladora - replicou a mulher calmamente -, encarregada de regular o ambiente. -r- Eu pensei que jogar veneno num rio era algo que lhes podia dizer respeito. - Bem que pode ser - concordou a mulher -, mas só depois de o Estado verificar a situação. O senhor quer o número da agência estadual indicada? - Dê-me - disse Charles, já exausto. Ao desligar o telefone, viu que Ellen o estava observando. Ele fitou-a penetrantemente e ela voltou ao trabalho. Charles aguardou o

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ruído de discar e tornou a ligar. - OK - respondeu a mulher depois de ouvir o seu problema. - D" que rio o senhor está falando? - Do Potomac. Meu Deus, será que finalmente estou falando com a pessoa certa? - Sim, está - garantiu a mulher. -- E onde é a fábrica que o senhor acha que está fazendo o despejo? - A fábrica é em Shaftesbury. -• Em Shsaftesbury? Isso fica em New Hampshire, não é? - Perfeito, mas. . . - New Hampshire fica fora de nossa jurisdição. - Mas a maior parte do rio fica em Massachusetts. - Pode s;er, mas a origem é em New Hampshire. O senhor tem que falar com o pessoal de lá. - Haja saco! - murmurou Charles. - Que foi que o senhor disse? - A senhora tem o número? 150

- Não. O senhor terá que ligar para Informações. E o telefone ficou mudo. Charles telefonou para Informações, em New Hampshire, e obteve o número dos Serviços Estaduais. Não havia qualquer seção de controle de poluição de água, mas depois de chamar o número principal, Charles conseguiu o ramal que desejava. Achando que estava começando a parecer um disco de vitrola, repetiu mais uma vez a denúncia. - O senhor quer fazer a denúncia anonimamente? perguntou a mulher. Surpreso com a pergunta, Charles levou um momento para responder. - Não. Sou o dr. Charles Martel, Estrada Rural número l, Shaftesbury. - Muito bem - retrucou a mulher lentamente, como se estivesse tomando nota. - Onde está ocorrendo o suposto despejo? - Em Shaftesbury. Uma companhia chamada Recycle, Ltd. Estão despejando benzeno no rio Potomac. - OK. Muitíssimo obrigada. - Ei, espere um minuto. O que é que vocês vão fazer? - vou passar à denúncia para um de nossos engenheiros. E ele vai providenciar. -• Quando? - Não posso dizer com certeza. - Pode dar-me uma idéia? - Estamos muito ocupados com vários vazamentos de óleo lá em Portsmouth, de modo que é provável que leve algumas semanas. Algumas semanas não era o que Charles queria ouvir. - Tem algum engenheiro aí agora? - Não. Ambos saíram. Espere! Um deles está chegando. Gostaria de falar com ele? - Por favor. Seguiu-se uma pequena demora, antes que um homem entrasse na linha. - Aqui fala Larry Spencer! - disse o engenheiro. Rapidamente Charles explicou ao homem por que estava telefonando, dizendo que gostaria que alguém examinasse o despejo imediatamente. - Temos realmente um problema de mão-de-obra neste departamento - retrucou o engenheiro. - Mas trata-se de um problema grave. O benzeno é 151

um veneno, e há uma porção de gente morando ao longo do rio. - É muito grave -- concordou o engenheiro. - Não há nada que se possa fazer pata apressar as coisas? - Realmente não. Embora o senh"or pudesse entrar em contato com a Agência de Proteção Ambiental e ver se eles estão interessados. - Foi o que fiz em primeiro lugar-. Eles mandaram que eu procurasse vocês aí. , - Por aí o senhor p°de ver! E difícil prever quais os casos que interessam a eles- Depois qufc fazemos todo o trabalho sujo e pesado, geralmen,te eles a judam, mas às vezes se interessam desde o iníci°- É um sistema louco, ineficiente. Mas é o único de que dispomos. Charles agradeceu ao engenheiro e desligou. Achou que o homem era sincero e, pel^menos> tint~"a dito que, afinal de contas, a Agência de Proteção Ambiental podia se interessar. Charles notara que a agência ficava no Edifício JFK, no centro do governo, em Boston- Ele não ia tentar outro telefonema; decidiu que iria pessoalmente. Irre-cjuieto, levantou-se e apanhou seu casaco. - Voltarei logo - falou Para E1 len. Ellen não respondeu. Aguardou viários minutos

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depois que a porta se fechou atrás de Charles, antes de examinar o corredor. Charles não estava à vista. Retornando à sua mesa, Ellen discou o número do dr. Morrisorr*. Estava convencida de que Charles agia de modo irresponsável, mesmo levando em consideração a doença da "lha, e q"ne não era justo pôr em perigo o trabalho deles • O dr. Mpzrrison escutou Ellen gravemente e depois disse que desceriai. Antes de desligar, falou que sua ajuda nesse caso difícil não deixaria de ser reconhecida. Ao sair do Weinburger" Charles sentiu que estava se enfurecendo. Tudo corria mal> inclusive sua idéia de vingança. Depois de seus telefonefflas> ele não esstavamais tão certo de conseguir algo a respeito da Recycles, Ltd., a não ser ir até lá com seu velho rifle. De novo a -imagem de Michelle em sua cama de hospital veio assombra-B^p. Charles não sabia por que tinha tanta certeza de que ela nssao reagiria à quimioterapia. Talvez fosse seu m°do louco e"e se obrigar a lidar com o pior caso possível, porque ele reconhecia que a quimioterapia era sua única esperança. - Se ela devia ter leucemia - fritou Charles, sacu- 152 À

dindo o volante do carro -, por que não teve leucemia linfocítica, onde a quimioterapia é tão eficaz? Sem se dar conta, Charles permitira que seu carro andasse abaixo dos sessenta quilômetros horários, enfurecendo os outros motoristas na estrada. Em meio a uma cacofonia de buzinas, os que o ultrapassavam sacudiam os punhos fechados. Depois de guardar o carro na garagem municipal, Charles subiu em direção ao vasto paredão de tijolos entre o edifício federal JFK e o geométrico prédio da prefeitura. Os edifícios funcionavam como um túnel de vento e Charles teve de se inclinar ante as rajadas para poder andar. Naquele momento, o sol brilhava fracamente, porém uma frente de nuvens cinzentas se aproximava, vinda de oeste. A temperatura era de onze graus abaixo de zero. Charles entrou por uma porta giratória e procurou um painel indicador. À sua esquerda havia uma exposição de fotografias de John F. Kennedy e, bem à frente, perto do elevador, uma cafeteira improvisada, onde se vendiam café e rosquinhas. Atingindo Charles com o açúcar que se desprendia das rosquinhas enquanto ela falava, uma das garçonetes apontou para o painel indicador. Ele estava escondido por trás de uma série de fotos de John F. Kennedy adolescente e sorridente. A Agência de Proteção Ambiental ficava no vigésimo terceiro andar. Charles entrou no elevador justo no momento em que a porta ia se fechar. Olhando em derredor para seus companheiros de elevador, Charles começou a pensar na estranha predominância do poliéster verde. Saltou no vigésimo terceiro andar e se encaminhou para um escritório em cuja porta estava escrito: "Diretor". Parecia um bom lugar para começar. Logo que se entrava no escritório deparava-se com uma grande escrivaninha de metal e uma mesinha para máquina de escrever, dominadas por uma mulher enorme, cujos cabelos estavam revoltos numa profusão de cachos apertados. Uma piteira cravejada de brilhantes falsos, encimada por um agarro comprido e ultrafino, se projetava garbosamente do canto de sua boca, rivalizando, na atenção despertada, com seu prodigioso busto, que punha à prova a força do vestido. Vuando Charles se aproximou, ela ajustou os cachos em suas temperas, contemplando-se num pequeno espelho de mão. - Desculpe-me - disse Charles, imaginando se aquela Se"a uma das mulheres com quem havia falado ao telefone. 153

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- Estou aqui para denunciar uma fábrica de reciclagem que está derramando benzeno num rio local. com quem devo falar? Continuando a arrumar o cabelo, a mulher examinou Charles de modo desconfiado. - O benzeno é uma substância perigosa? - perguntou ela. - É muito mais do que perigosa. - Acho que o senhor devia procurar a Divisão de Materiais Perigosos lá embaixo, no décimo nono andar - falou a mulher, com um tom que parecia dizer: "Seu estúpido!" Depois de vários lanços de escadas, Charles emergiu no décimo nono andar, que apresentava um ambiente totalmente diverso. Todas as paredes, exceto as que suportavam o peso da construção, haviam sido removidas, de modo que.se podia ver de uma a outra extremidade do edifício. O chão era um labirinto de divisões de metal que repartiam a área em pé quenos cubículos. Pairava no ar uma nuvem de fumaça de B cigarros e o ininteligível murmúrio de centenas de vozes. • Charles penetrou no labirinto, reparando que havia postes semelhantes aos indicadores das ruas, mostrando a localização dos vários departamentos. Felizmente a Divisão J de Materiais Perigosos era adjacente à escada que Charles tinha usado, e assim ele começou a observar os sinais que marcavam as subdivisões. Passou pelo Programa do Ruído, pelo Programa do Ar, pelo Programa dos Pesticidas e pelo Programa da Radiação. Bem além do Programa de Detritos Sólidos ele viu o Programa de Dejetos Tóxicos. Caminhou BI naquela direção. Saindo do corredor principal, tornou a se confrontar com uma escrivaninha que servia como uma espécie de bar- reira para o interior. Era uma mesa muito menor e ocupada por um negro magro, que aparentemente fazia um grande esforço para esticar seu cabelo naturalmente crespo. Para consolo de Charles, o homem deu-lhe toda a atenção. Vês tia-se elegantemente, e, quando falou, seu sotaque era quase inglês em sua precisão. - Receio que o senhor não esteja na seção certa - disse o jovem, depois de ouvir a reclamação de Charles

. - Sua divisão não trata de benzeno? - Tratamos do benzeno, sim, mas apenas fornecemos as permissões e licenças para uso de materiais perigosos. - Aonde você sugere que eu vá? - indagou Charles, controlando-se. 154 i

- Hum - resmungou o homem colocando um dedo cuidadosamente tratado na ponta do nariz. - Sabe de uma coisa? Não tenho a menor idéia. Isso nunca aconteceu. Espere, deixe-me perguntar a alguém. com um passo leve e saltitante, o homem contornou a escrivaninha, sorriu para Charles e desapareceu no interior do labirinto. Seus sapatos tinham chapinhas de metal, que soavam aos ouvidos de Charles de modo diferente dos ruídos das máquinas de escrever próximas. Enquanto esperava, Charles remexia-se, inquieto. Tinha a sensação de que seus esforços iam ser totalmente vãos. O jovem negro voltou. - Ninguém sabe realmente aonde deve ir - admitiu ele. - Mas sugeriram que talvez o senhor pudesse tentar a Divisão de Programas de Água, no vigésimo segundo andar. Talvez eles possam ajudar. Charles agradeceu ao homem, apreciando pelo menos sua boa vontade, e voltou às escadas. com seu entusiasmo diminuído mas a raiva aumentada, Charles subiu os seis lanços de escadas até o vigésimo segundo andar. Ao passar pelo vigésimo primeiro, ele teve de se esgueirar para dar passagem a um grupo de três rapazes que desciam juntos. Os rapazes fitaram-no com uma impudente arrogância. O vigésimo segundo andar era uma mistura de escritórios com paredes de reboco que alternavam com outras divisórias altas. Junto a um bebedouro, Charles encontrou a seta que levava à Divisão dos Programas de Água. Encontrou a mesa da recepcionista, mas estava

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vazia. Um cigarro ardente sugeria que a ocupante do lugar estava nas proximidades, mas, mesmo depois de uma pequena espera, ninguém apareceu. Encorajado pela exasperação, Charles contornou a mesa e entrou no espaço interior do escritório. Alguns dos cubículos estavam ocupados por pessoas que falavam ao telefone ou mantinham-se atarefadas com máquinas de escrever. Charles ficou andando ao acaso até chegar a um homem que carregava uma pilha de publicações oficiais. - Desculpe-me - disse Charles. O homem depositou a pilha de papéis sobre sua mesa e lhe deu atenção. Charles recitou a sua história, já rotineira a essa altura. O homem endireitou a pilha de panfletos, enquanto pensava, e depois voltou-se para Charles. - Este não é o departamento certo para fazer este tipo de reclamações. - Meu Deus! - explodiu Charles. - Este é o Depar- 155

lamento de Água. E eu quero fazer uma reclamação sobre um rio que está sendo poluído, envenenado. - Ei, não se irrite comigo - defendeu-se o homem. - Nós apenas tratamos de controlar as instalações de água, esgotos e congêneres. - Lamento - disse Charles, meio penalizado. - Você não faz idéia do quanto isto é decepcionante. Minha queixa é simples. Sei de uma fábrica que está despejando benzeno num rio. - Talvez fosse interessante o senhor procurar o Departamento de Substâncias Perigosas. - Já procurei. - Oh! - continuou o homem, ainda pensando. Por que o senhor não tenta a Divisão de Execuções, no vigésimo terceiro? Por um momento, Charles olhou para o homem, mudo de pavor. - Departamento de Execuções? - repetiu. - Por que ninguém me disse isso antes? - E eu sei? Charles murmurou mais algumas obscenidades, ofegante, enquanto achava outro lanço de escadas e subia ao vigésimo terceiro andar. Passou pelo Centro de Gerência Financeira, pelo Centro de Pessoal e pelo Centro de Planejamento e Desenvolvimento. Logo depois do banheiro dos homens estava a Divisão de Execuções. Charles entrou. Uma garota negra, com grandes óculos sombreados de , púrpura, levantou os olhos do último romance de Sidney Sheldon. Devia estar num trecho muito interessante, pois não escondeu sua irritação por ser interrompida. Charles disse-lhe o que queria. - Não sei nada sobre isso - disse a moça. - com quem devo falar? - indagou Charles lenta mente. - Não sei - retrucou a moça, voltando ao seu livro. Charles apoiou-se na mesa com a mão esquerda e, com a direita, arrancou o livro das mãos da funcionária. Bateu com ele com tanta força sobre a mesa, que a moça deu um pulo para trás. - Desculpe se desmarquei o lugar onde você estava - disse. - Mas gostaria de falar com seu superior. - A srta. Stevens? - indagou a moça, sem saber quall seria a próxima atitude de Charles. - A srta. Stevens serve. 156

- Hoje ela não está. Charles tamborilou os dedos sobre a mesa, resistindo à tentação de estender a mão e dar uma sacudidela na jovem. - Muito bem. E depois dela qual é a pessoa que manda e que está aqui? - A s rã. Amendola? - Pouco me importa qual seja o nome. Olhando desconfiada para Charles, a jovem levantou-se e desapareceu. Quando retornou, cinco minutos mais tarde, trazia a reboque uma mulher de ar preocupado que aparentava cerca de trinta e cinco anos. - Sou a sra. Amendola, assistente da supervisora. Posso ser-lhe útil? - Sem dúvida, espero que sim - retrucou Charles. - Sou o dr. Charles Martel e estou tentando fazer a denúncia de uma fábrica que está despejando substâncias químicas

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venenosas num rio. Tenho sido mandado de um departamento para outro até que alguém sugeriu que havia um Departamento de Execuções. Mas, ao chegar aqui, a recepcionista foi menos do que cooperativa, de modo que pedi para falar com um supervisor. - Disse a ele que não sabia nada de despejos de produtos químicos - explicou a jovem negra. A sra. Amendola considerou a situação pôr um momento e então convidou Charles a segui-la. Depois de passarem por uma dúzia de cubículos, entraram num pequeno escritório sem janelas e enfeitado com cartazes de viagens. A sra. Amendola indicou com a mão uma poltrona e se espremeu por trás de sua mesa. - O senhor deve entender - disse ela - que não costumamos 'encontrar muita gente com uma queixa semelhante à sua. Mas é claro que isso não desculpa a rudeza com que foi tratado. - Que diabo é que vocês executam, se não for uma coisa que ande poluindo o ambiente? - disse Charles, com hostilidade. Depois de tê-lo levado ao seu escritório para acalmá-lo, Charles teve a impressão de que ela ia mandá-lo a outro departamento. - Nossa tarefa principal - explicou a mulher - é fazer com que as fábricas que manuseiam dejetos tóxicos obtenham devidamente todas as permissões e licenças adequadas. Existe uma lei que as obriga a isso, e nós executa- 157

mos a lei. Às vezes temos que levar um caso ao tribunal e expedir uma multa. Charles mergulhou o rosto entre as mãos e ficou esfregando o couro cabeludo. Aparentemente, a sra. Amendola não percebia o absurdo do que estava expondo. - O senhor está bem? --indagou a sra. Amendola, inclinando-se para a frente em sua cadeira. - Deixe-me ver se entendi o que a senhora está dizendo. A principal tarefa da Divisão de Execuções da Agência de Proteção Ambiental é certificar-se de que toda a papelada foi preenchida. Não tem nada a ver com a Lei da Água Limpa ou de obrigá-la a ser cumprida? - Não é bem assim. O senhor deve se lembrar de que toda a preocupação com o ambiente é relativamente nova. Os regulamentos ainda estão sendo formulados. O primeiro passo consiste em registrar todos os usuários de materiais perigosos e informá-los das regras. Então, e somente então, estaremos na posição de perseguir os violadores. - Quer dizer que, por enquanto, as fábricas inescrupulosas podem fazer o que quiserem. - Também não é bem assim - prosseguiu a sra. Amendola. - Temos um serviço de supervisão que faz parte de nosso laboratório de análises. Sob a atual administração, nosso orçamento foi cortado, e infelizmente o serviço está muito prejudicado, mas é o lugar onde sua queixa deve ser feita. Depois de documentarem uma violação, mandam-na para nós, e nós entregamos o caso a um dos advogados da Agência de Proteção Ambiental. Diga-me, dr. Martel, qual o nome da fábrica que o está preocupando? - Recycle, Ltd., em Shaftesbury. - Por que não verificarmos sua documentação? disse a sra. Amendola erguendo-se de sua cadeira. Charles saiu do pequenino escritório com a mulher e acompanhou-a por um comprido corredor. Ela parou numa porta de segurança e inseriu um cartão de plástico numa fenda. - Agora trabalhamos com um processador de dados muito sofisticado - continuou a sra. Amendola, conservando a porta aberta para Charles -, de modo que temos de ter uma segurança muito intensa. Dentro da sala o ar estava mais frio e mais puro. Não havia cheiro de fumaça de cigarro. Aparentemente, o bemestar do terminal do computador era mais importante do que a saúde dos empregados. A sra. Amendola sentou-se diante 158

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L de um terminal livre e digitou no aparelho RECYCLE, LTD., SHAFTESBURY, NH. Houve uma demora de dez segundos, após a qual o tubo de raios catódicos piscou, brilhando. A Recycle, Ltd. foi descrita na linguagem abreviada do computador, inclusive o fato de que era totalmente propriedade da Breur Chemicals, de Nova Jersey. Então, apareceram relacionados todos os produtos químicos perigosos utilizados na fábrica, seguidos da data das solicitações de permissão ou licença e das datas em que foram concedidas. - Em que produtos químicos o senhor está interessado? - Benzeno, principalmente. - - Aqui está. Produtos químicos tóxicos da Agência de Proteção Ambiental número U019. Tudo parece estar em ordem. Acho que eles não estão infringindo qualquer lei. - Mas eles estão despejando o material diretamente dentro do rio! •- exclamou Charles. - E eu sei que isso éV contra a lei. Os outros ocupantes da sala ergueram os olhos de seus trabalhos, chocados com a explosão de cólera de Charles. Na sala do terminal do computador, falar baixinho como numa igreja era a lei não-escrita. Charles baixou o tom de voz. - Podemos voltar ao seu escritório? A sra. Amendola fez que sim com a cabeça. De volta ao pequeno escritório, Charles adiantou-se e sentou-se na ponta da cadeira. - Sra. Amendola, vou lhe contar toda a história, porque acho que a senhora será capaz de me ajudar. Charles falou sobre a leucemia de Michelle, sobre a morte de Tad Schonhauser de anemia aplástica, de sua descoberta e da confirmação do benzeno no lago e de sua visita à Recycle, Ltd. - Meu Deus! - exclamou a sra. Amendola quando Charles parou. , - A senhora tem filhos? - Sim! -respondeu ela, revelando verdadeiro medo em sua voz. - Então talvez possa entender o que isto está causando em mim - disse Charles. - E talvez possa entender por que quero fazer algo contra a Recycle, Ltd. Estou certo de que uma porção de garotos moram ao longo do Potomac. Mas, evidentemente, preciso de algum auxílio. - O senhor quer que eu envolva a Agência de Prote- 15<?

cão Ambiental no caso - falou a sra. Amendola fazendo uma afirmação, não uma pergunta. - Exatamente. Ou dizer-me como fazê-lo. - Seria melhor que o senhor fizesse sua queixa por escrito. Dirigida a mim! - Isso é fácil. - Que tal uma prova documental? O senhor poderia conseguir isso? - Já tenho a análise da água do lago. - Não, não. Algo da própria fábrica: a declaração de um ex-empregado, registros falsificados, fotos do despejo. Qualquer coisa assim. - Creio que é possível - disse Charles, pensando na última sugestão. Ele tinha uma câmara Polaroid. . . - Se o senhor puder me fornecer uma provai desse tipo, acho que conseguirei fazer com que o Centro de Supervisão a confirme e autorize um exame em grande escala. Assim, depende do senhor. Do contrário, o caso vai ter que esperar sua vez. Ao sair do edifício, Charles experimentava de novo uma sensação de desânimo. Estava agora muito menos confiante em convencer qualquer autoridade a tomar qualquer providência sobre a Recycle, Ltd. Por isso, a idéia de tomar as coisas em suas mãos era uma fantasia cada vez mais agradável. Quanto mais ele pensava na Breur Chemicals, mais zangado ficava com o fato de que um grupo de empresários estúpidos, sentados em círculo nas salas de conferências apaineladas de carvalho, em Nova Jersey, pudesse destruir sua felicidade e roubar-lhe o que ele mais amava. Ao se aproximar do Weinburger, Charles decidiu que telefonaria para a matriz e lhes diria o que pensava deles. Desde que o escândalo de Brighton chegara aos meios de comunicação, que a segurança tinha se intensificado no Weinburger, e Charles teve de bater na maciça porta de vidro, antes que ela se abrisse. Ele foi cumprimentado por Roy, o guarda, que pediu para ver sua identidade. - Sou eu, Roy - falou Charles, acenando a mão na frente do

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rosto do guarda. - O dr. Martel. - São ordens - explicou Roy, ainda com a mão aberta. - Um absurdo administrativo - murmurou Charles, enquanto procurava seu cartão de identidade. - O que virá depois? 160

Roy encolheu os ombros, esperou para ver o cartão que Charles aproximou a cinco centímetros de seu rosto e a seguir afastou-se cerimoniosamente para o lado. Até a srta. Andrews, habitualmente tímida, virou-se, sem honrá-lo com seu tradicional sorriso do tipo "venha-me-dar-uma-palavrinha". Charles livrou-se de seu casaco, ligou para Informações, em Nova Jersey, e discou para a Breur Chemicals. Enquanto esperava, pôs-se a olhar ao redor do laboratório e a imaginar se Ellen ainda estaria ofendida. Não vendo a colega, decidiu que ela devia estar no biotério. Então, a Breur Chemicals atendeu ao telefone. Mais tarde, Charles admitiu que não devia ter telefonado. Havia tido várias más experiências naquela manhã para imaginar como seria tentar falar com uma corporação gigante a respeito de um assunto por ela considerado como uma em nosso

pediu para lhe transmitir a ordem de se apresentar ao escri tório do dr. Ibanez assim que você chegasse. - Mas por que levaram os livros? - perguntou Char lês com o auge de sua ira embotado pelo medo. Ele tanto J detestava quanto temia a autoridade administrativa. Tinhajm sido assim desde o tempo de colégio, quando ele aprendera" que uma decisão arbitrária do gabinete do diretor podia afetar toda a sua vida. E agora a administração havia inva dido o seu mundo e arbitrariamente levado seus relatórios, o que, para Charles, representava o mesmo que tomar um refém'. O conteúdo dos relatórios estava associado em sua mente com o auxílio que ele devia dar a Míchelle, por mais distante que isso estivesse da realidade. - Acho melhor você perguntar isso ao dr. Morrison e ao dr. Ibanez - disse Ellen. - Francamente, eu sabia que isso ia acontecer. Ellen suspirou e sacudiu bruscamente o cabelo, como a afirmar-lhe: "Eu bem que lhe disse". Charles contemplava-a, surpreso com sua atitude. Isso fazia crescer sua sensação de isolamento. . Cansado, ele deixou o laboratório e subiu as escadas de incêndio até o segundo andar. Passou pela familiar série de secretárias, apresentando-se à srta. Verônica Evans pela se gunda vez em dois dias. Embora ela estivesse obviamente i sem fazer nada, aproveitou o tempo para olhar para Charles por cima dos óculos. - Sim? - perguntou ela, como se Charles fosse um servente. Depois disse-lhe que aguardasse num pequeno divã , de couro. Charles não tinha dúvida de que a demora era proposital. Queriam dar-lhe a impressão de que ele não pás sava de um joguete. E o tempo se arrastava sem que ele pudesse decidir qual era a sensação mais forte: raiva, medo ou pânico. Mas ele precisava ter de volta os seus relatórios, i Não fazia idéia se,, tecnicamente, eles eram seus ou se pertenciam ao instituto. Quanto mais tempo passava sentado, menos certeza tinha se os livros contendo detalhes de seu recente trabalho seriam um bom item de barganha. Começou a pensar se Ibanez podia de fato despedi-lo. Tentou imaginar o que faria se tivesse dificuldades em encontrar outra colocação que lhe permitisse fazer pesquisas. Achava-se tão afastado da medicina clínica que nem pensou em voltar a clinicar. E, se ele fosse despedido, continuou a pensar, com um pânico reno vado, se ainda estaria amparado pelo seguro saúde. Era uma 162

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L preocupação muito grande, pois as contas de hospital de Michelle seriam astronômicas. Ouviu-se um discreto zumbido no intercomunicador e a srta. Evans virou-se para Charles, dizendo-lhe imperiosamente: - O diretor o receberá agora. Quando Charles entrou, o dr. Ibanez estava de pé atrás de sua mesa antiga. Seu vulto era iluminado pela luz que entrava por trás, pelas janelas, fazendo com que seu cabelo e seu cavanhaque parecessem de prata polida. Diretamente em frente à mesa achavam-se Joshua Weinburger pai e Joshua Weinburger filho, que Charles tinha conhecido em irregulares e obrigatórias atividades sociais. Embora perto dos oitenta anos, o mais velho parecia mais animado do 'que o mais moço, com vivos olhos azuis. Ele observou Charles com grande interesse. Joshua Weinburger, Jr. era o estereótipo do homem de negócios, impecavelmente trajado, óbvia e extremamente reservado. Relanceou o olhar por Charles com uma mistura de desdém e tédio, retornando quase que imediatamente sua atenção ao dr. Ibanez. Sentado à direita da mesa estava o dr. Morrison, cuja roupa refletia a de Joshua Weinburger, Jr. no que concernia à preocupação com detalhes. Do bolsinho de seu paletó saía um lenço de seda que tinha sido cuidadosamente dobrado e depois casualmente espalhado. - Entre, entre! - ordenou o dr. Ibanez, bem-humorado. Charles aproximou-se da enorme mesa do dr. Ibanez, notando imediatamente a falta de uma quarta cadeira. Acabou ficando de pé entre os Weinburgers e Morrison. Sem saber o que fazer com as mãos, Charles enfiou-as nos bolsos. com sua camisa de tecido barato puída, sua gravata larga e fora de moda e suas calças largas e malpassadas, ele parecia deslocado entre aqueles empresários. - Acho que devemos ir.direto ao assunto - disse o dr. Ibanez. - Os Weinburgers, como co-presidentes da junta de diretores, concordaram amavelmente em nos ajudar a resolver a atual crise. - De fato - disse Weinburger, Jr., virando-se ligeiramente em sua cadeira de modo a olhar para Charles. Apresentava um ligeiro tremor na cabeça e a girava rapidamente 163

numa espécie de arco, para trás e para diante. - Dr. Martel, não faz parte da política da junta de diretores interferir no processo criativo de pesquisa. No entanto, circunstâncias ocasionais nos obrigam a violar esta regra, e a atual crise é uma delas. Acho que o senhor deve saber que o Canceran é uma droga potencialmente importante para a Lesley Pharmaceuticals. Para ser mais franco, a Lesley Pharmaceuticals acha-se em precárias condições financeiras. Nos últimos anos, suas patentes caducaram na linha de antibióticos e tranqüilizantes, e eles precisam desesperadamente de uma nova droga para pôr no mercado. Empenharam seus escassos recursos no desenvolvimento de uma linha de quimioterapia, e o Canceran é o produto dessa pesquisa. Eles têm a exclusividade da patente do Canceran, mas precisam da droga no mercado. Quanto mais cedo, melhor. Charles estudou os rostos dos homens. Evidentemente, não iam despedi-lo sumariamente. A idéia era amaciá-lo, fazê-lo compreender as realidades financeiras, e então convencê-lo a recomeçar o trabalho com o Canceran. Sentiu um luzir de esperança. Os Weinburgers não podiam ter ascendido às suas posições de poder sem inteligência, e Charles começou a formular em sua mente o meio de convencê-los de que o Canceran era um mau investimento, que era uma droga tóxica e que, provavelmente, jamais seria lançada no mercado. - Já sabemos o que o senhor descobriu sobre a toxicidade do Canceran - disse o dr. Ibanez, tirando uma curta baforada de seu charuto e solapando os planos de Charles involuntariamente. - E que os cálculos do dr. Brighton não são inteiramente precisos. - Esta é uma maneira delicada de expor o caso falou Charles, percebendo com terror que lhe arrebatavam seu trunfo. - Aparentemente, todos os dados nos estudos do Canceran

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feitos pelo dr. Brighton foram falsificados. Ele observou a reação dos Weinburgers com o canto dos olhos, esperando uma resposta; mas nada percebeu. - Infelizmente, infelizmente - concordou o dr. Ibanez. - A solução é salvar o que pudermos e continuar em frente. - Mas os meus cálculos sugerem que a droga é extremamente tóxica - argumentou Charles, desesperado. - Tão tóxica, com efeito, que tem de ser ministrada em doses homeopáticas. 164

- Isso não nos interessa -- disse Joshua Weinburger, Jr. - Trata-se de um problema de marketing, e para isso o departamento da Lesley Pharmaceuticals é notável. Eles seriam capazes de vender gelo para os esquimós. Charles estava perplexo de pavor. Nem mesmo fingiam ética. Se o produtov seria ou não útil às pessoas não fazia diferença. Era negócio - um grande negócio. - Charles! - exclamou o dr. Morrison, falando pela primeira vez. - Queremos perguntar-lhe se é capaz de trabalhar na eficácia e na toxicidade do produto simultaneamente. Charles fitou o dr. Morrison com desprezo. - Este critério reduziria a pesquisa indutiva a um puro empirismo. - Não nos interessa o nome que você dê a isso falou o dr. Ibanez com um sorriso. - Queremos apenas saber se pode ser feito. Joshua Weinburger, Jr. riu. Ele gostava das pessoas e das idéias agressivas. E não nos incomodamos com o número de animais de teste que você vai usar - acrescentou o dr. Morrison generosamente. - Isso mesmo - concordou o dr. Ibanez. - Embora recomendemos que use camundongos, já que são consideravelmente mais baratos, você pode usar quantos quiser. O que estamos sugerindo é que sejam feitos estudos da eficácia numa ampla série de dosagens, Na conclusão da experiência, poderiam ser extrapolados novos valores de toxicidade que substituiriam os estudos falsificados feitos pelo dr, Brighton sobre a toxicidade original. Uma coisa simples e que nos pouparia um bocado de tempo! Que tem a dizer, Charles? - Antes que você responda - disse Morrison -, acho que devo avisá-lo de que, se recusar, é do maior interesse do instituto deixar que você vá embora e procurar alguém mais que dedique ao Canceran a atenção que ele merece., Charles olhava de um rosto para o outro. Seu medo e seu pânico tinham desaparecido. Permaneciam a raiva e o desdém. - Onde estão os relatórios de meu laboratório? mdagou ele com a voz cansada. - Bem seguros no meu cofre - retorquiu o, dr. Iba- 165

nez. - São propriedade do instituto, mas você os terá de volta assim que terminar o projeto Canceran. Você sabe, queremos que você se concentre no Canceran e achamos que, se tivesse seus relatórios de volta agora, a tentação poderia ser muito grande. - É impossível enfatizar suficientemente a urgência do projeto - aduziu Joshua Weinburger, Jr. - Mas, como um incentivo adicional, se você tiver feito um estudo preliminar em cinco meses, nós lhe daremos uma bonificação de dez mil dólares. - Eu diria que é muita generosidade - falou o dr. Ibafiez. - Mas você não tem que decidir agora. De fato, concordamos em lhe dar vinte e quatro horas. Não queremos que se sinta coagido. Mas, só para que saiba, estaremos já à procura de um substituto. Até então, dr. Charles Martel. Enojado, Charles girou sobre seus calcanhares e se dirigiu para a porta. Ao alcançá-la, o dr. Ibafiez chamou: -• Mais uma coisa. A junta de diretores e a administração desejam transmitir-lhe seu pesar pelo caso de sua filha. Fazemos votos para que ela se recupere rapidamente. A propósito, o plano de saúde do instituto só funciona enquanto o senhor estiver ativamente empregado. bom dia, doutor. Charles teve

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vontade de gritar. Em vez disso, percorreu toda a extensão do departamento administrativo e se lançou com estrépito pelas escadas de incêndio rumo ao seu laboratório; mas, uma vez ali, não sabia se queria ficar. Pela primeira vez sentia que fazer parte do Instituto Weinburger era uma desgraça. Odiava o fato de que já sabiam até do caso de Michelle. Acima de tudo, estavam usando a doença de Michelle como uma alavanca contra ele. Era uma afronta. Meu Deus! Seu olhar percorreu o laboratório, seu lar nos últimos oito anos. Conhecia cada objeto de vidro, cada instrumento, cada frasco de reagente. Não parecia justo que pudesse ser rudemente arrancado daquele ambiente por um capricho, especialmente agora qu£ estava fazendo tanto progresso. Seus olhos baixaram sobre a cultura que ele preparara com as células leucêmicas de Michelle. com grande esforço, debruçou-se sobre o incubador, contemplando as fileiras de tubos de vidro cuidadosamente dispostos. Parecia estar progredindo bem, e ele experimentou uma sensação necessária de satisfação. Até onde podia afirmar, seu processo de isolar e aumentar um antígeno canceroso parecia funcionar tão bem 166

com as células humanas quanto com as dos animais. Como já estava na hora do próximo passo, Charles arregaçou as mangas e enfiou a gravata por dentro da camisa. O trabalho era o anestésico de Charles, e ele dedicou-se à tarefa. Afinal de contas, dispunha de vinte e quatro horas antes de curvarse às exigências da administração. Ele sabia - mas não queria admitir - que tinha de se render, pelo bem de Michelle. Realmente, não lhe restava outra opção. L. 167

Regressando do Hospital Beth Israel, onde fizera uma visita inútil a Marge Schonhauser, Cathryn sentia que estava sendo levada aos limites de sua resistência. Imaginava que Marge devia estar muito mal, caso contrário não teria sido internada, mas não estava preparada para o que encontrara. Aparentemente, um fio vital havia se partido no cérebro de Marge quando Tad falecera, pois ela caíra num profundo torpor, recusando-se a comer ou mesmo a dormir. Cathryn havia ficado sentada, calada, junto a Marge, até que uma sensação de tensão a obrigara a se retirar. Era como se a depressão de Marge fosse contagiosa. Cathryn correu para o Hospital Pediátrico, passando do infortúnio de uma tragédia para o início de outra. Enquanto subia no elevador para o Anderson 6, imaginava se o que tinha acontecido a Marge poderia acontecer a ela ou mesmo a Charles. Charles era um médico, e ela devia saber que ele estava mais capacitado a lidar com esse tipo de realidade. No entanto, o comportamento dele estava longe de inspirar confiança. Por mais desagradáveis que lhe fossem os hospitais e as doenças, Cathryn procurava preparar-se para o futuro. O elevador chegou ao Anderson 6, e Cathryn lutou para alcançar as portas antes que se fechassem. Estava impaciente para voltar para junto de Michelle, porque a menina relutara muito em deixá-la sair após o almoço, prometendo-lhe que estaria de volta dentro de meia hora. Infelizmente, fazia quase uma hora que ela saíra. Michelle havia-se agarrado a Cathryn naquela manhã, depois que Charles fora embora, insistindo em dizer que o pai estava zangado com ela. Por mais que tentasse, Cathryn não conseguira tirar aquele pensamento da cabecinha da menina. Cathryn abriu a porta do quarto, esperando que Mícnelle estivesse cochilando. No princípio talvez estivesse 169

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mesmo, pois mantinha-se imóvel. Mas então ela reparou que a menina havia chutado as cobertas e escorregado para baixo, na cama, com uma das pernas dobrada sob ela. Da porta, ela podia ver que o peito de Michelle arquejava violentamente e, pior que tudo, que seu rosto apresentava uma alarmante coloração azulada, no meio da qual sobressaíam os lábios, de uma cor marrom. Correndo para o leito, Cathryn agarrou Michelle pelos ombros. - Michelle - gritou ela, sacudindo a menina. - Que é que você tem? Os lábios de Michelle se moveram e suas pálpebras se entreabriram, trêmulas, mas só se via o branco dos olhos, que estavam revirados para cima daá órbitas. - Socorro! - gritou Cathryn, 'saindo para o corredor. - Socorro! A enfermeira encarregada saiu do posto, seguida por uma atendente. De um quarto além do de Michelle veio uma , outra enfermeira, diplomada. Todas convergiram rapidamen-i te para o quarto da garota, passando como um raio por Cathryn, petrificada pelo pânico. Uma das enfermeiras ficou de um dos lados da cama, a segunda do outro, e a terceira, aos pés do leito. - Faça uma chamada de emergência -- gritou a enfer meira encarregada. A enfermeira que estava aos pés da cama correu para o inferfone e, aos berros, pediu para a atendente no posto das enfermeiras dar o sinal de emergência. Enquanto isso, a enfermeira encarregada pôde sentir um fio de pulso. - Parece uma taquicardia ventricular - disse. - O coração está batendo tão rápido que é difícil perceber as pulsações isoladas. - Concordo - falou a outra enfermeira, colocando o manguito do aparelho de pressão em tom o do braço de Michelle. - Ela respira, mas está cianótica - observou a enfermeira encarregada. - Devo fazer respiração boca a boca? - Não sei - retrucou a segunda enfermeira, bom beando o aparelho de pressão. - Talvez ajude a combater a cianose. A terceira enfermeira voltou para junto do leito e esticou a perna dobrada de Michelle enquanto a encarregada se 170

debruçava sobre a menina, apertava-lhe o nariz, colocava sua boca sobre a dela e soprava. - Consigo pegar a pressão - disse a segunda enfermeira. - Seis por quatro, mas está variando. A enfermeira encarregada continuava a respirar por Michelle, mas a própria respiração rápida da menina tornava o processo difícil. - Acho que estou prejudicando mais do que ajudando. É melhor eu parar. Cathryn continuava colada à parede, aterrorizada pela cena que se desenrolava à sua frente, com medo de se mexer para não atrapalhar. Não tinha idéia do que estava acontecendo, embora soubesse que era algo de ruim. Onde estava Charles? Quem chegou primeiro foi uma médica residente. Veio tão depressa pelo saguão que precisou se segurar no portal para não cair no chão de vinil encerado, dirigindo-se diretamente para á cama e segurando o pulso de Michelle. - Acho que ela está com taquicardia ventricular disse a enfermeira encarregada. - Ela tem leucemia. Mieloblástica. É o segundo dia de tentativa de indução. - Algum antecedente cardíaco? - perguntou a médica residente, curvando-se e levantando as pálpebras de Michelle. - Pelo menos as pupilas estão bem. As três enfermeiras se entreolharam. - Não achamos que ela tenha antecedentes cardíacos. Na ficha não consta nada - falou a enfermeira encarregada. - Pressão arterial? - perguntou a residente. - Da última vez estava seis por quatro, mas variando - observou a segunda enfermeira. - Taquicardia ventricular - confirmou a residente. - Afaste-se um segundo. A médica fechou o punho e desfechou um violento murro no estreito tórax de Michelle, acompanhado de um som cavo que fez Cathryn estremecer. Um residente-chefe de aparência muito jovem chegou, seguido de dois outros, empurrando um carrinho cheio de todos os tipos de apetrechos médicos e coroado com instrumentos eletrônicos. A médica residente fez uma concisa explanação da

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situação de Michelle, enquanto as enfermeiras adaptavam os eletrodos do eletrocardiógrafo às extremidades da menina. Debruçando-se sobre uma das outras enfermeiras, a en- L 171

carregada lhe-disse que chamasse o dr. Keítzman pelo sistema de alto-falantes. A caixa eletrônica em cima do carrinho começou a "vomitar" uma infindável tira de papel quadriculado sobre o qual Cathryn podia ver os rabiscos vermelhos de um eletrocardiograma. Os médicos se reuniram em tom o do aparelho, esquecendo momentaneamente Michelle. - Taquicardia ventricular - disse o residente-chefe. - com a dispnéia e a cianose, é óbvio que ela está hemodinamicamente comprometida. Que significa isso, George? Um dos outros residentes levantou os olhos, surpreso. - Significa que devemos cardiovertê-la imediatamente... acho. - Você está certo - concordou o residente-chefe. Mas vamos aplicar um pouco de Lidocaína. Vejamos, a garota deve pesar cerca de cinqüenta quilos, não? - Um pouco menos - disse a médica residente. - Muito bem, cinqüenta miligramas de Lidocaína. Apliquemos também um miligrama de atropina, para o caso de ela entrar em bradicardia. A equipe funcionava eficientemente. Enquanto um dos residentes aplicava os medicamentos, outro pegava os eletrodos em placa e o terceiro ajudava a colocar Michelle em posição. Uma placa foi colocada sob as costas de Michelle, a outra na frente, sobre o tórax. - Muito bem, afastem-se - falou o residente-chefe. - Para começar, vamos empregar um choque de cinqüentajÉ watts por segundo, programado para se destinar à onda-R.f T ' i La vai. i Ele comprimiu um botão e, após uma pequena demora,! o corpo de Michelle se contraiu, afastando com um salto osf braços e as pernas da superfície da cama. Cathryn contemplava o espetáculo com horror, enquanto os médicos se debruçavam sobre a máquina, ignorando a violenta reação da menina. Podia ver os olhos da garota desmesuradamente abertos e cheios de espanto, e sua cabeça erguer-se da cama. Felizmente, sua cor retornava rapidamente ao normal.

. - Nada mau! - exclamou o residente-chefe examinando a tira de papel do eletrocardiagrama que saía do aparelho. - John, você está ficando bom nisso - concordou a médica residente. - Podia pensar em viver disso. Todos os médicos riram e se voltaram para Michelle. 172

O dr. Keitzman chegou, ofegante, com os mãos metidas nos bolsos de seu longo avental branco. Encaminhou-se Diretamente para a cama e examinou rapidamente o corpo de Michelle. Puxou a mão dela e pôs-se a procurar o pulso. - Você está bem, mocinha? - perguntou ele, apanhando seu estetoscópio. Michelle acenou com a cabeça, mas não falou. Parecia atordoada. Cathryn observou que John, o residente-chefe, fazia um resumo do acontecido num jargão médico incompreensível para ela. O lábio superior do dr. Keitzman se arregaçou num espasmo característico, ao mesmo tempo erri que se debruçava sobre Michelle, auscultando seu tórax. Satisfeito, examinou a tira de papel do eletrocardiograma, que lhe era oferecida por John. Naquele momento, divisou Cathryn encostada à parede. Keitzman relanceou o olhar inquisitivamente para a enfermeira encarregada. Esta, acompanhando seu olhar, encolheu os ombros. - Não sabíamos que ela estava aqui - disse, se defendendo. O médico se dirigiu para Cathryn e colocou uma das mãos em seu ombro. - E a senhora, sra. Martel? Está bem? Cathryn tentava falar, porém sua língua não queria cooperar;

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de modo que limitou-se a acenar com a cabeça, conforme fizera Michelle. - Lamento que tenha presenciado tudo isso. Michelle parece estar ótima, e não há dúvida de que nada sentiu. Mas sei que este tipo de coisa é chocante. Vamos um instante até o saguão. Gostaria de lhe falar - disse o dr. Keitzman. Cathryn esticou-se para olhar Michelle por cima do ombro do médico. - No momento ela está bem - assegurou-lhe ele. Depois, voltando-se para a enfermeira encarregada, disse: - Estarei aí fora. Quero um monitor cardíaco aqui, e gostaria de ouvir um cardiologista. Veja se a dra. Brubaker pode vir imediatamente. - Gentilmente, o dr. Keitzman levou Cathryn para o corredor. - Vamos até o posto das enfermeiras; poderemos falar ali. O dr. Keitzman conduziu Cathryn através do movimentado corredor até o quarto das papeletas. Havia ali mesas de fórmica, cadeiras, dois ditafones e as imponentes prateleiras 173

das papeletas. O médico puxou uma cadeira para Cathryn, e ela sentou-se, agradecida. - Deseja beber alguma coisa? - perguntou o dr. Keitzman. - Água? - Não, muito obrigada - respondeu Cathryn, nervosa. Os modos extremamente graves do homem constituíam fonte de uma nova ansiedade, e ela sondou-lhe o rosto em busca de uma pista. Era difícil ver seus olhos através das grossas lentes dos óculos. A enfermeira encarregada enfiou a cabeça no vão da porta. - A dra. Brubaker deseja saber se pode ver a paciente em seu consultório. O rosto do dr. Keitzman se contorceu durante um segundo, enquanto ele ponderava. - Diga-lhe que a paciente acaba de sofrer uma crise de taquicardia ventricular e que eu preferiria que ela a visse imediatamente, sem que tenha que ser levada por aí. - OK - replicou a enfermeira. Keitzman retornou a Cathryn com um suspiro. - Sra. Martel, acho que devo, falar-lhe com toda a franqueza. Michelle não vai nada bem. E não estou me referindo especificamente a esta última crise. - Que foi esta crise que ela teve? - perguntou Cathryn, não gostando do tom inicial da conversa. - Seu coração acelerou - disse o dr. Keitzman. Em geral é a parte superior do coração que inicia os batimentos - falou o médico, fazendo um gesto esquisito paia tentar ilustrar o que estava dizendo. - Mas, por qualquer razão, a parte inferior do coração de Michelle assumiu o comando. Por quê? Ainda não sabemos. De qualquer modo, seu coração começou subitamente a bater tão depressa que não teve tempo de se encher adequadamente, de modo que o bombeamento era insuficiente. Mas isso parece estar controlado. O que me preocupa é que ela parece não estar reagindo à quimioterapia. - Mas ela mal começou! -• exclamou Cathryn. A última coisa que ela queria era perder a esperança. -r- Isso é verdade - concordou o dr. Keitzman. - No entanto, o tipo de leucemia de Michelle reage geralmente nos primeiros i dias. Além disso, seu caso é o mais agressivo que já vi. Ontem nós lhe aplicamos uma droga muito forte e muito eficiente chamada Daunorubicin. Esta manhã, quando procedemos à contagem de suas células sangüíneas, fiquei 174 4

chocado ao ver que quase não houve efeito sobre as células leucêmicas. Isso é muito incomum, embora aconteça ocasionalmente. Assim, decidi tentar algo um pouco diferente. Habitualmente, damos uma segunda dose deste medicamento no quinto dia. Em vez disso, apliquei-lhe outra dose hoje, juntamente com Thioguanine e Cytarabine. - Por que o senhor está me dizendo essas coisas? perguntou a moça, certa de que o dr. Keitzman sabia que ela não entendia a maior parte do que ele estava falando. - Devido à reação de seu marido ontem.

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E devido ao que o dr. Wiley e eu lhe dissemos. Receio que as emoções de seu marido interfiram e ele queira interromper a medicação. - Mas se ela não está agindo, talvez devesse ser interrompida - argumentou Cathryn. - Sra. Martel, Michelle é uma criança gravemente enferma. Esses remédios constituem sua única chance de sobrevivência. Sim, é decepcionante que até agora eles tenham se mostrado ineficazes. Seu marido tem razão em dizer que as chances dela são poucas. Mas sem a quimioterapia ela não terá chance alguma. Cathryn sentiu a pungente dor da culpa; devia ter trazido Michelle para o hospital semanas antes. O dr. Keitzman pôs-se de pé. - Espero que a senhora compreenda o que estou dizendo. Michelle necessita de sua força. Agora quero que telefone a seu marido e lhe diga para vir aqui. Ele tem de saber o que aconteceu. Mesmo antes que o contador automático de radioatividade começasse a registrar os elétrons que emanavam da série de frascos, Charles já sabia que os nucleotídeos radioativos tinham sido absorvidos e incorporados à cultura de tecidos das células leucêmicas de Michelle. Ele se achava agora nos últimos estágios do preparo de uma solução concentrada de uma proteína de superfície que diferenciasse as células leucêmicas de Michelle de suas células normais. Esta proteína era estranha ao corpo de Michelle, mas não fora rejeitada devido ao misterioso fator bloqueador que Charles sabia existir no sistema da menina. Era este fator bloqueador que Charles desejava investigar. Se ao menos soubesse algo sobre o método de ação do fator bloqueador, talvez ele pudesse ser inibido ou eliminado. Charles estava frustrado por 175

se ver tão perto de uma solução e ter de parar os trabalhos. Ao mesmo tempo, sabia que seria provavelmente um projeto de cinco anos, sem nenhuma garantia de sucesso. Fechando a tampa do incubador da cultura de tecido, ele se encaminhou para sua mesa, imaginando vagamente por que Ellen não tinha aparecido. Charles queria discutir o projeto Canceran com alguém que entendesse o assunto, e ela era a única pessoa em quem ele confiava. Sentou-se, procurando não pensar na recente e humilhante reunião com o dr. Ibanez e os Weinburgers. Em vez disso, recordava a malograda visita aos escritórios da Agência de Proteção Ambiental, o que não o fazia sentir-se muito melhor. Todavia, ria-se de sua ingenuidade em pensar que podia entrar numa agência do governo e esperar que ela fizesse alguma coisa. Imaginava se haveria algum meio de conseguir uma prova fotográfica do despejo da Recycle. Era duvidoso, mas ele ia tentar. Se a responsabilidade da obtenção da prova fosse sua, talvez ele devesse acionar diretamente a Recycle em vez de esperar que a Agência de Proteção Ambiental o fizesse. Pouco entendia de leis, mas lembrou-se de que havia uma fonte de informação aberta para ele. A firma de advocacia contratada pelo Instituto Weinburger. A gaveta mais baixa à esquerda era o depósito das miscelâneas e panfletos de Charles. Lá no fundo ele encontrou o que procurava: um livrinho vermelho intitulado Bem-vindo a bordo: Este é o seu Instituto do Câncer Weinburger. Nas costas havia uma lista de números de telefones importantes. Na seção de serviços estava Hubbert, Hubbert, Garachnik e Pearson, State Street, número l, seguido de vários números de telefone. Ele discou o primeiro. Ao se identificar, Charles foi posto imediatamente em contato com o escritório do sr. Garachnik. Sua secretária foi particularmente cordial, e em poucos minutos Charles viu-se falando com o próprio sr. Garachnik. Aparentemente, o Instituto Weinburger era um cliente importante. - Preciso de uma informação - disse Charles quanto a acionar uma companhia que despeja um dejeto tóxico dentro de um rio. - Seria melhor - replicou o sr. Garachnik - que um de nossos

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advogados ligados a questões ambientais tratasse do assunto. Contudo, se o que o senhor quer saber são generalidades, talvez eu possa ajudar. O Instituto Weinburger está interessado em alguma ação sobre poluição ambiental? 176 ^ - Não. Infelizmente não. Estou interessado nisso pessoalmente. - Ah, sei - retrucou o sr. Garachnik, esfriando o tom de sua voz. - Hubbert, Hubbert, Garachnik e Pearson não tratam dos problemas legais pessoais dos empregados do Weinburger, a não ser que se faça um acordo especial com a pessoa interessada. - Isso pode ser arranjado - retrucou Charles. Mas já que consegui tê-lo ao telefone, por que não me dá apenas uma idéia sobre o processo? Seguiu-se uma pausa. O sr. Garachnik queria que Charles sentisse sua situação de inferioridade no colóquio. - A ação pode ser movida individualmente ou como manifestação de um grupo. No caso da ação individual, precisa-se de danos específicos, e se. . . - Eu sofri danos! - interrompeu Charles. - Minha filha contraiu leucemia! - Dr. Martel - falou o sr. Garachnik com irritação. - Sendo médico, o senhor devia saber que seria extremamente difícil estabelecer uma relação de causa e efeito entre o despejo e a leucemia. No entanto, numa ação em grupo, com o objetivo de se conseguir um mandado contra a fábrica, não há necessidade de danos específicos. O que o senhor precisa é arranjar a participação de trinta ou quarenta pessoas. Se o senhor quiser ir mais além com este caso, sugiro que entre em contato com Thomas Wilson, um de nossos mais jovens advogados. Ele tem um interesse particular em causas que envolvam questões ambientais. - Importa que a companhia seja em New Hampshire? - perguntou Charles rapidamente. - Não, a não ser o fato de que o caso deve ser levado a um tribunal em New Hampshire - explicou o sr. Garachnik, evidentemente impaciente por pôr fim à conversa. - E se ela for propriedade de uma corporação em Nova Jersey? - Isso pode ou não criar dificuldades - falou o advogado, mostrando-se subitamente mais interessado. - De que fábrica em New Hampshire o senhor está falando? - De uma chamada Recycle, Ltd., em Shaftesbury. - Que é propriedade da Breur Chemicals, de Nova Jersey? - aduziu rapidamente o sr. Garachnik. -- Certo - replicou Charles, surpreso. - Como é que o senhor sabe? 177

- Porque, de vez em quando, indiretamente represen- -m tamos a Breur Chemicals. E se o senhor não sabe, a Breur l Chemicals é a dona do Instituto Weinburger, embora o di- J rija como uma organização não-lucrativa. I Charles ficou estupefato. I O sr. Garachnik continuou: -•• - A Breur Chemicals fundou o Instituto Weinburger l ao entrar na indústria dos medicamentos, quando comprou a I Lesley Pharmaceuticals. Na ocasião fui contra a idéia, mas j Weinburger, Jr. estava comprometido com a decisão. Eu ti nha medo de uma ação antitruste, porém ela jamais se con cretizou, dada a condição não-lucrativa do instituto. Em qualquer caso, dr. Martel, indiretamente o senhor trabalha para a Breur Chemicals. Assim, seria melhor pensar duas vezes antes de processar alguém. Charles desligou o telefone muito lentamente. Não pó dia acreditar no que tinha acabado de ouvir. Ele jamais ti nha se importado com o lado financeiro do instituto, a não ser com o fato de que ele lhe proporcionava espaço e equi pamento para pesquisar. Mas agora ,sabia que estava traba lhando para um grupo que afinal era o responsável pelo despejo de um dejeto cancerígeno num rio, ao mesmo tempo em que mantinha um instituto de pesquisa supostamente interessado na cura do câncer. Quanto ao Canceran, a companhia matriz controlava tanto a

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firma farmacêutica que tinha as patentes quanto a firma de pesquisas escolhidas para garantir sua eficiência. Não era de admirar que Weinburger estivesse tão interessado no Canceran! O telefone irritou os nervos tensos de Charles ao tocar estridentemente sob sua mão esticada. Considerando-o a origem da recente e terrível revelação, Charles hesitou em atendê-lo. com certeza era a administração, decidida a importuná-lo com mais pressões e mais falsidades. De repente, Charles lembrou-se de Michelle. A chamada podia ser sobre sua filha. Arrancou o receptor do gancho e colocou-o ao ouvido. Ele estava certo. Era Cathryn, e sua voz tinha o mesmo tom duro do dia anterior. Seu coração subiu-lhe à garganta. - Está tudo bem? - Michelle não vai bem. Houve uma complicação. É melhor você vir até aqui. Charles pegou o casaco e saiu correndo do laboratório. II 178

Na entrada principal, bateu com a mão na maciça porta de vidro, impaciente para que ela se abrisse. -• Calma! Calma! - disse a srta. Andrews, comprimindo, sob sua mesa, o botão que soltava a porta. Charles esgueirou-se antes que a porta se abrisse completamente, desaparecendo de vista. - Que haverá com ele? - indagou a srta. Andrews, apertando o botão que fechava a porta. - Está maluco ou o quê? Roy ajustou seu coldre surrado e deu de ombros. Charles concentrava-se em correr para não pensar no que acontecera com Michelle. Mas, após cruzar o rio, Charles viu-se preso no tráfego da Massachusetts Avenue. Avançando pouco a pouco, não podia deixar de imaginar o que iria encontrar quando chegasse no Hospital Pediátrico. As palavras de Cathryn continuavam a ecoar em sua cabeça: "Michelle não vai bem. Houve uma complicação". O pânico causava-lhe um nó no estômago. Alcançando o hospital, ele correu e forçou sua entrada num elevador já lotado. Irritantemente, o elevador parava em todos os andares. Por fim, chegou ao sexto, e Charles saiu correndo para o quarto de Michelle. A porta estava quase fechada. Ele entrou sem bater. Uma elegante mulher de .cabelos louros acabava de levantar a cabeça de sobre o peito de Michelle. Estivera auscultando o coração da menina. Do outro lado do leito achavase um jovem residente, vestindo as roupas do hospital. Charles olhou de relance para a mulher e fitou sua filha com uma empatia que dominava todas as outras emoções. Queria agarrá-la e protegê-la, mas receava que ela estivesse muito frágil. Seus olhos experientes examinaram-na rapidamente, e ele pôde detectar uma piora em seu estado desde aquela manhã. Havia um tom esverdeado no seu rosto, uma mudança que Charles habituara-se a associar, durante seu treinamento médico, à proximidade da morte. Suas faces estavam cavadas, com a pele distendida sobre os ossos malares. Apesar de ter um tubo de injeção endovenosa em cada braço, ela parecia desidratada devido aos vômitos e à febre alta. Michelle, estendida de costas, fitou o pai com os olhos \cansados. A despeito de seu desconforto, ela conseguiu um fraco sorriso, e, por breve momento, seus olhos brilharam com aquela luz incrível de que Charles se lembrava. - Michelle -- falou Charles baixinho, debruçando-se 179

de modo que seu rosto ficasse junto do dela. - Como se sente? - Ele não sabia o que mais dizer. Os olhos de Michelle se anuviaram, e a menina começou a chorar. - Quero ir para casa, paizinho. - Ela relutava em admitir o quanto se sentia mal. Mordendo o lábio, Charles ergueu os olhos para a mulher que estava junto dele, embaraçada por sua emoção. tornando a olhar

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para Michelle, ele pôs a mão em sua testa e alisou para trás o espesso cabelo negro. A testa da menina estava quente e úmida. A febre tinha subido. Michelle estendeu o braço e segurou a mão do pai. - Falaremos sobre isso - disse Charles, com o lábio tremendo. - Desculpe-me - falou a mulher. - O senhor deve ser o dr. Martel. Eu sou a dra. Brubaker. O dr. Keitzrnan me pediu para ver Michelle. Sou cardiologista. Este é o dr. John Hershing, nosso residente-chefe. Charles não fez esforço para responder às apresentações. - Que aconteceu? - Ela teve uma crise aguda de taquicardia ventricular - disse o dr. Hershing. - Nós imediatamente fizemos a cardioversão e ela está se mantendo estável. Charles olhou para a dra. Brubaker. Era uma mulher alta, bonita, com feições distintas. Seu cabelo louro estava apanhado no alto da cabeça, formando um coque frouxo. - O que provocou a arritmía? - perguntou Charles, ainda segurando a mão da filha. - Ainda não sabemos - disse a dra. Brubaker. -- Em primeiro lugar, penso numa reação idiossincrática à dupla dose do Daunorubicin, ou a uma manifestação de seu problema básico: algum tipo de miopatia infiltrativa. Mas gostaria de acabar meu exame, se puder. O dr; Keitzman e sua mulher estão no quarto das papeletas, no posto das enfermeiras. Acho que estão esperando pelo senhor. Charles baixou o olhar para Michelle: - Voltarei logo, queridinha. - Não vá, paizinho - implorou Michelle. - Fique comigo. - Não irei longe - retrucou Charles, desfazendo delicadamente o aperto de mão da filha. Ele estava preocupado com a declaração da dra. Brubaker de que Michelle tinha 180

EU recebido uma dose dupla de Daunorubicin, Isso parecia irregular. Cathryn divisou Charles antes que este a visse e levantou-se de um salto, atirando os braços em tom o de seu pescoço. - Charles, estou tão contente por você estar aqui. E aninhou o rosto em seu pescoço. -- isso é difícil demais para mim. Segurando Cathryn, Charles relanceou os olhos em tom o do pequeno quarto das papeletas. Q dr. Wiley achava-se encostado na mesa, os olhos postos no chão. O dr. Keitzman, sentado diante dele, mantinha as pernas cruzadas e as mãos unidas sobre os joelhos. Parecia estar examinando o tecido de suas calças frouxas. Ninguém falava, mas Charles sentia-se nervoso, olhando de um médico para o outro. A cena parecia muito artificial, muito teatral. Algo estava para acontecer, e Charles detestava as encenações. - Então? - perguntou ele, desafiador. - Que está acontecendo? Wiley e Keitzman começaram a falar ao mesmo tempo, mas pararam. - É a respeito de Michelle -. disse por fim o dr. Keitzman. - Era o que eu esperava - falou Charles. Seu estômago deu outro nó, dessa vez mais apertado. - Ela não está reagindo conforme esperávamos disse o dr. Keitzman com um suspiro, olhando pela primeira vez para o rosto de Charles. - As famílias dos médicos são sempre os casos mais difíceis. Acho que vou chamar isso de lei de Keitzman. Charles não estava com disposição para rir. Ele fitou o encologísta, observando o rosto do homem contorcer-se num de seus espasmos característicos. - Que história foi essa de dose dupla de Daunorubicin? Keitzman engoliu em seco. - Aplicamos-lhe a primeira dose ontem, mas ela não reagiu. Dêmos-lhe outra hoje. Temos de destruir suas células leucêmicas circulatórias. - Este não é o procedimento habitual, é? - indagou bruscamente Charles. - Não - respondeu o dr. Keitzman, hesitante -, mas Michelle não é um caso habitual. Eu quis experimentar. .. 181

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- Experimentar! - gritou Charles. - Escute* dr. Keitzman - continuou ele, exaltado, apontando um dedo para o rosto do cancerologista. - Minha filha não está aqui para que o senhor faça experiências. O que o senhor está realmente dizendo é que as chances de remissão são tão pequenas que o senhor está pronto a fazer experiências. - Charles - interrompeu Cathryn. - Isso não é justo. Charles ignorou a intervenção da mulher. - A questão, dr. Keitzman, é que o senhor está tão certo de que ela se acha no fim, que abandonou a quimioterapia ortodoxa. Bem, não tenho certeza de que suas experiências não estejam reduzindo ainda mais as suas chances. Que tem a dizer sobre este problema cardíaco? Ela nunca sofreu do coração. O Daunorubicin não provoca problemas cardíacos? - Sim - concordou o dr. Keitzman -, mas geralmente não tão depressa. Não sei o que pensar sobre esta complicação, e foi por isso que pedi que uma cardiologista a examinasse. - Bem, acho que é o remédio - insistiu Charles. Concordei com a quimioterapia, mas pensei que o senhor fosse usar as doses padronizadas. Não sei se vou concordar em duplicar o tratamento usual. - Se é esse o caso, então talvez o senhor deva procurar outro oncologista - disse o dr. Keitzman, cansado, levantando-se e juntando suas coisas. - Ou apenas tratar o senhor mesmo do caso. - Não! Por favor! -• exclamou Cathryn, soltando Charles e agarrando firme o braço do dr. Keitzman. - Por favor. Charles está apenas transtornado. Por favor, não nos abandone. - Ela voltou-se desvairadamente para o marido. - Charles, o remédio é a única chance de Michelle. - E tornando ao dr. Keitzman: - Não estou certa? - É verdade - respondeu o médico. - Aumentar a quimioterapia, mesmo de um modo incomum, é a única esperança para uma remissão, e temos de conseguir essa remissão rapidamente, se pretendemos que Michelle sobreviva a essa crise aguda. - Que propõe você, Charles? '•- falou o dr. Wiley. - Não fazer nada? - Ela não vai entrar em remissão - retrucou Charles asperamente. - Você não pode dizer isso - continuou o dr. Wiley. 182

- Charles, é a única chance dela - disse Cathryn. Charles recuou, contemplando os outros que estavam dentro do quarto como se eles fossem obrigá-lo a submeter-se. - Como você acha que ela deve ser tratada? - perguntou o dr. Wiley. - Não podemos fazer nada, Charles - implorou Cathryn. O cérebro de Charles gritava para que ele fosse embora. Dentro do hospital, junto de Michelle, ele não podia pensar racionalmente. A idéia de causar mais sofrimento a Michelle era uma tortura para ele, embora a de apenas permitir que ela morresse sem lutar fosse igualmente terrível. O dr. Keitzman estava sendo sensato ao dizer que, se houvesse uma chance, poder-se-ia conseguir uma remissão. Mas se esta fosse impossível, eles estavam simplesmente torturando uma criança que ia morrer. Meu Deus! Charles virou-se abruptamente e saiu do quarto. Cathryn correu atrás dele. - Charles! Aonde vai você? Charles, não vá! Por favor. Não me abandone! Finalmente, ao chegarem às escadas, ele voltou-se e agarrou Cathryn pelos ombros. - Aqui eu não consigo pensar. Não sei o que é certo. Cada alternativa é tão ruim quanto a outra. Já passei por tudo isso antes. A familiaridade não tom a as coisas mais fáceis. Tenho que me recompor. Desculpe. com uma sensação de impotência, Cathryn viu-o passar pela porta e desaparecer. Ela ficou sozinha no movimentado corredor. Sabia que, se fosse preciso, tomaria conta da situação, mesmo que Charles fosse incapaz de fazê-lo. Era preciso, pelo bem de Michelle. Assim pensando, voltou para o quarto das papeletas.- - O estranho - disse Cathryn, a voz trêmula - é que os senhores dois anteciparam tudo isso. - Infelizmente temos alguma experiência com famílias de médicos - falou o dr.

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Keitzman. - É sempre difícil. - Mas geralmente não tão difícil assim - acrescentou o dr. Wiley. - Estivemos conversando enquanto a senhora saiu prosseguiu o dr. Keitzman. - Achamos que alguma coisa deve ser feita para assegurar a continuidade do tratamento de Michelle. 183

- Algum tipo de garantia - disse Wiley. - Principalmente porque o tempo é da máxima importância - falou Keitzman. - A simples interrupção do tratamento por um dia ou dois pode significar a diferença entre o sucesso e o fracasso. - Não estamos dizendo que as preocupações de Charles sejam infundadas - assegurou o dr. Wiley. - Absolutamente não - concordou o dr. Keitzman. - No caso de Michelle, com células leucêmicas circulantes que não reagem ao Daunorubicin, a perspectiva não é das melhores. Mas acho que ela merece uma chance, de qualquer modo. A senhora não concorda, sra. Martel? Cathryn olhou para os dois médicos. Estavam tentando sugerir algo, porém ela não fazia idéia do que fosse. - Claro - respondeu ela. Como poderia discordar? Claro que Michelle merecia todas as chances. - Há meios de fazermos com que Charles não interrompa arbitrariamente o tratamento de Michelle - disse o dr. Wiley. - Basta evocar os poderes, se eles se fizerem necessários - falou o dr. Keitzman. - Mas em todo caso é bom tê-los à mão. Seguiu-se uma pausa. Cathryn teve a nítida impressão de que os médicos esperavam que ela respondesse, mas ela não sabia do que estavam falando. - Deixe-me dar-lhe um exemplo - falou o dr. Wiley inclinando-se para a frente em sua cadeira. - Suponhamos que uma criança necessite desesperadamente de uma transfusão. Se a transfusão não for feita, a criança vai morrer. Além disso, suponhamos que um dos pais seja uma testemunha-de-jeová. Haverá, então, um conflito entre os pais quanto ao tratamento adequado ao filho. Os médicos, naturalmente, reconhecem a necessidade da transfusão para salvar a criança. Que fazem eles? Conseguem que o tribunal conceda a tutela ao pai que consente na transfusão. O tribunal fará isso para garantir os direitos da criança. Não é que eles desrespeitem a fé do pai que não consente. Apenas acham injusto que um indivíduo prive outro de um tratamento que vai salvar-lhe a vida. Consternada, Cathryn fitou o dr. Wiley. - Vocês querem que eu assuma a tutela de Michelle contra a vontade de Charles? 184

- Apenas para o propósito específico de manter o tratamento - disse o dr. Keitzman. - Isso pode salvar a vida da menina. Por favor, compreenda, sra. Martel, nós poderíamos fazer isso sem sua ajuda. Pediríamos ao tribunal para nomear um tutor, que é o que fazemos quando ambos os pais resistem a um tratamento médico estabelecido. Mas seria muito mais simples se a senhora participasse. - Mas vocês não estão mais aplicando em Michelle um tratamento padronizado - argumentou Cathryn, lembrando-se das palavras de Charles. - Bem, isto não é tão incomum assim - disse Keitzman. - De fato, venho trabalhando num artigo sobre o aumento das doses de quimioterapia em casos tão recalcitrantes quanto os de sua filha. - E a senhora deve admitir que Charles vem agindo de um modo muito esquisito - acrescentou o dr. Wiley. -- Esta tensão pode ser grande demais. Ele pode tornar-se incapaz de tomar decisões sensatas. De fato, eu me sentiria muito melhor se também conseguíssemos fazer com que ele se consultasse com um profissional. - O senhor quer dizer. . . procurar um psiquiatra? - Acho que seria uma boa idéia - continuou o dr. Wiley. - Por favor, compreenda-nos, sra. Martel - disse o dr. Keitzman -, estamos procurando fazer o melhor, e, como médicos de Michelle,

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nossa principal preocupação é o seu bem-estar. Sentimos que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance. - Aprecio seus esforços - disse Cathryn -, mas. . . - Sabemos que isso parece drástico - interrompeu Keitzman -, mas, uma vez conseguida a documentação legal, a tutela não terá de ser evocada, a não ser que a situação o exija. Então, se Charles tentasse tirar Michelle do tratamento, ou mesmo do hospital, estaríamos em posição de fazer alguma coisa a respeito. - Um grama de prevenção vale um quilo de cura sentenciou o dr. Wiley. - A idéia não me agrada nada - disse Cathryn. Mas Charles tem andado muito estranho. Custo a crer que ele tenha saído como o fez agora. - Eu posso entender - comentou Keitzman. - Posso sentir que Charles é um homem de ação, e que o fato de não poder fazer nada por Michelle deve deixá-lo louco. Ele se encontra sob uma tremenda carga emocional, e é por isso

que acho que só teria a se beneficiar se consultasse um médico. - O senhor acha que ele pode ter um colapso nervoso? - perguntou Cathryn com crescente ansiedade. O dr. Keitzman olhou para o dr. Wiley, a fim de ver se ele queria responder; depois, falou: - Não me sinto qualificado para dizer. Não há dúvida de que a tensão está presente. Tudo depende de sua resistência. - Acho que há uma possibilidade - interveio o dr. Wiley. - Para falar a verdade, acho que ele já está revelando alguns sintomas. Parece que não controla mais suas emoções, e acho que sua raiva tem sido inadequada. Cathryn estava envolvida por um torvelinho de emoções. A idéia de se interpor entre Charles, o homem que ela amava, e a filha dele, que havia aprendido a amar, era inconcebível. E, no entanto, se a tensão fosse demais para Charles e ele interrompesse o tratamento de Michelle, ela partilharia a culpa de não ter tido a coragem de ajudar aos médicos da criança. - Se eu resolver agir conforme os senhores pedem, qual seria o procedimento? - Espere - falou o dr. Keitzman, estendendo a mão para o telefone. - Acho que o procurador do hospital pode responder a isso melhor do que eu. Antes que Cathryn percebesse o que estava acontecendo, a reunião com o procurador do hospital estava terminada e ela caminhava apressadamente em busca de um homem no Palácio da Justiça de Boston. Seu nome era Patrick Murphy. Ele tinha a pele cheia de sardas e o cabelo de um castanho indefinido que poderia ter sido ruivo em outros tempos. Mas sua característica mais notável era a personalidade. Era uma daquelas raras pessoas de quem se gosta imediatamente, e Cathryn não constituiu exceção. Mesmo em sua agitação, ela se sentiu encantada por seus modos francos e gentis e seu envolvente sorriso. Cathryn não sabia com certeza quando a conversa com o procurador tinha passado da discussão de uma situação hipotética para uma situação real. Decidir-se por fazer a petição de uma tutela legal de Michelle sem o consentimento de Charles era tão difícil que ela acolheria de bom grado seu 186

cumprimento por omissão. Patrick tinha assegurado a Cathryn, como o fizera o dr. Keitzman, que os poderes legais não seriam usados, a não ser na hipótese de que Charles tentasse interromper o tratamento de Michelle. Mesmo assim, Cathryn sentia-se muito constrangida com tudo aquilo, especialmente porque não tivera tempo de ver Michelle, com a pressa de chegar ao tribunal antes do prazo limite de quatro horas da tarde. - Por aqui, por favor - disse Patrick, apontando para uma estreita escada. Cathryn nunca estivera antes num tribunal, que

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não era nada como ela imaginava. Imaginava algo grandioso, de certo modo simbólico, representando, como representava, o conceito de justiça. No entanto, o Palácio da Justiça de Boston, que na verdade tinha mais de cem anos de idade, era sujo e deprimente, especialmente porque, por questões de segurança, o público era obrigado a entrar pelo porão. Após subirem o estreito lanço de degraus de aço, que Cathryn não podia acreditar fosse a única entrada pública para o tribunal, chegaram ao velho saguão principal. Pelo menos ali havia uma sombra da antiga grandeza, com um teto arqueado da altura de dois andares, pilastras e pisos de mármore. Mas o reboco estava lascado e rachado, e as elaboradas molduras davam a impressão de que estavam prestes a se soltar e cair chão abaixo. Cathryn teve que subir correndo alguns degraus para alcançar Patrick, que entrava no Tribunal de Sucessões. Era uma sala comprida e estreita, de aparência pesada e poeirenta, especialmente com as centenas de livros de registros antigos, deitados de lado em suas baixas prateleiras à direita. À esquerda corria um comprido balcão riscado e marcado, onde estava um grupo de funcionários que parecia ter despertado subitamente de seu sono diurno ante a perspectiva da hora de sair. Ao contemplar o aposento, Cathryn não sentiu a confiança e a segurança que esperava. Em vez disso, seu aspecto desprezível causava-lhe certo mal estar. No entanto, Patrick não permitiu que ela parasse. Puxou-a por sobre um balcão menor para o fundo da sala. - Gostaria de falar com um dos assistentes do Registro de Sucessões - disse Patrick a uma das escreventes de cara entediada. De sua boca pendia um cigarro, fazendo com lue ela inclinasse a cabeça para o lado, a fim de impedir que 187

a fumaça atingisse seus olhos. Ela apontou para um homem que se achava distante. Ouvindo o pedido, o homem voltou-se; ele estava falando ao telefone, mas, com um sinal, pediu-lhes que esperassem. Depois de terminar sua conversa, foi até onde estavam Cathryn e Patrick. Era tremendamente obeso, de meia-idade, com uma espessa e flácida camada de gordura que se sacudia quando ele andava. Seu rosto era todo bo chechas, papadas e profundas dobras. - Temos uma emergência - explicou Patrick. - Gostaríamos de ver um dos juizes. - É o caso de tutela lá do hospital, sr. Murphy? - indagou o assistente de registros, mostrando estar a par do assunto. . . - Correto - disse Patrick. - Todos os formulários já estão preenchidos. - - Devo admitir que vocês estão ficando eficientes, camaradas - falou o homem. E olhou para o mostrador do relógio da instituição. - Meu Deus, vocês estão atrasados.

Já são quase quatro horas. É melhor eu ver se o juiz Pelli- grino ainda está aqui. E saiu bamboleando por uma porta próxima, os braços balançando quase perpendicularmente ao corpo. - Problema glandular - murmurou Patrick, depon do sua pasta sobre o balcão e abrindo-a. Cathryn olhou para o jovem e atraente advogado. Ele se vestia tipicamente como um causídico, com um terno grosso, listrado, tendo à lapela um emblema universitário. As calças largas estavam levemente enrugadas, principal mente atrás dos joelhos, e eram um tanto curtas, deixando ver os torn ozelos cobertos por meias pretas. com muita atenção, ele arrumava os formulários que Cathryn tinha assinado. - O senhor acha realmente que eu devia ter feito isso? - perguntou Cathryn abruptamente. - Sem dúvida - retrucou Patrick, dando-lhe um dei seus sorrisos mais cordiais e espontâneos. - É pela criança, Cinco minutos mais tarde, estavam na sala de audiênJ cias do juiz e era muito tarde para voltar atrás.

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Tão diferente quanto o Palácio da Justiça de Bostonl era na imaginação de Cathryn, assim era a figura do juizl Louis Pelligrino. Em vez de um vulto mais velho, socrático e de toga, Cathryn viu-se sentada diante de um homem ert turbadoramente belo, trajando um terno muito bem-talha 188 '

do. Depois de colocar óculos estilizados de meias lentes, próprios para ler, ele aceitou os papéis de Patrick, dizendo: - Meu Deus, sr. Murphy, por que é que o senhor sempre aparece às quatro horas? - As emergências médicas se ligam mais, meritíssimo, a um relógio biológico do que a um de sucessões. O juiz Pelligrino fitou atentamente Patrick por cima de suas meias lentes, aparentemente procurando decidir se a réplica de Patrick era inteligente ou cínica. Ao optar pela primeira hipótese, mostrou um sorriso que surgiu lentamente. - Muito bem, sr. Murphy. Aceito a afirmação. Agora, por que o senhor não me faz um resumo das razões desta petição? Enquanto Patrick habilmente delineava as circunstâncias que cercavam a doença e o tratamento de Michelle, bem como o comportamento de Charles, o juiz Pelligrino examinava os formulários, aparentemente sem prestar atenção ao jovem advogado. Mas quando Patrick cometeu um insignificante erro de gramática, o juiz levantou a cabeça e corrigiu-o. - Onde estão as declarações dos doutores Wiley e Keitzman? - perguntou ele quando Patrick terminou. O advogado inclinou-se para a frente e ansiosamente folheou os papéis que estavam na mão do juiz. Depois, abriu bruscamente sua pasta e, com grande alívio, encontrou os dois documentos, passando-os ao magistrado com uma desculpa. O juiz leu-os detalhadamente. - E esta é a mãe adotiva, presumo - falou o juiz Pelligrino, prendendo a atenção de Cathryn. - Realmente é - respondeu Patrick -, e compreensivelmente ela está preocupada em manter o tratamento adequado para a garota. O juiz Pelligrino observou atentamente o rosto de Cathryn, que se sentiu corar defensivamente. - Acho que é importante enfatizar - continuou Patrick - que não existe discordância conjugai entre Charles e Cathryn Martel. A única questão é o desejo de conservar o método de tratamento recomendado pelas autoridades médicas adequadas. - Compreendo - disse o juiz Pelligrino. - O que não compreendo é o fato de o pai biológico não se achar aqui para ser inquirido. 189

- Mas é precisamente por isso que a sra. Martel estáH solicitando uma tutela provisória de emergência - explicouH Patrick. - Há apenas algumas horas, Charles Martel saiuM correndo de uma reunião com a sra. Martel e os médicos dê v Michelle. O dr. Martel expressou sua vontade de que o tra- " tamento, que é a única chance de sobrevivência da filha, a fosse interrompido e depois deixou a conferência. E, confi- * dencialmente, os médicos assistentes estão preocupados com sua estabilidade mental. - Parece que isso devia fazer parte do relatório disse o juiz. - Concordo - falou Patrick -, mas infelizmente isso exigiria que o sr. Martel fosse examinado por um psiquiatra. Talvez possa ser arranjado para a audiência final. - Gostaria de acrescentar alguma coisa, sra. Martel? - perguntou o juiz, voltando-se para Cathryn. Cathryn declinou, numa voz que mal se ouvia. O juiz dispôs os papéis sobre a mesa, evidentemente

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pensando. E limpou a garganta antes de falar. - Concedo a tutela temporária de emergência apenas para o propósito de manter o tratamento médico reconhecido e estabelecido. - E apôs uma assinatura floreada no formulário. - Designo também uma guardiã ad litim, que funcionará como tal até a audiência final, que desejo seja realizada dentro de três semanas. - Isso vai ser difícil - disse o assistente do registro, falando pela primeira vez. - Sua agenda já está completa. - Para o diabo com a agenda - exclamou o juiz Pelligríno, assinando o segundo documento. - Vai ser difícil nos prepararmos para uma audiência em apenas três semanas - protestou Patrick. - Precisamos conseguir um testemunho pericial médico. E há pesquisas legais a serem feitas. Precisamos de mais tempo. - O problema é seu - insistiu o juiz, sem qualquer simpatia. - De qualquer modo, o senhor vai ficar atarefado com a audiência preliminar para a tutela temporária. Pelo estatuto, isso deve ser feito em três dias. Portanto, é melhor pôr mãos à obra. E também quero que o pai seja iriiormado desses procedimentos o mais breve possível. Quero que ele receba, o mais tardar amanhã, uma citação no hospital ou no seu local de trabalho. Cathryn empertigou-se, petrificada. ;,s - O senhor vai falar a Charles sobre esta reunião? 190 ' l • II

- Sem dúvida - retrucou o juiz, levantando-se. Mal posso pensar em privar um dos pais de seus direitos de tutela sem avisá-lo. Agora, se os senhores me dão licença.

. . - Mas. . . - ia dizendo Cathryn. Mas não terminou sua frase. Patrick agradeceu ao juiz e correu com Cathryn para fora da sala, retornando ao salão principal do Tribunal de Sucessões. Cathryn estava perplexa. - Mas o senhor disse que só usaríamos isso se Charles realmente interrompesse o tratamento. - Correto - respondeu Patrick, confuso ante a reação de Cathryn. - Mas Charles vai ficar sabendo do que fiz - choramingou Cathryn. - O senhor não me disse isso, Meu Deus! 191

10 Embora o sol já houvesse se posto, conforme previsto, às quatro e meia, ninguém na Nova Inglaterra o viu descer no horizonte, inclusive Charles, que na ocasião estacionava o carro na Main Street, em Shaftesbury. Uma pesada massa de nuvens havia se deslocado dos Grandes Lagos. Os meteorologistas da Nova Inglaterra estavam tentando decidir quando a frente ia colidir com uma corrente de ar quente que vinha do Golfo do México. Todos concordavam que ia nevar, mas ninguém sabia dizer quanto ou quando. Por volta das cinco e meia Charles ainda continuava sentado ao volante do Ford, estacionado ao abrigo da fileira dos velhos e desertos edifícios da fábrica. com freqüência ele tinha de raspar um pouco do ar congelado na parte interna do pára-brisa e espiar para fora. Esperava que escurecesse completamente. Para conservar o calor, ligava o motor a cada quinze minutos e o deixava girar por cinco minutos. Logo após as seis horas, satisfeito com a escura e uniforme cobertura do céu, ele abriu a porta e saiu. A Recycle, Ltd. ficava cerca de duzentos metros à frente, evidenciada principalmente pela única luz que eles deixavam acesa, perto da porta do escritório. Tinha começado a nevar, com grandes flocos que se precipitavam como penas rodopiando ao vento. Charles abriu a mala e juntou seu material: uma câmara Polaroid, uma lanterna elétrica de mão e alguns

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frascos de amostras. Depois, atravessou a neve até a sombra da usina de tijolos vazia e pôs-se a caminhar penosamente na direção da Recycle, Ltd. Após deixar Cathryn no hospital, ele tinha procurado ordenar suas emoções confusas. Não podia chegar a uma decisão sobre o tratamento de Michelle,- embora a intuição ainda lhe dissesse que a menina não ia entrar em remissão. Não podia recusar seu tratamento, porém não agüentava vê-la sofrer mais do que era necessário. Sentia-se apanhado numa armadilha. Em conseqüência, aco- 193

lheu com prazer a idéia de ir até Shaftesbury e tentar obter alguma prova mais positiva do despejo do benzeno. Pelo menos isso satisfazia sua necessidade emocional de ação. Ao se aproximar da esquina que delimitava o fim do prédio, ele parou e olhou. Agora tinha uma vista completa da fábrica, que ao longe se sobrepunha à última das usinas abandonadas. com a Polaroid e a lanterna nos bolsos do casaco e os frascos para coleta de amostras nas mãos, Charles virou a esquina e se dirigiu para o rio Potomac, andando a principio paralelamente ao muro que servia de proteção aos ventos. Assim que deixou de ver a luz sobre a entrada da fábrica, cortou em diagonal através do love vazio, alcançando o tapume junto à margem do rio. Primeiro a lanterna, s depois os frascos de amostras, tudo foi delicadamente depo- j sitado no chão coberto de neve. com a câmara pendurada no ombro, Charles apanhou a tralha e começou a subir. Depois de se balançar no alto do tapume, saltou para o chão, caindo sobre os pés mas cambaleando para trás. com receio de ser apanhado em campo aberto, juntou suas coisas e correu para a sombra da velha fábrica. Esperou alguns momentos, escutando os sons familiares vindos do interior do edifício. De onde estava, podia ver através da maior porção congelada do rio Potomac e divisar as árvores na margem oposta. O rio tinha cerca de quarenta e cinco metros de largura naquele ponto Quando retomou o fôlego, Charles caminhou laboriosamente ao longo do edi fício, seguindo para o canto que dava para o rio. A caminhada era difícil, pois a neve cobria toda espécie de lixo e entulho. Charles alcançou o lado do prédio que dava para o ria e, protegendo os olhos dos flocos de neve, olhou para baixo, para o seu objetivo: os dois tanques de metal. Infelizmente) eles se encontravam junto ao lado oposto da construção Depois de uma curta pausa, Charles iniciou uma subida através dos restos contorcidos e enferrujados de maquinaria abandonada, apenas para se ver impedido de continuar sell avanço por uma represa de granito com cerca de três metroâ de largura por um e meio de profundidade. A eclusa vinha de um arco por baixo do prédio e corria para a margem dú rio, onde era fechada por pranchas de madeira. Mais otí menos a meio caminho, na parede de alvenaria do lado oposto, havia um canal que dava para uma grande lagoa. O 1^ 194

quido dentro da represa e da lagoa não estava congelado e tinha o inconfundível cheiro acre de refugos químicos. Bem ao lado da fábrica, Charles viu duas fortes tábuas que haviam sido dispostas atravessadas sobre a represa. Colocando seus frascos de amostras no chão, ele sacudiu as tábuas para livrá-las de sua camada de neve e gelo. Então, com muito cuidado, avançou penosamente pela ponte improvisada, mantendo os frascos sob o braço direito, enquanto se valia do esquerdo para se apoiar contra o prédio. Do lado oposto da represa o chão se inclinava para baixo, e Charles pôde se aproximar do nível da lagoa. Pela aparência

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improvisada do arranjo, em particular da ineficaz represa, ele viu que os produtos químicos despejados na lagoa seguiam continuamente seu caminho para dentro do rio. Precisava de uma amostra daquele fluido xaroposo. Na extremidade da ponte, ele se debruçou e, segurando a borda superior de um dos frascos, colheu cerca de cinqüenta gramas do lodo que borbulhava lentamente. Usando um pouco de neve, Charles limpou o frasco, fechou-o e deixou-o ali para recolhê-lo na volta. Ao mesmo tempo, ele precisava de uma foto da represa, que impedia aquela fossa química de se esvaziar completamente rio abaixo. Cedo, Wally Crab havia tirado seu jantar dos fornos de cozer borracha, juntamente com os dois indivíduos com quem costumava jogar pôquer: Ângelo De Jesus e Giorgio Brezowsky. Sentados a uma das mesas de piquenique no refeitório, eles haviam jogado vinte-e-um enquanto distraidamente consumiam seus sanduíches. A noite não havia sido boa para Wally. Por volta das seis e vinte ele já havia perdido treze dólares, e não parecia que sua sorte fosse mudar. E, para tornar as coisas piores, Brezowsky estava caçoando dele, mostrando-lhe seu sorriso sem dentes após cada mão, como a dizer silenciosamente: "Fica pra outra, otário". Brezo tinha perdido os dentes da frente numa briga de bar em Lowell, Massachusetts, dois anos antes. Brezo deu a Wally uma figura e um quatro de espadas. Quando Wally lhe pediu outra carta, Brezo derrubou-o com outra figura, mandando-lhe mais de vinte-e-um. - Merda! - gritou Wally, batendo violentamente as cartas na mesa e puxando as pernas de baixo dela. Então, ergueu-se e caminhou pesadamente para a máquina de vender cigarros. 195

-- Você está fora, garotão? - zombou Brezo, reiniciarido o jogo com Ângelo. Wally não respondeu. Colocou suas moedas na máquina, apertou o botão de sua escolha e esperou. Nada aconteceu. Pelo menos dentro da máquina. Dentro do cérebro de Wally foi como se se partisse a corda de um piano distendida até o limite máximo. com um vigoroso pontapé, ele chutou a máquina, deslocando-a de seus suportes e fazendo com que batesse na parede com uma pancada surda. Levando a mão para trás, para desfechar um cruzado na abertura de retorno das moedas, ele-divisou um relâmpago do lado de fora da janela escura. Para decepção de Brezo e de Ângelo - que esperavam ver a destruição da máquina de cigarros -, o braço armado de Wally baixou, e ele encostou o rosto contra a janela: "Será que vamos ter a porra de uma tempestade agora?", perguntou a si mesmo. Então, tornou a ver o relâmpago, mas dessa vez captou num relance a sua origem. Por um instante, ele percebeu um vulto com os braços levados ao rosto, as pernas levemente separadas. - É uma maldita câmara - disse Wally, espantado. - Alguém está tirando retratos da lagoa. Wally pegou o telefone e discou para o escritório de Nat Archer. E disse ao superintendente o que acabara de ver. i - Deve ser aquele pirado do Martel - disse Nat Archer. - com quem você está, Wally? - Apenas com Brezo e Ângelo. - Por que vocês três não vão lá ver quem é? Se for Martel, dêem-lhe uma lição. O sr. Dawson me disse que se ele tornasse a aparecer nós déssemos um jeito de que fosse sua última visita. Lembre-se de que o cara está aqui l ilegalmente. Ele é um invasor. I - Você será servido - disse Wally, pendurando o fone no gancho. A seguir, voltou-se para os companheiros e, estalando os dedos, falou: - Vamos nós divertir um pou cò. Peguem seus casacos. Depois de fotografar a represa, Charles dirigiu-se para os tanques metálicos. com o auxílio da lanterna, procurou entender a profusão de tubos e válvulas. Um dos tubosestava diretamente a uma área murada na margem do estacio namento e servia obviamente como local de vazamento do excesso. Outro tubo saía dos tanques e juntava-se, com uma 196 l

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conexão em T, ao conduto escoador do teto a caminho da margem do rio. Usando de muita cautela para não escorregar e cair dentro da barragem, Charles conseguiu alcançar a borda que se achava a cerca de seis metros acima da superfície do rio. O escoadouro do teto terminava abruptamente, despejando seu conteúdo dentro da barragem. O cheiro de benzeno era intenso, e sob o tubo havia uma área de água não congelada. O resto do rio estava solidamente congelado e coberto de neve. Depois de tirar algumas fotos do tubo, Charles debruçou-se com seu segundo frasco e colheu um pouco do fluido que gotejava da extremidade. Quando achou que já tinha o bastante, fechou o frasco e deixou-o próximo do primeiro. Estava quase acabando; sua missão fora mais bem-sucedida do que ele esperava. Só faltava fotografar a conexão em T entre o tubo dos tanques de depósito, o dreno condutor e, o tubo alimentador dos tanques de depósito, até onde ele emergia da fábrica. Tinha começado a soprar um vento leve, e os flocos de neve que flutuavam a esmo dirigiam-se agora para o rosto de Charles. Antes de tirar a fotografia ele limpou a neve dos tubos e então espiou através do visor. Não ficou satisfeito. Queria pegar a conexão em T e os tanques de depósito na mesma fotografia; então trepou nos tubos, acocorou-se e tornou a espiar. Satisfeito, disparou o botão do obturador, mas nada aconteceu. Olhando para a câmara, verificou que não havia girado a alça do flash. Rapidamente preparou o flash e espiou de novo. Agora podia ver o tanque de depósito, o tubo que saía do tanque e sua junção com a calha do teto. Estava perfeito. Apertou o disparador. O clarão da câmara foi seguido instantaneamente de um puxão súbito e violento, ao mesmo tempo que a máquina era arrancada de suas mãos. Agachado como estava, Charles olhou para cima e viu três homens vestindo casacos e capuzes de lã, cujas silhuetas se destacavam contra o fundo escuro do céu. Eles o tinham encurralado de encontro aos tanques de depósito. Antes que Charles pudesse se mexer, a câmara foi arremessada no centro da lagoa negra. Charles levantou-se, procurando distinguir os rostos sob °s capuzes. Sem dizer palavra, os dois homens mais baixos arremeteram para a frente e seguraram seus braços. O brus co movimento pegou Charles desprevenido, e ele não reagiu. O terceiro homem, o grandalhão, meteu a mão nos bolsos °o casaco de Charles, encontrando os filmes que ele levava. com um rápido movimento do pulso, eles foram 197

também arremessados ao lago químico, boiando como alvas hóstias à superfície. Então os homens o soltaram e recuaram. Charles ainda não podia ver seus rostos, o que tornava a aparência deles muito mais assustadora. Tomado de pânico, tentou correr entre um dos homens menores e o tanque de depósito. O homem reagiu instantaneamente, dando-lhe um murro no rosto, junto ao nariz. O golpe o atordoou, ao mesmo tempo em que fazia escorrer um fio de sangue pelo seu queixo. - Boa porrada, Brezo - falou Wally, rindo. Charles reconheceu a voz. Os homens empurraram-no _na direção da lagoa de produtos químicos, de modo que ele cambaleou sobre os canos e tubos que passavam sob seus pés. Zombando dele, cobriram-lhe a cabeça com as mãos abertas, esbofeteando-lhe os ouvidos. Em vão Charles tentava aparar a saraivada de golpes. - Invadindo a propriedade alheia, hem? - disse Brezo. - Procurando barulho, hem? - falou Ângelo. - E acho que ele encontrou - comentou Wally. Eles empurraram Charles até a beira da fossa dos acres produtos químicos. Um golpe de relance fez com que seu chapéu caísse dentro do fluido. - Que tal um mergulho rápido?

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-"escarneceu Wally. Protegendo o rosto com um dos braços, com a outra mão Charles bateu com a lanterna elétrica em seu oponente mais próximo. Brezo evitou facilmente o golpe, desviando o corpo. Esperando uma resistência e não a encontrando, Charles escorregou na neve derretida e caiu de quatro na lama imunda. A lanterna espatifou-se. Tendo evitado o golpe, Brezo viu-se equilibrado na beira da lagoa. Para não cair lá dentro, ele foi obrigado a pisar no lodo, mergulhando a perna até a metade, antes que Wally o agarrasse pelo casaco, livrando-o da queda. - Merda! - gritou Brezo ao sentir que o produto químico corrosivo queimava sua pele. Ele sabia que tinha de meter a perna dentro da água o mais breve possível. Ângelo colocou o braço de Brezo em cima de seu ombro, e, como numa corrida de três pernas, os dois homens voltaram apressadamente para a entrada da Recycle, Ltd. Levantando-se com dificuldade, Charles lançou-se para as tábuas que estavam sobre a velha represa. Wally pro- 198

curou agarrá-lo, mas falhou, escorregando e caindo de quatro. Empinando seu vulto volumoso, ele ergueu-se num instante. Charles caminhou rapidamente por sobre as tábuas, esquecendo seu nervosismo anterior ao atravessá-las. Pensou em empurrar as tábuas para dentro da fossa, mas Wally o seguia de muito perto. com medo de ser atirado dentro da lagoa química, Charles corria o mais que podia, mas avançava penosamente. Primeiro teve que trepar pelas máquinas abandonadas, depois correr pela área cheia de lixo e coberta de neve, até alcançar o tapume. Para segui-lo, Wally tinha que transpor os mesmos obstáculos, mas, acostumado a passar por ali, fez o percurso em melhor tempo. Charles começou a subir pelo tapume, mas infelizmente escolheu um lugar entre dois pilares. A falta de apoio, particularmente perto do topo, tornava a subida mais difícil. Wally Crab alcançou o tapume e começou a sacudi-lo violentamente. Charles fazia tudo o que podia para se segurar, e mais ainda para continuar subindo. Foi quando Wally estendeu a mão e agarrou seu pé direito. Charles tentou livrá-lo, mas Wally estava bem seguro e limitou-se a se valer de seu peso. A força superou a garra de Charles, que caiu do tapume diretamente em cima de Wally. Desesperado, procurou por baixo da neve alguma coisa com a qual pudesse se defender. Encontrou um sapato velho. Atirou-o contra Wally e, embora errasse o alvo, deu-lhe a chance de se levantar e correr ao longo do tapume, em direção ao rio. Então viu-se como numa gaiola com um animal raivoso. Era quase impossível correr ao longo do tapume. A crosta gelada às vezes suportava-lhe o peso, outras vezes não, e não havia meios de se dizer o que ia acontecer antes de se dar um passo. Sob a neve havia uma vasta série de detritos, que iam desde lixo recente até velhos pneumáticos e pedaços de metal, que continuavam a atrapalhá-lo. com medo de ser apanhado a qualquer momento, Charles olhou por sobre o ombro. Uma olhadela foi o suficiente para lhe dar a certeza de que a corrida de obstáculos era igualmente difícil para Wally. Charles conseguiu chegar primeiro à margem do rio. Sua descida para a água foi uma queda controlada. com as mãos estendidas para os lados, como balancins "uma canoa, Charles desceu, escorregando pela margem e Parando bruscamente onde o gelo havia se quebrado. Evi- 199

tando a porção de água descongelada, Charles arrastou-se sobre o gelo, procurando manter o equilíbrio. Wally desceu pela margem com muito mais cuidado, e conseqüentemente perdeu

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um pouco de terreno. Charles já estava próximo da parte do tapume que se estendia da praia e começava a subir a barragem quando Wally atingiu a margem do rio. Quase no alto da barragem, os pés de Charles subitamente perderam o apoio. Tomado pelo pânico, suas mãos procuraram algum ponto de apoio. No último segundo, ele conseguiu segurar-se num arbusto e equilibrar seu movimento para trás. Tentou subir, mas não encontrou nada contra o que fazer tração. Wally já havia alcançado a margem e vinha em seu encalço, encurtando a distância entre os dois. Wally estendeu a mão para agarrar a perna de Charles. Estava a centímetros de distância quando pareceu passar a se mover em câmara lenta. Suas pernas se retesaram, mas não adiantou. Lentamente no início, rapidamente depois, ele escorregou para trás. com renovado esforço, Charles tentava subir os últimos dois metros. Batendo com os pés de encontro à parede da barragem, ele descobriu que era capaz de formar pontos de apoio para os pés. Desse modo subiu, centímetro por centímetro, e ergueu a parte superior do corpo pela borda. Puxou os pés para cima, e a seguir ergueu-se sobre as mãos e os pés. Ao fazer isso, sentiu pedregulhos e pedaços de tijolos sob a neve. Soltou-os e colheu um punhado com as mãos. Wally tentava novamente escalar a barragem e, naquele momento, estava a apenas um metro e meio de distância. Levando o braço para trás, Charles atirou as pedras. Uma delas atingiu Wally na extremidade do ombro e o fez soltar um gemido de dor. com a outra mão, ele tentou agarrar-se à borda, apenas para tornar a escorregar pelo barranco. Rápido, Charles jogou mais algumas pedras contra Wally, que protegeu a cabeça com os braços e fugiu para o gelo. Charles voltou em disparada para a fileira de edifícios abandonados, pretendendo contornar a extremidade do primeiro prédio e pegar o carro, que estava estacionado a cem metros dali. Mas, ao partir naquela direção, viu a luz de várias lanternas que vinham do lado oposto ao tapume. As luzes oscilaram em sua direção, cegando-o momentaneamente, e ele viu que tinha sido localizado. Não tinha escolha. Correu diretamente para o prédio vazio. 200

Passando como um raio por uma abertura, Charles foi rapidamente envolvido por uma escuridão impenetrável. Explorando as trevas com os braços arqueados, avançou centímetro por centímetro, encontrando uma parede. Corroo num labirinto, seguiu cambaleando ao longo da parede até que chegou a uma porta. Curvando-se e tateando o chão, encontrou um pouco de entulho, que lançou pela abertura. Chocando-se contra outra parede, o entulho tornou a csjir no chão. Sem abandonar o portal, Charles estendeu o braço na escuridão. Seus dedos tocaram a parede que ele havia atingido com o entulho. Ele deixou o portal e caminhou o longo dessa nova parede. Ouvindo gritos atrás de si, Charles sentiu uma-onda de pânico. Tinha de achar um lugar onde se esconder. Estava convencido de que o pessoal da Recycle era louco e planejava matá-lo. Não tinha dúvida de que eles esperavam obrigá-lo a entrar na lagoa química, fazendo com que o fato parecesse um acidente. Afinal de contas, ele não passava de um intruso que podia perfeitamente escorregar para den tro daquela fossa na escuridão. E se eles estavam dispostos a despejar veneno num rio, a moralidade obviamente não encabeçava sua lista de prioridades. Charles chegou a um dos cantos da parede que estava seguindo. Esforçou-se por ver, mas não conseguiu detectar nem sua mão movendo-se na frente do rosto. Abaixando-Se apanhou alguns seixos e lançou-os em redor para saber a que distância se encontrava da próxima parede. Espertou o som da pedra atingindo a parede e depois caindo ao chão. Não aconteceu nada. Após uma longa espera, ouviu o som distante da queda de alguma coisa dentro da água. Ele se encolheu todo. Em algum lugar imediatamente à sua

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frente havia o vazio, talvez um velho poço de elevador. Achando que se encontrava num.saguão ou num corredor, Charles deixou cair algumas pedras perpendicularmente junto à parede que vinha seguindo. Elas tocaram o chão imediatamente e, esticando-se na escuridão, Charles toccou a parede oposta. com o pé, começou a golpear o reboco frouxo à svja frente, a fim de certificar-se de que havia passado o poço. A coisa funcionou, e ele adiantou-se lentamente, ganhando um pouco de confiança. Não havia meios de calcular a distância que havia percorrido, mas sentia que tinha sido sig nificativa. Então, sua mão tocou um outro portal. Tateando à frente, sua outra mão agarrou uma porta de madeira, aber 201

tá cerca de trinta centímetros. Faltava a maçaneta. Charles forçou a porta, que relutou em abrir-se, retida pelos destroços que estavam no chão. com grande cuidado, Charles adentrou o cômodo pé ante pé, experimentando o chão com o pé direito, sentindo um cheiro repugnante de mofo. A seguir, topou com um fardo no chão, que, depois, viu ser um tapete velho e apodrecido. Atrás dele alguém gritava no interior cavernoso: - Queremos falar com você, Charles Martel. O som ecoava nas trevas. Depois, ele ouviu passos pesados e vozes que falavam entre si. Tomado por unia nova onda de medo, ele deixou a porta e avançou através do aposento, as mãos tateando à sua frente, na esperança de encontrar algum lugar onde se esconder. Quase imediatamente ele tropeçou num outro tapete e depois bateu contra um objeto baixo de metal. Passou a mão por cima e ao longo dele e decidiu que se tratava de uma espécie de armário com prateleiras que tinha sido derrubado. Andando à sua volta, ele deu com uma pilha de trapos malcheirosos. Passou pelos trapos da melhor maneira que pôde, sentindo o movimento de pés pequeninos. Fez votos para que fossem carnundongos, que ele havia perturbado, e não algo maior. Além do mostrador luminoso de seu relógio de pulso, Charles nada mais conseguia ver. Ele aguardou, sua respiração soando forte na quietude e seu coração batendo audivelmente em seus ouvidos. Estava encurralado. Não havia mais para onde correr. Podiam fazer o que quisessem com ele; ninguém acharia seu corpo, especialmente se fosse atirado dentro do poço do velho elevador. Charles jamais ex- perimentara um terror tão grande. Uma luz brilhou no saguão, enviando pequenos refle xos para o aposento em que Charles se encontrava. Lanterna nas se moviam pelo saguão, vinham em sua direção. Por um momento elas desapareceram, e o ambiente ficou envol to na mais completa escuridão. Ele ouviu uma pancada na água, distante, como se um objeto grande houvesse sido lançado no poço do elevador. Seguiu-se uma risada. Os fachos de luz das lanternas retornaram ao saguão, varrendo-o. Seus perseguidores chegavam cada vez mais perto. Agora ele podia ouvir cada passada. A velha porta de madeira foi aberta subitamente, com um ruído dissonante, e um intenso raio de luz correu o aposento. Charles encolheu a cabeça como uma tartaruga, esperando que seu perseguidor se satisfizesse com uma busca 202

superficial. Mas tal não era o caso. Charles ouviu o homem dar um pontapé no rolo do velho tapete e viu a luz vasculhar cada centímetro do chão. com uma estocada de pânico, ele percebeu que estava prestes a ser descoberto. Saltando de seu cantinho, Charles arremessou-se para a porta. O perseguidor girou a lanterna, deixando ver a silhueta de Charles no portal. -

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Lá vai ele! - gritou o homem. Pretendendo voltar pelo mesmo caminho no meio daquele labirinto, Charles partiu pelo corredor. Em vez de conseguir o seu intento, bateu num outro perseguidor, que vinha pelo saguão e que o agarrou, deixando cair a lanterna. Charles lutava às cegas, tentando desesperadamente se livrar. Então, mesmo antes de sentir a dor, suas pernas se dobraram sob ele. O homem o havia atingido por trás dos joelhos com um cassetete. Charles caiu ao solo, enquanto seu atacante procurava a lanterna. Outro homem emergiu do quarto onde Charles estívera escondido, e a luz de sua lanterna iluminou a cena. Pela primeira vez, Charles pôde ver o homem que o tinha atingido. Para seu espanto, viu-se olhando para Frank Neilson, chefe de polícia de Shaftesbury. O uniforme de sarja azul, com todos os seus enfeites e condecorações, inclusive o coldre e o revólver, nunca lhe parecera tão agradável. - Chega, Martel, acabou-se a brincadeira, levante-se! - disse Neilson, deixando o cassetete escorregar em seu suporte de couro. Era um homem atarracado, de cabelos louros alisados para trás e uma barriga que se projetava de seu tórax e se curvava para baixo, logo acima da parte superior das calças. Seu pescoço era da grossura da coxa de Charles. - É um prazer vê-lo - disse Charles com toda a sinceridade, apesar de haver sido golpeado. - Aposto que é - replicou Frank, agarrando Charles pelo colarinho e pondo-o de pé. Charles cambaleou por um instante, sentindo que os rnúsculos de suas pernas reclamavam. - Algemas? - perguntou o patrulheiro. Seu nome era Bernie Crawford. Ao contrário de seu chefe, o patruIneiro era alto e esguio como um jogador de basquete. - Porra, não! - exclamou Frank. - Vamos é sair deste buraco de merda. Bernie foi na frente, seguido de Charles e com Frank a retaguarda. Retornaram pela fábrica deserta. Ao passarem 203

pelo poço do elevador, Charles estremeceu só de pensar que pouco faltara para ele cair ali dentro. Enquanto caminhavam, ele pensou na pergunta de Bernie sobre as "algemas". Obviamente a Recycle havia chamado a polícia e feito uma queixa. Enquanto saíam em fila indiana da velha usina, passavam pela área vazia e chegavam ao Dodge Aspen da patrulha, ninguém falou. Frank ligou o carro e começou a se afastar do meio-fio. - Ei, meu carro está lá atrás -- falou Charles, inclinando-se para a frente, a fim de falar através da malha de rede que separava o assento dianteiro da parte de trás. - Sabemos onde está seu carro - retrucou Frank. Recostando-se, Charles procurou acalmar-se. Ó coração ainda batia forte em seu peito, e as pernas doíam horrivelmente. Relanceando o olhar pela janela do carro, procurou ver se o estavam levando para o distrito policial. Mas eles não deram meia-volta. Em vez disso, dirigiram-se para o sul e viraram no portão que dava para a área de estaciona- . mento da Recycle. Í Charles tornou a se debruçar para a frente. j - Escutem. Preciso da ajuda de vocês. Tenho quéf obter uma prova definitiva de que a Recycle está despejando veneno no Potomac. Era o que eu estava fazendo aqui quando eles caíram em cima de mim e destruíram minha câmara. - Escute, cara - disse Frank. - Recebemos uma chamada, uma queixa de que você estava invadindo o local. E, acima de tudo, de que você atacou um dos operários, empurrando-o para dentro do lago com ácido. Na noite passada você maltratou o supervisor, Nat Archer.

. Charles tornou a reclinar-se, vendo que teria de esperar pelo programa que Frank havia decidido pôr em prática. Era provável que ele quisesse alguma identificação positiva. com uma certa dose de raiva perturbando seu alívio, Charles resignou-se a ter que ir até o distrito policial. Pararam a uma certa distância da entrada. Frank tocou a buzina três vezes e aguardou.

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Logo a porta de alumínio se abriu e Charles viu sair Nat Archer, seguido por um tipo mais baixo, cuja perna esquerda estava envolta em ataduras do joelho para baixo. Frank lutou para sair de trás do volante e deu a volta ao carro, para abrir a porta para Charles. - Fora - foi tudo o que ele disse, 204

Charles obedeceu. Havia cerca de quatro centímetros de neve, e Charles escorregou um pouco antes de retomar o equilíbrio. As contusões provocadas pelo cassetete de Frank doíam mais quando ele ficava em pé. Nat Archer e seu acompanhante se dirigiram penosamente para Frank e Charles. - É este o homem? -- perguntou Frank, dobrando um tablete de goma de mascar e introduzindo-o profundamente na boca. Archer fitou Charles e disse: - É ele, correto. - Bem, você quer fazer as acusações? -- indagou Frank, mascando sua goma com altos ruídos. Archer afastou-se na direção da fábrica. Frank, ainda mascando o chiclete, contornou o carro da patrulha e entrou nele. Confuso, Charles virou-se para olhar Brezo. O homem postou-se à frente de Charles, exibindo um sorriso desdentado. Charles reparou numa cicatriz que descia ao lado -de seu rosto através da bochecha, tornando o sorriso ligeiramente assimétrico. Num relâmpago de inesperada violência, Brezo desfechou um poderoso murro na cintura de Charles, que pressentiu o golpe e tentou apará-lo com o cotovelo. Mesmo assim, o murro pegou Charles no abdome, fazendo-o dobrar-se em dois e jogando-o ao chão frio, onde ele ficou, lutando por respirar. Brezo continuou de pé, esperando mais ação, porém limitou-se a chutar um pouco de neve sobre Charles e afastou-se, mancando levemente com sua perna enrolada nas ataduras. Charles apoiou-se nas mãos e nos pés. Por um momento, sentiu-se desorientado devido à dor. Ouviu a porta do carro abrir-se e sentiu um puxão no braço que o obrigou a levantar-se. Comprimindo seu flanco, Charles deixouse levar de volta para o carro-patrulha. Uma vez lá dentro, deixou a cabeça cair sobre o encosto do assento. Sentiu que o carro patinava, mas não se importou. Conservava os olhos fechados. Doía muito, até para respirar. Depois de ufn curto tempo, o carro parou e a porta foi aberta. Charles abriu os olhos e viu Frank Neilson olhando Para o assento de trás. - Coragem, valentão. Você devia se sentir feliz por se sair dessa tão facilmente. - Estendeu o braço e puxou Charles para fora. 205

Charles saiu, sentindo-se um pouco estonteado. Frank fechou a porta traseira e voltou para o assento do motorista. Baixou o vidro da janela. - Acho melhor você ficar longe da Recycle. Já se espalhou por aí que você está procurando encrenca. Deixeme dizer-lhe uma coisa: se procurar, vai encontrar. De fato, você vai arranjar mais barulho do que está procurando. A cidade vive da Recycle, e nós, agentes da lei, não poderemos garantir sua segurança se você tentar mudar as coisas. E nem mesmo a de sua família. Pense nisso. Frank levantou o vidro de sua janela e partiu, deixando Charles em pé no meio-fio, as pernas salpicadas de lodo e neve semiderretida. Seu carro estava cerca de seis metros j adiante, parcialmente encoberto por uma mortalha de neve.jj Embora dolorido, Charles sentia uma raiva fria agitar-sel dentro dele. A adversidade sempre fora para ele um estí-? mulo à ação. Cathryn e Gina estavam limpando a cpzinha quando ouviram um carro passar pela entrada de veículos. Cathryn correu para a janela e afastou as cortinas de xadrezinho vermelho. Pedia a Deus que fosse Charles. Desde que ele saíra correndo do hospital que ela não tinha notícias do marido, e ninguém havia

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atendido ao telefone no laboratório. Ela sabia que devia contar a Charles sobre os procedimentos no tribunal. Não podia deixar que ele viesse a saber de tudo quando recebesse a citação da corte pela manhã. Vendo as luzes subirem pela entrada de veículo, Cathryn murmurava para si mesma: "Tomara que seja Charles, por favor". O carro fez a curva final e passou pela janela. Era o Ford! Cathryn suspirou aliviada. Voltou à cozinha e tomou o pano de pratos das mãos surpresas de Gina. - Mãe, é Charles. Você se incomodaria de ir para a sala? Quero falar um momento a sós com ele. Gina tentou protestar, mas Cathryn pôs os dedos nos lábios de sua mãe, silenciando-a delicadamente. - É importante. - Você está bem? - Claro - retrucou Cathryn, empurrando Gina na direção da porta. Tinha ouvido a batida da porta do carro. Cathryn dirigiu-se para a porta. Assim que Charle5 começou a subir os degraus, ela a abriu. 206

Antes que pudesse ver claramente seu rosto, ela sentiu-lhe o cheiro. Era um cheiro de mofo, como o de toalhas molhadas guardadas num armário no verão. Quando ele entrou no espaço iluminado, ela viu seu nariz contundido e inchado. Em seu lábio superior havia um pouquinho de sangue coagulado, e todo o seu rosto estava curiosamente preto. Seu casaco de pele de carneiro estava todo sujo, e as calças, rasgadas acima do joelho direito. Mas o pior de tudo era sua expressão de tensão e de raiva contida. - Charles? - Algo terrível estava acontecendo. Ela se havia preocupado com ele a tarde toda, e sua aparência mostrava que essa preocupação fora justificada. - Não diga nada por enquanto - pediu Charles, evitando o contato de Cathryn. Depois de tirar o casaco, ele se encaminhou para o telefone e começou a folhear nervosamente o catálogo. Cathryn tirou uma toalha limpa de uma gaveta e, molhando uma das extremidades, tentou limpar o rosto dele no lugar onde havia sangue. - Por Cristo, Cathryn! Você não pode esperar um segundo? - falou Charles, empurrando-a. Cathryn recuou. O homem que tinha à sua frente eraIhe estranho. Ela o viu fazer a ligação, apertando as teclas com um sentimento de vingança. - Dawson - berrou Charles ao telefone, - Pouco me importa se você tem a polícia e toda essa merda de cidade no seu bolso. Você não vai sair dessa assim! Charles enfatizou sua afirmação batendo com o fone. Ele não esperou uma resposta e quis derrotar Dawson- desligando. Depois do telefonema; sua tensão reduziu-se um pouco. com um movimento circular, ele esfregou as têmporas por um momento. - Eu não fazia idéia do quanto esta nossa cidadezinha antiquada era corrupta - falou, num tom de voz quase normal. Cathryn começou a se descontrair. - Que aconteceu com você? Você está ferido! Charles fitou-a. Sacudiu a cabeça e, para sua surpresa, riu. - Quem se feriu mais foi meu senso de dignidade. E difícil abandonar todas as fantasias de macho numa noite- Não, não estou ferido. Pelo menos não gravemente. Especialmente quando houve um momento em que eu pen- 207

sei que tudo estava acabado. Mas, por enquanto, preciso beber alguma coisa. Um suco de frutas. Qualquer coisa. - Seu jantar está no forno, aquecendo. - Meu Deus! Eu não poderia comer - disse Charles, afundando lentamente numa das cadeiras da cozinha. Mas estou com uma sede dos diabos. - Suas mãos tremiam quando ele as colocou sobre a mesa. Seu estômago doía onde tinha sido golpeado. Depois de encher um copo de sidra, Cathryn levou-o para a mesa. Ela divisou Gina, em pé, junto à porta, com uma expressão de inocência. Fingindo-se

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zangada, Cathryn gesticulou para que a mãe retornasse à sala de estar. E sentou-se à mesa. Pelo menos no momento, ela não iria contar a Charles sobre a situação da guarda da menina. - Há sangue no seu rosto -- disse ela, solícita. Charles limpou o nariz com as costas da mão e ficou olhando as casquinhas de sangue seco. - Miseráveis! - exclamou ele. Seguiu-se uma pausa, enquanto Charles bebia sua sidra. - Você vai me contar onde esteve e o que aconteceu? - perguntou finalmente Cathryn. -- Primeiro preferiria saber de Michelle - retrucou Charles, colocando o copo em cima da mesa. - Você tem certeza? - indagou Cathryn, estendendo a mão e colocando-a sobre a dele. - O que quer dizer com isso? - perguntou bruscamente Charles. - Claro que tenho certeza. - Não é o que você está pensando. Sei que está preocupado. Mas eu estou preocupada com você. Foi tão difícil para você admitir as complicações do coração de Michelle. - O que aconteceu agora? - perguntou Charles alteando a, voz, temendo que Cathryn tivesse novidades terríveis. -- Por favor, acalme-se - falou Cathryn, delicadamente. - Então me diga o que aconteceu com Michelle. - É apenas a febre. Ela subiu, e os médicos estão preocupados. - Oh, meu Deus! - Tudo o mais parece bem. Sua freqüência cardíaca tem permanecido normal. - Cathryn estava com medo de falar sobre o cabelo de Michelle, que tinha começado a cair. 208

Mas o dr. Keitzman dissera que aquilo era um efeito colateral já esperado e inteiramente reversível. - Algum sinal de remissão? - indagou Charles. - Acho que não. Eles não falaram nada. - Quanto tinha de febre? - Bastante. Quando saí ela estava com quarenta graus. - Por que você saiu? Por que não ficou com ela? - Eu sugeri isso, mas os médicos me convenceram a sair. Disseram que os pais que têm um filho doente devem ser cautelosos para não negligenciarem o resto da família. Disseram-me que nada havia que eu pudesse fazer. Eu devia ter ficado? Realmente eu não sabia. Quem me dera que você estivesse lá! - Oh, meu Deus! - tornou Charles a exclamar. Alguém devia estar com ela, A febre alta não é um bom sinal. Os medicamentos estão destruindo suas defesas normais sem tocarem, aparentemente, em suas células leucêmicas. Uma febre alta neste ponto significa infecção. De repente, Charles levantou-se. - vou voltar ao hospital - disse ele, decidido. Agora mesmo! - Mas por quê, Charles? Que é que você pode fazer agora? - Cathryn sentiu-se tomada de pânico e ergueu-se de um salto, - Quero ficar com ela. Além do mais, cheguei a uma conclusão. A medicação deve ser interrompida. Ou, pelo menos, reduzida à dose ortodoxa. Eles estão experimentando, e se estivesse funcionando, teríamos assistido à diminuição do número de células leucêmicas circulantes. Em vez disso, o número subiu. - Mas os remédios têm curado outras pessoas. Cathryn sabia que tinha de dissuadir Charles de ir ao hospital. Se ele fosse, haveria uma crise. . . um confronto. - Sei que a quimioterapia tem sido útil para outros - falou Charles. - Infelizmente, o caso de Michelle é diferente. O procedimento normal já fracassou. Não vou deixar minha filha continuar a servir de cobaia. Keitzman teve sua chance. Ela não vai definhar diante de meus olhos, como aconteceu com Elizabeth. Charles encaminhou-se para a porta. Cathryn agarrou-o pela manga. - Charles, por favor. Você não pode ir agora. Você está uma imundície. 209

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mais. " ""dmimente. Não podia esperar carro^E ° """ !U'°' * ""*"" das ** *> - "S±LeTrS5caa° "*• a8a"md° °°" ^ ^SS^-^TS - v- * Caries encontrou as chaves - ForamqfetPOSS° ~^ retmc°u "^"temente, continuou írhryn amn)OS ^ que VOcê não Pos^ - ^^K^^*^* ~ Ouern qU" ^ eStá """"^ di^r? ZízSF-Z J5£ ZST^SS Charles caminhou diretamente pára ela. esses. qUC C mdh°r yocê me dizer que arranjos são fosse pos^CsÍ7un,íraÍS hOUTSe Íma8ínado ^ aquil0 apertados Je ChaS. ^"^ de med° 3° fitar os olhos Pitai 7staDSe TveVOum ^ ^ aPressada^nte do hose o dr Wilev F1Í u C°nversa com ° dr- Keitzman e qufnão e enmnl T"" qUe VOcê estava mui<° tenso 4nto "^is^j^sffl^ s írTcems Cathryn procurava e,^^ lcneUe- ~ Deliberadamente, ouvido na reS QPque °SaíargUmentos l<* <P* tinha de Charles à sua^ cumpllddade H aterr°nzavfa era a rea^° lutara em participar OlS quena enfatlz" que re- olhos azuis^stavam fS l0^ ° "f0*3*- víu ?í °S que Michelle precisava de , adv°8jdo do hospital. disse médicos concordaram Diíerammf'^ Ç01?01^. e °S ""'- Disseram-me que poderiam fa2er isso

sem. minha cooperação, mas que seria muito mais fácil se eu os ajudasse. Achei que estava fazendo o que era certo, embora tenha sido uma decisão difícil. Achei que um de nós tinha que se ver envolvido. - E então o que aconteceu? - perguntou Charles, com o rosto assumindo um tom vermelho-escuro. - Houve uma audiência de emergência perante um juiz. - Cathryn estava contando os fatos muito mal e numa péssima ocasião. Misturava tudo. Obstinadamente, continuou: - O juiz concordou que Michelle devia receber o tratamento prescrito pelo dr. Keitzman. Fui nomeada guardiã temporária. Dentro de três dias vai haver uma nova audiência sobre o pedido, e uma audiência final, dentro de três semanas. O tribunal também nomeou uma guardiã e. . . escute, Charles, creia-me. . . fiz tudo isso por Michelle. Cathryn buscou no rosto de Charles um vislumbre de compreensão. Mas viu apenas raiva. - Charles! - gritou Cathryn. - Acredite-me, por favor. O médico me convenceu de que você estava sob grande tensão. Você não tem sido você mesmo. Olhe-se! O dr. Keitzman é mundialmente famoso pelo tratamento da leucemia infantil. Eu o fiz somente pelo bem de Michelle. É uma coisa apenas temporária. Por favor. - E Cathryn rompeu em lágrimas. Nesse instante, Gina apareceu à porta. - Está tudo bem? - disse ela, timidamente. Charles falou muito devagar, com os olhos fixos no rosto de Cathryn. - Espero em Deus que isso não seja verdade. Espero que você esteja inventando tudo isso. - É verdade - insistiu Cathryn. - É verdade. Você foi embora. Eu fiz o melhor que pude. Você vai receber uma citação amanhã de manhã. Charles explodiu com uma violência que ele jamais soubera possuir. O único objeto à mão era uma pequena pilha de pratos. Arrancando-os do balcão, levantou-os acima da cabeça e espatifou-os no chão, em meio a um horrível tüintar de porcelana. - Não suporto isto. Todo mundo está contra mim. Todo mundo! Cathryn encolheu-se junto à pia, com medo de se meXer- Gina ficou pregada ao portal, querendo fugir, mas temendo pela segurança da filha. 211

- Michelle é minha filha, minha carne e meu sangue - rugiu Charles. - Ninguém vai tirá-la de mim. - Ela é minha filha adotiva - soluçou Cathryn. Sinto tanto quanto você. - Dominando seu medo, ela agarrou as lapelas do casaco de Charles, sacudindo-o o mais que podia. - Por favor, acalme-se! Por favor! - gritava desesperadamente. A última coisa que Charles queria era ser

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contido. com um reflexo, seu braço ergueu-se e, com uma força desnecessária, jogou para o alto os braços de Cathryn. Seguindose ao golpe, inadvertidamente, a borda de sua mão apanhou o rosto dela, jogando-a para trás de encontro à mesa da cozinha. Uma cadeira caiu, e Gina 'gritou, correndo para dentro do aposento e colocando seu corpo volumoso entre Charles e sua aturdida filha. E, ao mesmo tempo que fazia o sinalda-cruz, começou a recitar uma oração. Charles estendeu o braço e rudemente afastou a mulher para o lado. Agarrou Cathryn pelos ombros e sacudiu-a, como se ela fosse uma boneca de trapos. - Quero que você pegue o telefone e cancele os procedimentos legais. Está entendendo? Chuck ouviu o tumulto e desceu as escadas correndo. Tomou conhecimento da cena que se desenrolava à sua frente e pulou para dentro da cozinha, segurando o pai por trás e prendendo seus braços. Charles tentou livrar-se, mas não pôde. Em vez disso, ele soltou Cathryn e deu uma estocada para trás com a ponta do cotovelo, que atingiu a boca do estômago de Chuck. O rapaz perdeu o fôlego e teve um acesso de ira. Charles virou-se e empurrou Chuck para trás, de modo a fazê-lo cair e bater com a cabeça rio chão. Cathryn gritava. A crise estava se expandindo numa reação em cadeia. Ela atirou-se em cima de Chuck, para protegê-lo do pai, e foi nesse momento que Charles percebeu que estava atacando seu próprio filho. Ele avançou um passo, mas Cathryn tornou a gritar, protegendo o rapaz, que estava todo enroscado. Gina interpôs-se entre Charles e os outros, murmurando qualquer coisa sobre o Diabo. Charles ergueu os olhos e viu o rosto confuso de Jean Paul no portal. Quando o rapaz percebeu que Charles o estava fitando, deu o fora. tornando a olhar para os outros, Charles se sentiu dominar por uma sensação de alienação. 212

Impulsivamente, virou-se e saiu de casa como uma tempestade. Gina fechou a porta da cozinha atrás dele, enquanto Cathryn ajudava Chuck a sentar-se numa das cadeiras. Eles ouviram o Ford sair com estrondo pelo caminho. - Eu o odeio! Eu o odeio! - gritava Chuck, com ambas as mãos no estômago. - Não, não - acalmou Cathryn. - Tudo isso é um pesadelo. Vamos acordar e tudo estará terminado. - Seu olho! - exclamou Gina, aproximando-se de Cathryn e inclinando a cabeça da filha para trás. - Não é nada - disse Cathryn. - Nada? Está ficando roxo. Acho melhor colocar um pouco de gelo. Cathryn levantou-se e mirou^se num pequeno espelho que pendia no saguão. Havia um pequenino corte no seu supercílio direito, e o olho estava realmente ficando preto. Quando voltou para a cozinha, Gina já tinha tirado a bandeja de gelo. Jean Paul reapareceu à porta. - Se ele tornar a bater em você, eu o mato -- disse Chuck. - Charles Jr. - disse bruscamente Cathryn. •- Não quero ouvi-lo dizer isso. Charles está fora de si. Está sobuma tremenda tensão. Além' disso, ele não quis me bater. Estava tentando se livrar de mim. - Acho que ele se deixou possuir pelo Demônio disse Gina. - Já basta, todos vocês! - exclamou Cathryn. - Acho que ele está louco - insistiu Chuck. Cathryn tomou fôlego, preparando-se para repreender Chuck; mas hesitou, porque o comentário do rapaz a fez pensar se Charles não estava tendo um colapso nervoso. Os médicos haviam sugerido essa possibilidade, e tinham acertado em tudo o mais. Cathryn começou a pensar onde encontrar forças para manter a família unida. Sua primeira preocupação era a segurança. Jamais tinha visto Charles perder o controle. Achando melhor _aconselhar-se profissionalmente, ela telefonou para o dr. Keitzman. Ele retribuiu a chamada cinco minutos mais tarde. Ela o pôs a par de todos os acontecimentos, inclusive do fato de que Charles tinha decidido interromper o trata- 213

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mento de Michelle, e acrescentou que ele havia saído em seu carro, provavelmente para o hospital. - Parece que apresentamos o pedido de custódia na hora certa - disse o dr. Keitzman. Cathryn não estava disposta a se congratular. - Pode ser, mas estou preocupada com Charles. Não sei o que mais esperar. - O problema é justamente esse - replicou o dr. Keitzman. - Ele pode ser perigoso. - Não posso acreditar nisso. - Isso é algo de que não se pode ter certeza, a não ser que ele seja examinado por um médico. Mas, acrediteme, existe uma possibilidade. Talvez a senhora devesse deixar a casa por um ou dois dias. A senhora deve pensar em sua família. - Acho que poderíamos ir para a casa de minha mãe - retrucou Cathryn. Era verdade que ela devia pensar nos outros. - Acho que seria melhor. Até Charles se acalmar. - E se Charles for para o hospital esta noite? - Não precisa se incomodar. vou alertar o hospital, e farei com que o pessoal de plantão saiba que a senhora tem a custódia. Não se preocupe, tudo vai dar certo. Cathryn desligou, querendo se sentir tão otimista quanto o dr. Keitzman. Ainda tinha a sensação de que as coisas iam piorar. Meia hora mais tarde, cheios de dúvidas e apreensivos, Cathryn, Gina e os dois rapazes enfrentaram penosamente a neve, amontoando malas na caminhonete. Deixaram Jean Paul na casa de um amigo de escola, onde ele tinha sido convidado para ficar, e partiram para Boston. Ninguém falava. 214

11 Já passava das nove horas quando Charles chegou ao Hospital Pediátrico. Ao contrário do caos diurno, a rua estava calma. Ele encontrou um lugar para estacionar diante da livraria do centro médico. Entrou no hospital pela entrada principal e subiu_ao Anderson 6 num elevador vazio. Ao passar pelo posto das enfermeiras foi abordado por alguém, mas nem se dignou olhar na direção de onde vinha a voz. Foi direto ao quarto de Michelle e esgueirou-se pela porta parcialmente aberta. Estava mais escuro do que no hall. Havia apenas a luz de uma pequena lâmpada notuma colocada perto do chão. Dando um tempo aos seus olhos para se acomodarem, Charles ficou por um momento observando o ambiente. Do outro lado da cama via-se o monitor cardíaco. O sinal auditivo tinha sido abaixado, mas o sinal visual permitia ver um traçado repetitivo e fluorescente na pequenina tela. Havia dois tubos endovenosos, cada qual penetrando num dos braços de Michelle. O da esquerda tinha um duplo conector, e Charles viu que estava sendo usado para infusão da quimioterapia. Charles avançou silenciosamente pelo quarto, os olhos fixos no rosto adormecido da filha. Ao chegar mais perto, viu, com surpresa, que os olhos de Michelíe não estavam fechados. Observavam cada um de seus movimentos. - Michelle? - murmurou Charles. - Paizinho - sussurrou a menina em resposta. Ela pensara que se tratasse de outro técnico do hospital entrando sorrateiramente à noite para tirar-lhe o sangue. Ternamente, Charles tomou a filha nos braços. Sentiu-a consideravelmente mais leve. Ela tentou retribuir o abraço, mas seus membros estavam sem força. Ele encostou seu rosto ao de Michelle e embalou-a devagarinho. Podia perceber sua pele corada pela febre. Observando o rosto da filha, ele reparou que seus lá- 215

bios estavam ulcerados. Experimentou uma emoção tão poderosa que ficou a beira das lágrimas. A vida não era bela. Era uma experiência cruel, na qual a esperança e a felicidade não passavam de ilusões passageiras, que só serviam para tornar a tragédia inevitável mais

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pungente. EnquaritcP abraçava a filha, pensou em sua reação diante da Recycle,^ Ltd. e achou que era uma insensatez. Claro que ele podia compreender seu impulso de vingança, mas, em face das circunstâncias, havia coisas muito mais importantes nas quais gastar seu tempo. Era evidente que o pessoal da Recyclí6 nao se importava com uma garota de doze anos e podia negar convenientemente qualquer responsabilidade. E o que dizer da chamada "comunidade do câncer"? Eles se importariam? Charles duvidava disso desde que tinha visto a dínamica interior de seu próprio instituto. A ironia estava nas pessoas que controlavam a megalítica instituição do câncer corriam, em última análise, o mesmo risco que o Público em geral de sucumbir à doença. - Paizin ho, por que seu nariz está tão inchado? perguntou Mic'ne^e> olhando para o rosto de Charles. Charles se impressionou. Doente como estava, Michelle ainda se preocupava com ele. Incrível! Ele inventou uma história de ter escorregado na neve e de haver caído comicamente de cara no chão. Michelle riu, mas logo seu rosto ficou sério. - Paiziní1.0" vou ficar boa? Involuntariamente, Charles hesitou. A pergunta o havia apanhado desprevenido. - Claro '- disse ele rindo, procurando algo para desviar a conversa • - com efeito, não creio que você precise mais desse renédio. - E levantou-se, indicando o tubo endovenoso oso Para a quimioterapia. - Por que não tiro logo isso? Michelle fechou o rosto, preocupada. Ela detestava quaisquer ajusts nos tubos das injeções endovenosas. - Não vi i doer - disse Charles. Habilment^' e^e removeu o cateter plástico do braço de Michelle, fa^end° pressão no local. - Você Vfli precisar da outra injeção na veia, para o caso de seu "r^ógio" acelerar de novo - disse Charles, batendo de levtf no peito de Michelle. A luz do 4uarto se acendeu de repente, lançando seu clarão fluoresceí'16 em redor 216

Uma enfermeira entrou, seguida de dois guardas de segurança uniformizados. -• Sr. Martel, lamento, mas o senhor vai ter que ir embora. - Ela reparou no tubo de plástico que pendia, oscilando, e sacudiu a cabeça, zangada. Charles não respondeu. Sentou-se na borda da cama de Michelle e tomou-a de novo nos braços. com um gesto, a enfermeira pediu auxílio aos guardas de segurança. Eles se adiantaram e delicadamente insistiram com Charles para sair. - Nós podemos prendê-lo se o senhor não cooperar - disse a enfermeira -, mas não quero fazer isso. Charles deixou que os guardas desvencilhassem seus braços de Michelle. A menina olhou para os guardas e depois para o pai. - Por que vão prender você? -- Não sei - respondeu Charles, com um sorriso. - Acho que não é hora de visitas. Charles ergueu-se, curvou-se, beijou Michelle e disse: - Seja boazinha. Voltarei logo. A enfermeira apagou a luz do teto. Charles acenou da porta, e Michelle retribuiu seu aceno. - O senhor não devia ter retirado aquela agulha da veia - falou a enfermeira, enquanto eles voltavam ao posto das enfermeiras. Charles não respondeu. - Se o senhor quiser visitar sua filha - continuou a enfermeira -, terá de fazê-lo durante as horas regulamentares. E terá de vir acompanhado. - Eu gostaria de ver a papeleta dela - falou Charles cortesmente, ignorando os outros comentários. A enfermeira continuava andando; era evidente que a idéia não lhe agradava. - Tenho esse direito - disse Charles com simplicidade. - Além do mais, sou médico. Embora relutante, a enfermeira concordou, e Charles entrou no quarto das papeletas, agora deserto. Pendendo inocentemente do seu lugar estava a papeleta de Michelle. Ele arrancou-a e colocou-a diante de seus olhos. Naquela tarde havia sido feita uma contagem de glóbulos. Charles sentiu um aperto no coração. Embora ele já o esperasse, foi um golpe ver que a contagem de células leucêmicas não tinha diminuído. Na verdade, havia subido um pouco. 217

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Não havia dúvida de que a quimioterapia não estava ajudando em nada. Puxando o telefone para si, Charles fez uma ligação para o dr. Keitzman. Enquanto esperava que atendessem, olhou de relance o resto da papeleta. O mais alarmante era o gráfico da febre de Michelle. Tinha permanecido em tom o de 37,8 até aquela tarde, quando subira para quarenta graus. Charles leu o relatório da cardiologista, cuidadosamente datilografado. A conclusão era que a taquicardia ventricular podia ter sido causada pela rápida infusão da segunda dose de Daunorubicin, por uma infiltração leucêmica do coração ou, talvez, pela combinação dos dois fatores. Nesse momento, o telefone foi atendido. Era o dr. Keitzman. Tanto o dr. Keitzman quanto Charles se esforçaram por ser cordiais. - Sendo médico - disse o dr. Keitzman -, tenho a certeza de que o senhor sabe que, freqüentemente, nós nos encontramos no dilema de aderir aos melhores princípios estabelecidos pela medicina ou de nos abandonarmos aos desejos do paciente ou de sua família. Pessoalmente, acredito no primeiro critério, e assim que se começa a fazer uma exceção, seja qual for a justificativa, é como abrir a , caixa de Pandora. Assim sendo, temos de recorrer cada vez mais aos tribunais. - Mas é claro - falou Charles, controlando-se que a quimioterapia não está ajudando no caso de Michelle. - Ainda não - admitiu o dr. Keitzman. - Mas é cedo. Existe ainda uma chance. Além do mais, isso é tudo o que temos. - Acho que o senhor está se poupando - disse bruscamente Charles. O dr. Keitzman não respondeu. Ele sabia que havia um grão de verdade no que Charles dizia. A idéia de nada fazer era um anátema para o dr. Keitzman, especialmente em se tratando de uma criança. - Outra coisa - prosseguiu Charles. - O senhor acha que o benzeno podia ter causado a leucemia de Michelle? - É possível. É o tipo certo de leucemia. Ela ficou exposta? - Por um longo período. Uma fábrica vem despejando benzeno num rio que alimenta o lago em nossa propriedade. O senhor diria que a leucemia de Michelle foi causada pelo benzeno? 218

- Eu não poderia fazer isso. Lamento, mas isso seria puramente circunstancial. Além do mais, só em animais de laboratório é que o benzeno tem comprovadamente causado leucemia. - Mas o senhor e eu sabemos que o benzeno pode afetar os seres humanos. - É verdade, mas este não é o tipo de prova aceitável por um tribunal de justiça. Existe um elemento de dúvida, por menor que seja. - Então o senhor não quer ajudar? - Lamento, mas não posso. Mas existe algo que posso fazer e sinto que é meu dever. Gostaria de encorajá-lo a procurar um psiquiatra. O senhor sofreu um choque tremendo. Charles pensou em xingar o homem, mas não o fez. Em vez disso, desligou na cara dele. Ao se pôr de pé, pensou em voltar sorrateiramente ao quarto de Michelle, mas não pôde. A enfermeira encarregada o observava como um falcão, e um dos seguranças ainda permanecia ali, folheando um exemplar da revista People. Charles foi até o elevador e apertou o botão. Enquanto esperava, começou a delinear quais os meios de ação de que dispunha. Ele estava por sua conta, e estaria ainda mais após a reunião do dia seguinte com o dr. Ibanez. Ellen Sheldon chegou no Weinburger mais tarde do que de hábito. Mesmo assim ela não se apressou, porque a caminhada até a porta era traiçoeira. O meteorologista de Boston acertara, ao informar, na noite anterior: o dia começaria com chuva, depois neve, e chuva de novo. Então tudo estaria solidamente congelado. Quando Ellen chegou à porta de entrada eram cerca de oito e meia. Estava atrasada por duas razões. Em primeiro lugar, nem sabia se veria Charles naquele dia, portanto

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não havia necessidade de preparar o laboratório. Em segundo, ficara fora de casa até altas horas na noite anterior. Violara uma de suas regras capitais: jamais aceitar um encontro impulsivamente. Mas depois de dizer ao dr. Morrison que Charles não estava continuando o trabalho no Canceran, ele a convencera a tirar folga o resto do dia. Tinha também anotado seu telefone, para lhe comunicar os resultados da reunião com Charles e os Weinburgers. Embora Ellen não o espe- 219

rasse, ele tinha telefonado e lhe contado sobre a situação em que Charles se achava, e que ele dispunha de vinte e quatro horas para decidir se entrava ou não no jogo. Então convidara-a para jantar. Decidindo que era um encontro de negócios, Ellen aceitara, e estava contente por ter procedido assim. O dr. Peter Morrison não se parecia com Paul Newman, mas era um homem fascinante, e obviamente poderoso na comunidade da pesquisa. Ellen tentou destrancar a porta do laboratório e ficou surpresa ao ver que já estava aberta. Charles já pegara firme no trabalho. - Pensei que você não viesse hoje - brincou Charles, de bom humor. Ellen tirou o casaco e lutou com uma leve onda de culpa. - Achei que você não estaria aqui. - Oh! - exclamou Charles. - Bem, passei uma boa parte da noite trabalhando. Ellen encaminhou-se para sua mesa. Charles tinha à sua frente um novo relatório, e várias páginas já estavam cheias de sua escrita precisa. Seu aspecto era terrível. O cabelo estava repuxado e emaranhado, salientando a área que se tornara calva no alto da cabeça. Seus olhos estavam cansados, e a barba não fora feita. - Que está fazendo? - perguntou Ellen, procurando avaliar sua disposição. - Tenho andado ocupado - respondeu Charles, segurando e erguendo um frasco. - E tenho algumas notícias boas. Nosso método de isolar uma proteína antigênica

. de um animal canceroso funciona muito bem com o câncer humano. O hibrídoma que fiz com as células leucêmicas de Michelle saiu às mil maravilhas. Ellen assentiu com a cabeça. Estava começando a ter pena de Charles Martel. - E examinei também - continuou Charles - todos os camundongos que inoculamos com o antígeno do câncer mamário. Dois deles mostram uma resposta leve, porém definida e encorajadora. O que acha disso? Hoje eu gostaria que você os inoculasse com outra dose desafiadora do antígeno. E gostaria também que iniciasse uma nova leva de camundongos, usando o antígeno leucêmico de Michelle. - Mas, Charles - disse Ellen com simpatia -, nós não devíamos estar fazendo isso. Charles depôs o frasco que tinha na mão com todo o 220

cuidado, como se ele contivesse nitroglicerina. Voltou-se e encarou Ellen. - Ainda sou eu quem manda aqui. - Sua voz estava serena e controlada, talvez controlada demais. Ellen fez que sim com a cabeça. Na verdade, passara a sentir um pouco de medo de Charles. Sem mais palavras, ela se dirigiu para sua área e começou a se preparar para inocular os camundongos. Pelo canto do olho, viu Charles retirar-se para sua mesa, apanhar um -maço de papéis e começar a ler. Ellen olhou para o relógio. Pouco depois das nove, ela pediria licença para sair do laboratório e entraria em contato com Peter Morrison. Naquela manhã, Charles tinha recebido a citação referente à audiência da concessão de tutela. Os papéis lhe tinham sido entregues por um mensageiro do departamento policial. Ele não dissera uma palavra e não os examinara até aquele momento. Não tinha muita paciência com o jargão legal, e apenas olhou de relance

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para os formulários, reparando que sua presença era solicitada numa audiência programada para dali a três dias. Recolocando os papéis dentro do envelope, ele os pôs de lado. Precisava se aconselhar do ponto de vista legal. Depois de consultar seu relógio, Charles pegou o telefone. Sua primeira chamada foi para John Randolph, administrador da cidade de Shaftesbury, em New Hampshire. Charles conhecia o homem, já que ele também era o dono da loja de equipamentos local. - Tenho um protesto a fazer - disse Charles, após os cumprimentos de praxe - contra a força policial de Shaftesbury. - Espero que não esteja falando do ocorrido a noite passada na fábrica - falou John. - Na verdade, estou. - Bem, já sabemos de tudo sobre o incidente. Frank Neilson fez com que os três conselheiros municipais se reunissem com ele para o desjejum no refeitório da Polícia Judiciária. Eu soube de tudo. Parece-me que você teve sorte de Frank ter aparecido por lá. - Foi o que pensei no início. Mas não depois que eles tornaram a me levar até a Recycle, para que um cara meio louco pudesse me esmurrar. - Não soube disso - admitiu John. - Mas soube que você invadiu a propriedade e depois empurrou alguém para cima de um certo ácido. Por que, meu Deus, você 221

está criando problemas na fábrica? Você não é um doutor? Isso me parece um comportamento muito estranho para um médico. Uma raiva súbita turvou a mente de Charles. Ele se lançou numa apaixonada explicação sobre o despejo de benzeno e de outras substâncias tóxicas feito pela Recycle no rio. Disse ao administrador que, pelo bem da comunidade, estava tentando fazer com que a fábrica fosse fechada. - Não creio que a comunidade encare com bons olhos o fechamento da fábrica - disse John, quando finalmente Charles fez uma pausa. - Havia um bocado de desemprego por aqui antes de a fábrica abrir. A prosperidade de nossa cidade está diretamente ligada à Recycle. -' Suponho que você avalia a prosperidade pelo número de máquinas de lavar vendidas. - Isso também faz parte - concordou John. - Por Deus! - gritou Charles. - Causar doenças mortais como a leucemia e a anemia aplástica nas crianças é um alto preço a se pagar pela prosperidade, não concorda? - Nada sei sobre isso - retrucou John calmamente. - Não acho que você queira saber. - Está me acusando de alguma coisa? - Você está certíssimo. Eu o estou acusando de irresponsabilidade. Mesmo que houvesse apenas uma pequena chance de que a Recycle estivesse despejando produtos químicos tóxicos no rio, a fábrica devia ser fechada até que se fizesse uma investigação. O risco não vale um punhado de empregos imundos. - É fácil você dizer isso, sendo médico e não tendo que se preocupar com dinheiro. Esses empregos são importantes para a cidade e para as pessoas que trabalham aqui. Quanto ao seu protesto sobre a nossa polícia, por que você não se mantém afastado de nossos negócios? Foi o que os funcionários municipais sugeriram esta manhã. Não precisamos que tipos como você, com todos os seus imponentes títulos de Harvard, nos digam como viver! Charles ouviu o estalido da linha. Para aquela abordagem era o bastante, pensou ele. Sabendo que a raiva não o levaria a parte alguma, Charles ligou para a Agência de Proteção Ambiental. Perguntou pela sra. Amendola, da Divisão de Execuções. Para sua surpresa, a ligação foi completada imediatamente e ele ouviu a voz ligeiramente anasalada da sra. Amendola. Charles

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identificou-se e depois descreveu o que tinha encontrado na Recycle, Ltd. - O tanque que armazena o benzeno tem um tubo que se une diretamente com a calha do teto - falou ele. - Nada sutil - observou a sra. Amendola. - Acho que é o mais evidente possível. E, além de tudo, eles têm um tanque de substâncias químicas que escoa regularmente para dentro do rio. - O senhor tirou algumas fotografias? - Tentei, mas não pude. Acho que sua gente poderia ter mais sorte que eu. - Charles não via nenhuma razão para entrar em detalhes sobre a destruição de sua câmara. Se isso pudesse interessar à Agência de Proteção Ambiental, ele o teria feito. Tal como as coisas estavam, ele receava que o fato também pudesse desencorajá-los. - vou fazer algumas ligações - disse a sra. Amendola. - Mas não posso lhe prometer nada. Seria mais fácil se eu tivesse a queixa por escrito que o senhor prometeu me mandar e algumas fotos, mesmo ruins. Charles lhe disse que ia consegui-las assim que pudesse, mas que apreciaria se ela fosse em frente e tomasse alguma providência com base na informação que ele já lhe havia prestado. Ao desligar, ele não estava muito confiante de que se fizesse alguma coisa. Voltando à bancada do laboratório, ele observou a preparação de Ellen. Não interferiu, porque a moça era muito mais hábil do que ele. Em vez disso, ocupou-se em diluir o antígeno leucêmico de Michelle, a fim de preparálo para ,ser injetado nos camundongos. Como o frasco estava esterilizado, Charles usou uma técnica estéril para retirar um volume exato da solução. Essa porção foi então adicionada a uma quantidade específica de solução salina, para chegar à concentração que ele desejava. O frasco com o restante do antígeno foi para a geladeira. Completada a diluição, Charles entregou-a a Ellen e lhe disse que continuasse o que já estava fazendo, enquanto ele ia ver um advogado. Disse-lhe que estaria de volta antes do almoço. Depois que a porta se fechou, Ellen ficou parada por bem uns cinco minutos, contemplando o ponteiro dos segundos girar em tom o do mostrador do relógio. Vendo que Charles não voltava, ligou para a recepcionista, que confirmou que ele tinha saído do instituto. Só então discou para o dr. Morrison. Assim que ele atendeu ao telefone, 223

ela lhe contou que Charles continuava trabalhando em sua própria pesquisa; com efeito, estava expandindo-a e se comportando de modo estranho. - Está bem - disse o dr. Morrison. - Esta é a gota d'água. Ninguém vai nos culpar por não termos tentado, mas Charles Martel está acabado no Weinburger. A busca de Charles por uma representação legal não foi tão fácil quanto ele havia pensado que fosse. Associando absurdamente a competência e o conhecimento a instalações imponentes, ele se dirigiu para o centro da cidade em Boston, estacionando seu carro na garagem do centro governamental. O primeiro edifício de escritórios que se erguia majestoso era o número l da State Street. Possuía um chafariz, amplos espaços de mármore polido e uma porção de vidros coloridos. O indicador mostrava várias firmas de advocacia. Charles escolheu a que estava mais no alto: Begelman, Canneletto e O'Malley, esperando que a metafórica colocação no indicador se refletisse em seu desempenho. Todavia, a única correlação existente era com seus presumíveis honorários. Aparentemente a firma não ligava para o tráfego da rua, e Charles foi obrigado a esperar num desconfortável sofá Chippendale que tanto serviria para fazer amor quanto como banco de um parque. O advogado que finalmente o recebeu era um dos sócios mais jovens. Charles achou que ele parecia ter quinze anos. Inicialmente a conversa transcorreu muito bem. O jovem advogado pareceu genuinamente surpreso ao saber que um juiz havia concedido a custódia temporária ex parte a um parente legal, em vez de a um parente consangüíneo. No entanto,

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tornou-se menos indulgente quando soube que Charles queria interromper o tratamento recomendado pelos especialistas. Apesar disso, ele ter-se-ia mostrado cordato e disposto a ajudar se Charles não se tivesse lançado a apaixonadas acusações contra a Recycle, Ltd. e a cidade de Shaftesbury. Quando o advogado começou a questionar as prioridades de Charles, eles acabaram discutindo. Então'", ele acusou Charles de barataria, o que particularmente inflamou o médico, que não sabia o que aquilo queria dizer. Charles ficou sem o representante legal e, em vez de tentar outras firmas no edifício, consultou as páginas amarelas da lista telefônica num drugstore próximo. Evitando 224

endereços fantásticos, Charles procurou advogados que trabalhassem por conta própria. Marcando meia dúzia de nomes, ele começou a fazer ligações, perguntando a quem quer que atendesse se eles estavam muito ocupados ou se precisavam de causas. Se houvesse uma hesitação na resposta, Charles desligava e passava ao seguinte. Na quinta tentativa, quem atendeu foi o próprio advogado. Charles gostou daquilo. Em resposta à pergunta de Charles, o advogado disse que estava morrendo de fome. Charles replicou que iria lá imediatamente. E copiou o nome e endereço: Wayne Thomas, Brattle Street número 13, Cambridge. Não havia chafarizes, nem mármores, nem vidros. com efeito, o número 13 da Brattle Street era uma entrada dos fundos, através de uma alameda que mais parecia um.desfíladeiro. Para além de uma porta de metal erguia-se um lanço de degraus de madeira. No alto havia duas portas. Uma dava para o escritório de uma quiromante, a outra para o de Wayne Thomas, advogado. Charles entrou. - Muito bem, camarada, sente-se aqui e diga-me do que se trata - falou Wayne Thomas, puxando uma cadeira de encosto reto. Enquanto Wayne apanhava um bloco amarelo, • Charles relanceou o olhar pela sala. Havia um retrato. Abraham Lincoln. A não ser isso, as paredes eram brancas, com reboco recente. Só havia uma janela, através da qual Charles podia ver um pedacinho da Harvard Square. O chão era de madeira de lei recentemente polido e envernizado. A sala tinha uma aparência utilitária. -• Minha mulher e eu decoramos o escritório - disse Wayne, notando que Charles o percorria com os olhos. Que é que o senhor acha? - Gosto - respondeu Charles. Thomas Wayne não parecia estar morrendo de inanição. Era um sólido negro de um metro e oitenta, no início da casa dos trinta anos, com uma barba espessa. Trajando um terno azul listrado, era uma figura imponente. Entregando-lhe a citação da custódia temporária, Charles contou-lhe sua história. A não ser por algumas notas que tomava, Wayne escutava atentamente e não interrompia, como o jovem de Begelman, Canneletto e O'Malley. Quando Charles chegou ao íirn de sua história, Wayne fez uma série de perguntas esclarecedoras. Por fim, falou: - Acho que até a audiência não há muita coisa a fazer nesta questão de custódia temporária. com uma custódia ad liíim eles cobriram a retaguarda. Mas, de qualquer 225

modo, preciso de tempo para preparar o caso. Quanto à Recycle, Ltd. e a cidade de Shaftesbury, posso começar imediatamente. Todavia, existe a questão de um adiantamento. "- Estou esperando um empréstimo de três mil dólares - disse Charles. Wayne assobiou. - Não estou falando em tanto assim. Que tal quinhentos? Charles concordou em enviar o dinheiro assim que recebesse o empréstimo. Os dois apertaram-se as mãos, e pela primeira vez Charles

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notou que o homem usava um delicado brinco de ouro na orelha direita. Retornando ao Weinburger, Charles sentiu um pouco de satisfação. Pelo menos tinha iniciado o processo legal, e, mesmo que Wayne não fosse bem sucedido, na pior das hipóteses causaria algumas dificuldades aos seus adversários. Charles esperou impaciente do lado de fora da grossa porta de vidro. A srta. Andrews, que obviamente o vira, preferiu terminar uma linha de sua datilografia antes de soltar a porta. Quando Charles passou por ela, a moça pegou o telefone. Isso não era bom sinal. O laboratório estava vazio. Ele chamou por Ellen. Não obtendo resposta, procurou-a no biotério, mas ela não estava lá. Quando olhou para o relógio, soube a razão. Ele havia demorado mais do que esperava. Era evidente que Ellen havia saído para o almoço. Dirigindo-se para a área de trabalho da moça, viu que a diluição que ele havia preparado do antígeno leucêmico de Michelle não tinha sido tocada. Voltando à sua mesa, ele telefonou de novo para a sra. Amendola, ,na Agência de Proteção Ambiental, para perguntar se ela tivera alguma sorte com o Departamento de Vigilância. com uma leve e disfarçada impaciência, ela lhe disse que aquele não era o único problema em que estava trabalhando e que preferia chamá-lo em vez de receber o tele- • fonema dele. Mantendo a calma, Charles tentou falar com o chefe regional da Agência de Proteção Ambiental, a fim de apresentar uma queixa formal contra a organização da agência, mas o homem encontrava-se em Washington, numa reunião para discutir os novos regulamentos sobre despejos perigosos. Desesperadamente tentanto manter a confiança no conceito do governo representativo, ele telefonou para os governadores de New Hampshire e de Massachusetts. Em 226

ambos os casos o resultado foi o mesmo. Não conseguiu passar das secretárias, que insistentemente o enviavam para a Junta Estadual de Controle de Poluição da Água de ambos os Estados. Por mais que ele dissesse inclusive que já tinha falado com aquela gente, as secretárias mantiveram-se irredutíveis, e ele desistiu. Resolveu telefonar para o senador democrata de Massachusetts. De saída, a resposta de Washington pareceu promissora, mas depois ele foi passado de assistente para assistente, cada vez de um nível mais baixo, até que se viu falando com alguém especializado em meio ambiente. Apesar de sua queixa bastante específica, o assistente insistia em manter a conversa sobre generalidades. com o que parecia um discurso preparado, o homem encheu Charles com dez minutos de propaganda sobre quanto o senador se interessava pelas questões do meio ambiente. Enquanto esperava que seu interlocutor fizesse uma pausa, Charles viu Peter Morrison entrar no laboratório. Desligou, deixando o assistente no meio de uma frase. Os dois homens se olharam através do assoalho polido do laboratório de Charles, suas diferenças exteriores mais aparentes do que de hábito. Parecia que Morrison se esmerara particularmente em fazer boa figura naquele dia, ao passo que Charles vinha de uma noite dormida no laboratório, e com as mesmas roupas. Morrison tinha entrado com um sorriso vitorioso, mas quando Charles voltou-se para ele, o administrador notou que ele também sorria animadamente. O riso de Morrison vacilou. Charles achava que finalmente havia entendido o dr. Morrison. Era um pesquisador que passara à administração como um meio de salvar seu ego. Sob sua polida aparência exterior, ele ainda reconhecia que o pesquisador era o rei, e, nesse contexto, ressentia-se de sua dependência da capacidade e confiança de Charles. - Você deve comparecer imediatamente ao escritório do diretor - disse Morrison. - Não se preocupe em se barbear. Charles riu alto, sabendo que a última observação devia ser tomada como o maior dos insultos. - Você é

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impossível, Martel - falou bruscamente o dr. Morrison, deixando o laboratório. Charles procurou acalmar-se antes de dirigir-se ao escritório do dr. Ibanez. Sabia exatamente o que ia acontecer, 227

e, no entanto, temia o encontro. Ir ao escritório do diretor tinha se tom ado um ritual diário. Ao passar pelos sombrios retratos a óleo dos antigos diretores, ele acenou para alguns deles. Ao chegar junto à srta. Evans, limitou-se a sorrir, ignorando suas frenéticas ordens para que parasse. Sem bater na porta, Charles entrou despreocupadamente no escritório do dr. Ibanez. O dr. Morrison, que estava debruçado sobre o ombro do dr. Ibanez, empertigou-se. Examinavam alguns papéis. O dr. -Ibanez fitou Charles com uma certa confusão. - Bem? - disse Charles agressivamente. O dr. Ibanez olhou de relance para Morrison, que encolheu os ombros. - Você parece cansado - disse o dr. Ibanez, contrafeito. - Obrigado pelo seu interesse - respondeu Charles cinicamente. - Dr. Martel, receio que o senhor não tenha nos deixado qualquer opção - prosseguiu ò dr. Ibanez, organizando seus pensamentos. - É? - perguntou Charles, como se não soubesse do que se tratava. - Sim - continuou o dr. Ibanez. - Conforme o avisei ontem, e de acordo com a vontade da junta de diretores, o senhor está sendo despedido do Instituto Weinburger. Charles sentiu um misto de raiva e ansiedade. O velho pesadelo de ser afastado de sua posição tinha finalmente passado da fantasia à realidade. Ocultando cuidadosamente qualquer sinal de emoção, Charles acenou com a cabeça para indicar que tinha ouvido e depois virou-se para sair. - Espere um minuto, dr. Martel - chamou o dr. Ibanez, pondo-se de pé atrás de sua mesa. Charles voltou-se. - Ainda não acabei - disse Ibanez. Charles olhou para os dois homens, indeciso se devia ficar ou não. Eles não tinham mais nenhum poder sobre ele. - Para o seu próprio bem, Charles - continuou o dr. Ibanez -, acho que no futuro você deve reconhecer que tem certas obrigações legítimas para com a instituição que o sustenta. Você recebeu um campo praticamente livre para prosseguir com seus interesses científicos, mas precisa compreender que deve algo em troca. - Talvez - disse Charles. Ele não acreditava que 228

o dr. Ibanez abrigasse a mesma má vontade que o dr. Morrison. - Por exemplo - falou o dr. Ibanez -, chegou ao nosso conhecimento que você tem uma queixa contra a Recycle, Ltd. O interesse de Charles se avivou. - Acho que você deve se lembrar de que - continuou o dr. Ibanez -• a Recycíe e o Weinburger fazem parte da mesma empresa, a Breur Chemicals. Reconhecendo essa associação fraterna, eu acho conveniente que você não apresente nenhuma queixa pública. Se existe um problema, ele deve ser resolvido internamente, e com calma. É assim que o negócio funciona. - A Recycle vem despejando benzeno no rio que passa pela minha casa - rosnou Charles. - E, em conseqüência, minha filha contraiu leucemia. - Não se pode provar uma acusação dessas, o que não deixa de ser uma irresponsabilidade - falou o dr. Morrison. Charles avançou impulsivamente para Morrison, momentaneamente cego por uma raiva súbita, mas então lembrou-se de onde se encontrava. Além do mais, não era de seu temperamento ferir ninguém. - Charles - disse o dr. Ibanez. - Tudo o que estou fazendo é apelar para o seu senso, de responsabilidade e implorar-lhe que ponha de lado seu próprio trabalho pelo tempo suficiente para realizar o estudo do Canceran. Evidentemente

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irritado com o fato de poder ser concedida uma segunda chance a Charles, o dr. Morrison afastou-se da conversa e ficou contemplando o rio. - É impossível - explodiu Charles. - Dada a situação de minha filha, sinto-me na obrigação de continuar meu trabalho. O dr. Morrison retornou, satisfeito, com uma expressão de quem diz "Eu não lhe disse?" - Você acha que pode fazer uma descoberta a tempo de ajudar sua filha? - perguntou, incrédulo, o dr. Ibanez. - É possível - concordou Charles. O dr. Ibanez e o dr. Morrison se entreolharam. O dr. Morrison tornou a olhar pela janela. E descansou sua pasta. - Isso parece uma ilusão de grandeza - falou o dr. Ibanez. - Bem, conforme eu disse, você não me deixa escolha. Mas, como um gesto de boa vontade, você receberá 229

por sua demissão uma generosa indenização de dois meses, e providenciarei para que seu seguro médico continue a vigorar por trinta dias. Todavia, você terá de desocupar seu laboratório em dois dias. Já entramos em contato com um substituto para você, e ele está tão impaciente por assumir o estudo do Canceran quanto nós em vê-lo concluído. Charles olhou carrancudo para os dois homens. - Antes de ir, eu gostaria de dizer uma coisa: acho que o fato de uma empresa farmacêutica e um instituto de pesquisa do câncer serem ambos controlados pela mesma companhia matriz é um crime, principalmente quando os executivos de ambas as companhias têm assento na junta do Instituto Nacional do Câncer e concedem bolsas de estudo. O Canceran é um maravilhoso exemplo desse incesto financeiro. A droga é provavelmente tão tóxica que jamais será aplicada em pessoas, a menos que os testes continuem va ser falsificados. E eu pretendo tornar públicos esses fatos, para que isso não seja possível. •- Basta! - gritou o dr. Ibanez, dando um murro na mesa e fazendo saltar todos os papéis que ali estavam. - Quando se trata da integridade do Weinburger ou do potencial do Canceran, é melhor você deixar tudo como está. E agora retire-se, antes que eu cancele os benefícios que lhe concedemos. Charles virou-se para sair. - Acho que você devia' consultar um psiquiatra sugeriu Morrison num tom profissional. Charles não pôde conter um de seus impulsos da adolescência "e estendeu um dedo, num gesto obsceno, para Morrison, antes de sair do gabinete do diretor, alegre por se ver livre de um instituto que ele agora detestava.

. - Meu Deus! - exclamou o dr. Ibanez quando a porta se fechou. - Que há de errado com esse homem? - Detesto dizer-lhe que eu o avisei. O dr. Ibanez afundou na cadeira o mais pesadamente que sua delicada compleição lhe permitia. - Nunca pensei que iria dizer isso, mas acho que Charles pode se tornar perigoso. - O que acha que ele quis dizer quando falou que "ia tornar públicos os fatos"? - indagou o dr. Morrison, sentando-se e ajeitando as calças com cuidado para não desfazer o vinco. - Quem me dera saber! Isso me faz mal. Acho que ele será capaz de causar um dano irreparável ao projeto 230

Canceran, para não mencionar o efeito sobre o próprio instituto. - Não sei o que podemos fazer - admitiu o dr. Morrison. - Acho que só podemos reagir ao que Charles fizer. Já que é melhor mantê-lo afastado da imprensa, não creio que seja bom anunciar que ele foi despedido. Se alguém perguntar, diremos que ele recebeu uma exoneração especial devido à doença da filha. - Creio que a filha não deve ser mencionada. É o tipo de história que a imprensa adora. Poderia inadvertidamente dar a Charles um apoio. - Tem razão. Diremos

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apenas que ele teve licença para se ausentar. - E se Charles procurar a imprensa por conta própria? - perguntou o dr. Morrison. - Eles podem dar-lhe atenção. - Não acredito nisso - continuou o dr. Ibanez. Ele detesta repórteres. Mas se ele os procurar, então teremos de desacreditá-lo claramente. Podemos questionar seu estado emocional. De fato, podemos dizer que foi esta a razão de sua licença. E é mesmo verdade! O dr. Morrison permitiu-se um leve sorriso. - É uma idéia formidável. _Tenho um amigo psiquiatra que, estou certo, poderia arranjar uma ótima justificativa para nós. Que tal nos adiantarmos, para estarmos preparados caso seja necessário? - Peter, às vezes penso que atrás desta mesa está sentado o homem errado. Você jamais deixa as considerações humanas interferirem com os negócios. Morrison sorriu, sem muita certeza de que estivesse sendo elogiado. Charles desceu as escadas lentamente, lutando com sua raiva e seu desespero. Que tipo de mundo colocava as necessidades dos negócios à frente da moralidade, particularmente quando se tratava da medicina? Que tipo de mundo podia olhar para o outro lado quando uma inocente garota de doze anos adquiria uma leucemia fatal? Ao entrar no laboratório, Charles encontrou Ellen empoleirada num banco alto, folheando displicentemente uma revista. Quando ela o viu, depôs a revista e endireitou-se, alisando o avental. 231

- Lamento muito, Charles - disse ela, com o rosto triste. - Lamenta o quê? - perguntou Charles calmamente. - Sua exoneração. Charles olhou-a atentamente. Ele sabia que o instituto tinha um sistema interno de mexericos muito eficiente. No entanto, era eficiência demais. Ele se lembrava de ter-lhe falado sobre seu período de experiência de vinte e quatro horas, e era provável que a moça tivesse imaginado o desfecho. Contudo... Ele sacudiu a cabeça, maravilhado ante sua própria paranóia. - Já era esperado - disse ele. - Levei alguns dias para admitir que não podia trabalhar no Canceran. Especialmente agora, com Michelle doente.

.- Que é que você vai fazer? - perguntou Ellen. Agora que Charles tinha sido derrubado de sua posição de poder, ela questionava sua motivação. - Tenho muito o que fazer. De fato. . . - Charles parou. Por um momento, hesitou em tomar Ellen como sua confidente. Então, decidiu não fazê-lo. Nas últimas vinte e quatro horas, aprendera a duras penas que estava sozinho. Ã família, os colegas e a autoridade governamental eram inúteis, obstrutivos, ou estavam francamente contra ele. E estar sozinho exigia coragem e disposição especiais. - De fato, o quê? - perguntou Ellen. Por um instante a moça achou que Charles pudesse admitir que precisava dela. Era só ele dizer que ela estaria pronta a ajudá-lo. - De fato. . . - articulou Charles, afastando-se de Ellen e aproximando-se de sua mesa. - Eu apreciaria se você voltasse à administração, uma vez que prefiro não falar mais com aquela gente, e recuperasse meus relatórios. De nada vai adiantar retê-los como garantia, e espero que eles prefiram se livrar deles. Humilhada, Ellen desceu do banco e se encaminhou para a porta, achando uma idiotice que ainda fosse suscetível aos caprichos de Charles. - A propósito - disse ele antes que Ellen alcançasse a porta. - Até onde foi com o trabalho que deixei com você esta manhã? - Não muito longe - afirmou Ellen. - Assim que você saiu, eu soube que seria despedido. Portanto, de que adiantava? vou buscar seus livros, mas depois disso recuso- 232

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me a me envolver mais neste assunto. vou tirar o resto do dia para repousar. . Charles viu a porta se fechar, agora certo de que não estava louco. Ellen devia estar colaborando com a administração. Ela soubera de muita coisa com bastante rapidez. Lembrando-se de que estivera a ponto de tomá-la como confidente, ele se sentiu aliviado por ter ficado calado. Trancando por dentro a porta do laboratório, Charles pôs mãos à obra. A maioria dos produtos e reagentes químicos estava guardada em quantidades industriais, de modo que ele começou por transferi-los para recipientes menores. Cada recipiente tinha de ser cuidadosamente rotulado e depois guardado num armário quase vazio, perto do biotério. Isso levou uma hora. A seguir, Charles esquadrinhou sua mesa à procura dos blocos nos quais havia delineado os programas das experiências anteriores. com essas notas ele seria capaz de refazer suas experiências mesmo-sem os dados, caso o dr. Ibanez não devolvesse seus relatórios. Enquanto trabalhava febrilmente, o telefone tocou. Pensando rapidamente no que diria se a ligação fosse da administração, ele atendeu. Sentiu um alívio quando se viu falando com um funcionário da seção de empréstimo do First National Bank. O homem disse a Charles que seus três mil dólares já estavam disponíveis. Queria saber se ele desejava que fossem depositados em sua conta corrente conjunta. Charles disse que não, que mais tarde passaria no banco para apanhá-los pessoalmente. Sem largar o aparelho, desligou e discou para Wayne Thomas, Enquanto esperava que a ligação se completasse começou a pensar no que diria o funcionário do banco se soubesse que ele acabava de ser despedido. Como da vez anterior, foi o próprio Wayne Thomas quem atendeu. Charles disse ao advogado que o empréstimo chegara e que iria levar-lhe os quinhentos dólares naquela tarde. - Isso é bom , homem! - disse Wayne. -- Mesmo sem o adiantamento, já comecei a trabalhar no caso. Preparei um interdito proibitório contra a Recycle, Ltd. Em pouco saberei quando será a audiência de julgamento. - Parece bom - retrucou Charles, evidentemente satisfeito. Pelo menos alguma coisa tinha começado por sua própria iniciativa. Charles estava quase terminando o trabalho em sua mesa quando ouviu que alguém tentava abrir a porta e, não 233

-cr-conseguindo, metia a chave na fechadura. Charles virouse, e estava olhando para a porta quando Ellen entrou. Vinha acompanhada por um jovem metido num casaco de tweed. Para sua satisfação, notou que ela carregava metade dos relatórios, e o estranho, a outra metade. - Você trancou a porta? - perguntou Ellen de um modo esquisito. Charles assentiu com a cabeça. Ellen revirou os olhos para o estranho e disse: - Muito obrigada pela sua ajuda. Pode deixar os livros em qualquer lugar. - Se me faz um favor - falou Charles -, ponha-os em cima daquela bancada. - E apontou para a área acima do armário no qual ele havia guardado os produtos químicos, - Este é o dr. Michael Kittinger - disse Ellen. -• Fui apresentada a ele na administração. Ele vai dar seguimento ao estudo do Canceran. Acho que vou ajudá-lo. O dr. Kittinger estendeu uma mão pequena de dedos gordos, exibindo um sorriso afável, que distorceu seu rosto como se fosse de borracha. - Prazer em conhecê-lo, dr. Martel. Ouvi falar muito bem do senhor. - Aposto que ouviu - resmungou Charles. - Que laboratório fabuloso! - exclamou o dr. Kittinger, deixando cair a mão de Charles, maravilhado ante a impressionante variedade de equipamentos sofisticados. Seu rosto brilhou como o de um menino de cinco anos na época do Natal. - Meu Deus! Uma ultracentrífuga Pearson. E. . . não acredito. . . um microscópio eletrônico de varredura Dixon! Como foi que o senhor pôde deixar este paraíso? - Tive quem me ajudasse a fazê-lo - disse Charles, olhando de soslaio para Ellen.

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Ellen evitou o olhar firme de Charles. - O senhor se importaria que eu desse uma olhadela por aí? - perguntou, com entusiasmo, o dr. Kittinger. - Importo-me, sim! - exclamou Charles. - Charles! - falou Ellen. - O dr. Kittinger está tentando ser cordial. O dr. Morrison sugeriu que ele descesse até aqui. - Não tenho nada com isso. Este laboratório ainda é meu pelos próximos dois dias, e quero todo mundo fora daqui. Todo .mundo! - O tom de voz de Charles elevou-se. 234

Ellen recuou imediatamente. Fazendo um sinal para o dr. Kittinger, os dois desapareceram rapidamente. Charles agarrou a porta e bateu-a com força demais. Por um instante, ficou de pé, os punhos fortemente cerrados. Sabia que agora havia tom ado seu isolamento completo. Admitiu que não havia necessidade de se indispor com Ellen ou com seu substituto. O que o preocupava era que seu comportamento irracional seria sem dúvida comunicado à administração, e em troca podiam cortar os dois dias que lhe tinham concedido. Decidiu que precisava agir depressa. De fato, tinha de fazer sua mudança naquela mesma noite. Retornando ao trabalho com renovada disposição, levou mais uma hora para preparar o laboratório, de modo que tudo do que precisava estivesse arrumado num único armário. Vestindo seu casaco manchado, ele saiu, trancando a porta atrás de si. Ao passar pela srta. Andrews, fez questão de avisá-la de que voltaria logo. Se a recepcionista estava informando a Ibanez, ele não queria que ela pensasse que ia ficar fora muito tempo. Já passava das três horas, e o tráfego de Boston já estava se aproximando do momento do rush. Charles viu-se cercado por homens de negócios que arriscavam suas vidas para pegar a Interestadual 93 antes que o Memorial and Storrow Drive ficasse intransitável. Sua primeira parada foi no estacionamento do rio Charles, na filial do First National Bank. O vice-presidente, que Charles conhecia ligeiramente, não estava; assim, ele teve de falar com uma jovem que nunca vira. Seu casaco sujo e sua barba crescida de um dia despertaram nela, ele teve certeza, um olhar meio desconfiado. Charles deixou-a à vontade, dizendo: - Sou um cientista. Sempre nos vestimos um pouco. .. - e deixou deliberadamente a frase por concluir. co. A funcionária do banco assentiu com a cabeça, embora levasse um momento para comparar o rosto atual de Charles com a foto de sua carteira de motorista. Aparentemente satisfeita com a identificação, ela • perguntou se ele queria um cheque. Ele pediu o empréstimo em dinheiro vivo. - Em dinheiro? - Levemente confusa, a funcionária do banco desculpou-se e desapareceu no escritório de trás, a fim de telefonar para o diretor assistente da filial. Quando voltou, carregava trinta viçosas notas de cem dólares. Charles pegou o carro e dirigiu-se para o emaranhado * 235

distrito comercial por trás da Filene e da Jordan Marsh. Estacionando em fila dupla com o pisca-pisca traseiro ligado, Charles correu para uma loja de artigos esportivos onde ele era conhecido. Comprou cem cartuchos de calibre 12 número 2, próprios para sua espingarda. - Para que é isso? - perguntou o caixeiro, de bom humor. - Patos - disse Charles num tom que, esperava, desencorajasse uma conversa. - Acho que os cartuchos números 4 ou 5 seriam melhores - insinuou o caixeiro. - Eu quero número 2 - falou Charles laconicamente. - O senhor sabe que não estamos na estação dos patos - argumentou o caixeiro. - Sim, eu sei. Charles pagou os cartuchos com uma nota de cem dólares. De volta ao carro, ele enveredou pelas ruas

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estreitas de Boston. Voltou pelo mesmo caminho, fazendo sua terceira parada na esquina da Charles Street com a Cambridge. Sem se importar com as conseqüências, saiu da rua e estacionou ha ilha central, embaixo do metrô. tornou a deixar o carro com as luzes de alerta piscando. Entrou correndo num grande drugstone, desses que ficam abertos vinte e quatro horas por dia, estrategicamente situado à sombra do Massachusetts General Hospital. Embora ele só tivesse freqüentado o lugar quando clínico particular, o pessoal da casa ainda o reconheceu e o chamou pelo nome. - Preciso reabastecer minha maleta - disse Charles após pedir alguns formulários de receitas da loja. Nesses formulários Charles pediu morfina, Demerol, Compazine, Xilocaína, seringas, tubos plásticos, soluções para injeções • endovenosas, Benadryl, Epinefrina, Predinisona, Percodan e Valium injetável. O farmacêutico pegou as receitas e assobiou: - Meu Deus, com que é que "o senhor anda? com uma mala? Charles riu levemente, como se tivesse gostado do humor do farmacêutico, e pagou com uma nota de cem dólares. Retirando a notificação de uma multa por estacionamento em lugar proibido que estava presa ao limpador do pára-brisa, Charles entrou no carro e enfrentou o tráfego. 236 .

Tornou a atravessar o rio Charles, virando para oeste no Memorial Drive. Passando pelo Weinburger, ele seguiu em direção à Harvard Square, parou na área de estacionamento permitido - tendo o cuidado de deixar seu carro à vista do guardador - e correu para o número 13 da Brattle Street. Subiu as escadas às pressas e bateu na porta de Wayne Thomas. Os olhos do jovem advogado brilharam quando Charles lhe passou cinco notas novinhas de cem dólares. - Camarada, você vai ter o melhor serviço que o dinheiro é capaz de comprar - disse Wayne. Então, contou a Charles que tinha conseguido arranjar uma audiência de emergência para o dia seguinte, na qual seria apreciado seu interdito proíbitório contra a Recycle, Ltd. Charles saiu do escritório do advogado e caminhou um quarteirão para o sul, até uma agência da empresa de aluguel de carros Hertz. Alugou o maior furgão que eles tinham disponível. O pessoal da agência trouxe o furgão e, com ele, dirigiu-se lentamente de volta à Harvard Square, a área de estacionamento onde havia deixado seu carro. Depois de transferir os cartuchos e a caixa de suprimentos médicos, retornou ao furgão e seguiu para o Weinburger. Consultou seu relógio: quatro e meia da tarde. Ficou imaginando quanto teria de esperar. Ele sabia que logo escureceria. 237

12 Cathryn estava tensa. Silenciosamente, ela se moveu de modo a poder se ver no espelho através da porta aberta do banheiro de Michelle no hospital. Nem mesmo a luz mortiça da tarde podia esconder sua terrível aparência. A contusão enegrecida do olho, causada pelo golpe acidental que recebera de Charles, tinha descido da pálpebra superior para a inferior. . , Apanhando na bolsa um pente, um pouco de ruge e um pequeno batom, Cathryn entrou no banheiro e lentamente fechou a porta. Achou que, com um pouquinho de esforço, poderia melhorar sua aparência. Iluminada pela luz. fluorescente que piscava, ela tornou a se olhar no espelho. O que viu a assustou. Sob a luz artificial, parecia terrivelmente pálida, o que apenas salientava seu olho enegrecido. Mas pior do que sua palidez era a aparência tensa e ansiosa.

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Nos cantos de sua boca havia rugas que ela jamais notara antes. Depois de passar várias vezes o pente pelo cabelo, Cathryn desligou a luz. Permaneceu no escuro por um momento. Não agüentava olhar-se por mais tempo. Tudo era .muito perturbador, e, em vez de fazê-la sentir-se melhor, a idéia de maquilar-se só piorava as coisas. Ter corrido para o apartamento de sua mãe em North End só havia eliminado o medo da violência de Charles; nada havia contribuído para aliviar sua angustiante incerteza de que talvez tivesse tomado a decisão errada sobre a custódia. Estava aterrorizada com a possibilidade de Charles deixar de amá-la depois de passado aquele pesadelo. Tão silenciosamente quanto possível, Cathryn reabriu a porta do banheiro e olhou de relance para a cama. Finalmente, Michelle havia mergulhado num sono agitado e, mesmo de onde estava, ela podia ver o rosto da criança contorcer-se e tremer. Michelle tivera um dia terrível desde a chegada de Cathryn naquela manhã. Hora a hora ela ficava mais fraca, a ponto de necessitar de um grande esforço para 239

levantar os braços e a cabeça. As pequenas úlceras de seus lábios tinham-se reunido, criando uma grande superfície ferida que doía toda vez que ela a movia. O cabelo estava caindo em densos grumos, deixando em seu lugar zonas calvas e pálidas. Mas o pior eram a febre alta e o fato de que seus momentos de lucidez estavam se reduzindo rapidamente. Cathryn voltou a sentar-se junto ao leito de Michelle. Por que Charles não tinha telefonado?, perguntava-se ela cheia de desesperança. Várias vezes havia decidido telefonar para ele no instituto, mas a cada vez, depois de pegar o telefone, mudara de idéia. No fim das contas, Gina não tinha ajudado muito. Em vez de encorajá-la e de se mostrar compreensiva, aproveitara a crise para fazer-lhe uma repetida preleção sobre o mal de se casar com alguém treze anos mais velho e com três filhos. Dissera-lhe que já devia esperar por aquele tipo de problema, porque, embora Cathryn aceitasse as crianças, era óbvio que Charles continuava a considerá-las apenas suas. De repente, os olhos de Michelle se abriram e seu rosto se contorceu de dor. - Que é que você tem? - perguntou Cathryn ansiosamente, inclinando-se para a frente. Michelle não respondeu. Jogou a cabeça para o outro lado, e seu corpinho magro se torceu de dor. Sem hesitar um momento, Cathryn correu para a porta e chamou uma enfermeira. A mulher olhou para o corpo contorcido de Michelle e chamou o dr. Keitzman. Cathryn ficou em pé ao lado da cama, torcendo as mãos, ansiando poder fazer alguma coisa. Ficar de pé ali, junto à criança que sofria, era uma tortura. Sem qualquer idéia do que estava fazendo, Cathryn correu para o banheiro e umedeceu a ponta de uma toalha. Retornando para junto de Michelle, começou a passar o pano fresco na testa da menina. Cathryn ignorava se aquilo ajudava Michelle, mas pelo menos lhe dava a satisfação de estar fazendo alguma coisa. O dr. Keitzman devia estar por perto, pois chegou em poucos minutos. com todo o cuidado, ele examinou a menina. Pelos bips regulares do monitor cardíaco ele viu que a freqüência de seu coração não se havia alterado. Sua respiração estava livre; seu tórax, limpo. Colocando o estetoscópio sobre o abdome de Michelle, o dr. Keitzman auscultou. Ouviu uma profusão de chiados, guinchos e ruídos. Retirando o estetoscópio, ele colocou a rrião sobre a barriga da 240

garota, apalpando-a delicadamente. Depois se ergueu e murmurou qualquer coisa à enfermeira, que desapareceu rapidamente. - Cólica intestinal - explicou o médico a Cathryn,

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com alívio. - Deve haver um bocado de gases. Mandei aplicar-lhe uma injeção que vai aliviá-la logo da dor. Respirando ofegantemente pela boca, Cathryn acenou com a cabeça. E desabou sobre sua cadeira. O dr. Keitzman notou sua expressão atormentada. Pôs uma'das mãos sobre seu ombro. - Cathryn, venha aqui fora comigo um instante. Olhando para Míchelle, que milagrosamente voltara a cair no sono após o exame do dr. Keitzman, Cathryn silenciosamente acompanhou o oncologista para fora do quarto. Ele a conduziu para a já familiar sala das papeletas. - Cathryn, estou preocupado com você. Você também está muito tensa. Cathryn assentiu com a cabeça. Tinha medo de falar, achando que suas emoções aflorariam à superfície e transbordariam. - Charles telefonou? Cathryn abanou a .cabeça, esticou-se e tomou uma inspiração profunda. - Lamento que as coisas tenham tomado este rumo, mas você fez o que era certo. Cathryn ficou pensando, mas permaneceu quieta. - Infelizmente, não está terminado. Não preciso dizer-lhe, pois é dolorosamente evidente que Michelle está reagindo muito mal. Até agora os remédios não tocaram suas células leucêmicas, e não há perspectivas de uma remissão. Ela tem o caso mais agressivo de leucemia mieloblástica que já vi. Na verdade, hoje vamos acrescentar uma outra droga, que eu e alguns outros oncologistas liberamos para uso experimental. Tem apresentado resultados promissores. Entrementes, quero perguntar-lhe se os dois irmãos de Michelle podem vir aqui amanhã, a fim de classificarmos o tipo de sangue. Acho que vamos ser obrigados a irradiar Michelle e fazer-lhe um transplante de medula óssea. - Acho que sim - retrucou Cathryn. - vou tentar. - bom '- disse o dr. Keitzman, examinando o rosto de Cathryn. Ela sentiu o seu olhar fixo e desviou o rosto. - Você ganhou uma bela equimose no olho - disse o médico, compassivo. 241

- Foi Charles, mas sem querer. Foi um acidente replicou rapidamente Cathryn. - Charles me telefonou a noite passada -• continuou o dr. Keitzman. - Telefonou? De onde? - Daqui mesmo do hospital. - Que foi que ele disse? - Ele queria saber se eu afirmaria que foi o benzeno a causa da leucemia de Michelle. Respondi que não poderia garantir, embora fosse uma possibilidade. Infelizmente, não há meios de se provar isso. De qualquer modo, no fim da conversa sugeri-lhe .que procurasse um psiquiatra. - Que respondeu ele? - Ele não me pareceu interessado na idéia. Quem me dera houvesse um meio de meter-lhe isso na cabeça! com toda essa tensão, estou preocupado com ele. Não quero assustá-la, mas temos visto casos semelhantes nos quais o indivíduo se tom a violento. Se houver um meio de você fazer com que ele procure um psiquiatra, acho que devia tentar. Cathryn saiu da sala das papeletas, impaciente por voltar e ver Michelle, mas, ao passar pelo saguão oposto ao lugar onde ficavam as enfermeiras, viu um telefone público. Reprimindo suas mesquinhas razões para não chamar Charles, fez uma ligação para o instituto. A telefonista do Weinburger ligou para o'laboratório de Charles, e Gathryn esperou que o telefone chamasse várias vezes. Entrando na linha, a telefonista disse a Cathryn que sabia que Ellen, a assistente de Charles, estava na biblioteca e perguntou-lhe se queria falar com ela. Cathryn acedeu e ouviu-a fazer a nova ligação. - Ele não está no laboratório? - perguntou Ellen. - Não responde - disse Cathryn. - Talvez ele não esteja dando importância ao telefone - explicou Ellen. - Ele vem agindo de um modo muito estranho. Na verdade, tenho até medo de ir lá. Suponho que você saiba que ele foi despedido do Weinburger. - Não fazia a menor idéia - exclamou Cathryn, evidentemente chocada. -- Que aconteceu? - É uma longa história, e atho que Charles deve contar-lhe pessoalmente. - Ele tem

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estado sob uma grande tensão. - Eu sei. - Se você o vir, peca-lhe para me telefonar. Estou no hospital. 242

Ellen concordou, mas acrescentou que duvidava de que o visse. Cathryn desligou lentamente. Pensou um instante, e então ligou para Gina, perguntando se Charles havia telefonado. Gina respondeu que ninguém havia chamado. A seguir, tentou ligar para casa, mas, conforme já esperava, não houve resposta. Onde estaria Charles? Que estaria acontecendo? Cathryn voltou para o quarto de Michelle, mal acreditando que seu mundo, antes tão seguro, houvesse demoronado com tanta rapidez. Por que Charles fora despedido? Durante o pouco tempo que trabalhara no instituto, Cathryn percebera que Charles era um dos cientistas mais respeitados. Que poderia ter acontecido? Só havia uma explicação. Talvez o dr. Keitzman estivesse certo. Talvez Charles estivesse sendo vítima de um colapso nervoso e andasse a esmo e sozinho, afastado da família e do trabalho. Oh, meu Deus! Esgueirando-se o mais quietamente que pôde para o quarto de Michelle, Cathryn lutou por ver o rosto da menina à luz vacilante. Esperava que Michelle estivesse dormindo. Quando seus olhos se ajustaram à semi-escuridão, percebeu que a menina a observava. Parecia estar muito fraca para erguer a cabeça. Cathryn debruçou-se sobre ela e pegou sua mão quente. - Onde está meu paizinho? - perguntou Michelle, mexendo os lábios ulcerados o menos possível. Cathryn hesitou, pensando na melhor resposta a dar. - Charles não está se sentindo muito bem, porque anda preocupado com você. - A noite passada ele me disse que viria hoje - implorou Michelle. - Se puder, ele virá. Ele virá, se puder. Uma lágrima solitária apareceu no rosto de Michelle. - Seria melhor que eu morresse. Cathryn ficou momentaneamente imóvel e chocada. Então, curvou-se e abraçou a menina, dando vazão às suas próprias lágrimas. - Não, não, Michelle! Jamais pense nisso, um instante que seja. O pessoal da Hertz tinha incluído graciosamente um raspador de gelo no pacote dos documentos do carro, e Charles o usava por dentro do pára-brisa dianteiro do furgão. 243

Sua respiração condensava-se e congelava-se no pára-brisa, bloqueando sua visão da entrada do Weinburger. Às cinco e meia, exceto a fieira de luzes do Memorial Drive, estava escuro como breu. Às seis e quinze todo mundo tinha deixado o instituto, exceto o dr. Ibanez. Às seis e meia o diretor apareceu, envolto num casaco de pele que lhe descia até os tom ozelos. Curvado contra o vento gelado, ele avançava, encaminhando-se para o seu Mercedes. Por precaução, Charles aguardou até sete e vinte antes de ligar o furgão. Acendendo os faróis, contornou o lado de trás do edifício e desceu a rampa de serviço, encostando de ré na plataforma de recepção de mercadorias. Descendo do furgão, subiu as escadas perto da plataforma e tocou a campainha. Enquanto esperava a resposta, experimentou as primeiras ondas de dúvida a propósito do que estava fazendo. Sabia que os próximos minutos seriam cruciais. Pela primeira vez em sua vida, Charles contava com a ineficiência. Um pequeno alto-falante acima da campainha vibrou com alguns estalidos. Acima da câmara de TV montada sobre a porta de recepção, uma pequenina luz vermelha começou a piscar. - Sim? - perguntou uma voz. - É o dr. Martel - exclamou Charles, acenando para a câmara. - Tenho que apanhar um equipamento. Poucos minutos mais tarde, a porta de metal ergueu-se com um chiado,

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deixando ver uma área de recepção cimentada e sem enfeites. À esquerda alinhava-se uma longa série de caixas de papelão recém-chegadas, bem-arrumadas e empilhadas. No fundo da área, abriu-se uma porta interna e apareceu Chester Willis, um dos dois vigias noturnos. Era um negro velho de setenta e dois anos, que se aposentara de um emprego na cidade e assumira o lugar no Weinburger, dizendo que ele podia assistir à TV em casa, mas que no instituto era pago para isso. Charles sabia que o verdadeiro motivo pelo qual ele trabalhava era ajudar um neto a cursar a escola de medicina. Durante anos, Charles se habituara a trabalhar até tarde da noite, pelo menos antes que Chuck passasse a estudar de dia no Northeastern, e em conseqüência tinha feito amizade com o pessoal da segurança notuma. - Voltou a trabalhar à noite? - perguntou Chester. - Fui obrigado - disse Charles. - Estamos colaborando com um grupo do MIT e preciso remover uns equipamentos meus. Não confio em ninguém para fazê-lo. 244

- Não o censuro - retrucou Chester. Charles suspirou, aliviado. O vigia não sabia que ele havia sido despedido. Pegando o maior dos dois carros de carga da recepção, Charles voltou ao seu laboratório. Ficou satisfeito de ver que nada havia sido tocado desde a sua partida, principalmente o armário trancado onde guardava seus relatórios e os produtos químicos. Trabalhando febrilmente, Charles desmontou a maior parte de seu equipamento e começou a colocá-lo no carro de carga. Foram necessárias oito viagens, com alguma ajuda de Chester e Giovanni, para transportar o equipamento do laboratório para a área de recepção. A última coisa que trouxe do laboratório foi o frasco com o antígeno de Michelle, que estava guardado na geladeira, e que foi cuidadosamente acondicionado dentro de uma caixa isolante cheia de gelo. Ele não fazia idéia de sua estabilidade química e não queria correr riscos. Já passava das nove horas quando tudo ficou pronto. Chester levantou a porta externa e ajudou Charles a colocar o equipamento e os produtos químicos dentro do furgão. Antes de sair, Charles tinha mais uma tarefa a cumprir. Regressando ao seu laboratório, apanhou uma navalha preparada para cirurgia animal. com a navalha e um pedaço de sabão, dirigiu-se para o lavatório e fez a barba, crescida de um dia e meio. Também penteou o cabelo, arrumou a gravata e meteu a camisa adequadamente para dentro das calças. Após terminar, mirou-se no espelho de corpo inteiro. Surpreso, verificou que sua aparência era bastante normal. No caminho de volta para a área de recepção, entrou na sala onde se guardavam os aventais e apanhou um avental longo de laboratório. Quando se viu de volta ao lado de fora, apertou a cigarra uma vez mais e, através do interfone, agradeceu a ajuda. Subindo no carro, admitiu que experimentava uma pontinha de culpa por haver-se aproveitado de seus dois velhos amigos. A viagem para o Hospital Pediátrico foi realizada com facilidade. Não havia qualquer tráfego, e o tempo frio tinha mantido a maioria das pessoas em casa. Ao chegar ao hospital, ele enfrentou um dilema. Considerando o valor do equipamento metido no furgão, relutou em deixar o veículo estacionado na rua. Todavia, se o colocasse na garagem do estacionamento, seria impossível uma saída rápida. Se fosse 245

roubado, todo o plano iria por água abaixo. Tudo o que ele tinha a fazer era agir de modo a não necessitar sair às pressas. Estacionou à vista da cabine do guardador e examinou muito

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bem todas as portas, para ver se estavam trancadas. Tendo deixado propositalmente seu casaco de pele de carneiro no furgão, ele. vestiu o longo avental branco. O avental oferecia pouca proteção contra o frio, de modo que ele correu para o hospital, onde entrou por uma das salas de emergência. Fazendo uma parada na mesa de registro, Charles interrompeu um apoquentado funcionário para perguntar em que andar ficava a radiologia. O funcionário respondeu-lhe que era no Anderson 2. Charles agradeceu e empurrou as portas duplas, entrando no hospital propriamente dito. Ao passar por um guarda de segurança, acenou com a cabeça. O guarda retribuiu o cumprimento com um sorriso. A radiologia estava praticamente deserta. Parecia haver apenas um técnico de serviço, e este se achava ocupado com uma série de pedidos de chapas de entorse do pulso e radiografias do tórax vindos da sala de emergência. Charles foi direto à secretaria e conseguiu um formulário para pedido de raios X com o carimbo da seção de radiologia. Sentando-se a uma das mesas, ele preencheu o pedido: Michelle Martel; idade: doze anos; diagnóstico: leucemia; exame solicitado: radiografia simples do abdome. Dentre os papéis da secretaria, ele escolheu o nome de um dos radiologistas e usou-o para assinar o pedido do exame. De volta ao corredor principal, Charles soltou o freio de uma das muitas maças de rodas estacionadas ao longo da parede e levou-a para o saguão. De um armário de roupas de cama próximo, tirou dois lençóis limpos, um travesseiro e uma fronha. Agindo rapidamente, arrumou a maça. Depois empurrou-a, passando pela sala ocupada pelo único técnico. Esperou pelo elevador dos doentes e entrou nele com a maça, apertando o botão número 6. Observando o indicador dos andares saltar de um número para outro, ele experimentou sua segunda onda de dúvidas. Até ali tudo havia saído de acordo com seus planos, mas ele admitia que o que tinha feito até então era a parte mais fácil. A parte difícil ia começar quando ele chegasse ao Anderson 6. O elevador parou e a porta se abriu. Inspirando profundamente, ele empurrou a maça para o saguão, calmo àquela hora; o período de visita havia muito tinha aca- 246

bado e, como na maioria dos hospitais infantis, os pacientes tinham sido postos para dormir. O primeiro obstáculo era o posto das enfermeiras. Naquele momento havia apenas uma enfermeira ali, cuja touca se podia ver por cima do balcão. Charles continuou a avançar, tomando conhecimento pela primeira vez da série de sons desagradáveis produzidos pelas rodas da maça. Tentou diminuir a velocidade, na esperança de que os guinchos se reduzissem, mas não teve sucesso. Pelo canto do olho, ele observava a enfermeira. Ela não se moveu. Charles passou pelo posto, e a intensidade da luz diminuiu quando ele entrou no longo corredor. - Perdão - disse a enfermeira. Sua voz quebrou a quietude como vidro estilhaçado. Charles sentiu que um jato de adrenalina percorria seu corpo, fazendo formigar as extremidades dos dedos. Voltouse. A enfermeira havia se levantado e estava debruçada sobre o balcão. . , - Posso ajudá-lo em alguma coisa? - perguntou ela. Charles remexeu desajeitadamente os bolsos, à procura do pedido de exame. - Estou vindo apenas pegar um paciente para fazer uma chapa de raios X - respondeu ele, procurando manterse calmo. - Não foi pedido nenhum exame de raios X - disse a enfermeira, com curiosidade. Charles reparou que ela baixara o olhar para a mesa e ouviu o ruído das páginas de um livro sendo folheadas. - É uma chapa de emergência - insistiu ele, começando a entrar em pânico. - Mas não existe nada no livro de pedidos, e nada foi escrito na papeleta. - Aqui está o pedido - falou Charles, abandonando a maça e aproximando-se da enfermeira. - Foi feito por telefone pelo dr.

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Keitzman ao dr. Larainen. Ela pegou o formulário e leu-o rapidamente. E sacudiu a cabeça, evidentemente confusa. - Alguém devia ter-nos telefonado. -- De acordo. Mas essas coisas sempre acontecem. - Bem, vou reclamar. vou perguntar ao pessoal do turno do dia o que foi que houve. - Boa idéia - disse Charles, voltando para a maça. Suas mãos estavam úmidas. Ele não estava treinado para aquele tipo de trabalho. com passo decidido e rápido, Charles continuou pelo 247

corredor, fazendo votos para que a enfermeira não se sentisse obrigada a confirmar os telefonemas do dr. Keitzman ou do radiologista. Chegou ao quarto de Michelle e, pondo-se à frente da maça, empurrou a porta devagarinho. Vislumbrou um vulto sentado, a cabeça repousando sobre a cama. Era Cathryn. Charles evitou olhar para o seu rosto, tornou a sair do quarto e voltou à sua posição original. O mais depressa que pôde, puxou a maça por toda a extensão do corredor, para longe do posto das enfermeiras, esperando que Cathryn aparecesse a qualquer momento. Não sabia se ela o havia visto ou não. Ele não esperava que ela estivesse com Michelle àquela hora. Tentou pensar. Tinha que dar um jeito de tirar Cathryn do quarto. Sob o impulso do momento, só pôde pensar num meio, que exigia uma ação muito rápida. Após aguardar alguns minutos para ter a certeza de que Cathryn não ia sair do quarto por si mesma, Charles rapidamente voltou por onde tinha vindo até a sala de curativos, que ficava logo antes do posto das enfermeiras. Ali, junto a uma pia onde lavavam as mãos para esterilizá-las, encontrou máscaras e gorros cirúrgicos. Colocou uma máscara e um gorro, e pôs um gorro extra no bolso. com um olho no posto das enfermeiras, ele atravessou o corredor em direção a uma área escura do saguão. No canto mais distante havia um telefone público. Ligou para a mesa da telefonista e pediu Anderson 6. Em poucos instantes, pôde ouvir o telefone tocando no posto das enfermeiras. Uma mulher atendeu, e Charles pediu que chamasse a sra. Martel, dizendo-lhe que era uma emergência. A enfermeira mandou que ele esperasse na linha. Rapidamente, ele pôs de lado o receptor e encaminhouse para o portal do saguão. Olhando para trás, para o posto das enfermeiras, ele podia ver a enfermeira encarregada entrar no corredor com uma das enfermeiras. Ela apontou para o corredor. Imediatamente, Charles deixou o saguão e voltou correndo pelo corredor, passando pelo quarto de Michelle. Na sombra no fim do vestíbulo, Charles esperou. Dali pôde ver a enfermeira caminhar em sua direção e depois virar e entrar no quarto de Michelle. Dez segundos depois, ela reapareceu, seguida por Cathryn, que cambaleava e esfregava os olhos. Assim que as duas mulheres viraram na direção do posto das enfermeiras, Charles correu com a 248

maça para o quarto de Michelle e empurrou a porta meio aberta. Ligando rápido o comutador na parede, Charles empurrou a maça para junto do leito. Só então olhou para a filha. Após vinte e quatro horas, ele podia ver que ela estava consideravelmente pior. Delicadamente, sacudiu-a pelos ombros. Ela não reagiu. tornou a sacudi-la, mas ela não se mexeu. Que iria ele fazer se ela estivesse em coma? - Michelle? -: chamou Charles. Aos poucos, os olhos de Michelle se abriram. - Sou eu! Por favor, acorde! - E Charles tornou a sacudi-la. O tempo era limitado. Finalmente, Michelle acordou. com grande esforço, ergueu os braços e enlaçou o pescoço do pai. - Eu sabia que você viria - disse a menina. - Escute - falou Charles, ansioso,

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colando seu rosto ao dela. - Quero lhe pedir uma coisa. Sei que você está muito doente e que estão tentando tratar você aqui no hospital. Mas você não está melhorando aqui. Sua doença é mais forte do que os mais fortes remédios deles. Quero levar você comigo. Seus médicos não gostariam disso, portanto, se você quiser ir, tem de ser agora. Diga-me. A pergunta surpreendeu Michelle. Era a última coisa que ela esperava ouvir. Ela examinou o rosto do pai. - Cathryn disse que você não estava passando bem - falou Michelle. - Eu estou ótimo. Principalmente quando me acho ao seu lado. Mas não temos muito tempo. Você vem comigo? Michelle olhou nos olhos do pai. Não havia nada que ela desejasse mais. - Leve-me com você, paizinho, por favor! Charles abraçou-a e, em seguida, começou a agir. Desligou o monitor cardíaco e soltou os fios que estavam ligados a ela. Retirou a agulha da veia e, com um puxão, arrancou as cobertas. com uma das mãos sob seus ombros e outra sob seus joelhos, Charles ergueu a filha, tomando-a nos braços. Ficou surpreso ao sentir o quanto ela estava leve. O mais delicadamente que pôde, colocou Michelle na maça e cobriu-a. Tirou suas roupas do armário e escondeu-as sob os lençóis. Então, antes de empurrar a maça para o corredor, colocou um gorro cirúrgico na cabeça de Michelle, enfiando para dentro dele o que restava de seu cabelo. Enquanto caminhava na direção do posto das enfermeiras, estava apavorado, receando que Cathryn aparecesse. Es- 249

tava apostando no acaso, mas naquelas circunstâncias não havia alternativas mais seguras. Obrigou-se a caminhar num passo normal, em vez de sair correndo para o elevador. Cathryn dormia profundamente quando a enfermeira tocara em seu ombro. Só entendera que a chamavam ao telefone e que se tratava de uma emergência. Seu primeiro pensamento fora o de que algo tinha acontecido a Charles. Quando chegou ao posto das enfermeiras, aquela enfermeira já tinha desaparecido. Não sabendo que telefone usar, Cathryn perguntou à enfermeira encarregada sobre sua chamada. A mulher levantou os olhos de sua papelada e, lembrando-se do telefonema, disse a Cathryn que podia usar o telefone da sala das papeletas. Cathryn disse alô três vezes, cada vez mais alto. Mas ninguém respondeu. Esperou, e repetiu vários alôs, mas não houve resposta. Bater no gancho não surtiu nenhum efeito, até que ela o manteve abaixado por um instante. Quando o soltou, estava falando com a telefonista do hospital. A telefonista nada sabia de uma chamada para a sra. Martel no Anderson 6. Cathryn desligou e se dirigiu para o v§o da porta que dava para o posto das enfermeiras. A enfermeira estava à sua mesa, debruçada sobre uma papeleta. Cathryn estava prestes a dizer qualquer coisa quando viu utn vulto branco indistinto, com uma máscara e um gorro cirúrgicos, empurrando um paciente através da área em penumbra diante dos elevadores. Sensível como era, Cathryn experimentou uma onda de simpatia pela pobre criança que estava sendo levada para a cirurgia numa hora tão tardia. Sabia que devia tratar-se de uma emergência. Receosa de atrapalhar as importantes tarefas da enferm,eira, Cathryn chamou cautelosamente. A enfermeira voltouse em sua cadeira, com o rosto inquiridor. - Não tinha ninguém na linha - explicou Cathryn. - É estranho - retrucou a enfermeira. - A pessoa que chamou disse que era uma emergência. - Homem ou mulher? - Um homem. Cathryn ficou imaginando se teria sido Charles. Talvez el" tivesse ido até a casa de Gina. - Eu poderia fazer uma ligação local deste telefone? •- perguntou Cathryn. - Geralmente não permitimos - falou a enfermeira , mas se a senhora andar depressa. . . Disque primeiro o nvimero 9. 250

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Cathryn voltou correndo para o telefone e rapidamente ligou para a mãe. Quando Gina atendeu, Cathryn sentiu um alívio imediato. A voz dela estava normal. - Que foi que você comeu? - perguntou Gina. - Não estou com fome. - Você precisa comer! - insistiu Gina, como se a comida resolvesse todos os problemas. - Charles telefonou? - indagou Cathryn, ignorando a mãe. - Nem uma palavra. Que pai! - E Gina terminou a sentença com um ruído cacarejante e desaprovador. - E Chuck? - Está aqui. Quer falar com ele? Cathryn pensou em discutir com Chuck a necessidade de um transplante de medula, mas, lembrando-se de sua reação anterior, resolveu esperar para tratar do assunto pessoalmente. - Não. Logo estarei em casa. Assim que eu tiver certeza de que Michelle está dormindo profundamente, irei para casa. - Tenho um pouco de espaguete esperando por você. Cathryn desligou, intuitivamente convencida de que o homem misterioso que telefonara tinha de ser Charles. Que tipo de emergência poderia ter acontecido? Por que ele não esperara na linha? Passando pela enfermeira, Cathryn agradeceu-lhe por ter permitido que ela usasse o telefone. Caminhou rapidamente, passando por portas parcialmente abertas de outros quartos, sentindo o cheiro pungente de remédios, ouvindo o choro ocasional de uma criança. Ao chegar ao quarto de Michelle, Cathryn notou que havia deixado a porta completamente aberta. Ao entrar no quarto, fazia votos para que a luz do corredor não houvesse perturbado a menina. Fechou quase completamente a porta atrás de si e se dirigiu para sua cadeira no escuro. Estava prestes a sentar-se quando verificou que a cama estava vazia. com medo de tropeçar em Michelle, caso ela houvesse caído no chão, Cathryn curvou-se e começou a tatear em tom o da cama. A estreita réstia de luz do corredor brilhava no chão de vinil'polido, e Cathryn logo pôde ver que Michelle não estava ali. Tomada pelo pânico, ela correu para o banheiro e acendeu a luz. A menina também não se encontrava ali. Voltando, Cathryn acendeu a luz do teto. Michelle não se achava no quarto, 251

Cathryn saiu do quarto e correu até o posto das enfermeiras, onde chegou ofegante. - Enfermeira! Minha filha não está no quacto! Desapareceu. . " ' A enfermeira encarregada ergueu os olhos do papel em que estava escrevendo e olhou para a prancheta onde se prendiam as papeletas. - É a Martel? - Sim! Sim! E ela estava dormindo profundamente quando vim aqui para atender ao telefone. - O relatório do turno do dia dizia que ela estava muito fraca - observou a enfermeira. - Aí é que está. Ela pode se machucar - disse Cathryn. Como se achasse que Cathryn estava mentindo, a enfermeira insistiu em ir ao quarto de Michelle. Olhou em todo o quarto e examinou o banheiro. - A senhora tem razão. Ela não está aqui. Cathryn conteve-se para não fazer um comentário ofensivo. A enfermeira fez uma chamada para a segurança, dizendo que uma menina de doze anos havia desaparecido do Anderson 6. Acionou também uma série de pequenos sinais luminosos, que fizeram chegar a equipe de enfermeiras licenciadas que trabalhavam no andar. Falou-lhes do aparente desaparecimento de Michelle e ordenou-lhes que procurassem em todos os quartos. - Martel •- disse mais para si mesma a enfermeira encarregada, depois que as outras partiram. - Isso me lembra alguma coisa. Qual era o nome da criança que foi levada para a seção de radiologia lá embaixo, para uma radiografia simples de emergência? Cathryn olhou para ela, assustada. Por urn instante, pensou que a mulher lhe estivesse fazendo uma pergunta. - Provavelmente foi isso - continuou a enfermeira, pegando no telefone e discando para a radiologia. A

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campainha tocou quase vinte vezes antes que um técnico atarefado atendesse. - Você está fazendo uma chapa simples de emergência numa paciente do Anderson 6 - falou a enfermeira encarregada. - Qual é o nome da criança? - Não fiz nenhuma radiografia de emergência - respondeu o técnico. - Deve ter sido George. Ele está lá em cima, no centro cirúrgico. Levou o aparelho portátil para radiografar um tórax. Voltará num minuto, e pedirei a ele 252

que lhe telefone. - E o técnico desligou, antes que a enfermeira encarregada pudesse responder. Charles levou Michelle para a sala de emergência e, sem nenhuma hesitação que pudesse dar a entender que ela não devia estar ali, empurrou a maça para a parte de exames. Escolheu um cubículo vazio e, afastando a cortina para um dos lados, colocou Michelle perto da mesa. Depois de fechar a cortina, tirou as roupas dela. A excitação da aventura havia animado a menina, que, apesar de sua fraqueza, procurava ajudar o pai a vesti-la. Charles viu que era muito desajeitado, e, quanto mais se apressava, mais atrapalhado ficava. Michelle teve que abotoar todos os botões e dar o laço nos sapatos. Depois de vestida, Charles deixou-a por um momento à procura de algumas ataduras. Felizmente não teve que ir muito longe. Voltando ao cubículo, ele sentou Michelle e olhou-a. - Temos que fazer de conta que você sofreu um acidente •- disse ele. - Eu sei o que vamos fazer! Ele rasgou o pacote de ataduras e começou a enfaixar a cabeça de Michelle, como se ela tivesse sofrido uma laceração. Quando acabou, deu um passo atrás. - Perfeito! - Como toque final, Charles pôs um curativo sobre o nariz dela, fazendo-a rir. Charles disse-lhe que ela parecia um motociclista que havia caído de cabeça. Fingindo que ela pesava cerca de noventa quilos, Charles apanhou a filha e passou cambaleante com ela pela cortina. Uma vez no corredor, ele rapidamente ficou sério, encaminhando-se para a entrada. Para sua satisfação, havia mais movimento na sala de emergência do que quando ele ali chegara da primeira vez. Crianças com todos os tipos de cortes e contusões esperavam, chorando, enquanto mães com filhos tossindo faziam fila para se registrarem. No meio da confusão Charles passava despercebido. Somente uma enfermeira se virou quando Charles e Michelle passaram por ela. Ao vê-la, Charles sorriu e disse: - Muito obrigado. Ela retribuiu com um aceno, sem saber ao certo se o tinha reconhecido ou não. Ao se aproximar da saída, Charles viu um vigia uniformizado levantar-se de um salto de uma cadeira próxima. Seu coração bateu apressado, mas o homem não opôs 253

qualquer obstáculo. Pelo contrário, correu para a porta e disse: -- Espero que ela esteja se sentindo melhor. Muito boa noite. com uma agradável sensação de liberdade, Charles carregou Michelle para fora do hospital. Apressando o passo, ele correu para o estacionamento, colocou Michelle no furgão, pagou a tarifa e partiu. 254

13 Cathryn tentava ser paciente e compreensiva, mas à medida que o tempo passava ficava cada vez mais nervosa. Culpava-se por ter abandonado Michelle para atender ao telefone. Devia ter pedido que transferissem a chamada diretamente para o quarto. Andando de um lado para o outro no saguão, involuntariamente ela pensava no comentário de Michelle: "Seria melhor que eu morresse". No início ela tirara aquele pensamento da cabeça, mas agora que a

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menina não reaparecia, ele voltava para assustá-la. Cathryn não sabia se Michelle seria capaz de atentar contra si mesma, mas, tendo ouvido toda espécie de histórias pavorosas, não podia descartar-se de seu medo. Consultando o relógio, deixou o saguão e aproximouse do posto das enfermeiras. Como podia um hospital perder uma menina de doze anos, doente e tão fraca que mal podia andar? - Alguma novidade? - perguntou Cathryn, endereçando a pergunta à enfermeira encarregada do turno da noite. Agora havia cerca de meia dúzia de enfermeiras sentadas junto ao posto, conversando casualmente. - Ainda não - retrucou a enfermeira, interrompendo uma discussão com uma colega. - A segurança já examinou todas as escadarias. Ainda estou aguardando o telefonema da radiologia. Não tenho dúvida de que Martel era o nome da criança que a radiologia veio apanhar aqui. - Já faz quase meia hora - disse Cathryn. - Estou apavorada. Você não podia telefonar de novo para a radiologia? Sem se importar em esconder sua irritação, a enfermeira tornou a telefonar e disse a Cathryn que o radiologista ainda não voltara do centro cirúrgico, mas que chamaria assim que o fizesse. Cathryn afastou-se do posto das enfermeiras perfeita- 255

mente consciente do medo que lhe infundia o pessoal médico. Estava furiosa com o hospital e, no entanto, incapaz de demonstrar sua raiva, por mais justificada que a considerasse. Em vez de se enfurecer, agradeceu à enfermeira e voltou para o quarto vazio de Michelle. Distraidamente, examinou mais uma vez o banheiro, evitando olhar-se no espelho. Perto do banheiro estava o armário, e Cathryn olhou dentro dele. Já tinha quase fechado a porta, quando tornou a abri-la, apavorada. Voltando às carreiras para o posto das enfermeiras, tentou atrair a atenção da enfermeira encarregada. As enfermeiras do turno da tarde, que estavam deixando o serviço, e as da noite, que estavam chegando, achavam-se agrupadas em tom o do centro do posto, fazendo seu relatório inviolável. Era a hora em que se proibiam as emergências médicas ou de qualquer outro tipo. Cathryn teve de gritar para chamar a atenção. - Acabo de descobrir que as roupas de minha filha desapareceram - falou, ansiosa. Seguiu-se um momento de silêncio. " A enfermeira encarregada limpou a garganta. - Poderemos atendê-la dentro de um instante, sra. Martel. Cathryn afastou-se, cheia de ira. Evidentemente, sua emergência não era tão importante quanto a rotina da enfermaria, mas, se as roupas de Michelle tinham sumido, provavelmente ela saíra do hospital. O telefonema devia ter sido de Charles, e seu objetivo fora o de tirar Cathryn de dentro do quarto de Michelle. Subitamente, a imagem do homem levando a criança para a cirurgia lampejou ante os olhos de Cathryn. A mesma altura, a mesma compleição. Tinha de ser Charles! Cathryn tornou a correr de volta ao posto das enfermeiras. Agora não havia dúvida de que Michelle tinha sido raptada. - Agora deixe-me ver como tudo aconteceu -. disse o atarracado agente da polícia de Boston. Cathryn tinha reparado em seu nome na plaqueta: William Kerney. - A senhora estava dormindo aqui quando uma enfermeira tocou-lhe de leve no ombro. - Sim! Sim! - gritou Cathryn, exasperada com a morosidade da investigação. Esperava que, chamando a polícia, tudo andasse mais depressa. 256

- Já lhe disse dez vezes o que aconteceu. O senhor não pode sair e tentar encontrar a criança? - Temos que terminar nosso relatório - explicou William. Segurava uma- prancheta muito gasta,

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apoiada no antebraço esquerdo. Na mão direita lutava com um lápis, que levava à boca a toda hora. O grupo achava-se no quarto vazio de Michelle. Incluía Cathryn, dois policiais de Boston, a enfermeira encarregada do turno da noite e o administrador assistente. Era um homem alto, bonito, vestindo um elegante terno cinza. Tinha o curioso hábito de sorrir depois de cada frase, reduzindo seus olhos a duas fendas apertadas. Seu rosto era gloriosamente bronzeado, como se ele tivesse acabado de retornar de umas férias no Caribe. - Quanto tempo a senhora esteve fora do quarto? perguntou William. - Já lhe disse - falou Cathryn com aspereza. - Cinco minutos. . . dez minutos. Não sei exatamente. - Hum - zumbiu William, anotando a resposta. Michael Grady, o outro policial de Boston, estava lendo os papéis de custódia temporária. Quando terminou, entregou-os ao administrador. - É um caso de rapto, não há dúvida. - Hum - sussurrou William, passando para o alto do formulário para escrever: "Rapto de criança". Ele não sabia o número de código para o crime, e tomou nota mentalmente para verificá-lo quando retornasse à delegacia. Desesperada, Cathryn voltou-se para o administrador. - O senhor pode fazer alguma coisa? Desculpe-me, não me lembro do seu nome. - Paul Mansford - disse o administrador, depois de exibir um sorriso. - Não precisa se desculpar. Já estamos fazendo algo. A polícia está aqui. - Mas receio que alguma coisa aconteça à criança com toda essa demora - observou Cathryn. - E a senhora viu um homem levando uma criança para a cirurgia? - perguntou William. - Sim! - gritou Cathryn. - Mas para a cirurgia não foi nenhuma criança - disse a enfermeira. - E quanto ao homem com o pedido de raios X? Você pode descrevê-lo? - indagou William, voltando-se para a enfermeira. A enfermeira pôs-se a olhar para o teto. 257

- Estatura média, cabelos castanhos... - Isso não é muito específico - continuou William. - E quanto aos seus olhos azuis? - perguntou Cathryn. - Não reparei nos olhos dele - retrucou a enfermeira. - Como ele estava vestido? - perguntou William. - Oh, meu Deus! - exclamou Cathryn, frustrada. -- Por favor, façam alguma coisa! - Um longo avental branco - disse a enfermeira. - OK - prosseguiu William. - Alguém telefona, faz a sra. Martel sair do quarto, apresenta uma falsa requisição de um exame de raios X e sai com a criança como se estivesse indo para a cirurgia. Certo? Todo mundo concordou com um aceno de cabeça, menos Cathryn, que levou a mão à testa, procurando controlar-se. - Então, quanto tempo se passou antes de a segurança ser notificada? - perguntou William. - Apenas alguns minutos - disse a enfermeira. - Isso é o que nos faz pensar que eles ainda se acham no hospital - falou o administrador. - Mas as roupas dela desapareceram - insistiu Cathryn. - Eles saíram do hospital. Eis por que vocês têm que fazer alguma coisa antes que seja tarde demais. Por favor! Todos olharam para Cathryn como se ela fosse uma criança. Ela retribuiu seus olhares e depois ergueu as mãos. - Meu Deus! William virou-se para o administrador e perguntou: - 'Existe algum lugar aqui no hospital para onde alguém pudesse levar uma criança? - Há uma porção de esconderijos temporários - concordou o administrador. - Mas nenhum lugar onde não possam ser encontrados. - Muito bem - falou William. - Suponhamos que tenha sido o pai quem levou a criança. Por quê? - Porque ele não concordava com o tratamento disse Cathryn. -r Por isso é que me foi concedida a custódia temporária; para que o tratamento fosse mantido. Infelizmente, meu marido tem estado sob uma tremenda tensão emocional, não apenas por causa da doença da criança, mas devido também ao seu emprego. William deu um assobio. 258

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- Se ele não gostava do tratamento aqui, em que é que estava interessado? Em remédios milagrosos contra o câncer, como Laetrile ou algo assim? - Ele não disse - falou Cathryn -, mas sei que ele não se interessa por isso. - Nós já tivemos alguns desses casos de Laetrile prosseguiu William, ignorando a última afirmação de Cathryn. E, virando-se para Michael Grady, seu companheiro, arrematou: - Lembra-se daquele garoto que foi para o México? - Claro que me lembro. tornando ao grupo, William disse: - Temos alguma experiência com pais que procuram tratamentos exóticos para seus filhos. Acho melhor alertar o aeroporto. Eles podem estar para sair do país. O dr. Keitzman chegou, num redemoinho de tiques nervosos. Cathryn experimentou um grande alívio ao vê-lo. Imediatamente, ele dominou a pequena reunião e pediu que lhe contassem tudo. Paul Mansford e a enfermeira encarregada forneceram-lhe um rápido relatório. - Isso é terrível! - exclamou o médico, ajustando nervosamente seus óculos sem aros. - Parece-me que o dr. Charles Martel está sofrendo de um tipo de colapso nervoso. - Quanto tempo a garotinha viverá sem tratamento? -- indagou William. - É difícil dizer. Dias, semanas, um mês no máximo. Temos mais drogas a experimentar na criança, mas isso tem que ser feito logo. Ainda existe uma chance de remissão. - Bem, vamos pôr mãos à obra - falou William. vou terminar o relatório e entregá-lo aos detetives imediatamente. Enquanto os dois patrulheiros saíam do hospital, meia hora mais tarde, Michael virou-se para seu companheiro e disse: - Que história! É de apavorar. Garota com leucemia e tudo o mais. - Claro que é. Faz com que nos sintamos felizes por termos, pelo menos, nossos filhos com saúde. - Você acha que os detetives vão tratar logo de tudo? - Agora? Você está brincando. Esses casos de custódia são uma chatice. Felizmente eles se resolvem por si mesmos em vinte e quatro horas. De qualquer modo, os detetives só vão cuidar dele amanhã. 259

Os policiais entraram no carro-patrulha, deram sua posição pelo rádio e afastaram-se do meio-fio. Confusa, Cathryn abriu os olhos e olhou ao redor. Ela reconhecia as cortinas amarelas, a cômoda branca coberta com sua toalhinha e a coleção de bijuterias, a penteadeira cor-de-rosa, que também servira de escrivaninha nó seu tempo de ginásio, seus anuários na prateleira, e o crucifixo de plástico que ela ganhara quando se crismara. Sabia que estava em seu antigo quarto, que sua mãe conservava intacto desde que ela partira para o colégio. O que confundia Cathryn era o motivo pelo qual se encontrava ali. Ela sacudia a cabeça para se livrar do entorpecimento causado pelas pílulas para dormir que o dr. Keitzman insistira que ela tomasse. Inclinando-se, pegou seu relógio e procurou ver os números. Não podia acreditar. Faltavam quinze para o meio-dia. Cathryn piscou os olhos e tornou a olhar. Não, eram nove horas. Mesmo assim ela dormira mais tempo do que pretendera. Metendo-se num velho roupão de f Janela, Cathryn abriu a porta e correu para a cozinha, sentindo o cheiro de biscoitos frescos e de toucinho defumado. Ao entrar, sua mãe ergueu os olhos, satisfeita por ter a f ilha. em casa, fosse por que razão fosse. - Charles telefonou? - perguntou Cathryn. - Não, mas eu preparei um belo desjejum para você. - Alguém telefonou? O hospital? A polícia? - Ninguém telefonou. Portanto, relaxe. Fiz seus biscoitos favoritos. - Eu não posso comer - disse Cathryn, com a mente em torvelinho. Mas ela não estava tão preocupada que não visse o desapontamento no rosto da mãe. - Bem, talvez alguns biscoitos. Gina animou-se e apanhou

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uma xícara e um pires para a filha. - É melhor eu acordar Chuck - falou Cathryn, preparando-se para voltar ao vestíbulo. - Ele já se levantou, tomou o desjejum e saiu retrucou Gina triunfalmente. - Ele gosta tanto dos biscoitos quanto você. Disse que tinha uma aula às nove horas. Cathryn virou-se e sentou-se à mesa, enquanto a mãe lhe servia o café. Sentia-se inútil. Tentara ser uma boa esposa e mãe e agora tinha a sensação de haver agido'erra- 260

damente. Acordar o filho adotivo para que ele fosse ao colégio não era lá um critério para se avaliar uma boa mãe; no entanto, o fato de não tê-lo feito parecia indicar um desempenho totalmente incompetente. Lutando com suas emoções, ela levou a xícara de café à boca, sem ligar para a temperatura do liquido. Ao tomar um gole, o café quente escaldou seus lábios, e ela afastou rapidamente a xícara, derramando um pouco do líquido na mão. Queimada, ela soltou a xícara, que caiu na mesa, espatifando-se junto com o pires. No mesmo instante, Cathryn desfez-se em lágrimas. Gina rapidamente limpou tudo e repetidas vezes garantiu à filha que não ia chorar, pois não ligava para uma xícara velha que ela havia comprado como lembrança em Veneza, em sua única viagem àquela linda cidade, que ela amava mais do que qualquer outro lugar no mundo. Cathryn controlou-se. Sabia que a xícara veneziana era um dos tesouros da mãe e sentia muito tê-la quebrado, mas a reação de Gina ajudara a acalmar suas emoções. - Acho que vou pegar o carro e ir até Shaftesbury disse Cathryn por fim. - vou pegar mais algumas roupas para Chuck e dar uma olhadela em Jean Paul. - Chuck já tem tudo de que precisa. com o dinheiro que vai gastar para ir até lá podia comprar-lhe uma roupa nova no subsolo da Filene. - É verdade - admitiu Cathryn. - Eu pensava em passar algum tempo junto ao telefone, para o caso de Charles chamar. - Se ele chamar e ninguém responder, ele vai ligar para cá. Afinal de contas, ele não é tolo. Para onde você acha que ele foi com Michelle? - Não sei. Na noite passada a polícia falou no México. Parece que há muita gente que procura o México para curas exóticas quando se trata de câncer. Mas Charles não iria para lá. Disso eu sei muito bem. - Detesto lembrar isso, mas eu a preveni do problema de casar-se com um homem mais velho e com três filhos. Sempre acaba*mal. Sempre! Cathryn conteve a raiva que só sua mãe era capaz de causar. Então, o telefone tocou. Gina atendeu, enquanto Cathryn sustinha a respiração. - É para você - disse Gina. - Um detetive chamado Patrick 0'Sullivan. Esperando pelo pior, Cathryn pegou o telefone. Rapi- 261

damente, Patrick O'Sullivan tranqüilizou-a, dizendo que não tinha novas informações sobre Charles ou Michelle. Disse que o caso tomara um rumo interessante e perguntou se Cathryn poderia encontrar-se com ele no Instituto Weinburger. Ela concordou imediatamente. Quinze minutos mais tarde, ela estava pronta para sair. Disse a Gina que depois de passar no Weinburger iria até New Hampshire. Gina tentou protestar, mas Cathryn insistiu, dizendo que precisava passar algum tempo sozinha. Disse que voltaria a tempo de jantar com Chuck. A viagem através de Boston e pelo Memorial Drive foi calma. Ao estacionar o velho Dodge na área de estacionamento do Weinburger, ela se lembrou daquele verão, dois anos antes, quando encontrara Charles pela primeira vez. Teria sido realmente apenas dois anos antes? Havia dois carros da polícia parados perto da entrada, e quando Cathryn passou por eles pôde ouvir os familiares estalidos de seus rádios. A visão dos carros da polícia não era um sinal

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auspicioso, mas Cathryn recusava-se a fazer especulações. A porta da frente do instituto abriu-se para ela, que se encaminhou para o laboratório de Charles. A porta estava entreaberta, e Cathryn entrou. A primeira coisa em que reparou foi que o laboratório já havia sido desmontado. Ela estivera ali em várias ocasiões no passado, e assim tinha uma idéia do que esperar. Agora tinham desaparecido todos os aparelhos semelhantes a peças de ficção científica. A superfície superior dos balcões e bancadas estava nua como a de uma loja que tivesse ido à falência. No aposento havia seis pessoas. Ellen, que Cathryn reconheceu, falava com dois policiais de uniforme, ocupados em preencher o relatório da polícia. Ver os policiais despertou-lhe dolorosamente a lembrança da noite anterior. O dr. Ibanez e o dr. Morrison achavam-se perto da escrivaninha de Charles, falando com um homem sardento vestindo um casaco esporte azul, de poliéster. O homem viu Cathryn entrar e imediatamente se aproximou dela. - É a sra. Martel? - perguntou ele. Cathryn fez que sim com a cabeça e apertou a mão que o homem lhe estendia. Era macia e estava ligeiramente úmida. - Sou o detetive Patrick O'Sullivan. Fui designado para o seu caso. Muito obrigado por ter vindo. Por sobre o ombro de Patrick, Cathryn pôde ver Ellen 262 iL apontar para um espaço vazio sobre o balcão antes de reencetar sua conversa. Cathryn nlo podia perceber bem o que ela estava dizendo, mas era capaz de afirmar que se tratava de algo referente ao equipamento. Olhando de relance para os médicos, pôde ver que eles estavam empenhados numa discussão acalorada. Ela não podia ouvir o que eles diziam, mas via o dr. Morrison bater na palma da mão com evidente raiva. - Que está se passando? - perguntou Cathryn, fitando os olhos verdes e suaves do detetive. - Parece que seu marido, depois de ter sido despedido de seu cargo aqui no instituto, furtou a maior parte do equipamento. Cathryn arregalou os olhos, espantada. - Não acredito nisso. - A evidência é irrefutável. Os dois vigias noturnos aparentemente ajudaram Charles a limpar o laboratório e a carregar o material. - Mas por quê? - indagou Cathryn. -• Eu esperava que a senhora fosse capaz de me dizer - falou o detetive. Cathryn olhou ao redor, procurando compreender a extensão da loucura de Charles. - Não faço a menor idéia - retrucou ela. - Pareceme um absurdo. O detetive ergueu as sobrancelhas e franziu a testa, enquanto seguia o olhar de Cathryn em tom o do laboratório. - Perfeitamente, é um absurdo. E também um grande furto, sra. Martel. Cathryn tornou a olhar para o detetive. Ele baixou os olhos e arrastou os pés. - Isto lança uma luz diferente no desaparecimento de seu marido. O seqüestro de uma criança por um dos pais é uma coisa e, para lhe dizer a verdade, não nos excita muito. Mas roubo é outra coisa. Vamos ter que fornecer os detalhes e expedir um mandado de prisão contra o dr. Martel pelo teletjgo da polícia. Cathryn estremeceu. Toda vez que ela pensava compreender os detalhes do pesadelo, ele ficava pior. Charles agora era um fugitivo. - Não sei o que dizer. - Lamentamos muito, sra. Martel - disse o dr. Ibanez, aproximando-se por trás dela. Ela voltou-se e viu a expressão de simpatia do diretor. 263

- É uma tragédia - concordou o dr. Morrison, com a mesma expressão. - E pensar que Charles foi um dia um pesquisador de futuro. Seguiu-se uma pausa desagradável. O comentário do dr. Morrison irritou Cathryn, mas ela não estava para conversas. - Exatamente por que foi despedido o dr. Martel? -- perguntou Patrick O'Sullivan, quebrando o silêncio. Cathryn virou-se para o detetive. Ele havia colocado a pergunta que ela gostaria de ter feito, se tivesse tido

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coragem para isso. - Fundamentalmente, porque o dr. Martel vem agindo de um modo um tanto estranho. Começamos a questionar sua estabilidade mental. - O dr. Ibanez fez uma pausa. - E ele não era o que se poderia chamar de um elemento de equipe. De fato, ele se isolava, e ultimamente não queria cooperar. - Que tipo de pesquisas ele estava fazendo? - indagou o detetive. - É difícil descrever para um leigo - falou o dr. Morrison. - Basicamente Charles estava trabalhando no aspecto imunológico do câncer. Há dez anos o fato parecia bastante promissor, mas as esperanças iniciais foram eliminadas pelos desenvolvimentos subseqüentes. Charles não pôde ou não quis se adaptar aos fatos. E, conforme você sabe, o avanço da ciência não espera por ninguém. -• Morrison sorriu ao terminar sua exposição. - Por que o senhor acha que o dr. Martel levou todo o equipamento? - perguntou O'Sullivan, fazendo um gesto que abarcava todo o laboratório. - Não tenho a menor idéia - respondeu o dr. Ibanez, dando de ombros. - Acho que foi por pirraça - disse o dr. Morrison. - É como o garoto que leva sua bola para casa quando os outros não querem jogar segundo suas regras. - Poderia o dr. Martel ter levado o equipamento para continuar sua pesquisa? - prosseguiu O'Sullivan. - Não - disse Morrison. - Impossível! A chave para este tipo de pesquisa reside nos animais altamente selecionados que usamos. Esses animais são absolutamente essenciais para a pesquisa, e Charles não levou nenhum de seus camundongos. Como um fugitivo, acho que ele teria dificuldades em carregá-los. 264

- Espero que o senhor possa me dar uma lista dos fornecedores - disse o detetive. - Sem dúvida - respondeu o dr. Morrison. Lá no fundo o telefone tocou. Cathryn não soube por quê, mas sobressaltou-se. Ellen atendeu-o e chamou o detetive O'Sullivan. - Este deve ser um momento muito difícil para a senhora - disse o dr. Ibanez a Cathryn. - O senhor nem imagina - concordou ela. - Se pudermos ajudá-la de algum modo. . . - interveio o dr. Morrison. Cathryn tentou sorrir. Patrick O'Sullivan retornou ao grupo. - Bem, encontramos o carro dele. Ele o deixou num estacionamento na Harvard Square. Dirigindo pela Interestadual 301, Cathryn sentia-se cada vez mais infeliz. A reação a surpreendia, porque uma das razões pela qual quisera ir para casa, além de estar por perto do telefone no caso de Charles chamar, era animar seu espírito. Ela apreciava os esforços de sua mãe para ajudá-la, mas se ressentia com os comentários desabonadores de Gina sobre Charles e com sua atitude farisaica. Tendo sido ela própria abandonada, Gina fazia um mau conceito dos homens em gera'!, em particular dos homens sem religião como Charles. Ela jamais apoiara sinceramente o casamento de Cathryn, e deixava que ela o sentisse. Então, Cathryn tinha pensado em retornar à sua própria casa, embora soubesse que ali não seria mais o refúgio feliz que ela conhecia. Entrando em sua propriedade, tirou o pé do acelerador e freou. A primeira coisa que viu foi a caixa do correio. Tinha sido derrubada e amassada. Começou a dirigir pela entrada de veículos, passando pôr entre fileiras de árvores, que no verão formavam uma extensa galeria de sombra. Através de seus galhos, agora nus, Cathryn podia ver a casa, que. se elevava, branca, contra o fundo escuro dos ramos de sempre-verdes por trás do celeiro. Levando a caminhonete para perto do alpendre, Cathryn desligou o motor. Ao olhar para a casa, pensou em como a vida podia ser cruel. Parecia-lhe que um episódio era capaz de iniciar uma reação em cadeia, como uma série de peças de dominó se ligando pelas extremidades, inevitavelmente se derrubando umas às outras. Ao saltar do 265

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carro, Cathryn notou que a porta da casa de brinquedo oscilava ao vento, batendo repetidamente de encontro às telhas externas. Olhando mais atentamente, pôde ver que a maior parte das pequenas vidraças haviam sido quebradas. Apanhando as chaves, caminhou pela neve até a porta dos fundos, girou a chave na fechadura e entrou na cozinha. Cathryn soltou um grito. Houve um movimento repentino, e um vulto saiu de trás de uma porta e arremeteu contra ela. No instante seguinte, ela foi empurrada contra a parede da cozinha. A porta fechou-se com uma força que fez a velha estrutura da casa estremecer. O grito de Cathryn perdeu-se e morreu em sua garganta. Era Charles! Sem fala, ela observava enquanto ele, freneticamente, corria de uma janela para outra, espiando para fora. Em sua mão direita segurava sua velha espingarda calibre 12. Cathryn notou que as janelas tinham sido fortemente entabuadas, e Charles tinha de espiar por- entre as frestas. Antes que ela pudesse recobrar o equilíbrio, Charles agarrou-lhe o braço, obrigando-a a sair da cozinha, cambaleante, para o pequeno vestíbulo, e daí para a sala de estar. Então largou-a e de novo correu de janela em janela, olhando para fora. Cathryn estava paralisada pela surpresa e pelo medo. Quando finalmente ele retornou para junto dela, pôde ver que Charles estava exausto. - Você está sozinha? - perguntou ele. - Sim - falou Cathryn, com receio de dizer mais alguma coisa. - Graças a Deus! - exclamou Charles. Seu rosto tenso visivelmente descontraía-se. - Que é que você está fazendo aqui? - perguntou Cathryn. - Esta é a minha casa - disse Charles, tomando uma inspiração profunda e deixando-a escapar por entre os lábios apertados. - Não compreendo. Pensei que você tivesse pegado Michelle e fugido. Eles vão encontrá-lo aqui! Pela primeira vez, Cathryn desviou os olhos de Charles. Reparou que a sala de estar tinha sido totalmente modificada. Os instrumentos brilhantes, altamente técnicos, do Weinburger, estavam agrupados ao longo das paredes. No 266

meio da sala, numa improvisada cama de hospital, dormia Michelle. - Michelle! - gritou Cathryn, correndo para a menina e agarrando sua mão. Charles foi atrás dela. Os olhos de Michelle se abriram e, por um instante, houve um lampejo de reconhecimento; mas logo a seguir as pálpebras se fecharam. Cathryn virou-se para Charles. - Charles, em nome de Deus, que é que você está fazendo? - Num instante eu lhe conto - replicou Charlas, ajustando o fluxo da injeção endovenosa. Segurou o braço de Cathryn e obrigou-a a acompanhá-lo de volta à cozinha. - Café? - perguntou ele. Cathryn sacudiu a cabeça, conservando os olhos fixos em Charles, enquanto ele se servia de uma xícara de café. Depois, ele sentou-se diante de Cathryn. - Primeiro quero dizer-lhe uma coisa - começou Charles, olhando diretamente para a mulher. - Tive a oportunidade de pensar, e agora compreendo a posição em que você se encontrou no hospital. Lamento que minKa indecisão sobre o tratamento de Michelle tenha inadvertidamente se refletido em você. E eu, mais do que qualquer leigo, sei como os médicos são capazes de intimidar os pacientes e suas famílias para fazerem o que querem. De qualquer modo, compreendo o que aconteceu no caso da custódia. Compreendo que não foi culpa de ninguém, e que não houve maldade da parte de ninguém, muito menos da sua. Lamento ter reagido como reagi, mas não pude evitar. Espeto que você me perdoe. Sei que estava procurando fazer o que era melhor para Michelle. Cathryn não se mexia. Ela queria correr para Charles e abraçá-lo, pois de repente ele parecia normal, mas não pôde se mover. Havia

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acontecido muita coisa, e ainda havia muitas perguntas sem resposta. Charles pegou a xícara de café. Sua mão tremia tanto que ele teve de usar a mão esquerda para firmar a xícara. - Decidir o que era melhor para Michelle era um problema muito difícil - continuou Charles. - Como você, eu também esperava que a medicina ortodoxa pudesse dar-lhe mais tempo. Mas chegou um momento em que percebi que eles estavam falhando, e eu precisava fazer alguma coisa. Cathryn pôde sentir a sinceridade de Charles. Entretanto, não podia decidir sobre a racionalidade dele. Teria ele 267

sucumbido à tensão, conforme todo mundo insinuava? Cathryn viu que não tinha condições de decidir. - Todos os médicos concordaram em que os remédios eram a única chance de Michelle conseguir uma remissão dizia Cathryn, achando que devia defender sua atitude. - O dr. Keitzman assegurou-me que era sua única chance. - Não tenho dúvidas de que ele acreditava no que dizia. - E não é verdade? - Claro que ela tem de conseguir uma remissão. Mas a quimioterapia deles, mesmo nas doses experimentais extremamente altas, não estava atingindo as células leucêmicas dela. Ao mesmo tempo, estava destruindo suas células normais, principalmente as do sistema de imunização. Cathryn não tinha certeza de estar compreendendo tudo o que Charles dizia, mas ao menos parecia consistente. Não parecia produto de uma mente tresloucada. - E eu acho - continuou Charles - que, se ela tem uma chance, precisa manter seu sistema de imunização intacto. - Você quer dizer que tem um outro tratamento? Charles suspirou. - Acho que sim. Espero que sim. - Mas todos os outros médicos concordaram em que a quimioterapia era o único meio. - Claro. Assim como um cirurgião acredita na cirurgia, as pessoas são inclinadas a acreditar naquilo que conhecem. Isso é humano. Mas, nos últimos nove anos, minha vida vem se resumindo na pesquisa do câncer, e acho que tenho uma chance de poder fazer alguma coisa. - Charles fez uma pausa. Evidentemente, ele acreditava no que estava dizendo, mas estaria baseado na realidade ou numa ilusão? Cathryn queria desesperadamente acreditar também, mas ante as circunstâncias era difícil. - Você quer dizer que tem uma chance de curá-la? - Não quero alimentar muito suas esperanças, mas acho que há uma chance. Talvez pequena, mas uma chance. E, mais importante, meu tratamento não vai fazê-la sofrer. - Você conseguiu curar algum de seus animais de laboratório com câncer? - Não, não consegui - admitiu Charles, mas acrescentou rapidamente: - Sei que pode parecer irreal; mas acho que -não tive sorte com os animais porque estava tra- 268

balhando muito lenta e cuidadosamente. O objetivo era a pesquisa pura. Mas estava a ponto de experimentar uma nova técnica para usar camundongos sadios como intermediários a fim de curar os que estavam doentes. - Mas você não dispõe de animais aqui - objetou Cathryn, lembrando-se das perguntas do detetive O'Sullivan. - Não é verdade. Possuo um grande animal de experiência. Eu! Cathryn engoliu em seco. Pela primeira vez na conversa, o ceticismo insinuou-se em sua mente, questionando o estado mental de Charles. - A idéia a surpreende? Bem, não devia - disse ele. - No passado, a maioria dos grandes pesquisadores usavam-se como objeto de suas experiências. De qualquer modo, deixe-me explicar-lhe o que estou fazendo. Antes de mais nada, minha pesquisa chegou a um ponto em que posso tirar uma

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célula cancerosa de um organismo e isolar uma proteína, ou o que é chamado um antígeno, de sua superfície, e que tom a a célula diferente de todas as outras células. Isso, por si só, constitui um grande progresso. Meu problema então consistia em fazer com que o organismo reagisse à proteína e, assim, se livrasse das células anormais, cancerosas. Isto é o que acontece, creio eu, nos organismos normais. Acho quê o câncer é uma ocorrência muito freqüente, mas o sistema imunizador do corpo toma conta dele. Quando o sistema falha, então um determinado câncer cria raízes e cresce. Está entendendo até agora? Cathryn assentiu com a cabeça. - Quando tentei fazer com que animais cancerosos reagissem à proteína isolada, não consegui. Acho que existe uma espécie de mecanismo bloqueador, e era onde eu estava quando Michelle caiu doente. Mas então tive a idéia de injetar-lhe o antígeno de superfície isolado em animais sadios, a fim de tom á-los imunes a ele. Não tive tempo de prosseguir com os testes, mas estou certo de que seria fácil, porque o animal sadio vai reconhecer o antígeno como um corpo estranho a si mesmo, enquanto no animal doente o antígeno é apenas ligeiramente diferente de suas proteínas normais. Cathryn não conseguiu compreender, embora procurasse sorrir. Charles impulsivamente inclinou-se sobre a mesa e agarrou Cathryn pelos ombros. - Cathryn, procure compreender. Quero que você acredite no que estou fazendo. Preciso que você me ajude. 269

Cathryn sentiu que um elo se partia dentro dela. Charles era seu marido, e o fato de precisar dela e de admiti-lo era um tremendo incentivo. - - Você se lembra de que os cavalos eram usados para se fabricar o soro antidiftérico? - perguntou Charles. - Acho que sim. - O que estou lhe explicando é algo semelhante. O que fiz foi isolar o antígeno superficial das células leucêmicas de Michelle, que as tom a diferentes das células normais, e venho injetando o antígeno em mim mesmo. - Então, você se tornou alérgico às células leucêmicas de Michelle? - perguntou Cathryn, lutando para compreender. - Exatamente - exclamou Charles, excitado. - E depois você vai injetar seus anticorpos em Michelle? - Não. Seu sistema de imunização não aceitaria meus anticorpos. Mas felizmente a moderna imunologia encontrou um meio de transferir o que se chama de imunidade ou sensibilidade celular de um organismo para outro. Uma vez que meus linfócitos-T fiquem sensibilizados ao antígeno leucêmico de Michelle, isolarei meus glóbulos brancos, o que se chama um fator de transferência, e os injetarei em Michelle. Espero que isso estimule seu sistema imunológico contra as células leucêmicas. Desse modo, ela ficará apta a eliminar suas células leucêmicas existentes e quaisquer outras novas que evoluam. - E assim ela ficará curada? - E assim ela ficará curada - repetiu Charles. Cathryn não estava certa de haver entendido tudo o que Charles dissera, mas não havia dúvida de que seu plano parecia perfeito. Não era possível que ele o houvesse elaborado se estivesse no meio de um colapso nervoso. Ela via que, de seu ponto de vista, tudo o que ele fizera havia sido racional. - Quanto tempo levará tudo isso? - perguntou Cathryn. - Nem tenho certeza se funcionará. Mas pelo modo com que meu corpo está reagindo ao antígeno, saberei dentro de poucos dias. Eis por que bloqueei toda a casa. Estou preparado para combater quaisquer tentativas para fazer Michelle retornar ao hospital. Cathryn relanceou os olhos em tom o da cozinha, repa- 270

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rando de novo nas janelas cobertas. Virando-se para Charles, ela disse: - Imagino que você saiba que a polícia de Boston está à sua procura. Eles pensam que você voou para o México, a fim de obter Laetrile. Charles riu. - Isso é absurdo. E não podem estar fazendo muita força para me achar, porque a polícia local sabe muito bem que estou aqui. Você reparou na caixa do correio e na casa de brinquedo? - Vi que a caixa do correio estava amassada e as janelas da casa de brinquedo, quebradas. - E isso graças às nossas autoridades locais. A noite passada veio um grupo da Recycle, Ltd., decidido a destruir tudo. Chamei a polícia e pensei que ela jamais aparecesse, até que notei um dos carros da patrulha estacionado na estrada. É evidente que eles fecharam os olhos a tudo. - Por quê? - perguntou Cathryn, horrorizada. - Contratei um advogado jovem e agressivo, e parece que ele está conseguindo criar problemas para a Recycle. Acho que eles pensam que podem me intimidar a ponto de eu dispensar seus serviços. - Meu Deus! - exclamou Cathryn, começando a avaliar a extensão do isolamento de Charles. - Onde estão os rapazes? - perguntou Charles. - Chuck está na casa de mamãe. Jean Paul está em Shaftesbury, na casa de um amigo. - bom . As coisas podem ficar quentes por aqui. Marido e mulher, ambos nos limites de suas reservas emocionais, fitaram-se por sobre a mesa da cozinha. Uma onda de amor varreu-os. Eles se levantaram e caíram um nos braços do outro, abraçando-se desesperadamente como se tivessem medo de que algo os obrigasse a se separar. Ambos sabiam que nada estava resolvido, mas a reafirmação de seu amor dava-lhes nova força. - Por favor, confie em mim e ame-me - disse Charles. - Eu o amo - falou Cathryn, sentindo as lágrimas escorrerem por suas faces. - Isso nunca foi problema. A questão tem sido apenas Michelle. - Então confie em que só tenho em meu coração os melhores propósitos para com Michelle. Você sabe o quanto eu a amo. Cathryn afastou-se para encarar Charles. 271

- Todo mundo pensa que você teve um colapso nervoso. Eu não sabia o que pensar, particularmente com você brigando com a Recycle, quando a questão real era o tratamento de Michelle. - A Recycle apenas me deu algo que fazer. A parte mais frustrante da doença de Michelle era que eu não podia fazer nada, tal como aconteceu com Elizabeth. Tudo o que pude fazer foi vê-la morrer, e parecia que a mesma situação se repetiria com Michelle. Eu precisava de alguma coisa em que me concentrar, e a Recycle galvanizou minha necessidade de ação. Minha ira pelo que eles estão fazendo é bastante real, bem como a disposição de fazê-los parar. Mas é evidente que meu principal interesse está em Michelle, do contrário eu não estaria aqui agora. Cathryn sentiu-se como que aliviada de um grande peso. Agora ela estava certa de que Charles jamais perdera o contato com a realidade. - E quanto à situação de Michelle? . -• Não é boa - admitiu Charles. - É uma criança que está terrivelmente doente. A agressividade de sua doença é espantosa. Apliquei-lhe morfina, porque ela sente terríveis eólicas de estômago. •- Charles tornou a abraçar Cathryn, desviando o rosto. - Ela também teve algumas enquanto eu estava com ela - disse Cathryn, sentindo Charles tremer ao lutar para conter suas lágrimas. Cathryn apertou-o o mais que pôde. Eles permaneceram juntos por mais cinco minutos. Ninguém falava, mas a comunicação era total. Por fim, Charles afastou-se. Quando se voltou, ela viu que os olhos dele estavam vermelhos, e sua expressão, séria. - Estou satisfeito por termos tido a oportunidade de falar. Mas acho que você não deve ficar aqui. Sem dúvida, vai haver barulho. Não que eu não queira que você fique comigo; de fato, egoisticamente, eu gostaria que você ficasse. Mas sei que seria melhor se você pegasse Jean

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Paul e voltasse para a casa de sua mãe. - Ê Charles balançou a cabeça, como se estivesse convencendo a si próprio. - Quero que você seja egoísta - disse Cathryn. Ela experimentava uma nova sensação de confiança de que podia ser uma esposa. - Meu lugar é aqui. Jean Paul e Chuck estão muito bem. - Mas Cathryn. . . - Nada disso. vou ficar e ajudar. 272

Charles examinou o rosto da mulher. Ela se mostrava positivamente desafiadora. - E se acha - continuou ela, com uma veemência que ele jamais tinha visto - que pode se livrar de mim, agora que me convenceu de que o que está fazendo está certo, você é um louco! Você terá que me pôr para fora, literalmente falando. - Está bem, está bem - disse Charles com um sorriso. -- Não vou pôr você para fora. Mas podemos passar uns maus bocados. - A responsabilidade é tanto minha quanto sua falou Cathryn, com convicção. - Este é um negócio de família, e faço parte desta família. Ambos reconhecemos isso quando nos casamos. Não estou aqui apenas para partilhar felicidade. Charles experimentou uma variedade de emoções, mas a principal foi o orgulho. Ele havia sido culpado de não ter dado a Cathryn o crédito que ela merecia. Ela estava certa; sempre que possível, Charles procurara poupá-la dos aspectos negativos da vida familiar, e isso era errado. Ele devia ter sido mais aberto, mais confiante. Cathryn era sua mulher, não sua filha. - Se você quer ficar, por favor, fique - disse ele. -- Eu quero ficar - respondeu Cathryn simplesmente. Charles beijou-a delicadamente nos lábios. Depois, deu um passo atrás e fitou-a com admiração; - Você realmente pode me ajudar -- disse ele, consultando o relógio. - Está quase na hora de eu me aplicar outra dose do antígeno de Michelle. vou explicar-lhe o que você pode fazer depois que eu prepará-lo. OK? Cathryn assentiu e deixou que Charles apertasse sua mão antes de voltar para a sala de estar. Aparando-se nas costas de uma das cadeiras da cozinha, Cathryn sentia-se um pouco tonta. Tudo o que acontecera nos últimos dias era inesperado. Nem por um instante ela imaginara que Charles houvesse levado Michelle para casa. Pensou se haveria um meio de cancelar o processo de custódia, eliminando assim um dos motivos pelos quais Charles estava sendo procurado pela polícia. Pegando o telefone, ela discou para a mãe. Enquanto esperava que a ligação se completasse, viu que se dissesse a Gina que Charles estava ali ia precipitar uma discussão, e então decidiu não falar nada. Gina atendeu ao segundo toque. Cathryn manteve a 273

conversa num tom superficial, sem mencionar sua visita ao Weinburger ou o fato de que Charles era suspeito de furto. Quando surgiu uma pausa, ela limpou a garganta e disse: - Desde que você não se importe em preparar o jantar para Chuck e providenciar para que ele vá para a escola amanhã de manhã, acho que vou passar a noite aqui. Quero estar aqui no caso de Charles chamar. - Querida, não acho que você deva ficar sentada aí à espera daquele homem. Eu lhe digo que ele vai telefonar para cá, se o telefone de sua casa não atender. Além disso, planejei um maravilhoso jantar para esta noite. Tente adivinhar o que estou fazendo. Cathryn deixou a respiração escapar num calmo suspiro. Ela jamais deixara de se admirar com o fato de que sua mãe sempre achava que uma boa refeição podia resolver tudo. - Mamãe, não quero imaginar o que você está fazendo para o jantar. Quero passar a noite aqui na minha casa. Cathryn sabia que havia ferido os sentimentos de sua mãe, mas, ante as circunstâncias, achava

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que não tinha muita escolha. E o mais depressa que pôde, sem parecer grosseira, ela desligou. Pensando em comida, Cathryn examinou a geladeira. Exceto por uma relativa escassez de leite e ovos, eles estavam bem-providos, especialmente a obsoleta adega do porão. Fechando a geladeira, Cathryn olhou ao redor da cozinha entaipada, admirando-se do fato de ser uma prisioneira em sua própria casa. Começou a pensar no tratamento de Charles para Michelle. Reconhecia que não compreendia os detalhes, mas ele parecia bom . Ao mesmo tempo, reconhecia que, se estivesse com o dr. Keitzman, provavelmente acreditaria no que ele dissesse. A medicina era complicada demais para que ela se sentisse confiante o bastante para discutir com os especialistas. Como leiga, ela ficava numa situação insuportável quando os médicos discordavam. Quando entrou na sala de estar, Charles estava segurando uma seringa com a agulha para cima, dando-lhe uns petelecos com o dedo indicador para fazer sair as bolhas de ar. Calmamente, pegou uma cadeira e sentou-se. Michelle ainda estava dormindo, com seu cabelo ralo espalhado pelo travesseiro branco. Através das tábuas das janelas, Cathryn viu que tinha tom ado a nevar. No porão, ela podia ouvir o combustor a óleo trabalhando. 274

- Agora vou injetar isto na veia de meu braço - disse Charles, procurando um garrote. - Nlo creio que você queira fazer isso para mim. Cathryn sentiu a boca seca. - Posso tentar - disse ela, relutante. Na verdade, ela não queria nada com a seringa. Só de olhá-la, pensava que ia desmaiar. - Você tentaria? - indagou Charles. - A menos que se seja um viciado, é difícil pra diabo a pessoa picar-se numa veia. Quero também lhe mostrar como me aplicar a Epineírina, se eu precisar dela. com a primeira dose endovenosa do antígeno de Michelle, desenvolvi uma certa alergia que tom a a respiração difícil. "Oh, meu Deus", disse Cathryn para si mesma. E, depois, para Charles: - Não existe outro meio de tomar o antígeno, talvez ingerindo-o? Charles balançou a cabeça. - Eu tentei, mas os ácidos do estômago o destroem. Cheguei mesmo a tentar uma forma de aspirá-lo, "como se faz com a cocaína, mas a membrana mucosa de meu nariz inchou terrivelmente. E como estou com pressa, decidi que tinha de injetá-lo diretamente na veia. O problema foi que a primeira reação de meu corpo consistiu em desenvolver uma alergia simples, a que se chama de hipersensibilidade imediata. Tentei eliminar esse efeito alterando ligeiramente a proteína. Eu queria uma hipersensibilidade retardada, não imediata. Cathryn acenou com a cabeça como se entendesse, mas não havia percebido nada, a não ser a sensação fria da seringa, que segurava com a ponta dos dedos, como se esperasse ser machucada por ela. Charles trouxe uma cadeira e colocou-a na frente dela. Sobre o balcão, ao alcance da mão, dispôs duas seringas menores. - Essas outras seringas são a Epinefrina. Se de repente eu ficar vermelho como uma beterraba e não puder respirar, basta enfiar uma destas em qualquer músculo e injetar o líquido. Se não houver resposta em trinta segundos, use a outra. Cathryn experimentou um estranho terror. Mas Charles parecia alegremente despreocupado. Desabotoou o punho da camisa e levantou a manga até acima do cotovelo. Segurando uma das extremidades do garrote com os dentes, Charles amarrou o tubo de borracha no braço. Logo suas veias se tornaram salientes. 275

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- Tire o protetor de plástico - instruiu Charles - e empurre a agulha para dentro da veia. com as mãos visivelmente trêmulas, Cathryn retirou o protetor da agulha. Sua ponta aguda brilhou à luz. com a mão direita, Charles abriu um pacote de algodão que mantinha preso entre os dentes. Embebeu o algodão no álcool e esfregou com força o local da injeção. - OK, faça a sua parte - disse Charles, desviando os olhos. Cathryn tomou uma inspiração. Agora ela sabia por que jamais considerara a medicina como uma possível carreira. Procurando segurar firme a seringa, ela colocou a agulha sobre a pele de Charles e empurrou delicadamente. A pele mal se amolgou. - Você tem que dar um empurrão - falou Charles, ainda olhando para o lado. Cathryn forçou a seringa um pouco mais. A pele afundou. Charles olhou para seu braço. Estendendo a mão livre, impulsionou subitamente a seringa, fazendo com que ela atravessasse a pele, espetando a veia. - Perfeito - disse ele. - Agora puxe o embolo, sem deslocar a ponta da agulha. Cathryn fez conforme Charles pedia, e um pouco de sangue vermelho-vivo penetrou na seringa. - Bem na mosca - observou Charles, tirando o garrote. - Agora injete devagar. Cathryn empurrou o embolo. Ele se moveu facilmente. Quando estava a um pouco mais da metade, seu dedo escorregou. A agulha penetrou mais profundamente, ao mesmo tempo que o embolo completava seu movimento. Imediatamente, apareceu uma pequena saliência em seu braço. - Está bem - disse Charles. - Nada mal para a primeira vez. Agora retire a seringa. Cathryn puxou a agulha para fora e Charles colocou um pedaço de gaze sobre o local. - Desculpe - disse Cathryn, angustiada por talvez tê-lo machucado. - Não tem problema. Talvez até ajude se tiver posto um pouco de antígeno subcutaneamente. Quem sabe? - De repente, seu rosto começou a ficar vermelho. Ele estremeceu. - Droga! - Cathryn podia sentir que sua voz tinha mudado. Estava muito mais aguda. - Epinefrina - falou ele, com alguma dificuldade. 276

Ela agarrou uma das seringas menores. Na pressa de remover o protetor de plástico, entortou a agulha. Pegou a outra. Charles, que agora estava ficando cheio de urticária, apontou para o braço. Retendo a respiração, Cathryn enfiou a agulha no músculo. Desta vez ela usou de bastante força. Pressionou o embolo e tirou a seringa. Rápido, ela se desfez da seringa usada e apanhou a primeira, procurando endireitar a agulha curva. Estava prestes a enfiá-la em Charles quando ele ergueu a mão. - Está bem - conseguiu ele dizer, com a voz ainda anormal. - Já posso sentir que a reação está se acalmando. Puxa! Como foi bom você estar aqui. Cathryn abaixou a seringa. Se ela achava que antes tremia, agora estava se sacudindo. Para Cathryn, usar uma agulha em Charles tinha sido o teste supremo. 277

14 Por volta das nove e meia, eles estavam se preparando para a noite. Cathryn já havia providenciado alguma comida, enquanto Charles trabalhava no laboratório improvisado. Ele havia tirado uma amostra de seu sangue, separado as células e isolado alguns linfócitos-T com a ajuda de hemácias de carneiro. Depois, incubara os linfócitos-T juntamente com alguns de seus fagócitos e células leucêmicas de Michelle. Enquanto jantavam, Charles disse a Cathryn que ainda não havia sinal de uma hipersensibilidade retardada. Disse-lhe que dentro de vinte e quatro horas teria que se aplicar mais uma dose desafiadora do antígeno de Michelle. Michelle

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tinha acordado de seu sono induzido pela morfina e estava alegre por ver Cathryn. Não se lembrava de ter visto a madrasta chegar. Sentindo-se um pouco melhor, havia comido até um pouco de alimento sólido. - Ela parece estar melhor - sussurrou Cathryn, enquanto eles levavam os pratos para a cozinha. - É uma melhora mais aparente do que real -.- disse Charles. - Seu organismo está apenas se recuperando dos outros remédios. Charles havia acendido o- fogo e trazido seu colchão para a sala de estar. Queria ficar perto de Michelle, para o caso de a filha precisar dele. Assim que se deitou, Cathryn sentiu uma tremenda fadiga. Achando que Michelle estava o mais confortável possível, ela se permitiu relaxar pela primeira vez em dois dias. Enquanto o vento jogava a neve contra as janelas da frente, ela agarrou-se a Charles e deixou que o sono a dominasse. Ouvindo o quebrar e tilintar de vidros, Cathryn sentou-se por puro reflexo, sem saber a razão daquele barulho. Charles, que estava acordado, reagiu prontamente, rolando do colchão para o assoalho e pondo-se de pé. Ao fazê-lo, ele sopesou sua espingarda e soltou o dispositivo de segurança. 279

- Que foi isso? - perguntou Cathryn, com o coração aos saltos. - Visitantes. Provavelmente nossos amigos da Recycle. Algo bateu contra a porta da frente e caiu com um ruído surdo no batente. - Pedras - disse Charles, dirigindo-se para o comutador de luz e mergulhando a sala na escuridão. Michelle murmurou qualquer coisa, e Cathryn correu para o seu lado, a fim de confortá-la. - Justamente como eu pensava - disse Charles, espiando por entre as tábuas da janela. Cathryn foi até ele e olhou por cima de seu ombro. Parado no caminho do carro achava-se um grupo de homens carregando tochas improvisadas. Na estrada havia um par de carros estacionados ao acaso. - Estão bêbados. - Que vamos fazer? - sussurrou Cathryn. - Nada. A não ser que eles tentem entrar ou se aproximem demais com aquelas tochas. - Você seria capaz de atirar em alguém? - Não sei - disse Charles -, realmente não sei. - vou telefonar para a polícia. - Não se preocupe. Tenho a certeza de que eles sabem o que está acontecendo. - Assim mesmo vou tentar - retorquiu Cathryn. Ela deixou-o junto à janela e se dirigiu à cozinha, de onde discou para a telefonista e pediu que a ligasse com a polícia de Shaftesbury. O telefone chamou oito vezes antes que uma voz cansada respondesse, identificando-se como Bernie Crawfofd. Cathryn informou que sua casa estava sendo atacada por um grupo de bêbados e que esperava um socorro imediato. - Espere um minuto - disse Bernie. Cathryn pôde ouvir uma gaveta que se abria è Bernie procurando qualquer coisa. - Só um minuto. Preciso de um lápis - disse Bernie, deixando a linha antes que Cathryn pudesse falar. Ela ouviu um grito do lado de fora, e Charles entrou correndo na cozinha, encaminhando-se para a janela que dava para o lago. - OK - continuou Bernie, voltando à linha. - Qual é o endereço? Rapidamente, Cathryn deu o endereço. - Código postal - pediu Bernie. - Código postal? - indagou Cathryn. - Nós precisamos de socorro já. 280

- Senhora, papelada é papelada. Tenho de preencher um formulário antes de despachar um carro. Cathryn deu o código postal. - Quantos caras no grupo? - Não tenho certeza. Uma meia dúzia. Cathryn podia ouvir o homem escrevendo. - São garotos? - Cathryn! - gritou Charles. - Preciso que você vigie a parte da frente. Eles estão tocando fogo na casa de brinquedo, mas isso pode ser apenas para desviar a atenção. Alguém tem de vigiar a porta da frente. - Escute -

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gritou Cathryn ao telefone. - Não posso falar. Quero apenas que mandem um carro. - Bateu o telefone e correu de volta à sala de estar. Pela pequena janela próxima à lareira ela podia ver o brilho tremulante da casa de brinquedo. Voltou sua atenção para o gramado da frente. O grupo com as tochas havia desaparecido, mas ela podia ver alguém tirando algo da mala de um dos carros. Na escuridão, parecia um balde. "Oh, meu Deus! Permita que não seja gasolina", pensou Cathryn. Dos fundos da casa vinha o barulho de vidros que se quebravam. - Você está bem? - gritou ela. - Estou bem. Os sacanas estão quebrando as janelas do seu carro. Cathryn ouviu Charles destrancar a porta dos fundos. Então, ouviu o estampido de sua espingarda. O barulho ecoou pela casa. A seguir a porta fechou-se com estrépito. - Que aconteceu? - gritou Cathryn. Charles voltou à sala de estar. - Atirei para o ar. Suponho que é a única coisa que respeitam. Eles deram o fora. Cathryn tornou a olhar para fora. O bando havia se reagrupado em tom o do homem que vinha do carro. À luz das tochas, ela pôde ver que ele carregava um galão e se ajoelhava, aparentemente para abri-lo. - Parece tinta - disse Cathryn. - E é mesmo - falou Charles. Enquanto eles observavam, o grupo começou a entoar "Comunista!". O homem com a lata de tinta aproximou-se da casa, aparentemente encorajado pelo resto do grupo. Quando eles chegaram mais perto, Cathryn pôde ver que os homens carregavam um sortimento variado de cassetetes. O 281

canto prosseguia cada vez mais alto. Charles reconheceu i Wally Crab e o homem que o havia esmurrado. l O grupo parou a cerca de quinze metros da casa. O i homem com a tinta continuou andando, enquanto os outros J o instigavam. Charles afastou-se da janela, fazendo com que l Cathryn ficasse atrás dele. Ele tinha uma clara visão da f porta, e seu dedo escorregou para o gatilho. f Eles ouviram os passos pararem e a seguir o som de l um pincel lançado contra as telhas. Depois de cinco minutos, f o som final de tinta esparramada contra a porta da frente, J seguido do ruído estridente do galão atingindo o alpendre. • Retornando às pressas para a janela, Charles pôde ver que os homens berravam e davam gargalhadas. Aos poucos, ;. voltaram pelo caminho, empurrando uns aos outros na neve. i No final da entrada de veículos, e após várias vociferações, ' os homens subiram nos dois carros. com as buzinas tocando, " sumiram dentro da noite, tomando a direção da Interestadual ) 301, no sentido da Shaftesbury. E o silêncio invernal retornou tão abruptamente quanto tinha sido quebrado. Charles expirou longamente. Depôs a • espingarda e tomou as mãos de Cathryn nas suas. ; - Agora que você viu o quanto é desagradável, talvez l queira voltar para a casa de sua mãe até tudo terminar. - De modo algum - retrucou Cathryn, sacudindo a cabeça. Então, afastou-se para cuidar de Michelle. Quinze minutos mais tarde, o carro-patrulha da polícia de Shaftesbury derrapou numa freada brusca e parou súbita- ; mente por trás da caminhonete. Frank Neilson saiu correndo \ do assento dianteiro, como se estivesse atendendo a uma j emergência. ' * - Você pode voltar para o seu carro, seu filho da puta - disse Charles, que havia saído pela porta da frente. Frank, de pé, com as pernas afastadas e as mãos nas cadeiras, limitou-se a encolher os ombros. - Tudo bem, se você não precisa de mim. - Ponha-se para fora de minha propriedade - rosnou "^CKarles. - Gente estranha a desta parte da cidade - disse Frank em voz alta para o seu auxiliar, enquanto retornava j ao carro. i A manhã se insinuou pela região congelada, inibida por uma alta camada de nuvens cor de chumbo. Charles e 282

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Cathryn tinham se revezado em turnos de vigia, mas os vândalos não voltaram. Quando a aurora surgiu, Charles sentiuse confiante o bastante para voltar para a cama perto da lareira e esgueirar-se para junto de Cathryn. Michelle tinha melhorado consideravelmente, e, embora ainda estivesse muito fraca, pôde sentar-se, tentando sorrir corajosamente quando Charles fingiu ser um garçom que trazia seu café da manhã. Enquanto Charles tirava um pouco de seu sangue e testava novamente seus linfócitos-T, em busca de sinais de hipersensibilidade retardada para as células leucêmicas, Cathryn procurava tornar mais habitável a casa, que estava de pernas para o ar. Ocupada pelos equipamentos e reagentes de Charles, a cama de Michelle e o colchão de casal, a sala de estar era uma grande confusão. Cathryn nada pôde fazer ali, mas na cozinha seus esforços surtiram efeito. - Nenhum sinal de qualquer reação adequada com meus linfócitos - disse Charles, entrando para tomar mais café. - Mais tarde, hoje, você vai ter que me aplicar outra dose do antígeno de Michelle. - Certo - falou Cathryn, procurando levantar o ânimo de ambos. Ela não tinha certeza de que pudesse fazê-lo. O simples pensamento lhe causava arrepios. - Preciso pensar num meio de reforçar nossa segurança aqui - disse Charles. - Não sei o que eu teria feito se aqueles homens a noite passada estivessem bastante bêbados para arrombar a porta dos fundos. - Os vândalos são uma coisa! E se a polícia vier, querendo prender você? - Até eu terminar o que estou fazendo, preciso manter todo mundo fora da casa. - Acho que é uma questão de tempo, antes que a polícia venha. E receio que será muito mais difícil mantê-los afastados. Se resistir, você estará infringindo a lei, e eles podem sentir-se obrigados a usar a força. - Acho que não. Eles têm muito a perder e muito pouco a ganhar. - O estímulo pode ser Michelle, se acharem que ela precisa recomeçar o tratamento. Charles assentiu lentamente. - Talvez você esteja certa. Mas mesmo que esteja, não há nada mais a ser feito. - Eu acho que há. Talvez eu possa impedir a polícia 283

de procurá-lo. Conheci o detetive que está encarregado do caso. Talvez eu possa dizer-lhe que não quero prosseguir com as acusações. Se não houver acusações, eles vão parar de procurá-lo. Charles tomou um grande gole de café. O que Cathryn dizia tinha sentido. Ele sabia que se a polícia usasse da força poderia tirá-lo de dentro de casa. Essa era uma das razões pela qual ele reforçara as janelas com tanto cuidado, com receio do gás lacrimogêneo ou coisa parecida. Mas imaginou que provavelmente teriam outros meios que ele não queria considerar. Cathryn estava certa; a polícia ia ser um verdadeiro problema. - Está bem - disse Charles -, mas você terá de usar o furgão que aluguei e que está na garagem. Acho que a caminhonete não tem mais pára-brisa. Vestindo seus casacos, os dois caminharam de mãos dadas até o celeiro trancado através de dois centímetros e meio de neve recente. Ambos viram os restos carbonizados da casa de brinquedo à beira do lago, evitando falar a respeito. As cinzas fumegantes eram uma lembrança muito viva do terror da noite anterior. Enquanto tirava o furgão da garagem, Cathryn relutou em partir. Aparentemente, Michelle sentia-se melhor, e apesar dos vândalos tinha desfrutado de sua recém-descoberta intimidade com Charles. com alguma dificuldade, já que dirigir um furgão grande era uma nova experiência, Cathryn consegiu manobrar o veículo. Acenou um adeus para Charles e dirigiu vagarosamente pelo caminho escorregadio. Chegando ao sopé do morro, ela virou-se para olhar a casa. À luz de aço, ela parecia abandonada no meio das árvores desfolhadas. Na frente da casa estava pintada em grandes letras malfeitas a palavra "Comunista". O restante da tinta vermelha tinha

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sido derramado e jogado na porta da frente, e do modo pelo qual tinha sido lançado, e corrido pelo alpendre, parecia sangue. Dirigindo diretamente para a central de polícia de Boston, na Berkeley Street, Cathryn ia ensaiando o que pretendia dizer a Patrick O'Sullivan. Decidindo que a brevidade era o melhor critério, ela ficou confiante em que entraria e sairia numa questão de minutos. Cathryn teve muita dificuldade em encontrar um lugar para estacionar e deixou o furgão num local proibido, pintado de amarelo. Tomando o elevador para o sexto andar, 284

ela descobriu o gabinete de 0'Sullivan sem qualquer problema. O detetive ergueu-se assim que ela entrou e contornou sua mesa. Estava exatamente vestido conforme ela 0 conhecera vinte e quatro horas antes. Até a camisa era 3 mesma, pois ela se lembrava de uma nódoa de café bem à direita de sua gravata de poliéster azul-escura. Era difícil para Cathryn imaginar que aquele aparente cavalheiro pudesse concentrar a violência de que obviamente precisava para o seu trabalho. - Quer se sentar? - perguntou Patrick. - posso tirar seu casaco? - Está bem assim, muito obrigada. Só vou tomar um instante de seu tempo. O escritório do detetive parecia um cenário para um melodrama de TV. Havia as obrigatórias fotos austeras das . altas autoridades da polícia nas paredes lascadas e descascadas. Havia também um quadro de cortiça com cartazes e fotografias de pessoas procuradas. A mesa do detetive estava repleta de papéis, envelopes, latas de sopa cheias de lápis, uma velha máquina de escrever e uma fotografia de uma mulher rechonchuda de cabelos ruivos, com cinco meninas também ruivas. O'Sullivan voltou para sua cadeira, juntando Os dedos sobre o estômago. Sua expressão era inteiramente vazia. Cathryn viu que não fazia a menor idéia do que o homem estava pensando. - Bem - disse ela contrafeita, sua confiança se esvaindo. - Vim aqui para dizer que não estou mais interessada em fazer acusações contra meu marido. O rosto do detetive não se alterou em nada. Cathryn desviou o olhar por um instante. O encontro não estava saindo conforme o planejado. Ela continuou: - Em outras palavras, não quero a custódia da menina. O detetive continuava sem reagir, aumentando a ansiedade de Cathryn. - Não é que eu não me importe - acrescentou Cathryn rapidamente. Apenas meu marido é o pai biológico, e é um médico, de modo que acho que está em melhor condição para determinar o tipo de tratamento que a criança deve receber. - Onde está seu marido? Cathryn piscou os olhos. A pergunta do detetive a fez* sentir-se como se ele não estivesse ouvindo nada do que ela dissera. Então, ela viu cjue não devia ter feito aquela pausa. 285

-• Não sei - disse Cathryn, sentindo que suas palavras nada tinham de convincentes. De repente, O'Sullivan inclinou-se para a frente e pôs os braços sobre a mesa. - Sra. Martel, acho melhor informá-la de uma coisa. Embora a senhora tenha iniciado o processo legal, não pode cancelá-lo unilateralmente antes da audiência. O juiz que lhe concedeu uma custódia temporária de emergência também nomeou um curador ad litim, chamado Robert Taber. O que acha de o sr. Taber acusar seu marido a fim de conseguir que Michelle Martel retorne ao hospital? - Não sei - disse Cathryn mansamente, confusa diante daquela complicação. - Fui levado a crer - continuou O'Sullivan - que a vida da criança estaria em perigo, a menos que ela recebesse um tratamento específico o mais cedo possível. Cathryn nada disse. - Parece-me que a senhora esteve conversando com seu marido. - Falei com ele - admitiu Cathryn -, e a menina

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está muito bem. - E quanto ao tratamento médico? - Meu marido é médico - afirmou Cathryn, como se mencionar as qualificações de Charles respondesse à pergunta do detetive. - Pode ser, sra. Martel, mas o tribunal só concorda com o tratamento indicado. Cathryn reuniu sua coragem e levantou-se. - Acho que devo ir. - Talvez a senhora pudesse nos informar onde está seu marido, sra. Martel. - Prefiro não dizer - falou Cathryn, abandonando qualquer fingimento de ignorância. - A senhora sabe que temos um mandado de prisão contra ele. Os diretores do Weinburger estão impacientes por acusá-lo. - Eles vão receber de volta cada peça do equipamento - falou Cathryn, virando-se para a porta. - A senhora não devia se acumpliciar ao crime. - Muito obrigada pelo tempo que lhe tomei - retrucou Cathryn, ao se voltar para a porta. - Nós sabemos onde está Charles -- comentou o detetive O'Sullivan. Cathryn estacou e virou-se. - Por que a senhora não volta e se senta? 286

Por um instante, Cathryn não se mexeu. Primeiro teve vontade de ir embora, mas depois decidiu que era melhor ficar e descobrir o que eles sabiam e, mais importante, o que pretendiam fazer. Relutando, retornou ao seu assento. - Devo explicar-lhe mais uma coisa - continuou CVSullivan. - Só esta manhã é que expedimos o mandado de prisão contra seu marido pelo teletipo da polícia. Minha impressão era a de que não se tratava de um caso comum, e, apesar do que dizia o pessoal do Weinburger, não acreditava que seu marido houvesse furtado o equipamento. O que eu esperava era que o caso se resolvesse por si mesmo. Quero dizer, que seu marido procurasse alguém e dissesse: "Aqui está o equipamento e a criança; eu os levei. . ." e assim por diante. Se isso tivesse acontecido, acho que poderíamos ter evitado quaisquer acusações. Mas acontece que fomos pressionados pelo Weinburger e também pelo hospital. Assim, o mandado contra seu marido foi expedido pelo teletipo esta manhã, e imediatamente tivemos informações a respeito dele. A polícia de Shaftesbury telefonou para dizer que sabia que Charles Martel estava na casa dele e que o pessoal teria muito prazer em ir até lá e prendê-lo. Então, eu disse.

. . - Oh, pelo amor de Deus, não! - exclamou Cathryn, empalidecendo. O detetive O'Sullivan parou no meio da frase, observando Cathryn. - A senhora está bem, sra. Martel? Cathryn fechou os olhos e levou as mãos ao rosto. Após um minuto, retirou as mãos do rosto e olhou para 0'Sullivan. - Que pesadelo! E ainda continua. - Sobre o que a senhora está falando? Cathryn descreveu a luta de Charles contra a Recycle, Ltd., a atitude da polícia local e também a reação da polícia ao ataque contra sua casa. - Eles pareciam um bocado impacientes - admitiu O'Sullivan, lembrando-se de sua conversa com Frank Neilson. - O senhor não pode voltar a chamá-los e dizer-lhes que aguardem? - É tarde demais para isso. - O senhor não podia telefonar-lhes e entrar em contato com a polícia local, a fim de que eles sintam que não estão agindo sozinhos? - implorou Cathryn. 287

O'Sullivan pegou o telefone e pediu à telefonista que o ligasse com Shaftesbury. Cathryn perguntou se ele não queria ir até New Hampshire supervisionar as coisas. - Não tenho nenhuma autoridade lá - retrucou o detetive. Ao se completar a ligação, ele dirigiu sua atenção para o receptor. - Nós já o cercamos - disse Bernie, tão alto que Cathryn o ouviu quando O'Sullivan afastou o fone do ouvido. - Mas esse Martel é um louco. A casa parece um forte. E

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tem uma espingarda de caça, que sabe como usar, e sua garota como refém. - A situação parece difícil - disse O'Sullivan. - Suponho que vocês tenham pedido auxílio à polícia estadual, não? - Claro que não! Nós mesmos cuidaremos dele. Reunimos um grupo de voluntários. Telefonarei assim que o tivermos na mão, para que você possa despachá-lo para Boston. Patrick agradeceu a Bernie, que, por sua vez, disse que ele não tinha nada que agradecer e que a força policial de Shaftesbury estava sempre disposta a cooperar. O'Sullivan olhou para Cathryn. A conversa com Bernie havia comprovado as queixas dela. O delegado de Shaftesbury estava muito longe de ser um policial profissional. E a ' idéia de convocar voluntários parecia saída de um filme de faroeste de Clint Eastwood. - Vai haver barulho - disse Cathryn, sacudindo a cabeça. - Vai haver uma confrontação. E, quanto a Michelle, Charles está muito decidido. Receio que ele reaja. - Meu Deus! - exclamou O'Sullivan, pondo-se de pé e apanhando seu casaco de um cabide perto da porta. - Meu Deus, como odeio esses casos de custódia! Vamos, irei lá com a senhora, mas lembre-se: não tenho qualquer autoridade em New Hampshire. Cathryn dirigia o furgão o mais depressa que podia, enquanto O'Sullivan a seguia num Chevrolet azul. Ao se aproximarem de Shaftesbury, ela sentiu que seu pulso se acelerava. Ao fazer a última curva antes da casa, estava quase em pânico. Chegando à sua propriedade, viu uma grande multidão. Os carros estavam estacionados de ambos os lados da Interestadual 301, ao longo de cerca de cinqüenta metros. A entrada para carros estava bloqueada por dois carros-patrulha da polícia. 288 jL Estacionando o furgão o mais perto que pôde, Cathryn saiu e esperou por O'Sullivan, que a puxou para trás dele. Apesar da temperatura gélida, a cena tinha um aspecto de carnaval. Do outro lado da estrada, alguém com tino comercial havia montado uma grelha improvisada. Sobre ela chiavam salsichas italianas, que eram vendidas dentro de um pão por dois dólares e meio cada. Junto da grelha havia um latão cheio de latas de cerveja Budweiser e gelo. Atrás do "estabelecimento", alguns garotos tinham construído fortes de neve, preparando-se para uma batalha de bolas de neve. O'Sullivan pôs-se ao lado de Cathryn e disse: - Meu Deus, isto está parecendo uma excursão de ginásio. - com exceção das armas - observou Cathryn. Agrupados atrás dos dois carros da polícia havia uma multidão de homens vestidos dos mais variados modos. Usavam desde uniformes de serviço do exército até casacos de lã para esquiar,.cada qual armado com um rifle de caça. Alguns carregavam a arma numa das mãos e uma lata de Budweiser na outra. No centro do grupo, Frank Neilson, com o pé apoiado no pára-choque de um dos carros da polícia, comprimia um wdkie-talkte no ouvido, aparentemente comandando homens armados, que, embora não estivessem à vista, deviam estar fechando o cerco à casa. O'Sullivan deixou Cathryn e se dirigiu para Frank Neilson, apresentando-se. De onde estava, Cathryn podia dizer que o chefe de polícia de Shaftesbury encarava o detetive como um intruso. com grande esforço, Neilson retirou o pé do pára-choque do carro e se indireitou, ultrapassando O'Sullivan em altura cerca de trinta centímetros. Os dois homens não pareciam ter a mesma profissão. Neilson usava seu habitual uniforme azul da polícia, com um maciço coldre de couro e revólver. Na cabeça, usava um gorro de pele tipo russo, com as laterais abotoadas em cima. O'Sullivan, por outro lado, usava um casaco caqui de lã desgastado pelo tempo. Não trazia chapéu, e seus cabelos estavam desalinhados. - Como vão as coisas? - perguntou O'Sullivan casualmente. - Ótimas. Tudo está sob controle - respondeu Neilson, limpando o nariz arrebitado com o dorso da mão. O walkie-talkie crepitou, e Neilson pediu licença. Pelo aparelho, ordenou que o grupo de elite se aproximasse até 289

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cerca de cem metros da casa e estacasse. Depois, virou-se para O'Sullivan. - É preciso ter certeza de que o suspeito não fuja pela porta dos fundos. O'Sullivan desviou os olhos de Neilson e observou os homens armados. - Você acha aconselhável usar tanto poder de fogo? - Suponho que você não esteja querendo me dizer como cuidar desta situação - observou Neilson sarcasticamente. - Escute, detetive, isto aqui é New Hampshire, e não Boston. Você não tem autoridade aqui. E, para falar a verdade, não gosto que vocês, os grandes homens da cidade, venham até aqui para nos dar conselhos. Quem manda aqui sou eu. Sei como enfrentar uma situação com um refém. Primeiro garantir a área, depois negociar. Portanto, se me dá licença, tenho que trabalhar. Neilson deu as costas a 0'Sullivan e voltou sua atenção para o walkie-talkie. - Desculpe - disse um homem alto e emaciado, batendo amigavelmente no ombro de O'Sullivan. - Meu nome é Harry Barker, do Clobe de Boston. O senhor é o detetive 0'Sullivan, da polícia de Boston, certo? - Vocês não perdem tempo, hem? - retrucou 0'Sullivan. - O Sentinel de Shaftesbury foi bastante camarada e nos deu um telefonema. Isso pode dar uma grande história. Tem um bocado de interesse humano. Pode me dar algumas informações? 0'Sullivan apontou Frank Neilson. - Ali está o homem encarregado. Ele que lhe dê a '"história. 0'Sullivan ficou observando. Neilson pegou um megafone elétrico e preparava-se para usá-lo quando Harry Barker se aproximou. Houve uma breve troca de palavras, e depois o repórter afastou-se. Apertando o botão do megafone, Frank Neilson emitiu sua voz rouca, que trovejou por sobre a paisagem de inverno. Os nomes convocados pararam de rir e de gritar, e até as crianças ficaram em silêncio. - Ouça, Martel, o local está cercado. Quero que você saia com as mãos levantadas. A multidão conservou-se perfeitamente imóvel, e o único movimento era de uns poucos flocos de neve que vagavam por entre os galhos das árvores. Nenhum som saía da casa branca de estilo vitoriano. Neilson tornou a enviar 290

a mensagem, com o mesmo resultado. O único ruído que se ouvia era o do vento nos pinheiros por trás do celeiro. - vou me aproximar - falou Neilson, não se dirigindo a ninguém em particular. - Duvido que isso seja uma boa idéia - disse O'Sullivan, num tom bastante alto para que todos os que estavam por perto ouvissem. Depois de fitar atentamente o detetive, Neilson pegou o megafone com a mão direita e, com grande cerimônia, começou a contornar o carro da polícia. Ao passar por O'Sulliván, estava rindo. - No dia em que Fránk Neilson não puder cuidar de um doutorzinho de merda, ele devolve seu distintivo. Enquanto a multidão murmurava, excitada, Neilson caminhou pesadamente pela entrada de veículos até um ponto a cerca de quinze metros dos dois carros da polícia. Estava nevando mais forte agora, e a copa de seu chapéu achava-se repleta de flocos de neve. - Martel! - estrondeou o chefe de polícia através do megafone. - Estou avisando: se não sair, vamos entrar. Tudo ficou em silêncio no instante em que a última palavra foi emitida pelo megafone. Neilson voltou-se para o grupo e fez um gesto desesperado, como se estivesse tratando com uma praga de jardim. Então começou a andar, aproximando-se da casa. Nenhum dos espectadores se mexia ou falava. Havia uma excitação antecipada, já que todos esperavam que acontecesse alguma coisa.

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Agora, Neilson estava a cerca de trinta metros da frente da casa. De repente, a porta manchada de tinta vermelha abriuse de súbito e apareceu Charles Martel, segurando sua espingarda de caça. Quase simultaneamente, soaram duas explosões. Neilson mergulhou de cabeça nos montículos .de neve que margeavam o caminho, enquanto os espectadores fugiam ou se abrigavam por trás dos carros e das árvores. Quando Charles bateu a porta da frente, uma chuva de chumbo miúdo caiu inofensivamente sobre a área. Houve alguns murmúrios na multidão, e a seguir gritos de encorajamento, enquanto Frank se levantava penosamente. Tão depressa quanto lhe permitiam as pernas, num esforço para sustentar o corpo obeso, ele correu para junto dos carros. Ao chegar, tentou parar, mas perdeu o equilíbrio e caiu sentado, deslizando pelos últimos três metros até bater 291

na roda traseira do carro da polícia. Um grupo de auxiliares correu em tom o do carro e o levantou. - Maldito filho de uma puta! - gritou Neilson. - Aquele sacaninha vai ter o que merece. Alguém perguntou se ele tinha sido Atingido por algum grão de chumbo, mas o chefe negou com a cabeça. Cuidadosamente, ele sacudiu a neve dá roupa e ajustou seu uniforme e seu coldre. - Fui mais rápido do que ele - falou Neilson. Surgiu um furgão de uma TV local, e dele saltou um grupo de técnicos com uma câmara, os quais se encaminharam até o chefe de polícia. A repórter era uma brilhante jovem, que usava um chapéu de vison e um casaco longo, todo forrado. Após uma breve conversa com Neilson, as luzes da câmara se acenderam, iluminando toda a área próxima. A jovem fez uma rápida apresentação e depois virou-se para o chefe de polícia, levando o microfone a poucos centímetros de seu nariz arrebitado. A personalidade de Frank Neilson sofreu uma alteração de-cento e oitenta graus. Tímida e constrangidamente, ele disse: - Estou apenas fazendo o meu trabalho da melhor maneira. com a chegada da câmara de TV, o dirigente político da cidade, John Randolph, se materializou dentre a multidão. Esgueirando-se por entre o povo, conseguiu chegar até o círculo iluminado pelas luzes e passou o braço em tom o de Neilson. - E nós achamos que ele está fazendo um trabalho esplêndido. Vamos apoiar nosso chefe de polícia. - E começou a bater palmas. A multidão acompanhou-o. A repórter puxou o microfone e perguntou se Frank podia dar aos espectadores uma idéia do que estava acontecendo. - Bem - começou Frank, inclinando-se para o microfone -, temos um cientista louco preso ali. - E apontou desajeitadamente por sobre o ombro para a casa. - Ele está com uma garota doente, impedindo, que seja examinada pelos médicos. O homem está fortemente armado e é perigoso. Ternos um mandado de prisão contra ele, por seqüestro e furto. Mas não há necessidade de pânico, porque tudo está sob controle. O'Sullivan esgueirou-se para fora da multidão, buscan- 292

do Cathryn. Achou-a perto do seu carro, comprimindo a boca com as mãos. O espetáculo aterrorizava-a. - O resultado de tudo isso vai ser trágico, a não ser que o senhor intervenha - disse Cathryn. - Não posso intervir - explicou O'Sullivan. - Eu lhe disse isto antes de virmos para cá. Mas penso que tudo correrá bem enquanto a imprensa e os meios de comunicação estiverem aqui. Eles impedirão que o chefe cometa qualquer loucura. - Quero ir até a casa ver Charles. Receio que ele pense que fui eu quem trouxe a polícia até aqui. - A senhora está louca? Deve haver quarenta homens armados cercando este lugar. É perigoso. Além disso, não

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vão deixá-la ir até lá. Isso significaria mais um refém. Procure ter um pouco de paciência. vou falar de novo com Frank Neilson e ver se o convenço a chamar a polícia estadual . O detetive se encaminhou de volta aos carros da patrulha, preferindo ter ficado em Boston, onde era seu lugar. Ao se aproximar do posto de comando provisório, tom ou a ouvir a voz do chefe de polícia amplificada pelo megafone. Agora nevava mais intensamente, e um dos policiais estava perguntando se o chefe poderia ser ou não ouvido na casa. De qualquer modo, Charles não respondeu. O'Sullivan foi até Neilson e sugeriu que ele usasse o telefone portátil e ligasse para Charles. O chefe refletiu na sugestão e, embora não respondesse, entrou no carropatrulha, pediu o número e discou. Charles atendeu imediatamente. - Então, Martel? Quais são suas condições para soltar a garota? A resposta de Charles foi breve: - Vá para o inferno, Neilson. - E desligou. '• - Maravilhosa sugestão! - disse Neilson para O'Sullivan, repondo o fone no carro. E, para ninguém em particular: - Como se pode negociar quando não há nenhuma porra de exigência? Hein? Que alguém me diga. - Chefe! - falou uma voz. - Que tal deixar que eu e os companheiros ataquemos a casa? O'Sullivan ficou horrorizado com a sugestão. Tentava imaginar um meio de fazer com que o chefe chamasse a polícia estadual. Diante de Neilson achavam-se três homens com capuzes e casacos de lã do tipo militar e calças brancas. 293

- Sim - disse um dos homens, o mais baixo, a quem faltavam os dentes da frente. - Nós examinamos o lugar. Será fácil atacar por trás. Correríamos do lado do celeiro e arrombaríamos a porta de trás. Estaria tudo acabado. Neilson lembrava-se dos homens. Eram da Recycle, Ltd. - Ainda não decidi o que vou fazer - disse ele. - Que tal o gás lacrimogêneo? - sugeriu O'Sullivan. - Isso faria o bom doutor sair. Neilson fitou atentamente o detetive. - Olhe, se quiser sua opinião, eu a pedirei. O problema é que aqui não dispomos desses materiais sofisticados, e para arranjá-los eu teria que chamar a polícia estadual. E eu quero resolver esse negócio localmente. Um grito varou a tarde, seguido por uma explosão de berros. O'Sullivan e Neilson voltaram-se ao mesmo tempo, vendo Cathryn atravessar, correndo em diagonal, a área à frente da qual se achavam os carros. - Que diabo é aquilo?! - exclamou Neilson. - É a mulher de Martel! - disse O'Sullivan. - Meu Deus! - exclamou Neilson, berrando depois para o grupo de seus auxiliares que estava mais perto.:- Peguem-na! Não a deixem chegar à casa! Quanto mais depressa tentava correr, mais problemas Cathryn tinha com a crosta de neve. Ao alcançar a entrada de carros, o monte formado pelo removedor de neve atuou como uma barreira, obrigando-a a subir por ele de quatro. Escorregando pelo declive oposto, ela conseguiu pôr-se de pé. com um grito de excitação, meia dúzia dos auxiliares do chefe atenderam ao seu apelo e avançaram com dificuldade por entre os carros. Era uma competição para ver quem ganhava o primeiro lugar. Mas a neve recém-caída tornava o avanço traiçoeiro, e os policiais inadvertidamente atrapalhavam uns aos outros. Por fim, dois deles conseguiram contornar os carros e começaram a correr para o caminho da entrada o mais depressa que podiam. Da multidão subiu um murmúrio de excitação. O'Sullivan cerrava os punhos, torcendo por Cathryn, embora soubesse que a presença dela na casa somente complicaria a situação. Cathryn sentiu que lhe faltava o fôlego. Podia ouvir a respiração de seus perseguidores atrás de si e sabia que eles estavam ganhando terreno. Desesperadamente, tentou imaginar uma manobra evasiva, mas uma dor cada vez mais forte do lado tornava-lhe difícil pensar. À sua frente, ela viu abrir-se a porta manchada de 294

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vermelho. Depois, um relâmpago alaranjado e, quase ao mesmo tempo, uma explosão. Cathryn parou, ofegante, esperando sentir qualquer coisa. Olhando para trás, pôde ver que seus perseguidores haviam-se jogado na neve, protegendo-se. Tentou correr, mas não conseguiu. Alcançando os degraus da frente, teve que avançar com a ajuda dos braços. Segurando a espingarda na mão direita, Charles estendeulhe a mão e puxou-a para dentro da casa. Cathryn caiu ao chão, sentindo _uma opressão no peito. Podia ouvir Michelle chamando, mas não conseguia mexerse. Charles corria de janela em janela. Após um minuto, Cathryn ergueu-se e caminhou até onde estava Michelle. - Senti sua falta, mãezinha - disse Michelle, passando os braços em tom o dela. Cathryn sabia que havia feito o que era certo. Charles retornou à sala de estar e examinou a frente de novo. Satisfeito, foi até Cathryn e Michelle, e, baixando sua arma, envolveu as duas com seus braços. - Agora tenho minhas duas mulheres - disse ele, piscando os olhos. Imediatamente, Cathryn lançou-se numa explicação do que acontecera, dizendo que nada tinha a ver com a chegada da polícia. - Não pensei nem por um segundo que você tivesse - falou Charles. - Estou satisfeito com sua volta. É difícil vigiar os dois lados ao mesmo tempo. - Não confio na polícia local - observou Cathryn. - Acho que Neilson é um psicopata - Concordo inteiramente. - Estou pensando se não seria melhor desistirmos. Estou com medo de Neilson e de seus auxiliares. Charles abanou a cabeça, silenciosamente. - ... mas escute-me. . . acho que eles estão ali porque querem violência. - Não tenho dúvida de que eles a querem - admitiu Charles. - Se você se rendesse, devolvesse o equipamento ao Weinburger e explicasse ao dr. Keitzman o que está tentando fazer por Michelle, talvez pudesse continuar sua experiência no hospital. - De modo nenhum - disse Charles, sorrindo ante a ingenuidade de Cathryn.- As forças combinadas da pesquisa organizada e da medicina me impediriam de fazer uma coisa como a que estou fazendo. Eles diriam que 295

não estou mentalmente são. Se eu perder o controle sobre Michelle agora, jamais vou tocá-la de novo. E isso não seria muito bom , seria? - Charles desarrumava o cabelo de Michelle enquanto Cathryn concordava com um aceno de cabeça. -- Alérn disso - continuou Charles -, acho que meu corpo está começando a mostrar uma certa sensibilidade retardada. -• É mesmo? - Cathryn tinha dificuldade em manterse calma, depois de haver presenciado a frenética multidão que se achava do lado de fora. A aparente tranqüilidade de Charles espantava-a. - Da última vez que testei meus linfócitos-T havia uma leve reação às células leucêmicas de Michelle. Está acontecendo, porém lentamente. Acho que preciso tomar outra dose de antígeno quando "as coisas se acalmarem. Cathryn podia ouvir o megafone lá fora, abafado pela neve que caía. Quem lhe dera poder parar o tempo! Naquele momento ela se sentia segura, embora soubesse que o perigo estava lá fora. Devido à neve que caía, a noite chegou mais cedo. Charles escolheu a hora do jantar para fazer com que Cathryn lhe aplicasse outra injeção do antígeno de Michelle. Usou de uma técnica diferente, encorajando-a a introduzir um cateter numa de suas veias. Cathryn precisou fazer várias tentativas, mas, para sua surpresa, acabou acertando. com a linha endovenosa aberta, Charles deu-lhe instruções precisas sobre como cuidar da esperada reação anafilática. Tomou a Epinefrina quase imediatamente após o antígeno, e a reação um tanto violenta foi facilmente controlada. Cathryn preparou o jantar enquanto Charles inventava meios de defender a casa. Cobriu de

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tábuas as janelas do segundo andar e reforçou as barricadas por trás das portas. O que mais o preocupava era o gás lacrimogêneo, por isso apagou a lareira e entupiu a chaminé, para impedir que alguma coisa caísse por ela dentro de uma lata. Quando o entardecer se transformou em noite, Cathryn e Charles puderam ver que a multidão se dispersava, desapontada e irritada pelo fato de não ter acontecido qualquer ato de violência. Alguns palermas insistiram em ficar, mas esses também deram o fora por volta das nove e meia, quando o termômetro caiu para uma arrepiante temperatura de cinco graus abaixo de zero. Cathryn e Charles se revezavam 296 M

em turnos, vigiando as janelas ou lendo para Michelle. Seu estado, aparentemente melhor, havia regredido, e ela estava de novo mais fraca. Tinha também uma leve crise de eólicas de estômago, mas que passou espontaneamente. Por volta das dez horas, ela adormeceu. A não ser pelo ruído da caldeira de óleo trabalhando, a casa estava silenciosa, e Charles, que fazia o primeiro turno de vigia, começou a ter dificuldade em manter-se acordado. A sensação de tensão que lhe provocara a dose de Epinefrina há muito desaparecera, substituída por uma poderosa exaustão. Ele serviu-se de uma xícara de café morno e levou-a para a sala de estar. Tinha de se locomover pelo tato, porque havia apagado todas as luzes interiores. Sentando-se próximo a uma das janelas da frente, olhava por entre as tábuas, tentando vislumbrar os carros da polícia, mas não foi possível. Deixou a cabeça repousar por um instante e caiu num sono profundo e envolvente. 297

15 Exatamente às duas da madrugada Bernie Crawford colocou cautelosamente o braço no assento dianteiro do carro da polícia e preparou-se para acordar o chefe, que roncava, conforme ele lhe havia pedido. Q problema estava em que Frank detestava ser arrancado do sono. Da última vez que Bernie tentara acordar Frank num serviço de patrulha, o chefe havia lhe dado um tremendo soco na cabeça. Quando ele finalmente acordou e ficou totalmente consciente, pediu-lhe desculpas, mas isso não eliminou a dor. Pondo o braço para trás, Bernie resolveu experimentar uma nova técnica. Saiu do carro e notou que a neve tinha se acumulado numa camada de cinco centímetros. Depois, abriu a porta traseira, estendeu o braço e deu um empurrão no chefe. Neilson levantou a cabeça de repente e tentou agarrar Bernie, que rapidamente recuou. Apesar de seu corpo volumoso, o chefe pulou para fora do carro, evidentemente tencionando pegar seu auxiliar, que estava preparado para correr pela Rodovia 301. Mas assim que Neilson penetrou no ar a cinco graus abaixo de zero, parou, parecendo desorientado. - O senhor está bem, chefe? - perguntou Bernie a uma distância de quase cinco metros. - Claro que estou bem - resmungou Frank. - Que diabo de horas são? Retornando ao assento dianteiro do carro-patrulha, Neilson ficou tossindo durante quase três minutos, o que o impossibilitou de acender o cigarro. Depois de finalmente tirar várias baforadas, pegou seu walkie-talkie e fez contato com Wally Crab. Neilson não estava satisfeito com seu plano, mas, conforme diziam seus auxiliares, não tinha uma idéia melhor. -Lá pela metade da tarde, todo mundo já havia perdido a paciência, e Neilson sentira-se obrigado a fazer al- 299

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guma coisa sob pena de perder a reputação. Fora naquela ocasião que concordara com a idéia de Wally Crab. Wally tinha sido fuzileiro naval e passara um bom tempo no Vietnam. Dissera a Frank Neilson que, atacadas de surpresa, as pessoas dentro de uma casa jamais tinham chance de resistir. Simplesmente isso. Então, deixara claro que, uma vez conseguido isso, Neilson podia levar pessoalmente o suspeito para Boston e a garota para o hospital. E seria um herói. "E a espingarda do cara?", tinha perguntado Frank. "O senhor pensa que ele vai ficar sentado lá com aquela coisa em sua mãozinha quente? Nada disso. Depois que arrombarmos a porta dos fundos, é só entrar e pegá-lo. Eles vão ficar tão surpresos que não mexerão um músculo. Acredite-me, acha que eu me arriscaria nisso se não soubesse que funciona? Posso ser idiota, mas não sou louco." Então, Neilson concordara. Gostava da idéia de ser um herói. Tinham decidido agir às duas horas, e Wally Crab, Giorgio Brezowski e Ângelo De Jesus foram escolhidos para atacar a porta. Neilson não conhecia os caras, mas Wally Crab dissera que ele havia estado com ele no Vietnam e que eram "verdadeiros peritos". Além do mais, haviam se oferecido como voluntários. O walkie-talkie crepitou na mão de 'Frank, e a voz de Wally encheu o carro. -- Estamos ouvindo você. Tudo pronto. Assim que abrirmos a porta da frente, apareça. •- Você tem certeza de que a coisa vai funcionar? perguntou Neilson. - Quer fazer o favor de relaxar? Meu Deus! - Muito bem, estamos a postos. Neilson desligou o aparelhinho e jogou-o no assento traseiro. Nada mais havia que ele pudesse fazer até ver abrir-se a porta da frente. Wally meteu o pequeno rádio em seu casaco de lã e fechou o zíper. Seu enorme corpo estremeceu com uma excitação antecipada. A violência era-lhe tão agradável quanto o sexo, talvez até melhor, pois era menos complicada. - Como é, rapazes? Estão prontos? - perguntou Wally aos dois vultos que se acotovelavam atrás dele. Eles assentiram com a cabeça. O grupo havia se aproximado da casa de Martel pelo sul, deslocando-se por entre os pinheiros até chegar ao celeiro. Vestidos de branco, cortesia da 300

gerência da Recycle, Ltd., eles ficavam quase invisíveis na neve ligeira mas persistente que caía. Alcançando o celeiro, eles o contornaram pela extremidade leste, até que Wally, que comandava o grupo, pudesse observar a casa. com exceção da luz do alpendre de trás, a casa estava às escuras. Daquele ponto até a porta traseira havia cerca de trinta metros. - Verifiquem o equipamento - disse Wally. - Onde está a espingarda? Ângelo passou a arma para Brezo, que a entregou a Wally; a espingarda era uma Remington calibre 12 de dois canos, carregada com cartuchos triplo-zero, capazes de abrir um buraco na porta de um automóvel. Wally soltou a trava de segurança. Cada homem tinha recebido também um revólver 38 de uso da polícia. - Todos se lembram do que têm de fazer? - perguntou Wally. Seu plano era ir na frente, arrombar e abrir a porta dos fundos para que Brezo e Ângelo entrassem correndo. Acreditava que era um bom plano, do tipo que o havia mantido vivo durante seus cinco anos de Vietnam. Ele possibilitara que se apresentasse como voluntário para a parte segura de qualquer ataque. Ângelo e Brezo acenaram afirmativamente com a cabeça, tensos de excitação. Tinham feito uma aposta entre eles. O que pegasse Martel primeiro ficaria mais rico em cem dólares. - Pronto - disse Wally. - Já vou. Darei o sinal para Ângelo. Depois de examinar mais uma vez a casa às escuras, Wally avançou, bordejando o celeiro, e abaixou-se quase até o chão. Atravessou rapidamente os trinta metros, atingindo a sombra sob o alpendre dos

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fundos. A casa permaneceu em calma, e então ele acenou para Ângelo. Ângelo e Brezo se juntaram, trazendo as lanternas elétricas e as pistolas. Wally olhou de relance para os dois homens. - Lembrem-se de que ele tem de ser alvejado pela frente, não por trás. Cheio de energia, Wally subiu com estrondo os degraus dos fundos e apontou a espingarda para a fechadura da porta. Uma explosão rompeu a calma da noite, fazendo voar um pedaço da porta. Wally agarrou-a pela borda e abriu-a violentamente. No mesmo instante, Brezo subiu correndo os degraus e passou por Wally, dirigindo-se para a cozinha. Ângelo vinha atrás dele. 301

Mas, ao abrir a porta, Wally acionara a armadilha de Charles. Um cordão puxou o pino de um mecanismo simples que sustinha vários sacos de cinqüenta quilos de batatas que tinham sido estocados na adega. As batatas estavam penduradas, presas por uma corda forte, em um gancho colocado acima da porta; quando o pino foi puxado, começaram a cair rapidamente. Brezo tinha acabado de acender sua lanterna quando viu os sacos balançando. Ergueu a§ mãos para proteger o rosto no momento em que Ângelo esbarrava nele. As batatas atingiram-no em cheio. O impacto fez com que ele puxasse acidentalmente o gatilho de sua pistola enquanto era jogado para fora do alpendre, na neve. A bala atravessou a barriga da perna de Ângelo antes de se enterrar no chão do alpendre. Ele também foi atirado para fora do alpendre, mas pela porta lateral, levando consigo parte da balaustrada. Sem ter certeza do que estava acontecendo, Wally saltou para trás pela balaustrada e se encaminhou como pôde para o celeiro. Ângelo só percebeu que tinha sido ferido quando tentou levantar-se e sua perna esquerda recusou-se a funcionar. Havendo-se recuperado o bastante para se pôr de pé, Brezo correu em socorro de Ângelo. Charles e Cathryn se ergueram ao ouvirem o estampido. Quando Charles pôde se orientar, procurou freneticamente por sua espingarda. Assim que a achou, correu para a cozinha. Cathryn correu para junto de Michelle, mas a menina não havia acordado. Chegando à cozinha, Charles pôde ver apenas os dois sacos de batatas ainda oscilando suavemente diante da porta aberta. Era difícil enxergar além do círculo de luz que vinha do lustre do alpendre, mas ele teve a impressão de ter visto dois vultos brancos se dirigindo para o celeiro. Apagando a luz, Charles pôde ver melhor os homens. Um deles parecia estar carregando o outro, enquanto se encaminhavam desespeiradamente para trás do celeiro. Fechando a porta estilhaçada, Charles usou um pouco de corda para firmá-la e fechá-la. Depois, encheu o buraco aberto pelo disparo da espingarda com uma almofada de uma das cadleiras da cozinha. com um bocado de esforço, tornou a pemdurar as batatas. Sabia que tinha escapado por pouco. Ao tange, ouviu o som de uma ambulância que se aproximava "e ficou imaginando se o homem atingido pelas batatas se machucara muito. Retornaando à sala de estar, ele explicou a Cathryn o 302 'mm^ que tinha acontecido. Então, estendeu o braço e colocou a mão sobre a testa de Michelle. A febre havia voltado com força total. Delicadamente no início, depois com mais ímpeto, ele procurou acordá-la. Finalmente ela abriu os olhos e sorriu, mas recaiu imediatamente no sono. - Isto não é um bom sinal - disse Charles. - O que é? - perguntou Cathryn. - As células leucêmicas podem estar invadindo seu sistema nervoso central. Se isso acontecer, ela vai precisar de radiotefapia. - Isso quer dizer que ela tem de ir para o hospital? - Sim. O resto da noite decorreu sem novidades, e Cathryn e Charles puderam manter o seu esquema de turnos de vi-~ gia de três horas. Quando rompeu a aurora, Cathryn viu que a neve tinha alcançado dez centímetros. No fim do caminho de

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entrada restava apenas um carro da polícia. Sem acordar Charles, Cathryn foi para a cozinha e começou a preparar um reforçado desjejum rural. Queria esquecer o que estava ocorrendo à sua volta, e a melhor maneira de conseguir isso era conservar-se ocupada. Preparou café fresco, biscoitos, tirou toucinho do congelador e fez ovos mexidos. Quando tudo estava pronto, colocou a refeição numa bandeja e levou-a para a sala de estar. Depois de acordar, Charles descobriu o banquete. Ao acordar, Michelle parecia mais esperta do que durante a noite. Más não tinha fome, e quando Cathryn tomou sua temperatura, percebeu que ela estava com 38,9 graus. Enquanto levavam os pratos de volta para a cozinha, Charles disse a Cathryn que estava preocupado com uma infecção, e que se a febre de Michelle não reagisse à aspirina ele seria obrigado a aplicar antibióticos. Depois de terminarem o que tinham de fazer na cozinha, Charles tirou um pouco de seu próprio sangue, separou laboriosamente uma população de linfócitos-T e misturou-os com seus próprios macrófagos e com as células leucêmicas de Michelle. Então, observou tudo pacientemente sob o microscópio de contraste. Definitivamente, havia uma reação mais intensa que a do dia anterior, mas ainda não era apropriada. Mesmo assim, Charles deu um viva ao sucesso, erguendo Cathryn no ar. Depois que se acalmou, disse-lhe que esperava que sua sensibilidade estivesse adequada no dia seguinte. 303

- Quer dizer que não precisamos inocular você hoje? - indagou Cathryn, cheia de esperança. - Preferiria que não. Infelizmente, acho que não devemos confiar no sucesso. É melhor aplicarmos uma injeção hoje também. Frank Neilson freou no caminho da entrada da casa de Martel, derrapando e batendo com o pára-choque no carro-patrulha que havia passado a noite ali. Um pouco de neve caiu com um baque surdo, e de dentro do carro emergiu Bernie Crawford, sonolento. O chefe saiu do carro com Wally Crab. - Você não estava dormindo, estava? - Não - disse Bernie. -Fiquei de vigia a noite toda. Nenhum sinal de vida. Neilson olhou para a casa. Parecia particularmente tranqüila sob seu novo manto de neve, - Como vai o cara que foi baleado? - perguntou. Bernie. - Está bem. Levaram-no para o hospital do condado. Mas eu lhe digo que Martel está muito mais encalacrado agora que atirou num policial. - Mas ele não o alvejou. - Não faz diferença. Ele não teria sido baleado se não fosse por causa de Martel. Preparar uma armadilha com uma bomba é um crime pra lá de grave. - Isso me faz lembrar aqueles camponeses no Vietnam - rosnou Wally Crab. - Acho que devíamos estourar essa casa e arrancá-la de suas malditas fundações. - Calma - disse Neilson. - Temos que pensar numa criança doente e numa mulher. Eu trouxe alguns rifles de precisão. Temos de tentar isolar Martel. Até o meio-dia pouco havia acontecido. Da cidade chegavam espectadores, e, embora não fossem tantos quanto no dia anterior, era grande a multidão. O chefe tinha distribuído os rifles e colocado os homens em vários lugares em tom o da casa. Então, procurou entrar em contato com Charles através do megafone, pedindo-lhe que fosse até a varanda da frente para dizer o que queria. Charles não respondeu. Toda vez que o chefe falava pelo telefone, Charles desligava. Frank Neilson sabia que se não resolvesse logo o caso satisfatoriamente, a polícia estadual iria intervir e o controle da situação escaparia de suas mãos. E isso ele queria 304 EL evitar a todo custo. Queria ter o crédito de ter resolvido aquele caso, o maior e o mais comentado desde que os filhos dos proprietários da usina haviam sido raptados em 1862.

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Atirando o megafone no fundo do carro com raiva, Neilson atravessou a estrada para comer um sanduíche de salsicha italiana. Quando estava prestes a morder o sanàuíçhe, viu uma comprida limusine preta chegar ao longot da curva e parar. Dela saltaram cinco homens. Dois deles trajavam extravagantes roupas da cidade: um tinha cabelos brancos e vestia um longo casaco de pele; o outro, quase sem nenhum cabelo, usava um casaco de couro apertado na cintura. Os outros dois homens vestiam ternos azuis que pareciam pequenos demais. Neilson reconheceu os dois últimos: eram guarda-costas. Deu uma mordida no sanduíche, enquanto os homens se achegavam a ele. - Neilson, sou o dr. Carlos Ibanez. É uma honra conhecê-lo. Frank Neilson apertou a mão do médico. - Este é o dr. Morrison - disse Ibanez, impelindo seu colega para a frente. Neilson apertou as mãos de Morrison e deu outra dentada no sanduíche. - Sabemos que você está com um problema aqui -• falou Ibanez, olhando para a casa de Martel. Frank encolheu os ombros. Nunca era bom admitir problemas. Voltando-se de novo para o chefe, Ibanez falou: - Somos os donos de todo o caro equipamento que o suspeito tem ali em sua casa. E estamos muito preocupados com ele. Frank acedeu com a cabeça. - Viemos até aqui para oferecermos nossa ajuda disse Ibanez magnanimamente. Frank olhou de um rosto para outro. A cada minuto a situação ia ficando mais louca. - com efeito, trouxemos conosco dois seguranças profissionais da Breur Chemicals. O sr. Eliot Hoyt e o sr. Anthony Ferrullo. Frank viu-se apertando as mãos dos dois homens da segurança. - Claro que sabemos que você tem tudo sob controle - disse o dr. Morrison. - Mas achamos que esses homens 305

poderiam ser úteis. Eles trouxeram algum equipamento que você pode considerar interessante. O sr. Hoyt e o sr. Ferrullo sorriram. - Mas, naturalmente, quem decide é você - observou o dr. Morrison. - Perfeitamente - aduziu o dr. Ibanez. - Acho que por enquanto tenho pessoal suficiente disse Frank Neilson com a boca cheia. - Bem, lembre-se de nós - comentou o dr. Ibanez. Neilson desculpou-se e voltou ao seu posto de comando temporário, confuso após o encontro com o dr. Ibanez e seus amigos. Depois, mandou Bernie avisar aos homens com os rifles que não haveria tiros até aviso em contrário e entrou em seu carro. Talvez a ajuda da companhia de produtos químicos não fosse má idéia. Eles só estavam interessados no equipamento, não na glória. Ibanez e Morrison viram Neilson afastar-se, falar brevemente com outro policial e então entrar no carro-patrulha. Morrison ajustou os delicados óculos de aros de chifre. - É espantoso que alguém assim esteja numa posição de autoridade. - Não há dúvida de que é uma caricatura - concordou o dr. Ibanez. - Vamos voltar para o automóvel. E partiram para a limusine. - Não gosto nem um pouquinho desta situação disse Ibanez. -- Toda esta cobertura da imprensa pode resultar numa simpatia por Charles: um americano típico guardando seu lar contra as forças externas. Se isso durar muito tempo, os meios de comunicação vão apresentar o caso em todas as telas de TV do país. •- Concordo inteiramente - retrucou o dr. Morrison. - A ironia é que Charles Mattel, o homem que detesta a imprensa, não poderia ter criado melhor plataforma para si mesmo. Do modo como as coisas vão, ele é capaz de causar um dano irreparável a toda a comunidade do câncer. - E ao Canceran e ao Weinburger em particular acrescentou o dr. Ibanez. - Temos que fazer com que aquele policial imbecil use nossos homens. - Já metemos a idéia na cabeça dele - disse Morrison. - Acho que por enquanto não há muito o que fazer. A coisa tem que parecer uma decisão dele. 306

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Neilson foi arrancado de uma pequena soneca, após o almoço, por alguém que batia na janela coberta de gelo do carro-patrulha. Estava a pique de pular do carro quando recuperou os sentidos. Baixou o vidro da janela e viu-se fitando um rosto irônico por trás de óculos de lentes tipo fundo de garrafa. O sujeito tinha um cabelo crespo que se projetava da cabeça como uma moita coberta de neve. O chefe achou que era outro espectador da cidade. - Você é o chefe Neilson? - perguntou o homem. - Quem quer saber? - Eu. Sou o dr. Stephen Keitzman, e este que está atrás de mim é o dr. Jordan Wiíey. O chefe olhou para o segundo homem por cima do ombro do dr. Keitzman, imaginando o que iria acontecer. - Podemos falar-lhe um instante? - perguntou o dr. Keitzman, protegendo o rosto da neve. Neilson saiu do carro com evidente e extraordinário esforço. - Somos' os médicos da garotinha que está lá dentro da casa - explicou o dr. Wiley. - Achamos que era nosso dever vir até aqui, para o caso de podermos ajudar em qualquer coisa. - Martel vai escutar vocês? - indagou o chefe. O dr. Keitzman e o dr. Wiley trocaram olhares. - Duvido - admitiu o,dr. Keitzman. - Não creio que ele fale com ninguém. Está muito hostil. Achamos que ele teve um colapso psicótico. - Um o quê? - perguntou Neilson. - Um colapso nervoso - aduziu o dr. Wiley. - Parece - disse o chefe. - De qualquer modo - prosseguiu o dr. Keitzman, sacudindo os braços contra o frio -, o que mais nos preocupa é a garotinha. Não sei se você sabe o quanto ela está doente, mas o fato é que, a cada hora que ela passa sem tratamento, mais próxima se acha da morte. - Ela está tão mal assim? -- disse Neilson, olhando para a casa de Martel. - Perfeitamente. Se você demorar muito, receio que vá resgatar uma criança morta. - Estamos também preocupados com o fato de que talvez o dr. Martel esteja fazendo experiências com a filha - falou o dr. Wiley. - Merda, essa não! - exclamou Neilson. - Que bom filho da puta! Muito obrigado por me informarem dis- 307

só. Acho que vou contar tudo aos meus auxiliares. - Neilson chamou Bernie, falou-lhe por um minuto e depois pegou o walkie-talkie. Pelo meio da tarde a multidão era ainda maior do que no dia anterior. Em Shaftesbury tinha-se espalhado a notícia de que algo ia acontecer em breve e até as escolas tinham dispensado os alunos mais cedo. Joshua Wittenburg, o superintendente escolar, havia decidido que as lições de direito civil a serem extraídas do episódio não deviam ser ignoradas; além disso, achava que era o maior escândalo ocorrido em Shaftesbury desde que o gato da viúva Watson tinha sido encontrado congelado, duro, no congelador de tom Brachman. Jean Paul andava a esmo em tom o da aglomeração. Nunca antes fora ridicularizado, e a experiência era-lhe extremamente inquietante. Sempre achara seu pai um tanto excêntrico, mas não um louco; e agora que as pessoas o acusavam de ser doido, estava assustado. Além do mais, não podia entender por que sua família não o procurara. As pessoas em cuja casa se hospedara tentavam confortá-lo, mas era evidente que elas também questionavam o procedimento de seu pai. Jean Paul queria ir para casa, mas temia se aproximar da polícia, e era fácil ver que a propriedade estava cercada. Desviando-se de uma bola de neve atirada por um de seus ex-amigos, Jean Paul voltou pelo meio da multidão, atravessando a estrada. Depois de alguns minutos, julgou divisar um vulto familiar. Era Chuck, vestindo um esfarrapado casaco de lã do exército, com um capuz de pele. - Chuck! - chamou Jean Paul, impaciente. Chuck olhou na direção de Jean Paul, virou-se e correu para um

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grupo de árvores. Jean Paul seguiu-o, chamando-o várias vezes mais. - Pelo amor de Deus! - ciciou Chuck, quando Jean Paul o alcançou numa pequena clareira. - Por que você não grita um pouco mais alto para que todo mundo o escute? - Que é que você quer dizer? - perguntou Jean Paul, confuso. - Estou procurando passar despercebido, para descobrir o que está acontecendo, e você vem berrando o meu nome por aí! Jean Paul jamais havia considerado a idéia de se esconder. - Sei o que está se passando. A cidade está atrás do 308

papai porque ele está tentando fechar a fábrica. Todo mundo diz que ele está louco. - É mais do que a cidade. Estava no jornal da noite passada em Boston. Papai seqüestrou Michelle do hospital. - É mesmo?! - É mesmo? Isso é tudo o que você sabe dizer? Acho que é um milagre maravilhoso e você só sabe dizer "é mesmo?" Papai enganou todo mundo no hospital. Adoro isso! Jean Paul examinou o rosto do irmão. Uma situação que ele achava perturbadora era para Chuck motivo de divertimento. - Sabe? Se agíssemos juntos, talvez pudéssemos ajudar - disse Chuck. - É mesmo? - retrucou Jean Paul. Era uma raridade o fato de Chuck se oferecer para cooperar com alguém. - Meu Deus! Diga algo mais inteligente. - Como poderíamos ajudar? Os rapazes levaram cinco minutos para decidir o que fariam, e então atravessaram a estrada e se aproximaram dos carros da polícia. Chuck nomeou-se porta-voz e se dirigiu a Frank Neilson. O chefe ficou muito satisfeito em receber os rapazes. Não soubera bem como agir quando os rapazes se apresentaram. Embora tivesse rejeitado o seu pedido de irem até a casa para parlamentar com o pai, convenceu-os a usarem o megafone e levou uns bons trinta minutos instruindo-os no que deviam dizer. Esperava que Charles falasse com os filhos e comunicasse quais eram suas condições para solucionar o impasse. Frank ficou satisfeito de que os rapazes fossem tão cooperativos. Quando tudo ficou acertado, Frank pegou o megafone, cumprimentou os espectadores e apontou-o para a casa. Sua voz estrondeou pelo caminho, incitando Charles a abrir a porta e a falar com os filhos. Neilson baixou o megafone e aguardou. Não houve qualquer som ou movimento na casa. Ele repetiu sua mensagem e tornou a esperar, com o mesmo resultado. Praguejando, entregou o instrumento a Chuck e pediu ao rapaz que tentasse. Chuck pegou o megafone com as mãos trêmulas. Apertando o botão, começou a falar: - Pai, sou eu, Chuck. E também Jean Paul. Está me ouvindo? 309

Após a terceira vez, a porta manchada de tinta abriuse cerca de quinze centímetros. - Estou ouvindo - respondeu Charles. Naquele momento, Chuck saltou por sobre os párachoques dos dois carros-patrulha, descartando-se do megafone. Jean Paul seguiu em seus calcanhares. Todos, inclusive os auxiliares do chefe, observavam atentamente a casa quando os rapazes se moveram, e por um instante ninguém se mexeu. Isso lhes deu oportunidade de se afastarem dos carros e correrem para o caminho da entrada. - Peguem-nos, malditos! Peguem-nos! - gritou Neilson. Um murmúrio levantou-se da mutidão. Vários guardas comandados por Bernie Crawford saíram em disparada depois de contornarem os dois carros-patrulha. Embora mais jovem, Jean Paul era o atleta, e rapidamente ultrapassou o irmão mais velho, que estava tendo dificuldade em avançar pelo caminho escorregadio. Cerca de doze metros além dos carros-patrulha, os pés de Chuck lhe faltaram, e ele se estatelou no solo. Ofegante, tentou se erguer a todo custo, mas, ao fazê-lo, Bernie agarrou uma ponta de seu esfrangalhado casaco de lã.

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Chuck procurou livrar-se, mas apenas conseguiu desequilibrar Bernie. O policial caiu para trás, puxando o rapaz por cima de si. As nádegas ossudas de Chuck tiraram a respiração de Bernie. Ainda enlaçados, os dois escorregaram mais alguns centímetros para trás pelo caminho, indo bater de encontro aos dois guardas que vinham correndo. Os homens caíram comicamente, lembrando uma perseguição dos tempos do cinema mudo. Aproveitando-se da confusão, Chuck libertouse, arrastou-se para fora do alcance de seus perseguidores e correu atrás de Jean Paul. Embora Bernie ficasse temporariamente atrapalhado, os dois outros guardas reiniciaram rapidamente a perseguição. E, se não fosse Charles, poderiam ter pegado Chuck de novo. A espingarda foi enfiada pela porta e disparou um só tiro. Qualquer sentimento de heroísmo dos guardas se desvaneceu. Instantaneamente, eles procuraram se refugiar por trás do tronco de um dos carvalhos que ladeavam o caminho da entrada. Assim que os rapazes alcançaram a varanda da frente, Charles abriu a porta para eles, que entraram como um raio. Depois de bater a porta atrás deles, Charles segurou-os 310

e examinou as janelas, para se certificar de que não vinha mais ninguém. Satisfeito, virou-se para os filhos. Os dois rapazes estavam constrangidos, de pé, junto à porta, ofegantes e espantados com a transformação de sua sala de estar num laboratório que mais parecia de ficção científica. Chuck, conhecedor dos velhos filmes, notando as janelas entaipadas, disse que o cenário mais parecia o de um filme de Frankenstein. Ambos sorriram, mas ficaram sérios ao verem a expressão carrancuda de Charles. - A única coisa que jamais me passou pela cabeça foi que eu tivesse de me incomodar com vocês dois - falou Charles severamente. - Que diabo estão fazendo aqui? - Pensamos que você estivesse precisando de ajuda - falou Chuck, meio sem jeito. - Todo mundo está contra você. - Não pude agüentar o que as pessoas estavam falando de você - disse Jean Paul. - Esta é nossa família - continuou Chuck. - Tínhamos de estar aqui, principalmente para podermos ajudar Michelle. - Como vai ela, pai? - perguntou Jean Paul. Charles não respondeu. Sua raiva contra os rapazes se desfez imediatamente. O comentário de Chuck não era apenas surpreendente, era correto. Eles formavam uma família, e os rapazes não podiam ser excluídos sumariamente. Além do mais, até onde Charles sabia, era a primeira coisa altruísta que Chuck fazia. - Seus sacanas! -- exclamou Charles, rindo. Apanhados desprevenidos pela súbita mudança de humor do pai, os rapazes hesitaram um momento antes de correrem para abraçá-lo. Charles percebeu que não se lembrava da última vez em que abraçara os filhos. Cathryn, que observava os rapazes desde sua chegada, adiantou-se e beijou os dois. Então, todos se encaminharam até Michelle, e Charles acordou-a delicadamente. Ela lhes deu um largo sorriso. Chuck debruçou-se e enlaçou-a em seus braços.

16 Neilson jamais entrara numa limusine, e não estava certo de que fosse gostar. Mas, uma vez no assento de pelúcia, sentiu-se à vontade, como se estivesse em casa: o carro tinha um bar. Ele recusou uma bebida mista sob a alegação de que estava em serviço, mas aceitou um conhaque puro devido aos seus poderes medicinais contra o resfriado. Depois que os rapazes Martel haviam conseguido chegar a casa, Neilson teve de admitir que a situação estava se deteriorando. Em vez de resgatar os reféns, ele estava permitindo que seu número crescesse.

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Em vez de um c.ara maluco e uma criança doente, confrontava-se agora com toda uma família entrincheirada em seu lar. Algo tinha de ser feito imediatamente. Alguém sugeriu que se chamasse a polícia estadual, mas era isso justamente o que Neilson queria evitar. Mas seria inevitável, caso não conseguisse resolver o incidente nas próximas doze horas. Tinha sido a pressão do tempo que o levara a falar com os médicos. - Sabendo o quanto está doente a menina, achei que não podia recusar seu oferecimento de ajuda - disse ele. - É por isso que estamos aqui - retrucou o dr. Ibanez. - O sr. Hoyt e o sr. Ferrullo estão prontos e desejosos de receber suas ordens. Os dois homens da segurança, postados de cada lado do bar, concordaram com um aceno de cabeça. - Isso é formidável! - exclamou Frank Neilson. O problema era que ele não sabia que ordens dar. Sua mente rodopiava, até que ele se lembrou de algo que o dr. Ibanez dissera. - O senhor mencionou um equipamento especial? - Perfeitamente. Talvez o sr. Hoyt gostasse de mostrá-lo a nós. O sr. Hoyt era um belo homem, esguio mas evidentemente musculoso. Frank reconheceu o volume de um coldre por baixo de seu terno. 313

- O prazer é meu - disse Hoyt, inclinando-se na direção de Frank. - O que o senhor acha que é isto, sr. Neilson? - E entregou a Frank um objeto pesado com a forma de uma lata de cerveja, do qual saía um cabo. Frank girou-o em suas mãos e encolheu os ombros. - Não sei. Gás lacrimogêneo? Qualquer coisa assim? O sr. Hoyt sacudiu a cabeça. - Nada disso. É uma granada. - Uma granada? - exclamou Frank, afastando o objeto de si. - Chama-se granada de concussão. É o que as unidades antiterroristas usam para salvar os reféns. Ela é jogada dentro de um aposento ou de um avião, e quando detona, em vez de ferir alguém. . . exceto talvez romper alguns tímpanos. . . apenas tonteia todo mundo por dez, vinte e às vezes trinta segundos. Acho que o senhor pode usá-la com vantagem nesta situação. - Sim, tenho certeza de que podemos -• disse Frank. - Mas precisamos entrar na casa. E o cara entaipou todas as janelas. - Nem todas - retrucou o sr. Hoyt. - Reparamos que as duas janelas do sótão, facilmente acessíveis pelo telhado, estão livres. Deixe-me mostrar-lhe qual a minha sugestão. - Hoyt apresentou quatro plantas da casa de Martel e, notando a surpresa do chefe, falou: - É espantoso o que se pode conseguir com um pouco de pesquisa. Veja como as escadas do sótão descem para o saguão principal no segundo andar. Daquela escada seria fácil para alguém como Tony Ferrullo, que é um especialista nesse tipo de coisa, jogar uma granada de concussão na sala de estar, onde evidentemente se acha o suspeito. Neste ponto seria fácil correr, tanto pela porta da frente quanto pela de trás, e resgatar os reféns. - Quando poderemos experimentá-la? - perguntou Frank Neilson. -- O senhor é o chefe - disse Hoyt. - Esta noite? - Seja, esta noite. Neilson saiu da limusine tomado de uma contida excitação. O dr. Morrison estendeu o braço e fechou a porta do carro. Hoyt riu. - É como tirar bala de uma criança. 314

- Você será capaz de fazer com que as coisas pareçam um ato de legítima defesa? Ferrullo empertigou-se. - Posso fazer parecer o que o senhor quiser. Exatamente às dez horas, Charles estendeu a mão e desligou o dialisador. Depois, tão cuidadosamente quanto se estivesse manuseando o artigo mais precioso da terra, retirou de dentro do aparelho o produto

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dialisado num pequeno frasco. com os dedos trêmulos, transferiu a solução límpida como cristal para o esterilizador. Não fazia idéia da estrutura da pequena molécula contida no frasco, exceto que era dialisável, o que constituía a etapa final do processo de isolamento, e que não era afetada pelas enzimas que partiam o ADN, o ARN e os elos peptídicos de ligação nas proteínas. Mas, nesse estágio, o fato de a estrutura da molécula ser desconhecida importava menos do que o conhecimento de seu efeito. Esse era o misterioso fator de transferência que, ele esperava, iria transferir sua hipersensibilidade retardada para Michelle. Naquela tarde Charles tornara a testar a reação de seus linfócitos-T com as células leucêmicas de Michelle. A reação fora dramática, com os linfócitos-T dissolvendo e destruindo as células leucêmicas. À medida que as observava no microscópio de contraste, Charles não podia acreditar na rapidez da reação. Aparentemente, os linfócitos-T, sensibilizados a um antígeno de superfície da célula leucêmica, eram capazes de penetrar as membranas dessas células. Charles gritou de alegria no instante em que viu a reação. Tendo considerado adequada sua reação de sensibilidade retardada, ele tinha cancelado a próxima dose de antígeno que planejara aplicar-se. Isso havia agradado a Cathryn, que estava achando o processo cada vez mais difícil. Em vez disso, ele queria tirar cerca de cem mililitros de seu sangue. Cathryn tinha ficado verde, mas Chuck fora capaz de superar sua aversão por sangue e, juntamente com Jean Paul, pudera ajudar Charles na tarefa. Antes do jantar, Charles havia separado os glóbulos brancos num dos sofisticados aparelhos que trouxera do Weinburger. No início do entardecer, iniciara a árdua tarefa de extrair dos glóbulos brancos a pequena molécula -que estava esterilizando agora. 315

Nesse ponto, ele sabia que estava voando às cegas. O que ele realizava teria exigido anos sob adequadas condições de pesquisa, onde cada passo teria sido examinado criticamente e reprodu2Ído centenas de vezes. Todavia, o que havia conseguido até agora tinha sido essencialmente obtido antes com diferentes antígenos, como o do bacilo da tuberculose. Mas agora Charles possuía uma solução de uma molécula desconhecida, de concentração e potência desconhecidas. Não havia tempo para determinar a melhor maneira de administrá-la. Tudo o que ele tinha era uma teoria: que no organismo de Michelle havia um fator bloqueador que impedira até então seu sistema imunizador de reagir ao antígeno de suas células leucêmicas. Charles acreditava e esperava que o fator de transferência vencesse o bloqueio ou sistema supressor e permitisse que Michelle ficasse sensibilizada às suas células leucêmicas. Mas que quantidade do fator devia ele aplicar-lhe? E de que modo? Ia ter que improvisar e orar. Michelle não ficou feliz com a idéia, mas deixou Charles aplicar-lhe uma outra injeção endovenosa. Cathryn sentou-se, segurando a mão dela e tentando distraí-la. Os dois rapazes estavam no andar de cima, observando qualquer movimento suspeito do lado de fora, Sem dizer nada a Cathryn ou a Michelle, Charles preparou-se para qualquer eventualidade quando aplicou na filha a primeira dose do fator de transferência. Embora houvesse diluído a solução,em água esterilizada, ainda estava preocupado com seus efeitos colaterais. Depois de lhe aplicar uma dose diminuta, verificou seu pulso e sua pressão arterial. Sentiu-se aliviado quando não detectou qualquer reação. À meia-noite, a família reuniu-se na sala de estar. Charles havia aplicado em Michelle aproximadamente 1/16 do fator de transferência. A única alteração em seu estado fora uma leve subida de temperatura e o fato de ela haver adormecido espontaneamente. Eles decidiram fazer turnos de duas horas. Embora estivessem todos exaustos, Chuck insistiu em fazer o primeiro turno e subiu. Charles e Cathryn

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adormeceram quase instantaneamente. Jean Paul ficou acordado por um instante, ouvindo seu irmão passar de um quarto para outro no andar de cima. A próxima coisa de que Jean Paul tomou conhecimento foi de que Chuck o cutucava levemente. Parecia-lhe 316

que mal começara a dormir, mas Chuck lhe disse que eram duas horas e o momento de ele se levantar. - Tudo está calmo, a não ser por um furgão que chegou há cerca de uma hora e parou junto aos carros da polícia. Jean Paul acenou com a cabeça e foi até o banheiro do primeiro andar para lavar o rosto. Retornando à sala de estar às escuras, debateu-se entre ficar embaixo ou ir para o andar de cirna. Como era difícil se locomover na sala de estar, subiu para o seu quarto. A cama se mostrava muito convidativa, porém ele resistiu à tentação. Em vez disso, olhou por entre as tábuas que reforçavam a janela. Não podia ver muita coisa, nem mesmo dizer se. estava nevando ou apenas ventando. Havia uma porção de flocos de neve no ar. Devagar, ele foi de quarto em quarto, conforme tinha ouvido Chuck fazer, olhando para a escuridão. Tudo era silêncio, com exceção de uma ocasional rajada de vento que fazia chocalhar as janelas entaipadas. Sentando-se no quarto de dormir de seus pais, que dava para o caminho da entrada, Jean Paul tentou divisar o furgão, mas não o conseguiu. Então ouviu um som, como o de metal batendo contra metal. Olhando na direção do ruído, viu-se espiando para a lareira, que partilhava da mesma chaminé que a lareira da sala de estar. tornou a ouvir o som. Sem mais hesitação, voltou correndo para a sala de estar. - Pai - sussurrou Jean Paul -, acorde. Charles piscou os olhos e sentou-se. -- Já quatro horas? - perguntou. •- Não - murmurou Jean Paul. - Ouvi um barulho lá no seu quarto de dormir. Parecia que vinha da lareira. • Charles levantou-se, acordando Cathryn e Chuck. - Jean Paul acha que ouviu um ruído - murmurou Chuck. - Tenho certeza de que ouvi - retrucou Jean Paul, indignado. - Está bem, está bem! - falou Charles. -Escutem, precisamos de pelo menos mais um dia. Se eles estão tentando entrar, temos que impedi-los. Charles deu a espingarda a Cathryn e mandou-a para a porta dos fundos. Dispôs os rapazes na porta da frente com o bastão de beisebol de Jean Paul. Pegando o atiçador da lareira para si, subiu a escada e foi para o quarto prin- 317

cipal. De pé junto à lareira, ele congratulou-se consigo mesmo pela precaução de entupir as chaminés. Mas nada ouviu, a não ser o vento sob o beirai do telhado. Depois de alguns minutos, Charles saiu do quarto principal, atravessou o saguão e entrou rio quarto de Michelle. Dali ele podia ver o celeiro, de onde partira o ataque na noite anterior, mas tudo o que via agora eram os pinheiros farfalhando ao vento. Anthony Ferrullo colocou uma escada de alumínio de encontro à chaminé e subiu para o telhado. Como um gato, ele se deslocou ao longo do beirai para uma das janelas do sótão. Então, usando de uma corda para não escorregar, desceu pelo declive do telhado até a base de uma das trapeiras, onde cortou um pequeno círculo de vidro. Abriu devagar a janela, sentindo o cheiro de mofo que vinha do sótão. Acendendo sua lanterna, olhou para dentro. Ali havia as habituais malas e caixas de papelão. Ele ficou satisfeito de ver um chão de certo modo espaçoso, e deixou-se escorregar para dentro do quarto sem fazer o menor barulho. Ferrullo esperou, tentando ouvir algum barulho de movimento dentro da casa. Não tinha pressa. Não havia dúvida de que Hoyt já se achava em posição sob o alpendre da frente, pronto para arremeter contra a porta de entrada.

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Neilson havia insistido em que dois de seus homens participassem da ação. Deviam arrombar a porta dos fundos depois da explosão, mas se as coisas se passassem conforme Ferrullo pretendia, o trabalho estaria pronto antes que eles entrassem. Satisfeito por ver que tudo estava calmo, Anthony adiantou-se bem devagar, experimentando cada ponto onde punha os pés antes de deixar cair seu peso todo. Estava exatamente sobre a cabeça de Charles. Charles ficou olhando para o celeiro cerca de cinco minutos, até se convencer de que não havia qualquer atividade ali. Imaginando o que Jean Paul poderia ter ouvido, voltou para o saguão. De repente, as vigas do teto acima dele rangeram. Petrificado, Charles escutou atentamente, fazendo votos para que houvesse imaginado o ruído. Então, ele se repetiu. Um estremecimento de medo passou por seu corpo exausto. Havia alguém no sótão! 318

Agarrando com força o atiçador e sentindo o suor em suas mãos, Charles começou a acompanhar os sons que se faziam ouvir por cima de sua cabeça. Logo chegou até a parede do quarto de Michelle, por trás do qual se achavam as escadas que davam para o sótão. Olhando para o saguão, só podia ver a porta do sótão na escuridão. Estava fechada, porém não trancada. A chave mestra se projetava tentadoramente da fechadura. Ao ouvir o primeiro passo nos degraus, seu coração começou a bater forte. Jamais experimentara um terror tão grande. Freneticamente, hesitava entre duas idéias, pensando se devia trancar a porta ou limitar-se a esperar que o intruso aparecesse. Quem quer que estivesse descendo a escada, fazia-o de um modo agoniadamente lento. Charles agarrou o atiçador com toda a força que pôde. Súbito, os passos furtivos cessaram e nada mais houve senão o silêncio. Ele aguardou, num pânico crescente. Embaixo, ouvia Michelle agitar-se em seu sono. Encolheu-se, esperando que ninguém o chamasse ou, pior ainda, que subisse as escadas. Ouviu Jean Paul murmurar algo para Chuck. Os ruídos vindos da sala de estar pareciam ativar o movimento na escada do sótão. Charles ouviu o som de um outro passo, e então, para seu horror, a maçaneta da porta começou a girar muito devagarinho. Segurando o atiçador com ambas as mãos, ele o levantou acima da cabeça. Anthony Ferrullo abriu lentamente a porta cerca de vinte centímetros. Podia ver do pequeno saguão até a balaustrada que se unia com o corrimão da escada principal. Daí partia um lanço de degraus que ia dar direto na sala de estar. Depois de verificar a posição de seu coldre, ele soltou a granada de concussão de seu cinto e puxou o pino do detonador de tempo. Charles não podia esperar nem mais um segundo, especialmente porque não tinha certeza de poder atingir o intruso. Impulsivamente, ergueu a perna e, com um pontapé, fechou a porta do sótão. Sentiu um pouco de resistência, porém não o bastante para impedi-la de bater com força. A seguir, deu um salto para a frente, tentando girar a chave na fechadura. Não chegou a alcançar a porta. Seguiu-se uma tremenda explosão. A porta do sótão abriu-se violentamente, enviando Charles de volta ao quarto de Michelle, os ouvidos 319

tinindo. Engatinhando com dificuldade, ele viu Ferrullo ser arremessado através da escada até;o assoalho do vestíbulo. Cathryn e os rapazes deram um pulo com a explosão, . que foi seguida pelo ruído de passos apressados nas varandas da frente e dos fundos. No instante seguinte, uma marreta estilhaçou os vidros e penetrou pelas tábuas que reforçavam as janelas junto à porta de entrada, apenas a alguns centímetros da cabeça de Chuck. A mão de alguém

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passou pela abertura, tateando à procura da maçaneta. Jean Paul largou o bastão e correu em auxílio do irmão, que reagira puxando a mão intrusa. A força combinada dos dois distendeu o braço indesejável ao seu limite máximo, forçando-o contra os cacos de vidro do painel. O homem, que não podia ser visto, gritou de dor. Ouviu-se um tiro de pistola, que arrancou lascas da madeira da porta e convenceu os rapazes a largarem o braço. Na cozinha, Cathryn agarrava com força a espingarda, enquanto dois homens lutavam com a porta já quebrada. Conseguiram soltar a corda de segurança e abriram a porta. Os sacos de batatas oscilaram, mas dessa vez os homens conseguiram esquivar-se. Wally Crab segurou o saco oscilante das batatas, enquanto Brezo avançava através da porta. com a espingarda apontada para baixo, Cathryn puxou o gatilho. Uma carga de chumbo miúdo bateu no linóleo, ricocheteando e salpicando o portal e Brezo, que deu meia-volta e saiu correndo com Wally pelo alpendre, enquanto Cathryn enfiava outro cartucho na espingarda e estourava a passagem vazia da porta. Tão subitamente quanto começara, a violência cessou. Jean Paul correu até a cozinha, para encontrar Cathryn imobilizada pela experiência pela qual acabava de passar. Fechou a porta dos fundos, tornou a amarrá-la, firmando-a, e depois tomou a espingarda das mãos trêmulas de Cathryn. Chuck subiu para ver se Charles estava bem e ficou surpreso ao ver seu pai curvado, examinando um estranho estonteado e todo chamuscado. com a ajuda de Chuck, Charles levou o homem para baixo e amarrou-o a uma cadeira na sala de estar. Cathryn e Jean Paul vieram da cozinha, e a família procurou se recompor da excitação que extenuara seus nervos. Não havia esperança de sono para ninguém, exceto para Michelle. Após alguns minutos, os rapazes se ofereceram para retomar o turno de vigia e desapareceram no andar de cima. Cathryn foi para a cozinha, a fim de preparar um café fresco. 320

Charles retornou aos seus aparelhos, com o coração ainda batendo com força. Aplicou em Michelle outra dose do fator de transferência, que ela novamente tolerou sem qualquer efeito nocivo aparente. De fato, ela nem acordou. Charles pegou o resto da solução e acrescentou-o ao conteúdo do frasco meio vazio para aplicação endovenosa, ajustando-o para correr durante as cinco horas seguintes. Isso feito, Charles dirigiu-se ao seu inesperado prisioneiro, que havia recuperado os sentidos. Apesar das queimaduras, era um belo homem, de olhos inteligentes. Em nada se parecia com o bandido local que Charles esperava. O que mais o preocupava era o fato de que o homem parecia ser um profissional. Quando Charles o examinara, removera um coldre de ombro que continha um Smith & Wesson de aço inoxidável, modelo especial de calibre 38. Não se tratava de uma arma corriqueira. - Quem é você? - perguntou Charles. Anthony Ferrullo estava sentado como se fosse feito de pedra. - Que é que você está fazendo aqui? Silêncio. Meio constrangido, Charles passou uma revista nos bolsos do casaco do homem, encontrando uma carteira. Tirou-a. O sr. Ferrullo não se mexeu. Charles abriu a carteira, ficando espantado com o número de notas de cem dólares que havia lá dentro. Encontrou os habituais cartões de crédito, bem como uma carteira de motorista. Charles puxou-a para fora e segurou-a na direção da luz. Anthony L. Ferrullo, Leonia, Nova Jersey. Nova Jersey? Retornou à carteira e encontrou um cartão profissional. Anthony L. Ferrullo; Breur Chemicals, Segurança. Breur Chemicals! Charles sentiu um calafrio de medo percorrer seu corpo. Até aquele momento ele sentira que qualquer risco que estivesse assumindo em opor-se aos interesses da medicina e da indústria organizadas poderia ser resolvido num tribunal. A presença do sr. Anthony Ferrullo sugeria que o risco era consideravelmente mais

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mortal. E, mais perturbador ainda, Charles verificou que o risco se estendia a toda a sua família. No caso do sr. Ferrullo, "segurança" era evidentemente um eufemismo para coerção e violência. Naquele momento, o homem da segurança era menos um indivíduo do que um símbolo do mal, e Charles teve de se conter para não atacá-lo, tomado de uma ira cega. Em vez disso, 321

começou a acender as luzes, todas elas. Não queria mais escuridão, nem segredos. Chamando os rapazes para baixo, a família se reuniu na cozinha. - Amanhã estará acabado - disse Charles. - Vamos sair daqui e desistir. Cathryn ficou contente, mas os rapazes se entreolharam, consternados. - Por quê? - perguntou Chuck. - Fiz o que precisava por Michelle, e a verdade é que agora ela pode precisar submeter-se a uma radioterapia no hospital. -- Ela vai melhorar? - indagou Cathryn. - Não tenho idéia - admitiu Charles. - Teoricamente, não há por que não, porém ainda há centenas de questões não respondidas. Trata-se de. uma técnica estranha a todas as práticas médicas aceitas. E, neste ponto, tudo o que podemos fazer é esperar. Charles foi até o telefone e chamou todo o pessoal dos meios de comunicação de que ele podia se lembrar, inclusive o pessoal das estações de TV de Boston. Disse a todos que atenderam que ele e sua família sairiam ao meio-dia. Então, telefonou para a polícia de Shaftesbury, disse a um dos policiais quem ele era e pediu para falar com Frank Neilson. Cinco minutos depois, o chefe estava ao telefone. Charles lhe comunicou que havia chamado os meios de comunicação e informou que ele e sua família iam sair ao meiodia. Então desligou. Charles esperava que a presença da imprensa e dos repórteres de televisão impedisse qualquer violência. Às doze horas em ponto, Charles removeu as tábuas que reforçavam a porta da frente e tirou a tranca. Era um dia glorioso, com um límpido céu azul e um pálido sol de inverno. No fim do caminho de entrada, à frente de um monte de gente, estavam uma ambulância, os dois carros da polícia e um punhado de furgões dos jornais e das estações de TV. Charles contemplou a família e experimentou uma onda de orgulho e de amor. Eles o haviam apoiado mais do que ele teria esperado. Voltando ao leito improvisado, aninhou Michelle em seus braços. Os olhos da menina piscaram, mas se conservaram fechados 322

- Vamos, sr. Ferrullo, primeiro o senhor - disse Charles. O homem da segurança saiu para o alpendre, o rosto chamuscado brilhando ao sol. Depois saíram os dois rapazes, seguidos por Cathryn. Charles fechava o grupo com Michelle. Formando um grupo coeso, eles iniciaram o percurso pelo caminho que dava para a estrada. Para sua surpresa, Charles viu o dr. Ibanez, o dr. Morrison, o dr. Keitzman e o dr. Wíley, todos de pé, juntos, perto da ambulância. Ao se aproximarem mais e percebendo que não haveria violência, vários dos homens começaram a apupar, particularmente os da Recycle, Ltd. Somente uma pessoa aplaudiu, e foi Patrick O'Sullivan, que se sentia imensamente grato pelo fato de o caso ter tido/um final pacífico. Parado à sombra das árvores, Wally Crab estava calado. Apoiou o dedo no gatilho de seu rifle favorito de caça e comprimiu a face contra a coronha fria. Enquanto procurava mirar, o cano do rifle oscilava devido ao bourbon que ele havia consumido naquela manhã. Ao apoiá-lo num galho próximo, a situação melhorou muito, mas a insistência e a pressa de Brezo deixavam-no nervoso. A placidez invernal foi quebrada pelo estampido agudo de uma arma de fogo. A

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multidão adiantou-se ao ver Charles Martel cambalear. Ele não caiu, mas ajoelhou-se delicadamente, depondo sua filha na neve, como se fosse um bebê recém-nascido, antes de tombar de frente ao lado dela. Cathryn voltou-se, gritou e ajoelhou-se, procurando ver qual a gravidade do ferimento do marido. Patrick O'Sullivan foi o primeiro a reagir. Por um reflexo profissional, sua mão direita procurou a coronha de seu revólver. Não puxou a arma, mas segurou-a com firmeza e abriu caminho por entre os espectadores, avançando para o caminho da entrada. Rondando por cima de Cathryn e Charles, como um gavião protegendo seu ninho, varria a multidão com os olhos, à procura de um movimento suspeito. 323

17 Jamais tendo sido internado num hospital, Charles achou a experiência mortificante. Tinha lido, no passado, alguns artigos sobre os problemas associados com a invasão tecnológica da medicina, porém jamais imaginara o estado de insegurança e incapacidade que experimentaria. Três dias antes, ele fora baleado e operado, e, ao olhar para a confusão de tubos e frascos, monitores e registradores, sentiu-se como um de seus animais de experiências. Felizmente, no dia anterior ele havia sido transferido da aterrorizante unidade de tratamento intensivo e fora depositado como um pedaço de carne num quarto particular da ala mais agradável do hospital. Procurando ajustar-se à sua posição, Charles sentia uma dor pungente e alarmante que envolvia e apertava seu peito como uma cinta de fogo. Por um momento, conteve a respiração, imaginando se não haveria aberto a incisão, e aguardou que a dor voltasse. Para seu alívio, tal não ocorreu, mas ele permaneceu completamente imóvel, receoso de se mexer. Por entre as costelas, de seu lado direito, saía um tubo de borracha que descia para um frasco no chão, próximo à cama. Seu braço esquerdo estava dependurado e tracionado por uma complexa rede de fios e roldanas. Ele estava imobilizado e totalmente à mercê da equipe, até mesmo para suas funções mais básicas. Uma delicada batida na porta chamou sua atenção. Antes que pudesse responder, a porta abriu-se. silenciosamente. Charles temeu que fosse o técnico que vinha a cada quatro horas para inflar seus pulmões, processo que, Charles não tinha dúvidas, jamais fora igualado em dor desde a inquisição. Mas era o dr. Keitzman, - Você agüenta uma pequena visita? - perguntou ele. , Charles fez que sim com a cabeça. Embora não se sentisse disposto a falar, estava impaciente por obter notícias 325

de Michelle. Cathryn não tinha sido capaz de lhe dizer nada além de que ela não estava pior. O dr. Keitzman entrou no quarto meio constrangido e puxou uma cadeira de metal e vinil para perto da cama de Charles. Seu rosto se contorcia com o tique que habitualmente denunciava tensão. Ele ajustou os óculos. - Como está você, Charles? - perguntou ele. - Não podia estar melhor - disse Charles, incapaz de conter seu sarcasmo. Falar e até mesmo respirar eram ações perigosas, e ele esperava que a dor retornasse a qualquer momento. - Bem, tenho algumas notícias boas. Talvez seja um pouco prematuro, mas acho que você deve saber. Charles não disse nada. Observava o rosto do oncologista, com receio de permitir que suas esperanças crescessem. - Em primeiro lugar - continuou o dr. Keitzman -, Michelle reagiu muito bem à radioterapia. Uma única sessão parece ter tomado conta da infiltração de seu sistema nervoso central. Ela está alerta e orientada. Charles assentiu com a cabeça, fazendo votos para que não

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fosse tudo o que o dr. Keitzman tivesse a dizer. Seguiu-se um silêncio. A porta abriu-se com violência, e o técnico em respiração entrou, empurrando o odiado aparelho de respiração sob pressão positiva intermitente. - Está na hora da aplicação, dr. Martel - disse o técnico com vivacidade, como se estivesse trazendo algo maravilhosamente agradável. Vendo o dr. Keitzman, o técnico parou, súbita e respeitosamente. - Desculpe-me, doutor. j- Está tudo bem - retrucou o médico, aparentemente satisfeito com a interrupção. - Eu já estava de saída. Depois, olhando para Charles, falou: - A outra coisa que eu queria lhe dizer era que todas as células leucêmicas de Michelle desapareceram. Acho que ela está em remissão. Charles sentiu um calor invadir seu corpo. - Meu Deus! Mas isso é formidável! - disse ele, com entusiasmo. Então, sentiu uma pontada violenta que o fez lembrar-se de onde estava. - Não há dúvida de que é - prosseguiu o dr. Keitzman. - Todos estamos satisfeitos. Diga-me, Charles, que foi que você fez com Michelle enquanto ela esteve\em sua casa? Charles teve dificuldade em conter sua alegria. Suas 326

esperanças dispararam para as alturas. Talvez Michelle estivesse curada. Talvez tudo funcionasse conforme ele havia imaginado. Fitando Keitzman, Charles pensou um momento. Não queria entrar em explicações detalhadas por enquanto. - Eu apenas tentei estimular seu sistema imunológico. - Você quer dizer, usando um adjuvante como o BCG? - perguntou o dr. Keitzman. - Algo assim - concordou Charles. Ele não estava em condições de encetar uma discussão científica, - Bem - disse Keitzman, dirigindo-se para a porta. - Precisamos falar sobre isso. 'É evidente que o que você fez, seja lá o que for, ajudou a quimioterapia que ela tomou antes de você retirá-la do hospital. Não compreendo a seqüência do tempo, mas falaremos sobre isso quando estiver mais forte. - Sim, quando eu estiver mais forte. - De qualquer modo, não tenho dúvida de que você sabe que o processo de custódia foi cancelado. - O dr. Keitzman ajustou os óculos, cumprimentou o técnico com a cabeça e saiu. A euforia de Charles após a comunicação do dr. Keitzman abrandou a dor do tratamento respiratório como se ele tivesse tomado morfina. Ativado pelo técnico, o aparelho de pressão positiva forçou a inflação dos pulmões de Charles, algo que um paciente não podia fazer por si mesmo devido à intensidade da dor. O processo durou vinte minutos, e quando o técnico finalmente foi embora, Charles estava exausto. E, apesar da persistência da dor, caiu num sono intermitente. Sem saber quanto tempo havia decorrido, Charles foi despertado por um som que vinha do outro lado do quarto. Virou a cabeça na direção da porta e ficou surpreso ao descobrir que não estava sozinho. Ali, próximo do leito, a não mais que um metro e pouco, estava sentado o dr. Carlos Ibafiez. com as mãos ossudas cruzadas sobre o colo e os cabelos desalinhados, ele parecia velho e frágil. - Espero que não o esteja perturbando - disse o dr. Ibanez, baixinho. Charles sentiu uma onda de raiva, mas, ao se lembrar das novidades que Keitzman lhe havia comunicado, conteve-se. Em vez de raiva, demonstrou indiferença. - Estou satisfeito por você estar se saindo tão bem - disse o dr. Ibanez. - Os cirurgiões me disseram que você teve muita sorte.

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Sorte! Que termo relativo, pensou Charles com irrita- ção. - O senhor acha que ser baleado no peito é ter sorte? - Não é isso o que quero dizer - retrucou o dr. Ibanez com um sorriso. - Parece que, ao atingir o seu braço esquerdo, a bala, quando entrou em seu peito, errou o coração. Aí é que está a sorte. Charles sentiu uma pequena pontada. Embora não estivesse especialmente feliz, não se achava em condições de discutir. E abanou a cabeça levemente, em reconhecimento ao comentário do dr. Ibanez. Na verdade, estava imaginando por que o velho tinha vindo. - Charles - continuou o dr. Ibanez com renovada ênfase. - Estou aqui para negociar. Negociar?, pensou Charles, admirado. De que diabo estaria ele falando? - Pensei muito em tudo - prosseguiu o dr. Ibanez -, e estou querendo admitir que cometi alguns erros. Gostaria de me penitenciar deles, se você quiser cooperar. Charles girou a cabeça e olhou para os frascos que estavam acima de sua cabeça, observando o líquido endovenoso gotejar pelo filtro de microporos. Teve de se controlar para não mandar Ibanez para o inferno. O diretor esperou uma resposta, mas vendo que ela não vinha, pigarreou, limpando a garganta. - vou ser bastante franco, Charles. Sei que você pode nos causar muitos problemas agora que se tornou uma celebridade. Mas isso não seria bom para ninguém. Convenci' a junta de diretores a não fazer qualquer acusação contra você e a lhe devolver o emprego. . . - Para o diabo com o seu emprego -- disse Charles asperamente. E se encolheu de dor. - Está bem - falou Ibanez, contemporizando. Posso entender que você não queira voltar ao Weinburger. Mas existem outras instituições onde podemos ajudá-lo a conseguir o tipo de emprego que você quer, um lugar onde possa realizar suas pesquisas sem que ninguém o atrapalhe. Charles pensou em Michelle, imaginando o que havia feito com ela. Tinha ele descoberto realmente alguma coisa? Não o sabia, mas tinha de descobrir. Para fazer isso, precisava de instalações e laboratórios. Virou-se e examinou o rosto do dr. Ibanez. Ao contrário do que sucedia em relação a Morrison, Charles nunca havia desgostado do dr. Ibanez. 328

- Preciso avisá-lo de que, se eu negociar, vou ter que fazer uma série de exigências. - Na verdade, Charles não havia pensado em nada do que ia fazer depois que se recuperasse. Mas, deitado ali, olhando para o diretor, seu cérebro rapidamente reviu as alternativas. - Estou preparado para satisfazer suas exigências, desde que sejam razoáveis. - E o que vocês querem de mim? - Somente que você não crie embaraços para o Weinburger. Já tivemos escândalos demais. Por um instante, Charles ficou sem saber ao certo o que o dr. Ibanez queria dizer. Quando nada, os acontecimentos da semana anterior o haviam impressionado com sua impotência e vulnerabilidade. Primeiro isolado em sua casa, depois'numa unidade de tratamento intensivo, ele não se dava conta de até onde tinha se tom ado uma figura dos meios de comunicação. Como um preeminente cientista que arriscara a vida para salvar a filha, a imprensa se sentiria feliz em dar ouvidos a qualquer crítica que ele pudesse fazer ao Weinburger, principalmente depois que haviam sido divulgadas as más novas do instituto. Charles começou a avaliar sua força para negociar. - Muito bem - disse ele devagar -, quero boas condições para pesquisar e onde eu seja o meu próprio chefe. - Isso pode ser arranjado. Já entrei em contato com um amigo em Berkeley. - E a avaliação do Canceran - continuou Charles. - Todos os testes existentes devem ser anulados. A droga tem de ser estudada como se houvesse acabado de ser recebida. - Já sabemos disso. Já iniciamos um estudo da toxicidade completamente novo. Charles acompanhava, com o rosto refletindo espanto, : tildo o que Ibanez ia dizendo. i - Depois há a questão da Recycle, Ltd. O despejo i dos produtos

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químicos no rio deve cessar. O dr. Ibanez acedeu. - Seu advogado conseguiu envolver o Departamento de Proteção Ambiental no caso, e sei que o problema será solucionado dentro de pouco tempo. - E - disse Charles, imaginando até onde podia ir - quero que a Breur Chemicals pague uma indenização à família Schonhauser. Eles podem conservar seu nome fora do caso. 329

- Acho que posso arranjar isso, principalmente se permanecer no anonimato. ' Seguiu-se uma pausa. - Mais alguma coisa? - perguntou o dr. Ibanez. Charles estava espantado de ver que tinha ido tão longe. Tentou pensar em mais alguma coisa, mas não pôde. - Acho que é o bastante. O dr. Ibanez levantou-se e encostou a cadeira de encontro à parede. - Lamento que tenhamos de perder você, Charles. Realmente, lamento. Charles ficou olhando Ibanez fechar a porta silenciosamente atrás de si. Charles decidiu que, se tivesse de atravessar de novo a zona rural, o faria sem as crianças e com ar-condicionado. E se tivesse de optar entre'os dois, preferia ficar sem os filhos. Os três vinham se pegando desde que haviam saído de New Hampshire, embora a manhã tivesse transcorrido relativamente calma, como se a vasta extensão do deserto de Utah lhes impusesse um silêncio reverente. Charles olhou pelo espelho retrovisor. Jean Paul achava-se diretamente atrás dele, olhando pela janela lateral. Junto a ele ia Michelle, entediada e inquieta. No meio da parte traseira da caminhonete recémpolida, Chuck tinha feito um ninho para si. Vinha lendo a maior parte da viagem - um compêndio de química. Charles, sacudiu a cabeça, reconhecendo que jamais conseguiria compreender o rapaz, que agora dizia que queria fazer um curso de verão na universidade. Mesmo que se tratasse de uma fantasia passageira, Charles ficara extremamente satisfeito quando o filho mais velho anunciara que queria ser médico. Ao atravessarem Bonneville Salt Flats, a oeste de Salt Lake City, Charles arriscou um olhar de soslaio para Cathryn, que estava sentada ao seu lado. Ela havia pegado num bordado no início da viagem e parecia absorvida pelo movimento repetitivo. Mas, sentindo que Charles a fitava, levantou a cabeça, e seus olhos se encontraram. Apesar do incômodo causado pelas crianças, ambos partilhavam de uma alegria crescente à medida em que a cruciante experiência ligada à doença de Michelle e aquela última violenta manhã se diluíam no passado. Cathryn estendeu o braço e colocou a mão sobre a perna de Charles. Ele havia perdido um bocado de peso, 330

porém ela achava que ele pareci" mais belo do que nunca. E a tensão que normalmente rasava a pele em tom o de seus olhos tinha desaparecido. P<U* alivio de Cathryn Charles estava finalmente relaxado, hipnotizado pela estrada que passava correndo e pela entorp^edora v!sao da paisagem. - Quanto mais eu penso no que aconteceu, menos C°^S^-^^n0n^r, Ceando uma pôs, cão que acomodasse melhor seu braço esquerdo, ainda engessado. Embora ainda tivesse de chegar as boas com a maior parte das emoções engendradas pelo caso, havia uma coisa que ele reconhecia. Cathryn tinha se tornado sua melhor amiga. Quanto mais não fosse, isso valia a experiência porque tinham passado.esteve

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deixando que Cathryn pegasse a adversa onde quer que quis- ^'^Cathryn continuava a puxar o fio de um colorido vivo do seu tear de bordado. . . . - Depois de todo aquele frenesi de empacotar as coisas e partir, jamais entendi realmente o que aconteceu.

Que é que você não entende? - perguntou Charles. _ Pau _ chamou Jean ?aul do assento traseiro Joga-se hóquei em Berkeley? Quero dizer, Ia tem gelo e ^EsSdo o pescoço para poder ver o rosto de Jean Paul, Charles respondeu: - Receio que não tenha oelo. Berkeley se parece mais com uma perene primavera. rk,,rt - Como se pode ser tão bobo? - gemeu Chuck, dando um tapa no alto da cabeça de Jean Paul. - Cale a boca - exclamou Jean Paul, torcendo-se em seu assento e batendo no livro de Chuck. - Não estava fa- '^Muirbem, calem-se ^ gritou Charles asperamente'. Depois, numa voz mais c#lma, disse: - Talvez você possa aprender a fazer surfe, Jean l aul. - É mesmo? - retruco^ Jean Paul, com o rosto bn-

Só se pega surfe na Califórnia do Sul - disse Chuck -, onde estão todos o# esquisitoes. - Olhem só quem fala! - observou Jean Paul. - Basta! - gritou Charles, sacudindo a cabeça e olhando para Cathryn. 331

- Está tudo bem - disse Cathryn. - É reconfortante ouvir os garotos brigarem. Isso me convence de que tudo está normal. - Normal? - zombou Charles. - Completamente - continuou Cathryn, olhando para Charles. - Uma das coisas que não entendo é por que o Weinburger deu uma reviravolta tão grande. Eles não podiam ter sido mais prestimosos. - Nem eu entendi - disse Charles -, até que me lembrei do quanto o dr. Ibafiez é realmente inteligente. Ele estava com medo de que a imprensa e os meios de comunicação se apossassem da história. com todos aqueles repórteres enxameando por ali, ficou horrorizado ao pensar que eu me sentisse tentado a expor-lhes meus sentimentos sobre o tipo de pesquisa de câncer que eles faziam. - Meu Deus! Se o público viesse a saber do que realmente se passa! - exclamou Cathryn. - Acho que se eu fosse um bom negociador, teria pedido um carro novo - riu Charles. Michelle, que estivera escutando vagamente o que conversavam seus pais, remexeu em sua bolsa de lona e retirou sua peruca. Era a mais parecida com a cabeleira castanha de Cathryn que ela pudera encontrar. Charles e Cathryn haviam implorado que ela escolhesse uma preta que combinasse com seu próprio cabelo, mas Michelle havia permanecido irredutível. Fizera questão de parecer-se com Cathryn, mas agora não tinha tanta certeza. A idéia de ir para uma escola nova era bastante aterradora, sem falar em sua cabeleira esquisita. Por fim, verificara que não podia ter cabelos castanhos por alguns meses para depois ficar com cabelos negros. - Só quero começar a freqüentar a escola depois que meu cabelo tornar a crescer. Charles olhou por sobre o ombro, viu Michelle mexendo a esmo em sua cabeleira castanha e pôs-se a especular sobre o que estaria ela pensando. Ia criticá-la por sua bobagem em ter insistido na cor errada, mas pensou melhor e. disse, delicadamente: - Por que não arranjamos outra peruca? Talvez preta, dessa vez? - Que é que há com esta? - zombou Jean Paul, pegando-a e enfiando-a de qualquer modo em sua cabeça. 332

- Paizinho - choramingou Michelle. - Mande Jean Paul devolver minha peruca. - Você devia ter nascido menina, Jean Paul - disse Chuck. - Você fica mil vezes melhor de peruca. - Jean Paul! -

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exclamou Cathryn estendendo o braço para segurar Michelle. - Devolva a peruca à sua irrnã. - Está bem, carequinha - respondeu Jean Paul, rindo e atirando a peruca na direção de Michelle, ao mesmo tempo que se esquivava dos murros inofensivos da irmã. Charles e Cathryn entreolharam-se, satisfeitos demais com a melhora de Michelle para ralharem com ela. Ainda se lembravam daqueles dias horríveis, quando esperavam para ver se a experiência dava resultado, se Michelle melhoraria. E quando isso aconteceu, eles tiveram de aceitar o fato de que jamais saberiam se ela havia reagido às injeções imunológicas ou à quimioterapia que havia recebido antes de Charles tirá-la do hospital. - Mesmo que eles tivessem certeza de que foram suas injeções que efetuaram a cura, não lhes dariam o crédito pela recuperação dela - disse Cathryn. Charles encolheu os ombros. - Ninguém pode provar nada, nem mesmo eu. De qualquer modo, dentro de um ano ou menos terei a resposta. O instituto em Berkeley está contente em me deixar prosseguir meus estudos sobre o câncer. com um pouco de sorte, eu serei capaz de provar que o que aconteceu a Michelle foi o primeiro exemplo de fazer com que o corpo se cure por si mesmo de uma leucemia estabelecida. Se isso. . . - Pai! - interrompeu Jean Paul, no assento traseiro. - Você podia parar no próximo posto de gasolina? Charles tamborilou os dedos sobre o volante, mas Cathryn apertou seu braço. Ele tirou o pé do acelerador. -. Nos próximos ointenta quilômetros não haverá uma cidade. Eu só farei uma parada. Vamos aproveitar para nos esticarmos um pouco. Charles entrou no acostamento poeirento da estrada. - Muito bem, todo mundo fora, para repousar, mudar de lugar e para o que for preciso. - Aqui está mais quente do que uma estufa - disse Jean Paul, desalentado, procurando um abrigo. Charles levou Cathryn até um pequeno montículo, que lhes permitia uma visão do oeste, uma extensão deso- 333

lada e árida do deserto, que conduzia a montanhas recortadas. Atrás deles, no carro, Chuck e Michelle discutiam. "Sim", pensou Charles, "tudo está normal." - Nunca imaginei que o deserto fosse tão lindo disse Cathryn, hipnotizada pela paisagem. Charles respirou fundo. - Sinta o ar. Faz com que Shaftesbury pareça um outro planeta. Charles envolveu Cathryn com o braço direito. - Sabe o que me assusta mais? - perguntou ele. - O quê? - Estou começando a me sentir contente de novo. - Não se preocupe com isso - riu Cathryn. - Espere até chegarmos a Berkeley sem casa, com pouco dinheiro e três crianças famintas. Charles sorriu. - Você tem razão. Ainda há muitas possibilidades de uma catástrofe. 334

Epílogo Quando as neves derreteram nas altaneiras White Mountains, em New Hamphire, centenas de cursos d'água engrossados encheran^0 "rio Jpotorhac.. Num período de dois dias, seu nível elevWííe de muitos"; centímetros e sua lenta *'*• f '" "' A correnteza para* "-mar se transformou numa torrente. Ao passar pela cidade de Shaítesbury, a água lífnpida devastava os velhos cais ;das usinas desertas, difundindo uma névoa e arco-íris eni-miniatura no ar cristaino'j À meáida que o tempo esquentava, brotos verdes iam surgindo ao longo do rio, crescendo em áreas anteriormente tóxicas demais para que eles sobrevivessem. Mesmo à sombra da Recycle, Ltd., pela primeira vez era muitos anos, apareceram girinos caçando as ariscas aranhas-d'água, e as trutas migraram para o sul através das águas antes envenenadas. ,, À medida que as ftoites fica"vam mais curtas e o verão se aproximava,

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apareceu uma gota de benzeno na junta de um cano de descarga, num dos novos tanques de depósito. Nenhum dos que supervisionavam as instalações havia entendido totalmente as insidiosas tendências do benzeno, e, no momento em que as primeiras moléculas fluíram no novo sistema, começaram a dissolver as juntas de borracha usadas para vedar a canalização. O fluído tóxico havia levado dois meses para comer a borracha e começar a gotejar sobre os blocos de grani to que ficavam por baixo dos tanques de depósito dos produtos químicos, mas após a primeira gota, outras surgiram, cada vez mais freqüentes. As moléculas venenosas seguiam o percurso de menor resistência, abrindo seu caminho pela alvenaria sem argamassa e depois escoando lateralmente até penetrarem no rio. O único indício de sua presença era um leve odor, quase adocicado. Os primeiros a morrer foram os sapos e depois os pei- l

xes. Quando o rio reduziu seu volume, enquanto o sol do verão ficava mais causticante, a concentração do veneno subiu em disparada. •T > _j u 336