habermas, jurgen. entre naturalismo e religião

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DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI 21200052008 C1P-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ H119e Habermas, Jürgen, 1929- Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos / Jürgen Habermas; (tradução Flávio Beno Siebeneichler). - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007. 400 p.; - (Biblioteca Colégio do Brasil; 14) Tradução de Zwischen Naturalismus und Religion. Philosophische Aufsatze. ISBN 978-85-282-0141-3 1. Metafísica. 2. Religião - Filosofia. 3. Naturalismo. 4. Tolerância religiosa. 5. Solidariedade. I. Título. II. Série. 07-1889 CDD 110 CDU 11 JÜRGEN HABERMAS ENTRE NATURALISMO E RELIGIÃO. ESTUDOS FILOSÓFICOS SBD-FFLCH-USP 325428 Tempo Brasileiro

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Livro Entre naturalismo e religião completo

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Page 1: HABERMAS, Jurgen. Entre Naturalismo e Religião

DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI

21200052008

C1P-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS. RJ

H119e Habermas, Jürgen, 1929-Entre naturalismo e religião: estudos filosóficos / Jürgen

Habermas; (tradução Flávio Beno Siebeneichler). - Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

400 p.; - (Biblioteca Colégio do Brasil; 14) Tradução de Zwischen Naturalismus und Religion.

Philosophische Aufsatze. ISBN 978-85-282-0141-3 1. Metafísica. 2. Religião - Filosofia. 3. Naturalismo.

4. Tolerância religiosa. 5. Solidariedade. I. Título. II. Série.

07-1889 CDD 110 CDU 11

JÜRGEN HABERMAS

ENTRE NATURALISMO E RELIGIÃO. ESTUDOS FILOSÓFICOS

SBD-FFLCH-USP

325428

Tempo Brasileiro

Page 2: HABERMAS, Jurgen. Entre Naturalismo e Religião

BIBLIOTECA COLÉGIO DO BRASIL - l i

Diretor EDUARDO PORTELLA

Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Traduzido do original alemão Jürgen Habermas. Zwischen Naturalismus und Religion.

Philosophische Aufsatze © Copyright

SUHRKAMP VERLAG Frankfurt am Main, 2005

(Todos os direitos reservados) Tradução

FLÁVIO BENO SIEBENEICHLER

Capa e Diagramação JUNIA CAMARINHA DA SILVA

Direitos reservados a EDIÇÕES TEMPO BRASILEIRO LTDA. Rua Gago Coutinho, 61 - Laranjeiras CEP: 22221-070 - CP 16.099 Telefax: (21) 2205-5949 Rio de Janeiro - RJ - Brasil e-mail: [email protected] 2007

SUMÁRIO

Introdução 7 I. A constituição intersubjetiva do espírito que se guia

por normas 15 1. Espaço público e esfera pública política. Raízes

biográficas de dois motivos de pensamento 15 2. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada 31 3. Sobre a arquitetônica da diferenciação do discurso.

Pequena réplica a uma grande controvérsia 91

II. Pluralismo religioso e solidariedade de cidadãos do Estado 115 4. Bases pré-políticas do Estado de direito democrático . .115 5. Religião na esfera pública. Pressuposições cognitivas

para o "uso público da razão" de cidadãos seculares e religiosos 129

III. Naturalismo e religião 169 6. Liberdade e determinismo 169 7. "Eu mesmo sou um bocado de natureza" - Adorno

sobre o enlaçamento entre razão e natureza. Considerações sobre a relação entre liberdade e indisponibilidade 203

8. A fronteira entre fé e saber. Sobre o alcance e a importância histórica da filosofia da religião, de Kant 235

Page 3: HABERMAS, Jurgen. Entre Naturalismo e Religião

IV. Tolerância 2 7 9 9. A tolerância religiosa como precursora de direitos

culturais 2 7 9 10. Direitos culturais iguais - e os limites do liberalismo

pós-moderno 301 11. Uma constituição política para a sociedade mundial

pluralista? 348

Sobre os capítulos deste livro 393

Registro de nomes 395

INTRODUÇÃO

Duas tendências contrárias caracterizam a situação cultural da época atual - a proliferação de imagens de mundo naturalistas e a influência política crescente das ortodoxias religiosas.

De um lado, dominam a cena os progressos na área da biogenética, nas pesquisas sobre o cérebro e na robótica, que são impulsionados por esperanças terapêuticas e eugênicas. O conjunto desses programas se destina à propalação, nos próprios contextos da ação e da comunicação, de uma autocompreensão objetivada das pessoas nos moldes das ciências naturais. O adestramento numa perspectiva de auto-objetivação capaz de reduzir tudo o que é viven-ciável e compreensível a algo observável poderia estimular, outrossim, a disposição a uma correspondente auto-instrumen-talização.' A luz da filosofia, é possível afirmar que tal tendência vem associada ao desafio de um naturalismo cientificista. O que se discute não é o fato de que todas as operações do espírito humano dependem de um substrato orgânico. Já que o motivo da controvérsia tem a ver, antes, com o modo correto de naturalização do espírito. Uma compreensão naturalista adequada da evolução cultural tem de fazer jus, não somente à constituição intersubjetiva do espírito, mas também ao caráter normativo de suas operações orientadas por regras.

1 Cf. HABERMAS, J. Die Zukunft dermenschlichen Nalur. Ed. ampliada, Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2002.

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De outro lado, aumenta inesperadamente a tendência à difusão de imagens de mundo naturalistas e se constata uma politização, em escala mundial, de comunidades de fé e de tradições religiosas. Na perspectiva da filosofia, o reavivamento de forças religiosas que parece acontecer em todos os países, menos na Europa, significa o desafio de uma crítica fundamental à autocompreensão pós-metafísica e não religiosa da modernidade ocidental. A controvérsia não gira em torno do fato de que as possibilidades de uma configuração política só se dão no interior do universo das infra-estruturas técnico-científicas e econômicas surgidas no Ocidente e para as quais não existem alternativas. O alvo dos debates passa a ser, acima de tudo, a interpretação correta das conseqüências da secularização oriundas de uma racionalização social e cultural, a qual sofre ataques cada vez mais acirrados por parte dos defensores das ortodoxias religiosas por constituir o caminho privilegiado da história mundial do Ocidente.

Tais tendências intelectuais, que caminham em sentido contrário, têm suas raízes em tradições opostas. O naturalismo enrigecido pode ser entendido como uma conseqüência das premissas o Iluminismo - que vivia da fé na ciência; já uma consciência renovada pela política rompe com as premissas liberais da ciência. Em que pese isso, tais figuras do espírito não se digladiam apenas nos espaços das controvérsias acadêmicas, já que se transformam em forças políticas - seja no âmago da sociedade civil da nação líder do Ocidente, sejam em escala internacional, no encontro das religiões mundiais e das culturas que dominam o mundo.

Na visão de uma teoria política que trabalha com fundamentos normativos e com as condições de funcionamento de Estados de direito democráticos, tal oposição deixa transparecer, além disso, uma cumplicidade secreta: quando nenhuma das duas tendências que caminham em sentido contrário está disposta à auto-reflexão, suas respectivas polarizações das imagens de mundo colocam em risco, cada uma à sua maneira, a coesão da comunidade política. Uma cultura política que - em questões de pesquisa de embriões

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humanos, do aborto ou do tratamento de pacientes que se encontram em coma - se polariza de modo irreconciliável fixando-se na antinomia "secular/religioso" coloca em xeque o Commonsense dos cidadãos, mesmo dos que residem numa das mais antigas democracias. O etos do cidadão liberal exige, de ambos os lados, a certificação reflexiva de que existem limites, tanto para a lê como para o saber.

O exemplo recente dos Estados Unidos sinaliza que a invenção do Estado constitucional moderno também deve servir para a criação de possibilidades para um pluralismo religioso pacífico. Somente o exercício de um poder secular estruturado num Estado de direito, neutro do ponto de vista das imagens de inundo, está preparado para garantir a convivência tolerante, e com igualdade de direitos, de comunidades de fé diferentes que, na substância de suas doutrinas e visões de mundo continuam irreconciliáveis. A secularização do poder do Estado e as liberdades positivas e negativas do exercício da religião constituem que dois lados dc uma mesma medalha. No passado, elas protegeram comunidades religiosas, não somente das conseqüências destrutivas resultantes de conflitos sangrentos que irromperam entre elas, mas também de um modo de pensar, inimigo da religião, difundido numa sociedade secular. Não obstante isso, a tarefa do Estado constitucional, que consiste na proteção de seus cidadãos, sejam eles religiosos ou não-religiosos, não poder ser cumprida quando estes, no seu convívio cidadão, têm de se contentar apenas com um determinado modus vivendi: é necessário que eles estejam, além disso, convic tos da necess idade de viver em uma ordem democrática. O Estado democrático a l imenta - se de uma solidariedade de cidadãos que se respeitam reciprocamente como membros livres e iguais de uma comunidade política. Ora, tal solidariedade não brota das fontes do direito.

Na esfera pública política, tal solidariedade de cidadãos de um Estado, a qual é arrecadada em pequenas doses, tem de se comprovar para além dos limites fixados pelas visões de mundo. O reconhecimento recíproco pode significar, por exemplo, que

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cidadãos seculares e religiosos estejam dispostos a se ouvirem mutuamente em debates públicos e a aprenderem uns com os outros. Além disso, na virtude política do relacionamento civil recíproco manifestam-se determinados enfoques cognitivos que não podem ser impostos de cima para baixo, apenas aprendidos. Tal circunstância envolve, no entanto, uma conseqüência de grande interesse em nosso contexto. A proporção que o Estado liberal estimula seus cidadãos a adotarem um comportamento cooperativo que ultrapassa as fronteiras das cosmovisões, ele tem de pressupor que os enfoques cognitivos exigidos de ambos os lados, isto é, do cidadão secular e do religioso, já se formaram como resultado de p rocessos de a p r e n d i z a g e m históricos. E proces sos de aprendizagem de tal envergadura não consistem apenas em modificações fortuitas de uma certa mentalidade que "ocorrem" independentemente de compreensões racionais, as quais podem ser repetidas a bel-prazer. Tampouco eles podem ser reproduzidos ou controlados por meios tais como o direito ou a política. Visto que o Estado liberal depende, no longo prazo, de mentalidades que ele não é capaz de produzir com recursos próprios.

Isso se torna patente quando pensamos nas expectativas de tolerância a que os cidadãos religiosos têm de fazer jus no Estado liberal. Modos de pensar fundamentalistas não se conciliam com a mentalidade a ser compartilhada por um grande número de c idadãos quando pre tendem manter coesa a c o m u n i d a d e democrática. Na perspectiva da história da religião, os enfoques cognitivos que os cidadãos religiosos precisam assumir no seu relacionamento civil com crentes de outras religiões e com não-crentes podem ser interpretados como resultado de um processo de aprendizagem coletivo. No Ocidente cristão, a teologia assumiu um papel pioneiro no trabalho de auto-reflexão hermenêutica sobre doutrinas oriundas da tradição. Será que a elaboração dogmática dos desafios cognitivos representados pela ciência moderna e pelo pluralismo religioso, pelo Estado constitucional e pela moral social secular, terá sido "bem-sucedida"? Será que ela veio acompanhada de "processos de aprendizagem" em geral? As possíveis respostas

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a tais perguntas obrigam-nos naturalmente a recorrer à perspectiva interna daquelas tradições que, por este caminho, encontram uma maneira de se ligar às condições da vida moderna.

Em síntese, a formação da opinião e da vontade na esfera pública democrática só pode funcionar realmente quando uni número relativamente grande de cidadãos do Estado consegue satisfazer a determinadas expectativas vinculadas à civilidade de seu comportamento apesar das diferenças profundas da fé e das cosmovisões. Não obstante isso, os cidadãos religiosos só podem ser confrontados com isso quando for possível supor que eles preenchem concretamente os pressupostos cognitivos requeridos para tal. Eles têm de aprender a relacionar, de modo reflexivo e compreensível, suas próprias convicções de fé com o fato do pluralismo religioso e cultural. Além disso, é preciso encontrar uma forma de colocar o privilégio cognit ivo das ciências institucionalizadas socialmente bem como a precedência do Estado secular e da moral social universalista em consonância com sua fé. A filosofia, ao contrário da teologia, a qual se liga à lê das comunidades, não encontra nenhuma possibilidade de influenciar tal processo. Nesse contexto, ela se limita a assumir o papel de um observador que se encontra do lado de fora e que não possui competência para julgar sobre o que vale e o que não pode valer como argumento no âmbito de uma doutrina religiosa.

A filosofia somente entra em campo quando se trata de um jogo secular. Porquanto os próprios cidadãos não-religiosos, no momento em que pretendem preencher as expectativas de uma solidariedade cidadã, são levados a assumir um determinado enfoque cognitivo em relação aos concidadãos religiosos e às suas respectivas exteriorizações. Quando os dois lados se encontram, na confusão de vozes de uma esfera pública pluralista do ponto de vista das visões de mundo, a fim de discutir sobre questões políticas, a exigência de respeito mútuo impõe certos deveres epistêmicos. Os próprios participantes que se expressam numa determinada linguagem religiosa alteiam a pretensão de serem levados a sério por seus concidadãos seculares. Por conseguinte, estes últimos não

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podem negar a priori a possibilidade de um conteúdo racional inerente às contribuições formuladas numa linguagem religiosa.

É bem verdade que, no entender das constituições democráticas em geral, todas as leis, todas as decisões judiciais, todos os decretos e medidas são formulados numa linguagem pública, ou melhor, acessível a todos os cidadãos o que implica o fato de poderem ser alvo de uma justificação secular. Entretanto, ao nível de uma troca informal de opiniões, o que também faz parte da esfera pública política, os cidadãos e as organizações da sociedade civil ainda se encontram aquém do umbral institucional do poder de sanção de um Estado. Aqui, a formação da opinião e da vontade não pode ser canalizada por meio de censuras à linguagem nem isolada das possíveis fontes geradoras de sentido.2 Neste contexto, o respeito que os cidadãos secularizados devem manifestar pelos concidadãos crentes possui, além disso, uma dimensão epistêmica.

De outro lado, o que se espera de cidadãos seculares, isto é, a disposição para aceitar a possibilidade de um conteúdo racional nas contribuições religiosas e a vontade de participar da tradução cooperativa dos conteúdos dos idiomas religiosos para uma linguagem acessível a todos, só pode ser exigido deles à luz de um pressuposto cognitivo, o qual, no entanto, é contestado. Porquanto, na linha de um pensamento secular, o conflito entre convicções seculares e doutrinárias só pode assumir prima facie o caráter de um dissenso racional quando for possível pensar que as tradições religiosas não são simplesmente irracionais ou absurdas. Somente sob tal pressuposto, os cidadãos não-religiosos podem tomar como ponto de partida a idéia de que as grandes religiões mundiais poderiam carregar consigo intuições racionais e momentos instrutivos de exigências não quitadas, porém, legítimas.

Isso tudo constitui, é verdade, objeto de uma discussão aberta que não pode ser prejulgada por nenhum tipo de princípios constitucionais. Além disso, ninguém sabe de antemão qual das

2 HABERMAS, J. "Glauben und Wissen", in: id., Zeitdiagnosen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2003.

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duas partes vai ter razão no final. O secularismo que emoldura a imagem de mundo científica insiste na idéia de que as formas de pensamento arcaicas contidas nas doutrinas religiosas foram superadas e desvalorizadas de forma global e total pelos progressos do conhecimento e da pesquisa estabelecida. Não obstante isso, o pensamento pós-metafísico não-derrotista estabelece relações falibilistas com os dois lados - e o faz estribando-se numa reflexão sobre os próprios limites e numa tendência à superação de limites, inserida nele mesmo. Porque ele desconfia tanto das sínteses das ciências naturais como das verdades reveladas.

A polarização entre visões de mundo religiosas e seculares, que coloca em risco a coesão entre os cidadãos, é o objeto de uma teoria política. Entretanto, tão logo atentamos para os pressupostos cognitivos das condições de funcionamento da solidariedade de cidadãos de um Estado, temos de transportar a análise para um ouüo plano. Já que a superação reflexiva da consciência secularista, do mesmo modo que a consciência religiosa na era da modernidade, possui um lado epistemológico. O modo de caracterizar esses dois processos de aprendizagem, complementares, revela uma descrição distanciada, levada a cabo na perspectiva de um observador pós-metafísico. Ao passo que na perspectiva de participantes, entre os quais se coloca o próprio observador, desencadeia-se uma disputa. Os pontos controversos são claros. Por um lado, a discussão tem como objeto o modo correto de naturalização de um espírito cuja estrutura é, por natureza, intersubjetiva e regulada por normas. Por outro lado, existe uma disputa pela compreensão correta do impulso cognitivo inerente ao surgimento das religiões mundiais em meados do primeiro milênio antes de Cristo - Karl Jaspers caracteriza tal época como "era axial" (Achsenzeit).

Nessa contenda, defendo a tese hegeliana, segundo a qual, as grandes religiões constituem parte integrante da própria história da razão. Já que o pensamento pós-metafísico não poderia chegar a uma compreensão adequada de si mesmo caso não incluísse na própria genealogia as tradições metafísicas e religiosas. De acordo com tal premissa, seria irracional colocar de lado essas tradições

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"fortes" por considerá-las um resíduo arcaico. Tal "desleixo" significaria a impossibilidade de qualquer tentativa de explicação do nexo interno que liga essas tradições às formas modernas de pensamento. Até o presente, as tradições religiosas conseguiram articular a consciência daquilo que falta. Elas mantêm viva a sensibilidade para o que falhou. Elas preservam na memória dimensões de nosso convívio pessoal e social, nas quais os progressos da racionalização social e cultural provocaram danos irreparáveis. Que razão as impediria de continuar mantendo potenciais semânticos cifrados capazes de desenvolver força inspiradora - depois de vertidas em verdades profanas e discursos fundamentadores?

O presente volume reúne estudos que se dedicam a tais questionamentos. Foram elaborados durante os últimos anos, em diferentes circunstâncias, obedecendo a motivos diversificados. Não formam, por tal motivo, um conjunto sistemático. Mesmo assim, é possível descobrir, por trás das diferentes contribuições, a intenção de tratar dos desafios do naturalismo e da religião, que são complementares, bem como a insistência pós-metafísica no sentido de uma razão destranscendentalizada.

Os estudos e comentários da primeira parte relembram o princípio intersubjetivista destinado à construção de uma teoria do espírito, que eu persigo há muito tempo. Na linha de um pragmatismo que cria elos entre Kant e Darwin\ é possível, com o auxílio de pressupostos idealizadores, desinflacionar as idéias platônicas sem que haja necessidade de inflacionar, por outro lado, o antiplatonismo a ponto de reduzir as operações do espírito, orientadas por regras, a regularidades explicáveis nomologica-mente. Os estudos da segunda parte desenvolvem o questionamento central que há pouco esboçamos, na perspectiva de uma teoria normativa do Estado constitucional. Ao passo que os textos da

3 Cf. a introdução a HABERMAS, J. Wahrheit und Rechtferligung, Frankfurt/ M.: Suhrkamp, 1999. 7-64.

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terceira parte se aglutinam em uma tentativa de abordar o tema epistemológico e de explicar a posição do pensamento pós-metafísico, o qual julga poder colocar-se entre a religião e o naturalismo. As três contribuições finais retomam, por seu turno, temas da teoria política. Neles me interesso especialmente por correspondências entre tentativas nacionais destinadas a dominar o pluralismo das religiões e das visões de mundo, bem como os esboços de uma cons t i tu ição política dest inada a uma soc iedade mundia l pacificada.4

Starnberg, março de 2005 JÜRGEN HABERMAS

4 Na última contribuição eu retomo questões da constitucionalização do direito internacional (direito das gentes). Cf. o ensaio correspondente in HABERMAS, J. Dergespaltene Wesien. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2004, 113-193.

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I. A CONSTITUIÇÃO INTERSUBJETIVA DO ESPÍRITO QUE SE GUIA POR NORMAS

1. ESPAÇO PÚBLICO E ESFERA PÚBLICA POLÍTICA. RAÍZES BIOGRÁFICAS DE DOIS MOTIVOS DE PENSAMENTO.

Foi-me encaminhado o pedido para transmitir, numa linguagem compreensível ao público em geral, algo sobre o caminho trilhado por minha vida e sobre minhas experiências de vida que pudesse ser tido na conta de instrutivo. Confesso que tal pedido me coloca numa situação embaraçosa. A exigência do Presidente Inamori, dirigida aos agraciados com o prêmio, foi a seguinte: "Falem, por favor, sobre vocês mesmos" - "Digam-nos como conseguiram superar dificuldades, e que idéia serviu de orientação nas encruzilhadas da vida?" Convém lembrar, entretanto, que a vida dos filósofos é, em geral, muito pobre em termos de eventos de grande repercussão. Já que esses eventos transcorrem, por via de regra, em um plano geral. Por este motivo, eu peço licença para deter-me, inicialmente, nas inibições de uma esfera privada fazendo uma referência geral à relação entre o privado e o público.

Para chegar a esse ponto, é útil uma distinção entre dois tipos de esfera pública. Em nossa sociedade, dominada pela mídia, a esfera pública serve, em primeiro lugar, como espaço da auto-apresentação daqueles que se destacam na sociedade por uma razão ou por outra. A finalidade das aparições em público reside na visibilidade ou na notoriedade. Astros e estrelas pagam por este tipo de presença nos meios de comunicação de massa o preço de uma confusão entre a sua

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vida privada e pública. Já a participação em controvérsias políticas, científicas ou literárias possui outra finalidade. Aqui, o entendimento sobre um tema substitui a auto-apresentação pessoal. Nesse caso, o público não configura um espaço de ouvintes ou espectadores, mas o espaço para falantes e destinatários que se interrogam mutuamente e que tentam formular respostas. Trata-se de uma troca de argumentos, não da concentração de olhares. Os que participam de discursos e se concentram num tema comum voltam, por assim dizer, as costas à sua vida privada. Eles não sentem necessidade de falar de si mesmos. As esferas pública e privada não se misturam, mas assumem uma relação de complementaridade.

Tal tipo de objetividade pode explicar por que nós, professores de filosofia, ao falarmos sobre Aristóteles, Tomás de Aquino ou Kant, nos limitamos a fornecer os dados biográficos sumários: quando nasceram, onde viveram e quando morreram. Até episódios turbulentos na vida desses filósofos passam para segundo plano, abrindo espaço para sua obra. Isso porque a vida dos filósofos não possui nenhuma característica capaz de transformá-la em uma lenda de santos. O que resta deles é, no melhor dos casos, um novo pensamento, muitas vezes enigmático, que vai ocupar as mentes das gerações futuras. Em nossa especialidade, caracterizamos como clássico aquele pensador que continuou sendo nosso contemporâneo por meio de sua obra. O pensamento de tal clássico é similar ao núcleo incandescente de um vulcão cujas escórias se sedimentaram formando os anéis de sua biografia. Tal imagem é sugerida pelos grandes pensadores do passado cuja obra resistiu incólume às mudanças dos tempos. De outro lado, permanecemos nós, os filósofos vivos - que somos muito mais professores de filosofia do que filósofos - contemporâneos de nossos contemporâneos. E quanto menos originais os nossos pensamentos, tanto mais eles se apegam ao seu respectivo contexto de surgimento. Muitas vezes, eles não passam de uma simples expressão da história da vida à qual pertencem.

Por ocasião do meu septuagésimo aniversário, meus discípulos redigiram uma "Festschrift" intitulada: A esfera pública da razão e a razão da esfera pública. A escolha do título foi muito boa porquanto

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a esfera pública, entendida como espaço do trato comunicativo e racional entre as pessoas, é o tema que me persegue a vida toda. De fato, a tríade constituída pela esfera pública, pelo discurso e pela razão dominou minha vida política e meu trabalho científico. Toda a obsessão, no entanto, possui raízes na história de uma vida. No meu caso, parece que quatro experiências se destacam: (1) Após o nascimento e nos primeiros anos da infância, passei pela experiência traumática de intervenções cirúrgicas. (2) O currículo de muitos filósofos revela certas experiências provocadas por doenças. Após minha matrícula na escola, lembro-me de dificuldades de comunicação e de melindres em conseqüência de minha deficiência física. (3) Durante a adolescência fui marcado pela cesura do ano de 1945 que atingiu toda minha geração. (4) No decorrer de minha vida adulta passei por inquietações provocadas pelas experiências políticas de uma liberalização periclitante e gradativa da sociedade alemã do pós-guerra. Permitam-me, pois, elucidar certas suposições sobre eventuais ligações entre teoria e história de vida.

(1) Logo após o parto, fui submetido a uma cirurgia. Apesar de suposições em contrário, eu não creio que tal intervenção tenha abalado definitivamente minha confiança no mundo ambiente. De qualquer forma, essa intervenção poderia ter despertado, também, o sentimento de dependência e o sentido para a relevância do trato com outros. O fato é que, mais tarde, a natureza social do homem tornou-se um dos pontos de partida de minhas reflexões filosóficas. Existem muitas espécies de animais que vivem em sociedade. Inclusive os macacos, nossos parentes mais próximos, vivem em hordas e formas de socialização familiais - desconhecendo, no entanto, os complexos sistemas de parentesco que somente o homo sapiens conseguiu inventar. O que caracteriza o homem não são as formas de convivência social em geral. Para descobrirmos as características específicas da sua natureza social temos de traduzir textualmente a famosa formulação de Aristóteles, segundo a qual, o homem é um zoon politikón: o homem é um animal político, isto é, um animal que vive num espaço público. Em uma formulação mais precisa teríamos de afirmar: o homem é

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um animal que, graças à sua inserção originária numa rede pública de relações sociais, consegue desenvolver as competências que o transformam em uma pessoa. Quando comparamos entre si os equipamentos biológicos de mamíferos recém-nascidos descobrimos que nenhuma outra espécie vem ao mundo tão carente de cuidados como o homem e que nenhuma espécie necessita de um período tão longo de educação no seio de uma família e de uma cultura pública compartilhada intersubjetivamente pelos semelhantes. Nós, homens, aprendemos uns dos outros. E isso só é possível no interior de um espaço público, capaz de fornecer estímulos culturais.

Ao completar cinco anos, a cirurgia do palato teve de ser repetida. Nessa época, a consciência já tinha despertado e se agudizou certamente assumindo a forma de uma consciência da radical dependência de uns em relação aos outros. Em todo o caso, tal sensibilização surgida por ocasião da reflexão sobre a natureza social do homem conduziu-me aos princípios filosóficos que destacam a constituição intersubjetiva do espírito humano, ou seja: à tradição hermenêutica que remonta a Wilhelm von Humboldt, ao pragmatismo americano de Charles Sanders Pierce e de George Herbert Mead, à teoria das formas simbólicas, de Ernst Cassirer e à filosofia da linguagem, de Ludwig Wittgenstein.

A intuição da dependência recíproca profunda de cada um em relação aos outros articula-se em uma "imagem" da "posição do homem no mundo". E tais paradigmas determinam, de um lado, nossa autocompreensão cotidiana. Porém, eles também proporcionam, muitas vezes, as coordenadas para uma série inteira de disciplinas. Tenho ante os olhos a imagem de uma subjetividade a ser representada como se fora uma luva virada do avesso, a qual põe à mostra a estrutura de suas malhas tecidas com os fios da intersubjetividade. Porquanto o espírito subjetivo obtém sua estrutura e seu conteúdo a partir de um engate no espírito objetivo das relações intersubjetivas entre sujeitos que por natureza são socializados.

O homem singular não se defronta com seu entorno social na condição de um simples organismo do entorno natural - como um elemento interior que se delimita osmoticamente contra um mundo

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exterior estranho. A oposição abstrata entre sujeito e objeto, entre um "dentro" e um "fora", engana, porquanto o organismo do recém-nascido só consegue formar-se como homem mediante a assunção de interações sociais. Ele só se toma uma pessoa quando entra no espaço público de um mundo social que o espera de braços abertos. E tal elemento público de um interior, habitado em comum, isto é, do mundo da vida, é simultaneamente interior e exterior.

Por isso, a pessoa adolescente só consegue formar o centro interior de uma vida vivenciada de modo consciente à proporção que se aliena nas relações interpessoais criadas de modo comunicativo. A consciência, que apenas na aparência éprivada, continua a alimentar-se, mesmo nas exteriorizações de suas sensações pessoais e movimentos íntimos, dos fluxos da rede cultural de pensamentos públicos, expressos de modo simbólico e compartilhados intersubjetivamente. A atual retomada da imagem cartesiana das mônadas da consciência, pelas ciências da cognição, gera confusões, já que estas ciências as interpretam como mônadas fechadas recursivamente em si mesmas, as quais se encontram em uma relação opaca com o substrato orgânico de seu cérebro e de seu genoma.

Jamais consegui aceitar a idéia de que a autoconsciência constitui, por si mesma, um fenômeno originário. Ou não será verdade que nós somente nos tomamos conscientes de nós mesmos nos olhares que um outro lança sobre nós? Nos olhares de um "tu", de uma segunda pessoa que fala comigo como uma primeira pessoa, eu me tomo consciente de mim mesmo, não somente como um sujeito capaz de vivenciar coisas em geral, mas também, e ao mesmo tempo, como um "eu" individual. Os olhares subjetivadores do outro possuem uma força individuadora.

( 2 ) Minhas pesquisas tomam esse paradigma como fio condutor. O princípio da filosofia da linguagem e a teoria moral que desenvolvi nesta linha poderiam ter-se inspirado em duas experiências pelas quais passei durante a época da escola: (a) a de que os outros não me entendiam (b) e a de que não aceitavam tal fato.

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(a) Recordo-me bem das inúmeras dificuldades que sentia na sala de aula e nos intervalos entre as aulas ao tentar me fazer entender. Hoje em dia, tenho certeza de que a causa residia numa nasalização e numa articulação distorcida de que eu não tinha consciência. Para me afirmar num espaço até certo ponto anônimo, tive de ultrapassar os limites da família e da vizinhança familiar. Ora, comunicações mal-sucedidas chamam a atenção para a realidade de um mundo intermediário de símbolos que, de outra forma, seriam imperceptíveis e que não poderiam ser apreendidos na qualidade de objetos. Somente no fracasso se mostra o médium da comunicação lingüística como camada de uma comunhão sem a qual não podemos existir como indivíduos. Nós nos encontramos preliminarmente no elemento da linguagem. Somente os que falam podem calar. Nós podemos nos isolar porque somos ligados, naturalmente, com outros.

Não obstante, os filósofos nem sempre tiveram grande interesse por esta força da linguagem, capaz de criar uma comunhão. Desde Platão e Aristóteles, eles analisam a linguagem como médium da representação e investigam a forma lógica de proposições por meio das quais nos referimos a objetos e reproduzimos fatos. Não obstante isso, a linguagem existe, em primeira linha, para a comunicação, e por ela, qualquer um pode tomar posição perante as pretensões de validade de um outro lançando mão de um "sim" ou de um "não". Noutras palavras, nós necessitamos da linguagem, em primeiro lugar, para fins comunicativos; em segundo lugar a utilizamos para fins puramente cognitivos. A linguagem não é o espelho do mundo, uma vez que ela apenas nos franqueia um determinado acesso a ele. É certo que, ao dirigir nossos olhares ao mundo, ela o faz de um certo modo. Nela está inscrito algo que se parece com uma visão de mundo. Felizmente, tal saber preliminar que adquirimos junto com o aprendizado de uma determinada linguagem não está definido de uma vez por todas. Caso contrário, não poderíamos aprender nada de novo em nosso trato com o mundo e nos diálogos sobre ele. Ora, o que vale para as linguagens teóricas das ciências vale também no dia-a-dia: nós temos condições de corrigir o significado de predicados e de conceitos à luz de experiências que fazemos com o seu auxílio.

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Minha deficiência de linguagem também pode explicar, quiçá, por que eu sempre estive convencido da superioridade da palavra escrita. A forma escrita disfarça, talvez, a mácula da forma oral. Sempre avaliei meus estudantes mais pelos trabalhos escritos do que pela sua participação em discussões nos seminários, por mais inteligente que ela fosse. E, como podeis constatar, até o presente tenho receio de falar em público sem o apoio de um texto escrito, apesar das desvantagens que isso acarreta para meus ouvintes. Tal retirada para a forma precisa da expressão escrita pode ter-me estimulado a uma distinção teórica importante. No agir comunicativo nós nos comportamos, de uma certa forma, de modo ingênuo; ao passo que no discurso nós trocamos razões e argumentos a fim de examinar pretensões de validade que se tomaram problemáticas. E esse discurso tem por finalidade deixar vir à tona a "coação não-coativa" do melhor argumento.

(b) Tal concepção auxiliou-me na elaboração teórica de uma experiência de vida permeada de melindres provocados por discriminações mais ou menos inocentes que muitas crianças sofrem na escola ou na ma pelo fato de serem diferentes das outras. Nesse meio tempo, a globalização, o turismo em massa, a migração em escala mundial, bem como o crescente pluralismo das visões de mundo e das formas de vida culturais nos familiarizaram com tais experiências de exclusão de estranhos e de marginalização de minorias. Hoje em dia, cada um de nós é capaz de tecer uma imagem do que significa ser um estrangeiro no exterior, um estranho entre estranhos ou um outro para outros. Tais situações despeitam nossas sensibilidades morais. Já que a moral constitui um dispositivo de proteção para a extrema vulnerabilidade de indivíduos socializados comunicativamente - tecido com os meios da comunicação.

A proporção que a individuação avança para o interior, o indivíduo enreda-se, cada vez mais, e como se fosse de dentro para fora, em uma rede, cada vez mais densa e frágil, de relações de reconhecimento recíproco. Com isso, porém, ele se expõe aos riscos de uma reciprocidade negada. A moral do igual respeito por cada um

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pretende absorver tais riscos. Porquanto ela se coloca como objetivo precípuo eliminar a discriminação e incluir os marginalizados na rede da consideração recíproca. Ora, normas da convivência capazes de fundar solidariedade, até mesmo entre estranhos, dependem de um assentimento geral. Temos de aceitar entrar em discursos, a fim de desenvolver tais normas. Porque os discursos morais permitem a todos os atingidos tomar a palavra, de forma simétrica. Eles levam qualquer um dos participantes a adotar também a perspectiva do outro.

(3) Até o momento, discorri sobre motivos pessoais de minha infância. Convém destacar, outrossim, que a cesura de 1945 enriqueceu minha geração dotando-a de uma nova experiência, sem a qual eu talvez não tivesse me encaminhado à filosofia nem à teoria da sociedade. A sociedade e o regime de um dia-a-dia vivenciado mais ou menos como normal foram, da noite para o dia, desmascarados como patológicos e criminosos. Por isso, o confronto com a herança do passado nazista tornou-se um tema fundamental de minha vida política adulta. O interesse dirigido para o futuro, que tenta escapulir desse olhar sobre o passado, tem a ver com condições de vida que se subtraem da falsa alternativa entre "comunidade" e "sociedade". Eu sonho com aquilo que Brecht caracteriza como formas "amigáveis" de convivência que não desperdiçam o ganho em termos de diferenciação, obtido pelas sociedades modernas, nem renegam a dependência recíproca de sujeitos que andam de rosto erguido - e que precisam uns dos outros.

Poucos meses antes de completar dezesseis anos, a Segunda Guerra Mundial chegou ao fim. Minha adolescência - extremamente sensível e atenta - transcorreu durante os quatro anos que se passaram até a fundação da República Federal, em 1949, ou até o início de meus estudos, no verão do mesmo ano de 1949. Eu tive a "sorte de ter nascido mais tarde" - tive idade suficiente para acompanhar a virada histórica numa idade sensível à moral; era, porém, jovem demais para carregar o pesado fardo das circunstâncias políticas. Nós nem mesmo fomos soldados. Não houve necessidade de assumir responsabilidade por tomadas de partido falsas ou por erros políticos desastrosos. Após

as revelações sobre Auschwitz, tudo passou a ser interpretado a partir de uma dupla base. O que tínhamos vivenciado, no contexto de uma infância ou adolescência mais ou menos normais, passou a ser visto, a partir deste ponto, como um dia-a-dia à sombra de uma ruptura da civilização. Devido à minha idade, portanto, sem mérito algum de minha parte, tive a chance de poder aprender, sem reservas, com os processos de Nürnberg contra os criminosos de guerra - nós acompanhávamos esses processos pelo rádio. Apropriamo-nos da dist inção sugerida por Karl Jaspers entre culpa colet iva e responsabilidade coletiva.

Hoje em dia, esse hábito é analisado criticamente e está bem longe de ser considerado um mérito. O padrão de reação que encontramos entre nossos coetâneos liberais, entre os da direita e da esquerda, possui algo de coercitivo, típico da época. Naquele tempo, as noções de política e de moral, adquiridas sem nenhum dispêndio, tinham a ver com o revolucionamento do modo de pensar em geral -com a abertura cultural para o Ocidente. Durante a época do nazismo, nós, que não tivemos conhecimento da era Weimar, crescemos em um ambiente pesado e permeado de ressentimento, orientado ao monumentalismo, ao culto da morte e a um kitsch patriótico. Após 1945, abriram-se as portas para a arte do expressionismo, para Kafka, Thomas Mann e Hermann Hesse, para a literatura mundial anglo-saxã, para a filosofia contemporânea de Sartre e dos católicos franceses de esquerda, para Freud e para Marx, também para o pragmatismo de um John Dewey, cujos discípulos influenciaram, de modo decisivo, a reeducation. Além disso, o cinema contemporâneo trouxe mensagens excitantes. O espírito revolucionário da modernidade encontrou sua incorporação visual mais convincente no construtivismo de um Moridrian, nas formas geométricas frias da arquitetura da Bauhaus e no design industrial descompromissado.

A palavra mágica para mim era a "democracia", não o liberalismo anglo-saxão. As construções da tradição do direito da razão, às quais tive acesso, na época, pelo caminho de representações populares, tinham ligações com as promessas de emancipação e com o espírito de advento (Aufbruch) da modernidade. E isso contribuiu, ainda mais, para que nós, estudantes, nos sentíssemos isolados em um ambiente

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pós-guerra que não tinha perdido nenhuma de suas feições autoritárias. A continuidade das elites sociais e das estruturas preconceituosas de que Adenauer se serviu para conseguir a adesão à sua política era paralisante. Não tinha havido nenhuma ruptura, nenhum re-início pessoal e nenhuma mudança de mentalidade - nenhuma renovação moral e nenhuma transformação no modo de pensar político. Compartilhei meu profundo desapontamento político com minha mulher, que conheci durante a época dos estudos. Ainda durante os anos 50, fomos alvo de ataques da autocompreensão elitista e, ao mesmo tempo, anti-política da universidade alemã, bem como da ligação funesta entre nacionalismo e anti-semitismo burguês, a qual tinha desarmado intelectualmente, em 1933, nossos professores acadêmicos ou os colocara diretamente nos braços dos nazistas.

Em tal clima, minhas convicções políticas, que tendiam mais para a esquerda, quase não tinham conseguido estabelecer um contato com o meu estudo de filosofia. Filosofia e política - dois universos de pensamentos - permaneceram separadas durante um longo período de tempo. Entretanto, elas acabaram se chocando, num final de semana, no semestre de verão de 1953, quando meu amigo Karl-Otto Apel me colocou nas mãos um exemplar da Introdução à metafísica, de Heidegger, que acabara de ser impresso. Até esse momento, Heidegger tinha sido, mesmo que à distância, o mentor principal. Eu tinha lido Ser e tempo com os olhos de Kierkegaard. A ontologia fundamental continha uma ética que apelava, no meu entender, à consciência individual e à veracidade existencial do indivíduo. Não obstante isso, esse mesmo Heidegger publicara, sem retoque algum, os textos de aulas ministradas no ano de 1935. Ora, o vocabulário dessas aulas refletia o endeusamento do espírito do povo, o coletivismo que se expressa na expressão festiva do "nós" e o consolo "Schlageter"'. Inopinadamente, o "Dasein do povo" ocupara o lugar do "Dosem" do indivíduo. Passei imediatamente para o papel o meu espanto ante tal fato.

' Nota do trad.: Habermas refere-se aqui ao mito construído em torno de Albert Leo Schlageter, patriota alemão católico, executado em Düsseldorf, em 26 de maio de 1923, pelas tropas de ocupação francesas.

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O título do artigo, publicado num jornal, revela, apesar de tudo, que o seu autor era discípulo de Heidegger: "Pensar com Heidegger contra Heidegger". Hoje é possível inferir, a partir da escolha das citações, qual foi o elemento do texto de Heidegger que me deixou nervoso. Foram principalmente quatro coisas: A ligação fatal da conclamação heróica para o "poder criativo" com um culto da vítima - o "sim mais amplo e profundo para o declínio" (Untergang). A seguir, o que me irritou foram os preconceitos "platonistas" do mandarim alemão que desvalorizava a "inteligência" em favor do "espírito", a análise em favor do pensamento propriamente dito e que pretendia reservar a "uns poucos" a verdade esotérica. Também me incomodavam os afetos anticristãos e anti-ocidentais que eram dirigidos contra o universalismo igualitário da Aufklãrung. A gota d'água, no entanto, foi o fato de o filósofo nazista recusar a responsabilidade moral e política pelas conseqüências de uma criminalidade de massa sobre a qual poucas pessoas falavam, oito anos após o final da guerra. Na controvérsia que se seguiu, perdeu-se de vista a interpretação formulada por Heidegger para estilizar o fascismo transformando-o num "destino do ser" (Seinsgeschick) pessoal. Sabemos que ele tentou corrigir seu erro político - o qual trouxe inúmeras conseqüências - alegando ser simples reflexo de um engano que não poderia ser imputado à sua pessoa.

( 4 ) Nos anos seguintes, consegui reconhecer com maior clareza qual era o elemento que unia espíritos tal como Heidegger, Carl Schmitt, Emst Jünger ou Amold Gehlen. Todos eles alimentavam um desprezo pela massa e pelo que é mediano, passando a celebrar o excepcional, o escolhido, o indivíduo orientado pelo poder, e rejeitavam o palavreado, a esfera pública e o que não é verdadeiro em sentido próprio (Uneigentlich). O silenciar é contraposto ao diálogo, a ordem entre mando e obediência é contraposta à igualdade e à autodeterminação. Desta maneira, o pensamento jovem-conservador definiu-se por meio de uma oposição rude ao impulso democrático básico que nos estimulava desde o ano de 1945. Aos meus olhos, essa "síndrome de Weimar" tomou-se um ponto de referência negativo a

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partir do momento em que, após a conclusão de meus estudos, passei a elaborar teoricamente o desapontamento tomando como ponto de referência o processo tenaz e sempre ameaçado de democratização da Alemanha no pós-guerra. O temor de que houvesse um retrocesso político acompanhou-me até os anos 80 transformando-se num aguilhão para o trabalho científico - um trabalho que eu iniciara no final dos anos 50 ao publicar Mudança estrutural da esfera pública.

Na qualidade de assistente de Theodor W. Adorno, eu tinha-me transformado num colaborador do Instituto de Frankfurt para Pesquisa Social. A Teoria Crítica da Sociedade ofereceu-me uma perspectiva que permitia inserir no contexto mais amplo da modernização social os inícios da democracia americana, francesa e inglesa, bem como os impulsos fracassados da democracia na Alemanha. Naquela época, isto é, no final dos anos 50, a cultura política ainda não possuía entre nós raízes muito sólidas. Não havia garantias de que os princípios de uma ordem democrática, que de certa forma foram impostos a partir de fora, iriam deitar raízes nas cabeças e nos corações das pessoas. E certamente uma tal mudança de mentalidade não poderia acontecer de modo isolado. Tampouco poderia ser imposta administrativamente. Tal processo só poderia ser alavancado por uma formação vital e, dentro das possibilidades, pública e discursiva, da opinião.

Por isso, minha atenção teórica dirigiu-se para a esfera pública política. Sempre me interessei pelo fenômeno geral do "espaço público" que surge até mesmo em interações simples porque nele a intersubjetividade possui uma força misteriosa capaz de unir elementos distintos mantendo, mesmo assim, a sua identidade. A análise de espaços públicos permite decifrar estruturas da integração social. A constituição dos espaços públicos revela, de preferência, características anômicas da decomposição ou fraturas de uma socialização repressiva. Nas condições de sociedades modernas, a esfera pública política da comunidade democrática adquire um significado sintomático para a integração da sociedade. Porquanto as sociedades complexas só podem ser mantidas coesas normativamente por meio de uma solidariedade entre cidadãos, extremamente abstrata e mediada pelo direito. Entre cidadãos da sociedade que não podem mais conhecer-se pessoalmente,

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é possível criar e reproduzir uma comunhão fragmentária, através do processo de formação pública da opinião e da vontade. Já que é possível auscultar o estado de uma democracia sentindo as pulsações de sua esfera pública política.

Os professores não são, certamente, apenas cientistas que se envolvem em questões da esfera pública política na perspectiva de um observador. Eles são também cidadãos da sociedade. E eventualmente tomam parte na vida política de seu país na qualidade de intelectuais. Eu mesmo participei, durante os anos 50, do protesto pacífico da "Marcha da Páscoa"; e nos anos 60 tive que assumir uma posição pública ante o protesto dos estudantes. Nos anos 80 e 90 imiscuí-me em debates sobre a elaboração do passado nazista, sobre a desobediência civil, sobre o modo da reunificação, sobre a primeira guerra do Iraque, sobre a forma do direito de asilo político etc. Durante os últimos dez anos, a maioria de minhas tomadas de posição têm a ver com questões da União Européia e da bioética. Após a invasão do Iraque - contrária ao direito das nações - trabalho com a idéia de uma constelação pós-nacional tendo em vista o futuro do projeto kant iano envolvendo uma ordem de c idadania mundial (weltburgerlich). Estou mencionando tais atividades, já que pretendo deter-me, no final destas considerações, naquilo que consegui aprender sobre o papel do intelectual, levando em conta os meus erros e os erros de outros.

O intelectual deve fazer uso público do saber profissional que possui, por exemplo, na qualidade de filósofo, escritor, físico ou cientista social, independentemente de seus contratos pessoais ou de instâncias superiores. Sem deixar de lado sua imparcialidade, ele tem de manifestar-se à luz da consciência de sua falibilidade. Deve limitar-se a temas relevantes e fornecer informações objetivas, além de bons argumentos. Deve, por conseguinte, envidar esforços para melhorar o nível discursivo das controvérsias públicas, o qual é, ainda, lastimável. Há outros pontos de vista que dificultam a tarefa do intelectual. Ele trairá sua autoridade, nos dois sentidos, a partir do momento em que não conseguir mais separar, cuidadosamente, o seu papel profissional da sua função pública. Ele não pode utilizar, além disso, a influência

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que adquire mediante palavras para adquirir poder político, ou seja, ele não deve confundir "influência" com "poder". E uma vez instalados em cargos públicos, os intelectuais deixam de ser intelectuais.

Não é de admirar que, na maioria das vezes, nós fracassamos perante tais critérios; tal fato, porém, não invalida os critérios. Porquanto os intelectuais, que tantas vezes combateram os próprios intelectuais ou os declararam mortos, não podem permitir-se, sob hipótese alguma, o cinismo.

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2 . AGIR COMUNICATIVO E RAZÃO DESTRANSCENDENTALIZADA.

Ao amigo Tom McCarthy, por ocasião do seu sexagésimo aniversário.

No prefácio a Ideais and Illusions, Thomas McCarthy delineia contornos de dois tipos de crítica aos conceitos de razão, kantianos, cultivados a partir de Hegel; "On one side are those who, in the wakes of Nietzsche and Heidegger, attack Kantian conceptions of reason and the rational subject at their very roots; on the other side are those who, in the wakes of Hegel andMarx, recast them in socio-historical molds."[ As "idéias" mantêm, mesmo em suas formas pragmaticamente dessublimadas, a dupla função original. Elas continuam sendo utilizadas, de um lado, como norma da crítica. De outro lado, porém, são desmascaradas como foco de uma ilusão transcendental - ideais and illusions. McCarthy opõe-se, não somente a uma desconstrução iconoclasta, [...] mas também a um tipo de interpretação normativista que não se atreve a tocar nas ilusões da razão pura. Mesmo após a guinada pragmática, ele continua levando a sério as duas funções da razão, ou seja, tanto a função que coloca

1 MCCARTHY, T.A. Ideais and Illusions. Cambridge (Mass.), 1991, 2: "De um lado encontram-se os que seguem as pegadas de Nietzsche e de Heidegger, que os levam a acometer contra as concepções kantianas sobre a razão e o sujeito na sua própria origem; do outro lado estão os que tentam remodelá-las em dimensões sócio-históricas, seguindo o exemplo de Hegel e Marx".

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normas e possibilita a crítica, como a função camufladora, que desafia a autocrítica: "If we take a pragmatic turn, we can appreciate both aspects of the social-practical ideas of reason: their irreplaceable function in cooperative interaction and their potentialfor misuse."2

Em outra passagem, McCarthy fala em "análogos prático-sociais das idéias de razão, de Kant" (social-practical analogues of Kanls ideas of reason). Tal formulação tem a ver, propriamente, com três pressuposições pragmático-formais do agir comunicativo, correferidas entre si, formando aspectos de uma razão dessublimada, incorporada na prática comunicativa cotidiana. São elas: a suposição comum de um mundo objetivo, a racionalidade que sujeitos agentes se atribuem mutuamente e a validade incondicional que eles reivindicam para suas asserções em atos de fala. "The idealizations of rational accountabil-ity and real world objectivity both figure in our idealized notion of truth,for objectivity is the other side of the intersubjective validity of certain types oftruth claims"? Com isso, a tensão transcendental entre o ideal e o real, entre o reino do inteligível e o dos fenômenos emigra para a realidade social das instituições e das ações. McCarthy atribui grande importância a essa transformação da razão "pura" em razão "situada" e a contrapõe, a seguir, aos tipos de critica desestabili-zadora e desmascaradora que são desenvolvidos, seja no estilo objetivador, de Foucault, seja no estilo paradoxal, de Derrida (mesmo assim, McCarthy não se descuida da desconstrução das ilusões da razão que penetram até os capilares do discurso cotidiano).

A tarefa de "situar a razão" foi interpretada como "destranscen-dentalização" do sujeito cognoscente, a qual se realiza, seja na linha do pensamento histórico que vai de Dilthey até Heidegger, seja na

2 Ibid., p. 4: "À luz de uma guinada pragmática podemos avaliar dois aspectos das idéias prático-sociais da razão, a saber, sua função insubstituível na interação cooperativa e o seu potencial para um mau uso".

1 HOY, D. C. e MCCARTHY, T. A. Criticai Theory. Oxford, 1994, 39: "Tanto as idealizações de imputabilidade racional como a objetividade do mundo real figuram em nossa noção idealizada da verdade, pois a objetividade é o outro lado da validade intersubjeti va de certos tipos de pretensões de verdade".

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linha do pensamento pragmatista que vai de Peirce até Dewey (e, de uma certa maneira, até Wittgenstein). O sujeito finito encontra-se em "o mundo" sem perder inteiramente sua espontaneidade "capaz de gerar mundos". Até esse ponto, a controvérsia entre McCarthy e os discípulos de Heidegger, Dewey e Wittgenstein constitui uma briga de família na qual se discute para saber qual dos lados está realizando corretamente a destranscendentalização.4 Será que os vestígios de uma razão transcendente se perdem nas areias da contextualização e da historieização ou será que uma razão incorporada em contextos históricos consegue manter a força necessária para uma transcendência a partir dentro? Será que a cooperação entre sujeitos dotados da faculdade de aprender continua mantendo, no interior de seus respectivos mundos da vida, articulados de modo lingüístico, força para modificar, de modo racionalmente motivado, a interpretação do mundo? Será que a razão se encontra inteiramente à mercê do evento de uma linguagem que apenas franqueia mundos (welterschliessend) ou será que ela continua sendo, ao mesmo tempo, uma força capaz de mover mundos (weltbewegend)T

Ao menos um ponto é pacífico na disputa com os desconstrutivistas, a saber, o questionamento enquanto tal. Todavia, para os discípulos de Hume e, por conseguinte, para uma grande parte da filosofia analítica, a dialética entre linguagem desvendadora de mundos e processos de aprendizagem intramundanos nem sequer possui sentido. Ora, quando não aceitamos mais a idéia kantiana de uma razão "formadora de mundo" nem a concepção de uma razão cognitiva (Verstand) que "constitui" os objetos da experiência possível, não pode haver razões para se falar numa destranscendentalização da "consciência" de sujeitos agentes e cognoscentes; e há menos razões

4 Não é necessário retomar aqui uma briga dentro da briga em família. Cf. MCCARTHY, T. "Practical Discourse: On the Relation of Morality to Poli-ties", in: id. (1991), 181-199; MCCARTHY, T. "Legitimacy and Diversity", in: ROSENFELD, M. e ARATO, A. (eds.). Habermas on Law and Democracy. Berkeley, 1998, 115-153; minha resposta encontra-se, in ibid., 391-404.

5 HABERMAS, J. Wahrheit undRechtfertigung. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1999.

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ainda para uma controvérsia sobre os problemas derivados de uma tal correção. McCarthy defende a explicação lingüístico-pragmática do "modo de situar a razão" contra objeções desconstrutivistas. Tentarei enfrentar a incompreensão da filosofia analítica no tocante à questão do uso destranscendentalizado da razão.

Entretanto, não pretendo repetir os argumentos já conhecidos nem pleitear uma teoria do significado pragmático-formal seguindo um caminho direto.6 Já que as dificuldades de compreensão derivam do princípio, não dos detalhes. A própria semântica da verdade estabeleceu um nexo interno entre o significado e as condições de validade de asserções preparando assim o caminho para concepções de uma racionalidade incorporada na linguagem e na comunicação (Davidson, Dummett, Brandom). Em que pese isso, as indicações fornecidas por Kant e Hume para se tomar posição a favor ou contra uma análise nominalista das operações do espírito humano continuam sendo utilizadas, ainda hoje em dia, para orientar, sobre outros trilhos e em direções variadas, pensamentos estruturalmente semelhantes.

Se meu ponto de vista não for incorreto, a reformulação das "idéias" kantianas da razão pura, que se tornam pressupostos "idealizadores" do agir comunicativo, acarreta dificuldades de compreensão, especialmente no que tange ao papel fático das assunções contrafáticas pressupostas performativamente. Tais assunções revestem-se de um efeito operativo na estruturação de processos de entendimento (Verstündigung)' e na organização de contextos de ação:

"This (move) nas the effect of relocating the Kantian op-position between the real and the ideal within the domain of social practice. Cooperative interaction is seen to be structured

6 HABERMAS, J. On the Pragmatics ofCommunication. (tá). M. COOK, Cam-bridge (Mass), 1998. * Nota do trad.: é importante atentar para a diferença entre dois conceitos de

"entendimento", isto é, para o conceito de Verstand, de Kant, que se situa inteiramente no nível cognitivo da razão, e para o conceito de "entendimento" (Verstündigung), que é fundamental no pensamento habermasiano, e cujo sentido não é apenas cognitivo mas, também, comunicativo.

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around ideas of reason which are neither fully constitutive in the Platonic sense nor merely regulative in the Kantian sense. As idealizing suppositions we cannot avoid making while en-gaged in processes of mutual understanding, they are actually effective in organizing communication and the same time counterfactual in ways that point beyond the limits of actual situations. As a result, social-practical ideas of reason are both 'immanent' and 'transcendem' to practices constitutive offorms oflife."1

Na perspectiva da pragmática formal, a estrutura racional interna do agir orientado pelo entendimento reflete-se em suposições que os atores têm de conceber quando pretendem engajar-se nessa prática. O sentido de obrigatoriedade inerente a esse "ter de" precisa ser interpretado mais na linha de Wittgenstein do que na de Kant, ou seja, não pode mais ser compreendido no sentido transcendental de condições da experiência possível, gerais, necessárias e inteligíveis, devendo ser encarado no sentido gramatical de uma "inevitabilidade" que resulta de correlações conceituais internas de um sistema de comportamento prático conduzido por regras, o qual é, "ineludível para nós". Após a deflação pragmatista do princípio kantiano, a "análise transcendental" passa a significar uma investigação de condições supostamente gerais que, apenas de fato, são ineludíveis e que têm de ser satisfeitas a fim de que certas práticas ou realizações fundamentais possam acontecer. Nesse sentido, são tidas como "fundamentais" as

7 MCCARTHY (1994), 38: "Este (lance) tem como efeito a recolocação da oposição kantiana entre o ideal e o real no interior do domínio da prática social. A interação cooperativa é tida como estrutura em torno das idéias da razão que não são inteiramente constitutivas no sentido platônico nem meramente regulativas no sentido kantiano. Enquanto suposições idealiz.a-doras que não podemos deixar de efetuar enquanto estamos engajados em processos de entendimento, elas são atualmente efetivas na organização da comunicação e, ao mesmo tempo, contrafáticas porquanto apontam para além dos limites de situações atuais. Como resultado disso, as idéias sociais e práticas da razão são 'imanentes' às práticas que constituem as formas de vida e, ao mesmo tempo, 'transcendentes'."

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práticas para as quais não existem equivalentes funcionais no interior de nossas formas de vida culturais. É bem verdade que uma linguagem natural pode ser substituída por uma outra linguagem natural. No entanto, ainda não conseguimos pensar num substituto para uma linguagem diferençada em proposições enquanto tal (para a "faculdade da espécie") que pudesse preencher as mesmas funções. Gostaria de elucidar tal pensamento fundamental esclarecendo sua genealogia, a qual tem início em Kant.

Aqui não se trata de uma explicação sistemática do conceito "razão comunicativa",8 já que nos limitaremos a tratar apenas do seu contexto de surgimento. Abordarei as pressuposições idealizadoras, já citadas, que se exteriorizam, de modo performativo, no agir comunicativo, a saber: a suposição comum de um mundo de objetos que existem independentemente; a suposição recíproca da "imputabilidade" ou da racionalidade; a incondicionalidade de pretensões de validade, tal como a verdade e a correção moral, que ultrapassam os contextos; e as pressuposições exigentes da argumentação que obrigam, de certa forma, os participantes a uma descentração de suas perspectivas de interpretação. Emprego o termo "pressuposições" porque se trata de condições a serem satisfeitas a fim de que o condicionado se revista de um determinado valor: atos de referência podem falhar ou ser bem-sucedidos, mas para isso é necessário um sistema de referências; os participantes de uma comunicação podem entender-se mutuamente ou continuar vítimas de um mal-entendido, o que, porém, só é possível quando se supõe a racionalidade; se as asserções que num determinado contexto são caracterizadas como "verdadeiras" pudessem vir a perder tal característica em um outro, então a correspondente pretensão de verdade não poderia mais ser questionada em nenhum contexto; e se não houvesse uma situação de comunicação que promete fazer jus à coação não-coativa do melhor argumento, os argumentos não poderiam contar, nem a favor nem

" " A B . E R M A S , J. "Rationalitàt der Verstãndigung. Sprechakttheoretische 102U137U n g e n B e g r i f f ^ k o m m u n i k a t i v e n Rationalitàt", in: id., (1999),

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contra. Ainda teremos ocasião de analisar o conteúdo "ideal" de tais pressuposições.

Em todo o caso, é preciso levar em conta que existe um parentesco entre essas pressuposições e os conceitos kantianos. Já que é possível supor um elo genealógico:

- (1) entre a "idéia" cosmológica da unidade do mundo (ou da totalidade das condições do mundo dos sentidos) e a suposição pragmática de um mundo objetivo comum;

- ( 2 ) entre a "idéia de liberdade" como um postulado da razão prática e a suposição pragmática da racionalidade de atores imputáveis;

- ( 3 ) entre o movimento totalizador da razão que - enquanto "faculdade das idéias" - transcende tudo o que é condicionado reportando-se a um incondicionado, e a incondicionalidade das pretensões de validade levantadas no agir comunicativo;

- (4) finalmente, entre a razão como a "faculdade dos princípios", a qual assume o papel de um "tribunal superior de todos os direitos e pretensões", e o discurso racional enquanto fórum ineludível das justificações possíveis.

Pretendo, na primeira parte, aprofundar a história desses conceitos (1-4). Certamente não é possível traduzir, sem rupturas, as idéias de uma razão pura, formuladas na linguagem de uma filosofia transcendental, para a linguagem de uma pragmática formal. A formulação de "analogias" está longe de conseguir realizar tal façanha. Os pares de conceitos kantianos opostos tal como (constitutivo versus regulativo, transcendental versus empírico, imanente versus transcendente, etc.) perdem sua nitidez crítica quando se tenta destranscendentalisá-los porque isso significa um corte profundo na arquitetura das concepções básicas. Em que pese isso, é possível descobrir, à luz desses elos genealógicos, os caminhos entrecruzados através dos quais a filosofia analítica da linguagem perambula quando recusa a herança das idéias

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da razão, de Kant. Apesar disso, tentarei mostrar, na segunda parte, que ela consegue chegar, mesmo assim, a descrições normativas da prática da linguagem semelhantes às da pragmática formal, a qual se apoia mais fortemente em Kant. Tomando como ponto de partida a crítica ao psicologismo, elaborada por Frege (5), perseguirei a linha analítica da discussão tomando como ponto de referência o "princípio de caridade", elaborado por Davidson (6), a crítica de Dummett à recepção de Wittgenstein (7), bem como a teoria de Brandom que concebe o entendimento (Verstündigung) como uma troca discursiva de argumentos (8).

(1) Kant computa entre as idéias teóricas da razão, não somente as idéias de unidade do sujeito pensante e de Deus como origem unitária das condições de todos os objetos do pensamento, mas também a idéia cosmológica da unidade do mundo. E ao caracterizar tal idéia, que tem função heurística para o progresso do conhecimento empírico, ele menciona um uso "hipotético" da razão. A antecipação totalizadora do universo dos objetos da experiência possível possui uma função, que tem muito mais a ver com a condução do conhecimento do que com a sua viabilização. O conhecimento empírico é a "pedra de toque da verdade", ao passo a idéia cosmológica desempenha a função de um princípio metodológico da completude; ela aponta para o objetivo de uma unidade sistemática dos conhecimentos do entendimento. Diferentemente das categorias constitutivas do entendimento e das formas de (observação), a "unidade do mundo" é uma idéia reguladora.

A proporção que faz uso constitutivo tal idéia reguladora, o pensamento metafísico recai na ilusão dialética de uma ordem do mundo hipostasiada. Além disso, o uso reificador da razão teórica confunde o projeto construtivo de um focus imaginarius para o andamento da pesquisa com a constituição de um objeto acessível à experiência. A esse uso "apodítico" da razão, que é exageradamente efusivo, corresponde o uso "transcendente" que ultrapassa os limites da experiência possível. Tal ultrapassagem de limites conduz a uma assimilação indevida do conceito de "mundo" - como totalidade de todos os objetos experimentáveis - ao conceito de um objeto em

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formato superdimensionado capaz de representar o mundo como tal. A diferença entre "mundo" (Welt) e "intramundano" (Innerweltliches), reclamada por Kant, precisa ser mantida, mesmo depois que o sujeito transcendental perde a posição que o mantinha além do espaço e do tempo e se transforma em inúmeros sujeitos providos da faculdade de falar e de agir.

A destranscendentalização leva, de um lado, à inserção de sujeitos socializados em contextos do mundo da vida; de outro lado, ao entrecruzamento da cognição com o falar e o agir. Por isso, o conceito de "mundo" modifica-se junto com a arquitetura da teoria. Vou explicar, em primeiro lugar, como deve ser entendida, na pragmática formal, a "suposição de um mundo" (a); a seguir, chamarei a atenção para algumas conseqüências importantes, especialmente: a dissolução do idealismo transcendental operada por um realismo interno (b); a função regulativa do conceito de verdade (c), e a inserção das relações com mundos em contextos do mundo da vida (d).

(a) A partir do momento em que, em uma comunicação recíproca, sujeitos providos da faculdade de falar e de agir desejam entender-se "sobre algo" ou pretendem arranjar-se "com algo" no trato prático, têm de poder "referir-se", a partir do horizonte de seu respectivo mundo da vida compartilhado, "a algo" no mundo objetivo. Para poder referir-se a algo, seja na comunicação sobre estados de coisas ou no trato prático com pessoas e objetos, eles têm de tomar como ponto de partida uma pressuposição pragmática - cada um para si, porém em consonância com todos os outros. Eles supõem "o mundo" como uma totalidade dos objetos que existem independentemente, os quais podem ser manipulados e examinados. São "examináveis" todos os objetos dos quais é possível afirmar fatos. Convém lembrar que somente objetos identificáveis no espaço e no tempo podem ser "tratados" no sentido de uma manipulação teleológica.

A "objetividade" do mundo tem de ser interpretada no sentido de que ela nos é dada como um "mundo" que é idêntico para todos. Ora, o que nos leva à suposição pragmática de um mundo objetivo comum é a prática da linguagem - especialmente a utilização dos

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termos singulares. E o sistema de referência embutido em linguagens naturais garante, para qualquer tipo de falante, a antecipação formal de possíveis objetos de referência. Pelo caminho dessa suposição formal de mundos, a comunicação sobre algo no mundo se entrecruza com intervenções práticas no mundo. Para falantes e atores, o mundo objetivo sobre o qual eles se entendem e no qual podem intervir, é o mesmo. Para a garantia das referências semânticas, é importante que os falantes possam, enquanto atores, estar em contato com objetos do trato prático e possam retomar tais contatos.9

A concepção da suposição de um mundo repousa, do mesmo modo que a idéia da razão cosmológica, de Kant, sobre a diferença transcendenta l entre " m u n d o " {Welt) e " in t ramundano" (lnnerweltlich.es) que reaparece em Heidegger como diferença ontológica entre "ser" (Sein) e "ente" (Seiendes). O mundo objetivo, suposto por nós, é diferente daquilo que, conforme tal suposição, pode aparecer como objeto (na forma de estado, coisa ou evento). De outro lado, tal concepção não se encaixa mais nos conceitos kantianos, opostos. A partir do desarme das categorias a priori da razão cognitiva (Verstand) e das formas de intuição, a distinção clássica entre razão e cognição torna-se menos nítida. Salta aos olhos que a suposição pragmática de um mundo não é uma idéia reguladora, porquanto ela é "constitutiva" para a referência a tudo aquilo do qual é possível constatar fatos. E nesse ponto, o conceito de mundo torna-se tão formal, a ponto de o sistema para possíveis referências não prejulgar determinações conceituais para objetos em geral. Todas as tentativas visando a reconstrução de um a priori de sentido material para possíveis objetos de referência fracassaram.10

(b) Nesta perspectiva a própria distinção entre fenômeno e "coisa-em-si" perde sentido. A partir de agora, experiências e juízos estão

9 Sobre a correspondente teoria da referência, de Putnam cf. MUELLER A Referenz und Fallibilismus. Berlim, 2004

10 SN°tbnnÍTdÍuUrâ0 d 3 S P C S q U Í S a S d e P e t e r S t r a w s o n s o b r e e s t e ^ma cf, i N i y U b l , M. Transzendentale Argumente. Frankfurt/M., 1991, cap. 4 e 5.

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retro-ligados a uma prática destinada a intervir na realidade. Por intermédio do agir destinado a resolver problemas, controlado pelo sucesso, eles estão em contato com uma realidade que sempre surpreende, a qual é capaz de se opor às nossas intervenções ou de "colaborar". De um ponto de vista ontológico, o idealismo transcendental que concebe a totalidade dos objetos experimentáveis como um mundo "para nós", isto é, como um mundo que aparece, é substituído por um realismo interno. Segundo este, é "real" tudo aquilo que pode ser representado em asserções verdadeiras, apesar de os fatos serem representados numa linguagem que é respectivamente "nossa" linguagem. O mundo não nos impõe "sua" linguagem; ele não falae só "responde" num sentido figurado." Caracterizamos como "real" a persistência dos estados de coisas asseverados. No entanto, tal "sentido veritativo" dos fatos não pode - de acordo com um modelo de representação do conhecimento - ser representado como realidade copiada que é, a seguir, equiparada à "existência" de objetos.

Constatações de fatos não podem apagar completamente, seja o sentido operativo dos processos de aprendizagem, seja as soluções de problemas, seja as justificações dos quais resultam. Por isso, é recomendável seguir o conselho de Charles Sanders Pierce e distinguir entre a "realidade" representada na linguagem e aquilo que temos de enfrentar, no trato prático, como "existência" experimentada como resistência em mundo repleto de riscos. Em proposições verdadeiras, a "relutância" ou "anuência" dos objetos designados já está processada. De forma que, na resistência dos estados de coisas faz-se valer, de modo indireto, também a "existência" de objetos renitentes (ou a facticidade de circunstâncias que podem causar surpresas). No entanto, esse "mundo" que supomos ser a totalidade dos objetos, não dos fatos, não pode ser confundido com a "realidade" que consiste em tudo aquilo que pode ser representado em asserções verdadeiras.

11 Sobre o "realismo interno", de Hilary Putnam cf. HABERMAS, J. "Werte und Normen. Ein Commentar zu Hilary Putnams Kantischem Pragmatismus", in: id., Wharheit und Rechtfertigung (edição de bolso ampliada), Frankfurt/ M.: Suhrkamp, 2004.

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(c) Os conceitos de "mundo" e de "realidade" expressam totalidades; porém, somente o conceito de realidade pode ser colocado lado a lado com as idéias reguladoras da razão, dada sua relação interna com o conceito de verdade. O conceito peirceano de realidade (como a totalidade dos fatos constatáveis) constitui uma idéia reguladora no sentido de Kant, porquanto ele obriga a constatação de fatos a orientar-se pela verdade que, por seu turno, desempenha uma função regulativa. Para Kant, a "verdade" não é uma idéia nem se conecta a idéias da razão porque as condições transcendentais da objetividade da experiência devem esclarecer simultaneamente a verdade do juízo da experiência: "Para Kant, a questão [...] relativa às condições de possibilidade da constituição de objetos, isto é, da constituição do sentido da objetividade, era idêntica à questão [...] relativa às condições de possibilidade da validade intersubjetiva do conhecimento verdadeiro."12 K.-O Apel contrapõe a isso uma distinção entre o "a priori da experiência", interpretado de modo pragmático, o qual determina o sentido dos objetos da experiência possível, e as condições da justificação argumentativa de afirmações sobre tais objetos.

Peirce tentou explicar a "verdade" nos conceitos epistêmicos de um progresso do conhecimento orientado pela verdade. Ele determina o sentido de verdade pela antecipação do consenso ao qual têm de chegar, sob condições ideais, todos os que participam do processo de pesquisa, que é autocorretivo.13 A "comunidade de investigadores", destituída idealmente de limites, constitui o fórum para o "tribunal superior" da razão. E possível aduzir bons argumentos contra tal

12 APEL, K.-O. "Sinnkonstitution und Geltungsrechtfertigung", in: Fórum für Philosophie (ed.). Martin Heidegger: Innen - und Aussenansichten. Frankfurt/M., 1989, 134.

13 PEIRCE, Ch. S. Collected Papers, vol. VAT (1934), 268: "The opinion which is fated to be ultimately agreed to by ali who invesligate, is what we mean by the truth, and the object represented in this opinion is the real" (5.407) (A opinião destinada a ser consensual em última instância entre os que investigam é o que entendemos por verdade e o objeto representado nesta opinião é o real). Cf. sobre isso APEL, K.-O. Der Denkweg von Cliarles S. Peirce. Frankfurt/M., 1975.

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"epistemização" do conceito de verdade, a qual assimila "verdade" a "afirmabilidade idealmente justificada".14 Não obstante, a orientação pela verdade assume, enquanto "característica inalienável" de afirmações, uma função regulativa indispensável para processos de justificação falíveis, em princípio, mesmo que tais processos consigam apenas levar a uma decisão sobre a aceitabilidade racional de afirmações, não à sua verdade.15

A advertência de Kant contra um uso apodítico da razão ou um uso transcendente da faculdade cognitiva continua inalterada após uma destranscendentalização que liga o conhecimento objetivo a uma justificação discursiva como "pedra de toque da verdade". A partir daí, não é mais a sensibilidade nem a cognição que definem a fronteira que separa o uso transcendental da nossa faculdade de conhecimento do seu uso transcendente: entra no seu lugar o fórum dos discursos racionais nos quais bons argumentos podem desenvolver sua força de convencimento.

(d) De certa maneira, a diferença entre verdade e aceitabilidade racional coloca-se no lugar da diferença entre fenômeno e "coisa em si". Kant não conseguiu superar tal fosso nem mesmo lançando mão da idéia reguladora da unidade do mundo porque a heurística que cria üm acabamento para todos os conhecimentos condicionados não consegue retirar a faculdade cognitiva (Verstand) do reino dos fenômenos. Mesmo após a destranscendentalização do sujeito cognoscente, remanesce um vácuo entre aquilo que é verdadeiro e aquilo que é justificado para nós ou que é racionalmente aceitável. Não é possível preencher completamente tal vácuo no âmbito de discursos; porém, é possível superá-lo pragmaticamente por meio de uma passagem, motivada racionalmente, do discurso para o agir. Uma vez que os discursos permanecem enraizados no mundo da vida, existe

14 Cf. a crítica ao conceito discursivo de verdade in: WELLMER, A. Elhik und Dialog. Frankfurt/M., 1986, 51 ss.; LAFONT, C. The LinguisticTurn in Hermeneutic Philosophy. Cambridge (Mass.), 1999, 283 ss.

I? HABERMAS, J. "Wahrheit und Rechtfertigung. Zu Richard Rortys pragmatischer Wende", in: id. (1999), 283 ss.

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um nexo interno entre os dois papéis que a idéia da orientação pela verdade assume aqui e lá - nas figuras de certezas de ação e em pretensões de validade hipotéticas.16

Em que pese isso, a função regulativa da orientação pela verdade, apoiada na suposição do mundo objetivo, dirige os processos fáticos de justificação rumo a um alvo que, de certa forma, transforma o tribunal superior da razão em algo móvel. Na esteira da destranscendentalização, as idéias teóricas da razão saem, de certa forma, do mundo estático do inteligível e passam a desenvolver sua dinâmica no interior do mundo da vida. Kant nos lembra que do mundo inteligível nós temos apenas uma "idéia", não um "conhecimento". Após a transposição da idéia cosmológica para a suposição de um mundo objetivo comum, a orientação por pretensões de validade, incondicionais, libera os recursos do mundo, outrora inteligível, para a aquisição de conhecimentos empíricos. E o abandono das acepções lógico-transcendentais transforma as idéias da razão em idealizações levadas a cabo por sujeitos providos da faculdade de falar e agir. O "ideal", elevado à condição de reino do além e calcificado, transforma-se em operações no aquém, ou seja, é retirado do estado transcendente e transposto para a realização de uma "transcendência a partir de dentro". Porquanto, na disputa discursiva pela interpretação correta daquilo que nos cerca no mundo, os contextos de mundos da vida que se alteram constantemente têm de ser superados "a partir de dentro".

Os sujeitos providos da faculdade de falar e agir não são capazes de se dirigir a "algo no interior do mundo" (intramundano), a não ser a partir do horizonte do seu respectivo mundo da vida. Não existem relações com o mundo que sejam totalmente isentas de contexto. Heidegger e Wittgenstein demonstraram, cada um a seu modo, que a consciência transcendental de objetos alimenta-se de falsas abstrações.17 As práticas lingüísticas e os contextos do mundo da vida,

16 HABERMAS, J. (1999), 48 ss., 261 ss., 291 ss. 17 Sobre a "hermenêutica do ser-no-mundo, que desde sempre é interpretado

linguisticamente", cf. APEL, K.-O. "Wittgenstein und Heidegger" in-MCGUINNESS et ali. Der Lôwe Spricht... und wir konnen ihn nicht verstehen. Frankfurt/M., 1991, 27-68.

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nos quais os sujeitos socializados se encontram, "desde sempre", franqueiam o mundo nas perspectivas de costumes e tradições fundadoras de sentido. Tudo o que os membros de uma comunidade local de linguagem detectam no mundo, não é experimentado como objeto neutro, já que tal experiência acontece à luz de uma pré-compreensão gramatical já exercitada. A mediação lingüística da relação com o mundo explica a retroligação da objetividade do mundo - suposta no falar e no agir - à intersubjetividade de um entendimento entre participantes de uma comunicação. O fato que eu assevero de um objeto tem de ser afirmado e eventualmente justificado perante outros, que podem eventualmente contradizer. A necessidade de interpretação surge pelo fato de nós não podermos prescindir da linguagem que franqueia o mundo, nem mesmo quando a utilizamos num sentido descritivo.

Tais problemas de tradução lançam nova luz sobre a estrutura emaranhada dos contextos do mundo da vida. Eles não fornecem, porém, nenhum argumento para o teorema da incomensurabilidade.18 Os participantes da comunicação podem entender-se, além das fronteiras de mundos da vida divergente, porque eles, com o olhar voltado para um mundo objetivo comum, orientam-se pela pretensão de verdade, isto é, pela validade incondicional de suas afirmações. Ainda retomarei esse tema da orientação pela verdade.

( 2 ) A idéia cosmológica da unidade do mundo ramifica-se, de um lado, na suposição pragmática de um mundo objetivo tido como uma totalidade dos objetos e, de outro lado, na orientação por uma realidade concebida como totalidade dos fatos. Ora, nas relações interpessoais entre sujeitos prendados com a faculdade de falar e agir e que cobram posicionamentos, uns dos outros, nós topamos com outros tipos de idealização. No trato recíproco e cooperativo, eles têm de supor a racionalidade, pelo menos até um momento ulterior. E

18 BERNSTEIN, Richard F. Beyond Objectivism and Relativism. Philadelphia, 1983.

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pode ser que, sob circunstâncias especiais, se comprove que essa suposição era injustificada. É possível que, contra todas as expectativas, o outro não seja capaz de fornecer uma justificativa adequada para suas exteriorizações e ações e que nós não consigamos enxergár nenhum argumento que justifique seu comportamento. No contexto do agir orientado pelo entendimento, tal desapontamento só pode manifestar-se à luz de uma suposição de racionalidade que nós temos de fazer sempre que adotamos o agir comunicativo. Tal suposição significa que um sujeito, ao agir intencionalmente, encontra-se em condições de apresentar um argumento mais ou menos plausível capaz de explicar, em circunstâncias favoráveis, por que ele (ou eles) agiu desta ou daquela maneira ou por que ele (ou eles) deixou de reagir. Exteriorizações incompreensíveis, curiosas, bizarras ou enigmáticas provocam interesse em informação porque elas contradizem implicitamente uma suposição inevitável no agir comunicativo desencadeando, por isso, irritações.

Quem não é capaz de assumir a responsabilidade por suas exteriorizações e ações perante outros levanta a suspeita de não ter agido "de modo responsável". O próprio juiz criminal, ao levantar a suspeita de um delito, constata primeiro a possibilidade de o acusado ser culpado. Além disso, ele examina a possibilidade de haver argumentos eximidores. Para o julgamento de um crime ser considerado eqüitativo, temos de saber antes se o assassino era imputável e se o delito não deve ser atribuído, antes, às circunstâncias do que ao próprio agente. Razões eximidoras confirmam a suposição de racionalidade da qual partimos, não somente nos procedimentos judiciários, mas também no dia-a-dia, nas nossas relações com outros atores. O exemplo do discurso jurídico também se presta muito bem para uma comparação entre a suposição pragmática da capacidade de imputação e a idéia de liberdade, de Kant.

Até o presente momento, consideramos a razão "no seu uso teórico" como "a faculdade de julgar conforme princípios". A razão torna-se "prática" à medida que determina o querer e o agir conforme princípios. E a idéia de liberdade adquire, sobretudo por meio da lei moral, expressa no imperativo categórico, uma "causalidade própria", 4 6

a saber, a força racionalmente motivadora de bons argumentos. A liberdade constitui uma "exigência irrecusável da razão prática", constitutiva para o agir. Distingue-se, pois, das idéias teóricas da razão, que apenas regulam o uso da faculdade cognitiva. Sem dúvida alguma, podemos também e a qualquer momento, observar ações sob categorias do comportamento observável tomando-as como fenômenos determinados por leis naturais. No entanto, numa intenção prática, nós temos de referir as ações a argumentos que poderiam ter levado um sujeito racional a realizá-las. A "intenção prática" significa uma mudança de perspectiva: quando supomos racionalidade, nós adotamos um tipo de julgamento normativo que seguimos no próprio agir comunicativo.

É bem verdade que os argumentos relevantes para a "liberdade" (no sentido kantiano) formam apenas um recorte do amplo espetro de argumentos que teriam condições de comprovar a capacidade de imputação de sujeitos que agem comunicativamente. Kant determina a liberdade como a faculdade um ator capaz de ligar sua vontade a máximas, isto é, de orientar seu agir por regras das quais ele possui o conceito. Desta forma, dependendo da inclinação ou do fim escolhido subjetivamente, a "liberdade de arbítrio" nos coloca em condições de adotar regras de prudência (Klugheit) ou de habi l idade (Geschicklichkeit); ao passo que a "vontade livre" segue leis universalmente válidas que ela se dá a si mesma por compreensão perspicaz (aus Einsicht), de um ponto de vista moral. A liberdade de arbítrio precede a vontade livre; permanece, no entanto, subordinada a ela no que se refere ao estabelecimento de fins. Por conseguinte, Kant limita-se à formulação de argumentos prático-técnicos e prático-morais. O agir comunicativo, no entanto, coloca em jogo um espectro de argumentos mais amplo: argumentos epistêmicos para discutir a verdade de afirmações; pontos de vista éticos para avaliar a autenticidade de uma decisão vital; indicadores para detectar a sinceridade de confissões, de experiências estéticas, de explicações narrativas, de padrões culturais valorativos, de pretensões de direito, de convenções, etc. A capacidade de imputação não se mede apenas pelos padrões da moralidade e da racionalidade teleológica. Ela

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tampouco constitui tarefa exclusiva da razão prática, uma vez que consiste, de modo geral, na capacidade que um ator possui de orientar seu agir por pretensões de validade.19

Segundo Kant, a liberdade destaca-se entre as idéias práticas da razão porque podemos compreender a priori a possibilidade de sua realização, o que não acontece com as outras idéias. Por isso, tal idéia adquire, para todo ser racional, força "legisladora". Ela é visualizada mediante o ideal de um "reino dos fins" ao qual se ligam, sob leis sociais, todos os seres racionais, de tal sorte que eles jamais podem tratar-se apenas como meios, já que constituem fins em si mesmos. Nesse reino, toda pessoa é "legisladora em geral, porém, ao mesmo tempo, sujeita a essas leis". Temos uma compreensão a priori desse modelo de autolegislação, cujo significado é duplo: De um lado, ela possui o sentido categórico de uma obrigação (Verpflichtung) que consiste na realização do reino dos fins por meio das próprias realizações e omissões. De outro lado, o sentido transcendental de uma certeza (a de que esse reino pode ser promovido mediante nosso fazer e deixar de fazer moral). Podemos saber a priori que é possível uma realização dessa idéia prática.

Sob o primeiro aspecto, a comparação entre a idéia da liberdade e a suposição da racionalidade no agir comunicativo não é muito produtiva. Já que a racionalidade não constitui uma obrigação. No próprio contexto do comportamento moral ou legal, o sentido da suposição da racionalidade não consiste no fato de que o outro se sente obrigado a obedecer a normas; só se imputa a ele um saber sobre o que significa agir de forma autônoma. O segundo aspecto da comparação, no entanto, é mais fecundo porque aqui a idéia de liberdade nos proporciona a certeza de que o agir autônomo (e a realização do reino dos fins) épossível - não havendo necessidade de ela nos ser atribuída contrafaticamente. Na visão de Kant, os seres racionais entendem-se como atores que agem impulsionados por bons argumentos. No tocante ao agir moral, eles possuem um saber a priori

" HABERMAS, J. Faktizitat und Geltung. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1992, 19.

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sobre a possibilidade de realização da idéia de liberdade. Na atividade comunicativa, nós também tomamos como ponto de partida a idéia de que todos os participantes são atores capazes de imputação. Está incluída na autocompreensão de sujeitos que agem comunicati vãmente a capacidade de posicionar-se, por motivos racionais, quanto a pretensões de validade; qualquer ator supõe que o outro ator age de fato levado por razões a serem justificadas racionalmente.

As ciências sociais e as pesquisas psicológicas sobre o comportamento demonstram que tal "saber" performativo, que conduz a execução da ação, é altamente problemático. Na prática cotidiana, nós mesmos somos, ao mesmo tempo, participantes e observadores podendo constatar que muitas exteriorizações não têm como motivo bons argumentos. Sob este ângulo empírico, a imputabilidade daquele que age comunicativamente não passa de uma suposição contrafática semelhante à da idéia kantiana da liberdade. O curioso, no entanto, é que, aos olhos dos próprios sujeitos, tais conhecimentos perdem seu caráter contraditório durante a execução da ação. O contraste entre o saber objetivo do observador e o saber da ação, de que se lança mão de modo performativo, perde seu efeito in actu. O estudante de sociologia aprende, já no primeiro semestre, que todas as normas valem contrafaticamente, mesmo que sejam obedecidas apenas por um determinado número de pessoas porque, no entender do observador sociológico, os casos estatisticamente comprovados de possíveis comportamentos desviantes já são contemplados pelas normas vigentes.20 No entanto, o conhecimento desse fato não impedirá nenhum destinatário de aceitar e de seguir uma norma reconhecida como válida na comunidade.

Quem age moralmente não se arroga apenas uma autonomia "mais ou menos"; e no agir comunicativo, os participantes não se atribuem ora "um pouco mais" de racionalidade e ora "um pouco menos". Já que, na perspectiva de participantes, tais conceitos são

20 Tal consideração já se encontra em DURKHEIM, E. Die Regeln der soziologischen Methode (1895), Frankfurt/M., 1992,18.

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codificados de modo binário. Tão logo nós passamos a agir por "respeito à lei" ou "orientados pelo entendimento mútuo", não podemos mais agir, ao mesmo tempo, na perspectiva objetivadora de um observador. Durante a realização da ação, nós excluímos autodescrições empíricas, as quais cedem o lugar à autocompreensão racional de atores. Não obstante isso, a suposição de racionalidade constitui uma assunção refutável, não um saber a priori. Ela "funciona" como uma pressuposição pragmática, comprovada de muitas maneiras, sendo constitutiva para o agir comunicativo em geral. No entanto, ela pode não funcionar em um determinado caso singular. Essa diferença no status do saber da ação não se explica apenas pela destranscendentalização do sujeito agente, que foi retirado do reino dos seres inteligíveis e colocado no mundo da vida de sujeitos socializados, que se articulam por intermédio da linguagem. A mudança de paradigma implica uma transformação completa do modo de análise.

No quadro concei tuai mental ista, Kant entende a autocompreensão racional de atores como um saber da pessoa a respeito de si mesma; a seguir, ele contrapõe tal saber da primeira pessoa ao saber de um observador na terceira pessoa. Entre ambos, existe uma diferença de nível transcendental, de tal forma que a autocompreensão de um sujeito inteligível não pode ser corrigida, no fundo, por meio de um saber de mundo. De outro lado, na qualidade de falantes e destinatários, os sujeitos que agem comunicativamente encontram-se no papel de primeiras e segundas pessoas, isto é, literalmente, no mesmo nível. Eles assumem uma relação interpessoal à proporção que se entendem sobre algo no mundo objetivo e enquanto assumem a mesma referência ao mundo. Nesse enfoque performativo recíproco, eles também fazem, ao mesmo tempo e ante o pano de fundo de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente, experiências comunicativas uns com os outros. Eles entendem o que o outro diz ou pensa. Eles aprendem com as informações e objeções do oponente e tiram suas conclusões da ironia ou do silêncio, das exteriorizações, alusões etc. A incompreensibilidade de um comportamento opaco ou o colapso da comunicação constitui uma experiência comunicativa de tipo reflexivo. Nesse nível, uma suposição de

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racionalidade pode ser refutada indiretamente, porém, não desmentida enquanto tal.

Parece que tal tipo de refutabilidade não vale para as idealizações das quais se parte no âmbito da cognição, mesmo que elas tenham a mesma forma de uma suposição pragmática. A suposição de um mundo objetivo, comum, delineia um sistema de possíveis referências ao mundo tornando possíveis, por este caminho, intervenções no mundo e interpretações de algo no mundo. A suposição de um mundo objetivo comum é necessariamente "transcendental" no sentido de que ela não pode ser corrigida por meio de experiências que, sem ela, não poderiam acontecer. Os conteúdos descritivos de caracterizações dependem naturalmente de revisões fundamentadas. O mesmo, porém, não pode ser aplicado ao esboço formal de uma totalidade de objetos identificáveis em geral - pelo menos enquanto nossas formas de vida forem configuradas pelas linguagens naturais históricas conhecidas, as quais são construídas de modo proposicional. O máximo que podemos descobrir a posteriori é que o esboço não foi suficientemente formal. As suposições "inevitáveis", no entanto, são "constitutivas", tanto para práticas como para domínios de objetos, porém, não no mesmo sentido.

Para um comportamento conduzido por regras, as regras constituidoras abrem sempre uma alternativa entre a obediência à regra e a infração da regra. Além disso, existe basicamente a alternativa enüe ser capaz de (Kõnnen) e não ser capaz de (Nichtkõnnen). Quem não domina as regras de um jogo, não consegue cometer erros, mas também não pode jogar. Isso se manifesta no decorrer da prática. Durante o agir comunicativo, é possível constatar que quem desaponta a suposição pragmática da capacidade de imputação não está conseguindo "acompanhar o jogo". Se for verdade que a suposição de um mundo objetivo comum não depende do controle pelo tipo de experiências que ela toma possíveis, é verdade também que a suposição de racionalidade, necessária no agir comunicativo, vale somente até logo mais. Uma vez que ela está exposta aos desmentidos de experiências que os participantes fazem com essa prática.

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(3) Até o presente momento, investigamos o uso destranscenden-talizado da razão adotando como referência a suposição de um mundo objetivo comum e a suposição recíproca de racionalidade que os atores têm de tomar como ponto de partida quando assumem um agir comunicativo. Abordamos en passant um outro sentido de "idealização" quando tratamos da função regulativa da orientação pela verdade, que completa a "referência a um mundo" (Weltbezug). A concatenação genealógica com as "idéias", de Kant, sugere a expressão "idealização". A prática o agir orientado pelo entendimento obriga seus participantes a certas antecipações totalizadoras, abstrações e superações de limites. Entretanto, convém perguntar: o que as diferentes idealizações têm realmente em comum quando as investigamos na prática?

A "referência a um mundo" de uma linguagem diferenciada em termos proposicionais, a qual preenche funções de representação, obriga os sujeitos providos da faculdade de falar e agir a esboçar um sistema comum de objetos de referência existentes independentemente, sobre os quais eles formam opiniões e sobre os quais eles podem influir intencionalmente. A suposição pragmático-formal de um mundo engendra certos guardadores de lugar para objetos, aos quais sujeitos falantes e agentes podem referir-se. Todavia, a gramática não pode "impor leis" à natureza. Um "esboço transcendental" mitigado supõe que a natureza "vem ao nosso encontro". Por conseguinte, na dimensão vertical da referência a um mundo, a idealização consiste na antecipação da totalidade das possíveis referências. Ao passo que na dimensão horizontal das relações que os sujeitos estabelecem entre si, a suposição da racionalidade efetuada reciprocamente significa, basicamente, o que eles esperam uns dos outros. O entendimento e a coordenação comunicativa da ação implicam uma dupla faculdade dos atores, a saber: a de que eles podem, apoiados em argumentos, posicionar-se quanto às pretensões de validade, criticáveis, e orientar-se, em seu próprio agir, por pretensões de validade.

Aqui, a idealização implica uma abstração passageira dos desvios, das diferenças individuais e dos contextos limitadores. Quando tais desvios ultrapassam uma certa margem de tolerância passam a ser estorvos da comunicação - podendo levar, em casos extremos, ao

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colapso da própria comunicação. Nesse contexto faz-se valer um certo sentido platônico de idealização, o qual não coincide plenamente com a compreensão kantiana. Antes de atingir o limiar, no qual a discrepância entre o ideal e a realização incompleta num caso específico torna-se por demais gritante, os agentes, enquanto mantiverem um enfoque performativo, não precisam tomar conhecimento das insuficiências observáveis empiricamente. Nesta dimensão, não é decisiva a antecipação totalizadora que se estende a todos os participantes. Decisiva é a neutralização, concretizada in actu, dos desvios - que podem ser desconsiderados - de uma medida ideal pela qual o próprio agir objetivamente desviante se orienta.

Entretanto, quando a orientação pela verdade acontece no âmbito de um exame crítico de pretensões de validade incondicionais, entra em cena uma idealização aparentemente efusiva que une os sentidos platônico e kantiano de "idealização", criando um novo sentido de idealização, o qual é híbrido. Já que nosso contato com o mundo é mediado pela linguagem, o mundo se retrai, seja de uma apreensão direta pelos sentidos, seja de uma constituição imediata mediante formas de intuição e de conceitos da faculdade cognitiva (Verstand). A objetividade do mundo, que supomos em nossa fala e em nossas ações, está tão intimamente entrelaçada com a intersubjetividade do entendimento sobre algo no mundo, que não podemos eludir, em nenhuma hipótese, tal coesão nem fugir do horizonte de nosso mundo da vida que é franqueado por meio da linguagem. Isso não exclui, evidentemente, uma comunicação para além das fronteiras de mundos da vida particulares. Já que podemos sobrepujar reflexivamente nossas situações hermenêuticas iniciais e chegar a concepções sobre temas controversos, compartilhadas intersubjetivamente. Para fazer jus a isso, Gadamer utiliza o conceito "fusão de horizontes".21

GADAMER, H.-G Wahrheit und Methode. Tubinga, 1960. A visão sobre a apropriação de obras clássicas seduz, no entanto, Gadamer levando-o a uma esteticização da problemática da verdade. Cf. HABERMAS, J. "Wie ist nach dem Historismus noch Metaphysik mõglich?", in: "Sem das verstanden war-den kann, ist Sprache". Hommage an Hans-Georg Gadamer. Frankfurt/M., 2001, 89-99.

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A suposição de um mundo comum de objetos existentes independentemente dos quais podemos predicai- fatos é completada com o auxílio da idéia de verdade como característica "não desperdiçável" dessas asserções. No entanto, se as asserções falíveis não puderem ser confrontadas diretamente com o mundo, necessitando, para sua fundamentação ou refutação, de outras afirmações e se, além disso, não houver nenhuma base de afirmações pura e simplesmente evidentes, isto é, credenciadas por si mesmas, então o único caminho para examinar pretensões de verdade passa a ser o discursivo. Em decorrência disso, a relação bipartida da validade de asserções é ampliada passando a ser uma relação tripartida da validade que afirmações têm "para nós". Sua verdade precisa ser reconhecível por um público. Neste caso, porém, pretensões de verdade incondicionadas desenvolvem, sob as condições epistêmicas de sua possível justificação, uma força explosiva no interior dos respectivos contextos de entendimento existentes. O reflexo epistêmico de incondicionalidade constitui a revalorização ideal de um público crítico que se torna instância "derradeira". Para representar isso, Peirce emprega a imagem de uma comunidade de pesquisadores, ideal, não confinada ao espaço social nem ao tempo histórico, a qual impulsiona, o mais longe possível, um processo de pesquisa inclusivo - que chega a atingir o valor-limite de uma "final opinion".

Tal imagem é, no entanto, enganadora, em dois sentidos. Em primeiro lugar, ela sugere que a verdade pode ser entendida como assertibilidade ideal, que se mede, por seu turno, por um consenso obtido sob condições ideais. Qualquer asserção, no entanto, é objeto do assentimento de todos os sujeitos racionais por ser verdadeira; polisse ela não é verdadeira apenas pelo fato de que poderia formar o conteúdo de um consenso obtido em condições ideais. Em segundo lugar, tal imagem não consegue levar o olhar a se fixar no processo da justificação durante o qual asserções verdadeiras têm de resistir a todas as tentativas de refutação: ela apenas chama a atenção para o estado final de um consenso imune a objeções. Contra tal concepção levanta-se uma autoconsciência falibilista que se manifesta no "uso, em termos de admoestação", do predicado "verdadeiro". Na qualidade de espíritos

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finitos, não podemos prever a modificação de condições epistêmicas e por isso não podemos excluir a possibilidade de que uma afirmação, por mais que esteja justificada idealmente, possa vir a ser desmascarada como falsa.22 Entretanto, mesmo que se leve em conta tais objeções contra uma versão epistêmica do conceito de verdade, a idéia de um processo de argumentação, possivelmente inclusivo e retomável a qualquer momento, continua desempenhando uma função importante para a explicação da "aceitabilidade racional" - mesmo que não seja mais da "verdade". Porquanto nós, seres falíveis e situados no mundo da vida, não possuímos outro caminho para nos certificarmos da verdade que não seja o do discurso que é, ao mesmo tempo, racional e aberto ao futuro.

Em que pese isso, por mais que a imagem de uma comunidade de comunicação ampliada em termos ideais (Apel), - a qual visa um acordo fundamentado sob condições ideais de conhecimento (Putnam), ante um auditório ideal (Perelman) ou numa situação de fala ideal (Habermas), - possa nos enganar, nós não podemos deixar de emitir idealizações semelhantes. Porquanto a ferida aberta na prática cotidiana por uma pretensão de validade que se tornou problemática precisa ser tratada em discursos que não podem ser finalizados de uma vez por todas por meio de evidências "convincentes" nem por argumentos "concludentes". Na verdade, as pretensões de verdade não se deixam resgatar em discursos; mesmo assim, para nos convencermos da verdade de afirmações problemáticas, temos de lançar mão de argumentos. Convincente é tudo aquilo que podemos aceitar como racional. Ora, a aceitabilidade racional depende de um procedimento que não nos protege contra nada e contra ninguém. Por isso, o processo de argumentação, enquanto tal, tem de permanecer aberto a qualquer tipo de objeções relevantes e a todas as melhorias impostas por circunstâncias epistêmicas. Tal prática de argumentação inclusiva e perpetuada depende de uma idéia de "desconf inamento" (Entschrankung) de formas atuais de entendimento sobre espaços

21 Cf. a crítica de WELLMER, A. Ethik und Dialog. Frankfurt/M., 1986, 69 ss.

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sociais, tempos históricos e competências profissionais. Por meio disso amplia-se o potencial de réplica que serve de pedra de toque para pretensões de validade aceitas racionalmente.

A compreensão intuitiva do sentido da argumentação em geral faz com que proponentes e oponentes se obriguem mutuamente à descentração de suas respectivas perspectivas de interpretação. De sorte que a antecipação idealizadora, levada a cabo por Kant, da totalidade de um mundo objetivo, é transposta para a totalidade do mundo social. No enfoque performativo dos participantes da argumentação, semelhante "totalização" se liga a uma "neutralização"; os participantes desconsideram, de um lado, a evidente diferença de nível entre o modelo ideal da inclusão objetiva e social completa de um "diálogo sem fim" e os discursos locais finitos e temporalmente limitados que nós realizamos de fato, de outro lado. Uma vez que ôs participantes da argumentação se orientam pela verdade, reflete-se, no nível onde buscamos certificar-nos discursivamente da verdade, o conceito de uma verdade que vale de modo absoluto em idealizações performativas que conferem a essa prática de argumentação seu caráter pretensioso. Antes de abordar em detalhes tais pressuposições pragmáticas de discursos racionais, convém caracterizar sinteticamente o espectro das pretensões de validade, que é mais amplo do que a pretensão de "verdade". E é preciso lembrar que, mesmo sob as premissas do conceito kantiano de razão prática, nós pretendemos validade incondicional não somente para afirmações assertóricas verdadeiras, mas também para afirmações morais corretas (e, com ressalvas, para asserções jurídicas).

( 4 ) Até o presente momento tivemos em mente, ao asseverarmos que os sujeitos que agem comunicativamente se entendem sobre algo em "o" mundo, a referência ao mundo objetivo, comum. As pretensões de verdade levantadas em prol de frases assertóricas serviram como paradigma para pretensões de validade em geral. Em atos de fala regulativos, tal como conselhos, pedidos e ordens os atores referem-se a ações às quais seus destinatários se sentem obrigados (ao menos é isso que os atores supõem). Na qualidade de membros de um grupo

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social, eles compartilham determinadas práticas e orientações axiológicas, reconhecem determinadas normas, estão acostumados a determinadas convenções, etc. No caso do uso regulativo da linguagem, os falantes tomam como base um complexo de costumes, instituições ou regras (reconhecido intersubjetivamente ou apenas exercitado na prática cotidiana) que ordena as relações interpessoais de uma coletividade de tal forma que os seus membros sabem qual é o tipo de comportamento legítimo que pode ser esperado reciprocamente. (Ao passo que um falante, ao exteriorizar atos comissivos produz uma relação legítima à medida que assume uma obrigação; neste caso, os participantes supõem que os sujeitos que agem comunicativamente podem assumir responsabilidade e ligar sua vontade a máximas).

Nesses jogos de linguagem normativos os atores também se referem - por meio dos conteúdos assertivos de suas exteriorizações - a algo num mundo objetivo, porém, apenas en passant. Eles mencionam as circunstâncias e as condições de sucesso das ações que eles exigem, pedem, aconselham, censuram, desculpam, prometem, etc. Porquanto eles se referem, diretamente, a ações e normas como a "algo no mundo social". Eles não entendem as ações reguladas por normas como fatos sociais que formam, por assim dizer, um corte extraído do mundo objetivo. Na visão objetivadora de um observador social, "existem" certamente "no mundo", ao lado de coisas físicas e de estados mentais, expectativas normativas, práticas, costumes, instituições e prescrições de todo tipo. Mesmo assim, o enfoque adotado in actu pelos atores engajados na malha de suas interações reguladas normativamente é de outro tipo, a saber, o enfoque performativo de um destinatário cujas ações podem transgredir normas única e exclusivamente pelo fato de ele as reconhecer como obrigatórias. Na visão de uma segunda pessoa, a cuja "boa vontade" se dirigem expectativas normativas, eles (os atores) utilizam um sistema de referência complementar ao mundo objetivo. Para fins de tematização, esse sistema recorta do contexto abrangente do seu mundo da vida a secção relevante para o agir regulado por normas. E assim que os membros entendem seu "mundo social" como uma totalidade das possíveis relações interpessoais reguladas legitimamente. A

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exemplo do "mundo objetivo", tal sistema de referência também constitui uma suposição necessária ligada gramaticalmente ao uso regulativo da linguagem (no lugar do uso constatativo).

O uso expressivo de frases de primeira pessoa completa tal arquitetônica de "mundos". Dada a autoridade epistêmica que um falante possui para a exteriorização veraz de "vivências" próprias, distinguimos entre "mundo interior" (Innenwelt), mundo objetivo e mundo social. Provocada pelo argumento wittgensteiniano das linguagens privadas e pela crítica ao mentalismo, de Wilfried Sellars,23 estabeleceu-se uma discussão sobre frases que reproduzem vivências e frases de autopercepção, o que leva a concluir que a totalidade das vivências às quais se tem um acesso privilegiado não pode ser entendida, em analogia com os mundos objetivo e social, como um outro sistema de referência. As "minhas" vivências são certas de um ponto de vista subjetivo, isto é, não precisam nem podem ser identificadas como dados objetivos ou como expectativas normativas. O "mundo" subjetivo é determinado, de um ponto de vista negativo, como sendo a totalidade daquilo que não aparece no mundo objetivo, e que não possui validade ou reconhecimento intersubjetivo em um mundo social. De modo complementar a esses dois mundos, aos quais se tem acesso público, o mundo subjetivo abrange todas as vivências de um falante quando ele deseja dar a conhecer algo de si mesmo perante um público no modo expressivo de uma auto-apresentação.

A pretensão à correção de afirmações normativas estriba-se na validade presumida de uma norma tomada como base. Diferentemente da validade veritativa de afirmações descritivas, o âmbito de validade de uma pretensão de correção varia, em geral, juntamente com o pano de fundo legitimador; por isso, ela acompanha os limites de um mundo social. Somente mandamentos morais (e normas do direito que necessitam de uma justificação moral, tal como os direitos humanos, por exemplo) pretendem validade absoluta ou reconhecimento universal similar ao de asserções. Isso explica a exigência kantiana,

SELLARS, W. Empiricism and the Philosophy ofMind. Cambridee (Mass ) 1997.

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segundo a qual, mandamentos morais válidos têm de ser "universa-lizáveis". As normas morais precisam encontrar o reconhecimento racionalmente motivado de todos os sujeitos capacitados para a linguagem e a ação, numa dimensão que supera os limites históricos e culturais dos respectivos mundos sociais. A idéia de uma comunidade inteiramente ordenada em termos morais implica, por conseguinte, a ampliação contrafática do mundo social - no qual nos encontramos previamente - até atingir as dimensões de um mundo totalmente inclusivo de relações inteipessoais bem ordenadas: Todos os homens tomam-se irmãos (e irmãs).

É bem verdade que, se tentássemos hipostasiar essa comunidade "universal" de todas as pessoas capazes de julgar e de agir moralmente no sentido de um desconfinamento espaço-temporal, estaríamos sendo induzidos a erro. A imagem de um "reino dos fins", autodeterminado, sugere a existência de uma república de seres racionais, pouco importando o fato de que se trata, apenas, de uma construção que, no entender do próprio Kant, "não está aí, podendo tornar-se realidade por meio de nossas ações e omissões." Ela pode e deve ser concretizada de acordo com a idéia prática da liberdade. O reino dos fins "mantém-se", de um certo modo, e é dado antes como tarefa (aufgegeben) do que simplesmente dado (gegeben). Por causa dessa ambigüidade, Kant também decompôs a prática dos humanos em dois mundos, a saber, o do inteligível e o dos fenômenos. Entretanto, a partir do momento em que não conseguimos mais nos apoiar nessa divisão transcendental, somos forçados a procurai- outros caminhos para fazer valer o sentido construtivo da moral.

Podemos representai- processos de aprendizagem, morais, como uma ampliação inteligente e como um entrecruzamento de mundos sociais que, ao se depararem com conflitos, ainda não conseguem se sobrepor suficientemente. As partes contendentes aprendem a inserir-se, reciprocamente, em um mundo construído em comum, a partir do qual é possível avaliar e solucionai- consensualmente, à luz de padrões de avaliação consensuais, ações controversas. G. H. Mead descreveu tal processo como ampliação de uma troca reversível de perspectivas de interpretação. Na terminologia piagetiana, as perspectivas dos

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participantes, enraizadas inicialmente no próprio mundo da vida, tomam-se tanto mais fortes ou "descentradas", quanto mais o processo de entrecruzamento das perspectivas se aproxima do valor-limite da "inclusão". Ora, é interessante notar que a prática da argumentação aponta naturalmente para essa direção. Uma vez que, sob o ponto de vista moral, somente normas igualmente boas para todos merecem reconhecimento, o discurso racional se oferece como o procedimento adequado para a solução de conflitos, já que ele representa um procedimento que assegura a inclusão de todos os atingidos e a consideração simétrica de todos os interesses em jogo.

A "imparcialidade" no sentido da justiça converge com a "imparcialidade" no sentido da certificação discursiva de pretensões de validade discursivas.24 Tal convergência fica patente quando se compara a orientação de processos de aprendizado moral com as condições a serem preenchidas para uma par t ic ipação em argumentações em geral. Processos de aprendizado moral solucionam, por meio da inclusão recíproca do respectivo outro ou dos respectivos outros, conflitos desencadeados pela oposição entre partes rivais que se orientam por valores dissonantes. Sem embargo, a forma comunicativa da argumentação é talhada para tal ampliação dos horizontes de valores, da qual resulta um entrelaçamento de perspectivas. A salvaguarda do sentido cognitivo da discussão de pretensões de validade controversas exige que os participantes da argumentação acatem um universalismo igualitário que é, de certa forma, requerido pela própria estrutura da argumentação e que não possui, inicialmente, nenhum sentido moral, apenas pragmático-formal.

Nas argumentações, o caráter cooperativo da competição pelo melhor argumento pode ser compreendido quando atentamos para a finalidade ou função constitutiva desse jogo de linguagem: os participantes pretendem convencer uns aos outros. No entanto, ao transportar o agir comunicativo cotidiano para o nível reflexivo de pretensões de validade tematizadas, eles não deixam de orientar-se

24 REHG, W. Insightand Solidarity. Berkeley, 1994.

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pelo entendimento mútuo porque um proponente só pode ganhar o jogo a partir do momento em que conseguir convencer seus oponentes do direito de sua pretensão de validade. A aceitabilidade racional da asserção correspondente funda-se na força de convencimento do melhor argumento. Não é o discernimento privado que decide qual é o argumento mais convincente. Isso é tarefa das tomadas de posição, enfeixadas num acordo racionalmente motivado, de todos os que participam da prática pública da troca de argumentos.

Entrementes, os próprios standards de que se lança mão para avaliar os bons e os maus argumentos podem transformar-se em objeto, de controvérsias. Tudo pode ser arrastado para o turbilhão dos contra-argumentos. Por esta razão, a aceitabilidade racional de pretensões de validade tem como único apoio, em última instância, argumentos que conseguem, sob determinadas condições exigentes da comunicação, afirmar-se contra objeções. O sentido genuíno do processo de argumentação exige que a forma comunicativa do discurso não somente tematize todas as possíveis informações e explicações relevantes, mas também que sejam abordadas de tal forma que os pos ic ionamentos dos part icipantes possam ser mot ivados intrinsecamente apenas pela força revisora de argumentos que flutuam livremente. Ora, caso seja este o sentido intuitivo que vinculamos às argumentações em geral, então não podemos deixar de admitir que uma determinada prática não poderá ser tida como argumentação séria caso não preencha determinadas pressuposições pragmáticas.25

As pressuposições mais importantes são as seguintes: (a) Inclusão e caráter público: não pode ser excluído ninguém desde que tenha uma contribuição relevante a dar no contexto de uma pretensão de validade controversa; (b) igualdade comunicativa de direitos: todos têm a mesma chance de se manifestar sobre um tema; (c) exclusão da ilusão e do engano: os participantes têm de acreditar no que dizem;

Sobre o que se segue cf. HABERMAS, J. "Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral", in: id. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 1996, 11-64, aqui 61 s.

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(d) ausência de coações: a comunicação deve estar livre de restrições que impedem a formulação do melhor argumento capaz de levar a bom termo a discussão. As pressuposições (a), (b) e (d) impõem ao comportamento argumentativo regras de um universalismo igualitário que têm como conseqüência - no tocante às questões prálico-morais - a consideração (simétrica) dos interesses e orientações valorativas de cada um dos atingidos. E uma vez que os participantes são, nos discursos práticos, ao mesmo tempo, os atingidos, neles a pressuposição (c) adquire uma importância adicional, já que permite aos participantes adotar, em relação a auto-enganos próprios, uma atitude crítica e, em relação à autocompreensão e à compreensão de mundo de outros, uma atitude hermeneuticamente aberta e sensível (no âmbito de questões teórico-empíricas, tal pressuposição exige apenas uma ponderação isenta e sincera de argumentos).

Tais pressupostos da argumentação contêm, evidentemente, idealizações fortes a ponto de levantarem a suspeita de que se trata de uma descrição tendenciosa. Haveria a possibilidade de os participantes da argumentação tomarem como ponto de partida, de modo performativo, pressuposições cuja natureza contrafática eles não poderiam ignorar? Porquanto, ao participarem do discurso, eles não olvidam, por exemplo, que o círculo de participantes é extremamente seletivo, que a amplitude comunicativa de uma das partes é maior do que a de outras, que um ou outro participante, ao discutir este ou aquele tema, é vítima de preconceitos, que muitos se portam eventualmente de modo estratégico ou que, finalmente, as tomadas de posição em termos de "sim" ou "não" são, muitas vezes, determinadas por motivos espúrios, não pelo motivo do melhor argumento. Sem dúvida alguma, um observador não envolvido no discurso poderia apreender, melhor do que os próprios participantes engajados, esses desvios de uma "situação de fala" que se supõe ser quase "ideal". Não obstante isso, os próprios participantes não se deixam sorver inteiramente pelo seu engajamento participativo, pois, no próprio enfoque performativo permanecem atuais, ao menos intuitivamente, muitas coisas das quais eles poderiam ter um conhecimento temático caso adotassem um enfoque objetivador.

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De outro lado, as pressuposições inevitáveis da prática da argumentação não são, apesar de contrafáticas, meros constructos, já que operam efetivamente no comportamento dos participantes da argumentação. Quem participa seriamente de uma argumentação adota faticamente tais pressuposições. Isso pode ser inferido das conseqüências que os participantes tiram, quando necessário, de inconsistências percebidas. O procedimento da argumentação é autocorretivo no sentido de que as razões necessárias, por exemplo, para uma liberalização "pendente" das normas de funcionamento e do regime de discussão, para a modificação de um círculo de participantes não-suficientemente representativo, para uma ampliação da agenda ou para uma melhoria da base de informação resultam do próprio transcurso de uma discussão insatisfatória. Nós simplesmente percebemos quando novos argumentos enüam em cena ou quando vozes marginalizadas são levadas a sério. De outro lado, nem todas as inconsistências percebidas são motivo para tais "consertos" ou semelhantes. Isso se explica pela circunstância de que os participantes da argumentação deixam-se convencer imediatamente pela substância dos argumentos, não pelo design comunicativo utilizado para a troca de argumentos. Características procedimentais do processo de argumentação fundamentam a expectativa racional de que as informações e argumentos decisivos "venham à tona" e sejam "colocados na mesa". Enquanto os participantes da argumentação tomam como ponto de partida a idéia de que isso é o caso, não têm nenhuma razão para se preocupar com características procedimentais insuficientes do processo de argumentação.

As características formais da argumentação adquirem relevância, tendo em vista a diferença entre afirmabilidade e verdade. Uma vez que, "em derradeira instância", não existem argumentos definitivos ou evidências concludentes, nem asserções bem fundamentadas que eventualmente não se revelem falsas, a expectativa racional de que as melhores informações e argumentos possíveis estejam disponíveis para o discurso e "contem" realmente no final das contas só pode ser fundamentada pela qualidade do procedimento da certificação discursiva da verdade. As inconsistências que levantam a suspeita

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"de que aqui ninguém está argumentando" só são percebidas quando participantes relevantes são visivelmjnte excluídos, contribuições relevantes são supressas, ou quando tomadas de posição em termos de "sim/não" são manipuladas ou condicionadas por meio de outro tipo de influências.

A eficácia operativa da antecipação idealizadora levada a cabo tacitamente pelos participantes por intermédio de suas pressuposições argumentacionais torna-se perceptível na função crítica que tal antecipação preenche: uma pretensão de validade absoluta precisa justificar-se em foros cada vez mais amplos, perante um público competente cada vez mais extenso e contra objeções cada vez mais freqüentes. Tal dinâmica de uma descentração cada vez maior das próprias perspectivas de interpretação, embutida na prática da argumentação, estimula especialmente os discursos prátícos, nos quais não se trata da certificação de pretensões de validade, mas da configuração inteligente e da aplicação de normas morais (e jurídicas).26

A validade de tais normas "consiste" no reconhecimento universal que elas merecem. Uma vez que as pretensões de validade morais são destituídas de conotações ontológicas, que são características das pretensões de verdade, surge, no lugar da referência a um mundo objetivo, a orientação pela ampliação do mundo social, isto é, pela inclusão cada vez mais ampla de pessoas e de pretensões estranhas. A validade de uma asserção moral possui um sentido epistêmico, isto é, o sentido de que ela poderia ser aceita sob condições ideais de justificação. Entretanto, uma vez que o sentido da "correção moral", ao contrário do sentido de "verdade", se esgota na aceitabilidade racional, nossas convicções morais têm de confiar, em última instância, no potencial crítico da descentração e da auto-superação, que se encontra embutido, juntamente com a "inquietação" resultante da antecipação idealizadora, na prática da argumentação - e na autocompreensão de seus participantes.

Sobre o que se segue cf. HABERMAS, J. "Richtigkeit vs. Wahrheit", in: id. (1999), 271-318.

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II

( 5 ) Kant movimentou-se num paradigma onde a linguagem não exerce nenhum papel constitutivo para a teoria ou para a prática. O mentalismo concebe a imagem de um espírito, ora mais construtivo ora mais passivo, que converte seus contatos com o mundo, mediados pelos sentidos, em representações de objetos e em influências funcionais sobre objetos, e tais operações não são afetadas essencialmente pela linguagem e suas estruturas. Enquanto a linguagem não perturba o espírito com seus ídolos, com as imagens ou simples ideais herdados da tradição, ele consegue ver através do médium da linguagem como se fora através de um cristal sem mácula. Por isso, a linguagem ainda não aparece, em uma visão genealógica retrospect iva sobre a procedência mental is ta de um uso destranscendentalizado da razão, como o médium configurador do espírito que recoloca a consciência transcendental nos contextos históricos e sociais do mundo da vida.

Para Kant, no âmbito da prática, a razão consegue capturar-se a si mesma, inteiramente, já que ela é constitutiva para o agir moral. Isso sugere que rastreemos as pegadas da razão destranscendentalizada no agir comunicativo. A expressão "agir comunicativo" assinala as interações sociais para as quais o uso da linguagem orientado pelo entendimento assume o papel de coordenador da ação.27 Por meio da comunicação lingüística, as pressuposições idealizadoras emigram para um agir orientado pelo entendimento. Por isso, a teoria da linguagem, especialmente a semântica, que esclarece o sentido de exteriorizações lingüísticas lançando mão das condições da compreensão da linguagem, é o lugar no qual uma pragmática formal, de procedência kantiana, poderia encontrar-se com pesquisas oriundas do campo analítico. De fato, a tradição de pesquisa analítica, que se inicia em Frege, toma como ponto de partida o caso elementar de uma pressuposição idealizadora, o que somente foi notado, no entanto, após a guinada lingüística. Porquanto, se as estruturas do espírito são

HABERMAS, J. "Handlungen, Sprechakte, sprachlich vermittelte Interaktionen und Lebenswelt", in: id. Nachmetaphysisches Denken, 1988, 63-104.

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cunhadas pela gramática da linguagem, coloca-se a seguinte questão: de que modo frases e expressões predicativas conseguem manter, na variedade de seus contextos de aplicação, a generalidade e a identidade da significação que elas possuem naturalmente na esfera mental?

O próprio Frege, que ainda se encontra na tradição kantiana e que deve ser, segundo Dummett, colocado ao lado de Husserl, propôs uma distinção entre o conceito semântico de "pensamento" e o conceito psicológico de "representação". Para serem comunicados, os pensamentos precisam ultrapassar, inalterados, os limites de uma consciência individual; ao passo que as representações pertencem apenas a um sujeito individuado no espaço e no tempo. De outro lado, proposições conservam o mesmo conteúdo de pensamento, mesmo quando exteriorizadas ou compreendidas como tais proposições por diferentes sujeitos e em contextos distintos. Isso levou Frege a adscrever aos pensamentos e conteúdos conceituais um status ideal, isto é, desligado do espaço e do tempo. Ele explica a peculiar diferença de status entre pensamentos e representações apontando para as formas gramaticais de sua expressão. Diferentemente de Husserl, Frege pesquisa a estrutura de juízos ou pensamentos analisando a estrutura da frase assertórica, composta de palavras, e que é tida como a menor unidade gramatical, podendo ser verdadeira ou falsa. Na estrutura das proposições e na inter-relação entre referência e predicação podemos ler como os conteúdos de pensamentos se distinguem dos objetos do pensamento representador.28

Em situações variadas, as expressões lingüísticas podem manter a mesma significação para diferentes pessoas; mas supõe que o pensamento ultrapasse os limites de uma consciência individualizada no espaço e no tempo, e que o conteúdo ideal dos pensamentos seja independente do fluxo de vivências do sujeito pensante. Já no nível elementar do substrato do signo, os falantes e ouvintes têm de aprender a reconhecer o mesmo tipo de signo na pluralidade das correspondentes ocorrências de signos. A isso corresponde, no nível semântico, a suposição de significações invariantes. Porquanto, na prática, os

TUGENDHAT, E. Einführung in die sprachanalytische Philosophie. Frankfurt/M., 1976, 35 ss.

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membros de uma comunidade lingüística têm de supor, inicialmente, que as expressões formadas gramaticalmente, e que são exteriorizadas por eles, possuem uma significação geral e idêntica para todos os participantes, na variedade dos contextos de apl icação. Tal pressuposição permite constatar o fato de que eventuais exteriorizações são incompreensíveis. A suposição da utilização de expressões de uma linguagem comum com significado idêntico, inevitável in actu, não exclui, evidentemente, a divisão de trabalho lingüística nem a mudança histórica da significação. Um saber sobre o mundo, modificado, induz uma mudança do saber lingüístico, e os progressos no conhecimento depositam-se em uma mudança de significação dos conceitos teóricos fundamentais.29

Também no caso da generalidade ideal da significação de expressões gramaticais se trata de uma pressuposição idealizadora que muitas vezes é inadequada na perspectiva de um observador e que, à luz do microscópio de um etnometodólogo, é sempre inadequada. Enquanto suposição contrafática, ela é, no entanto, inevitável para o uso da linguagem orientada pelo entendimento. Por sua crítica justificada ao psicologismo, Frege deixou-se levar para um platonismo da significação compartilhado, aliás, por Husserl, mesmo que sob premissas diferentes. O Frege tardio pensava que a arquitetônica mentalista dos dois mundos, segundo a qual existe uma contraposição entre o mundo objetivo das coisas e um mundo subjetivo das representações, tem de ser complementada por um terceiro mundo, a saber, o mundo ideal das proposições. Tal manobra infeliz o coloca, no entanto, em uma situação complicada. Quando hipostasiamos as significações da frase transformando-as em um em si ideal, o modo de relacionamento dessas entidades etéreas situadas no "terceiro reino"30 com as coisas físicas do mundo objetivo e com os sujeitos

PUTNAM, H. 'The meaning of meaning", in: id., Mind, Language and Reality, Cambridge, 1975,215-271.

FREGE, G. "Der Gedanke (1918/19)", in: id., Logische Untersuchungen. Gõttingen, 1966,30-53. Nesse texto Frege chega ao seguinte resultado: "Os pensamentos não são coisas do mundo exterior nem representações. É necessário reconhecer um terceiro reino".

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representadores torna-se um enigma. A relação da "representação" mental de entidades torna-se independente de um espírito subjetivo, e, a partir daí, não se sabe mais como ele vai "apreender" ou "avaliar" proposições.

Frege deixou como herança para seus sucessores dois problemas: em primeiro lugar, os "pensamentos que são expelidos da consciência" (Dummett) amargam, enquanto proposições, uma existência ambígua e incompreensível; o segundo problema constitui, de certa forma, o outro lado da idéia pioneira que introduz a "verdade" como conceito semântico fundamental para a explicação do sentido de expressões lingüísticas. Para entender uma frase é necessário conhecer as condições sob as quais ela é verdadeira, isto é, é necessário saber -como Wittgenstein afirmará mais tarde - "o que é o caso quando ele é verdadeiro". A partir daqui, coloca-se a tarefa de explicar o sentido de verdade da satisfação das condições de verdade. A proposta fregeana, de entender o valor de verdade de uma frase como seu objeto de referência, é insatisfatória. Já que a própria análise da estrutura da frase revela que a verdade não pode ser assimilada a nenhum tipo de referência. Constatamos, pois, que a tradição da semântica veritativa foi sobrecarregada, desde o início, com dois problemas de difícil solução.

Os conteúdos proposicionais extraídos do fluxo de vivências têm de ser, enquanto significados, incorporados de tal maneira ao médium das expressões lingüísticas que o reino intermediário e fantasmagórico das proposições livremente flutuantes se dissolve. No entanto, o caminho da explicação semântico-veritativa do sentido de frases só funciona quando o conceito explanatório "verdade", o qual é fundamental, sai da sombra. Ambas as questões - o que podemos fazer com proposições e como devemos entender o predicado "verdadeiro" - podem ser interpretadas como hipotecas de um conceito mentalista de razão, reprimido. Em uma visão lingüística, dois tipos de reações se oferecem: ou se liquida o próprio conceito de razão juntamente com o paradigma mentalista; ou se liberta tal conceito de sua moldura mentalista transformando-o, a seguir, no conceito da razão comunicativa. Donald Davidson adota a primeira destas duas

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estratégias. Ele pretende desarmar, à luz de premissas empiristas, a peculiar normatividade da linguagem que se reflete não somente na relação dos sujeitos - providos de fala e ação - com o mundo, mas também em suas relações interpessoais ( 6 ) . Michael Dummett e Rob-ert Brandom caminham em uma direção contrária alimentando a pretensão de reconstruir, passo a passo, a normatividade da prática de entendimento ( 7 e 8 ) . O esboço delineado a seguir coloca-se como uma tentativa de reproduzir a linha na qual o sentido normativo, próprio da razão incorporada na linguagem, também se faz valer na filosofia analítica da linguagem.

( 6 ) Davidson imprime características objetivas a um fenômeno carente de explicação, perguntando: o que significa compreender uma expressão lingüística? Sua decisão metodológica é prenhe de conseqüências, uma vez que modifica o papel do analista da linguagem. Tal papel não é mais o de um leitor ou de um ouvinte que tenta compreender textos ou exteriorizações de um autor ou de um falante. Ao invés disso, ele atribui ao intérprete o papel de um teórico que procede de forma empírica, que formula observações sobre o comportamento de uma cultura estranha e que, diferentemente de um etnólogo wittgensteiniano, busca uma explicação nomológica para o incompreensível comportamento lingüístico dos nativos. Com isso, o comportamento comunicativo de sujeitos providos da faculdade de fala e ação é deslocado, de certa forma, para o lado do objeto. A assimilação da compreensão do sentido a explicações para as quais necessitamos de uma teoria empírica corresponde à assimilação enérgica de exteriorizações simbólicas compreensíveis à categoria de fenômenos naturais observáveis. Davidson desenvolve tal teoria utilizando a convenção veritativa de Tarsky como conceito fundamental não definido para a criação de equivalências semânticas.

Tal lance permite-lhe enfocar, de modo menos dramático, o problema que se coloca quando se trata de enfrentar a idéia da verdade e do conteúdo ideal de pretensões de verdade que se fizeram valer comunicativamente. Com relação ao problema da reduplicação platônica de significados de frases em proposições, que tem a ver

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com a utilização de expressões gramaticais com significação idêntica, ele sugere pura e simplesmente a eliminação do conceito de significado.

Davidson pensa que uma das vantagens de seu procedimento objetivista reside precisamente no fato de que ele não precisa lançar mão "de significados como entidades": "Não são introduzidos objetos que devam corresponder a predicados ou sentenças".11 Não obstante isso, o problema ainda não desaparece inteiramente sem deixar rastos. Ele retoma no plano metodológico quando nos perguntamos sobre o modo como o intérprete toma as provas coletadas no campo de pesquisa -o comportamento lingüístico e as características das atitudes de falantes estranhos - e as agrega corretamente a proposições verdadeiras, geradas teoricamente. Para extrair uma estrutura lógica do fluxo de dados observados, o intérprete é levado a decompor, inicialmente, as seqüências de comportamentos em unidades semelhantes a frases e associáveis aos "bicondidionais" da teoria tarskiana. Todavia, mesmo no caso de uma segmentação bem-sucedida, não é suficiente, para uma correspondência clara, a co-variância de exteriorizações singulares e circunstâncias típicas nas quais estas surgem.

Em geral, um falante competente exterioriza uma frase de percepção apoiado na significação lexical conhecida das expressões utilizadas, mas somente em contato com aquilo que ele acredita estar percebendo realmente na situação dada, portanto, com aquilo que ele tem por verdadeiro. E já que a crença e a significação da palavra podem variar autonomamente, os dados auferidos por observação, isto é, o comportamento do falante estranho e as circunstâncias nas quais ele surge, só podem informar o intérprete sobre o significado da exteriorização a ser interpretada quando o falante estranho tem por verdadeiro o que diz. Para descobrir o significado do que foi dito, um observador tem de saber se o falante estranho acredita no que diz. Por conseguinte, o intérprete tem de pressupor, caso pretenda excluir a incômoda interdependência entre crença e significado, que o "ter-por-verdadeiro" do falante constatado é constante. Somente a suposição do ter-por-verdadeiro consegue transformar a co-variância de

31 DAVIDSON, D. Wahrheit und Interpretation. Frankfurt/M., 1986, 10.

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exteriorização e situação da exteriorização, constatada, numa prova suficiente para a escolha teoricamente informada da interpretação correta. Por esta razão, Davidson introduz, como princípio metodológico, a idéia refutável de que os falantes observados no campo comportam-se, por via de regra, de modo racional. Isso significa que eles acreditam, em geral, no que dizem e que não se enredam, na seqüência de suas exteriorizações, em contradições. Sob tal pressuposição, o intérprete pode tomar como ponto de partida a idéia de que, na maioria das situações, os falantes observados percebem o mesmo que ele percebe e acreditam nas mesmas coisas em que ele acredita, de tal sorte que ambos os lados coincidem em um grande número de convicções. Isso não exclui, evidentemente, discrepâncias em determinados casos. No entanto, o princípio induz o intérprete a "maximizar o consenso".

Neste ponto, é necessário precisar que o "princípio de caridade", introduzido metodicamente, obriga um intérprete a atribuir a um falante estranho, na perspectiva do observador, a "racionalidade" como disposição do comportamento. Tal atribuição não pode ser confundida com uma suposição de racionalidade que é feita performativamente por participantes. Porquanto, em um dos casos, o conceito de racionalidade é utilizado de modo descritivo; no outro, a utilização é normat iva. Em ambos os casos, porém, trata-se de uma pressuposição falível: "O conselho metódico de interpretar, de uma maneira a otimizar o consenso, não deveria ser interpretado como algo apoiado numa pressuposição caritativa com relação à inteligência humana [...]. Se não encontrarmos nenhuma possibilidade de interpretar as exteriorizações e demais atitudes de uma criatura de tal modo que dentre elas se manifeste um certo número de convicções isentas de contradição e verdadeiras de acordo com nossos próprios padrões, não teremos nenhuma razão de considerar tal criatura um ser racional que defende convicções ou que é capaz de dizer algo em geral".32

DAVIDSON, D. "Radikale Interpretation", in: id. (1986), 199 (a tradução foi modificada, observação de J. Habermas).

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Tal formulação (reencontrada no argumento davidsoniano contra a distinção entre conteúdo e esquema conceituai) já indica que o princípio metodológico adquire uma espécie de significação transcendental.11 A atribuição de racionalidade não é apenas uma pressuposição inevitável para a interpretação radical, mas também para a comunicação cotidiana normal entre membros de mesma comunidade lingüística.14 Sem a suposição recíproca da racionalidade, não encontraríamos qualquer tipo de base de um entendimento suficientemente comum, capaz de nos arrancar de nossas diferentes teorias da interpretação (ou de nossos "ideoletos").15 A seguir, no quadro de uma teoria integrada da ação e da linguagem, o "ter-por-verdadeiro" é retroligado a uma "preferência" geral por proposições verdadeiras Cpreferring one sentence true to another")?6

A racionalidade da ação mede-se pelos standards comuns - pela consistência lógica, pelos princípios gerais do agir orientado pelo sucesso e pela consideração de evidências empíricas. Recentemente, na réplica a uma intervenção de Richard Rorty, Davidson voltou a formular seu princípio de caridade da seguinte maneira: "A caridade é uma questão de encontrar suficiente racionalidade naqueles que pretendemos entender para que faça sentido o que dizem e fazem, pois, se não formos bem-sucedidos neste empreendimento, não

33 FULTNER, B. Radical Interpretation or Communicative Action: Holism in Davidson and Habermas. Dissertação filosófica, Northwestern University, 1995, 178 ss.

14 CUTREFELLO, A. "On the Transcendental Pretensions of the Principie of Charity", in: HAHN, L. E. (ed.), The Philosophy ofDonald Davidson. LaSalle (III.) 1999, 333: "Supõe-se que o princípio da caridade é uma condição universalmente vinculante para a possibilidade de interpretação de qualquer pessoa". Em sua réplica, Davidson aceita a expressão "transcendental" no sentido fraco de uma inevitabilidade fática; em todo caso, ele fala na "inevitabilidade do apelo a tal princípio" (ibid., 342).

35 DAVIDSON, D. "Eine hübsche Unordnung von Epitaphen", in: PICARDI, E. e SCHULTE, J. (eds.) Die Wahrheit der Interpretation. Frankfurt/M., 1990 203-227.

36 DAVIDSON, D. Handlung und Ereignis. Frankfurt/M., 1985.

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poderemos identificar os conteúdos de suas palavras nem de seus pensamentos. Descobrir a racionalidade nos outros é uma questão de reconhecer nos comportamentos e atos de fala deles nossas próprias normas de racionalidade. Tais normas incluem as normas da consistência lógica, da atuação em conformidade com os interesses básicos do agente e a aceitação de pontos de vista sensíveis à luz da evidência."17

É interessante observar que, para Davidson, a normatividade do comportamento humano, que é o alvo da suposição de racionalidade, serve também como critério para delimitai- a linguagem da física ante a linguagem mental: "Existe um sem número de razões para a irredutibilidade do mental ao físico. Uma das razões [...] é o elemento normativo introduzido na interpretação pela necessidade (!) de apelar para a caridade quando tentamos combinar as sentenças dos outros com as nossas próprias".38 Contra a visão monista do cientificismo naturalista, Davidson gostaria de manter, ao menos, uma tênue linha de demarcação entre espírito e natureza. E Richard Rorty pode oferecer argumentos fortes contra tal tentativa heróica, uma vez que, com isso, ele apenas radicaliza a estratégia seguida pelo próprio Davidson que enfraquece o potencial da razão inserido na comunicação lingüística.39 E não fica claro, de modo nenhum, como Davidson pode manter um dualismo das perspectivas corpo-espírito após ter localizado o comportamento racional inteiramente ao lado dos objetos e após ter reduzido a compreensão das expressões lingüísticas às explicações teóricas de um intérprete dotado de um enfoque objetivador. Porquanto a própria compreensão da linguagem, bem como os standards de racionalidade, que Davidson atribui, inicialmente, ao intérprete radical, não caíram simplesmente do céu. Eles carecem de uma explicação ulterior.

Cf. HAHN (1999), 600. DAVIDSON, D. "Could there be a Science of Rationality?", in: International Journal of Philosophical Studies, n° 3, 1995, 1-16, aqui 4.

RORTY, R. "Davidson's Mental-Physical Distinction", in: HAHN (1999), 575-594.

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Uma interpretação radical não é suficiente para tornar compreensível, no âmbito da moldura empírica escolhida, de que modo o próprio intérprete aprendeu a falar, e de que modo a linguagem conseguiu surgir. Se os sujeitos providos da capacidade de fala e ação são "seres dotados de espírito" porque podem assumir atitudes intencionais em relação a conteúdos proposicionais conectados logicamente e se, além disso, a estrutura intencional de seus atos de fala e de suas ações exige dos intérpretes a suposição de racionalidade, bem como uma conceitualidade mentalista, então permanece aberta a questão: como foi possível o surgimento da intencionalidade? Davidson responde, como é sabido, apresentando o modelo de uma situação de aprendizado "triangular" na qual dois organismos reagem, ao mesmo tempo, entre si tendo como referência "o mundo". Ele pretende mostrar, no sentido de uma gênese lógica da aquisição de expressões lingüísticas elementares, como poderia ter sido possível, a partir de "nossa" visão e sob premissas naturalistas, o fato de que dois organismos da mesma espécie, inteligentes e altamente desenvolvidos, porém, ainda completamente adaptados a um ambiente natural pré-lingüístico, aprendem a adquirir, com o auxílio de símbolos utilizados com significado idêntico, uma distância em relação ao seu entorno sensível, a qual nós designamos como "intencional".

Para a constituição intencional do espírito, é constitutiva a suposição de um mundo objetivo de objetos, ao qual podemos referir-nos. Tal referência ao mundo é pressuposição para que possamos formular asserções sobre objetos e assumir atitudes variadas em relação a conteúdos de enunciados. A luz de tal descrição, a consciência intencional aparece como co-originária com uma linguagem diferenciada em termos proposicionais. Não obstante isso, a gênese dessa consciência tem de ser pensada como se tivesse resultado de uma espécie de interação com o mundo para a qual a referência a um mundo suposto como objetivo ainda não é constitutiva. A relação do mundo com a linguagem é casual. Tal premissa naturalista se adequa à tese do assim chamado externalismo, segundo o qual, a linguagem está, de um lado, "ancorada no mundo" por meio de um vocabulário elementar de percepção; de outro lado, porém, o seu conteúdo semântico resulta de uma elaboração inteligente de estímulos causais

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dos sentidos: "Nos casos mais simples e fundamentais, as palavras e frases adquirem seu significado dos objetos e das circunstâncias sob as quais elas foram aprendidas. Uma frase que temos por verdadeira por causa da presença do fogo durante um processo de aprendizagem será verdadeira quando houver fogo".40

Tal explicação remete o significado de uma expressão e a verdade de uma sentença às circunstâncias causadoras sob as quais elas foram aprendidas. O processo, descrito no jogo de linguagem causai como condicionamento, encontra-se numa tensão contra-intuiti va com nossa autocompreensão enquanto seres racionais. Por isso, Davidson quer explicar o modo como o distanciamento intencional do mundo e em relação ao mundo poderia ter sido provocado, de acordo com o padrão estímulo-reação, pelo próprio mundo. Dois seres vivos, que interagem entre si, conseguem adquirir tal distanciamento específico do estímulo que inicialmente condiciona sem distanciamento e ao qual eles reagem de modo semelhante, não apenas pelo fato de que eles percebem apenas o próprio estímulo, mas também porque, pelo caminho da observação recíproca, também percebem, ao mesmo tempo, que o respectivo outro reage ao mesmo estímulo, da mesma maneira: "Com isso, muitas características foram colocadas no seu lugar, a fim de emprestar um significado ao pensamento, segundo o qual, o estímulo tem um lugar objetivo num espaço comum; tudo depende do fato de duas perspectivas privadas convergirem a fim de marcar uma posição no espaço intersubjetivo. Até agora, no entanto, nada prova, nessa imagem, que [...] os objetos das experiências [...] disponham do conceito de objeto".41

Entretanto, ainda não ficou claro como alguém pode saber que o outro reage ao mesmo objeto da mesma maneira que ele. Ambos têm de averiguar se o respectivo ouUo tem em mente o mesmo objeto. E sobre isso eles têm de entender-se. Todavia, eles somente podem entrar numa comunicação recíproca se utilizarem simultaneamente o padrão de reação, percebido como semelhante (ou uma parte dele), como

DAVIDSON, D. Der Mythos cies Subjektiven. Stuttgart, 1993, 93 ss. Ibid., 12.

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expressão simbólica, e o endereçarem, como mensagem (Mitteilung), ao outro. Eles precisam comunicar entre si sobre o que propriamente desencadeou em ambos a reação: "Para que duas pessoas possam saber que elas - seus pensamentos - se encontram em uma tal relação recíproca, é necessário que elas entrem em comunicação. Cada uma delas tem de falar com a respectiva outra e ser entendida por ela".42 Um estímulo que desencadeia uma reação semelhante nas duas partes envolvidas transforma-se "para elas" em um objeto, isto é, num elemento situado num mundo objetivo comum, tão logo elas, partindo da observação recíproca da semelhança de suas reações, se entendem "sobre ele" com o auxílio de sua reação comportamental, endereçada reciprocamente por meio de símbolos. Com isso, o estímulo desencadeador é transformado em objeto. Somente por um tal emprego comunicat ivo, o padrão das duas reações comportamentais , semelhantes, adquire um significado idêntico para ambos os lados.

A intuição davidsoniana, expressa na imagem da triangulação, é clara: a referência ao mundo objetivo e a atitude intencional em relação a algo em um inundo objetivo só são possíveis numa perspectiva de falantes, a qual é acoplada à perspectiva de, ao menos, um outro falante, na base de relações intersubjetivas criadas comunicativamente. A objetividade nasce junto com um distanciamento intencional do inundo. E os falantes só podem adquirir tal distanciamento quando aprendem a comunicar entre si sobre a mesma coisa. Todavia, é difícil mostrar como Davidson poderia explicar esse entrecruzamento da objetividade com uma intersubjetividade co-originária lançando mão de sua situação de aprendizagem fictícia. As dificuldades não são devidas propriamente ao externalismo do princípio epistemológico básico, mas ao solipsismo do observador solitário.

De que modo esses dois organismos, que se encontram no mesmo entorno observando-se mutuamente e as suas reações semelhantes a um estímulo proveniente desse entorno, podem entender-se reciprocamente sobre o fato de que eles têm diante de si o mesmo estímulo -a não ser que eles já disponham de um conceito correspondente?

42 Ibid., 15.

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Entretanto, eles só adquirem esse conceito com o auxílio de um critério que eles aplicam do mesmo modo - a saber, com o auxílio de um símbolo que tem o mesmo significado para ambos. Somente então, eles poderiam entender-se entre si sobre semelhanças objetivas. Certamente, se alguém pudesse assumir em relação a uma criança o papel de um intérprete radical, por exemplo, o papel de um professor, ele iria tentar descobrir se ele e a criança "pensam o mesmo" - e, conforme o caso, ele iria corrigir as falhas dela. Não obstante isso, esse caso de triangulação poderia explicar, na melhor das hipóteses, o modo como adolescentes podem aprender - no interior de uma comunidade de linguagem existente - componentes elementares do vocabulário da percepção. Isso ainda não revelaria nada sobre a possibilidade de um surgimento originário da intencionalidade a partir da observação recíproca do comportamento de organismos que reagem de modo semelhante a determinadas secções do entorno, mas que não reagem de modo intencional.

Para a percepção recíproca de reações objetivamente semelhantes transformar-se numa atribuição recíproca do mesmo padrão de reação, é necessário que os participantes utilizem o mesmo critério. Já que sujeitos diferentes só são capazes de constatar semelhanças objetivas sob certas perspectivas determinadas intersubjetivamente. Conforme o dito de Wittgenstein, eles têm de poder seguir uma regra. Não é suficiente ter reações semelhantes na visão de um observador não-participante; os próprios participantes têm de notar uma semelhança das reações na linha do mesmo estímulo ou do mesmo objeto.41 E isso já pressupõe o que deveria ser explicado: "Toda a consciência de tipos, 4Í Post hoc\ encontro a mesma objeção em FENNELL, J. "Davidson on Meaning

Normativity: Public or Social", in: European Journal of Philosophy, 8, 2000, 139-154: "A regularidade no entorno, a identificação dos estímulos comuns como sendo aqueles aos quais ambos respondemos supõe um juízo de semelhança normativa. [...] Para emitir o requerido juízo de semelhança normativa o intérprete deve ir além daquilo que tem ao seu alcance como observador externo [...] Por isso, a triangulação tem que enfrentar o problema da identificação dos estímulos comuns, [...] e se a triangulação é entendida em termos puramente causais como a correlação de pares de estímulo-resposta, o problema não é resolvido".

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semelhanças, fatos, etc. [...] é uma questão lingüística".44 É certo que Davidson destaca o núcleo social da normatividade de um espírito que, entre outros aspectos, é caracterizado pela intencionalidade e pela referência a um mundo objetivo comum. Mesmo assim, ele não compreende a socialidade na perspectiva de um membro que se encontra preliminarmente em um modo de vida compartilhado com outros, ou seja, que não está apenas munido objetivamente de disposições comportamentais similares, mas que tem consciência, ao menos intuitiva, dessa coincidência.

A compreensão - compartilhada preliminarmente com outros membros - daquilo que torna o próprio modo de vida algo comum faz parte da pertença ou da "qualidade de ser membro". A escolha de um princípio objetivista que assimila a compreensão do sentido a uma explicação conduzida por uma teoria significa a decisão por um solipsismo metódico. Este obriga a entender todo acordo comunicativo como resultado construtivo da coordenação e da sobreposição de operações de interpretação que cada um pode realizar por si mesmo na perspectiva de um observador, sem a necessidade de lançar mão de um fundo comum de elementos pré-estabelecidos que se regulam por si mesmos e que estão presentes subjetivamente. Não fosse assim, seria mais indicado, por exemplo, introduzir a triangulação no sentido de G H. Mead, isto é, como um mecanismo que explica como um casal de indivíduos da mesma espécie torna-se consciente do significado dos padrões de reação comuns da espécie pelo caminho da adoção de atitudes mútuas e como esse significado se torna disponível simbolicamente para ambas as partes.45

( 7 ) A hermenêutica assume uma posição contrária a princípios objetivistas. E segundo ela, o processo de interpretação é dirigido por uma pré-compreensão não controlada por observações sobre um comportamento alheio, como no caso de uma hipótese empírica, mas explicitada e corrigida pelo caminho de perguntas e respostas, como

44 SELLARS, W. Empiricism and the Philosophy ofMind. (1956), Cambridge (Mass.), 1997), 63.

45 HABERMAS, J. (1981), vol. 2, 11-68.

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num diálogo com uma segunda pessoa. Os parceiros de um diálogo movimentam-se, mesmo quando precisam desenvolver uma linguagem comum, no horizonte de uma compreensão compartilhada que funciona como pano de fundo. Tal procedimento é circular à proporção que tudo aquilo que um intérprete aprende a entender constitui o resultado falível da explicação de uma pré-compreensão que geralmente é vaga e indeterminada. E Gadamer, coincidindo com Davidson, sublinha que, nesse processo, o intérprete toma como ponto de partida a suposição pragmática de que o texto a ser interpretado só pode ter um sentido claro enquanto exteriorização de um autor racional. A incompreensibilidade de textos e a opacidade de exteriorizações só podem aparecer ante a folha de contraste dessa "antecipação da completude": "Isso constitui evidentemente uma pressuposição formal que orienta toda e qualquer compreensão. Ela significa que somente é compreensível o que representa realmente uma unidade completa de sentido."46

A suposição hermenêutica da racionalidade revela um parentesco surpreendente com o princípio davidsoniano de caridade. E o parentesco, vai, inclusive, ainda mais longe. Da mesma forma que o "intérprete radical" é obrigado a dirigir seu olhar para as circunstâncias sob as quais um falante estranho emite uma exteriorização que se presume verdadeira, assim também, o intérprete gadameriano é obrigado a dirigir o olhar simultaneamente para o texto e para a coisa nele enfocada. Antes de "extrair e entender a opinião do outro, enquanto tal", é necessário que nos "entendamos na coisa". Tal é a versão hermenêutica do princípio básico da semântica formal, segundo o qual, o sentido de uma frase é determinado por suas condições de verdade. Existe, não obstante, uma diferença considerável em um outro aspecto. Enquanto o intérprete davidsoniano, adotando a perspectiva de um observador, atribui ao estranho a disposição de orientar-se pelas normas de racionalidade que ele mesmo toma como orientação, o intérprete gadameriano supõe, na perspectiva de um participante, que o parceiro do diálogo manifesta-se racionalmente de acordo com padrões de racionalidade comuns. Neste caso, a suposição de raciona-

GADAMER (1960), 277 s.

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lidade, realizada de modo performativo, surge de uma compreensão comum da racionalidade, não de uma compreensão que coincide apenas objetivamente, como é o caso da atribuição objetivadora da racionalidade.

Em todo caso, o modelo global de um diálogo que se alimenta de tradições importantes para a vida lança mão de uma série de pressuposições não esclarecidas. Para torná-lo acessível a uma análise mais precisa, a pragmática formal reduz esse grande cenário hermenêutico à estrutura de uma troca elementar entre atos de fala orientados pelo entendimento (Verstündigung). O potencial da razão que opera ao nível macroscópico do agir comunicativo é analisado, por Wittgenstein, ao nível microscópico do comportamento conduzido por normas. Tal lance de Wittgenstein serviu de inspiração para um ramo da tradição fregeana, não-empirista, que chega até Dummett e Brandom. Esses autores, diferentemente da tradição que segue a linha Carnap-Quine-Davidson, tomam como ponto de partida práticas comuns exercitadas normativamente, as quais fundam um complexo de sentido compartilhado intersubjetivamente. Do ponto de vista metódico, eles adotam a perspectiva de parceiros de um jogo que explicitam capacidades de falantes competentes.

O que uma análise pragmático-formal, que parte "de cima", apresenta como rede de suposições idealizadoras, é focalizado, "a partir de baixo", por um princípio analítico que corre em direção contrária à da destranscendentalização. Entretanto, esse enfoque também revela que a suposição de significados idênticos de palavras aponta para suposições mais complexas de um mundo objetivo comum, para a racionalidade de sujeitos capazes de fala e ação e para o caráter incondicional de pretensões de verdade. Não se pode pensar o nível inferior da idealização independentemente dessas outras idealizações. Wittgenstein anula o platonismo semântico de Frege sem lançar fora a idéia da comunicabilidade pública e dos significados idênticos. Dummett conserva a autonomia da função representadora da linguagem e da referência ao mundo objetivo, conüapondo-as à forma de vida compartilhada intersubjetivamente e ao consenso básico da comunidade de linguagem, que serve de pano de fundo. Brandom, finalmente, apreende, em conceitos detalhados de uma pragmática

formal, a racionalidade e a imputabilidade que os participantes do discurso atribuem-se mutuamente. Limito-me aqui a recordar, em grandes pinceladas, esses lances de argumentação, extremamente densos, com o propósito de por à mostra pressuposições idealizadoras das quais tal perspectiva não pode fugir.

A significação de uma expressão simbólica aponta para além das circunstâncias específicas nas quais ocorre. Wittgenstein analisa esse momento platônico da generalidade do significado que se liga a qualquer conceito ou predicado, lançando mão do conceito de comportamento guiado por regras. Ora, na perspectiva de um observador, o comportamento "regular" apenas coincide com uma regra; ao passo que o comportamento "guiado por regras" exige a orientação por uma regra da qual o próprio sujeito agente precisa ter um conceito. Isso faz lembrar a distinção que Kant inü-oduz entre o "agir segundo uma lei" (gesetzmassig) e um "agir por respeito à lei" (aus Achtung vor dem Gesetz). Wittgenstein ainda não pensa em normas de ação complexas, e sim, em regras de produção para operações simples - aritméticas, lógicas ou gramaticais - que podem ser investigadas seguindo o modelo das regras de um jogo.

Por esse caminho, ele analisa a camada inferior da normatividade detectável em atividades mentais. As regras têm de ser dominadas praticamente, uma vez que - e isso o próprio Aristóteles já sabia -elas não poderiam regulai- a aplicação de si mesmas sem que o agente caísse em um regresso infinito. O saber implícito que nos ensina como seguir uma regra precede o saber explícito contido nela. Quando não conseguimos "entender-nos" "sobre" uma prática conduzida por regras, também não podemos tomar explícita essa capacidade nem formular, enquanto tal, as regras que conhecemos intuitivamente. E uma vez que o conhecimento de regras se funda em uma espécie de competência, Wittgenstein conclui que todo aquele que tenta obter clareza sobre seu saber prático já se encontra, preliminarmente, de certa forma e enquanto participante, em uma prática.47

Cf. com relação a esse ponto o que Apel já afirmara: APEL, K.-O. "Wittgenstein und das Problem des Hermeneutischen Verstehens" (1966), in: id. Transfor-mation der Philosophie. Vol. I, 1973, 335-377.

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A análise da peculiar normatividade desse tipo de comportamento elementar, conduzido por regras, revela, além disso, que essas práticas são exercitadas em comum, ou seja, possuem um caráter social que as acompanha desde o início. As regras são "normativas" num sentido atenuado - sem qualquer conotação obrigatória do tipo que é inerente a normas de ação - ou seja, elas ligam o arbítrio de um sujeito "dirigindo" suas intenções em uma determinada direção:

- Regras "ligam" a vontade, de tal sorte que os sujeitos agentes tentam evitar possíveis infrações da regra; a obediência a uma regra significa a omissão de um "agir em sentido contrário".

- Quem obedece a uma regra pode cometer erros e expor-se à crítica de possíveis faltas; ao contrário do saber prático, que tem a ver com o modo como se segue uma regra, a avaliação de um comportamento correto exige um saber explícito em termos de regras.

- Em princípio, quem segue uma regra deve estar em condições de se justificar perante um crítico; por isso, o próprio conceito de "seguir uma regra" inclui a divisão virtual do trabalho entre os papéis do crítico e do prático, os quais possuem saberes distintos.

- Por conseguinte, ninguém pode seguir uma regra para si mesmo, de modo solipsista; o domínio prático de uma regra significa a capacidade de participar socialmente de uma prática costumeira na qual os sujeitos já se encontram previamente, tão logo se certificam reflexivamente de seu saber intuitivo com a finalidade de se justificar uns perante os outros.

Wittgenstein explica a universalidade ideal do significado, mencionada por Frege, lançando mão de um "consenso" já existente entre membros numa prática comum. Nela se manifesta o reconhecimento intersubjetivo de regras seguidas tacitamente. Ante tal pano de fundo, os membros podem "tomar" uma determinada conduta como exemplo para uma regra ou entendê-la como "cumprimento" de uma regra. E já que pode haver, em princípio, controvérsias sobre a correção de uma determinada conduta, o "sim" ou o "não" de um possível crítico, o qual a acompanha implicitamente, faz parte do sentido da validade normativa de uma regra. A codificação binaria: "correto" ou "falso" introduz, na conduta guiada por regras, um mecanismo de autocorreção.

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É bem verdade que não ficou claro qual seria em última instância, o critério que deveria servir de medida para a crítica pública. Parece que a crítica não pode abranger as regras que subjazem intuitivamente porque estas são constitutivas para determinadas práticas tal como, por exemplo, o jogo de xadrez. E uma vez que Wittgenstein analisa a gramática dos jogos de linguagem seguindo o modelo de jogos da sociedade, ele considera (em uma linha de interpretação às vezes questionada) a concordância da comunidade lingüística exercitada faticamente, como autoridade inapelável para a avaliação do correto e do falso - como o tipo de certeza contra a qual "a pá se dobra". Assim é possível interpretar, em todo caso, a passagem da semântica da verdade para a teoria do significado como uso, efetuada pelo Wittgenstein tardio. Frege já definira o significado de uma frase com o auxílio de condições de verdade que determinam o modo como ela é utilizada corretamente. Ora, se é possível extrair as condições de verdade do consenso local que serve de pano de fundo, o qual se difundiu convencionalmente entre os membros de uma comunidade lingüística, é muito mais simples descrever diretamente o uso da linguagem estabelecido, renunciando ao conceito complicado de verdade ou falsidade de proposições: "Por isso, o significado de uma proposição ou forma proposicional não deve ser explicado pela determinação de uma condição necessária para que seja verdadeira, e sim, descrevendo o seu uso."48

Tal argumento perde, no entanto, sua plausibilidade quando recordamos o princípio fregeano do contexto, segundo o qual, o significado de palavras isoladas é determinado pela contribuição potencial que elas podem fornecer para a composição do sentido de frases verdadeiras. De acordo com isso, o significado de predicados ou conceitos individuais não se infere diretamente das circunstâncias do uso de palavras isoladas, mas no contexto das frases nas quais, caso as frases sejam verdadeiras, elas encontram uma utilização correta. Porquanto o sentido dessas frases se determina, no todo, segundo as circunstâncias sob as quais elas podem ser utilizadas de acordo com a

DUMMETT, M. "Language and Communication", in: id. The Seas of Lan-guage. Oxford, 1993, 181.

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verdade. Para saber se alguém utiliza o predicado "vermelho" de forma correta, ou seja, se domina a correspondente regra dos predicadores, temos de lançar mão de frases exemplares que devem ser verdadeiras para expressar resultados testados com sucesso - por exemplo, referências a objetos vermelhos, repetidas sucessivamente.

De modo similar, o domínio prático de regras matemáticas ou lógicas comprova-se pela correção das proposições correspondentes. Enquanto se trata de regras operativas com função cognitiva, - como é o caso das regras de jogo negociadas explicitamente que não estão enraizadas em um saber prático preliminar - parece que a sua "validade" não é explicada pelas convenções existentes, mas pela conuúbuição que as operações realizadas conforme regras fornecem para a formação de asserções verdadeiras. De acordo com isso, na esfera das operações cognitivas simples, a conduta guiada por normas deixa enüever uma normatividade que já aponta para a verdade e a aceitabilidade racional de asserções de uma linguagem natural. O "sim" ou "não" elementar de um professor wittgensteiniano, que conüola a operação de um aluno que aplica uma regra, parece que só se desenvolve - ou dá-se a conhecer plenamente em seu sentido de validade - sobre o degrau mais complexo dos posicionamentos explícitos, em termos de sim/não, que participantes da argumentação assumem quanto a pretensões de verdade dotadas de conteúdo empírico.

De modo semelhante, Dummett faz valer a idéia originária de Frege conüa o Wittgenstein tardio. Sua objeção consiste essencialmente em afirmar que o julgamento da verdade de uma asserção tem de ser medido pela reprodução de um fato e não pelo fato de o falante ater-se ao uso da linguagem de seu entorno. A autoridade epistêmica da assertibilidade justificada não se esgota na autoridade social da comunidade lingüística. Certamente, após a guinada lingüística, ficou claro que a representação de estados de coisas depende do médium da linguagem, pois, qualquer pensamento claro precisa ser expresso na forma proposicional de uma proposição assertórica correspondente. O pensamento está vinculado à função representadora da linguagem. Porém, uma proposição assertórica, enunciada corretamente, não é verdadeira por que as regras da aplicação da proposição refletem o consenso ou a imagem de mundo de uma determinada comunidade 8 4

lingüística, mas porque elas garantem, por meio da aplicação correta, a aceitabilidade racional da proposição. As regras, talhadas conforme a função de representação da linguagem, possibilitam uma referência a objetos e uma relação a estados de coisas, sobre cuja existência o próprio mundo objetivo decide, não os costumes locais. Os falantes não conseguem comunicar-se sobre algo no mundo se o próprio mundo, suposto como objetivo, não se "comunicar", ao mesmo tempo, com eles.

Wittgenstein utiliza a expressão "gramática da linguagem" no sentido amplo de uma "gramática da forma de vida" porque toda linguagem natural está "entrelaçada", por sua função comunicativa, com a articulação dos conceitos fundamentais da imagem de mundo e da estrutura social da comunidade lingüísúca. Mesmo assim, as regras da linguagem não podem ser assimiladas a "usos e costumes", porque toda linguagem goza de uma certa autonomia em relação ao pano de fundo cultural e em relação às práticas sociais da comunidade lingüística. Tal autonomia resulta da troca entre saber lingüístico e saber sobre o mundo. O desvendamento lingüístico do mundo viabiliza processos de aprendizagem, dos quais se alimenta o saber sobre o mundo. Todavia, o saber sobre o mundo conserva, ante o saber lingüístico, uma força revisora porquanto a função representadora da linguagem não se esgota nas formas do seu uso comunicativo: "Que uma asserção satisfaça à condição de ser verdadeira não é, em si mesma, uma característica de seu uso [...]. As asserções não adquirem, em geral, sua autoridade pela freqüência com que são feitas. Precisamos distinguir, antes, entre o que é dito simplesmente de modo habitual e o que os princípios que regem os significados de nossas asserções requerem de nós ou nos autorizam a dizer."49 Esse sentido próprio da função de representação da linguagem nos lembra a suposição comum de um mundo objetivo, que deve ser adotada pelos participantes da comunicação quando formulam asserções sobre algo no mundo.

(8) De outro lado, Dummett, contrapondo-se a Frege, mantém a idéia wittgensteiniana, segundo a qual, a linguagem deita raízes no

Ibid., 182 s.

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agir comunicativo e, por esta razão, sua estrutura só pode tornar-se visível pelo caminho da explicação de um saber de falantes nela treinados. Em que pese isso, dentre os complexos contextos de uso, ele destaca, especialmente, uma determinada prática, a saber, o jogo de linguagem de asserções, de objeções e justificações nas quais "obrigações" e "justificações" ("o que os princípios da linguagem requerem e nos autorizam a dizer"), semanticamente fundamentadas, transformam-se em tema explícito. Aposição privilegiada do discurso racional se explica pela guinada epistêmica que Dummett imprimiu à semântica veritativa. Já que ninguém possui um acesso não-mediado às condições de verdade, só podemos entender uma frase quando soubermos como reconhecer que suas condições de verdade foram preenchidas. As condições que tomam uma frase verdadeira só podem ser conhecidas por meio de argumentos corretos que um falante poderia aduzir quando afirma ser verdadeira a frase: "Quando identificamos, não somente que alguém toma por verdadeira uma sentença, mas também sua vontade de asseri-la, nós distinguimos dois critérios de correção: o modo como os falantes estabelecem ou reconhecem a verdade de sentenças; e o modo como, ao reconhecê-las, estão afetando o curso ulterior da ação".50

Naturalmente tal estrutura discursiva interna do entendimento mútuo só aparece quando existe um pretexto para se duvidar da compreensibilidade ou da validade de um ato de fala. A troca comunicativa, entretanto, acontece sempre ante o pano de fundo de um teatro de sombras, discursivo, que implicitamente caminha junto, porque uma exteriorização só é compreensível para aquele que conhece os argumentos (ou o tipo de argumentos) que a tomam aceitável. Conforme esse modelo, os falantes oferecem implicitamente, uns aos outros, na própria comunicação cotidiana normal, argumentos para a aceitabilidade de suas exteriorizações; eles exigem tais argumentos uns dos outros e aval iam reciprocamente o status de suas exteriorizações. Cada um decide se aceita como justificada a obrigação argumentativa que o outro contraiu, ou se a recusa.

DUMMETT, M. "Language andTruth", in: id. (1993), 143. 8 6

Robert Brandom escolhe esse princípio como ponto de partida de uma pragmática formal que conjuga a semântica inferencial de Wilfried Sellars com uma impressionante investigação lógica centrada na prática do "dar e exigir argumentos". Ele substitui a questão semântica básica da teoria do significado (o que significa compreender uma frase?) por uma questão pragmática: o que faz um intérprete quando "aborda e trata" corretamente um falante como alguém que, com seu ato de fala pretende verdade para a asserção 'p ' exteriorizada? O intérprete atribui ao falante uma obrigação (commitment) de justificar ' p ' ; e ele mesmo se posiciona quanto a essa pretensão de verdade (claim) à proporção que autoriza ou não o falante a afirmar 'p ' (en-titlemeni). Eu já me posicionei alhures quanto essa teoria.51 Aqui me interesso apenas pela suposição de racionalidade necessária em tais discursos. Na verdade, Brandom parte da idéia de que o falante e o ouvinte tratam-se reciprocamente como seres racionais para os quais argumentos "contam". Falantes e ouvintes deixam-se obrigar ou autorizai" por argumentos para o reconhecimento de pretensões de validade, criticáveis em princípio. No entanto, falta em Brandom a interpretação intersubjeti vista da validade objetiva que conecta a prática da argumentação a uma antecipação fortemente idealizadora.

Brandom localiza a normatividade da linguagem, capaz de "ligar" sujeitos racionais, na coação não-coativa do melhor argumento. Tal coação desenvolve-se pelo caminho de uma prática do discurso na qual participantes justificam racionalmente suas exteriorizações, uns perante os outros: "Essa é uma espécie de força normativa, um 'ter de' racional. Ser racional é estar vinculado ou obrigado por estas normas, estar submetido à autoridade das razões. Dizer 'nós', nesse sentido significa colocar-nos a nós mesmos e a cada um dos outros, no espaço das razões, oferecendo e solicitando razões para nossas atitudes e performances."52 Tal tipo de responsabilidade racional (re-sponsibility) é constitutivo para a autocompreensão de sujeitos cuja característica principal reside na faculdade de fala e ação. A

51 HABERMAS, J. "Von Kant zu Hegel. Zu Robert Brandoms Sprachpragmatik", in: id. (1999), 138-185.

" BRANDOM, R. B. Making it Explicit. Cambridge (Mass.), 1994, 5.

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autocompreensão racional é, ao mesmo tempo, determinante para a perspectiva de um "nós", na qual uma pessoa se qualifica como "um de nós".

É interessante constatar que Brandom inicia seu livro seguindo, na íntegra, a tradição de Peirce, Royce e Mead, e apresentando uma versão intersubjetivista de um conceito de razão universalista. Esses pragmatistas entendem basicamente o universalismo como uma forma de evitar a exclusão. A perspectiva do "nós", pela qual seres racionais -não tanto como enquanto "sencientes" porém, mais como "sapientes" - distinguem-se de outros seres vivos proíbe o particularismo, mas não o pluralismo: "A colocação mais cosmopolita inicia-se com um insight pluralista. Quando perguntamos: quem somos nós ou que tipo de coisa somos, as respostas podem variar sem deixarem de ser compatíveis. Cada um define, de forma diferente, o modo de dizer "nós"; cada modo de dizer "nós" define uma comunidade diferente. Aponta para uma grande Comunidade que compreende todos os membros de todas as comunidades particulares - a Comunidade daqueles que dizem "nós" de qualquer um e a qualquer um, independentemente do fato de os membros dessas comunidades diferentes se reconhecerem entre si ou não."510 C maiúsculo poderia caracterizar o ponto de referência ideal para a aceitabilidade racional exigida para pretensões de validade incondicionais, isto é, que transcendem contextos e que têm de justificar-se perante um público "cada vez mais dilatado". Em Brandom, não se encontra, todavia, um equivalente pragmático para essa idéia - por exemplo, na figura das pressuposições da argumentação que mantêm em movimento a dinâmica de uma descentração progressiva das perspectivas de interpretação pluralistas. Isso pode ser explicado, já que existe, nesta obra imponente, um aspecto esclarecedor que eu gostaria de destacar criticamente.

Brandom descuida, como, aliás, a quase totalidade da tradição analítica, a relevância cognitiva do papel da segunda pessoa. Ele não atribui nenhum peso à atitude performativa do falante perante um destinatário, a qual é constitutiva em todo diálogo; tampouco entende

Ibid., 4.

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a relação pragmática entre pergunta e resposta como uma troca dialógica. Tal objetivismo transparece, por exemplo, quando ele aborda o problema da preservação da "precedência metódica do social": como mantê-la sem atribuir ao consenso da comunidade lingüística a última palavra em questões da validade epistêmica? Brandom conüapõe à imagem coletivista de uma comunidade lingüística, que impõe autoridade, uma imagem individualista de relações que se isolam aos pares. Um par de sujeitos individuais, isolados, atribuem-se reciprocamente commitments (compromissos) e se concedem ou negam reciprocamente entitlements (autorizações). Cada lado forma seu juízo monologicamente, ou seja, de tal modo que nenhum deles consegue "encontrar-se" "com" o respectivo outro no reconhecimento intersubjetivo de uma pretensão de validade. Brandom menciona, é verdade, "relações-eu-tu". De fato, porém, ele as constrói como relações entre uma primeira pessoa - que se fixa na verdade de uma asserção - e uma terceira pessoa que atribui à outra uma pretensão de verdade, mantendo a reserva de uma avaliação própria. O ato de atribuição, fundamental para a inteira prática do discurso, objetiviza a segunda pessoa convertendo-a num terceiro observado.

Não é simples casualidade o fato de Brandom equiparar, por via de regra, o intérprete a um público que julga a exteriorização de um falante observado, e não a um destinatário do qual o falante espera uma resposta. Dado o fato de que ele não cogita a possibilidade de uma atitude dialógica ante uma segunda pessoa, Brandom vê-se obrigado, no final das contas, a dissolver o nexo interno entre objetividade e intersubjetividade em favor de uma "prioridade do objetivo". Parece que o distanciamento monológico é o único meio de que o indivíduo dispõe para garantir a independência epistêmica ante a autoridade coletiva da respectiva comunidade lingüística. No entanto, tal descrição individualista falseia o ponto mais interessante do entendimento lingüístico.

As comunicações cotidianas acontecem no contexto de assunções subjacentes e compartilhadas, de tal sorte que surge uma precisão de comunicação quando se trata de colocar em harmonia as opiniões e intenções de sujeitos que julgam e decidem autonomamente. Em todo caso, a necessidade prática de coordenar planos de ação confere um

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perfil claro à expectativa dos participantes da comunicação de que os destinatários irão posicionar-se quanto às suas próprias pretensões de validade. Eles esperam uma reação de aceitação ou de recusa, que conta como resposta, porque somente o reconhecimento intersubjetivo de pretensões de validade criticáveis é capaz de produzir o tipo de comunidade (Gemeinsamkeit) sobre a qual é possível fundamentar, para ambos os lados, vínculos confiáveis e relevantes para as conseqüências da interação.

A prática da argumentação dá simplesmente continuidade a esse agir comunicativo, porém, em um plano reflexivo. Por isso, os participantes individuais da argumentação, que continuam mantendo sua orientação pelo entendimento lingüístico, permanecem, de um lado, inseridos numa prática exercida em comum; de outro lado, porém, eles precisam posicionar-se fundamentadamente quanto às pretensões de validade tematizadas, isto é, à luz de uma coação não-coativa, que os leva a uma avaliação própria, autônoma. Nenhuma autoridade coletiva limita o espaço individual de avaliação nem mediatiza a capacidade de julgar do indivíduo. A "bifrontalidade" peculiar das pretensões de validade incondicionais faz jus a esses dois aspectos. Na qual idade de pretensões, jungem-se ao reconhecimento intersubjetivo; por isso, a autoridade pública de um consenso obtido discursivamente sob condições de "poder dizer não" não pode ser substituída, em última instância, pela intelecção privada de um único indivíduo que sabe mais e melhor. Não obstante isso, enquanto pretensões de validade absoluta, elas apontam para além do acordo obtido faticamente. Já que o é aceito, aqui e agora, como racional, pode revelar-se, sob condições epistêmicas melhores, perante um outro público e perante futuras objeções, falso.

Para fazer jus a tal característica bicípite das pretensões de validade, incondicionais, a discussão precisa ser desenvolvida sob pressuposições idealizadoras tais que permitam a afluência de todas as informações e argumentos, relevantes e acessíveis. E uma vez de posse desta idealização íngreme, o espírito finito pode enfrentar a compreensão (Einsichf) transcendental, segundo a qual, a objetividade fundamenta-se, de forma ineludível, na intersubjetividade lingüística.

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3 . SOBRE A ARQUITETÔNICA DA DIFERENCIAÇÃO DO DISCURSO. PEQUENA RÉPLICA A UMA GRANDE CONTROVÉRSIA.

Devo antecipar que meu esboço de resposta a três ofertas de diálogo crítico, que me foram endereçadas pelo meu amigo Karl-Otto Apel, ficará, apesar de tudo, a meio caminho, aquém do nível de adequação exigido.' Tal falha é conseqüência da abrangente complexidade de suas considerações cuidadosas e extremamente amplas, mas também, e especialmente, do tipo das diferenças. Estão em questão diferenças que têm a ver com a arquitetura da teoria sobre as quais é difícil discutir ao nível das premissas porque a construção das teorias tem de ser comprovada na fecundidade de suas conseqüências. E tal comprovação não pode ser tarefa dos autores envolvidos. Na comparação de teorias, cujas intenções se aproximam tanto, falta, muitas vezes, aos que dela participam diretamente o fôlego hermenêutico necessário para que um possa acompanhar, a partir da distância requerida, os argumentos do outro. No meu entender, os elementos que existem em comum interferem tanto na elaboração da crítica, que os dois interrompem prematuramente a palavra um do outro, aduzindo precipitadamente argumentos próprios. As ressalvas, amistosas ou críticas, podem ter-se intensificado durante o período que se situa entre Conhecimento e interesse (1968) - escrito na época em que houve o maior consenso - e Direito e democracia (1992). Durante esse tempo, aprofundou-se, de um lado, a diferença entre a pretensão fortemente transcendental, de Apel, e meu procedimento

1 APEL, K.-O. Auseinandersetzungen. Frankfurt/M., 1998, 689-838.

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destranscendentalizado. De outro lado, espero ter entendido melhor, em seminários dos quais participei juntamente com Apel, as diferenças que marcam nossas estratégias de argumentação. E assimilei, da cooperação ininterrupta, conhecimentos que formam atualmente o plano de fundo de nosso diálogo.

No lugar adequado, abordarei uma objeção central que Apel levanta contra o princípio do discurso tal como foi delineado em Direito e democracia (1). Com a finalidade de enfraquecer tal objeção, distingo inicialmente entre conteúdo normativo de pressuposições inevitáveis da argumentação e aspectos de validade sob os quais tal potencial de racionalidade pode ser explorado (2) . A partir daí, o princípio moral não pode mais ser inferido, conforme sugestão de Apel, exclusivamente de pressuposições da argumentação, as quais são normativas em um sentido transcendental. Já que tal princípio extrai um sentido de obrigação deontológica da ligação do conteúdo transcendental de discursos com o sentido de validade de normas morais de ação introduzidas em discursos de fundamentação (3 ) . O direito moderno, por seu turno, é positivo, subjetivo e coativo, dependente das determinações de um legislador político. E uma vez dadas essas características formais, ele se distingue da moral da razão, seja em sua função, seja na necessidade de fundamentação (4). Finalmente, a necessidade de uma justificação neutra de um direito entrelaçado com a política (isto é, neutra em termos de uma visão de mundo), pode explicar porque o princípio da democracia assume uma posição autônoma em relação ao princípio moral (5). As diferenças na arquitetura teórica, que continuam presentes na ética da responsabilidade, elaborada por Apel com a finalidade de complementar a "ética do discurso" tornando-a apta a servir de introdução à realização da moral, fundam-se, em última instância, em idéias metafilosóficas. Retomarei esse ponto no final (6).

(1) Desenvolvi, em Direito e democracia, uma proposta destinada à fundamentação do sistema dos direitos fundamentais, que pretende fazer jus à intuição, segundo a qual, a autonomia privada e a pública

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são co-originárias.2 No decorrer da fundamentação do Estado constitucional democrático, ambos os princípios de legitimação, ou seja, a "dominação das leis" e a "soberania do povo", pressupõem-se mutuamente. Contrapondo-se a isso, o liberalismo que remonta a Locke defende a prioridade da liberdade dos modernos sobre a liberdade dos antigos. Eu prefiro evitar tal subordinação contra-intuitiva do princípio da democracia ao princípio do Estado de direito, já que ela desemboca na necessidade de se fundar o direito positivo e coativo sobre normas morais básicas. A subordinação retira os fundamentos da constituição democrática da formação democrática da vontade. Não há necessidade de abordar aqui a estratégia de argumentação da qual lanço mão para fundamentar a co-originariedade ou eqüiprimordialidade do princípio da democracia e dos direitos humanos.3 Ela deve servir, aqui, apenas como motivação para tornar mais nítido o ponto de partida da controvérsia com Apel.

O fato de as normas da moral e do direito terem surgido de diferenciações de formas religiosas e jusnaturalistas da eticidade tradicional reveste-se de um interesse que ultrapassa o plano histórico. Porquanto tal paralelismo do surgimento sugere que esses dois tipos complementares de normas de ação, altamente complexas, distinguem-se, não quanto ao nível em que se situam, mas na forma de sua fundamentação. O direito coativo moderno tem de ser produzido de acordo com um procedimento garantidor de legitimidade, o qual obedece ao mesmo nível pós-metafísico, portanto, neutro - em termos de uma visão de mundo, - no qual se situa a moral da razão. Todavia, tal procedimento democrático não pode extrair sua força legitimadora de uma moral anteposta ao direito. Porque neste caso destruir-se-ia o sentido performativo da autodeterminação democrática de uma coletividade concreta, delimitada no espaço e no tempo.

Em que pese isso, o procedimento que visa a criação do direito tem de ser, por seu turno, institucionalizado juridicamente, a fim de

2 HABERMAS, J. Faktizital und Geltung. Frankfurt/M., 1992, 135 ss. Td. "Constitutional Democracy - A Paradoxical Union of Contradictory Prin

cipies?", in: Political Theary, Vol. 29, 6, dezembro de 2001, 766-781.

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garantir uma inclusão simétrica de todos os membros da comunidade política na formação democrática da opinião e da vontade. O próprio princípio da democracia está constituído na linguagem do direito: ele assume uma figura positiva nos direitos políticos de participação que são iguais para todas as pessoas. Naturalmente, os cidadãos do Estado também devem ser capazes de emitir juízos morais; no entanto, eles não emitem tais juízos num contexto extra-jurídico do mundo da vida de pessoas naturais, e sim, no seu papel, juridicamente constituído, de cidadãos de um Estado autorizados ao exercício de direitos democráticos. Caso contrário, os destinatários do direito não teriam condições de se entender também como seus autores. Eles somente poderiam preencher adequadamente o papel de um cidadão do Estado caso expelissem a cápsula da pessoa de direito e retomassem a faculdade de julgar moralmente, que é própria das pessoas naturais.

A tese da independência de um princípio da democracia, o qual deve ser "livre de moral", também coloca em jogo uma outra tese, a de que a legitimidade do direito vigente pode ser explicada simplesmente pelo procedimento da formação democrática da opinião e da vontade. Por isso, fui levado a determinar o princípio do discurso - que no início foi talhado apenas para o princípio de generalização "U" - de modo tão abstrato, a ponto de ele poder expressar apenas uma necessidade pós-metafísica de justificação em geral, isto é, tendo em vista normas de ação em geral. Tal princípio deveria deixar espaço para uma ulterior especificação das exigências de fundamentação.

"Esse princípio possui [...] certamente um caráter normativo, uma vez que ele explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos. Porém, ele se situa em um nível de abstração tal que, apesar desse conteúdo normativo, ainda é neutro em relação ao direito e à moral; porquanto ele se refere a normas de ação em geral:

D: são válidas precisamente as normas de ação com as quais poderiam consentir, enquanto participantes de discursos racionais, todos os possíveis atingidos. "4

4 HABERMAS, I. (1992), 138.

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Veremos, mais para frente que, no que respeita ás condições de validade, o conteúdo de "D" é especificado ao nível de um princípio moral e de um princípio da democracia;5 as regras, tanto morais como jurídicas, têm de satisfazer, respectivamente, a tais condições de validade, a fim de merecer reconhecimento geral em seus prórpios domínios de validade, os quais certamente se sobrepõem, porém, não são idênticos.

Apel, no entanto, exteriorizou a seguinte dúvida: será que "D" já não contem o inteiro conteúdo normativo do princípio moral?:

"Eu não vejo como seja possível negara qualidade moral do 'conteúdo normativo' do 'princípio da imparcialidade de juízos práticos' [...] se éque devemos, conforme é postulado, a seguir, por Habermas, inferir de tal princípio, mediante 'especificação do princípio geral do discurso', um princípio moral para o qual deve continuar valendo o ponto de vista da 'consideração simétrica dos interesses'de todos os atingidos, mesmo que agora ele seja o 'único' ".rt

É inquestionável o fato de que, para a fundamentação de normas que apresentam as características formais do direito moderno, os argumentos morais desempenham um papel importante, ao lado de argumentos empíricos, pragmáticos, éticos e jurídicos. Em muitos

5 Recordemos: O princípio moral tem a figura de um princípio de universalização, introduzido como regra de argumentação. Em conformidade com isso, normas de ação morais válidas têm de satisfazer à condição, segundo a qual, as conseqüências e efeitos colaterais que provavelmente terão lugar no caso de uma obediência generalizada, teriam de ser aceitáveis por todos os possíveis atingidos enquanto participantes do discurso. O princípio da democracia, que nas constituições democráticas assume a figura de direitos de participação e de comunicação, garantindo a prática de autodeterminação de uma associação de membros do direito, livres e iguais, significa que somente podem pretender validade legítima as leis que, num processo de criação do direito configurado discursivamente, podem contar com o assentimento de todos os cidadãos (o qual também é operacionalizado juridicamente).

"APEL, (1998), 761 ss.

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casos até, o seu papel é decisivo. E é bem verdade que os direitos têm de se configurar, em geral, de tal forma que possam ser respeitados também "por respeito à lei".

Entretanto, se o direito não pode ir contra a moral, o princípio da democracia, que controla a produção de direito legítimo, também não pode ser "neutro" do ponto de vista moral. Parece que ele deve seu conteúdo moral ao mesmo princípio "D", que também está na base do princípio moral. O pontapé inicial para a controvérsia foi dado pela seguinte questão: será que Apel, apoiando-se em tal consideração, pode atribuir a primazia ao princípio moral, que estaria acima do princípio da democracia, o qual é decisivo para a legitimação do direito? O esclarecimento de minhas ressalvas em relação a tal fundamentalismo implica inicialmente um retorno rememorativo àquilo que constitui o ponto de partida comum de nossas reflexões sobre a "ética do discurso".

( 2 ) A teoria discursiva da verdade, da moral e do direito foi criada num momento em que o pensamento pós-metafísico se viu, inopinadamente, num beco sem saída, após ter-se desfeito dos conceitos de natureza, fortes, os quais extraem os elementos normativos de uma constituição do ente ou da subjetividade. A teoria discursiva procura obter um conteúdo normativo da prática de argumentação, da qual nos sentimos dependentes sempre que nos encontramos numa situação insegura - não apenas como filósofos ou cientistas, mas também quando, em nossa prática comunicativa cotidiana, a quebra de rotinas nos obriga a parar um momento e a refletir, a fim de nos certificarmos reflexivamente acerca de expectativas justificadas. Por conseguinte, o ponto de partida é formado pelo conteúdo normativo daquelas pressuposições pragmáticas "inevitáveis", nas quais os participantes da argumentação têm de se apoiai' implicitamente quando - levados pela pretensão de resgatar pretensões de validade controvertidas - decidem-se a tomar parte numa busca cooperativa da verdade a qual assume a forma de uma disputa por melhores argumentos. O sentido performativo de tal prática da argumentação consiste no fato de que, no que tange a questões relevantes e na base

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das informações devidas, "a coação não-coativa do melhor argumento" deve ser decisiva(l). Na ausência de argumentos concludentes ou de evidências convincentes, a própria decisão sobre aquilo que vale como bom ou mau argumento no respectivo contexto pode ser controversa. Por isso, a aceitabilidade racional de afirmações questionáveis está apoiada, em última instância, na ligação entre "bons argumentos" e idealizações da situação cognitiva, que os participantes têm de levar a cabo quando participam de discursos racionais. Nomeio, a seguir, as quatro pressuposições pragmáticas inevitáveis mais importantes:

(a) Inclusividade: nenhuma pessoa capaz de dar uma contribuição relevante pode ser excluída da participação.

(b) Distribuição simétrica das liberdades comunicativas: todos devem ter a mesma chance de fazer contribuições.

(c) Condição de franqueza: o que é dito pelos participantes têm de coincidir com o que pensam.

(d) Ausência de constrangimentos externos ou que residem no interior da estrutura da comunicação: os posicionamentos na forma de "sim" ou "não" dos participantes quanto a pretensões de validade, criticáveis, têm de ser motivados pela força de convicção de argumentos convincentes.

Neste ponto, topamos com a premissa sobre a qual Apel apoiará seu argumento. Porquanto ele interpreta a força vinculante do conteúdo normativo de tais pressuposições da argumentação em um sentido forte e deontologicamente obrigatório, acreditando ser possível extrair diretamente da certificação reflexiva desse conteúdo normas básicas tal como o dever de tratar a todos de modo igual ou o dever da franqueza. Ele pretende, inclusive, extrair daquilo que nós temos de pressupor quando argumentamos um princípio da "co-responsabi-lidade" orientada para o futuro: segundo tal princípio, nós temos condições de saber que todos os participantes do discurso são responsáveis pela implementação de discursos práticos para a solução

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de conflitos de interesses.7 Confesso que nunca consegui acompanhar bem essa extrapolação que é feita sem nenhuma ressalva. Pois não é, de forma nenhuma, evidente que as regras constitutivas para a prática da argumentação enquanto tal, as quais são inevitáveis no interior de. discursos, também sejam obrigatórias quando se trata de regular o agir fora dessa prática improvável.8

As pressuposições transcendentais (em sentido fraco9) da argumentação distinguem-se das obrigações morais pelo fato de que elas não podem ser transgredidas sistematicamente sem que o próprio jogo da argumentação seja destruído. Quando, porém, transgredimos regras morais não precisamos sair, de forma nenhuma, do jogo de linguagem moral. Mesmo quando entendemos a distribuição simétrica das liberdades comunicativas no discurso e a condição da franqueza para a participação nele no sentido de direitos e deveres da argumentação, não é possível transferir diretamente, do discurso para a ação, a obrigação fundamentada na pragmática transcendental, nem traduzi-la para uma força deontológica de direitos e deveres morais, capazes de regular a ação. Tampouco a condição da "inclusividade" implica, além da acessibilidade ilimitada do discurso, a exigência da universalidade de normas de ação. E a pressuposição da ausência de coação também se refere apenas à estrutura do próprio processo de argumentação, não a relações interpessoais que se estabelecem fora de tal prática.

O conteúdo normativo do jogo de argumentação representa um potencial de racionalidade que pode ser atualizado na dimensão epistêmica do exame de pretensões de validade à proporção que a publicidade, a igualdade de direitos, a franqueza e a ausência de coação, 7 Ibid., 756; APEL, K. - O . "Diskursethik ais Ethik der Mitverantwortung vor

den Sachzwàngen der Politik, des Rechts und der Marktwirtschaft", in: APEL, K.-0 . e BURCKHART, H. ( e d s j Prinzip Mitverantwortung. Würtzburg, 2001, 69-96.

8 HABERMAS, J. "Diskursethik - Notizen zu einem Begründungsprogram", in: Id Moralbewusstsein und Kommunikatives Handeln. Frankfurt/M., 1983, 96.

9 Não posso deter-me aqui na discussão sobre o sentido pragmático-lingüístico nem sobre o status dos argumentos transcendentais.

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pressupostas na prática da argumentação, fornecerem critérios para um processo de aprendizagem que se corrige por si mesmo. A forma pretensiosa de comunicação, constituída pelo discurso racional, obriga os participantes, durante a apresentação das informações disponíveis e da mobilização de todos os argumentos relevantes, a uma descentração progressiva de suas perspectivas cognitivas. Nesta medida, e num sentido bem limitado, a substância normativa contida nas pressuposições da argumentação adquire "relevância para a ação", ou seja, ao tornar possível julgar pretensões de validade criticáveis, ela contribui para processos de aprendizagem. Entretanto, convém levar na devida conta um ponto extremamente importante neste contexto: tal potencial de racionalidade desenvolve-se em diferentes direções, dependendo do tipo da pretensão de validade que é tematizada e do correspondente tipo de discurso.

A direção da transferência de racionalidade também é determinada de acordo com as conotações da pretensão de validade e de acordo com os padrões de fundamentação relevantes. Para entender a autonomia do princípio do discurso - o qual prescreve um determinado nível de fundamentação que prescinde de assunções metafísicas básicas sem prejudicar, com isso, os sentidos instrumental, utilitário, ético, moral ou jurídico, inerentes à validade das afirmações possíveis sobre normas - temos de obter, antes, clareza sobre a diferença entre o conteúdo pragmático-transcendental da forma de comunicação dos discursos racionais e o sentido da validade específica de normas de ação fundamentadas. A fundamentação de afirmações descritivas simples pode revelar que o conteúdo normativo das pressuposições da argumentação representa um potencial geral de racionalidade que possui ligações específicas com o sentido de validade das formas de asserção introduzidas no discurso.

( 3 ) O sentido de pretensões de verdade, que atribuímos a frases assertóricas não se exaure na afirmabilidade ideal porque nós referimos os fatos asseverados a objetos dos quais supomos, pragmaticamente, que fazem parte de um mundo objetivo, que é, por conseguinte, idêntico para todos os observadores e que existe independentemente de nossas

9 9

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descrições.10 Tal suposição ontológica antecipa, para o discurso da verdade, um ponto de referência situado além do discurso, fundamentando, destarte, uma diferença entre verdade e afirmabilidade justificada. Em que pese isso, os participantes do discurso, que tematizam uma pretensão de verdade controversa, têm de aceitar, no final, mesmo em condições epistêmicas favoráveis, a "melhor justificação possível" de "p" , ao invés da "verdade" de " p " -precisamente no momento em que dizemos: "esgotaram-se todos os argumentos". Na consciência de nossa falibilidade, nós nos apoiamos, consolados, nesse quidproquo porque confiamos em uma situação epistêmica da qual sabemos que promove uma descentração progressiva de nossas perspectivas.

O mesmo acontece em discursos, nos quais se examina a racionalidade da escolha ou da finalidade de decisões, isto é, a idequação da escolha dos meios ou a adequação da escolha entre Iternativas de ação. Aqui, os participantes precisam dominar, além ia suposição de um mundo objetivo de estados possíveis, interligados a forma de leis, o jogo lingüístico da realização efetiva de fins scolhidos de modo racional, a fim de saber o que significa

iindamentar regras do agir instrumental ou estratégias de decisões tomplexas. Todavia, aqui também, no próprio núcleo empírico, trata-

Uu se do resgate discursivo de pretensões de verdade. Uma outra pretensão de validade entra em jogo com asserções

valiativas "fortes" tão logo se tomam problemáticos os próprios alores à luz dos quais os atores escolhem metas ou fins (Zwecke).'1

lOs discursos que se prestam ao esclarecimento de tais orientações valorativas possuem uma força epistêmica mais fraca. Eles viabilizam conselhos clínicos referidos ao contexto da história de uma vida individual ou de uma forma de vida coletiva, ambas vividas de forma

'"HABERMAS, J. Wahrheit und Rechtfertigung. Frankfurt/M., 1999, Introdução, VII, 48-55.

" HABERMAS, J. "Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischcn Vernunft", in: id., Erlauterungen zur Diskursethik. Frankfurt/M., 1991, 100-118.

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consciente, já que se orientam pelas pretensões de autenticidade da autoconsciência ou do projeto de vida de uma primeira pessoa no singular ou no plural. E nós ligamos a autoridade epistêmica da primeira pessoa à suposição de um mundo subjetivo ao qual os próprios envolvidos possuem um acesso privilegiado. Não obstante isso, quando se trata da escolha de valores generalizados que encontram guarida em normas de ação morais, impõe-se uma outra perspectiva.

Ao colocar a questão fundamental da moral, a saber, que tipos de ação são "igualmente bons" para todos os membros, nós nos referimos a um mundo de relações interpessoais regradas de modo legítimo. Apretensão à correção de afirmações morais possui o sentido de que as normas correspondentes merecem reconhecimento geral no círculo dos destinatários. Diferentemente da pretensão de verdade, a pretensão de correção, que é análoga à de verdade, não possui um significado capaz de transcender a justificação; ela esgota seu sentido numa afirmabilidade justificada idealmente.12 Em casos de conflito, a aceitabilidade racional não é apenas uma prova para a validade, porquanto nela consiste também o sentido de validade de normas destinadas a fornecer, para as partes litigantes, argumentos imparciais; isto é, capazes de convencer a todos. Tal "imparcialidade", incorporada inicialmente na figura do juiz, pode, após sua ampliação em termos de uma idéia de justiça pós-tradicional, ser equiparada (zur Deckung kommmen) à "imparcialidade" epistêmica de participantes do discurso, os quais, no jogo da argumentação, são levados a uma descentração de suas perspectivas. A feliz convergência entre "justiça", no sentido de uma solução imparcial de conflitos, e "correção", no sentido de uma fundamentação discursiva de correspondentes afirmações normativas, só pode ser detectada num nível de fundamentação pós-tradicional.

A adoção recíproca de perspectivas de interpretação epistêmicas, à qual os participantes da argumentação são obrigados quando manifestam a intenção de examinar a aceitabilidade racional de

12 HABERMAS, J. "Richligkeit vs. Wahrheit. Zum Sinn der Sollgellung moralischer Urteile und Normen", in: id. (1999), 271-318.

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qualquer afirmação, transforma-se, no entanto, sob o ponto de vista moral da consideração simétrica dos interesses de todos os que possivelmente serão atingidos, na exigência de uma adoção de perspectivas relevantes do ponto de vista existencial. Em questões práticas, nas quais os participantes estão envolvidos persona própria, as condições de comunicação da argumentação não têm apenas o sentido de garantir que todas as contribuições relevantes entrem em jogo e levem a posicionamentos em termos de sim/não motivados racionalmente. A inofensiva pressuposição da consideração sincera e imparcial de todos os argumentos leva os participantes de discursos práticos a tratar suas próprias necessidades e avaliações da situação de modo autocrítico e a ter em conta interesses dos outros nas perspectivas de compreensões de mundo e de compreensões de si mesmo alheias.

Por conseguinte, não é possível fundamentar o princípio moral da consideração simétrica dos interesses apoiando-se única e exclusivamente no conteúdo normativo das pressuposições da a rgumentação . Só podemos lançar mão desse potencial de racionalidade, embutido em discursos em geral, quando já sabemos antecipadamente o que significa ter obrigações e justificar moralmente ações. O saber sobre o modo de participar de uma argumentação tem de ligar-se a um conhecimento que se alimenta das experiências vitais de uma comunidade moral. Quando observamos a genealogia do desafio a ser enfrentado pela moral da razão, fica claro que já temos de estar familiarizados, antes, com a validade deôntica de mandamentos morais e com a fundamentação de normas.11

A situação que serve de ponto de partida à modernidade se caracteriza pela irrupção de um pluralismo de cosmovisões. Nessa situação, os membros de comunidades morais passam a enfrentar o seguinte dilema: em casos de conflito sobre o que é necessário fazer ou evitar, eles têm de continuar a discussão lançando mão de argumentos morais, mesmo que o contexto de inserção - religioso e/

"HABERMAS, J. "Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral", in: id., Die Einbezihung des Anderen. Frankfurt/M., 1996.

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ou metafísico - capaz de criar consenso não exista mais. O único contexto unificador que continua sendo compartilhado pelas filhas e filhos "sem teto" da modernidade é a prática de uma disputa moral, cujos argumentos, no entanto, não são mais suficientes. Por conseguinte, o "reservatório" de elementos em comum encolheu limitando-se às características formais de tais discursos. Neste caso, a única saída que resta aos participantes consiste em lançar mão, retroativamente, do conteúdo normativo das pressuposições da argumentação, as quais eles já tinham adotado, a partir do momento em que se envolveram em controvérsias morais.

No entanto, o télos inerente ao propósito de consüuir um novo consenso de fundo sobre a base estreita das características formais daquela prática discursiva comum continua vindo acompanhado de conhecimentos prévios, originários de experiências morais passadas. Sem o recurso ao seu parentesco preliminar com relações de reconhecimento intactas e carregadas por tradições fortes da comunidade moral, à qual pertenceram, sob condições pré-modernas de vida, os participantes nem poderiam formular o propósito de reconstruir uma moral pós-tradicional unicamente a partir das fontes da razão comunicativa. Eles já sabem o que significa ter obrigações morais ou o que significa justificar uma ação à luz de normas obrigatórias. Para tomar esse potencial de racionalidade, embutido na argumentação, e utilizá-lo para a fundamentação de uma moral autônoma e subtraída aos contextos das visões de mundo, necessário se faz levar na devida conta tais conhecimentos preliminares.14

Sob condições do discurso, o sentido deontológico da validade das normas, que nesse meio tempo se tornaram problemáticas, apresenta-se como a idéia pós-tradicional de justiça que leva ao respeito simétrico dos interesses. A seguir, a necessidade de fundamentação, estendida às próprias normas, chama a atenção para o desideratum de um princípio moral correspondente que pudesse, enquanto regra da argumentação, viabilizar um consenso fundamentado sobre normas

14 Sobre o esboço de fundamentação que se segue cf. HABERMAS, J. (1996), 60-63.

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controversas e, com isso, conservar um sentido cognitivo da moral, mesmo sob condições modernas. A idéia pós-tradicional de justiça nos inspira a adotar o princípio de universalização "U" , , s que fora introduzido apenas como uma possibilidade hipotética. E tal princípio, caso possa pretender obrigatoriedade geral e transcultural, poderia explicar de que modo questões morais em geral podem ser decididas racionalmente. A seguir, e à luz do saber que já se tem sobre o que significa fundar, em geral, normas de ação, a validade geral de "U" pode ser "inferida" do conteúdo de pressuposições da argumentação que obrigam de modo transcendental. Ao adotai- tal procedimento, estou me apoiando no padrão de uma fundamentação não-dedutiva, elaborada por Apel, e que consiste em franquear as contradições performativas nas quais se enreda o cético que nega a possibilidade de uma fundamentação de asserções morais.

( 4 ) O ponto controverso que me separa de Apel não consiste propriamente neste lance de fundamentação em si mesmo, mas no valor posicionai que ele assume em um jogo de fundamentação não-fundamentalista. Porquanto, quando nós, na base de uma distinção entre sentido transcendental e sentido deontológico de normatividade, entendemos que o potencial de racionalidade insertado de modo geral em discursos não é obrigatório em sentido deontológico, é possível interpretar o juízo imparcial sobre a consensualidade de normas, exigido de modo não-específico por "D", como algo que ainda é "neutro do ponto de vista da moral e do direito". Já que a formulação de "D"16 tem a ver com "normas de ação", e com "discursos racionais" em geral, tal princípio situa-se em um nível de abstração mais alto que o do princípio moral e do princípio da democracia. Neste nível, ainda se prescinde do tipo de ações que necessitam de justificação, bem como do aspecto de validade específico, sob o qual elas são justificadas. É bem verdade que o princípio do discurso já está talhado para questões práticas; ele é arrolado para questões de verdade quando

"Cf. acima nota de rodapé n° 5. 16Cf. acima, 94-95.

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certos fatos se tomam relevantes para a justificação de ações. Tendo em vista as condições discursivas, sob as quais um consenso deve ser obtido, "D" reivindica uma fundamentação pós-convencional de normas de ação em geral - porém, ainda sem determinar com precisão a linha na qual a força dos argumentos, capazes de criar consenso, deve ser mobilizada.

O potencial de racionalidade, embutido, em geral, em discursos, pode ser reivindicado: para a fundamentação de regras do agir instrumental que tem a ver com uma escolha racional (sob pontos de vista da verdade, da efetividade e da consistência conceituai); para a fundamentação de orientações valorativas e éticas (sob o ponto de vista da autenticidade); para a justificação de normas e juízos morais (sob o aspecto da justiça). Conforme já foi destacado, esses tipos de afirmações e normas vêm sempre acompanhados de diferentes conotações. Asserções empíricas despertam conotações ontológicas que têm a ver com a existência de estados de coisas; intervenções orientadas pelo sucesso provocam conotações instrumentais de eficácia e de maximização do proveito; questões éticas possuem conotações axiológicas acerca da excelência de bens; ao passo que questões morais possuem conotações de reconhecimento de relações interpessoais ordenadas. Tais referências à estrutura de mundos (objetivo, social e subjetivo) determinam as linhas nas quais "D" adquire um sentido concreto. O princípio moral, por exemplo, pode ser entendido, no campo de um mundo social legitimamente ordenado, como uma operacionalização especial de "D", a qual viabiliza uma avaliação racional de normas e ações sob o aspecto da justiça.

Entretanto, mesmo que as normas do direito também sejam selecionadas sob o aspecto da justiça e não possam estar em contradição com a moral, o princípio da democracia, que autoriza os cidadãos a criar direito legítimo, não está submetido ao princípio moral, como Apel supõe. A fim de mostrar que a subsunção do direito sob a moral e que a subordinação jusnaturalista do direito positivo a uma hierarquia de leis é incorreta, tenho de mencionar a posição sui generis do direito entre os diferentes tipos de normas citadas até o momento, uma vez que ele representa um sistema de ações que se fundem com

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um poder político. Tal fato é conseqüência das características formais do direito, por meio das quais ele se distingue da moral enquanto: (a) direito subjetivo; (b) direito coativo e (c) direito positivo.

(a) O direito moderno se constrói sobre direitos subjetivos que garantem à pessoa singular espaços de liberdade bem circunscritos, portanto, esferas da liberdade de arbítrio e de configuração autônoma da vida. Ele não se inicia com mandamentos ("Você deve [...]") -como acontece com o ponto de vista moral, onde nos certificamos, antes, dos nossos deveres para, a seguir, inferir direitos próprios a partir das obrigações que temos para com outros - mas com a especificação de um "ser permitido" (Diirfen). Na base de direitos, igualmente distribuídos, os deveres do direito só se colocam a partir das expectativas justificadas que outros dirigem a nós. Tal assimetria pode ser explicada pela autolimitação do direito moderno, o qual permite tudo o que não esteja explicitamente proibido. Já que o direito serve primariamente à proteção das esferas da vida privadas e autônomas contra intervenções arbitrárias de um poder público. Ao passo que o poder penetrante da moral abrange todos os domínios da vida, não conhecendo nenhum limiar entre a consciência privada e a responsabilidade pública. O direito é uma forma seletiva, não-holista, de regulação do comportamento, não atingindo o indivíduo na figura concreta de uma pessoa individuada em uma história de vida. Ele atinge as pessoas, porém, somente à proporção que pessoas naturais assumem o status artificial e extremamente circunscrito de pessoas de direito, isto é, de portadores de direitos subjetivos. ' f l K :

(b) O Direito moderno vem acompanhado da ameaça de sanções por parte do Estado. O poder do Estado garante uma obediência da maioria às leis e preenche, por meio da obediência coagida ao direito, uma condição secundária da legitimidade de sentenças jurídicas gerais. Pois a obediência a uma norma só é imputavel quando cada destinatário pode pressupor que ela também é obedecida por todos os outros. A moral da razão, que não está mais embutida em cosmovisões religiosas, também precisa ser ligada a tradições culturais e padrões de

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socialização, para que os juízos morais possam transformar-se, de modo geral, em agir moral. Porém, o talho natural de tal moral, que se tornou autônoma, serve apenas para a finalidade cognitiva da viabilização de compreensões perspicazes (Einsichten). Os bons motivos e sentimentos continuam sendo propriedade dos sujeitos perspicazes. Ao passo que, no direito, o caráter institucional libera o indivíduo do peso dos motivos. Diferentemente da moral, o direito não é apenas um sistema de saber, mas também um sistema de ação. Enquanto a moral apela para a compreensão e para a boa vontade, o direito limita-se à exigência de um agir legal. Tal desligamento entre um comportamento "conforme à lei" e um comportamento "por respeito à lei" também é capaz de explicai- porque as regulamentações jurídicas só podem estender-se, no essencial, a um "comportamento exterior".

(c) A política não somente empresta ao direito os meios de uma sanção estatal, como também se aproveita, por seu turno, do direito -seja como meio para as próprias realizações de configuração e de organização, seja como fonte de legitimação. O direito estatuído, dada sua dependência da vontade política de um legislador, adapta-se à função de um meio de organização do poder. Resulta desse caráter positivo uma separação de papéis entre autores que estatuem o direito e destinatários, submetidos ao direito. Tal voluntarismo presente na criação do direito também é estranho a uma moral entendida de modo construtivista. Além disso, o direito assume em si mesmo metas e programas políticos que têm de ser justificados exclusivamente sob um ponto de vista moral. As matérias precisadas de regulamentação exigem justificações complexas, nas quais se introduzem argumentos de natureza ética, estratégica, empírica e pragmático-instrumental. Sendo que a forma do direito só permanece intacta à proporção que cada nova regulamentação se insere, de modo consistente, no sistema jurídico vigente e não coloca em risco o princípio da justiça. A objeção, segundo a qual os argumentos morais não podem ser sobrepujados, é desarmada (quando se considera) a ligação da legislação ao conteúdo dos princípios de uma constituição democrática.

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( 5 ) Para entender a autonomia sistemática do princípio da democracia, criticada por Apel, convém analisar a necessidade de fundamentação resultante especialmente do cruzamento entre direito e política. De um lado, o direito é constitutivo para o poder político;17 de outro lado, ele próprio depende do exercício do poder político, já que os programas do direito são o resultado de uma vontade política. Tal vontade perde o caráter de um uso arbitrário do poder político, não apenas mediante a domesticação do Estado de direito. O processo de criação do direito só adquire uma qualidade capaz de fundar legitimidade à medida que ele, tendo em vista o estabelecimento de um procedimento democrático, é aplicado a si mesmo. Por este caminho, as determinações do legislador político tornam-se dependentes, não somente do resultado de uma formação inclusiva da opinião na ampla esfera pública (mediada pela mídia), mas também das deliberações discursivamente estruturadas de corporações democrat icamente eleitas. A institucionalização jurídica dos procedimentos de uma política deliberativa extrai sua força legitimadora da idéia diretriz de uma autolegislação racional que independe de premissas cosmológicas.

Nesse ponto, podemos constatar uma analogia com o conceito kantiano da autodeterminação moral. Visto que a autolegislação democrática requer um procedimento de formação discursiva da vontade, capaz de propiciar a autoligação do legislador democrático a compreensões perspicazes (Einsichten) da razão prática, de tal sorte que, mesmo sem adotar um sentido voluntarista, os destinatários do direito podem entender-se como seus autores. Disso resulta o princípio da democracia, segundo o qual, só podem pretender validade legítima as leis que puderem encontrar, num processo jurídico de criação de direito, o assentimento de todas as pessoas. Neste ponto, é importante não esquecer o sentido propriamente político da analogia com a autonomia moral.

Sob as condições coletivas de formação política da vontade dos membros de uma comunidade concreta, a analogia com o modelo da

"HABERMAS, J.( 1992), 167-186.

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autodeterminação moral da pessoa individual consiste na simulação da autoligação perspicaz, do arbítrio. Tal semelhança estrutural da legislação política com a autodeterminação moral não significa, evidentemente, a assimilação de uma à outra. Certamente, as pessoas que se orientam pelo bem comum não devem fechar-se a considerações morais. Entretanto, já que a prática de decisão deliberativa é parte integrante de um sistema político que também é levado a se legitimar - mesmo que não seja, em primeira linha, - pela efetividade dos imperativos de uma automanutenção perspicaz assumidos em conformidade com a constituição, o procedimento democrático da legislação precisa esgotar - levando na devida conta todos os possíveis aspectos de validade - o potencial de racionalidade das deliberações, e não apenas o ponto de vista moral da generalização simétrica de interesses.

Quando passamos da moral para o direito, realizamos uma mudança de perspectivas, isto é, passamos do plano do ator para o nível do sistema institucional. As normas que orientam o indivíduo no agir insuumental - que depende de uma escolha racional (wahl-rational) - no agir ético e no moral, são justificadas sempre na perspectiva de um agente, mesmo quando este é apresentado como participante de discursos. Enquanto participante de discursos, o ator pretende responder à seguinte pergunta: o que devo fazer sob aspectos do sucesso, da vantagem, do bem ou do justo? A razão prática incorpora-se em discursos que os participantes entabulam para clarificar questões práticas. Esse viés cognitivo não se perde nos discursos dos cidadãos de um Estado. Entretanto, as normas do direito carregam consigo um caráter institucional que elas não podem perder. Aqui, a razão prática se faz valer, não somente na prática do discurso ou nas regras da argumentação que ela segue. No plano sistemático, ela se incorpora, ao invés disso, nos princípios de acordo com os quais o sistema de ação política, enquanto tal, está constituído. Isso explica porque o princípio da democracia, enquanto parte de uma ordem constitucional, não intervém em discursos, como é o caso do princípio moral, fornecendo padrões de argumentação, mas se limita a colocar medidas e critérios para um cruzamento entre os discursos políticos.

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Os discursos dos cidadãos de um Estado e dos seus representantes inserem-se preliminarmente num sistema de ação política, o qual obedece a imperativos funcionais de sobrevivência próprios. O direito legítimo tem de cuidar certamente para que haja uma ordem justa nas relações interpessoais no interior de uma determinada coletividade. No entanto, ele constitui, ao mesmo tempo, a linguagem da programação de um sistema de ação constituído na forma do direito, responsável pela estabilidade e pela reprodução da sociedade em seu todo - por conseguinte, para a vida coletiva como um todo, não somente para uma convivência legítima. Por isso, o direito exige, a partir de si mesmo, critérios de avaliação que não são os mesmos da moral, a qual orienta os seus mandamentos sob o único aspecto da justiça e, inclusive, levando em conta o assentimento fundamentado de todas as pessoas, não apenas e primariamente o assentimento dos cidadãos de um Estado. Os imperativos de manutenção da integridade, políticos, econômicos e culturais, constituem pontos de vista não desprezíveis sob os quais regulamentações jurídicas consistentes podem ser submetidas a uma crítica ética, pragmática e empírica, sem ser necessário entrar em conflito com os fundamentos morais da constituição.

Desta maneira, uma ordem constitucional que se corrige a si mesma, democraücamente, é capaz, não somente, de perenizar18 uma concretização reformista do sistema dos direitos, mas também de resolver, pelo caminho da moral, o problema que levou Apel a introduzir uma ética da responsabilidade que sobrepuja a moral em geral.

(6) Devido ao entrecruzamento entre o direito moderno e o poder político, o princípio da democracia, que regula a criação do direito, goza de autonomia em relação ao princípio da moral. E uma vez que Apel não leva na devida conta tal coesão interna entre direito e poder, ele também desconhece o papel domesticador do direito, que é capaz

Sobre as aporias de posicionamentos inteligente quanto à produção de relações nas quais é possível imputar, de modo geral, o agir moral, cf. HABERMAS, J. "Wege derDetranszendentalisierung. Von Kant zu Hegel und zurück", in: id., (1999), 186-270, aqui 224 ss.

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de impor freios ao poder. Ele se preocupa, ao invés disso, com uma domesticação moral do poder político processando a produção política de condições morais. O "problema da aplicação histórica da moral"19 não pode ser colocado no interior de discursos morais porque uma ética deontológica nos moldes kantianos exclui todo e qualquer tipo de compromissos, e isso por boas razões. Mandamentos morais incondicionalmente válidos não podem selar compromissos com metas políticas, por mais elevadas que estas sejam. Entretanto, convém perguntar: será que a ética necessita de uma complementação no sentido de uma ética da responsabilidade, à qual Apel dedica a assim chamada "parte B" da ética?

O sentido categórico de mandamentos morais permanece intacto, mesmo à vista de uma injustiça insuportável; de qualquer modo, não necessita de uma "complementação" nos moldes de um compromisso enquanto levarmos na devida conta, no que respeita a deveres positivos, uma "divisão moral do trabalho" que faz jus a um princípio moralmente justificado, segundo o qual, nós só "temos" de fazer o que estiver faticamente ao nosso alcance: nemo ultra posse obligatur. Até mesmo as normas bem fundamentadas, que antes de sua aplicação valem apenas prima facie, não perdem, por isso, o rigor do seu sentido categórico. E verdade que elas necessitam, no caso de uma colisão com outras normas válidas, de um exame cuidadoso que verifique sua "adequação"; entretanto, sua validade não é abalada, nem mesmo quando, em um caso concreto, elas têm de "ceder o lugar" a outras normas.20 A pretensão de validade deontológica de mandamentos morais seria relativizada e ligada a condições de sucesso do agir estratégico - Apel fala em agir "estratégico-contra-estratégico" (strategie-konterstrategischen) - caso o cuidado "político" em sentido amplo para com o "sucesso aproximativo do elemento moral em geral" (na figura de um outro princípio da responsabilidade ética, por exemplo) fosse incorporado à própria moral.21

19 APEL, K.-O. Diskurs und Verantwortung. Frankfurt/M., 1988, 103-153. 20GÜNTHER, K. Der Sinn für Angemessenheit. Frankfurt/M., 1988. 21 APEL (2001), 77 S. 82.

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Entretanto, se o conteúdo normativo de pressuposições gerais da argumentação não possui um sentido deontologicamente obrigatório, ou seja, não fornece nenhum elemento concreto para uma inferência direta da reciprocidade e da igualdade de direitos exigidas fora da prática da argumentação, não vejo como seja possível extrair dessa substância normativa algo para exigências que vão mais além. Apel gostaria de fundamentar, num único lance, a "co-responsabilidade de todos os homens para as seqüelas de atividades coletivas e, nesta medida, para as instituições.22 Ele pretende inferir, da auto-reflexão sobre as normas pressupostas na argumentação, e sem nenhuma mediação, as obrigações morais para uma política que visa a produção de condições de vida morais para todos os homens em escala mundial.

De um lado, o poder político constitui, até hoje, o único meio para influenciar voluntária e coletivamente, de modo cogente, as condições sistêmicas e as formas institucionais de nossa existência social. De outro lado, a política não se deixa moralizar diretamente por nenhum tipo de modelo político, seja ele o do "bom senhor", platônico, o do agir revolucionário, ou o do reforço moral das virtudes do agir político, que parece ser a solução acalentada por Apel. Em que pese isso, parece que uma domesticação institucional do poder político por meio de umajuridiftcação, controlada democraticamente, constitui o único caminho viável para uma reforma moral de nosso comportamento. Para detectar as possibilidades que se oferecem nesse contexto convém analisar o desenvolvimento complexo dos Estados constitucionais democráticos, bem como as garantias oferecidas pelo Estado social, as quais foram obtidas mediante lutas. A política

"Ibid. Cf. também BÒHLER, D. "Warum moralisch sein? Die Verbindlichkeit der d ia logbezogenen Selbst- und Mitverantwortung", in: APEL e BURCKHART (2001), 50: "Co-responsabilidade em que sentido? Em primeiro lugar, pelo exame das próprias pretensões de validade; a seguir pela conservação e pelo melhoramento das condições reais necessárias para uma concretização livre e aberta de discursos críticos (especialmente que envolvem questões de direitos humanos); finalmente, pela consideração prática (ecológica, econômica e política), ou seja, pela aplicação de seus resultados".

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domesticada, ao menos parcialmente, nas constituições de Estados nacionais precisa passar por uma nova transformação, no âmbito de uma ordem jurídica cosmopolita, a fim de se livrar de suas características agressivas e autodestruüvas e transformar-se numa força confíguradora e civilizadora em escala mundial.21

Por este caminho político, a moral constitui uma bússola por demais imprecisa e, inclusive, enganadora. O que Apel oferece na "parte B" como forma de compromisso de uma moral capaz de calcular perspectivas de sucesso de uma moral em geral, desconhece a dimensão de uma juridificação democrática da política, que poderia ter como resultado uma civilização das condições de vida. E verdade que tal estratégia pode perder o seu objeto na esteira do autodesdobramento neoliberal da política impulsionado pela globalização econômica: aqui, a política deixa de ser um meio de auto-influenciação consciente à proporção que entrega sua função de controle aos mercados. A "guerra contra o terrorismo", que rearma exércitos, a polícia e os serviços secretos, todos contribuem, à sua maneira, para a eliminação da política.

Apel sobrecarrega o discurso do filósofo que, ao compor uma argumentação qualquer, reflete sobre o conteúdo de pressuposições necessárias da argumentação. Tal sobrecarga é üipla, já que consiste em: (a) fundamentar diretamente normas morais básicas sem passar pelo desvio da fundamentação de um princípio de universalização; (b) apresentar uma obrigação existencial para o "ser moral"; (c) complementar a moral por meio de uma obrigação para a realização histórica da moral (ética da responsabilidade). Tomando como referência a fundação transcendental e primordial, de Husserl, Apel caracteriza tal discurso como "primordial". Eu suponho que nossa controvérsia sobre a construção arquitetônica correta da teoria deriva, em última instância, de um dissenso sobre o papel da própria filosofia. Apel reconstrói, de modo convincente, a história da filosofia ocidental como uma seqüência de três paradigmas, os quais ele subordina, respectivamente, à ontologia, à epistemologia e à filosofia lingüística.

Cf. abaixo, (348 ss.)

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Ele tem consciência do ponto de partida autocrítico da modernidade e também da limitação falibilista que marca o pensamento pós-metafísico. Mesmo assim, ele se inclina para uma compreensão fundamentalista da filosofia, a partir do momento em que ele caracteriza a auto-reflexão filosófica como um discurso primordial sobrecarregado de metas efusivas. No final das contas, Apel confia, apesar de tudo, nas evidências infalíveis de um acesso direto, pré-analítico, às intuições de um participante da argumentação, já treinado na reflexão. Porquanto o argumento pragmático-transcendental ao qual se atribui o papel de uma "fundamentação última" possui, na verdade, o valor posicionai de uma certificação que se presume "infalível" ou que, em todo caso, não pode ser revista discursivamente. Se ele fosse realmente um argumento, encontrar-se-ia em um contexto lingüístico, o qual possui tantos flancos abertos quantas são suas facetas.

O termo "reflexão estrita", introduzido por Wolfgang Kuhlmann, abre um novo tema, que não pode ser abordado aqui. Limitei minha exposição a diferenças que Apel elaborou em sua controvérsia com minha filosofia do direito. É preciso notar que tais diferenças persistem apenas em princípio. Uma vez que elas não conseguem encobrir os elementos comuns nos resultados, nem as compreensões perspicazes que adquiri graças aos ensinamentos inigualáveis de um amigo sempre presente no espírito, desde a época de meus estudos em Bonn.

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II. PLURALISMO RELIGIOSO E SOLIDARIEDADE DE CIDADÃOS DO ESTADO.

4 . BASES PRÉ-POLÍTICAS DO ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO.

O tema proposto para nossa discussão tem algo a ver com uma pergunta formulada por Wolfgang Bõckenfórde em meados dos anos 60, nos seguintes termos: Será que o Estado secularizado continua alimentando-se de pressuposições normativas que ele não consegue garantir por si mesmo?1 Tal indagação é provocada, de um lado, pela dúvida sobre a possibilidade de o Estado constitucional democrático conseguir manter e renovar suas pressuposições normativas a partir de recursos próprios; de outro lado, pela suposição de que ele mesmo depende de tradições metafísicas ou religiosas autóctones, em todo caso, de tradições éticas, as quais fornecem elementos normativos capazes de obrigar coletivamente. Ora, tal fato colocaria o Estado -obrigado a manter neutralidade ante o "fato do pluralismo" (Rawls) -em dificuldades. Em que pese isso, tal dedução não coloca em xeque a própria suposição enquanto tal.

Em primeiro lugar, gostaria de especificar o problema, em duas direções distintas: (1) Em uma linha cognitiva, ele pode ser formulado como segue: será que, após uma positivação do direito, a dominação política pode continuar lançando mão apenas de umajustificação secu-

BÕCKENFÕRDE, E. W., "Die Entstehung des Staates ais Vorgang der Sàkularisation" (1967), in id. Recht, Staat, Freiheit. Frankfurt/M., 1991, 92 ss, aqui 112.

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lar, isto é, pós-metafísica e não religiosa? (2) Entretanto, mesmo que se conceda a possibilidade de uma tal legitimação, ainda restam dúvidas do ponto de vista motivacional: será que uma comunidade pluralista no que tange às visões de mundo pode estabilizar-se normativãmente graças à suposição de um acordo de fundo, exclusivamente formal, limitado a procedimentos e princípios, o qual é, no entanto, algo mais do que um simples modus vivendil ( 3 ) É bem verdade que, mesmo que conseguíssemos sobrepujar tal dúvida, continuaria de pé o fato de que as ordens liberais dependem da solidariedade de seus cidadãos -e que suas fontes podem secar no caso de uma secularização "descarrilhadora" da sociedade como um todo. Não podemos, certamente, descartar tal diagnóstico. Mesmo assim, não podemos entendê-lo no sentido de que os eruditos entre os defensores da religião obtêm com isso uma espécie de "mais valor". (4) Contra tal modo de ver, eu sugiro que interpretemos a secularização cultural e social como um duplo processo de aprendizagem que obriga ambas as tradições, a do Esclarecimento e a das doutrinas religiosas, à reflexão sobre os seus respectivos limites. (5) Com relação a sociedades pós-seculares coloca-se a seguinte pergunta: que tipo de enfoques cognitivos e de expectativas normativas o Estado liberal pode esperar das pessoas crentes e das não-crentes no que tange ao trato recíproco?

(1) O liberalismo político na forma de um republicanismo kantiano, (que eu defendo2), se auto-interpreta como uma justificação pós-metafísica e não-religiosa dos fundamentos normativos do Estado de direito democrático. Tal teoria coloca-se na tradição de um direito da razão que renuncia às assunções cosmológicas e salvíficas, fortes, dos jusnaturalistas clássicos ou religiosos. A história da teologia cristã medieval, especialmente a da alta Escolástica espanhola, fazem parte dagenealogia dos direitos humanos. Não obstante isso, os fundamentos da legitimação do poder do Estado, neutros em termos de visões de mundo, nasceram de fontes profanas da filosofia nos séculos XVII e X V m . Somente mais tarde, a Igreja e a teologia conseguiram entender 2 HABERMAS, J. Die Einbeziehung desAnderen. Frankfurt/M., 1996.

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os desafios cul turais lançados pelo Estado const i tucional revolucionário. No entanto, se não me engano, parece que, do lado católico, que sempre teve uma relação mais tranqüila com a "luz natural" (da razão) lumen naturale, não existe, em princípio, nenhum obstáculo que impeça uma fundamentação autônoma do direito e da moral (independentemente de verdades reveladas).

No século XX, a fundamentação pós-kantiana de princípios constitucionais liberais foi questionada, muito mais por formas de crítica oriundas do empirismo e do historicismo, do que do direito natural objetivo ou da ética material dos valores. No meu entender, assunções fracas sobre o conteúdo normativo da constituição comunicativa de formas de vida sócio-culturais são suficientes para defender, seja um conceito de razão não-derrotista contra o contextualismo, seja um conceito não-decisionista da validade do direito contra o positivismo jurídico. A principal tarefa, a ser enfrentada agora, consiste em esclarecer:

- Por que o processo democrático vale como um procedimento de criação legítima do direito?

- Por que a democracia e os direitos humanos, tidos como elementos co-originários, se enlaçam durante o processo constituinte?

A explicação consiste na prova: - de que o processo democrático, à proporção que preenche

condições de uma formação discursiva e inclusiva da opinião e da vontade, fundamenta a suposição de que os resultados de tal processo são racionalmente aceitáveis;

- de que a institucionalização jurídica de tal procedimento de criação democrática do direito exige, ao mesmo tempo, a garantia dos direitos fundamentais, tanto liberais como políticos.3

O ponto de referência desta estratégia de fundamentação é a constituição que as pessoas associadas se doam a si mesmas e não a domesticação de um poder do Estado já constituído, porquanto esse

1 HABERMAS, J. Faktizitat und Geltung. Frankfurt/M., 1992, Cap. III. 1 17

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poder ainda precisa ser criado mediante a dação democrática de uma constituição. Um poder do Estado "constituído" já se encontra juridifícado até suas entranhas, de tal sorte que o direito permeia, sem deixar resto, todo o poder político. No âmbito do positivismo da vontade do Estado, defendido por juristas alemães (de Laband e Jellinek até Carl Schmitt) e cujas raízes se encontram no Império, ainda havia um esconderijo para uma substância ética "do Estado" ou para o elemento "político" isento de direito. Ao passo que no Estado constitucional não existe nenhum sujeito do poder que se alimente de uma substância pré-jurídica.4 A soberania pré-constitucional dos príncipes não deixa nenhum lugar vago, a ser preenchido por uma soberania substancial do povo - na figura do etos de um povo mais ou menos homogêneo.

A luz de tal herança problemática, a questão de Bõckenfõrde foi entendida no sentido de que a ordem constitucional, uma vez positivada, necessita da religião ou de um outro tipo de "poder mantenedor" para garantir as bases cognitivas de sua validade. Segundo tal interpretação, a pretensão de validade do direito positivo depende de uma fundação nas convicções éticas pré-políticas de comunidades nacionais ou religiosas, já que tal ordem jurídica não pode legitimar-se auto-referencialmente, apenas por meio de procedimentos jurídicos produzidos democrat icamente. Todavia, se interpretarmos o procedimento democrático, não de modo positivista, à maneira de Luhmann ou Kelsen, mas como um método para a produção de legitimidade por legalidade, não haverá déficit de validade a ser preenchido por "eticidade". A interpretação procedimental ancorada em Kant contrapõe-se a uma compreensão do Estado constitucional, inspirada na direita hegeliana, e insiste na fundamentação autônoma de princípios constitucionais que pretendem aceitação racional por todas as pessoas.

( 2 ) Nas páginas seguintes, tomo como ponto de partida a hipótese de que a constituição do Estado liberal pode obter sua legitimação de

4BRUNCKHORST, H. "Der lange Schatten des Staatswilenpositivismus", in: Leviathan, 31, 2003, 362-381.

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modo auto-suficiente, ou seja, a partir das reservas cognitivas de um estoque de argumentos, o qual não depende de tradições religiosas nem metafísicas. Entretanto, mesmo sob tal premissa, persiste uma dúvida a nível motivacional. Tendo em vista o papel de cidadãos do Estado (Staatsbürger)qae se auto-entendem como autores do direito, as pressuposições normativas de integridade do Estado constitucional, democrático, são mais pretensiosas do que quando se trata do papel de cidadãos da sociedade (Gesellschaftsbürger), que são os destinatários do direito. Dos destinatários do direito espera-se apenas que, ao tomarem consciência de suas liberdades subjetivas (e pretensões), eles não ultrapassem os limites jurídicos. Entretanto, as motivações e enfoques que se esperam de cidadãos do Estado, no papel de co-legisladores democráticos, não podem ser tratados da mesma maneira que a obediência a leis coativas da liberdade.

Porquanto os co-legisladores devem assumir seus direitos de comunicação e de participação de modo ativo, não somente no sentido bem-entendido do interesse próprio, mas também orientados pelo bem comum. Isso exige uma taxa elevada de motivação que não pode ser imposta legalmente. Por isso, no Estado de direito democrático, uma obrigação de votar seria um corpo estranho, algo parecido a uma solidariedade imposta. Em comunidades liberais, a disposição de ajudar co-cidadãos estranhos e anônimos, bem como de se sacrificar pelos interesses comuns, pode apenas ser recomendada. Por esta razão, as virtudes políticas - que só podem ser obtidas em pequenas doses -são tão importantes para a sobrevivência de uma democracia. Elas fazem parte da socialização e da introdução em práticas e modos de pensar de uma cultura política acostumada à liberdade. O status de cidadão do Estado está, de certa forma, embutido numa sociedade civil que vive de fontes espontâneas ou, se preferirmos, "pré-poUticas".

Disso não segue que o Estado liberal seja incapaz de reproduzir seus pressupostos motivacionais a partir de recursos seculares. Os motivos para uma participação dos cidadãos (Bürger) na formação política da opinião e da vontade alimentam-se, certamente, de projetos de vida éticos e de formas de vida culturais. As práticas democráticas, no entanto, desenvolvem uma dinâmica política própria. Somente um

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Estado de direito sem democracia, ao qual estivemos acostumados durante muito tempo, na Alemanha, poderia sugerir uma resposta negativa à questão levantada por Bõckenfõrde: "Será que povos unidos pelo Estado podem viver apenas com a garantia da liberdade do indivíduo, sem um laço unificador prévio, que antecede tal liberdade?"5 Entretanto, o Estado de direito constituído democraticamente não garante apenas liberdades negativas para os cidadãos da sociedade interessados em seu próprio bem; ao liberar liberdades comunicativas, ele também mobiliza a participação dos cidadãos do Estado na disputa pública sobre temas que são do interesse de todos. O "laço unificador" nada mais é do que um processo democrático, no qual está em discussão, em última instância, a compreensão correta da constituição.

E por isso que, nas controvérsias atuais sobre a reforma do Estado do bem-estar social, sobre a política de imigração, sobre a guerra no Iraque, sobre a abolição do serviço militar obrigatório, não se trata apenas de "políticas" particulares, mas também da interpretação correta de princípios constitucionais - e implicitamente se trata do modo como pretendemos nos entender - à luz da pluralidade de nossos modos de viver culturais, e do pluralismo de nossas cosmovisões e de nossas convicções religiosas - como cidadãos da República Federal ou como europeus. No passado, certamente, um pano de fundo religioso comum, uma linguagem comum e, especialmente, a recém-reativada consciência nacional foram de grande valia para a configuração de uma solidariedade de cidadãos do Estado, eminentemente abstrata. No entanto, os modos de pensar republicanos se desligaram, em grande escala, de tais ancoragens pré-políticas - o fato de não estarmos dispostos a morrer "por Nizza" não constitui apenas mais uma objeção contra uma constituição européia. Pensemos nos discursos ético-políticos sobre o Holocausto e sobre a criminalidade em massa: eles contribuíram para que os cidadãos da República Federal tomassem consciência de que a constituição era uma conquista. O exemplo de uma "política da memória", autocrítica, (que não é mais excepcional, estendendo-se a outras nações) revela o modo como podem formar-se laços de um patriotismo constitucional em meio àprópria política.

5 BÕCKENFÕRDE, (1991), 111.

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Contrariando um mal-entendido generalizado, "patriotismo constitucional" significa que cidadãos se apropriam dos princípios da constituição, não apenas analisando seu conteúdo abstrato, mas em seu respectivo contexto nacional. O procedimento cognitivo não consegue, apoiado apenas em si mesmo, aglutinar - nos modos de sentir e de pensar - os conteúdos morais de direitos fundamentais. As intuições morais e a indignação provocada, em escala mundial, pelo desrespeito maciço aos direitos humanos, seriam suficientes apenas para uma integração por demais tênue dos cidadãos de uma sociedade mundial politicamente constituída (isso se algum dia ela realmente existisse). Entre cidadãos do Estado surge uma solidariedade - mesmo que abstrata e mediada pelo direito - apenas quando os princípios da justiça conseguem ter acesso à rede das orientações axiológicas culturais, que são muito mais densas.

( 3 ) Segundo o teor das reflexões desenvolvidas até o presente momento, a natureza secular do Estado constitucional democrático não apresenta qualquer fraqueza interna - típica do sistema político enquanto tal - que pudesse constituir uma ameaça à auto-estabilização cognitiva ou motivacional. Com isso, não se excluem, é bem verdade, razões externas. Uma modernização "descarrilhadora" da sociedade poderia muito bem esgarçar, em sua totalidade, o laço democrático e consumir o tipo de solidariedade da qual o Estado democrático depende e a qual ele não pode obter pela força. Pois neste caso, entraria em cena a constelação que Bõckenfõrde tem na mira, ou seja: a transformação dos cidadãos de sociedades liberais abastadas e pacíficas em mônadas individualizadas que agem guiadas pelos próprios interesses e que utilizam seus próprios direitos subjetivos como se fossem armas apontadas para os outros. No contexto mais dilatado de uma dinâmica onde impera uma economia mundial, e uma sociedade mundial, é possível detectar evidências de um esmigalhamento da solidariedade de cidadãos do Estado.

Os mercados que não podem ser democratizados da mesma maneira que administrações estatais assumem cada vez mais funções de controle em domínios da vida, cuja manutenção tinha sido

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conseguida até o presente momento de forma normativa, isto é, mediante formas de comunicação política ou pré-política. Por causa disso, a polaridade das esferas privadas é invertida, em crescente medida, e transposta para mecanismos do agir orientado pelo sucesso e pelas preferências próprias; além disso, o domínio que depende de pressões de legitimação públicas encolhe. Fortalece-se, destarte, o privatismo de cidadãos do Estado pela perda de função, por demais desencorajadora, de uma formação democrática da opinião e da vontade, a qual continua funcionando, por enquanto e de modo precário, apenas nas arenas nacionais, não conseguindo, por isso, atingir os processos de decisão, os quais são deslocados para níveis supranacionais. A própria esperança na força de configuração política da sociedade internacional, minguante, provoca uma tendência à despo-litização dos cidadãos. Face aos conflitos e às injustiças sociais gritantes de uma sociedade mundial fragmentada em larga escala, cresce, a cada insucesso no caminho da constitucionalização do direito internacional das gentes (que foi iniciado após 1945),6 o desapontamento.

Teorias pós-modernas abordam a crise pelo ângulo de uma crítica racional entendendo-a, não como conseqüência de um esgotamento seletivo dos potenciais racionais inseridos na modernidade ocidental, mas como resultado lógico de um programa de racionalização espiritual e social autodestruti va. O ceticismo radical da razão jamais se coadunou com a tradição católica. Mesmo assim, o catolicismo teve, até o limiar dos anos 60, imensas dificuldades para lidar com o pensamento secular do humanismo, do Esclarecimento e do liberalismo político. De sorte que, hoje em dia, o teorema, segundo o qual uma modernidade contrita só poderia sair do beco sem saída adotando um ponto de referência transcendente e religioso, encontra novamente ressonância. Em Teheran, um colega me perguntou se, na perspectiva de uma sociologia das religiões e numa comparação de culturas, a secularização européia não deveria ser interpretada como um caminho desviante e necessitado de uma correção. Tal fato faz lembrar o clima reinante na República de Weimar, Carl Schmitt, Heidegger ou Leo Strauss!

6 Cf. abaixo, 326 ss.

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Julgo que a melhor saída consiste em não agudizar, por meio de uma crítica racional, a questão sobre a possibilidade de os poderes seculares de uma razão comunicativa conseguirem ou não estabilizar uma modernidade ambivalente: o melhor a fazer é enfrentar tal questão de modo não-dramático, como uma questão empírica aberta. Com isso, eu não pretendo apenas colocar em jogo o fenômeno da persistência da religião num entorno, em via de secularização, como se ela fosse apenas um mero fato social; já que a filosofia tem de levar a sério esse fenômeno "a partir de dentro", isto é, como um desafio cognitivo. Todavia, antes de acompanhar esse fio de discussão, gostaria de mencionar um certo desvio do diálogo que segue numa outra direção, e que é sugerido por tais idéias. É que a radicalização da crítica da razão levou a filosofia a refletir sobre suas próprias origens metafísico-religiosas e a se deixar convencer a tomar parte em diálogos com uma teologia que procurou, por seu turno, estabelecer contato com as tentativas filosóficas de uma auto-reflexão da razão pós-hegeliana.7

Excurso. O ponto de engate para um discurso filosófico sobre a razão e a revelação constitui uma figura de pensamento que retorna a cada passo. A razão que reflete sobre o seu fundamento mais profundo descobre que sua origem precisa ser buscada em um "outro"; e que ela tem de reconhecer o poder que este outro possui sobre o destino, caso não pretenda perder sua orientação racional no beco sem-saída de um auto-apoderamento híbrido. Neste ponto, pode servir de modelo o exercício de uma conversão realizada pelas próprias forças ou, ao menos, desencadeada pelas próprias forças, ou ainda, uma conversão da razão pela razão - o fato de a reflexão se iniciai- em Schleiermacher na autoconsciência do sujeito cognoscente e agente, em Kierkegaard, na historicidade de uma autocertificação existencial de mim mesmo, e em Hegel, Feuerbach e Marx, no dilaceramento provocador de condições éticas, não faz diferença. Mesmo desprovida de qualquer tipo de intenção teológica inicial, uma razão que se torna consciente

'NEUNER, P. e WENZ, G. (eds.) Theologen des 20. Jahrhunderts. Darmstadt, 2002.

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dos seus limites consegue sobrepujar-se a si mesma, a partir do momento em que corre em busca de um outro: seja na fusão mística com uma consciência que abarca todo o universo, seja na esperança desesperançada que aguarda o evento histórico de uma mensagem salvadora ou na figura de uma solidariedade com os humilhados e ofendidos que pretende acelerar a salvação messiânica. Entretanto, esses deuses anônimos da metafísica pós-hegeliana - a consciência abrangente, o evento impensável que está antes do pensamento (unvordenklich), a sociedade não-alienada - são presa fácil da teologia. Já que eles se oferecem à decifração como pseudônimos da trindade do deus pessoal que se revela pessoalmente.

Tais tentativas de renovação de uma teologia filosófica após Hegel são, apesar de tudo, mais simpáticas do que o nietzscheanismo, o qual simplesmente toma de empréstimo as conotações cristãs do ouvir e do sentir, da expectativa da graça e da devoção, do evento e da chegada, a fim de formular um pensamento sem conteúdo proposicional que é, a seguir, ancorado numa dimensão situada atrás de Cristo e de Sócrates, em uma espécie de inundo indeterminado e arcaico.

Contrapondo-se a isso, uma filosofia consciente de sua falibilidade e de sua posição frágil no interior da estrutura diferenciada da sociedade moderna, insiste na distinção genérica - não pejorativa - entre a fala discursiva secular, a qual pretende ser acessível a todos em geral e a fala discursiva religiosa que é dependente de verdades reveladas. Diferentemente de Kant e de Hegel, o estabelecimento de tais limites gramaticais não compartilha a pretensão filosófica que se arroga uma capacidade de estabelecer por si mesma o que é verdadeiro ou falso no conteúdo das tradições religiosas - e inclusive o que é verdadeiro ou falso no saber sobre o mundo, institucionalizado na sociedade. O respeito, que caminha de mãos dadas com tal abstenção cognitiva do juízo, funda-se no respeito por pessoas e modos de vida que obtêm sua integridade e autenticidade de convicções religiosas. É bem verdade que o respeito não é tudo, uma vez que a filosofia também possui argumentos que a levam a assumir, perante tradições religiosas, a atitude de alguém que está disposto a aprender.

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( 4 ) Diferentemente do que acontece com a abstinência ética de um pensador pós-metafísico que não consegue obter um conceito de vida boa ou exemplar a ser considerado obrigatório para todos, as Escrituras Sagradas e as tradições religiosas contêm intuições sobre a falta moral e a salvação, sobre a superação salvadora de uma vida experimentada como sem salvação, as quais são mantidas e interpretadas sutilmente durante milênios. Por isso, é possível supor que na vida das comunidades ou nas comunidades religiosas que evitam o dogmatismo rígido e a coação das consciências se mantenha intacto algo que já se perdeu alhures e que não pode ser restaurado apenas pelo saber profissional de especialistas - refiro-me a possibilidades de expressão suficientemente diferenciadas e a sensibilidades para uma vida fracassada, para patologias sociais, para o fracasso de projetos de vida individuais e para a deformação de contextos vitais. A assimeüúa das pretensões epistêmicas permite que se pense numa disposição ao aprendizado que a filosofia adota em relação à religião, e isso não apenas por simples razões funcionais, mas por razões de conteúdo - tendo presentes na memória os "processos de aprendizagem" bem-sucedidos, de Hegel.

A interpenetração recíproca entre cristianismo e metafísica grega não produziu apenas a figura da dogmática teológica e uma helenização do cristianismo - a qual nem sempre foi benéfica. Porquanto ela promoveu também, de outro lado, uma apropriação, por parte da filosofia, de conteúdos genuinamente cristãos. Tal trabalho de apropriação solidificou-se em redes conceituais carregadas normativamente, tal como, por exemplo: responsabilidade, autonomia e justificação; história, recordação e recomeço; inovação e retorno; emancipação e completude; renúncia, incorporação, internalização, individual idade e comunidade . Ela também transformou, originariamente, o sentido, porém, não o consumiu inteiramente nem o deflacionou de um modo esvaziador. A tradução da idéia de que o homem é semelhante a Deus para a idéia da "dignidade do homem", de todos os homens, a ser respeitada de modo igual e incondicionado, constitui uma destas traduções salvadoras. Ela expõe o conteúdo de conceitos bíblicos para um público geral de crentes de outras confissões e para não-crentes, ultrapassando, por conseguinte, os limites de uma

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comunidade religiosa particular. Benjamin foi um daqueles que conseguiram, às vezes, formular tais traduções.

Uma vez aceita a experiência de um parto secularizador de potenciais de significação encapsulados, é possível atribuir ao teorema de Bõckenfórde um sentido menos capcioso. Mencionei o diagnóstico, segundo o qual, o equilíbrio moderno entre os três grandes meios da integração corre perigo, já que os mercados e a força administrativa estão desalojando, em um grau cada vez mais elevado e em um número crescente de domínios da vida, a solidariedade social - que constitui uma coordenação da ação por meio de valores, de normas e do uso da linguagem orientada pelo entendimento. Por esta razão, o Estado constitucional tem todo o interesse em poupar as fontes culturais que alimentam a consciência de normas e a solidariedade de cidadãos. Tal consciência, que se tornou conservadora, reflete-se na fala sobre a "sociedade pós-secular".8

Tal formulação não tem na mira apenas o fato de que a religião é obrigada a se afirmar em um entorno cada vez mais dominado por elementos seculares e que a sociedade continua a contar, mesmo assim, com a sobrevivência da religião. A expressão "pós-secular" foi cunhada com o intuito de prestar às comunidades religiosas reconhecimento público pela contribuição funcional relevante prestada no contexto da reprodução de enfoques e motivos desejados. Mas não é somente isso. Porque na consciência pública de uma sociedade pós-secular reflete-se, acima de tudo, uma compreensão normativa perspicaz que gera conseqüências no Uato político entre cidadãos crentes e não-crentes. Na sociedade pós-secular impõe-se a idéia de que a "modernização da consciência pública" abrange, em diferentes fases, tanto menta l idades rel igiosas como profanas, t ransformando-as reflexivamente. Neste caso, ambos os lados podem, quando entendem, em comum, a secularização da sociedade como um processo de aprendizagem complementar, levar a sério, por razões cognitivas, as suas contribuições para temas controversos na esfera pública.

8EDER K. "Europàische Sàkularisierung - ein Sonderweg in die po.stsákulare Oesellschaft?", in: Berliner Journalfiir Soz.iologie, cad. 3, 2002, 331-343.

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(5) De um lado, a consciência religiosa foi constrangida a processos de adaptação. Toda religião é, no início, "doutrina compreensiva" ou ainda, "imagem de um mundo", (comprehensive doctrine), inclusive no sentido de que ela pretende ter autoridade na configuração de uma forma de vida em sua totalidade. Em que pese isso, sob as condições da secularização do saber, da neutralização do poder do Estado e da generalização da liberdade de religião, a religião foi obrigada a renunciar a essa pretensão que visa o monopólio da interpretação e a configuração abrangente da vida. A seguir, sob os imperativos da diferenciação funcional de subsistemas sociais, a própria vida das comunidades religiosas se destacou de seus entornos sociais. O papel de um membro da comunidade diferencia-se do papel de um cidadão da sociedade. E já que o Estado liberal depende de uma integração política dos cidadãos, a qual não pode reduzir-se a um simples modus vivendi, tal diferenciação de modos de pertença não pode esgotar-se numa mera adaptação - destituída de pretensões cognitivas - do etos religioso a leis impostas pela sociedade secular. Ao invés disso, a ordem jurídica universalista e a moral igualitária da sociedade têm de ser engatadas, a partir de dentro, ao etos da comunidade, de tal sorte que uma coisa possa surgir consistentemente da outra. Para tal "inserção", John Rawls escolheu a imagem de um módulo: entretanto, mesmo que tal módulo da justiça secular tenha sido construído com o auxílio de argumentos neutros do ponto de vista da visão de um mundo, ele deve caber nos respectivos contextos de uma fundamentação ortodoxa.9

Tal expectativa normativa, com a qual o Estado liberal confronta as comunidades religiosas, vem ao encontro dos respectivos interesses próprios uma vez que, com isso, abre-se a possibilidade de exercer, mediante a esfera pública política, uma influência própria na sociedade como um todo. É verdade que, como mostram as regras mais ou menos liberais das regulamentações do aborto, os fardos resultantes da tolerância não são distribuídos de forma simétrica entre crentes e não-crentes; a consciência secular, todavia, também não deixa de pagar tributo para ter o gozo da liberdade de religião, negativa. Dela se espera

''RAWLS, J. Politischer Liberalismus. Frankfurt/M., 1998, 76 ss.

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o treino para uma relação auto-reflexiva com os limites do Esclarecimento. A compreensão da tolerância das sociedades pluralistas, dotadas de uma constituição liberal, exige não somente que os crentes tenham, no seu trato com não-crentes e crentes de outras denominações, a compreensão razoável de que eles têm de contar com a permanência de um dissenso. Porquanto ela exige, no âmbito de uma cultura política liberal, a mesma compreensão dos não-crentes no trato com crentes.

Para o cidadão não-afinado do ponto de vista da religião, isso significa uma exigência, nada trivial, de que relação entre fé e ciência deve ser determinada autocriticamente na perspectiva de um saber sobre o mundo. Só se pode auibuir à expectativa de uma não-coincidência persistente entre saber e fé o predicado "racional" quando se concede, na perspectiva de um saber secular, um status epistêmico às convicções religiosas, que não seja pura e simplesmente irracional. Por isso, na esfera pública política, as cosmovisões naturalistas, que nasceram de uma elaboração especulativa de informações científicas e são relevantes para a autocompreensão ética dos cidadãos,10 não têm prima facie prioridade sobre concepções religiosas ou cosmovisões concorrentes.

A neutralidade em termos de visões de mundo, que impregna o poder do Estado, o qual garante iguais liberdades éticas para cada cidadão, não se coaduna com a generalização política de uma visão de mundo secularista. Cidadãos secularizados não podem, à proporção que se apresentam no seu papel de cidadãos do Estado, negar que haja, em princípio, um potencial de racionalidade embutido nas cosmovisões religiosas, nem contestar o direito dos concidadãos religiosos a dar, em uma linguagem religiosa, contribuições para discussões públicas. Uma cultura política liberal pode, inclusive, manter a expectativa de que os cidadãos secularizados participarão dos esforços destinados à tradução - pata uma linguagem publicamente acessível - das contribuições relevantes, contidas na linguagem religiosa."

lüPor exemplo, SINGER, W. "Ninguém pode ser diferente do que ele é. Estamos presos a engrenagens: Deveríamos parar de falar em liberdade" in- Frank-

^ Jurter Allgemeine Zeitung, de 08 de janeiro de 2004, 33. " HABERMAS, J. Glauben und Wissen. Frankfurt/M., 2001

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5. RELIGIÃO NA ESFERA PÚBLICA. PRESSUPOSIÇÕES COGNITIVAS PARA o "Uso PÚBLICO DA RAZÃO"

DE CIDADÃOS SECULARES E RELIGIOSOS.1

(1) Desde a virada de 1989/90, tradições religiosas e comunidades de fé adquiriram, inesperadamente, importância política.2 Temos em mente, acima de tudo, os tipos de fundamentalismo que surgem, não somente no Oriente Médio, mas também nos paises da África, no Sudeste da Ásia e no subcontinente da índia. Eles inserem-se, eventualmente, em conflitos nacionais e étnicos constituindo, hoje em dia, uma espécie de incubadora de unidades descentralizadas de um terrorismo que opera a um nível global, opondo-se aos melindres produzidos pela civilização ocidental tida como superior. Mas há outros fenômenos sintomáticos.

No Irã, o protesto contra um regime corrupto, imposto e promovido pelo Ocidente, fez surgir um verdadeiro domínio de sacerdotes que serve de modelo a outros movimentos. Em muitos paises do Islã, mas também em Israel, o direito familial religioso substitui o direito civil estatal, já constituído, ou, ao menos, oferece uma opção alternativa. Em paises como o Afeganistão e o Iraque, uma ordem constitucional que é, em linhas gerais, liberal, tem de se

1 Agradeço a Rainer Forst e Thomas M. Schmidt pelos comentários valiosos que ambos publicaram sobre esse tema. Também agradeço a Melissa Yates - que se ocupou, em sua dissertação, com temas semelhantes - por indicações bibliográficas e discussões estimulantes.

2 BERGER, Peter L. (org.) The Desecularization of lhe World. Washington, 1999.

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compatibilizar com a Scharia. Na própria arena internacional eclodem fenômenos religiosos. As esperanças ligadas à programática política das "modernidades múltiplas" (multiple modernities) continuam alimentando-se da mesma autoconsciência cultural das religiões mundiais que até hoje marcam indelevelmente a fisionomia das grandes civilizações. Também no lado ocidental, a percepção dos conflitos e das relações internacionais modificou-se ante os temores de um "choque de civilizações" {clash of civilisations) - do qual "o eixo do mal" constitui apenas um exemplo destacado. Os próprios intelectuais ocidentais, até agora autocríticos, começam a reagir ofensivamente à imagem de um ocidentalismo, tecida pelos não-ocidentais.3

Noutras partes do globo, o fundamentalismo pode ser entendido também como conseqüência, no longo prazo, de uma colonização violenta e de uma descolonização mal-sucedida. Uma modernização capitalista vinda de fora desencadeia, sob condições desfavoráveis, inseguranças sociais e rejeições culturais. Nesta linha de interpretação, os movimentos religiosos tendem a processar as mudanças sociais radicais e a não-simultaneidade cultural, que são experimentadas sob as condições de uma modernização acelerada ou fracassada, interpretando-as como desenraizamento. Em que pese isso, o fato mais surpreendente consiste propriamente na revitalização política da religião no âmago dos Estados Unidos da América, portanto, no centro da sociedade ocidental, onde a dinâmica da modernização se expande com maior sucesso. E bem verdade que conhecemos, também na Europa, desde os dias da Revolução Francesa, as forças de um tradicionalismo religioso que se auto-interpreta como contra-revolucionário. Porém, nesta evocação da religião como força da tradição transparece sempre a dúvida corrosiva sobre a vitalidade daquilo que é apenas tradicional. Não obstante isso, tudo indica que o despertar político de uma consciência religiosa forte nos Estados Unidos não foi atingido pela dúvida sobre um poder, o qual se torna inseguro quando entra em cena a reflexão.

'BURUMA, I. e MARGALIT, A. Okzidentalismus. Der Westen in den Augen seiner Feinde. Munique, 2004.

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No período após o final da Segunda Guerra mundial, todos os paises da Europa, com exceção da Irlanda e da Polônia, foram atingidos por uma onda de secularização, que acompanha os passos da modernização social. Nos Estados Unidos, porém, todas as pesquisas de opinião confirmam que a elevada porcentagem dos cidadãos religiosamente ativos permaneceu relativamente constante durante os últimos sessenta anos.4 Mais importante ainda é a circunstância atual de que o movimento a favor dos direitos religiosos, nos Estados Unidos, não configura propriamente um movimento tradicionalista. E pelo próprio fato de liberar energias espontâneas de despertamento, esse movimento provoca irritações paralizadoras em seus opositores seculares.

Os movimentos religiosos de renovação, que têm lugar no coração da sociedade civil da potência líder do Ocidente, reforçam, pois, a nível cultural, a divisão política do Ocidente provocada pela guerra do Iraque.5 No entanto, parece que, após a eliminação da pena de morte, com as regulamentações liberais do aborto, com a recusa incondicional da tortura, com a equiparação das orientações sexuais e com a paridade de conúbios homossexuais e, em geral, com o acento nos direitos e não nos bens coletivos tal como, por exemplo, a segurança nacional, os paises da Europa continuam a trilhar, sozinhos, o caminho que t inham ence tado , desde a época das duas revo luções constitucionais do final do século XVIII, junto com os Estados Unidos. Nesse ínterim, cresceu no mundo em geral a importância das religiões no contexto político. E nesse horizonte, a divisão do Ocidente é interpretada como se a Europa se isolasse do resto do mundo. E observando as coisas pelo ângulo de uma história mundial, o "racionalismo ocidental", de Max Weber, passa a ser encarado, agora, como um caminho que foge à normalidade.

Em tal visão revisionista, parece que as correntes tradicionais das religiões mundiais, que continuam a fluir sem interrupções,

4 NORR1S, P. e INGLEHART, R. Sacred and Secular, Religion and Politics Worldwide. Cambridge (Mass.) 2004, Cap. 4.

5 HABERMAS, J. Der Gespaltene Westen. Frankfurt/., 2004. 131

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eliminam ou, ao menos, nivelam os umbrais entre sociedades modernas e tradicionais que até hoje eram mantidos intactos. De sorte que a auto-imagem da modernidade ocidental está sendo submetida, por uma espécie de experimento da psicologia da Gestalt, a um teste de inversão: aquilo que antes era tomado como um modelo normal para o futuro de todas as culturas passa a ser um caso a parte. Mesmo que tal figura sugestiva não consiga resistir por muito tempo a um exame sociológico mais r igoroso, e mesmo que as explicações da secularização em termos de teorias da modernização possam ser postas em consonância com evidências aparentemente contraditórias,6 não se pode duvidar das próprias evidências e, acima de tudo, não se pode duvidar da agudização sintomática dos climas políticos.

Dois dias após a última eleição para presidente, veio a público a contribuição de um historiador com o seguinte título: "O dia em que o iluminismo se despediu" (The Day the Enlightenment went out). Nesse texto, o autor levanta a seguinte questão alarmista: "Pode um povo que acredita mais fortemente no nascimento virginal do que na evolução ser chamado de nação iluminada? A América, a primeira democracia real na história, era produto dos valores do Iluminismo [...]. Embora os fundadores manifestassem divergências sobre muitas coisas, eles compartilhavam tais valores que tinham a ver com o significado da modernidade [...]. Parece que o respeito pela evidência não faz mais sentido quando uma pesquisa de opinião, realizada alguns

"NORRIS e INGLEHART, (2004, Cap. 10) defendem a hipótese clássica, segundo a qual, a secularização se impõe à medida que se propagar - junto com condições de vida sociais e econômicas melhoradas - o sentimento de "segurança existencial". Juntamente com a assunção demográfica que indica um decréscimo da taxa de fertilidade nas sociedades desenvolvidas, essa hipótese esclarece inicialmente por que razão a secularização atingiu, em linhas gerais, apenas "o Ocidente". Os Estados Unidos constituem uma exceção, em primeiro lugar, devido a um capitalismo que não assegura a toda a população um bem-estar maior, expondo-a, em média, a um grau maior de insegurança existencial; em segundo lugar, devido à grande quantidade de imigrantes oriundos de paises cujas sociedades são tradicionais e que apresentam uma taxa de fertilidade relativamente alta.

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dias antes da eleição mostrou que setenta e cinco por cento dos eleitores do Sr. Bush acreditavam que o Iraque não trabalhava com a Al Qaeda nem estava envolvido diretamente com os ataques do onze de setembro".7

Independentemente do modo como avaliamos os fatos ocorridos, as análises da eleição confirmam que a divisão cultural que sacode o Ocidente perpassa a própria nação americana: orientações valorativas conflitantes - Deus, os gays e as armas - sobrepuseram-se a conflitos de interesses aparentemente mais sólidos. De qualquer modo, o presidente Bush deve a sua vitória a uma coalisão de eleitores cujos motivos predominantes eram religiosos.8 Ora, tal deslocamento dos pesos políticos revela uma modificação mental correspondente que ocorre na sociedade civil. E esta também forma o pano de fundo para as controvérsias acadêmicas sobre o papel político da religião no Estado e na esfera pública.

E a disputa tem a ver novamente com a substância da primeira frase do First Amendmenf. "O congresso não poderá emitir nenhuma lei para regular o estabelecimento de uma religião nem proibir o livre exercício dela". Percebe-se que os Estados Unidos foram os pioneiros de uma liberdade da religião apoiada no respeito recíproco da liberdade de religião do outro.9 O grandioso artigo n° 16 da Bill of Rights,

1WILLS, Garry. "The Day the Enlightenment Went Out", in New York Times de 04 de novembro de 2004, A, 31.

8 GOODSTEIN, W. Yardley. "O presidente Bush aproveita-se dos esforços despendidos na formação de uma coalisão de eleitores religiosos", in: New York Times, 05/11/2004, A, 19. Bush teve 60% dos votos dos eleitores de fala espanhola, 67% dos votos dos protestantes de raça branca e 78% dos votos dos evangélicos ou cristãos renascidos. Até mesmo entre os católicos, que costumam votar nos democratas, Bush conseguiu obter a maioria. A opção partidária dos bispos católicos é surpreendente, dado o fato de que o governo, ao contrario da Igreja, defende a pena de morte e se decidiu por uma agressão bélica que vai contra o direito internacional, colocando em jogo a vida de milhares de soldados americanos e de civis iraquianos.

9 Sobre essa "concepção de respeito" cf. a pesquisa histórica e sistemática de FORST, R. Toleram im Konflikt. Frankfurt/M., 2003.

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proclamado na Virgínia, em 1776, constitui o primeiro documento de uma liberdade de religião garantida como um direito fundamental, que os cidadãos de uma comunidade democrática se concedem mutuamente independentemente dos limites estabelecidos pelas diferentes comunidades de fé. Nos Estados Unidos, ao contrário do que sucedeu na França, a introdução da liberdade de religião não significou uma vitória do laicismo sobre uma autoridade que garantira para as minorias religiosas, no melhor dos casos, uma tolerância interpretada de acordo com seus próprios critérios, os quais eram impostos à população. O poder do Estado, cuja postura quanto a visões de mundo era neutra, não tinha, em primeira linha, o sentido negativo de proteger os cidadãos contra imposições oriundas da consciência ou da fé. Ele deveria, ao invés disso, garantir para os colonos que tinham dado as costas à velha Europa a liberdade positiva de colocar em prática, sem restrições, sua respectiva religião. Por isso, até hoje em dia, qualquer uma das partes envolvidas numa discussão sobre o papel político da religião pode reiterar sua lealdade para com a constituição. Ainda teremos ocasião de analisar até que ponto tal pretensão pode ser mantida.

Nas páginas seguintes deter-me-ei na discussão que se seguiu à formulação da teoria política de John Rawls, especialmente na sua concepção do "uso público da razão". Até que ponto a separação entre Igreja e Estado, a qual é requerida pela constituição, pode influenciar o papel, a ser desempenhado pelas tradições e comunidades religiosas, na esfera pública política e na sociedade civil, portanto, na formação política da opinião e da vontade dos cidadãos? Por onde deve passar tal delimitação de fronteiras, no entender dos revisionistas? Será que os opositores, isto é, os que atualmente assumem a ofensiva contra as formas clássicas de demarcação liberal, conseguem realmente levar a cabo uma modificação radical da agenda liberal? Será que eles apenas estão interessados em adotar um aspecto favorável à religião, o qual é inerente à neutralidade do Estado quanto a visões de mundo, a fim de contrapô-lo à compreensão secularista da sociedade pluralista? Ou será que eles já se movimentam no horizonte de uma outra autocompreensão da modernidade?

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Pretendo recordar, em primeiro lugar, as premissas liberais do Estado constitucional, dando especial realce ao impacto da idéia do uso público da razão, de John Rawls sobre o etos dos cidadãos do Estado (2). A seguir, enfrentarei as principais objeções levantadas contra tal interpretação restritiva do papel político da religião (3). Desenvolvo uma concepção cuja finalidade principal consiste em mediar entre os dois lados discutindo as propostas revisionistas que atingem fundamentos da autocompreensão liberal (4). É certo que os cidadãos seculares e religiosos não conseguem preencher as expectativas normativas do papel de cidadãos do Estado, liberais, se não preencherem determinadas pressuposições cognitivas e se não se atribuírem mutuamente os correspondentes enfoques epistêmicos. A explicação desse ponto levar-me-á, inicialmente, a lançar mão da mudança de forma da consciência religiosa, a qual constitui uma resposta aos desafios da modernidade (5). No plano filosófico, ao contrário, a consciência secular, segundo a qual vivemos em uma sociedade pós-secular, sedimenta-se, assumindo a forma de um pensamento pós-metafísico (6). Em que pese isso, o Estado liberal enfrenta, em ambas as direções, o seguinte problema: os cidadãos, tanto crentes como não-crentes, adquirem tais enfoques em "processos de aprendizagem" complementares nem sempre aceitos como tal e sobre os quais o Estado não pode influir lançando mão do direito e da política, mesmo que tais meios estejam, em princípio, à sua disposição (7).

(2) A autocompreensão do Estado de direito democrático formou-se no quadro de uma tradição filosófica que apela exclusivamente a uma razão "natural", ou seja, a argumentos públicos que, de acordo com sua pretensão, são acessíveis da mesma maneira a todas as pessoas. Ora, a assunção de uma razão humana comum constitui a base epistêmica para a justificação de um poder do Estado secular que independe de legitimações religiosas. E isso permite, por outro lado, pensar a separação entre Igreja e Estado ao nível institucional. No âmbito de uma compreensão liberal, a qual serve de pano de fundo, a superação das guerras de religião e das querelas entre as confissões, que teve lugar no início dos tempos modernos, constitui um ponto de

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partida histórico; o Estado constitucional reagiu a esse fato neutralizando, de um lado, o exercício do poder, o qual se tornou independente de qualquer tipo de cosmovisão; de outro lado, ele abriu espaço para a autodeterminação democrática de cidadãos que passam a dispor de iguais direitos. Tal genealogia também forma o pano de fundo para a teoria da justiça, de John Rawls.10

O direito fundamental da liberdade de consciência e de religião constitui a resposta política adequada aos desafios do pluralismo religioso. Isso permite desarmar, no contexto do trato social dos cidadãos, o potencial conflituoso que continua permeando, no nível cognitivo, as convicções existenciais de crentes, de não-crentes e de crentes de outras denominações. Para uma garantia simétrica da liberdade de religião, o caráter secular do Estado constitui uma condição necessária, porém, não suficiente. Tal função não pode ser preenchida pela benevolência desdenhosa de uma autoridade secularizada. As próprias partes envolvidas têm de chegar a um acordo sobre as fronteiras precárias que separam o direito positivo ao exercício da religião da liberdade negativa, segundo a qual, ninguém é obrigado a seguir a religião do outro. Para proteger o princípio da tolerância contra a suspeita de uma determinação repressiva dos limites da tolerância e para definir aquilo que ainda pode ser tolerado e aquilo que não pode mais ser tolerado, há mister de argumentos convincentes e aceitáveis, de modo igual, por todas as partes." A criação de regras eqüitativas pressupõe que os participantes aprendem a assumir as perspectivas uns do outros. E nesse sentido, a formação deliberativo-democrática constitui um procedimento adequado.

No Estado secular, há que transpor o exercício do poder político para uma base não mais religiosa. A constituição democrática precisa preencher a lacuna de legitimação aberta pela neutralização - em termos cosmológicos - do poder do Estado. Os direitos fundamentais, simétricos, que cidadãos livres e iguais são obrigados a atribuir uns aos outros quando pretendem regular sua convivência mútua lançando

10 RAWLS, J. A Theory of Justice. Cambridge (Mass.), 1971, §§ 33 s. "Sobre a concepção do respeito recíproco tolerante cf. FORST, (2003).

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mão dos meios da razão e do direito positivo, são frutos de uma prática constituinte.12 O procedimento democrático extrai sua força geradora de legitimação de dois componentes, a saber: da participação política simétrica dos cidadãos, a qual garante aos destinatários das leis a possibilidade de se entenderem, ao mesmo tempo, como seus autores; e da dimensão epistemológica de certas formas de uma disputa guiada discursivamente, as quais fundamentam a suposição de que os resultados são aceitáveis em termos racionais.11

As expectativas e modos de pensar e de se comportar dos cidadãos, que não podem ser simplesmente impostas mediante o direito, podem ser, no entanto, explicadas a partir desses dois componentes da legiümação. As condições para uma participação bem-sucedida na prática comum da autodeterminação definem o papel de cidadão do Estado: os cidadãos devem respeitar-se reciprocamente como membros de sua respectiva comunidade política, dotados de iguais direitos, apesar de seu dissenso em questões envolvendo convicções religiosas e visões de mundo; sobre esta base de uma solidariedade de cidadãos do Estado, eles devem procurar, quando se trata de questões disputadas, um entendimento mútuo motivado racionalmente, ou seja, eles são obrigados a apresentar uns aos outros, bons argumentos. Nesse contexto, Rawls fala num dever dos cidadãos do Estado para com a atitude civil e para com o uso público da razão: "O ideal da cidadania impõe um dever moral, não legal - o dever da civilidade - de ser capaz, nessas questões fundamentais, de explicar uns aos outros como os princípios e normas de conduta propostos e votados são compatíveis com os valores da razão pública. Portanto,

12 Cf. HABERMAS, J. Faktizitãt und Geltung. Frankfurt/M., 1992, Cap. III; Id., "Der demokratische Rechtsstaat - eine paradoxe Verbindung widersprüchlicher Prinzipien?", in: Id. Zeit der Übergange. Frankfurt/M., 2001, 133-151.

L,Cf. RAWLS, John. "The Ideaof Public Reason Revisited", in: The University of Chicago Law Review, vol. 64, 1997, n° 3, 765-807, aqui, 769: "Idealmente os cidadãos têm de entender-se como legisladores e perguntar a si mesmos que estatutos - apoiados em quais razões capazes de satisfazer ao princípio de reciprocidade - eles gostariam que fossem promulgados como os mais razoáveis."

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esse dever envolve a disposição de prestar atenção aos outros e uma compreensão eqüitativa quando se trata de chegar a uma acomodação razoável de seus pontos de vista".14

A base de referência para um uso público da razão só é obtida após a diferenciação de uma associação de cidadãos livres e iguais que se determinam a si mesmos: os cidadãos justificam, uns perante os outros, seus posicionamentos políticos à luz (de uma interpretação fundamentada15) dos princípios constitucionais em vigor. Rawls refere-se a "valores da razão pública" e a "premissas que aceitamos e pensamos que os outros também podem aceitar razoavelmente",16 porque no Estado que é neutro do ponto de vista das visões de mundo só valem como legítimas as decisões políticas que puderem ser justificadas à luz de argumentos acessíveis em geral, isto é, que são imparciais tanto para cidadãos religiosos como para não-religiosos, como também para cidadãos de orientações de fé distintas. O exercício de um poder que não consegue justificar-se de modo imparcial é ilegítimo porque, nesse caso, um partido estaria impondo sua vontade ao outro. Cidadãos de uma comunidade democrática devem apresentar, uns aos outros, argumentos porque somente assim o poder político perde o seu caráter eminentemente repressivo. Tal reflexão nos confronta com a polêmica (Proviso) à qual deve ser submetido o uso público de argumentos não-públicos.

O princípio da separação entre Igreja e Estado obriga os políticos e funcionários no interior das instituições estatais a formular e a justificar as leis, as decisões judiciais, as ordens e medidas em uma linguagem acessível a todos os cidadãos.17 De outro lado, porém, na esfera pública política, cidadãos, partidos políticos e seus candidatos,

'"RAWLS, J. Political Liberalism. New York, 1993, 217. 15 Rawls refere-se a uma "família de concepções liberais de justiça", à qual o

uso público da razão pode recorrer quando da interpretação de princípios constitucionais vigentes. Cf. RAWLS, (1997), 773, s.

l 6Ibid.,786. "Sobre a especificação da exigência de argumentos numa linguagem "acessível

em geral", cf. FORST, R. Kontexte der Gerechtigkeit. Frankfurt/M., 1994, 199-209.

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organizações sociais, igrejas e outras comunidades religiosas não estão submetidos a uma reserva tão estrita: "Em primeiro lugar, as doutrinas razoáveis e compreensivas, sejam elas religiosas ou não-religiosas, podem ser introduzidas, a qualquer momento, na discussão pública política desde que sejam apresentados, no devido tempo, argumentos políticos apropriados - e não razões exclusivas de doutrinas compreensivas - os quais devem ser capaz.es de suportar tudo aquilo que se diz que as doutrinas compreensivas suportam."** Isso significa que os argumentos políticos aduzidos, além de serem (empurrados para frente) também "contam" fora de seu contexto de inserção religioso.19

Nos moldes de uma interpretação liberal, o Estado somente garante liberdade de religião sob a condição de que as comunidades religiosas aceitem, na perspectiva de suas próprias tradições, não somente a neutralidade das instituições do Estado do ponto de vista das visões de mundo, ou seja, a separação enüe Igreja e Estado, mas também a determinação restritiva do uso público da razão dos cidadãos. Rawls mantém tais exigências mesmo contra a objeção que ele mesmo levanta: "Como podem [...] os crentes [...] endossar um regime constitucional apesar de suas doutrinas compreensivas não poderem prosperar nele, correndo, inclusive, o risco de declinar?"20

A concepção do uso público da razão provocou posicionamentos críticos decididos. As objeções não se dirigem inicialmente contra as premissas liberais enquanto tal, mas contra uma determinação por

18 RAWLS, (1997), 783 s. (a grafia em itálico é de minha autoria). Esta passagem contém um revisão da formulação do princípio rawlsiano formulado no texto de (1994), 224 s. Rawls delimita a sua ressalva a questões centrais que atingem constitutional essentials (elementos essenciais da constituição); no meu entender, tal procedimento não é realista no que tange às ordens jurídicas modernas nas quais os direitos fundamentais permeiam imediatamente a legislação material e a aplicação da lei e quase todos os temas controversos podem ser agudizados e transformados em questões de princípios.

RAWLS (1997), 777: "Nas doutrinas compreensivas não existem, por detrás das cenas, marionetes manipuladas."

20 Ibid., 781. Retomarei tal objeção mais abaixo.

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demais estreita, secularista, do papel político da religião no quadro de uma ordem liberal. Mesmo assim, o dissenso parece atingir, no final das contas, a própria substância da ordem liberal. A mim me interessa a linha que separa pretensões ilegítimas do ponto de vista de um direito constitucional. Não obstante, não podemos confundir dois tipos de argumentos - não tão rigorosos - em prol de um papel político da religião, a saber, de um lado, os que são inconciliáveis com o caráter secular do Estado constitucional e, de outro lado, os que constituem objeções justificadas contra uma compreensão secularista da democracia e do Estado constitucional.

O princípio da separação entre Igreja e Estado exige das instituições estatais rigor extremo no trato com as comunidades religiosas; parlamentos e tribunais, governo e administração ferem o mandamento da neutralidade a ser mantida quanto a visões de mundo quando privilegiam um dos lados em detrimento de um outro. De outro lado, no entanto, a exigência laicista de que o Estado deve (em consonância com a liberdade de religião) abster-se de toda política que apoia ou coloca limites à religião enquanto tal constitui uma interpretação por demais estreita desse princípio.21 Em que pese isso, a rejeição do secularismo não deve abrir as portas para revisões que venham a anular a separação entre Igreja e Estado. E por isso que, como ainda iremos ver, a admissão de justificações religiosas no processo de legislação fere o próprio princípio. Não obstante isso, a posição liberal de Rawls dirige a atenção dos críticos, não tanto para a neutralidade que as instituições do Estado devem manter quanto a visões de mundo, mas para as implicações normativas do papel de cidadão do Estado.

(3) Os críticos de Rawls apelam, inicialmente, para exemplos históricos, a fim de chamar a atenção para a influência política benéfica exercida de fato pelas igrejas e movimentos religiosos na defesa e na implantação da democracia e dos direitos humanos. Martin Luther

21 Cf. a discussão entre Robert Audi e Nicholas Wolterstorff in: Religion in the Public Sphere. New York, 1997, 3 s., 76 s. e 167 s.

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King e o movimento americano em prol dos direitos dos cidadãos ilustram a luta bem-sucedida por uma inclusão ampliada das minorias e de grupos marginais no processo político. Neste contexto, são impressionantes as raízes religiosas profundas do estoque motivacional da maioria dos movimentos sociais e socialistas, seja nos paises anglo-saxões, seja nos paises da Europa continental.22 Há muitos exemplos históricos que revelam um papel autoritário e repressivo das igrejas e movimentos fundamentalistas; mesmo assim, no quadro dos Estados constitucionais estabelecidos, as igrejas e comunidades religiosas em geral preenchem funções que não são destituídas de importância para a estabilização e o desenvolvimento de uma cultura política liberal. Isso vale especialmente para a religião civil que se desenvolveu assaz na sociedade americana.23

Paul Weithmann aproveita tais elementos sociológicos para uma análise normativa do etos do cidadão do Estado. Ele descreve igrejas e comunidades religiosas como atores da sociedade civil que desempenham pressuposições necessárias para a sobrevivência da democracia americana. Tais comunidades fornecem argumentos para o debate público dos temas que envolvem a moral e assumem tarefas da socialização política, a partir do momento em que veiculam informações para os seus membros e os motivam à participação política. Entretanto, e esse é o argumento, o engajamento civil das igrejas ficaria comprometido se elas tivessem que adotar o "Proviso" rawlsiano e decidir, a cada passo, entre valores políticos e religiosos -se estivessem obrigadas a procurar, para cada exteriorização religiosa, um equivalente numa linguagem acessível em geral. Por isso, o Estado liberal teria de renunciar, por razões funcionais, ao desejo de impor às igrejas e comunidades religiosas esse tipo de autocensura. Com muito

: 2BIRNBAUM, N. Nach dem Fortschritt. Stuttgart-Munique, 2003. "Cf. a pesquisa influente de BELLAH, R., MADSEN, R„ SULLIVAN, W. M.,

SW1DLER, A., TIPTON, St. M. Habits ofthe Heart. Berkeley, 1985. Sobre os trabalhos de Bellah relacionados a esse tema cf. M A D S O N , R., SULLIVAN, W. M., SWINDLER, A. e TIPTON, St. M. (eds.) Meaning and Modernity: Religion, Polity, and Self. Berkeley, 2003.

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mais razão, ele não poderá submeter seus próprios cidadãos a tal restrição.24

Esta não é, evidentemente, a objeção central. Independentemente do modo como os interesses envolvidos na relação entre Estado e organizações religiosas estejam distribuídos, um Estado não pode impor aos cidadãos, aos quais garante liberdade de religião, obrigações que não combinam com uma forma de existência religiosa - porquanto ele não pode exigir deles algo impossível. Tal objeção merece ser aprofundada.

Robert Audi revestiu o dever virtuoso da civilidade, postulado por Rawls, com a roupagem de um "princípio de justificação secular": "Ninguém tem prima facie obrigação de defender ou de suportar qualquer tipo de lei ou política pública (...) a não ser que tenha razões seculares ou esteja disposto a oferecer tal tipo de razões para a defesa ou a 'tolerância'".25

Audi anexa a esse princípio a seguinte exigência: os argumentos seculares devem ser, independentemente dos motivos religiosos que correm paralelamente, suficientemente fortes, pois, do contrário não poderiam ser decisivos para um comportamento próprio tal como, por exemplo, o voto nas eleições políticas.26 Na avaliação ético-política de um cidadão em particular a coesão entre os motivos reais da ação 24 Sobre esse argumento empírico cf. WEITHMANN, P. J. Religion and the Obli-

gations of Citizenship. Oxford, 2002, 91: "Eu argumentei que as igrejas contribuem para a democracia nos Estados Unidos promovendo a cidadania democrática. Elas encorajam seus membros a aceitar valores democráticos como a base para decisões políticas importantes e a para aceitar instituições democráticas como legitimadas. Os meios pelos quais elas fazem suas contribuições, incluindo suas próprias intervenções na argumentação cívica e no debate político público afetam os argumentos políticos que os seus membros tendem a usar, a base sobre a qual eles votam e a especificação de sua cidadania com a qual eles se identificam. Eles podem encorajar seus membros a pensar a si mesmos como ligados por normas morais dadas preliminarmente com as os resultados finais da política têm de ser consistentes. A concretização da cidadania entre aqueles que são autorizados legalmente a tomar parte na formação das decisões políticas constitui um enorme feito para a democracia liberal, no qual as instituições da sociedade civil desempenham um papel crucial".

25 AUDI e WOLTERSTORFF (1997), 25.

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e os argumentos oferecidos publicamente pode ser relevante; no entanto, ela é irrelevante sob o ponto de vista sistemático da contribuição a ser dada pelos cidadãos na esfera pública política para a manutenção de uma cultura política liberal. Porquanto, no final das contas, somente os argumentos manifestos têm conseqüências institucionais decisivas para a formação da maioria e para a busca da decisão no interior das corporações políticas.

No tocante ás conseqüências propriamente políticas, "contam" todos os temas, posicionamentos, informações e argumentos que encontram eco nos círculos anônimos da comunicação pública e contribuem de alguma forma para a motivação cognitiva de certas decisões (implementadas com o poder do Estado) - seja imediatamente, quando se trata da votação de cidadãos que tomam parte em eleições, seja indiretamente, quando está em jogo a decisão de parlamentares ou detentores de cargos públicos (tal como juizes, ministros ou funcionários da administração). Prescindo, por esse motivo, da exigência de uma motivação suplementar, de Audi. Tampouco distingo entre argumentos exteriorizados publicamente e outros que servem de motivo no momento em que alguém se encontra perante a uma eleitoral.27 Para a versão standard é essencial apenas a exigência de uma "justificação secular": uma vez que, no Estado secular, contam somente argumentos seculares, os cidadãos crentes são obrigados a estabelecer, entre suas convicções religiosas e seculares, uma espécie de "equilíbrio" ético e teológico (theo-ethical equilibrium)}*

26Ibid., 29. 27 Tal diferenciação leva também Paul Weithman a diferenciar, de modo

correspondente, a sua proposta modificada. Cf. WEITHMANN (2002), 3. 28 Nesse meio tempo Robert Audi introduziu um contrapeso ao princípio da

justificação secular: "Em democracias liberais, cidadãos religiosos tem prima facie uma obrigação de não advogar ou suportar qualquer tipo de lei ou política pública [..] a não ser que tenham argumentos adequados e religiosamente aceitáveis para essa (advocacia) ou suporte e estejam dispostos a oferecê-los." Tudo indica que esse princípio da justificação religiosa pretende impoV aos cidadãos que se deixam orientar inicialmente por argumentos religiosos a obrigação da autocertificação crítica.

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Contra tal exigência objeta-se que muitos cidadãos religiosos não poderiam concretizar tal divisão artificial da própria consciência sem colocar em jogo sua própria existência piedosa. É necessário estabelecer uma distinção entre tal objeção e a constatação empírica, segundo a qual, muitos cidadãos que se posicionam quanto a questões políticas, assumindo uma perspectiva religiosa, não têm idéias nem conhec imentos suficientes para encontrar fundamentações seculares independentes de suas convicções autênticas. E uma vez que um dever pressupõe sempre um determinado poder, tal fato já se reveste de importância. No entanto, a objeção central adquire denotações normativas. Ela se refere ao papel integral, isto é, à "posição" que a religião assume na vida das pessoas crentes. Porquanto a pessoa piedosa encara sua existência "a partir" da fé. E a fé verdadeira não é apenas doutrina, conteúdo no qual se crê, mas também fonte de energia da qual se alimenta a vida inteira do crente.29

Não obstante isso, tal característica totalizadora de uma forma de crença que se infiltra nos poros da vida cotidiana opõe-se, segundo o teor a objeção, a qualquer tipo de transposição de convicções políticas enraizadas na religião para uma outra base cognitiva: "Faz parte das convicções religiosas das pessoas religiosas em nossa sociedade o fato de que elas devem basear suas decisões concernentes a questões fundamentais de justiça em suas convicções religiosas. Elas não podem ver isso como uma opção qualquer entre fazer ou não fazer certas coisas. A sua própria convicção as obriga a se esforçar para atingir a completude, a integridade e a integração em suas vidas: elas devem permitir que a palavra de Deus, o ensino da Torah, os mandamentos e o exemplo de Jesus, e semelhantes configurem sua existência como um todo incluindo, a seguir, sua existência social e política."30 Sua concepção de justiça, fundada na religião, lhes ensina o que é

Sobre a distinção agostiniana entre fides quae creditur e fides qua creditur cf. BULTMANN, R. Theologische Enzyklopüdie. Tubinga, 1984, Anexo 3: "Verdade e certeza", 183 ss.

WOLTERSTORF in: AUDI e WOLTERSTORF, (1997), 105.

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politicamente correto ou incorreto, de tal sorte que eles são incapazes de "discernir entre razões seculares e razões 'pu//'".31

Caso aceitemos tal objeção, que considero convincente, o Estado liberal, que protege expressamente tais formas de vida mediante a garantia da liberdade de religião, não pode esperar, ao mesmo tempo, que todos os crentes fundamentem seus posicionamentos políticos deixando inteiramente de lado suas convicções religiosas ou metafísicas sobre o mundo. Tal exigência estrita só pode ser dirigida aos políticos que assumem mandatos públicos ou se candidatam a eles e que, por esse fato, são obrigados a adotar a neutralidade no que tange às visões de mundo.32

Tal neutralidade do exercício do poder constitui uma pressuposição institucional necessária para uma garantia simétrica da liberdade de religião. O consenso constitucional que se estabelece entre os cidadãos, atinge também o princípio da separação entre Igreja e Estado. Entretanto, a transposição desse princípio de cunho institucional para posicionamentos de organizações e de cidadãos na esfera pública política em geral constitui, à luz da objeção central, há pouco exposta, uma generalização excessiva. O caráter secular do poder do Estado

31 WEITHMANN, (2002), 157 " E s s e fato levanta a seguinte questão interessante: até que ponto os candidatos

numa campanha eleitoral podem apresentar-se como pessoas religiosas? O princípio da separação entre Igreja e Estado se estende, em todo caso, à plataforma, ao programa ou à "linha" que pretende ser seguida pelos partidos políticos e por seus candidatos. Do ponto de vista normativo, as eleições que se orientam mais por características pessoais do que por questões objetivas são problemáticas. E a questão fica ainda mais problemática quando os eleitores se orientam pela auto-apresentação religiosa dos candidatos. Cf. nesse contexto as considerações de Paul WEITHMANN (2002), 117-120: "Seria bom que houvesse princípios que mostrassem claramente qual é a função a ser desempenhada pela religião quando os candidatos são avaliados por aquilo que podemos caracterizar como seus 'valores expressivos' - sua adequação para expressar os valores de seu eleitorado [...]. Entretanto, o mais importante nesses casos é lembrar que as eleições não deveriam ser decididas inteiramente ou primariamente na base dos valores expressivos dos diferentes candidatos" (12).

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não implica, para o cidadão em particular, uma obrigação pessoal e imediata de complementar suas convicções religiosas, publicamente exteriorizadas, e de traduzi-las por meio de equivalentes em uma linguagem acessível em geral. E a expectativa normativa, segundo a qual todos os cidadãos religiosos, ao votarem, devem deixar-se conduzir por considerações seculares, não tem nada a ver, em última instância, com a realidade de uma existência conduzida pela fé. Tal afirmação foi, no entanto, questionada dado o fato de o crente estar situado no entorno secular diferenciado da sociedade moderna.11

O conflito entre convicções religiosas próprias e políticas ou propostas de lei, seculares, só pode surgir porque o cidadão religioso já aceitou antes, apoiado em boas razões, a constituição do Estado secular. Ele não vive mais, enquanto membro de uma população rel igiosamente homogênea, numa ordem estatal legitimada religiosamente. Por isso, as certezas da fé, religiosas, estão entrelaçadas com convicções falíveis de natureza secular, tendo perdido, há muito tempo, sua suposta imunidade em relação a moventes "não movidos" (unmoved), porém, não "inamovíveis" (unmovable).M De fato, as certezas da fé estão expostas, na estrutura diferenciada da sociedade moderna, a uma pressão crescente da reflexão. Todavia, convicções existenciais enraizadas na religião esquivam-se - por meio de sua referência, que às vezes é racional, à autoridade dogmática de um núcleo intocável de verdades infalíveis da revelação - das formas de abordagem discursiva irrestrita, às quais se expõem outras cosmovisões e formas de orientação ética da vida, isto é, "concepções mundanas" do bem.15

"SCHMIDT, Th. M. "Glaubensüberzeugungen und sákulare Gründe", in: Zeitschrift für Evangelische Ethik, cad. 4, 2001, 248-261.

34 Schmidt apoia sua objeção em GAUS, Gerald F. Justificatory Liberalism New York, 1996.

"Esse status especial proíbe, além do mais, uma equiparação normativa e política entre convicções religiosas e éticas, conforme é sugerido por FORST, Rainer (1994, 152-161). Nesse texto ele coloca em segundo plano a distinção entre argumentos seculares e religiosos, dando preferência a critérios procedimentais da justificação em detrimento de critérios conteudísticos. Sabemos a fortiori

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Em determinadas interpretações, aextraterritorialidade discursiva de um núcleo de certezas existenciais pode emprestar às convicções religiosas um caráter integral. Em todo caso, o Estado liberal que protege de igual modo todas as formas religiosas de vida, não pode obrigar os cidadãos religiosos a levarem a cabo, na esfera pública política, uma separação estrita entre argumentos religiosos e não-religiosos quando, aos olhos deles, esta tarefa pode constituir um ataque à sua identidade pessoal.

(4) O Estado liberal não pode transformar a exigida separação institucional entre religião e política numa sobrecarga mental e psicológica insuportável para os seus cidadãos religiosos. Entretanto, eles devem reconhecer que o princípio do exercício do poder é neutro do ponto de vista das visões de mundo. Cada um precisa saber e aceitar que, além do limiar institucional que separa a esfera pública informal dos parlamentos, dos tribunais, dos ministérios e das administrações, só contam argumentos seculares. Para se entender isso não se necessita nada além da capacidade epistêmica, a qual permite não somente observar criticamente convicções religiosas próprias a partir de fora, mas também conectá-las com compreensões seculares. Tão logo participam de discussões públicas, cidadãos religiosos podem reconhecer tal "reserva de tradução institucional" sem que haja necessidade de dividir sua identidade em partes privadas e públicas. Por isso, eles deveriam poder expressar, e fundamentar, suas convicções em uma ünguagem religiosa mesmo quando não encontram para tal uma "tradução" secular.

Isso não deve alienar das decisões políticas os cidadãos "de uma só linguagem" porque mesmo quando aduzem razões religiosas estão assumindo posição em sentido político.16 Mesmo que a linguagem religiosa seja a única que eles falam e mesmo que as opiniões com

que não é possível chegar a um consenso fundamentado, porém, apenas quando se trata de interpretações religiosas conflitivas. O próprio Forst chega mais tarde a conclusões semelhantes, in: FORST (2003), 644 ss.

Refiro-me a uma objeção que Rainer Forst fez por escrito numa carta.

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fundo religioso sejam as únicas que eles possuem para contribuir para a controvérsia política, eles se entendem como membros de uma "cidade terrena" (civitas terrena) que os autoriza enquanto autores das leis às quais eles estão sujeitos como destinatários. Uma vez que eles podem manifestar-se numa linguagem religiosa apenas sob a condição do reconhecimento da "ressalva de uma tradução institucional", eles podem, apoiados na confiabilidade das traduções cooperativas de seus concidadãos, entender-se como participantes do processo de legislação, mesmo que os argumentos decisivos nesse processo sejam seculares.

A admissão de exteriorizações religiosas não-traduzidas referentes a temas da esfera pública política não se justifica apenas normativamente pela não-imputabilidade da reserva rawlsiana para crentes que não podem privar-se do uso político de argumentos tidos como privados, isto é, não-políticos, sem colocar em risco seu modo de viver religioso. Porquanto existem, além disso, argumentos funcionais que proíbem uma redução precipitada da complexidade, a qual vem sempre acompanhada de muitas vozes. O Estado liberal possui, evidentemente, um interesse na liberação de vozes religiosas no âmbito da esfera pública política bem como na participação política de organizações religiosas. Ele não pode desencorajar os crentes nem as comunidades religiosas de se manifestarem também, enquanto tal, de forma rx>lítica porque ele não pode saber de antemão se a proibição de tais manifestações não estaria privando, ao mesmo tempo, a sociedade de recursos importantes para a criação de sentido. Os próprios cidadãos seculares como também os crentes de outras denominações podem, sob certas condições, aprender algo das contribuições religiosas, tal como acontece, por exemplo, quando eles conseguem reconhecer, nos conteúdos normativos de uma determinada exteriorização religiosa, certas intuições que eles mesmos compartilham, as quais, porém, foram olvidadas, às vezes, há muito tempo.

As tradições religiosas possuem poder de aglutinação especial no trato de intuições morais principalmente no que tange a formas sensíveis de uma convivência humana. Tal potencial faz do discurso religioso que vem à tona em questões políticas referentes à religião

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um candidato sério a possíveis conteúdos de verdade, os quais podem ser, então, tomados do vocabulário de uma determinada comunidade religiosa e traduzidos para uma linguagem acessível em geral. Entretanto, os limiares institucionais que se colocam entre uma esfera pública política "selvagem" e as corporações estatais criam, na confusão das vozes dos círculos da comunicação pública certos filtros, os quais, no entanto, são cunhados apenas para dar vazão a contribuições seculares. No parlamento, por exemplo, a ordem agendada deve permitir ao presidente retirar da ordem do dia posicionamentos ou justificativas religiosas. Para não se perder os conteúdos de verdade de exteriorizações religiosas, é necessário, por isso, que a tradução já tenha ocorrido antes, no espaço pré-parlamentar, ou seja na própria esfera pública política.

Tal trabalho de tradução tem de ser entendido, no entanto, como uma tarefa cooperativa da qual participam igualmente cidadãos não-religiosos. Caso contrário, os concidadãos religiosos desejosos e capazes de participar seriam sobrecarregados de modo assimétrico." Entretanto, os cidadãos religiosos podem manifestar-se em sua própria linguagem, porém, com a ressalva da tradução; tal fardo é compensado pela expectativa normativa segundo a qual, os cidadãos seculares se abrem a um possível conteúdo de verdade de contribuições religiosas

"Nesse sentido Rainer FORST (1994, 158) também fala em uma "tradução" quando exige que "uma pessoa deve estar em condições de traduzir [o itálico é do texto original] aos poucos seus argumentos em razões aceitáveis na base de valores e princípios da razão pública." Todavia, ele não considera a tradução como uma busca cooperativa da verdade da qual participam cidadãos seculares mesmo quando a outra parte se limita a exteriorizações religiosas. Forst formula a exigência, seguindo Rawls e Audi, como um dever cidadão para a própria pessoa religiosa. No mais, a determinação puramente procedimental do trabalho de tradução com o objetivo de uma "justificação geral e recíproca" não consegue fazer jus ao problema semântico da transmissão de conteúdos do discurso religioso para uma forma de representação pós-religiosa e pós-metafísica. Desta maneira, a diferença entre o discurso ético e o discurso religioso se perde. Cf., por exemplo, ARENS, E. Kommunikative Handlungen. Düsseldorf, 1982. Nesse texto, o autor interpreta parábolas da Bíblia como ações de fala inovadoras.

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e entram em diálogos nos quais as razões religiosas podem, eventualmente, aparecer como argumentos acessíveis em geral.18 Cidadãos de uma comunidade democrática devem fundamentar seus posicionamentos, políticos e recíprocos, lançando mão de argumentos. Apesar de não passarem por uma censura na esfera pública política, as contribuições religiosas dependem, mesmo assim, de trabalhos cooperativos de tradução. Porquanto, sem uma tradução bem-sucedida, o conteúdo das vozes religiosas não conseguiria entrar, de forma alguma, nas agendas e negociações das instituições estatais, o que as impediria de "influenciar" o processo político ulterior. Nicholas Wolterstorff e Paul Weithmann gostariam de eliminar, inclusive, esta última ressalva. Ao assumirem tal atitude, no entanto, eles não somente se posicionam contra a sua própria pretensão, que consiste em trabalhar com premissas liberais, mas também contra o princípio da neutralidade do poder do Estado, o qual não pode assumir nenhuma visão de mundo em detrimento de outras.

Na compreensão de Weithman, os cidadãos têm, do ponto de vista moral, um direito a posicionamentos políticos fundamentados no contexto de uma doutrina religiosa ou de uma determinada visão de mundo. Nesse caso, porém, eles precisam cumprir duas exigências, a saber: estar convencidos de que seu governo está justificado a implementar leis e políticas que eles mesmos apoiam em argumentos religiosos ou visões de mundo; e eles têm de estar preparados para explicar por que eles acreditam nisso. Tal ressalva (Proviso)39 mitigada desemboca na exigência de fazer um teste de generalização na perspectiva da primeira pessoa. Com isso, Weithman gostaria de

HABERMAS, J. "Glauben und Wissen", in: \á.,Zeitdiagnosen. Frankfurt/M., 2003, 249-263, aqui 256 ss.

WEITHMAN (2002), 3: "Os cidadãos de uma democracia liberal podem oferecer argumentos nos debates políticos públicos que dependem de razões esboçadas a partir de suas visões morais compreensivas, incluindo suas visões religiosas que não podem ser (melhoradas) apelando para outros tipos de argumentos - contanto que eles acreditem que seu governo gostaria de adotar tais medidas que estejam preparados para indicar que o que eles pensam poderia justificar a adoção de medidas."

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assegurar que os cidadãos emitam o seu julgamento sob pontos de vista de uma concepção da justiça, fundada na religião ou numa visão de mundo. Eles devem refletir, na perspectiva da sua respectiva doutrina, sobre o que é igualmente bom para todos. Em que pese isso, a regra de ouro não deve ser procurada num imperativo categórico. Porque ela não obriga à assunção recíproca de perspectivas, por parte de todos os atingidos.40 De acordo com tal procedimento, aplicado de modo egocêntrico, a perspectiva de uma visão de mundo própria forma o horizonte não-ultrapassável das considerações sobre a justiça: "A pessoa que pleiteia uma medida em público tem de estar preparada para dizer o que poderia, segundo ela, justificar o governo a decretá-la; no entanto, a justificação que ela está disposta a oferecer pode depender de pretensões, incluindo pretensões religiosas, que os proponentes podem considerar inacessíveis numa abordagem standard."**

Uma vez que não estão previstos filtros institucionais, essa premissa não exclui que certas políticas e programas de leis possam vir a ser implementadas, pelo simples fato de que determinadas convicções religiosas ou confessionais obtêm maioria. Nicholas Wolterstorff, que pretende liberar o caminho para a utilização política de razões religiosas, chega à seguinte conclusão: o legislador político também deve poder servir-se de argumentos religiosos.42 Todavia, a abertura do parlamento para a disputa em torno de certezas da fé pode transformar o poder do Estado num agente de uma maioria religiosa, a qual impõe sua vontade ferindo o procedimento democrático.

Certamente não é ilegítima, no meu entender, a própria votação democrática, realizada de modo correto, mas a transgressão de um outro componente essencial do procedimento, a saber, o caráter discursivo das deliberações em curso. Ilegítima é a transgressão do princípio da neutralidade do exercício do poder político, segundo o

40 HABERMAS, J. "Vom pragmatischen, ethischen und moralischen Gebrauch der praktischen Vernunft", cap. IV, in: id., Erlauterungen zur Diskursethik. Frankfurt/M., 1991, 112-115.

41 WEITHMAN (2002), 121. (O formato itálico foi introduzido por mim). 42 AUDI e WOLTERSTORFF, (1997), 117 s.

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qual, todas as decisões implementadas pelo poder do Estado têm de ser formuladas e justificadas numa linguagem acessível a todos os cidadãos, sem tomar partido por nenhum tipo de visão de mundo. Durante o processo de formação política da opinião e da vontade, o poder da maioria transforma-se em repressão quando uma maioria que utiliza argumentos religiosos nega às minorias seculares ou aos que são de outras denominações a possibilidade de reproduzir discursivamente as justificações que lhe são devidas. O procedimento democrático extrai sua força de legitimação de seu próprio caráter deliberativo e da inclusão de todos os participantes; pois é sobre esse caráter que se fundamenta a suposição, fundamentada, dos resultados racionais in the long run (no longo prazo).

A proporção que rejeita a limine o princípio de legitimação de um consenso constitucional apoiado sobre argumentos, Wolterstorff antecipa-se a tal objeção. Na perspectiva de uma democracia liberal, no entanto, o poder pohtico consegue disfarçar sua essência dominativa por meio de uma ligação, juridicamente cogente, a princípios de exercício do poder suscetíveis de um assentimento geral.43 Contra tal posição, Wolterstorff levanta algumas objeções empiristas. Ele ridiculariza as suposições idealizadoras embutidas nas próprias práticas do Estado constitucional considerando-as "quaker meeting ideal" (mesmo que o princípio de afinação dos Quaker não seja típico de um procedimento democrático). Ele parte da idéia de que a disputa entre concepções diferentes sobre a justiça, isto é, concepções fundadas na religião, de um lado, e em visões de mundo, de outro lado, não pode ser dissolvida quando se assume, em comum, a idéia de um consenso que se coloca como pano de fundo, por mais formal que seja tal assunção. Ele admite, é verdade, o princípio da maioria, remanescente do consenso constitucional liberal. Sem embargo, Wolterstorff

43RAWLS (1994), 137: "Nosso exercício do poder político só será inteiramente apropriado quando for exercido em acordo com uma constituição cujos elementos essenciais possam ser endossados razoavelmente, à luz de princípios e ideais aceitáveis, por sua razão humana comum, por todos os cidadãos enquanto livres e iguais.

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representa cognitivãmente o tipo de convivência irreconciliável -assegurada por decisões da maioria - de coletividades religiosas com coletividades amparadas em visões de mundo opostas, como adaptação a um determinado modus vivendi, a qual é "aceita" contra a vontade: "Eu não concordo, eu simplesmente aquiesço - a não ser que a decisão me pareça realmente horrorosa".44

Não fica claro como tal premissa possa evitar o risco de a comunidade política ser dilacerada por guerras de fé. Certamente, a concepção empirista da democracia liberal sempre interpretou as decisões da maioria como a submissão temporária de uma minoria sob o poder fático do partido mais numeroso.45 Entretanto, segundo tal teoria, a aceitação do procedimento da votação se explica pela disposição dos partidos em negociar um compromisso; mesmo assim, eles concordam, apesar de tudo, em aceitar a circunstância de que cada um deles se orienta pelas próprias preferências pela maior participação possível em bens básicos tal como dinheiro, segurança ou lazer. E uma vez que todos desejam os mesmos tipos de bens compartilháveis, podem assumir compromissos. Não obstante, tal categoria não é mais preenchida a partir do momento em que a irrupção dos conflitos não acontece mais no âmbito de bens básicos consentidos, mas na esfera de bens salvíficos concorrentes. Ora, os conflitos existenciais sobre valores entre comunidades de fé não se prestam a compromissos. Tais conflitos somente podem ser desarmados por uma despolitização que lança mão de princípios constitucionais, ante o pano de fundo de um consenso que se supõe ser comum.

(5) Não é possível aplainar cognitivamente a concorrência entre doutrinas religiosas e visões de mundo que pretendem explicar a posição do homem na totalidade do mundo. Tão logo, porém, tais dissonâncias cognitivas se infiltram nas bases da convivência dos cidadãos, regulada normati vãmente, a comunidade política se segmenta

44 WOLTERSTORFF (1997), 160. 45 Na tradição de Hayek e Popper cf., por exemplo, BECKER, W. Die Freiheit,

die wir meinen. Munique, 1982. 153

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em comunidades religiosas e comunidades que adotam visões de mundo irreconciliáveis, as quais oscilam sobre o solo de um modus vivendi fragmentado. Sem o laço unificador de uma solidariedade, a qual não pode ser imposta por normas do direito, os cidadãos não conseguem entender-se como participantes, com iguais direitos, de uma prática comum que possibilita a formação da opinião e da vontade na qual uns devem aos outros argumentos para seus posicionamentos políticos. Tal reciprocidade das expectativas de cidadãos do Estado diferencia uma comunidade liberal, a qual é integrada por uma constituição, de uma comunidade segmentada por visões de mundo. Uma comunidade segmentada dispensa cidadãos crentes e seculares, no seu trato recíproco, da obrigação recíproca de justificar seus posicionamentos quanto a questões políticas controversas. E uma vez que, aqui, as convicções tácitas e ligações subculturais sobrepujam o consenso constitucional suposto, bem como a esperada solidariedade de cidadãos do Estado, em conflitos mais sérios os cidadãos não precisam relacionar-se entre si na qualidade de segundas pessoas.

Parece que a indiferença recíproca e a renúncia à reciprocidade se justificam pelo fato de o Estado liberal cair numa contradição quando imputa a todos os cidadãos, simetricamente, um etos político que distribui desigualmente entre eles o ônus cognitivo. A precedência institucional, bem como a ressalva da tradução que favorece os argumentos seculares, exige dos cidadãos religiosos uma operação de aprendizado e de adaptação, da qual os cidadãos seculares estão isentos. Em todo caso, a observação empírica parece confirmar que também no interior das igrejas se desenvolveu, durante muito tempo, um certo ressentimento contra a neutralidade do Estado - que não pode tomar partido quanto a visões de mundo - porque o dever de "utilizar publicamente a razão" só pode ser cumprido sob determinadas pressuposições cognitivas. Tais enfoques epistêmicos são, todavia, expressão de uma mentalidade já dada; eles não se deixam transformar, à semelhança dos motivos, em conteúdo de expectativas normativas ou de apelos políticos à virtude. Qualquer "dever ser" (Sollen) pressupõe sempre um "ser capaz de" (Kõnnen). As expectativas vinculadas ao papel da cidadania democrática diluem-se no vazio

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quando não há uma correspondente mudança de mentalidade; e nesse caso, elas apenas despertam ressentimentos por parte daqueles que se sentem sobrecarregados e mal-compreendidos.

De outro lado, podemos observar na cultura ocidental, desde a época da Reforma e do Iluminismo, uma mudança real na forma da consciência religiosa. Os sociólogos descrevem tal "modernização" como uma resposta da consciência religiosa a três desafios da modernidade, a saber: o fato do pluralismo religioso; a ascensão das ciências modernas; e a disseminação do direito positivo e da moral social profana. As comunidades de fé, tradicionais, vêem-se obrigadas, sob tais aspectos, a processar dissonâncias cognitivas que não se colocam para cidadãos seculares ou que se colocam apenas quando estes também seguem doutrinas ancoradas em dogmas:

- Os cidadãos religiosos precisam encontrar um enfoque epistêmico que seja aberto às visões de mundo e às religiões estranhas, as quais eles, até o momento, conheciam apenas por intermédio do universo discursivo adotado pela religião à qual pertencem. Isso pode dar certo à proporção que correlacionarem, de modo auto-reflexivo, suas próprias idéias religiosas com as asserções de doutrinas salvíficas concorrentes, sem colocar em risco a própria pretensão de verdade, que é exclusiva.

- Os cidadãos religiosos precisam encontrar, além disso, um enfoque epistêmico aberto ao sentido próprio do saber secular e ao monopólio do saber de especialistas, institucionalizado socialmente. E isso só pode acontecer quando eles determinarem, a partir de sua visão religiosa, a relação entre conteúdos de fé dogmáticos e saber secular sobre o mundo de tal modo que os progressos do conhecimento autônomo não entrem em contradição com as asserções relevantes para a salvação.

- Os cidadãos religiosos precisam assumir, finalmente, um enfoque epistêmico para encarar os argumentos seculares que gozam de precedência na arena política. E isso só é possível à medida que conseguirem inserir, de modo convincente, o individualismo igualitário do direito da razão e da moral universalista no contexto de suas respectivas doutrinas abrangentes.

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Tal trabalho da auto-reflexão hermenêutica tem de ser realizado pelo ângulo de uma autopercepção religiosa. Em nossa cultura, ele foi realizado essencialmente pela teologia; e na vertente católica houve, além disso, uma filosofia da religião, de cunho apologético, cuja tarefa consiste em explicar a razoabilidade da fé.46 Em última instância, no entanto, quem decide se uma determinada elaboração dogmática dos desafios cognitivos da modernidade foi bem sucedida, é a prática da fé das comunidades; somente então ela pode ser entendida pelos crentes como um "processo de aprendizagem". A luz de condições modernas de vida, para as quais não temos alternativas, novos enfoques epistêmicos são "aprendidos" quando resultarem de uma reconstrução de verdades de fé transmitidas, a qual se toma evidente para os próprios participantes. Se esses enfoques resultassem apenas de simples domesticações ou de processos de adaptação impostos, a questão sobre o modo como as pressuposições cognitivas devem ser preenchidas para que se tenha imputabilidade do etos da cidadania igualitária teria de ser respondida no sentido de Foucault, isto é, elas seriam conseqüência de um poder do discurso que se impõe na aparente transparência do saber esclarecido. Tal resposta, no entanto, estaria certamente em contradição com a autocompreensão normativa do Estado constitucional democrático.

Nesse contexto, é interessante focalizar a pergunta que permaneceu em aberto: será que a concepção de cidadania, por mim

46Graças à correspondência com Thomas M. Schmidt, descobri que a filosofia da religião, desenvolvida por uma vertente não-agostiniana que não se coloca a serviço de uma autoglorificação da religião, não fala, como a teologia, "em nome" de uma revelação religiosa, mas também não fala simplesmente como se fora uma mera "observadora da religião". Cf. também sobre isso LUTZ-BACHMANN, M. "Religion-Philosophie-Religionsphilosophie", in: JUNG M., MOXTER, M. e SCHMIDT, Th. M. (eds.). Religionsphilosophie. Würzburg, 2000, 19-26. No lado protestante Friedrich Schleiermacher desempenha um papel exemplar. De início, ele separou cuidadosamente o papel do teólogo e do filósofo apologeta da religião (o qual sai da tradição tomista para adotar a da filosofia transcendental, de Kant); a seguir, ele adota pessoalmente essas duas perspectivas. Cf. a introdução à sua dogmática cristã: Der christliche Glaube (1830/31), Berlim, 1999, §§ 1-10.

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sugerida, não impõe às tradições religiosas e ás comunidades religiosas um fardo que continua sendo, apesar de tudo, assimétrico? Do ponto de vista histórico, os cidadãos religiosos tiveram de aprender a adotar enfoques epistêmicos em relação ao seu entorno secular, os quais são assumidos sem nenhum esforço pelos cidadãos seculares. Porquanto estes não se vêem expostos a semelhantes dissonâncias cognitivas. Mesmo assim, eles não conseguem fugir inteiramente de um fardo cognitivo, já que uma consciência secularista não é suficiente para o trato cooperativo com concidadãos religiosos. Tal operação de adaptação cognitiva deve ser diferençada da exigência de tolerância, seja ela moral ou política, que os cidadãos devem demonstrar no trato com pessoas crentes ou que têm crenças diferentes. No que se segue, não se trata da atitude respeitosa para com uma possível significação existencial da religião, a qual se espera dos próprios cidadãos seculares, mas da superação auto-reflexiva de uma autocompreensão da modernidade, exclusiva e esclerosada em termos secularistas.

Enquanto os cidadãos seculares estiverem convencidos de que as tradições religiosas e as comunidades religiosas constituem apenas uma relíquia arcaica de sociedades pré-modernas, mantidas na sociedade atual, eles considerarão a liberdade de religião apenas como uma proteção cultural para espécies naturais em extinção. Na sua visão, a religião não possui mais uma justificação interna. Nesta linha de raciocínio, o próprio princípio da separação entre Igreja e Estado só pode ter o sentido laicista de um indiferentismo preservador. No modo de ler secularista, é possível prever que as visões de mundo religiosas dissolver-se-ão à luz da crítica científica e que as comunidades religiosas sucumbirão às pressões de uma modernização social e cultural, a qual é cada vez mais intensa. É evidente que não se pode exigir de cidadãos que assumem tal enfoque epistêmico em relação à religião que levem a sério contribuições religiosas para disputas políticas nem que examinem o seu conteúdo - na perspectiva de uma busca cooperativa da verdade - o qual pode ser eventualmente expresso numa linguagem secular e justificado num discurso fundante.

Todavia, sob premissas normativas de um Estado constitucional e de um etos de cidadãos do Estado democrático, a admissão de

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exteriorizações religiosas na esfera pública política só passa a ser razoável quando se exige de todos os cidadãos que não excluam a possibilidade de um conteúdo cognitivo dessas contribuições -respeitando, ao mesmo tempo, a precedência de argumentos seculares, bem como a ressalva da tradução institucional. Tal é a pressuposição normal dos cidadãos religiosos; no âmbito dos cidadãos seculares, no entanto, isso pressupõe uma mentalidade que ainda não é auto-evidente nas sociedades secularizadas do Ocidente. A compreensão perspicaz de cidadãos seculares, de que é preciso viver numa sociedade pós-secular sintonizada epistemicamente com a sobrevivência de comunidades religiosas, depende de uma mudança de mentalidade cujas pretensões não são menores do que as de uma consciência religiosa que precisa adaptar-se aos desafios do entorno que se seculariza cada vez mais. De acordo com as medidas de um esclarecimento que se assegura criticamente dos próprios limites, os cidadãos seculares interpretam sua não-concordância com visões religiosas como sendo um dissenso razoável que pode ser esperado de antemão.

Sem tal pressuposição cognitiva, não se pode exigir nenhuma expectativa normativa de um uso público da razão, em todo caso, não no sentido de que os cidadãos seculares irão tomar parte numa discussão política sobre o conteúdo de contribuições religiosas com a intenção de traduzir, eventualmente, intuições morais e argumentos convincentes para uma linguagem acessível a todos. Pressupõe-se um enfoque epistêmico que resulta da certificação autocrítica dos limites da razão secular.47 Tal pressuposição significa que o etos democrático de cidadãos do Estado (na interpretação por mim sugerida) só pode ser imputado simetricamente a todos os cidadãos se estes, tanto os seculares como os religiosos, passarem por processos de aprendizagem complementares.

Vn a m e i 7 ' P C S q U Í S a m a g n b l T Í C a s o b r e a história *> t 0 l e r a n C , a ' P i e r r e B a y | e como o "maior pensador da

tolerância , porque este operou exemplarmente tal autolimitação reflexiva da razão em relação à religião. Sobre Bayle, cf. FORST, R. (2003) § 8 Sobre o seu argumento sistemático cf. §§ 29 e 33.

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(6) A superação crítica da consciência que eu caracterizo como limitada de modo secularista, é questionada - não menos do que as respostas teológicas que, desde a época da Reforma, foram formuladas, (não apenas por protestantes), para enfrentar os desafios cognitivos da modernidade. Pelo ângulo de uma retrospectiva histórica, a "modernização da consciência religiosa" pode ser considerada, de um lado, como tarefa específica da teologia; de outro lado, porém, o pano de fundo da consciência secularista, que é tecido de visões de mundo, é objeto de um debate filosófico permanente, cujo final continua em aberto. A consciência secular que se tem de viver em uma sociedade pós-secular, reflete-se filosoficamente na figura do pensamento pós-metafísico. Ora, tal pensamento não se esgota no trabalho de acentuação da finitude da razão, nem na simples tentativa de jungir uma consciência falibilista e uma orientação veritativa anticética, a qual caracteriza, desde a época de Kant e Peirce, a autocompreensão das modernas ciências experimentais. Já que o pensamento pós-metafísico constitui uma contrapartida secular para a consciência religiosa que se fez reflexiva, delimitando-se em duas direções diferentes: Sob premissas agnósticas, ele se abstém de emitir juízos sobre verdades religiosas e insiste (sem intenções polêmicas) em uma delimitação estrita entre fé e saber. De outro lado, ele se volta contra uma concepção cientificista da razão e contta a exclusão das douüinas religiosas da genealogia da razão.

E bem verdade que o pensamento pós-metafísico renuncia a afirmações ontológicas sobre a constituição do ente em sua totalidade; isso não significa, porém, uma redução de nosso saber sobre as inumeráveis afirmações que representam respectivamente o "estado atual das ciências". O cienüficismo nos induz, com freqüência, a borrar a fronteira entre conhecimentos teóricos das ciências da natureza, os quais são relevantes para a auto-interpretação do homem e para a compreensão de sua posição no todo da natureza, e a imagem de inundo produzida, de forma sintética, a partir desses conhecimentos.48 Tal tipo de naturalismo radical desvaloriza todas as formas de frases declarativas que não podem ser reduzidas a observações experimentais, a afirmações de leis ou a explicações causais - incluindo, por

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conseguinte, as asserções morais, jurídicas ou valorativas e, não por último, as religiosas. A recente discussão sobre liberdade e determinismo revela que os progressos havidos na área da robótica, da pesquisa dos gens e da biogenética geraram impulsos para que se estabeleça uma espécie de naturalização do espírito que coloca em questão nossa autocompreensão prática como pessoas que agem de modo responsável49 e estimularam uma revisão do direito penal.50 Todavia, uma auto-objetivação naturalista de sujeitos providos da faculdade de falar e agir, que imigra para o dia-a-dia, não se coaduna com a idéia de uma integração política que supõe haver entre os cidadãos um consenso normativo implícito que funciona como pano de fundo.

A reconstrução das veredas que permitiram o surgimento da razão, que é multidimensional e não se fixa apenas em sua relação com o mundo objet ivo, pode ser um bom caminho para o esclarecimento crítico dos seus limites. E nesse processo, o pensamento pós-metafísico não se limita à herança da metafísica ocidental. Ele também se certifica de sua relação interna com as religiões mundiais cujas origens se situam - do mesmo modo que os inícios da filosofia antiga - na metade do primeiro milênio antes de Cristo, portanto, na época que Jaspers caracteriza como "era axial".51 As religiões que

48 Wolterstorff recorda, em geral, essa distinção, freqüentemente descuidada, entre afirmações seculares e argumentos que podem contar, de um lado, e imagens de mundo seculares, as quais também não deveriam contar mais do que as doutrinas religiosas. Cf. AUDI, WOLTERSTORFF (1997), 105: "Muitas vezes, senão a maioria das vezes , somos capazes de avistar argumentos religiosos de uma milha de distância [...]. Tipicamente, no entanto, as perspectivas compreensivas seculares passam despercebidas."

w GEYER, Ch. (ed.) Hirnforschung und Willensfreiheit. Frankfurt;M., 2004; PAUEN, M. lllusion Freiheit. Frankfurt/M., 2004.

5UROTTLEUTHNER, H. "Zur Soziologie und Neurobiologie richterlichen Handelns", in: Festschrift Thomas Raiser. Berlim, 2005, 579-598.

51 Cf. o programa de pesquisa desenvolvido, desde os anos 70, por S. N. Eisenstadt, ultimamente por: ARNASON, J. P., EISENSTADT, S. N. e WITTROCK, B. (eds.) Axial Civilizations and WorldHistory. Leiden, 2005.

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deitam suas raízes nessa época operaram a passagem cognitiva das explicações narrativas do mito para um logos que discrimina essência e aparência de modo semelhante ao que ocorreu com a filosofia grega. Desde o Concilio de Nicéia, a filosofia também passou a se apropriar, pelo caminho de uma "helenização do cristianismo" de muitos conceitos e motivos histórico-salvíficos da tradição monoteísta.52

Ao contrário do que pensa Heidegger, as relações de herança, complexas e enoveladas, não podem ser desdobradas na linha de um pensamento ontologia).5-1 Os conceitos de procedência grega, tal como "autonomia" e "individualidade", ou ainda os conceitos romanos de "emancipação" e "solidariedade" há muito tempo foram preenchidos com significados de procedência judeu-cristã.54 No trato com tradições religiosas, inclusive árabes, a filosofia constatou, reiteradas vezes, que é possível obter impulsos inovadores a partir do momento em que se consegue separar, no cadinho de discursos fundamentadores, conteúdos cognitivos de suas cascas originariamente dogmáticas. Kant e Hegel constituem os exemplos mais bem-sucedidos neste trabalho. Também é exemplar o encontro de muitos filósofos do século 2 0 com Kierkegaard, escritor religioso que pensa de modo pós-metafísico, porém, não pós-cristão.

Mesmo quando se apresentam como o "outro" intransparente da razão, as tradições religiosas continuam, aparentemente, presentes, inclusive de modo mais intenso do que a metafísica. Seria irracional lançar fora, a priori, o pensamento, segundo o qual, as religiões mundiais - que são tidas como o único elemento sobrevivente das culturas dos velhos reinos, as quais se tomaram estranhas - conseguem manter um lugar em meio à estrutura diferençada da modernidade

55 LUTZ-BACHMANN, M. "Hellenisierung des Crhristentums?", in: COLPE, C , HONEFELDER, L. e LUTZ-BACHMANN (EDS.) Spãtantike und Christentum. Berlim, 1992.

53 Cf. os esboços da história do ser, in: HEIDEGGER, M. Beitrage zur Philosophie. Vom Ereignis. Frankfurt/M., 1989.

MCf. as considerações interessantes contidas in: BRUNKHORST, H. Solidaritat. Frankfurt/M., 2002, 40-78.

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porque o seu conteúdo cognitivo ainda não perdeu sua validade. Não podemos, em todo caso, excluir de todo que elas levam consigo certos potenciais semânticos capazes de desenvolver força inspiradora para a sociedade inteira, a partir do momento em que liberam seus potenciais de verdade profanos.

Em síntese, o pensamento pós-metafísico assume uma dupla atitude perante a religião, porquanto ele é agnóstico e está, ao mesmo tempo, disposto a aprender. Ele insiste na diferença entre certezas de fé e pretensões de validade contestáveis em público; abstém-se, porém, de adotar uma presunção racionalista, a qual o levaria a pretender decidir por si mesmo sobre o que é racional e o que não é nas doutrinas religiosas. Enüetanto, os conteúdos dos quais a razão se apropria por tradução não constituem necessariamente uma perda para a fé. Além disso, uma apologia da fé, elaborada com meios filosóficos, não é tarefa da filosofia, que continua agnóstica. No melhor dos casos, ela consegue projetar um círculo ao redor do núcleo opaco da experiência religiosa quando se põe a refletir sobre as características do discurso religioso e sobre as peculiaridades da fé. Tal núcleo é inacessível ao pensamento discursivo, o mesmo acontecendo com o núcleo indevassável da contemplação estética, que também pode ser circulado pela reflexão filosófica.

Deixei-me levar a uma abordagem sobre a forma ambivalente que o pensamento pós-metafísico adota ao tratar da religião porque nisso se manifesta também uma pressuposição cognitiva para a disposição de cooperação que se espera de cidadãos seculares. Ela corresponde precisamente ao enfoque epistêmico que cidadãos seculares precisam assumir quando, em debates públicos, estão dispostos a aprender com contribuições de seus concidadãos religiosos, as quais, dado o caso, possam ser traduzidas para uma linguagem acessível em geral. A certificação filosófica da genealogia da razão desempenha aparentemente, para o auto-esclarecimento da consciência secular, um papel semelhante ao do trabalho de reconstrução que a teologia desenvolve para o auto-esclarecimento da fé religiosa na modernidade. O dispêndio em termos de auto-reflexão filosófica revela que, entre os cidadãos seculares, o papel de cidadão de um Estado

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democrático supõe uma mentalidade cujas pressuposições não são menos fortes do que as da mentalidade de comunidades religiosas esclarecidas. Nesse contexto, os fardos cognitivos impostos a ambas as partes pela aquisição de enfoques epistêmicos adequados não são distribuídos de maneira simétrica.

( 7 ) Sem embargo, o fato de o "uso público da razão" - na forma por mim introduzida - depender de pressuposições cognitivas, que não são pura e simplesmente auto-evidentes, tem conseqüências interessantes e discrepantes. Tal circunstância nos lembra, em primeiro lugar, que o Estado constitucional democrático, o qual depende de uma forma deliberativa de política, representa, em geral, uma forma de governo pretensiosa do ponto de vista epistêmico e, de certa forma, sensível à verdade.55 À luz de tais considerações, uma "democracia pós-verdade" (post-truth-democracy), do tipo caracterizado pelo New York Times durante a última campanha para a eleição presidencial, não seria mais uma democracia. Neste caso, a exigência de mentalidades complexas chama a atenção para uma condição de funcionamento, improvável, sobre cujo preenchimento os meios administrativos e jurídicos do Estado liberal praticamente não têm influência. O exemplo da polarização das cosmovisões de uma comunidade que se divide em dois campos - um fundamentalista e outro secularista - demonstra que a integração política é ameaçada a partir do momento em que um número demasiadamente elevado de cidadãos não conseguem atingir os standards do uso público da razão. Em que pese isso, a origem das mentalidades é pré-politica. Elas se modificam, sem nenhum aviso prévio, já que reagem perante novas circunstâncias da vida. No melhor dos casos, um processo desse tipo pode ser acelerado, no longo prazo, no médium de discursos públicos conduzidos pelos próprios cidadãos. Entretanto, convém perguntar: será que se trata, neste caso, de um processo dirigido e conduzido

"Cf. a aula inaugural em Munique, de NIDA-RÜMELIN, J. Demokratie und Wahrheit (manuscrito 2004)

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cognitivamente, o qual pode ser descrito como um processo de aprendizagem?

Por isso, o que mais preocupa é uma terceira conseqüência. Até aqui nos apoiamos na idéia de que os cidadãos de um Estado constitucional democrático podem adquirir as mentalidades funcionalmente requeridas pelo caminho de "processos de aprendizagem complementares". O exemplo citado, no entanto, indica que tal idéia não é de todo isenta de problemas. Em que perspectiva podemos afirmar que a colisão fragmentadora provocada por modos de pensar e de sentir, respect ivamente fundamentalistas e secularistas, constitui o resultado de "déficits de aprendizagem"? Lembremo-nos da mudança de perspectiva que empreendemos ao passarmos de uma explicação normativa da conduta de cidadãos do Estado, democráticos, exigida política e moralmente, para a pesquisa epistemológica das pressuposições cognitivas sob as quais tal etos de cidadãos do Estado é imputável. A reflexivização da consciência religiosa, como também a superação auto-reflexiva da consciência secularista, é fruto de uma superação auto-reflexiva de e n f o q u e s e p i s t ê m i c o s . Apenas uma de t e rminada a u t o c o m p r e e n s ã o da modernidade permi te qualif icar tais modificações de mentalidade como "processos de aprendizagem".

Certamente é possível defender tal visão no quadro de teorias evolucionistas da sociedade. Todavia, independentemente da posição controversa que tais teorias ocupam no interior das respectivas disciplinas acadêmicas, na visão de uma teoria política normativa não se pode exigir, sob nenhum pretexto, que cidadãos de um Estado liberal se descrevam a si mesmos, por exemplo, nos termos de uma teoria da evolução religiosa que os classificaria como "atrasados" do ponto de vista cognitivo. Somente os participantes e suas respectivas organizações religiosas podem decidir a questão: será que uma fé "modernizada" continua sendo fé "verdadeira"? E será que, de outro lado, um secularismo fundamentado à maneira cientificista não tem, no final das contas, melhores razões do que o conceito compreensivo de razão, delineado pelo pensamento pós-metafísico? Mesmo entre os filósofos, não há argumentos decisivos, nem pró nem conUa. Não 164

obstante isso, dado que a teoria política não tem condições de saber se as mentalidades funcionalmente necessárias podem ser adquiridas pelo caminho de processos de aprendizagem, ela tem de reconhecer que sua concepção do uso público da razão, fundada normativamente, continua sendo "questionada essencialmente" pelos próprios cidadãos. Porquanto o Estado liberal só pode confrontar seus cidadãos com deveres que eles mesmos podem aceitar apoiados numa "compreensão perspicaz' (aus Einsicht) - e tal compreensão pressupõe que os enfoques epistêmicos necessários podem ser obtidos por meio de compreensão perspicaz, o que implica, por conseguinte, a possibilidade de serem "aprendidos".

Tal autodel imi tação da teoria política não impl ica necessariamente que nós, na qualidade de cidadãos ou de filósofos, consigamos ou devamos defender, com sucesso, uma versão forte dos fundamentos liberais e republicanos do Estado democrático constitucional, seja intra muros, seja nas arenas políticas. Porém, tal discurso sobre a compreensão correta, sobre a própria correção de uma ordem liberal em geral e do etos dos cidadãos do Estado democrático em particular, atinge domínios nos quais os argumentos normativos não bastam mais por si mesmos. A controvérsia também se estende para a questão epistemológica da relação entre fé e saber, a qual atinge, por seu turno, elementos essenciais da compreensão que serve de pano de fundo à modernidade. E interessante notar que tentativas que se propõem determinar, de modo auto-reflexivo, seja no campo da filosofia, seja no da teologia, a relação entre fé e saber, levantam questões sobre a genealogia da modernidade, dotadas de longo alcance.

Recordemos a questão levantada por Rawls: "Até que ponto os religiosos e os não-religiosos podem endossar um regime secular quando suas doutrinas compreensivas não conseguem prosperar nesse regime, podendo, inclusive, entrar em declínio?".56 Tal pergunta não pode ser respondida, em última instância por explicações normais da

56 Cf. nota de rodapé n° 20.

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teoria política. Tomemos o exemplo da "ortodoxia radical",''7 que assume e leva adiante a intenção e o pensamento fundamental da teologia política de um Carl Schmitt ut i l izando meios da desconstrução. Teólogos que se postam nesta linha negam que a modernidade possua qualquer tipo de direito próprio,5" já que ela estaria desenraizada nominalisticamente, e tentam refundamentá-la ontologicamente numa "realidade de Deus". A controvérsia com esses oponentes precisa ser conduzida no âmbito da própria matéria, ou seja, asserções teológicas somente podem ser respondidas por asse rções teológicas; ao passo que asserções históricas e epistemológicas têm de ser respondidas por contra-argumentos históricos e epistemológicos.59

Ora, isso também vale para o lado oposto. A questão de Rawls dirige-se, em igual medida, para a esfera secular e para a esfera religiosa. Quando um naturalismo apoiado em visões de mundo ultrapassa as fronteiras de suacientificidade, impõe-se, com razão, uma controvérsia acerca de questões básicas da filosofia. Enquanto não houver clareza filosófica sobre o sentido pragmático e sobre o contexto da transmissão histórica das proposições existenciais bíblicas, nenhum tipo de conhecimento neurológico pode obrigar as comunidades religiosas a abjurar as asserções sobre a existência de Deus e sobre uma vida após a morte, veiculadas pela tradição.60 O problema que se coloca quando se tenta relacionar asserções das ciências experimentais com convicções religiosas nos coloca novamente no contexto da genealogia

57 MILBANK, J. Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason. Oxford, 1990; MILBANK, D., PICKSTOCK, C. e WARD, G. (eds.). Radical Orthodoxy. Londres-N. York, 1999.

58 Sobre a posição contrária, cf. a obra de BLUMENBERQ Hans. Legimitat der Neuzeit. Frankfurt/M., 1966.

59 SCHMIDT, Th. M. "Postsãkulare Theologie des Rechts. Eine Kritik der radikalen Orthodoxie", in: FRÜHAUF, W. e LÕSER, W. (eds.). Biblische Aufklarung - die Enldeckung einer Tradition. Frankfurt/M., 2005, 91-108.

60 Cf. a observação final de DETEL, W. em um artigo extremamente bem informado: "Forschungen über Hirn und Geist", in: Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 52, (2004), 891-920.

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da autocompreensão da modernidade, levantando a seguinte pergunta: será que a ciência moderna constitui uma prática que determina performativamente a medida do verdadeiro e do falso, podendo ser entendida unicamente a partir de si mesma, ou não será ela resultado de uma história da razão que inclui, essencialmente, as religiões mundiais?

Rawls transformou sua Teoria da justiça num Liberalismo político, a partir do momento em que reconheceu a relevância do "fato do pluralismo". Ele teve o grande mérito de refletir, desde cedo, sobre o papel político da religião. Em que pese isso, tais fenômenos também podem chamar a atenção de uma teoria política, pretensamente "livre", para o alcance limitado da argumentação normativa. Será que os cidadãos podem aceitar o liberalismo como sendo a única resposta correta para o pluralismo religioso? Para chegar a uma conclusão sobre esse ponto, os cidadãos religiosos, como também os seculares, devem saber interpretar, cada um na sua respectiva visão, a relação entre fé e saber, porquanto tal interpretação prévia lhes abre a possibilidade de uma atitude auto-reflexiva e esclarecida na esfera pública política.

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III. NATURALISMO E RELIGIÃO 6 . LIBERDADE E DETERMINISMO.

Assistimos hoje, em solo alemão, a um acalorado debate sobre a liberdade da vontade, o qual se manifesta, inclusive, na imprensa diária supra-regional.2 A gente se sente transportada de volta ao século XIX. E agora, como antes, os resultados da pesquisa sobre o cérebro conferem nova atualidade a uma velha disputa filosófica - é bem verdade que agora existe o reforço de procedimentos tecnológicos. Neurólogos e representantes da pesquisa da cognição disputam com filósofos e outros intelectuais da área das ciências do espírito sobre a interpretação determinista, segundo a qual, um mundo fechado de modo causai elimina qualquer tipo de possibilidade para a liberdade de escolha entre ações alternativas. Desta vez, no entanto, o ponto de partida da controvérsia foi dado pelos resultados de uma tradição de pesquisa que se apoia sobre os experimentos realizados, já nos anos 70, por Benjamin Libet.1

Os resultados parecem confirmar estratégias de pesquisa reducionistas cujo alvo é uma explicação de fenômenos mentais que

1 Este texto serviu de base para uma conferência proferida em 2004 por ocasião da recepção do Prêmio-Kioto, conferido pela quarta vez a um filósofo -após Karl R. Popper, Willard van Orman Quine e Paul Ricoeur.

2 Agradeço novamente os conselhos detalhados e enriquecedores de Lutz Wingert que, mais do que eu, está familiarizado com essa questão. Agradeço também a Tilman Habermas pelas sugestões e melhorias.

1 GEYER, Chr. (ed.) Hirnforschung und Willensfreiheit. Zur Deutung der neuesten Experimente. Frankfurt/M., 2004.

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se baseia apenas em condições fisiológicas observáveis.4 Tais princípios partem da premissa, segundo a qual, a consciência da liberdade, que os atores se adscrevem a si mesmos, constitui um auto-engano. Porquanto a vivência da decisão própria é, de certo modo, uma roda que gira no vazio. A liberdade da vontade, entendida como uma "causação mental" constitui apenas uma aparência atrás da qual se oculta uma conexão inteiramente causai de estados neuronais que se estabelecem de acordo com leis da natureza.5

Sem embargo, tal determinismo é inconciliável com a autocompreensão cotidiana de sujeitos que agem. No dia-a-dia, nós temos de nos atribuir mutuamente a autoria responsável por nossas ações. Por isso, o esclarecimento científico sobre a determinação de nosso agir por leis da natureza não pode colocar em questão, seriamente, a autocompreensão intuitiva de atores imputáveis, comprovada no plano pragmático. A linguagem objetivadora da neurobiologia atribui ao "cérebro" o papel gramatical desempenhado, até agora, pelo "eu". Porém, ela perde, a partir desse momento, a conexão com a psicologia do dia-a-dia. É bem verdade que a provocação que se vislumbra na afirmação de que "o cérebro" deve pensar e agir no lugar de mim "mesmo" é apenas um fato gramatical; isso constitui, no entanto, um meio de que o mundo da vida lança mão para se proteger de dissonâncias cognitivas.

Esta não seria, certamente, a primeira vez que uma teoria engendrada pelas ciências da natureza se choca conü a o Commonsense. Ela teria de enUar em contato com uma psicologia do cotidiano, pelo menos a partir do momento em que as aplicações técnicas do saber teórico se imiscuem, por exemplo, graças à sua familiaridade com técnicas terapêuticas, na prática cotidiana. As técnicas mediante as quais os conhecimentos da neurobiologia podem vir a ter, um dia, acesso ao mundo da vida poderiam, quiçá, adquirir relevância em

"ROTH, G. "Worüber Hirnforscher reden dürfen - und in welcher Weise?", in; Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 52 (2204), 223-234, aqui 231.

3 A tese determinista mantém-se mesmo que interpretemos as leis da natureza de modo probabilista. Pois o arbítrio não pode ser reduzido ao acaso.

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termos de modificação da consciência, que falta aos próprios conhecimentos . Convém perguntar, no entanto: será que a fundamentação da interpretação determinista é consistente? Ou não seria ela, simplesmente, componente de uma imagem de mundo naturalista, fruto de uma interpretação especulativa de conhecimentos das ciências da natureza? Eu gostaria de dar prosseguimento ao debate sobre liberdade e determinismo reinterpretando-o em termos de uma controvérsia sobre modos corretos de naturalização do espírito.

De um lado, gostaríamos de fazer jus á evidência - que é incontestável do ponto de vista de uma intuição - de uma consciência que acompanha, performativamente, todas as nossas ações; de outro lado, gostaríamos de satisfazer, ao mesmo tempo, a necessidade que temos de uma imagem coerente do universo, a qual inclui também o homem enquanto ser da natureza. Kant tentou reconciliar entre si a causalidade oriunda da liberdade e a causalidade da natureza. Isso, porém, só foi possível ao custo de um dualismo que se estabelece entre o mundo do inteligível e o mundo dos fenômenos. Hoje em dia, preferimos evitar tais pressupostos metafísicos. Nesse caso, porém, temos de encontrai' uma sintonia enüe aquilo que aprendemos de Kant sobre as condições üanscendentais de nosso conhecimento e o que Darwin nos ensinou sobre a evolução natural.

Na parte crítica inicial, tentarei mostrar que programas de pesquisa reducionistas não conseguem evitar dificuldades inerentes ao dualismo que separa, de um lado, jogos de linguagem e, de outro, perspectivas de esclarecimento - a não ser assumindo as conseqüências de um "epifenomenalismo". A segunda parte, mais construtiva, pretende recordar as raízes antropológicas desse dualismo de perspectivas, o qual não exclui uma visão monista da evolução natural. A imagem mais complexa de uma interação entre um cérebro que determina o espírito, e um espírito que programa o cérebro, é fruto de uma reflexão filosófica, não de uma pesquisa elaborada pelas ciências naturais. Eu defendo um naturalismo "mitigado", não-cientificista. Nessa perspectiva, é "real" tudo aquilo, e somente aquilo, que pode ser representado em proposições verdadeiras. A realidade, todavia, não se esgota na totalidade das asserções limitadas regionalmente e

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que contam, de acordo com standards atuais, como asserções verdadeiras das ciências experimentais. I. Reducionismo: Prós e contras.

Partindo da crítica à estrutura e à força de tematização dos experimentos de Libet, gostaria de introduzir, inicialmente, um conceito fenomenológico de liberdade de ação (1). A teoria analítica da ação abre caminho para um conceito não-determinista da liberdade condicionada e para uma concepção da autoria responsável. Ambos exigem, diferentemente de uma explicação a partir de causas, uma explicação racional da ação (2 e 3). O reducionismo tenta eludir a discrepância entre perspectivas de esclarecimento e formas de saber complementares. As dificuldades encontradas por tal estratégia de pesquisa motivam os questionamentos da segunda parte: será que o dualismo das perspectivas epistêmicas, que estrutura e delimita nosso acesso ao mundo, poderia ter-se originado do desenvolvimento natural de formas de vida culturais? (4).

(1) Benjamin Libet solicitara das pessoas submetidas ao teste neurológico que fizessem espontaneamente um movimento do braço e registrassem o momento exato em que a decisão acontecera. De acordo com as expectativas, tal decisão precede os movimentos do próprio corpo. Entretanto, o intervalo de tempo que se coloca entre processos inconscientes observados nas áreas dos córtices cerebrais primários e associativos, de um lado, e o ato consciente que a pessoa submetida aos testes experimenta como sendo sua própria decisão, de outro lado, é crítico.6 Tudo indica que se constrói, no cérebro, um "potencial de disposição", específico da ação, antes que a própria pessoa se "decida" a agir. Esse resultado da seqüência temporal que

6 Sobre as disposições do teste e os posteriores experimentos de controle cf. ROTH, G. Fühlen, Denken, Handeln. Frankfurt/M., 2003, 518-528. Cf. também LIBET, B. Mind Time. Wie das Gehirn Bewusstsein produziert Frankfurt/M., 2005.

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se estabelece entre evento neuronal e vivência subjetiva parece confirmar que certos processos do cérebro determinam ações conscientes sem que o ato da vontade, que o agente se adscreve a si mesmo, desempenhe uma função causai. Pesquisas psicológicas confirmam, além disso, a experiência, segundo a qual, sob certas condições, os atores realizam ações às quais atribuem, apenas postumamente, intenções próprias.

Não obstante isso, os experimentos de Libet não conseguem enfrentar satisfatoriamente o peso da prova da tese determinista, o qual lhes é atribuído. As disposições manifestas pelo experimento são talhadas para movimentos arbitrários do corpo que proporcionam aos atores apenas frações de segundos entre a intenção e a realização da ação. Por isso, convém perguntar se os resultados dos testes podem ser generalizados para além das classes de ações observadas. Até mesmo uma interpretação cautelosa nesse sentido não consegue eximir-se de uma outra objeção, a saber, a de que a significação das seqüências observadas continua obscura. O design parece admitir a possibilidade de que as pessoas submetidas ao teste e instruídas sobre o andamento do experimento já se concentraram no plano de ação antes de se decidir sobre a execução da ação atual. Neste caso, porém, a estrutura do potencial de disposição, observado de um ponto de vista neurológico, apenas refletiria a fase do planejamento. Finalmente, é muito mais grave a objeção que se levanta contra uma produção artificial de situações de decisão abstratas, a qual se apoia em considerações de princípio. Como em qualquer design, aqui também se coloca a questão sobre o que deve ser medido - e a questão filosófica preliminar sobre o que deveria ser medido em geral.

De modo geral, as ações resultam de um encadeamento complexo de intenções e reflexões que permitem avaliar fins e meios alternativos à luz de ocasiões, recursos e obstáculos. Um design que comprime temporalmente o planejamento, a decisão e a execução de um movimento do corpo e que o retira de um contexto de objetivos amplos e de alternativas fundamentadas só pode abranger artefatos que possuem exatamente aquilo que transforma implicitamente as ações em ações livres, a saber: a vinculação interna com argumentos. Quem

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pensa que a liberdade "de-poder-agir-assim-ou-de-outra-forma" se corporifica no "asno de Buridan"* é vítima de um mal-entendido. Na "simples" decisão de estender o braço direito, ou o esquerdo, ainda não se manifesta uma liberdade de ação. Para que isso aconteça é necessário um contato com argumentos, os quais poderiam, por exemplo, motivar um ciclista a dobrar à direita ou à esquerda. Após tal ponderação, é possível abrir um espaço para a liberdade "porquanto o sentido do ponderar inclui simplesmente a possibilidade de poder agir não somente desta forma, mas também de outra".7

A partir do momento em que entram em jogo argumentos, que falam a favor ou contra uma determinada ação, somos levados a supor que a tomada de posição, à qual pretendemos chegar mediante uma avaliação dos argumentos, não está determinada a priori* No entanto, se a questão que envolve modos e possibilidades de nossa decisão fosse uma questão fechada, não haveria necessidade nenhuma de ponderações ou raciocínios. Uma vontade se forma, imperceptivelmente, na esteira de raciocínios. E já que uma decisão amadurece na seqüência de considerações imprecisas e fugazes, nós nos sentimos livres apenas nas ações realizadas de modo mais ou menos consciente. Existem, evidentemente, diferentes tipos de ações: instintivas, habituais, episódicas, neuróticas, compulsivas, etc. Todavia, todas as ações realizadas conscientemente podem ser examinadas, retrospectivamente, tendo em vista sua imputabilidade. Outras pessoas podem chamar à responsabilidade um ator imputável e responsável

" Cf. observação da pág. 207 (n.t.). 1TUGENDHAT, E. "Der Begriff der Willensfreiheit", in: id. Philosophische Aufsatze. Frankfurt/M., 1992, 334-551, aqui 340. 8 O argumento empirista aduzido contra a asserção, segundo a qual a função das

considerações se esgota no exame da "suportabilidade emocional" de conseqüências da ação pressupõe o que deveria ser provado. Cf. ROTH (2003), 526 s.: "Pouco importa o resultado da avaliação racional: ele está submetido à decisão última (!) do sistema límbico, porquanto ele tem de ser emocionalmente aceitável. [...] Diferentemente do que é afirmado pela psicologia do cotidiano, não são os argumentos lógicos enquanto tal que nos estimulam ao agir racional."

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por seus atos: "O que o agente realiza intencionalmente é precisamente aquilo que se coloca diante de sua liberdade e para cuja execução ele possui argumentos adequados."9 Somente uma vontade refletida é livre.

O próprio Benjamin Libet refletiu, mais tarde, sobre o papel de processos de avaliação conscientes. Ele passou a interpretar os resultados de suas experiências num sentido tal que coloca as interpretações costumeiras sob uma outra luz.1" Ele admite que, na fase entre intenção e execução, a vontade livre possui uma função controladora em relação às ações iniciadas inconscientemente, à proporção que estas enttariam, previsivelmente, em conflito com outras expectativas, por exemplo, normativas. Conforme tal interpretação, a vontade livre apresentar-se-ia negativamente na forma de um veto contra a atualização consciente de uma disposição de ação inconsciente, porém não justificada.

( 2 ) Peter Bieri conseguiu deslindar, em uma linha fenomenológica convincente, as confusões que cercam o conceito de uma liberdade da vontade destituída de origem, mas que cria origens." Se o ato de "decisão livre" significa que o ator "liga" sua vontade "a argumentos", então, o momento de abertura da decisão não exclui sua "condicionalidade" racional. O agente é livre quando quer o que considera correto levando em conta o resultado de seu raciocínio. Nós sentimos que não é livre uma coação imposta a partir de fora, a qual nos constrange a agir diferentemente do modo como pretendemos agir, apoiados em nossa própria compreensão perspicaz (Einsicht). Disso resulta um conceito de liberdade condicionada que leva na devida conta dois momentos distintos, a saber, uma liberdade sob condições.

De um lado, para chegar ao juízo prático decisivo sobre como agir, o ator é obrigado a pesar as alternativas de ação. É certo que tais alternativas de ação apresentam-se a ele no interior de um espaço de possibilidades l imitado por capacidades, pelo caráter e por

''DAVIDSON, D. "Handlungsfreiheit", in: id. Handlung und Ereignis. Frankfurt/M., 1985,99-124, aqui 114.

'"LIBET, B. "Haben wir einen freien Willen?", in: GEYER (2004), 209-224. 11 BIERI, P. Das Handwerk der Freiheit. Munique, 2001.

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circunstâncias. No entanto, à vista das alternativas que estão à espera de uma avaliação, ele precisa considerar-se capaz de agir desta ou daquela forma. Porquanto, aos olhos de um ator que reflete, as capacidades, o caráter e as circunstâncias transformam-se noutros tantos argumentos para seu "ser capaz de" (Kónnen) delimitado pela situação específica. Nesse sentido, ele não é livre para agir incondicionalmente, desta ou daquela forma. No processo da reflexão, o ator chega a um posicionamento motivado racionalmente. E isso não acontece por acaso, porque não deixa de haver algum tipo de fundamento. Compreensões não surgem arbitrariamente porque sua formação depende de regras. Caso a pessoa que se decidiu a agir tivesse chegado a um outro juízo, o seu querer teria sido diferente.

De outro lado, não poderemos entender o papel dos argumentos na motivação da ação se nosso modelo for o da causação de um evento, observável, por um estado anterior. O processo do juízo autoriza o agente a tomar-se o autor de uma decisão. Se se tratasse de um processo natural explicável de modo causai, o autor sentir-se-ia desautorizado, isto é, privado de sua iniciativa. Por conseguinte, a asserção: "se o autor tivesse julgado de modo diferente, sua vontade também deveria ter sido diferente" é falsa, não somente no sentido gramatical. A coação não-violenta do melhor argumento, que nos motiva a tomar posição dizendo "sim" ou "não", não pode ser confundida com a coação causai de uma restrição imposta que nos constrange a agir de uma forma não querida: "Quando não conseguimos detectar a autoria, isso significa que não conseguimos, enquanto pensantes e julgadores, exercer influência sobre nosso querer e nosso fazer. Nesse sentido, a liberdade é suportável junto com condicionalidade [...]; porquanto ela exige condicionalidade e não seria pensável sem ela."12

Para explicar a significação da motivação racional por argumentos temos de assumir a perspectiva do participante de um processo público onde "se dão e se aceitam argumentos" (Robert Brandom). Por isso, um observador do evento do discurso é obrigado a descrever nos termos de uma linguagem mentalista,

BIERI (2001), 166.

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isto é, numa linguagem que contem os predicados "opinar", "convencer", "afirmar" e "negar". Nos termos de uma linguagem empirista, no entanto, ele teria de eliminar, por razões gramaticais, todas as referências a enfoques proposicionais de sujeitos que têm algo por verdadeiro ou falso. Nesta ótica, o evento do discurso transformar-se-ia num evento da natureza, o qual decorre, de certa forma, por detrás das costas dos sujeitos.

Peter Bieri tenta reconciliar o conceito de liberdade condicionada com o evento da natureza, determinista: "No geral, a reflexão sobre as alternativas constitui um evento que, no final, irá me vincular, juntamente com minha história, a uma vontade bem determinada."13 Todavia, a frase acrescentada "eu sei disso, porém, isso não me incomoda" revela que aqui nos deparamos com algo falso. Porquanto o caráter condicionado de minha decisão não me incomoda, é verdade, porém, somente até o momento em que posso compreender, retrospectivamente, esse "processo" como um processo de pensamento mesmo que implícito, no qual estou engajado enquanto participante do discurso ou enquanto sujeito que reflete no foro interno. Pois neste momento se trata de minha intelecção, a qual permite tomar uma decisão. Por conseqüência, a determinação de minha decisão por um evento neuronal, do qual eu não participo na condição de uma pessoa que toma posição, constituiria um verdadeiro estorvo: porque, neste caso, não seria mais minha decisão. Somente a mudança imperceptível da perspectiva participante para a perspectiva observadora pode causar a impressão de que a motivação da ação constrói, mediante argumentos compreensíveis, uma ponte para a determinação da ação por causas observáveis.

O correto conceito da liberdade condicionada não fornece nenhum apoio para o monismo ontológico apressado, segundo o qual, as causas e os argumentos constituem dois aspectos distintos da mesma realidade. Na esteira dessa concepção, os argumentos constituem o lado subjetivo, ou melhor, uma certa "maneira de vivenciar" processos, os quais são constatáveis também sob um ponto de vista neurológico.

'BIERI (2001), 287 s.

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E nas conexões lógico-semânticas estabelecidas entre conteúdos proposicionais e enfoques refletem-se "encadeamentos complexos de eventos neurofisiológicos": "De acordo com isso, argumentos constituiriam o aspecto vivenciado 'internamente' e as causas o aspecto 'externo', neurofisiológico, de um 'terceiro' abrangente que se desenvolve de modo determinista, o qual, porém, não se abre para nós."14 Tal interpretação naturalista apela injustamente para a "teoria causai da ação", defendida por Donald Davidson, segundo a qual, desejos e enfoques, intenções, convicções e orientações valorativas são causas de uma ação quando constituem as razões que levaram o ator a realizar uma ação.

Apesar da recusa de Davidson em aceitar o reducionismo,15 a conceitualização dos argumentos em termos de causas sugeriu uma certa interpretação da liberdade da ação que promete nivelar o fosso que se interpõe entre o espiritual e o físico. A teoria não consegue, no entanto, cumprir tal promessa. Na visão dessa teoria da ação, é possível, sem dúvida, enfraquecer o combalido conceito idealista de uma liberdade incondicionada e destituída de origens, à qual se atribui uma força capaz de ativar novas séries causais. Todavia, a inserção da liberdade de ação em um contexto de argumentos, que é motivador, não pode ocultar a diferença que separa explicações da ação por motivos racionais de explicações por causas. Da mesma forma, o conceito da liberdade condicionada também não contribui para a tese, segundo a qual, podemos organizar tais explicações da

l4ROTH (2004), 232. 15 Cf. a réplica de D. Davidson a R. Rorty in: HAHN, L. E. (ed.). The Philoso-

phyof Donald Davidson. Lasalle (III.) 1999, 599: "Enfatizei principalmente a irredutibilidade de nossos conceitos mentais. Eles são irredutíveis em dois sentidos: Em primeiro lugar, eles não podem ser definidos nos vocabulários das ciências naturais, nem há leis empíricas ligando-os a fenômenos físicos de modo a torná-los disponíveis. Em segundo lugar, eles não constituem parte opcional de nossos recursos conceituais. São tão importantes e indispensáveis como os significados do common-sense quando pensamos e falamos sobre fenômenos seguindo um caminho não psicológico."

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ação como se fossem os dois lados de uma mesma medalha -desconhecida, por enquanto.10

( 3 ) A explicação racional de uma ação não oferece condições suficientes para a ocorrência fática do evento da ação, como é o caso de uma explicação causai comum. Já que a força motivadora dos argumentos da ação pressupõe que eles são, em determinadas circunstâncias, determinantes para o sujeito, isto é, são suficientes para "vincular" a vontade do ator. Uma motivação por argumentos não exige apenas um ator que assume posição racional, na qual contam argumentos, mas um ator que se deixa determinar por sua intelecção. Dada essa referência a um sujeito, que também pode agir contra um saber melhor, a asserção de que " S " realizou a ação "A" levado pelo argumento "a" não é equivalente à asserção de que "a" causou a ação "A".17 Diferentemente da explicação causai comum, a explicação racional da ação não permite a inferência, segundo a qual, um número indeterminado de pessoas, sob os mesmos antecedentes, chegariam à mesma decisão. A indicação de motivos racionais da ação não é suficiente para a transformação de uma explicação num prognóstico. A autoria responsável exige não somente a motivação por argumentos, mas também uma tomada de iniciativa, fundamentada, que o autor se atribui a si mesmo: é isso que faz com que o ator se torne "autor".

O fato de que "depende dele" agir assim ou de outro modo, exige duas coisas, a saber: ele precisa estai- convencido de que está fazendo o que é correto, porém, ele tem de fazer isso por si mesmo. A espontaneidade do agir, presente na auto-experiência, não é uma fonte anônima, e sim, um sujeito que se atribui a si mesmo um "ser capaz

16 Através do programa experimental da verificação de um "terceiro", por enquanto apenas postulado, Thomas Nagel desenvolve essa variante do monismo ontológico ligado ao dualismo de aspectos. Essa teoria futura pretende oferecer a base sobre a qual as descrições do físico e do mental, complementares, podem ser reduzidas de acordo com modelos conhecidos: "The Psychophysical Nexus", in: NAGEL, Th. Concealmeni and Exposure. Oxford, 20021 194-235.

11 Sobre esse argumento cf. SEARLE, J. Freiheit und Neurobiologie. Frankfurt/ M., 2004, 28-36.

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de" (Kõnnen). E o ator pode entender-se como autor porque ele se identifica com o próprio corpo (Kõrper) e existe, ao mesmo tempo, como um substrato orgânico (Leib) que o toma capaz de agir e o autoriza para isso. O agente pode deixar-se "determinar", sem nenhum prejuízo de sua liberdade, pelo substrato orgânico que é experimentado como (Leio) porque ele experimenta sua natureza subjetiva como fonte do "ser capaz de" (Kõnnerí). Na perspectiva dessa experiência do substrato orgânico (Leio), os processos vegetativos controlados pelo sistema límbico - como de resto todos os demais processos do cérebro que, na perspectiva neurológica de um observador, transcorrem de modo "inconsciente" - transformam-se, para o agente, e por determinantes causais, em condições possibilitadoras. Nesta medida, a liberdade de ação não é apenas "condicionada" por argumentos, mas também liberdade "condicionada pela natureza". Uma vez que o co rpo (Kõrper), enquanto substrato orgânico (Leib), "é", respectivamente o próprio corpo (Kõrper), ele determina aquilo de que somos capazes: o "ser determinado constitui um respaldo constitutivo da autodeterminação."18

Isso vale, de modo similar, para o caráter que formamos durante o transcurso histórico de uma de vida, individuador. É autora a pessoa determinada que nos tomamos ou o indivíduo insubstituível que é o modo como nos pensamos a nós mesmos. E por esta razão, os próprios desejos e preferências podem contar, eventualmente, como bons argumentos. Entretanto, tais argumentos de primeira ordem podem ser suplantados por argumentos éticos que se referem à nossa vida pessoal em sua totalidade e por argumentos morais. E estes resultam, por seu turno, de obrigações que nós assumimos, enquanto pessoas, uns em relação aos outros.19 Segundo Kant, nós só temos autonomia ou vontade livre quando a vontade se deixa ligar por argumentos desse tipo - ou seja, por compreensões perspicazes fundamentadas não somente na pessoa e nos interesses bem entendidos de um indivíduo, mas também no interesse comum e simétrico de todas as pessoas.

I8SEEL, M. Sich bestimmen lassen. Frankfurt/M., 2002, 288. l 9SCANLON, T. M. Wfiat We Owe to Each Other. Cambridge (Mass.) 1998.

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Ora, a caracterização do agir moral e do dever categórico favoreceu um conceito inflacionado de liberdade inteligível destituída de origens a qual, isolada de qualquer tipo de contexto empírico, passa a ser "absoluta" nesse sentido.

A fenomenologia da autoria responsável conduziu-nos, no entanto, para o conceito de uma liberdade condicionada enraizada no organismo e numa história de vida, o qual é incompatível com a doutrina cartesiana das duas substâncias e com a doutrina kantiana dos dois mundos. O dualismo metodológico apoiado em duas perspectivas de explicação, isto é, a de participantes e de observadores, não pode ser ontologizado nem transformado num dualismo que separa espírito e natureza.20 As explicações racionais da ação também tomam como ponto de partida o fato de que os atores, ao tomarem suas decisões, encontram-se inseridos em contextos e enredados em circunstâncias da vida. Isso significa que os atores, quando permitem que a vontade seja determinada por aquilo que está em suas forças e por aquilo que têm por correto, não se encontram fora do mundo. Eles encontram-se dependentes do substrato orgânico de seu "ser capaz de", de sua história de vida, de seu caráter e de suas capacidades, do entorno social e cultural, não por último, dos componentes atuais da situação da ação. Em que pese isso, o agente se apropria, de certa forma, de todos esses fatores, a tal ponto que eles não são mais considerados como causas externas que podem influenciar ou irritar a formação da vontade ou da consciência. O autor identifica-se com o próprio organismo, com a própria história de vida e com a cultura -que influenciam seu comportamento - e com os próprios motivos e capacidades. E o sujeito que julga introduz na própria reflexão todas

20Essa é a alternativa contra a qual W. Singer tece sua interpretação determinista: "Uma possibilidade consiste no fato de que realmente existem dois mundos ontologicamente distintos, um material e outro imaterial, sendo que o homem participa dos dois e nós simplesmente não somos capazes de entender de que modo um se relaciona com o outro." SINGER, W. "Selbsterfahrung und neurobiologische Fremdbeschreibung", in: Deutsche Zeitschrift für Philosophie, 52, 8 (2004), 235-256, aqui 239.

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as circunstâncias exteriores, à medida que estas são relevantes, seja como ocasiões propícias, seja como restrições.

A discussão desenvolvida até o presente momento desenvolveu um conceito forte de liberdade da ação, o qual não é, porém, idealista. Sua função principal consiste em desenvolver uma perspectiva correta para os fenômenos a serem explicados. Liga-se a tal concepção um conceito de explicação racional da ação que chama a atenção para um dualismo de perspectivas de explicação e de jogos de linguagem, cuja superação parece impossível. É hem verdade que tal dualismo epistêmico possui apenas um sentido metódico, não ontológico. Mesmo assim, não ficou claro, até o presente momento, de que modo ele pode ser sintonizado com uma interpretação monista do universo, a qual pretende satisfazer a necessidade que sentimos de uma imagem coerente do mundo. Os advogados de uma estratégia de pesquisa reducionista colocam em dúvida os direitos iguais de ambas as perspectivas, e existem, certamente, razões para isso. Porquanto tal estratégia conseguiu, até hoje, contrapor-se ao Commonsense lançando mão de conhecimentos contra-intuitivos. Um fenômeno experimentado pelos sentidos, por exemplo, o calor, é atribuído ao movimento de moléculas e ninguém se escandaliza com os conceitos da física dos quais lançamos mão para analisar diferenças de cores ou elevações de tom. Também no âmbito da presumida interação entre espírito e cérebro, é possível que a resposta correta esteja do lado dos princípios de pesquisa que confiam apenas em explicações causais "duras" recusando as explicações racionais mais "brandas", tidas como psicologia do cotidiano e, por isso, como ilusórias.

(4) A biologia também oferece um bom argumento para isso. Pelo caminho do real ismo das ciências experimentais , nós conseguimos superar a seletividade de âmbitos de percepção que decorre de nossa constituição orgânica, que é contingente. A teoria do conhecimento evolucionista acentua a relevância funcional do pensamento lógico e do processamento construtivo - formador de teorias - de percepções para a sobrevivência da espécie: "Nossos sistemas de sentidos são surpreendentemente adaptados para, a partir 182

de uns poucos dados, apreender as condições relevantes para o comportamento. Mesmo assim, eles não dão nenhuma importância à objetividade ou àcompletude. Eles não reproduzem fielmente as coisas, e sim, de modo reconstrutivo, lançando mão do saber prévio armazenado no cérebro [...]. Os cérebros utilizam esse saber prévio com a finalidade de interpretar sinais dos sentidos, o que permite a sua inserção em contextos mais amplos [...]. Tais reconstruções apoiadas no saber podem contribuir para compensar parcialmente as deficiências dos sistemas dos sentidos. O saber prévio pode ser utilizado com a finalidade de sanar falhas, já o raciocínio lógico pode ajudar na detecção de absurdos [...]. Além disso, é possível descobrir, mediante sensores técnicos, fontes de informação inacessíveis aos nossos sentidos naturais."21 Neste contexto, costuma-se falar no valor de adaptação biológica da aprendizagem coletiva da pesquisa organizada.

Entretanto, convém perguntar, de que modo tal concepção do sistema da ciência, cujos membros são treinados para uma busca cooperativa da verdade e para a avaliação de argumentos, se afina com o caráter ilusório de argumentos e justificações? Quando colocamos em jogo premissas da teoria da evolução, a fim de explicar o valor de reprodução da pesquisa das ciências naturais, nós attibuímos a essa pesquisa um papel causai significativo para a sobrevivência da espécie. Ora, isso contradiz uma perspectiva neurobiológica, a partir da qual tal prática é classificada, a exemplo de qualquer outro tipo de prática de justificação, como epifenômeno. E um princípio de pesquisa reducionis ta impõe como obrigatória tal in terpretação epifenomenalista, já que os argumentos não constituem estados físicos observáveis que variam segundo leis da natureza. Por isso, eles não podem ser identificados com causas. E uma vez que se subtraem a explicações causais rigorosas, os argumentos só podem assumir o papel de comentários racionalizadores póstumos de um comportamento inconsciente e explicável neurologicamente, os quais apenas "caminham junto". Nós agimos de certa forma, "levados por" causas,

31 Ibid., 236. 183

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mesmo quando justificamos nosso agir perante os outros "com o auxílio" de argumentos.

Para sustentar esse ponto, o reducionismo paga um preço elevado. Porquanto, se na visão neurobiológica os argumentos e o processamento lógico de argumentos não desempenham nenhum papel causai, então torna-se problemático explicar, na visão da teoria da evolução, por que a natureza se dá o luxo de criar um "espaço de argumentos" (Wilfried Sellars). Os argumentos não ficam boiando como as bolhas de gordura na sopa da vida consciente. Porquanto os processos do agir e do julgar estão ligados sempre, aos olhos dos sujeitos participantes, com argumentos. Se tivéssemos que rejeitar o "dar e receber argumentos" como epifenômeno, não restaria muita coisa das funções biológicas da autocompreensão de sujeitos capazes de agir e falar. Qual é a razão que nos obriga a colocar, reciprocamente, exigências de legitimação? Que funções são preenchidas pela superestrutura das agências de socialização, que endereçam ás crianças uma exigência desse tipo, a qual é desprovida de todo conteúdo causai?22

John Searle levantou, contra o epifenomenalismo da vida, a seguinte objeção: "Os processos da racionalidade consciente constituem parte tão importante de nossa vida, especialmente da biológica, que, se um fenótipo de tal importância não tivesse nenhum papel para a sobrevivência do organismo, ela seria totalmente diferente da imagem que se formou dela pela evolução."2-1 Gerhard Roth refere-se, certamente, a essa objeção quando esclarece, de um lado, que a autocompreensão de atores, especialmente a liberdade de ação, constitui uma ilusão e quando exorta, ao mesmo tempo, a não entender

22 As explicações fornecidas por ROTH, (2003), 528 ss., são curiosamente tautológicas: porquanto a questão consiste precisamente em perguntar: por que surge a ilusão da liberdade da vontade, uma vez que ela não desempenha nenhuma função causai?

23 SEARLE (2004), 50. Os argumentos aduzidos por SINGER (2004), 253 s., para a diferenciação de um nível de decisão consciente seriam concludentes apenas sob a pressuposição de que não é ilusória a consciência da liberdade enquanto expressão de um agir racional.

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a consciência do eu24 ou a liberdade da vontade25 como simples epifenômenos.

Tal admoestação não se encaixa muito bem nas premissas de Roth. Uma função causai da vida consciente, independente, só se adapta ao quadro de um princípio de pesquisa reducionista quando se "interpreta o espírito e a consciência [...] como estados físicos" que "se encontram numa relação de ação recíproca" com outros estados físicos.26 Todavia, grandezas semânticas tal como argumentos ou conteúdos proposicionais em geral não podem ser "instantaneizados" como estados observáveis. O próprio Roth classificou, por isso, os argumentos - e o processamento lógico de argumentos - como epifenômenos. De sorte que a função causai da consciência do eu e da liberdade da vontade não parece tão convincente.

Parece que os procedimentos do reducionismo, o qual faz derivar, de modo determinista, todos os processos mentais de influências causais recíprocas entre o cérebro e o entorno e que nega ao "espaço dos argumentos", ou melhor, à esfera da cultura e da sociedade força de intervenção, não são menos dogmáticos do que os do idealismo, o qual julga poder vislumbrar, em todos os processos naturais, a força fundamentadora de um espírito. O tipo de monismo que trabalha de baixo para cima é mais científico do que o monismo que parte de cima, porém, apenas no procedimento, não nas conclusões.

Perante tal alternativa, torna-se mais atraente um outro tipo de dualismo de perspectivas, o qual subtrai nossa consciência da liberdade, não da evolução natural, mas da perspectiva de explicação das ciências da natureza atualmente conhecidas. Nesse sentido, Richard Rorty

24ROTH (2003), 397: " O elemento decisivo consiste em que não deveríamos considerar esse ator virtual como epifenômeno. Sem a possibilidade de uma percepção virtual e do agir virtual o cérebro não conseguiria levar a termo as operações complexas que realiza."

25 Ibid., 512 s.: "Nós podemos tomar como ponto de partida que a vontade não é um simples epifenômeno, isto é, um estado subjetivo, sem o qual tudo continuaria a andar, no cérebro e na relação, exatamente como anda com ele."

26Ibid., 253.

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explica a divisão gramatical de nossos vocabulários de explicação, ou seja, os que dirigem o olhar para causas observáveis e os que o guiam para argumentos compreensíveis, como resultado de uma adaptação funcional de nossa espécie a dois tipos de entorno: o do mundo ambiente natural e o do social. A irredutibilidade de um jogo de linguagem ao outro não deveria preocupar-nos, aqui, mais do que a insubstituibilidade de uma ferramenta por outra.27 Tal comparação poderia, certamente, satisfazer nosso desejo de uma imagem coerente do universo somente se, a exemplo de Rorty, estivéssemos dispostos a recolher a pretensão de verdade das teorias sob o ponto de vista funcionalista do sucesso de sua adaptação.28 Entretanto, a verdade das teorias não se esgota no sucesso dos instrumentos que podemos construir com sua ajuda; por conseguinte, a necessidade de uma interpretação monista do mundo não é satisfeita. Se quiséssemos encontrar um lugar no mundo para um dualismo epistêmico, a teoria pragmatista do conhecimento, que sugere uma destranscendentalização das pressuposições do conhecimento, pode apontar, apesar de tudo, na direção correta.

Na visão antropocêntrica de uma forma de vida de comunidades lingüísticas de indivíduos socializados, capazes de solucionar problemas de modo cooperativo, os dois vocabulários e as perspectivas de esclarecimento que "nós" impomos ao mundo continuam sendo, para nós, "ineludíveis". Eles conseguem explicar a estabilidade de nossa consciência de liberdade, a qual se contrapõe ao determinismo das ciências naturais. De outro lado, a interpretação que considera o espírito uma entidade no mundo, enraizada de modo orgânico, não pode atribuir às duas formas complementares de saber uma validade a priori. Porquanto o dualismo epistêmico não caiu diretamente de um céu transcendental. Ele deve ter sido fruto de um processo de aprendizado evolucionário e deve ter conseguido comprovar-se na disputa cognitiva do homo sapiens com os desafios de um entorno

27RORTY, R. "The Brain as Hardware, Culture as Software", Inquiry, 47, 2004, 219-235.

28 ENGELS, E. M. Erkenntnis ais Anpassung?. Frankfurt/M., 1989. 186

repleto de riscos.29 A continuidade de uma história natural, da qual podemos tecer, ao menos, e em analogia com a evolução natural de Darwin, uma idéia, a qual não atinge, é bem verdade, o nível de um conceito teoricamente satisfatório, garante, mesmo assim - através do fosso epistêmico que se abre enüe a natureza objetivada pelas ciências naturais e uma cultura compreendida preliminarmente de modo intuitivo, por ser compartilhada intersubjetivamente - a unidade de um universo ao qual os homens pertencem enquanto seres da natureza.

II. Sobre a interação entre natureza e espírito. Gostaria de retomar, inicialmente, a "não-eludibilidade" dos jogos

de linguagem especializados em explicações causais e/ou racionais porque não está claro, do ponto de vista da teoria do conhecimento, se essas duas perspectivas são essenciais ou se é possível marginalizar uma delas (5). A fim de capturar o dualismo metodológico num naturalismo "brando" eu recordo, além disso, certos dados antropológicos conhecidos. Eles têm por função tornar plausível o modo como tal dualismo epistêmico poderia ter surgido da socialização da cognição de membros da mesma espécie que dependem uns dos outros (6). Além disso, um dualismo metodológico ainda enfrenta, numa perspectiva neurobiológica, o seguinte problema decisivo para a questão do determinismo: como entender a "ação recíproca" entre cérebros individuais e programas culturais? (7).

(5) O fato de não podermos "retroceder" atrás do dualismo epistêmico das perspectivas do saber significa, em primeiro lugar, que os jogos de linguagem correspondentes e os padrões de explicação não podem ser reduzidos uns aos outros. De outro lado, pensamentos que podemos expressar no vocabulário mentalista não podem ser

Cf. também sobre esse "^pragmatismo kantiano" minha introdução a HABERMAS, J. Wahrheit Und Rechtfertigung. Frankfurt/M., 1999,7-64.

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traduzidos, sem deixar restos semânticos, para um vocabulário empirista talhado para coisas e eventos. Nisso consiste precisamente a cruz das tradições de pesquisa, as quais são forçadas a isso quando pretendem atingir o seu alvo, isto é, uma naturalização do espírito que procede de acordo com os standards científicos usuais.30 Pode tratar-se, de um lado, de um materialismo que pretende reduzir estados intencionais, conteúdos proposicionais ou enfoques a eventos e estados físicos; ou de um funcionalismo, segundo o qual, circuitos elétricos no computador ou estados fisiológicos naturais no córtex cerebral "realizam" funções causais que são agregadas a processos mentais ou conteúdos semânticos. Em ambos os casos, porém, tais tentativas de uma naturalização do espírito fracassam ao nível dos conceitos básicos da necessária tradução. Já que as traduções empreendidas por estas teorias nutrem-se, implicitamente, do sentido das expressões mentalistas que pretendem substituir; ou então falseiam, simplesmente, aspectos essenciais do fenômeno inicial, sendo, por isso, levadas a redefinições imprestáveis.

Isso não deve nos espantar, uma vez que na gramática dos dois jogos de linguagem estão inseridas duas ontologias inconciliáveis. Nós sabemos, desde Frege e Husserl, que conteúdos proposicionais e objetos intencionais não se individuam no quadro de referência de estados e de eventos datáveis no espaço e no tempo e dotados de efeitos causais. Isso também pode ser elucidado pelo cruzamento do conceito de causa com o do círculo de funções do agir instrumental. A proporção que nós interpretamos a sucessão de dois estados do mundo observados, A e B, como uma relação causai (no sentido rigoroso de que o estado A é condição suficiente para o surgimento de B), nós nos deixamos conduzir implicitamente pela idéia de que nós mesmos poderíamos provocar o estado B, caso interviéssemos

Cf. DESCOMBES, V. The Minds Provisions. A Critique of Cognitivism. Princeton, 2001 e CRAMM, W.-J. Reprüsentation oder Verstündigung? Eine Kritik naturalistischer Philosophien der Bedeutung und des Geistes. Tese de doutorado, Universidade de Frankfurt/M., 2003.

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instrumentalmente no mundo e provocássemos o estado A.31 Tal pano de fundo intervencionista do conceito de causalidade pode explicar por que estados mentais ou conteúdos semânticos, que não podemos manipular como coisas ou eventos seguindo um caminho instrumental, resistem a esse tipo de explicações causais.

E já que não conseguimos reduzir um ao outro os jogos de linguagem talhados conforme o espiritual, de um lado, e conforme o físico, de outro, coloca-se a seguinte questão interessante: talvez seja necessário observar o mundo lançando mão das duas perspectivas, simultaneamente, a fim de poder aprender algo sobre ele. Tudo indica que a perspectiva do observador, à qual o jogo de linguagem empirista nos restringe, precisa ser cruzada com a de um participante em práticas sociais e comunicativas, a fim de conseguir, para sujeitos socializados como nós, um acesso cognitivo ao mundo. Nós somos, em uma única pessoa, observadores e participantes de uma comunicação.

Ao assimilarmos o sistema dos pronomes pessoais, nós aprendemos também a desempenhar o papel de um observador na "terceira" pessoa. Isso implica, no entanto, uma vinculação com os papéis do falante e do ouvinte, ou melhor, os papéis de uma "primeira" e de uma "segunda" pessoa. O fato de as duas funções básicas da linguagem, isto é, a representação de fatos e a comunicação, se entrelaçarem, não é casual.32 E a visão filosófico-lingüística sobre falantes e destinatários que se entendem entre si sobre algo no mundo objetivo, ante o pano de fundo de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente, pode ser invertida, ao nível de uma teoria do conhecimento: ou seja, para um observador, a objetividade do mundo só se constitui se ocorrer juntamente com a intersubjetividade do possível entendimento sobre aquilo que ele apreende cognitivamente do evento situado no limite do mundo. Quer dizer que somente o

11 WR1GHT, G. H. von. Explanation and Understanding. Londres, 1971, Parte II; cf. também WELLMER, A. "Georg Henrik von Wright über 'Erklãren' und 'Verstehen'", in: Philosophische Rundschau, 26 (1979), 1-27, aqui 4 ss.

"DUMMETT, M. "Language and Communication", in: id. The Seas of Lan-guage. Oxford, 1993, 166-187.

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exame intersubjetivo de evidências subjetivas possibilita a objetivação progressiva da natureza. Por isso, os processos de entendimento não podem ser deslocados inteiramente para o lado dos objetos, isto é, não podem ser descr i tos como um evento exclus ivamente "intramundano", o que permitiria a sua "absorção" objetivadora.33

No cruzamento complementar entre as perspectivas do participante e do observador enraízam-se não somente a cognição social e o desenvolvimento da consciência moral,34 mas também a elaboração cognitiva de experiências que nos atingem quando nos defrontamos com o entorno natural. As pretensões de verdade são submetidas a dois testes: ao da experiência e ao do dissenso que outros podem manifestar contra a autenticidade das experiências de cada um - ou contra a interpretação que formulamos sobre elas. Por conseguinte, no laboratório da ciência, as coisas não são muito diferentes daquelas que ocorrem no dia-a-dia.35

Conceito e compreensão perspicaz, construção e descoberta, interpretação e experiência são momentos que não podem ser isolados uns dos outros, nem mesmo no processo de pesquisa. Observações experimentais são pré-estruturadas pela escolha de um design determinado teoricamente, a qual é repleta de conseqüências. Além disso, observações experimentais podem assumir a função de uma instância de controle à proporção que passam a contar como argumentos que podem ser defendidos contra oponentes. Nesse nível

"Cf. sobre isso o artigo clássico de SELLARS, W. "Philosophy and the Scien-tificlmageof Man" (1960), in: xâ.Science, Perceplion andReality. Atascadero (Cal.), 1991, 1-40.

14 SELMAN, R. Die Entwicklung sozialen Verstehens. 1984; HABERMAS, J. Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt/M., 1983, 127-206.

35 Sobre o que se segue, cf. WINGERT, L. "Die eigenen Sinne und die fremde Stimme", in: VOGEL, M. WINGERT, L (eds.) Wissen z.wischen Entdeckung und Konstruktion. Frankfurt/M., 2003, 218-249; id. "Epistemisch nützliche Konfrontationen mit der Welt", in: WINGERT, L. GÜNTHER, K. (eds.) Die Òffentlichkeit der Vernunft und die Vernunft der Õffentlichkeit. Frankfurt/ M., 2001, 77-105.

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de reflexão, a perspectiva do observador que, à proporção que faz experiências, refere-se a algo no mundo num enfoque objetivador se cruza com a perspectiva de um participante de discursos, o qual, ao aduzir argumentos, assume um enfoque performativo e se envolve com seus críticos: "Experiências e argumentos formam dois componentes que não se separam da base ou do fundamento de nossas pretensões de saber algo sobre o mundo."36

A partir da constatação de que o próprio crescimento teórico do saber depende de um cruzamento complementar entre as perspecti vas do observador e do participante, Wingett chega à conclusão de que as condições de entendimento, as quais são acessíveis apenas performativamente, isto é, na visão de participantes de práticas de nosso mundo da vida, não podem ser alcançadas cognitivamente com meios das ciências naturais, ou seja, não podem ser objetivadas completamente. Por essa razão, uma visão determinista do mundo não pode pretender mais do que uma validade circunscrita regionalmente. Todavia, esse argumento não implica necessariamente uma autonomização transcendental do "para nós" de um "ser em si mesmo" objetivado à maneira naturalista. Ao invés disso, no acesso bifocal ao mundo, que é típico dos observadores e dos participantes, do qual depende inclusive o conhecimento objetivador da natureza, poder-se-ia manifestar o resultado de um processo de aprendizado evolucionário.37

( 6 ) Numa visão pragmatista, a qual pretende reconcilia- Kant com Darwin, a tese da ineludibilidade pretende demonstrar que o cruzamento complementar de perspectivas do saber, ancoradas em um nível anüopológico profundo, surgiu juntamente com a própria forma de vida cultural. A vulnerabilidade do recém-nascido, que é "inacabado" do ponto de vista orgânico, e o longo período de formação tornam o homem dependente, desde o primeiro instante, de interações sociais que, no caso dele, mais do que em qualquer outra espécie,

36 WINGERT (2003), 240. "HABERMAS, J. (1999), 36 ss.

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atingem a organização e a configuração das capacidades cognitivas. No homem, a existência social se manifesta numa socialização comunicativa de cognição e de aprendizagem, a qual se desencadeia logo no início. Michael Tomasello caracteriza a capacidade cognitiva e social de entender um membro da mesma espécie38 como um ser que age intencionalmente, já destacada por G H. Mead, como a conquista evolucionária que separa o homo sapiens de seus parentes mais próximos e o capacita para um desenvolvimento cultural.39

Os primatas podem agir intencionalmente e distinguir objetos sociais de objetos inanimados; no entanto, membros de sua espécie continuam sendo para eles "objetos sociais" num sentido literal porque eles não reconhecem no outro um alterego. Eles não compreendem o outro como um ator que age intencionalmente, o que os impede de construir juntamente com ele elementos intersubjetivos comuns em sentido estrito; ao passo que as crianças humanas já aprendem, aos nove meses, por conseguinte, numa fase ainda pré-lingüística, a dirigir sua atenção, juntamente com uma pessoa de referência, aos mesmos objetos. Ao assumirem a perspectiva de um "outro", este se transforma num vis-à-vis, o qual assume em relação a elas o papel comunicativo de uma segunda pessoa. A perspectiva comum que já surge nesta idade inicial, da relação original entre uma primeira pessoa e uma segunda, é constitutiva para o olhar objetivador que assume distância em relação ao mundo e em relação a si mesmo: "As novas capacidades cognitivas e sociais, adquiridas, abrem para as crianças a possibilidade de poder aprender algo sobre o mundo do ponto de vista dos outros e de poder aprender, a partir deste ponto de vista, algo sobre si mesmas."40 Sobre a base da compreensão social, a controvérsia cognitiva torna-se dependente do trato cognitivo recíproco. O cruzamento da perspectiva do observador de estados intramundanos com a do participante de

MEAD, G. H. Geist, Identitat undGesellschaft. Frankfurt/M., 1968; cf. também HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. 2, Frankfurt/ M., 2002.

Sobre o que se segue cf. TOMASELLO, M. Die kulturelle Entwicklung des menschlichen Denkens. Frankfurt/M., 2002.

TOMASELLO (2002), 110.

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interações socializa a cognição das crianças com a dos membros de sua espécie. Tal cruzamento de perspectivas se fixa na troca - regulada gramaticalmente - dos papéis comunicacionais de falante, de destinatário e de observador, a partir do momento em que a criança aprende a dominar, no contexto da aquisição da linguagem, os pronomes pessoais.

Enquanto os chipanzés não conseguem levar membros de sua espécie a apontar para objetos, os homens aprendem isso, seja mediante cooperação, seja mediante ensino. E no trato com artefatos culturais encontrados já prontos, eles aprendem, por conta própria, as funções neles objetivadas. O modo da formação da tradição, a ritualização e o uso de instrumentos, que também podem ser observados entre os chipanzés, não revelam nenhum saber cultural implícito compartilhado intersubjetivamente. Sem intersubjetividade da compreensão não há objetividade do saber. Sem a "ligação" reorganizadora do espírito subjetivo e de seu substrato natural, que é o cérebro, a um espírito objetivo, isto é, a um saber coletivo armazenado simbolicamente, não são possíveis enfoques proposicionais dirigidos a um mundo colocado à distância. Faltam igualmente os sucessos técnicos de um trato inteligente com uma natureza objetivada desta maneira. Somente cérebros socializados, isto é, os que conseguem engate em um determinado meio cultural, tomam-se portadores de processos de aprendizagem cumulativos, extremamente acelerados, que se desengataram do mecanismo genético da evolução natural.

É bem verdade que a própria neurobiologia faz jus ao papel da cultura e da socialização da cognição. Wolf Singer distingue entre o saber congêni to , a rmazenado nos gens e incorporado nas circunvoluções do cérebro humano, geneticamente determinados, e o saber adquirido individualmente, armazenado na cultura. A própria adolescência, a cultura e a sociedade têm uma influência estruturadora sobre o cérebro; a partir daí, tal influência se manifesta em uma maior eficiência: "Até a puberdade, os processos de experiência e de educação marcam a configuração estrutural das redes de nervos no interior do espaço de configuração previsto. Mais tarde, quando o cérebro já estiver mais maduro, tais modificações básicas da arquitetura não são mais

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possíveis. A partir daí, toda aprendizagem limitar-se-á a modificações da eficiência das conexões existentes. Por conseguinte, o saber sobre as condições do mundo e sobre as realidades sociais, o qual é adquirido desde o início da evolução cultural, deposita-se em marcas culturais específicas dos cérebros individuais. Marcas precoces programam os processos no cérebro de forma quase tão persistente como os fatores genéticos, uma vez que ambos os processos se manifestam na especificação de padrões de circuitos."41

Tais asserções parecem sugerir algo como a "programação" do cérebro por tradições culturais e práticas sociais e, destarte, uma interação entre espírito e natureza. Todavia, parece que o fato inconteste de que todas as vivências conscientes e inconscientes são "realizadas" indiferenciadamente por processos descentralizados no cérebro é suficiente, aos olhos de Wolf Singer, para excluir uma possível influência dos processos do agir e do julgar conscientes, regulados gramaticalmente e armazenados culturalmente, em processos neuronais: "Se se admite que a negociação consciente de argumentos repousa sobre processos neuronais, neste caso, ela tem de estar submetida ao determinismo neuronal da mesma forma que a decisão inconsciente."42 Não obstante isso, a realização neuronal de pensamentos não implica necessariamente a exclusão de qualquer tipo de programação mental do cérebro.43

( 7 ) O espírito objetivo constitui a dimensão da liberdade da ação. E na consciência da liberdade, que o acompanha, performativamente, reflete-se a participação consciente do "espaço dos argumentos", estruturado simbolicamente, no qual se movem espíritos socializados pela linguagem. Nessa dimensão, a motivação racional de ações e convicções se realiza de acordo com regras lógicas, lingüísticas e

41 SINGER (2004), 249 42 Ibid., 251. «Sobre isso, cf. também KRÜGER, H. P. "Das Hirn im Kontext exzentrischer

Positionierungen", in; Deutsche Zeitschrifl fúr Philosophie, 52 (2004), 257-

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pragmáticas, as quais não podem ser reduzidas apenas a leis da natureza. Por que não pensar numa "causação mental" no sentido de uma programação do cérebro pelo espírito objetivo, ao contrário do que afirma a tese da determinação do espírito subjetivo pelo cérebro? Singer nega tal possibilidade apoiando-se em três argumentos principais, a saber: (a) Nós não sabemos como representar a influência causai de um espírito - o qual é inobservável - sobre processos observáveis no cérebro, (b) Os processos neuronais, que ingressam na consciência pelo caminho da atenção, são variáveis, ficando na dependência de um amplo fluxo de processos que permanecem inconscientes, (c) A neurobiologia não consegue descobrir, no cérebro que opera de modo descentralizado, nenhum correlato para o "si mesmo" de um ator que se atribui decisões conscientes.

(a) De fato, porém, na linha da ineludibilidade das perspectivas do saber, que são complementares e intercruzadas, coloca-se realmente o "problema da causação": parece que nosso aparelho cognitivo não está preparado para entender de que modo os efeitos dos estados de excitação neuronais, deterministas, podem interagir com uma programação cultural (a qual é vivenciada como uma motivação por argumentos). Ou seja, em termos kantianos: é impossível entender como a causalidade da natureza e a causalidade por liberdade possam entrar em uma ação recíproca. Sem embargo, esse enigma coloca ambos os lados numa situação embaraçosa. De um lado, continua sendo enigmática a "causação mental" de movimentos de corpos, explicáveis neurologicamente, por intenções compreensíveis. Sempre que assimilamos esse tipo de programação à causalidade da natureza perde-se pelo caminho algo essencial, a saber, a referência a condições de validade, sem a qual os conteúdos proposicionais e os enfoques permaneceriam incompreensíveis.44 Entretanto, o preço a ser pago pelo outro lado não é menor. O determinismo é obrigado a declarar que a autocompreensão de sujeitos que assumem uma posição racional não passa de auto-engano.

44WINGERT, L. "Die Schere im Kopf. Grenzen der Naturalisierung", in: GEYER (2004), 155-158.

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Os custos do epifenomenalismo não diminuem, nem mesmo quando se caricatura a posição contrária: "Se essa entidade imaterial e espiritual realmente existe, a qual se apossa de nós e nos atribui dignidade e liberdade, de que modo ela poderia participar de uma ação recíproca com os processos materiais que ocorrem em nosso cérebro?"45 Como quer que seja, o espírito só "existe", de fato, graças à sua incorporação em substratos materiais sígnicos, os quais são perceptíveis acústica ou oticamente, ou seja, em ações observáveis e exteriorizações comunicativas, por conseguinte, em objetos ou artefatos simbólicos. Ao lado da linguagem diferenciada em termos de proposições, a qual constitui a peça-chave das formas de vida culturais, existem muitas outras formas simbólicas, variados meios e sistemas de regras, cujos conteúdos significativos são reproduzidos e compartilhados intersubjetivamente. Podemos interpretar tais sistemas de símbolos como características emergentes que se formaram junto com aquele impulso evolucionário dirigido para a "socialização da cognição".

A fim de evitar um falseamento do status ontológico de um espírito "objetivo" incorporado simbolicamente em sinais, práticas e objetos é preciso levar na devida conta dois aspectos importantes: de um lado, o espírito objetivo surgiu da interação dos cérebros de animais inteligentes que tinham desenvolvido a capacidade de assumir as perspectivas uns dos outros; e ele se reproduz, a seguir, pelas práticas sociais e comunicativas dos "cérebros" e dos seus organismos que, agora, interagem de um modo novo. De outro lado, o "espírito objetivo" mantém uma relativa autonomia em relação a esses indivíduos já que o estoque de significações compartilhadas intersubjetivamente, organizado de acordo com regras próprias, assumiu uma determinada figura simbólica. E mediante a regulação do uso de símbolos, fixada gramaticalmente, tais sistemas de significados podem, por seu turno, exercer influência nos cérebros dos participantes. No fluxo da socialização de sua cognição forma-se o "espírito subjetivo" dos participantes individuados que tomam, ao mesmo tempo, parte em 45SINGER (2004), 239 s.

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práticas comuns. Caracterizamos desta maneira a autocompreensão dos sujeitos que sobressaem no espaço público de uma cultura comum. Enquanto atores, eles desenvolvem a consciência de que podem agir desta ou daqueloutra maneira porque são confrontados, no espaço público dos argumentos, com pretensões de validade que os desafiam a tomar uma posição.

A idéia de uma "programação" do cérebro pelo espírito desperta imagens da linguagem computacional. No entanto, a analogia com o computador cria uma falsa pista à proporção que sugere a imagem cartesiana de mônadas da consciência, isoladas, que desenvolvem para si mesmas "uma imagem interior do mundo exterior". E, com isso, ela falseia a socialização da cognição, que é característica distintiva do espírito humano. A imagem falsa, no entanto, não é provocada pela "programação". Tudo indica que, em um determinado nível de desenvolvimento antropológico e a partir da interação intensificada dos membros da espécie, nasce, materializada em sinais, uma camada de complexos de sentido compartilhados intersubjetivamente e regulados gramaticalmente. Mesmo que a fisiologia do cérebro não admita uma distinção entre "software1'' e "hardware", esse espírito objetivo pode adquirir uma força estruturadora em relação ao espírito subjetivo dos cérebros individuais. O próprio Singer fala em "marcas" precoces do cérebro, as quais se colocam no contexto da aquisição da linguagem. Parece que, por um caminho ontogenético, o cérebro individual adquire as disposições necessárias para se "ligar" aos programas da sociedade e da cultura.

O ceticismo de Wolf Singer baseia-se, acima de tudo, sobre o fato de que o observador neurológico não consegue constatar, no cérebro ativado por estímulos dos sentidos, nenhuma diferença de reação entre os sinais oriundos do entorno natural e os oriundos do entorno social. Não somos capazes de dizer se os estados de excitação cerebrais se originam pelo caminho da percepção direta de um "prado em flor" ou de uma percepção correspondente , codif icada simbolicamente - por exemplo, pela contemplação de um quadro impressionista que retrata esse prado em flor ou por uma recordação desse prado em flor provocada pela leitura de um romance. E caso tenhamos diferenças sistemáticas, estas não podem ser explicadas pela

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codificação simbólica dos estímulos dos sentidos, isto é, como uma conseqüência da interpretação do prado em flor levada a cabo pelo estilo de um Renoir ou pela complementação de significação no contexto de uma ação num romance: "Por isso, acordos culturais e interações sociais influenciam as funções do cérebro na mesma proporção que os outros fatores neuronais e seguindo padrões de excitação que neles se formam. A atividade dos neurônios pode ser provocada por estímulos normais dos sentidos ou por sinais sociais [...] isso é indiferente para as decorrências de funções nas redes neuronais."46

Ninguém duvida da existência de uma conexão causai universal entre estados observados neurologicamente; não obstante isso, a circunstância de que programas culturais têm de ser realizados por meio de operações do cérebro não obriga, de per si, a um nivelamento da diferença entre a compreensão da significação de sinais percebidos simbolicamente e o processamento de "estímulos dos sentidos", "comuns", não-codificados. Entretanto, o modelo causai,pressuposto sem discussão, exclui a influência de um "espírito" programador sobre processos do cérebro. Certamente o cérebro não aparece imediatamente nos conteúdos proposicionais dos sinais de seu entorno, expressos simbolicamente, mas mediado por um saber coletivo armazenado simbolicamente, que se construiu através das realizações cognitivas das gerações passadas. Por meio das características físicas dos sinais recebidos, o cérebro, que se comporta como um espírito subjetivo, descobre complexos de sentido regulados gramaticalmente que delimitam o espaço público do mundo da vida compartilhado intersubjetivamente, destacando-o de um entorno, agora objetivado. E nesse "espaço dos argumentos" estrutura-se o agir e o julgar conscientes, constitutivos para consciência da liberdade que os acompanha.

(b) O fenômeno da liberdade da vontade só aparece na dimensão das decisões conscientes. Uma segunda objeção apela, por esta razão,

Ibid., 249.

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para a irrelevância neurológica da distinção entre processos conscientes e inconscientes: "É certo, apenas, que as variáveis, sobre as quais repousa o processo de avaliação, são de natureza abstrata no caso da deliberação consciente e presumivelmente podem ser interligadas seguindo regras mais complexas do que no caso das decisões que são tomadas, preponderantemente, seguindo motivos inconscientes."47 Entretanto, só conseguem atingir o limiar da consciência as vivências capazes de atrair sobre si a atenção, podendo ser fixadas no celeiro do instante, articuladas lingüisticamente e interpeladas a partir da memória declarativa. E as vivências formam, quando muito, ilhas fugazes no oceano dos processos inconscientes que se realizam seguindo a linha de desenvolvimento de padrões mais antigos, situados em níveis muito mais profundos.

A prioridade genética atribuída aos processos inconscientes sugere que os processos conscientes também dependem, da mesma forma que aqueles, de leis naturais deterministas. Em que pese isso, as características diferenciais há pouco mencionadas não conseguem explicar por que processos de um tipo de consciência deveriam estar subtraídos do contexto causai que é imposto ao outro: "Nas variáveis de decisões conscientes trata-se, de maneira precípua, de algo que foi aprendido tardiamente, a saber: de saber cultural estilizado, de colocações éticas, de leis, de regras do discurso e de normas de comportamento consensuais. Estratégias de avaliação, valorações e conteúdos de saber implícitos, que entram no cérebro por intermédio de dados genéticos preliminares, de impregnação infantil ou de processos de aprendizagem inconscientes furtando-se, por isso, à conscientização, não se encontram à disposição na qualidade de variáveis para decisões conscientes."48

Mesmo assim, a estratificação genética ainda não poderia ser tomada como um argumento inteiramente concludente a favor de uma interpretação determinista. Porquanto, para chegar a tal conclusão seria necessário demonstrar a priori, que o cérebro não consegue

47 Ibid., 248. 48 Ibid., 252.

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realizar processos culturais nem desenvolvê-los mediante processos conscientes. É certo que os programas culturais também não conseguem obter eficácia no comportamento sem estarem apoiados em processos realizadores do cérebro. A dependência da vida consciente do substrato orgânico reflete-se nele mesmo como consciência do organismo (Leib). Durante o agir, nós sabemos que dependemos de um corpo (Kõrper), com o qual nos identificamos enquanto substrato orgânico (Leib). Entretanto, já que nós mesmos somos esse organismo (Leib), experimentamos o organismo auto-regulador como um conjunto de condições possibilitadoras. O "poder

II agir" caminha junto com a consciência do substrato orgânico (Leib). 1 Ora, o caráter, o substrato orgânico e a história da vida não serão

percebidos como determinantes causais enquanto não definirem, na qualidade de um organismo (Leib) próprio, de um caráter próprio e de uma história da vida própria, o "si mesmo" que faz com que as ações se tornem nossas ações.

(c) A terceira objeção refere-se a esse "si mesmo" da autocompreensão de atores - construído socialmente - os quais partem da idéia de que podem agir desta ou daquela maneira. A neurobiologia, no entanto, busca em vão uma instância capaz de coordenar tudo no cérebro e que poderia ser subordinada ao "eu" experimentado subjetivamente. Singer conclui, a partir dessa observação neurológica, que o caráter da consciência do eu é ilusório e que o valor posicionai da consciência da liberdade é "epifenomenal". Ele acentua que a "nossa intuição se engana dramaticamente nesse ponto. Diagramas dos circuitos de entrecruzamento das secções dos córtices cerebrais não conseguem detectar nenhum indício da existência de um centro de convergência singular. Não existe nenhuma central de comando, [...] a partir da qual o 'eu' pudesse constituir-se. Cérebros de animais vertebrados altamente desenvolvidos apresentam-se, ao invés disso, como sistemas organizados distributivamente, extremamente entrelaçados, nos quais um número gigantesco de operações é realizado simultaneamente. Tais processos paralelos organizam-se sem a necessidade de um centro de convergência singular e levam, em sua

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totalidade, a percepções coerentes e a um comportamento coordenado". Disso tudo resulta o assim chamado problema de ligação: "de que modo os inumeráveis processos de elaboração, que ocorrem simultaneamente nas diferentes secções dos córtices cerebrais podem coordenar-se a ponto de viabilizar interpretações coerentes dos variados sinais dos sentidos, determinações claras para determinadas opções de ação e reações motoras coordenadas?"49

Sem embargo, tal observação não pode servir como argumento contra a liberdade da vontade, a não ser que se admita a premissa, segundo a qual, a auto-referência do agente responsável pressupõe uma central de comando para a qual existe um correlato neuronal. Tal idéia integra a herança da filosofia da consciência, a qual centra o sujeito vivenciador na autoconsciência e o contrapõe ao mundo tido como uma totalidade de objetos. O fato de a crítica neurológica julgar necessário lançar mão da imagem da "instância-eu", hierárquica, revela que a neurologia e as ciências da cognição mantêm um parentesco secreto com tal filosofia da consciência. Partindo da relação bipolar entre o "eu" e o "mundo", ou melhor, entre "cérebro" e "entorno", os dois lados chegam ao mesmo paradigma do espírito, que é tido como uma consciência subjetiva que se descobre na "perspectiva-da-primeira-pessoa" de um sujeito que possui vivências. Tal conceito de "mental", comum aos dois lados, é criado quando se desfoca a perspectiva da segunda pessoa, à qual uma primeira pessoa se refere enquanto participante de uma prática comum.

O uso do pronome pessoal da primeira pessoa singular revela, segundo Wittgenstein, que atrás do "dizer-eu", reificador, não se esconde nenhuma instância que pudesse ser tomada como uma entidade no mundo, com a qual pudéssemos nos relacionar.50 Além da função de índice, a expressão "eu" assume ainda diferentes funções gramaticais. No uso expressivo da linguagem, as frases formadas com

4"Ibid., 243. 5üCf., em conexão com o argumento wittgensteiniano das linguagens privadas,

a análise exce lente de TUGENDHAT, E. Selbstbewusstsein und Selbstbestimmung. Frankfurt/M., 1979, aulas 4 e 6.

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auxílio de "eu" mais uma expressão mentalista, vivenciais, preenchem uma função de exteriorização de vivências que o público atribui ao falante. A realização de atos ilocucionários, que são verbalizados com o auxílio de "eu" mais uma expressão performativa, preenche a função não-temática de reclamar para o falante, enquanto iniciador de ações imputáveis, um lugar na rede de relações sociais.51 Em nosso contexto, é importante destacar que o "eu" só preenche todas essas funções enquanto componente de um sistema de pronomes pessoais sem assumir, no entanto, nenhuma posição privilegiada.

O sistema dos pronomes pessoais funda uma rede descentrada de relações simetricamente conversíveis entre primeiras, segundas e terceiras pessoas. Ora, se as relações sociais, que alter ego assume com o falante, possibilitam uma relação auto-referencial de ego, as instâncias de referência - que por natureza são relacionadas -constituem variáveis em um sistema de comunicação abrangente. Podemos entender o "eu" como uma construção social52 e, nem por isso, ele deve ser tido como uma ilusão.

Na consciência do eu reflete-se, de certa forma, o engate do cérebro individual em programas culturais que se reproduzem somente por comunicação social, ou seja, distribuídos pelos papéis comunicativos de falantes, destinatários e observadores. Os papéis da primeira, da segunda e da terceira pessoa, reciprocamente intercambiáveis, servem também para a inserção individuadora do organismo singular no "espaço dos argumentos", o qual é público, permitindo aos indivíduos socializados, na qualidade de autores responsáveis e livres, agir e tomar posição quanto a pretensões de validade.

51 H A B E R M A S , J. "Individuierung durch Vergesellschaftung", in: id. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt/M., 1988, 187-241. Para acompanhar a discussão entre E. Tugendhat, Dieter Henrich e eu cf. MAUERSBERG, B., Der Lange Abschied von der Bewusstseinsphilosophie. Tese de dout. Frankfurt/M., 1999.

"Cf. sobre isso a introdução in: DÓBERT, R., HABERMAS, J. e NUNNER-WINKLER (EDS.) Entwicklung des Ichs. Colônia, 1977, 9-31.

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7. "EU MESMO SOU UM BOCADO DE NATUREZA" -ADORNO SOBRE O ENLAÇAMENTO ENTRE RAZÃO E NATUREZA.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE LIBERDADE E INDISPONIBILIDADE.

O jubileu de Adorno está ricamente guarnecido: temos livros, biografias, álbuns com fotografias, conferências - e inumeráveis eventos da mídia, de voyeurs e de amantes. Não que Adorno desprezasse tudo isso. Todavia, tal interesse vital de uma esfera pública mais ampla e ruidosa contrasta com as hesitações mais silenciosas dos colegas de ofício que, estimulados por este mesmo evento, voltam a se debruçar sobre a obra do grande filósofo e sociólogo - e se deparam com inúmeras dificuldades, aparentemente insuperáveis. A teoria da sociedade e a filosofia de Adorno encontram-se ainda mais distantes das discussões atuais do que o eram durante a "Adorno-Konferenz" realizada neste mesmo local, vinte anos atrás.1 O evento de hoje pretende examinar se a teoria ainda tem algo a oferecer para a atualidade: qual a relevância do filósofo e sociólogo Adorno no contexto das atuais controvérsias? Para enfrentar tal questão escolhi o tema da liberdade que Adorno abordou nas suas aulas sobre filosofia moral2 e na Dialética negativa,3 especialmente nos pontos que mantêm um diálogo com a filosofia moral de Kant.

1FREIDEBURG, L. v. e HABERMAS, J. (eds.) Adorno-Konferenz. Frankfurt/ M., 1983.

2 ADORNO, T. W. Probleme der Moralphilosophie (1963), Frankfurt/M., 1996. No que se segue essa obra será citada pelas iniciais "PM".

3 ADORNO, T. W. Negative Dialektik, in Gesammelte Schriften. Vol. 6. Frankfurt/M., 1973. No que se segue, essa obra será citada pelas iniciais "ND".

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Como conseqüência dos progressos acelerados nas ciências biológicas e nas pesquisas sobre a inteligência artificial, os princípios naturalistas adquiriram uma nova relevância no âmbito da filosofia do espírito. E na seqüência, a antiga disputa sobre determinismo e liberdade encontra eco, surpreendentemente, nas próprias disciplinas das ciências naturais. Ao menos aqui, em nossa terra, onde - ao contrário dos Estados Unidos - os pressupostos de um naturalismo cientifi-cista não conseguiram lançar raízes muito profundas na tradição filosófica, apesar da ampla difusão de uma mentalidade secular. Nós continuamos tentando uma reconciliação entre Kant e Darwin e nos propomos uma compreensão melhor do estado de coisas aparentemente paradoxal que Adorno formula da seguinte maneira: "Que a razão é algo distinto da natureza e, mesmo assim, um momento dela: é sua pré-história que se tornou sua determinação imanente."(ND, 285).

Tal formulação é fruto de uma intuição, segundo a qual, os próprios sujeitos que se guiam pela razão e, nesta medida, agem livremente, não estão totalmente liberados do evento da natureza. Eles não podem desligar-se de sua procedência natural ao tentarem a transferência para um espaço inteligível e originário. Entretanto, tal renúncia ao dualismo kantiano, que criara um hiato entre o reino da liberdade transcendental e o reino dos fenômenos da natureza, conectados segundo leis, vê-se confrontada, agora, com o seguinte problema, o qual reproduz basicamente, em fórmulas novas, o velho problema: de que modo uma liberdade da vontade, presa à natureza, pode encontrar, de modo compreensível, um lugar num mundo fechado de modo causai? "Se os sujeitos empíricos podem realmente agir por liberdade, então a unidade kantiana da natureza - fundamentada por categorias - está quebrada, porque os próprios sujeitos fazem parte da natureza. Nesse caso, porém, a natureza revelaria uma falha que estaria em contradição com a unidade do conhecimento da natureza, alvo principal das ciências da natureza [...]." (PM, 150 s.)

Nessa passagem, Adorno reforça expressamente a caracterização kantiana das ciências naturais, a fim de relembrar a aporia que deriva da concepção, segundo a qual, a vontade livre é incompatível com o conceito de causalidade da natureza entendida como "conexão,

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conforme leis, de um estado com um outro que o precede."4 Sua argumentação visará a dissolução da antinomia que envolve liberdade e determinismo. E com tal intuito, ele procede a um deslocamento semântico no conceito de natureza, o que dará origem a uma série de conseqüências. Ele subordina o conceito cientificista de natureza, isto é, o domínio de objetos das ciências naturais, cujas explicações são causais, ao conceito schellingiano, romântico, de uma "natureza naturante" (natura naturans) - de uma história da natureza que pode ser decifrada na "nossa" retrospectiva como pré-história do espírito. Pelo caminho de uma assimilação à natureza objetivada e disponibilizada, surgiu, no interior da esfera do espírito, uma segunda natureza, que se mostra como que invertida, na figura de relações sociais que se apresentam "com a aparência de natureza" (naturwuchsig). O estigma de tal natureza invertida reside na força causai de motivos inconscientes nos quais a causalidade segundo leis da natureza parece confundir-se com a "causação por argumentos" , a qual não contradiz a autocompreensão de um autor capaz de agir de modo responsável. Desta forma, explicações psicanalíticas do desenvolvimento da moral constróem uma ponte entre a liberdade e o determinismo.

É bem verdade que tal concepção de uma história da natureza que sai dos trilhos não é capaz de solucionar realmente a antinomia; mesmo assim, ela nos fornecerá, no final, um aspecto interessante. Debruçar-me-ei, inicialmente, sobre a fenomenologia da consciência cotidiana da liberdade, a qual nos acompanha intuitivamente e que Adorno desenvolveu de passagem. Nela já se encontra um conceito destranscendentalizado de liberdade condicionada pela natureza, o qual, todavia, deixa intocada a antinomia entre a liberdade e o determinismo (I). A intuição adorniana sobre a rememoração da natureza no sujeito tem na mira a liberdade no sentido pretensioso de uma emancipação da "aparência de natureza" (Naturwüchsigkeit). Tal crítica de uma razão entregue à natureza (naturverfallen) também não consegue solucionar o enigma de uma razão entrelaçada com a natureza, desenvolvido na terceira antinomia kantiana (II). Não ob-

4 KANT, I. Kritik der reinen Vervunft, B, 560.

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stante isso, os dois momentos da liberdade condicionada pela natureza, desenvolvidos especulativamente, isto é, a indisponibilidade da natureza subjetiva e a indisponibilidade dos posicionamentos de um "outro", não-idêntico - colocam-nos no centro das atuais polêmicas sobre princípios naturalistas (III). I. Sobre a fenomenologia da consciência da liberdade.

Para uma fenomenologia não-distorcida da consciência da liberdade de sujeitos agentes é decisivo um primeiro lance: a visão não pode ficar presa ao sujeito da auto-observação nem à subjetividade da vivência. A consciência da liberdade é consciência implícita da ação. O olhar fenomenológico há que estar dirigido para a realização da ação, onde tentará sondar o saber que funciona como pano de fundo e que acompanha de modo intuitivo. Entretanto, o levar em conta de alguma coisa que aparece de modo não-temático enquanto realizamos outra coisa, de modo intencional e temático, possui caráter performativo. Adorno destaca esse ponto quando, ao posicionar-se contra o caráter supostamente inteligível da liberdade, leva a campo a "atualização temporal" da auto-experiência do agente: "Não inventável, como a liberdade e, em princípio, atributo do agir temporal [...], deve poder ser predicado de algo radicalmente intemporal." (ND, 251)

Desta maneira, o sentido ilocucionário de atos de fala se nos torna presente quando "fazemos" asserções sem tematizá-las explicitamente como asserções, objeções, perguntas ou conselhos. De certa forma, no entanto, tal saber situa-se apenas na superfície. Basta trocar a perspectiva do participante pela de uma terceira pessoa para que o sentido ilocucionário de uma ação de fala se transforme, imediatamente, no conteúdo de uma nova descrição anafórica. Dessa maneira, o "saber como se faz algo" pode ser transposto para um "saber de algo". Não obstante isso, não se pode analisar qualquer tipo de prática à maneira dos jogos de linguagem wittgensteinianos, isto é, como uma observância de regras conhecidas implicitamente. Porquanto a consciência da liberdade, que acompanha tacitamente todas as nossas ações, está situada num nível tão profundo ou está tão

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distante, na retaguarda, que não é fácil trazê-la à luz do dia. O importante, porém, é que o caráter performativo chama nossa atenção para a perspectiva de participantes, a única capaz de estabelecer um acesso à auto-experiência do sujeito que age livremente.

Opõe-se a isso o clássico arranjo experimental que faz de nós "asnos de Buridan"*, a fim de isolar o momento da liberdade de arbítrio que se encontra na possibilidade de agir desta ou daquela forma. Ele nos convida a assumir a perspectiva de uma pessoa que se observa a si mesma, mesmo que a consciência da liberdade, presente performativamente, se esquive da perspectiva de um observador. Adorno não suporta tal tipo de experimento. Ao levantar o livro que se encontra diante dele e ao deixá-lo cair, a seguir, ele demonstra a "liberdade de arbítrio" com a finalidade de chamar a atenção dos seus estudantes para o espaço público dos argumentos, o qual não é levado na devida conta pelo conceito solipsista da liberdade de arbítrio. Porquanto aquela exibição, absurda, deixa de sê-lo somente no horizonte de expectativas sociais de um estabelecimento de ensino: "Por conseguinte, retomando, mais uma vez, o exemplo idiota, se eu deixo cair o livro, num primeiro momento isso é determinado como minha decisão livre; existe, todavia, uma série de condições que podem nos levar a pensar o mesmo. Por exemplo, eu me sinto levado a demonstrar para vocês o fenômeno da assim chamada ação por liberdade e não tenho à mão nada melhor do que esse maldito livro; então eu o deixo cair e isso pode ser aplicado a todo tipo de coisas [...]." (PM, 80).

A pessoa que age por liberdade já se movimenta em um espaço intersubjetivo, onde outras pessoas podem interpelá-la perguntando,

" Tal expressão é utilizada, em geral, para caracterizar a situação de alguém obrigado a escolher entre dois objetos de igual valor. É atribuída a Johannes Buridanus, lógico e filósofo da natureza, durante vinte anos reitor da Sorbonne, na primeira metade do século XIV. Trata-se da imagem de um asno esfomeado que se encontra no meio, atraído por dois feixes de feno eqüidistantes. Ainda de acordo com a tradição, o animal iria morrer de fome, já que se sentiria atraído, em igual medida, pelos dois lados (n.t.).

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por exemplo: "Por que o senhor levanta o livro e o deixa cair novamente?" Com isso tocamos em um primeiro aspecto do conteúdo daquilo que temos intuitivamente presente quando agimos. Um ator não se sentiria livre se não pudesse, quando necessário,prestar contas dos motivos de seu agir. Reações involuntárias ou emoções tal como, por exemplo, o enrubescer e o empalidecer ou ainda desejos cegos não entram na categoria do agir. Só podem ser atribuídas a um sujeito as ações que deixam transparecer uma intenção. No agir cotidiano nós podemos sentir-nos intuitivamente "livres", porém, somente quando nossas ações puderem ser interpretadas como a execução de um determinado propósito, isto é, como exteriorização da vontade. Caso contrário, nossas ações não são passíveis de imputação.5 O que distingue a vontade de uma pulsão cega são os argumentos. Ora, há muitos tipos possíveis de argumentos capazes de levar a uma decisão refletida. E uma vez que a vontade sempre se movimenta em meio a argumentos, o sujeito agente pode ser interrogado sobre "seus argumentos". Além disso, já que a razão é a faculdade dos argumentos, torna-se compreensível a asserção de Adorno, segundo a qual, "a razão, na figura da vontade, confisca a pulsão" (PM, 190) . A razão raciocinante forma a vontade lançando mão das sensações e emoções difusas, isto é, do seu "material". (ND, 327).

Tal formulação, até certo ponto brusca, a qual desloca Kant para a perspectiva de Freud, dá a entender, todavia, que esse primeiro aspecto da consciência da liberdade - a racionalidade da vontade como base da responsabilidade para com outras pessoas - não esgota o sentido da liberdade. Porquanto a razão, enquanto faculdade impessoal, poderia perpassar anonimamente a vontade de qualquer tipo de sujeito sem abrir nenhum espaço para um agir próprio da respectiva pessoa. Em que pese isso, quem age tendo consciência da liberdade entende-se como autor de suas ações. Um olhar mais circunspeto não pode ignorar o fato de que, nessa consciência da autoria se ligam dois aspectos distintos, a saber, o de que eu tomo uma iniciativa e o de que sou eu e somente eu que tomo tal iniciativa.

5 TUGENDHAT, E. "Der Begriff der Willensfreiheit", in: id. Philosophische Aufsatze. Frankfurt/M., 1992, 334-352.

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Sentir-se livre significa, em primeiro lugar, poder iniciar algo novo. No que tange a esse "iniciar", Adorno se situa, de modo inteiramente convencional, num ponto próximo à terceira antinomia kantiana, porquanto, segundo ele, sujeitos que agem livremente intervém em processos regulados por leis naturais e "fundam", como ele diz, novas séries de causas. O agente que toma uma iniciativa supõe que, com isso, ele está colocando algo em movimento, o que não aconteceria de outra forma. Já que não é possível colocar, no enfoque performativo, a questão sobre o modo como nossas ações podem "criar um nexo objetivo com a causalidade da natureza".

Entretanto, a iniciativa tem de ser experimentada como própria e, para que isso aconteça, toma-se necessário um momento de auto-adscrição. Eu tenho de referir-me a "mim" mesmo, reflexivamente, como sendo, em última instância, o autor competente das colocações de uma nova série de determinantes. É preciso que o fato de eu tomar uma iniciativa em relação a algo, de eu agir desta ou daquela maneira "dependa de mim". A fenomenologia da consciência da liberdade capta as suposições de uma autoria responsável, levadas a cabo performativamente, considerando dois aspectos até agora abordados, a saber, a vontade moldada por argumentos e o reiniciar de algo. Convém perguntar, todavia: quem é esse "si mesmo" da auto-atribuição de ações das quais me sinto autor? Para responder a tal pergunta, Adorno situa-se no contexto de uma disputa com o conceito kantiano de liberdade inteligível.

Ele afirma que o meu substrato orgânico (Leib) e minha história de vida constituem, juntos, o ponto de referência das ações que me são atribuídas.

A espontaneidade de "meu agir", presente na experiência de si mesmo, de um agente, não brota de nenhuma fonte anônima, mas de um centro que sou eu mesmo, com o qual, portanto, eu me identifico. Kant localizara a fonte de uma referência consigo mesmo na subjetividade transcendental da vontade livre, no eu "noumenal". Todavia, caso se entenda a vontade livre como idêntica à vontade racional, o eu individual dificilmente poderá fundar-se numa vontade livre. Pois tal vontade livre não teria força individuadora, já que sua

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estrutura dependeria de uma razão impessoal. O lance destranscenden-talizador, de Adomo, desenvolvido numa direção oposta, principia com uma diferenciação que introduz uma cunha entre o juízo e o agir. Para que os bons argumentos não produzam apenas uma vontade "boa", porém, impotente, mas uma ação correta, é necessário que a simples consciência venha "acompanhada de algo mais": "A práxis necessita também de algo diferente que não se esgota na consciência, ou seja, mais precisamente, de algo somático, inclinado para a razão, porém, qualitativamente distinto dela."(ND, 228). O elemento prático que, na realização do agir e na concretização do propósito, ultrapassa o elemento teórico dos bons argumentos, é descrito por Adomo como "impulso", como "aquilo que desde sempre salta para fora", como "espontaneidade que Kant transplantou para a esfera da consciência pura" (ND, 229).

Nesse "elemento que vem juntar-se", que é, ao mesmo tempo, mental e somático, e que, portanto, também ultrapassa a esfera da consciência à qual pertence, faz-se valer o substrato orgânico de um corpo; e para tê-lo como meu corpo eu tenho de ser esse corpo (Kõrper) enquanto soma (Leib).6 Eu experimento a natureza subjetiva "interior" no modo da existência somática que eu vivo enquanto tal: "Kant inverte tal estado de coisas. Por mais que se sublime, com consciência crescente, aquilo que se junta e, inclusive, por mais que o próprio conceito da vontade seja formado, com isso, como algo substancial e uníssono - a forma de reação motora seria liquidada inteiramente; caso a mão não mais se contraísse, não haveria mais vontade."(ND, 229). A base de referência do "ser si mesmo" (Selbstsein) e da auto-atribuição das ações "respectivamente minhas" não é vontade racional enquanto tal, mas natureza subjetiva que acolhe tal vontade, seu enraizamento orgânico na natureza vivenciada de minha vida vivida somaticamente.

6Helmut Plessner escolhe o dualismo entre "ser corpo" {Leib) e "ter um corpo" (Kõrper) como chave para análise da "posição excêntrica" do homem. Cf., id. Die Stufen des Organischen, Gasammelte Schriften. Vol. IV, Frankfurt/ M., 1981. M. Weingarten retoma esse motivo no contexto da bioética. Cf. id. Leben. Bibliothek dialektischer Grundbegriffe. Bielefeld, 2003.

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A centração de minha existência, experimentada no modo de ser orgânico, é condição necessária para uma referência reflexiva a mim como autor de minhas ações, porém, não suficiente. O soma é o substrato orgânico da vida de uma pessoa insubstituível fisicamente que adquire características de um indivíduo inconfundível no decorrer da história de sua vida. Na passagem para o agir não entra em cena apenas o impulso corporal - a "mão que estremece" - mas também a história da vida como moldura do cuidado existencial para com o próprio bem, que sempre vem antes. A consideração racional só entra em jogo na forma de uma persecução inteligente de fins próprios. A primeira sublimação de emoções, de sentimentos e impulsos, imediata, surge de um desejo de felicidade já refrato reflexivamente, o qual se lança cada vez mais para frente. Retroligada à existência somática, uma vontade ética esboça o projeto de uma autocompreensão individual à luz do qual o cuidado moral pode ser integrado no interesse simétrico de outros.

Aberta para reflexões morais, porém, inicialmente auto-referencial, a vontade ética é a força formadora do caráter constituindo, juntamente com a autocompreensão pessoal, um "si mesmo" que pode dizer "eu" a si mesmo. Adomo reconhece no "caráter" que transforma a pessoa em um indivíduo, "esse meio termo entre a natureza e o mundus intelligibilis, o qual (caráter) Benjamin contrasta com o destino" (ND, 237). A razão prática e a liberdade moral, que foram objeto dos esforços kantianos, só se desenvolvem em contextos da história das vidas de pessoas preocupadas com o seu próprio bem. Podemos ver agora que a fenomenologia da consciência da liberdade que se propõe elaborar uma explicação de aspectos da autoria responsável presentes até mesmo em ações ingênuas, ainda não se refere à "vontade livre" no sentido kantiano estrito. Já que o sentido intuitivo da autoria responsável refere-se a todo tipo de ações, não apenas ás ações morais.

Adomo descreve tal consciência da ação em geral ou experiência de liberdade - ainda não especificada de acordo com argumentos pragmáticos, éticos ou morais - sem projetá-la para um eu inteligível situado além da natureza e da história. Sua descrição aponta para um

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sujeito que procede da natureza e da história levado por sensações e impulsos, o qual se constitui como um "si mesmo" que age responsavelmente apoiado em seu modo de existir somático e por intermédio da força individualizadora de cuidados éticos para com a própria biografia. Sob o ponto de vista genético, a relação entre natureza e razão é assimétrica; - num bom sentido darwinista - uma resulta da outra: "Surgindo efemeramente desta, a razão é, ao mesmo tempo, idêntica e não-idêntica à natureza."(ND, 285). Em suma, após a destranscendentalização da vontade livre, não é mais possível determinar os limites entre a razão e a natureza como fronteiras entre um inteligível e um empírico, já que a linha divisória passa a correr "em meio a uma empiria" (ND, 213). Sem embargo, convém perguntar, em que sentido se deve entender, aqui, o conceito de "natureza" e de causalidade natural.

A proporção que Adorno retira a vontade - guiada pela razão -da esfera do inteligível e a situa nos domínios da experiência corporal e das biografias individualizadoras de pessoas que agem, ele substitui o conceito de liberdade incondicionada, aporético, pelo conceito de uma liberdade procedente da natureza. Na perspectiva do agente que se entende como autor de ações responsáveis, tal conceito de uma liberdade condicionada pela natureza e inserida em contextos da história de uma vida ainda não oferece nenhum enigma. Porquanto, no processo do agir, a natureza se nos apresenta apenas frontalmente como entorno, como uma esfera - determinada por leis da natureza -de condições limitadoras, de ocasiões convidativas e de meios disponíveis. A causalidade natural que entra em jogo a tergo é desfocalizada no decorrer da realização da ação - porque, na perspectiva participante, a visão não consegue atingi-la.

A estabilidade da consciência da liberdade pode ser ameaçada reflexivamente por um saber proveniente do enfoque objetivador de um observador da natureza objetiva - ou da natureza constituída pelas ciências experimentais. Os motivos de nossas ações somente conseguem emaranhar-se contra-intuitivamente na complexa rede do evento do mundo, fechado e entrelaçado de modo causai, quando abandonamos a perspectiva de um participante e passamos a adotar a de um observador. Na consciência do ator não pode colocar-se o

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problema da combinabilidade entre liberdade e causalidade da natureza. Porque o agente não se sente, enquanto tal, submetido à natureza à qual ele se contrapõe e na qual ele intervém. Tampouco ele pode sentir-se dependente da própria natureza subjetiva, pois, na espontaneidade de seu agir, enquanto "soma" que ele é, ele se sabe idêntico a ela. Sob a premissa de ser uma só coisa com seu soma, a estrutura de condições da natureza interior lhe aparece como conjunto (Ensamble) de condições possibilitadoras da própria liberdade. E à proporção que o substrato orgânico se introduz de modo determinante, enquanto natureza de instintos, na biografia, o agente se reconhece como o autor que toma posição frente aos próprios impulsos que ele processa transformando-os em argumentos motivadores.

Isso também vale para argumentos éticos do agir pelos quais o caráter e a história da vida conseguem motivar racionalmente uma vontade. Como no caso da identificação com o próprio corpo {Kõrper) e com as tendências, trata-se, tanto aqui como lá, de um ato de apropriação, ou melhor, de um ato de identificação mais ou menos consciente capaz de explicar porque as influências cunhadoras da identidade, oriundas da socialização e do entorno, não são sentidas como um destino que limita a liberdade. Em princípio, a criança pode posicionar-se, numa visão retrospectiva, quanto aos próprios processos de formação e decidir quais formas de vida culturais, tradições ou modelos são "determinantes" - a ponto de ela apropriar-se deles - e quais não são. Deixar-se determinar por isso não constitui obstáculo à liberdade, já que faz parte dela. O agente só pode experimentar os argumentos que resultam de seu "caráter" e de seu surgimento histórico como uma coação quando ele se coloca, de certa forma, "ao lado de si mesmo", passando a considerar a história da sua própria vida como algo indiferente, destituído de qualquer tipo de valor.7

7 Deixar-se determinar não constitui limitação da liberdade, e sim, uma forma de possibilitação dela. Cf. sobre isso SEEL, M. Sich bestimmen lassen. Frankfurt/M., 2002, 288: "Quem não fosse determinado em vários sentidos não conseguiria determinar-se a si mesmo [...]. O ser determinado é um respaldo constitutivo da determinação de si mesmo."

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Os argumentos e a troca de argumentos criam o espaço lógico para a configuração da vontade livre. Os argumentos podem, certamente, obrigar, por exemplo, alguém a modificar sua opinião. Todavia , bons argumentos conduzem forçosamente a uma compreensão perspicaz; mas não podem confinar (einschranken) a unidade de uma vontade - que é livre somente enquanto vontade razoável.8 A "coação" inerente aos argumentos não deve ser interpretada no sentido de uma limitação da liberdade. Antes, pelo contrário, eles são constitutivos para a consciência da liberdade que constitui a folha de contraste para as experiências da não-liberdade. Nesse contexto, Peter Bieri afirma, com razão: "A liberdade confiável da decisão consiste no fato de que não se pode decidir diferentemente daquilo que temos por correto".9 Argumentos podem motivar ou causar ações, porém, é preciso que o sujeito que reflete esteja convicto de sua força de imposição. Em processos de avaliação prática, os argumentos adquirem sua força - capaz de motivar ações - pelo fato de serem decisivos para uma ação alternativa. E à medida que eles, por intermédio disso, assumem a função de motivos, não adquirem sua eficácia por leis da natureza, mas por regras gramaticais. A conexão lógico-semântica, a qual liga uma asserção a outra, que a precede, não é do mesmo tipo que a conexão nomológica entre um estado e um outro estado precedente.

II. Liberdade como emancipação da "aparência de natureza" -Rememoração da natureza no sujeito.

A fenomenologia da consciência da liberdade consegue formular, pois, um conceito consistente de liberdade condicionada pela natureza. Contrapondo-nos a Kant, que via na liberdade uma faculdade inteligível, podemos sustentar a idéia de que não se pode entender a relação entre liberdade e não-liberdade a partir do contraste entre

8 SCHNÀDELBACH, H. "Vermutungen über Willensfreiheit", in: id. Vernunft und Geschichte. Frankfurt;M., 1987, 96-125.

9 BIERI, R Das Handwerk der Freiheit. Munique, 2001, 83. 214

incondicionalidade e condicionalidade.10 Em que pese isso, a liberdade inteligível - desprendida do mundo - não pode ser negada de modo incorreto. Adorno tem na mente a imagem de uma razão que procede da natureza e permanece enlaçada com ela. A natureza experimentada como conjunto das condições que possibilitam a liberdade abrange os impulsos corporais de uma existência vinculada a um soma (Leib), bem como aspirações e modos de sentir, por conseguinte, o "material" acessível à auto-experiência, a partir do qual é possível forjar, na flama das considerações d iscurs ivas , uma determinada vontade. A vontade l ivre é determinada pela força da motivação de considerações que refletem não somente sobre desejos e representações próprias, mas também sobre condições, ocasiões, meios e possíveis conseqüências. Inclusive, aos olhos do agente, tais pensamentos formadores da vontade nascem de sua natureza subjetiva; porém, eles não podem ser, na sua visão, projetados, ao mesmo tempo, para o interior da natureza objetivada de modo cientificista.

Os complexos de condições que um sujeito assume in actu, na qualidade de autor de suas ações, refletem-se nessa consciência, porém, não como complexos determinadores no sentido da causalidade da natureza, kantiana. Porque, se é verdade que os fenômenos da consciência da liberdade, que acompanham de modo não-temático, são acessíveis no enfoque performativo de um agente, só podemos atribuir à natureza a causalidade no sentido de uma conexão regular de estados que se sucedem um ao outro quando adotamos o enfoque objetivador de um observador. Por isso, seria necessário, para superar a antinomia entre liberdade e determinismo, estabelecer uma relação compreensível entre a auto-experiência do ato de decisão refletida, o qual se realiza intuitivamente, e o evento que ocorre simultânea e "obje t ivamente" no substrato do corpo (Leib). A análise fenomenológica da liberdade condicionada pela natureza não dispõe, por si mesma, de meios para a construção de tal ponte entre a linguagem da filosofia, ligada à perspectiva da ação, e a linguagem da neurologia,

10 Ibid., 243.

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ligada à perspectiva do observador." Como traduzir a assunção responsável da autoria em relação ao próprio agir para um acontecimento observável e explicável mediante causas, de tal modo que possamos saber, tanto antes como depois, que estamos falando sobre os mesmos fenômenos?

Qualquer pessoa desejosa de solucionar a antinomia entre liberdade e determinismo deveria colocar tal pergunta. Adorno, entretanto, não a coloca. Ao invés disso, ele retira a causalidade da primeira natureza, constituída pelas ciências experimentais, e a transfere para a esfera de uma segunda natureza, social, constituída pelo caminho da repressão da liberdade. Tal conceito de sociedade, revestido de características naturais, sui generis, torna possível analisar a relação entre causalidade e liberdade no horizonte da experiência de sujeitos que agem livremente. Porque a causalidade só pode ser analisada em geral como "coação", isto é, como uma espécie de encolhimento do espaço para a avaliação racional de possibilidades alternativas de ação, no interior desse horizonte da consciência da liberdade cotidiana.

" Na perspectiva de um observador, BIERI (ibid., 287) descreve o processo de avaliação de alternativas de ação como um "acontecimento", porém, ele focaliza esse saber na própria consciência da ação de uma terceira pessoa. Nesse ponto, ele comete o erro de nivelar a diferença de linguagem que existe entre uma análise de condições realizada em conceitos de argumentos e uma análise de condições realizada em conceitos de causas: "De modo geral, a reflexão sobre as alternativas é um acontecimento que, juntamente com minha história, no final, irá me amarrar a uma vontade determinada. Eu sei disso, porém, isso não me incomoda. Ao contrário, é nisso que consiste precisamente a liberdade da decisão." De fato, porém, a estabilidade reflexiva da consciência da liberdade mediante saber objetivador é colocada em risco - e nessa medida a antinomia kantiana parece ter razão. A passagem para uma descrição naturalista de considerações - daquilo que se nos afigura como reflexão própria - como processos neuronais no cérebro provoca, certamente, uma dissonância cognitiva porque a consciência da liberdade e todas as suas suposições se prende de tal modo ao enfoque performativo da realização atual da ação, que ela se decompõe instantaneamente quando tem início uma consideração objetivadora.

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Adorno leva a sério uma antinomia entre liberdade e determinismo que se coloca nessa visão interna e tenta dirimi-la a favor da conservação da liberdade: "As decisões do sujeito não se desligam da corrente causai, por isso, acontece um solavanco."(ND, 226) A fenomenologia da liberdade condicionada pela natureza proíbe, todavia, o desvio para o reino do inteligível: "E novamente a tradição filosófica interpreta tal elemento fático, que advém e no qual a consciência se aliena, apenas como consciência, como se fosse possível representar a intervenção do espírito puro." (Ibid.) E certo que Adorno atém-se à intuição que guiou Kant quando da elaboração de sua proposta de solução: "Somente a reflexão do sujeito poderia, se não quebrar a causalidade da natureza, ao menos modificar sua direção acrescentando outras séries de motivação." (Ibid.) Entretanto, já que a solução idealista é inconsistente, e uma vez que o naturalismo não está mais interessado numa explicação que faça jus aos fenômenos, ele vê-se obrigado a ir em busca de uma outra solução, "materialista" - no sentido de uma pesquisa causai das patologias sociais nas quais se manifesta uma supressão estrutural da liberdade. E ele coloca tal teoria da sociedade, materialista, no quadro de uma concepção da história da humanidade: a história da humanidade é uma história da natureza que saiu dos trilhos.

Nas três operações conceituais, delicadas, necessárias ao desenvolvimento de tal concepção, o conceito de natureza interna ou subjetiva, o qual conhecemos por intermédio da fenomenologia da liberdade condicionada pela natureza, assume um papel indiscutível. É decisivo o contraste entre a indisponibilidade da própria natureza, experimentada na realização espontânea de nossa vida somática, de um lado, e a submissão da natureza exterior, objetivada, de outro lado. No jogo alternado entre essas duas modalidades de natureza, isto é, entre natureza subjetiva, indisponível, e natureza objetiva, tornada disponível, há resquícios de uma normatividade jusnaturalista discreta, resguardada nas filosofias da vida, a ser discutida mais adiante.

Inicialmente, Adorno lança mão do conceito de "aparência de natureza" (Naturwuchsigkeit) para colocar em cena a causalidade social de uma liberdade retida, expulsa da consciência (1). A seguir, ele

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radicaliza a liberdade cotidiana ordinária transformando-a numa emancipação extra-ordinária de condições que se aparentam à natureza (naturwüchsig) (2). Finalmente, ele limita a causalidade natural de estados que resultam uns dos outros, de modo regular, a uma natureza constituída com a finalidade de tomar as coisas disponíveis, ou seja, ele a circunscreve ao campo de objetos das ciências naturais cujas explicações são causais. Tudo isso é permeado por uma razão instrumental que não combina com uma dimensão abrangente do destino natural da humanidade. A causalidade de condições sociais que apenas "se aparentam à natureza" é parasitária, já que se alimenta de uma liberdade reprimida não podendo, por essa razão, ser superada mediante reflexão. A liberdade pode, por conseqüência, continuar mantendo a última palavra (3).

( 1 ) 0 destino que marca a natureza interna de sujeitos agentes em decorrência de uma submissão, socialmente organizada e cada vez mais intensa, da natureza exterior, constitui o ponto de partida para o conceito de "aparência de natureza" (Naturwuchsigkeit). No início, a razão distancia-se das carências primárias, a fim de satisfazer apenas funções insuspeitas de uma autoconservação - sem negar sua procedência da natureza. Graças a considerações racionais, no entanto, os sentimentos e carências se sublimam, em um primeiro degrau, transmutando-se em preferências de uma atividade teleológica (zweckrational); no próximo degrau, eles se transformam em representações da felicidade ou em ideais de uma vida não-fracassada. E à proporção que a razão continua trabalhando, em sintonia com a natureza subjetiva, na formação da vontade inteligente e ética, ela passa a constituir uma "força psíquica separada para fins da autoconservação; e uma vez separada e colocada em contraste com a natureza, ela se toma o seu outro" (ND, 284 s.). Sem embargo, a razão, que se originou da natureza, entra em desavença com esta tão logo e l a - impulsionada pela vontade de autoconservação transformada num fim em si mesmo - entrega-se à corrida social desenfreada que visa uma submissão da natureza exterior chegando a ponto de negar a natureza que se encontra nela própria. Ora, "quanto mais a razão

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desenfreada insiste em se perfilar dialeticamente como o oposto absoluto da natureza e quanto mais ela olvida a natureza que existe dentro dela mesma, tanto mais ela regride, auto-afirmação asselvajada, simples natureza."(ND, 285).

E isso abre espaço paia um outro conceito de natureza, pejorativo - o da involuntária "aparência de natureza" (Naturwuchsigkeit) assumida por condições sociais que se coagulam à maneira de um sistema. Diferentemente da natureza interior - que inscreve na razão dela nascida uma orientação para a felicidade -, a razão instrumental - que visa uma autoconservação pouco inteligente - transformou-se no agente de uma sociedade que "se aparenta à natureza". "Aparência de natureza" significa uma sociedade assimilada às regularidades e leis de uma natureza objetivada, isto é, de uma sociedade que reprime a interação social por intermédio de uma inversão, a qual coloca a liberdade abaixo do nível do agir livre. Na concorrência desenfreada entre atores que tentam se auto-afirmar uns contra os outros e na social ização funcional , intransparente, os imperat ivos da autoconservação, que não são, todavia, irracionais por natureza, voltam-se contra seu próprio objetivo, a saber, a felicidade do indivíduo e da sociedade. Porquanto na concorrência egocêntrica entre indivíduos singulares ligados sistemicamente uns aos outros é sufocada a camaradagem entre estranhos, a qual sempre inspirou o sonho socialista de uma sociedade emancipada que garante a todos, em igual medida, a liberdade.12

A crítica à sociedade "que aparenta ser natureza" coloca à mostra o ponto que a fenomenologia adomiana da consciência da liberdade pretendia atingir: tal fenomenologia tinha uma tarefa propedêutica, a qual consistia no esclarecimento do pano de fundo intuitivo que permite entrever experiências de não-liberdade. Já que a não-liberdade não pode aparecer a não ser no horizonte da liberdade. Nós sentimos que não somos livres quando descobrimos que as limitações de nosso espaço de ação são conseqüência de uma coação, seja ela externa ou interna. Nós agimos coagidos quando fazemos algo contra a vontade l2BRUNKHORST. H. Solidaritãl unter Fremden. Frankfurt/M., 1997.

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- na qualidade de súditos e necessitados, como dependentes internamente, ou como fugitivos.13 E somos não-livres num sentido ainda mais intenso, inquietante, quando não conseguimos mais sentir como tal, aquelas coações internalizadas. O interesse de Adomo volta-se para os mecanismos sociais de coação que se estabelecem sob a aparência de liberdade, isto é, que se transformam em coações neuróticas, inconscientes, graças a uma internalização de princípios normativos. As sociedades que se aparentam à natureza funcionam como se suas leis fossem leis da natureza. O controle sistêmico realiza-se pelo "médium" do agir livre, o qual continua intacto; apesar disso, o controle impõe-se por sobre a cabeça dos sujeitos agentes degradando a consciência da liberdade subjetiva, que passa a ser tida como mera ilusão.

(2) Podemos desconsiderar, aqui, a assunção totalizadora, segundo a qual, os mecanismos do mercado e da normalização burocrática culminam numa expansão descontrolada do princípio de troca e no funcionalismo extremo de um mundo totalmente administrado.14 Foucault continuou, no entanto, a trabalhar nesta linha. Quanto a mim, tendo em vista a controvérsia de Adomo com Kant, interesso-me por uma outra questão: será possível encontrar, na filosofia moral de Kant, um elemento capaz de se contrapor à "aparência de natureza", da sociedade, ou será que tal filosofia nada mais é do que um simples reflexo dessa "aparência de natureza" -apenas o espelho de uma auto-afirmação asselvajada? Adomo parece sugerir essa segunda alternativa quando critica o imperativo categórico pelo fato de não conseguir descobrir nele nada mais do que "o próprio princípio da dominação da natureza elevado à condição de um princípio absoluto e transformado em algo normativo" (PM, 155). O mandamento abstrato da consideração simétrica dos interesses de todos

l3BIERI, (2001), Cap.4, 84 ss. '"HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M., 1981,

vol. 1,489-534; id. Derphilosophische Diskurs derModerne. Frankfurt/M., 185, cap. V.

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parece centrar as energias impulsivas num eu, o qual, sob o jugo rigoroso de um superego estranho ao eu, impõe normas da sociedade ao desejo de felicidade dos movimentos libidinosos individuais.

De outro lado, porém, Adomo não esconde de seus estudantes que ele é um crítico da sociedade que fala a partir da filosofia moral de Kant. Adomo descobre, especialmente no formalismo e no patos da incondicionalidade da lei moral, o corretivo de uma "imagem do possível que prescinde de imagens", a qual Kant opôs à tendência que tudo nivela e transmuda em algo fungível (PM, 224 s.). Segundo Adomo, o mandamento que obriga a tratar toda a pessoa, ao mesmo tempo e em qualquer momento, como fim e jamais somente como meio, opõe-se à tendência geral que procura o sentido próprio do agir no desempenho de funções do mercado e da burocracia. Adomo é tolhido, sempre e de novo, pela sua própria crítica à força niveladora de leis gerais e abstratas - a crítica a uma "identidade" que agrega a si mesma tudo o que é "não-idêntico" - como se ele pressentisse que a liberdade de um universalismo igualitário, desenvolvida em termos intersubjetivistas, não tem necessidade de se fechar a uma fundamentação de normas, sensível a diferenças, ou a uma aplicação de normas, adequada à situação. A oposição entre dever e inclinação não significa que deva haver, em cada caso, repressão da simpatia nem que "qualquer tipo de impulso deva ser suprimido". Porquanto Adomo pensa que a diferenciação entre desejo e vontade tem de ser atribuída à introdução de argumentos capazes de justificar o bem próprio no quadro da consideração simétrica dos interesses de outros.

O único ponto controverso, a pedra de escândalo, tem a ver com a idéia de um inteligível completamente destacado da natureza, ao qual Adomo contrapõe o entrelaçamento da razão prática com a natureza. Ele não se interessa tanto pela liberdade na figura trivial da consciência da autoria responsável, que acompanha todas as nossas ações, mas pela liberdade como emancipação do feitiço de uma sociedade que "se aparenta à natureza" (naturwüchsig): "A liberdade toma-se concreta nas figuras cambiantes da repressão, isto é, na resistência contra elas. Sempre houve tanta liberdade da vontade quanto os homens tiveram vontade de libertar-se."(ND, 262). Adorno atribui,

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pois, a liberdade a uma vontade de segunda ordem, à vontade de tomar-se consciente de sua não-liberdade. Para apreender isso, mister se faz um esforço auto-reflexivo da razão, o qual permita eludir a falsa constelação formada pela natureza e pela razão.

Segundo o modelo da análise freudiana de motivos excluídos da consciência, os quais determinam o comportamento eludindo uma vontade esclarecida racionalmente e se tornam perceptíveis em sintomas patológicos, a "rememoração da natureza no sujeito" tem como finalidade preparar a sua libertação da coação - com aparência de natureza - da sociedade.15 Aqui, mais uma vez, trata-se de elevar para o plano da consciência necessidades e interesses excluídos do discurso público, os quais continuariam, de outra forma, presos à sua força cega e determinante. O que corta a comunicação da natureza interna com a formação da vontade racional não é o processo que toma a natureza exterior, enquanto tal, disponível do ponto de vista técnico e científico. Porquanto o tipo de causalidade redutora da liberdade é fruto da auto-afirmação asselvajada de uma sociedade que apenas se aparenta à natureza e que se organiza segundo o princípio de uma "persecução cega de fins da natureza". Ela desacorrenta o círculo vicioso da dominação - monstruoso e em constante expansão - , o qual acompanha tanto a natureza exterior como a correspondente opressão da natureza interior.

( 3 ) Sob tais premissas, Adomo pensa ter encontrado uma solução para a antinomia que decorre da relação entre liberdade e determinismo. Porquanto, quando se superam, de um lado e mediante reflexão, as restrições neuróticas ao espaço de liberdade da ação, e quando se consegue reconstituir a comunicação interrompida entre a razão e os elementos da natureza interior, dissociados, temos um crescimento da liberdade. De outro lado, tal ato libertador da rememoração da

15 HORKHEIMER, M. e ADORNO, TH. W. Dialektik der Aufklürung. Amsterdam, 1947, 55; esta obra será citada daqui para frente por "DA". Cf. também SCHMID NOERR, G. Das Eingedenken der Natur im Subjekt. Darmstadt, 1990.

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natureza não cai diretamente do céu. Já que, motivada pelo sofrimento resultante de uma liberdade manietada, a auto-reflexão é levada a buscar apoio na compreensão dos nexos e regularidades que se estabelecem entre trauma, defesa e formação de sintomas. Nesse ponto também se toma claro que, a partir do momento em que a causalidade é transferida semanticamente da "primeira" para a "segunda" natureza, o próprio problema da liberdade é deslocado. A emancipação das coerções de uma sociedade que detém uma "aparência de natureza" não atinge a antinomia originária que resulta da relação entre a consciência da liberdade do agente e o saber posterior sobre o fechamento causai do mundo, que é desestabilizador.

Adomo poderia enfrentar tal objeção lançando mão de sua versão de uma "história da natureza" que imprime na história da humanidade um duplo cunho. No entanto, impressionado pela filosofia da vida, de Simmel, e imbuído pelas lições de Benjamin, o jovem Adorno apropriou-se da idéia de uma "segunda natureza" em uma versão que o jovem Lukács tinha formulado na Teoria do romance, da seguinte maneira: "Esta natureza não é muda, nem manifesta ou, menos ainda, inimiga dos sentidos, como a primeira: ela constitui um complexo petrificado de sentidos, o qual se tomou estranho e incapaz de despertar a interioridade; é uma espécie de cemitério da interioridade assassinada; por isso, ela somente poderia ser reconquistada - caso isso fosse possível - por um ato metafísico de ressurreição do elemento espiritual."16 Adomo interpreta tal diagnóstico da seguinte maneira: o destino de uma desunião provocada pela cultura se vinga com natureza. Por isso, na reflexão sobre tal desunião está "contida a verdade oculta de toda cultura" (DA, 5 7 ) .

A Dialética do esclarecimento arremata tal pensamento. Aqui, a "rememoração da natureza no sujeito" (ibid.) tem por função liberar a

16 ADORNO,TH. W. "Die Idee der Naturgeschichte", in: Gesammelte Schriften. Frankfurt/M., 1997, vol. I, 356, s., cit. in: LUKÁCS, G. Die Theorie des Romans. Berlim, 1920,52 s. Cf. HONNETH, A. "Eine Welt der Zerrissenheit. Die untergründige Aktualitãt von Lukács' Frühwerk", in id. Die zerrissene Welt des Sozialen. Frankfurt/M., 1990, 9-24.

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visão para a consideração dos inícios arcaicos - reconstruídos como pré-história de nossa natureza subjetiva - de uma natureza ainda não desunida, os quais continuam legíveis nas cifras das mutilações. O descarrilamento da história da natureza é atribuído à "disponibilização" "selvagem" - incorreta - de uma natureza objetivada, à proporção que tal disponibilização entrega uma natureza, inteiramente depredada, ao imperativo social de forças produtivas desencadeadas que se tornaram sistemicamente autônomas e cegas. Para nosso tema, é decisiva a suposição pragmático-transcendental, segundo a qual, a mesma razão instrumental incorpora-se nas ciências que subsumem a natureza circundante aos conceitos da causalidade e da regularidade, a fim de torná-la disponível. Entrementes, através desse lance, a imagem naturalista de um mundo determinado por leis e regularidades perde seu poder sobre a autocompreensão dos sujeitos. Pois, tão logo a recordação da natureza no sujeito descobre a diferença abissal que se estende entre essa natureza constituída "para nós" e uma natureza que é "em si mesma", os enunciados das biociências sobre a natureza objetivada do homem deixam de ser a medida indubitável para se medir a estabilidade reflexiva da consciência da liberdade de sujeitos que agem. III. A cominação naturalista à natureza subjetiva.

Um pensamento que pretendia continuar solidário com a metafísica no instante da sua queda não tinha necessidade de temer a concepção metafísica de uma prioridade da natureza não-objetivada sobre a natureza constituída pelas ciências experimentais. Sem embargo, na perspectiva daqueles que vieram depois, como é o nosso caso, tal conceito de uma história da natureza que sai dos trilhos, que vem carregado normativamente - e de um direito natural posto em movimento por uma filosofia da história - parece suspeito. E a partir do momento em que renunciamos a tal narrativa referencial não podemos mais relativizar o que sabemos sobre a natureza constituída tomando como ponto de referência o destino de uma natureza pretensamente "outra". Quando reconhecemos como instância última

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e medida suprema de nosso saber a natureza das ciências naturais, cujas epistemologias são realistas, desperdiçamos os ganhos que a idéia de uma história da natureza prometia fornecer para a superação da antinomia da liberdade. Porquanto, nesse caso, o saber sobre o fechamento causai do mundo do qual o homem participa enquanto produto da evolução natural reduz-se - agora como antes - a uma disputa com a consciência da liberdade, a qual é, de uma forma ou de outra performativãmente inexterminável.

No final destas considerações, gostaria de averiguar se tal premissa, que nos obriga a uma maior sobriedade, ainda permite extrair dos diagnósticos de Adorno algo instrutivo sobre a dissolução da antinomia kantiana. Há vários pontos que sugerem a possibilidade de se tomar a dialética do esclarecimento como ponto de referência para uma interpretação do debate bioético sobre as possíveis conseqüências das intervenções técnicas no genoma humano; porquanto nela também se trata dos limites de uma intervenção prática na natureza subjetiva que torna esta última disponível (1). Em que pese isso, a problemática envolvendo a liberdade e o determinismo atinge, antes, os limites da disponibilização epistêmica da subjetividade vivenciadora e realizadora de uma razão enlaçada com a natureza. Ora, o conteúdo normativo da idéia adorniana de história da natureza não se esgota na indisponibilidade da natureza subjetiva já que se estende ao "não-idêntico", o qual se subtrai, no encontro com um outro, a uma intervenção objetivadora. Tal consideração pode lançar alguma luz sobre o debate atual acerca das tentativas de naturalização do espírito (2).

(1) A indisponibilidade dos inícios orgânicos da vida vivida desempenha um papel preliminar na fenomenologia da liberdade determinada pela natureza. A intuição, segundo a qual, a orientação racional por metas no longo prazo deve estar em sintonia com as sensações espontâneas e com os impulsos de uma natureza interior, a qual não pode estar à disposição de ninguém, é insuspeita do ponto de vista metafísico. O faro pelos limites morais da disponibilidade da natureza subjetiva pode ser justificado independentemente do sentido normativo, próprio de uma ortogênese, que Adomo inscreve na história

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da natureza descarrilada como um todo. Será que nós não nos sentiríamos limitados em nossa liberdade ética de configurar coisas se, um belo dia, a manipulação bem-sucedida das disposições hereditárias do organismo humano se tomasse um costume aceito pela sociedade?17

Não sabemos se no futuro teremos à nossa disposição tecnologias, as quais permitem a manipulação genética de características desejadas, de disposições ou capacidades dos descendentes. Não obstante isso, os progressos na pesquisa biogenética e na tecnologia dos gens abriram recentemente perspectivas de práticas eugênicas despertando, ao mesmo tempo, as fantasias de um "shopping no supermercado genético" shopping in the genetic supermarket (Peter Singer), as quais conferem surpreendente atualidade ao pensamento que serve de base à Dialética do esclarecimento. De acordo com tal diagnóstico, um sujeito que se autoriza a si mesmo e que transforma tudo à sua volta em objeto expande a disposição sobre a natureza exterior ao preço da repressão da própria natureza interior. Aobjetivação do entorno exterior intensifica a auto-objetivação no interior do próprio sujeito: "O domínio do homem sobre si mesmo [...] constitui virtualmente o extermínio do sujeito, porquanto a substância dominada, reprimida e decomposta por meio de autoconservação não é nada mais do que o elemento vivo [...] precisamente aquilo que deve ser conservado." (DA. 71).

Tal relação dialética entre dominação da natureza e decomposição do sujeito é provocada por uma segunda natureza que resulta da organização social de um crescimento descontrolado das forças produtivas. Sabemos, no entanto, que hoje em dia tal dialética também pode ser vislumbrada quando situamos a relação entre uma pessoa, cujos gens foram modificados, e seus pais - supostamente bem intencionados e preocupados - fora de um contexto social mais amplo. A natureza exterior, tomada disponível, é, neste caso, o corpo (Kõrper) embrionário de uma futura pessoa; e a natureza subjetiva em decomposição é o organismo, desenvolvido a partir do embrião, que

17 HABERMAS, J. Die Zukunft der menschlichen Natur. Frankfurt/M., 2002.

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a pessoa em crescimento experimenta como seu substrato orgânico ou soma (Leib), o qual foi manipulado na fase pré-natal.

Em que pese isso, uma pessoa só pode atribuir suas próprias ações a si mesma caso ela se identifique com o corpo (Kõrper) enquanto seu próprio soma (Leib). Caso contrário, não haveria nenhuma base de referência para uma familiaridade originária consigo mesma enquanto autora de ações próprias. A pré-história pré-natal da natureza subjetiva, ela mesma, também precisa estar livre de intervenções estranhas. Já que, por mais inteligentes, liberais e sensíveis que os pais sejam, eles não podem excluir a possibilidade de que o filho talvez rejeite, um dia, o dote genético que eles pensaram para ele. E no caso de uma recusa, a pessoa programada irá questionar os pais pelo fato de eles não terem escolhido um outro design que teria garantido melhores condições iniciais para o próprio projeto de vida. Na perspectiva de atingidos, os pais aparecem como co-autores indesejados da história de uma vida em relação à qual cada um exige a autoria exclusiva, a fim de se sentir livre no agir. Os pais tiveram de escolher - seguindo preferências próprias - a distribuição dos recursos naturais para um espaço de configuração no interior do qual uma outra pessoa deverá desenvolver sua concepção de vida e persegui-la. Tal escolha acarreta virtualmente implicações que coarctam a liberdade, porque ninguém pode prever, sob as circunstâncias imprevisíveis da história de uma vida futura, o tipo de significação que determinadas características genéticas poderão ter para a pessoa programada.

De acordo com a compreensão normativa de uma sociedade pluralista em termos de visões de mundo, na qual cada cidadão tem o direito de configurar sua vida conforme orientações valorativas próprias, a intervenção na definição de espaços de um jogo - que normalmente é entregue aos cuidados de uma loteria natural - no interior dos quais uma outra pessoa terá de fazer uso, um dia, da liberdade de configurar sua própria vida, é tida como uma usurpação indevida. À proporção que a diferença entre "o que se tomou" e "o que foi feito" avança no organismo do ainda não-nascido, estabiliza-se, na esfera do próprio soma (Leib), uma vontade estranha, fazendo estremer a base de referência para a auto-atribuição de iniciativas de uma conduta de vida própria. Na esteira do exercício reiterado de tais

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práticas, passaria a ser tido como cada vez mais normal o fato de os pais imiscuírem-se, na qualidade de co-autores instrumentais, na história da vida de seus filhos. Neste caso, uma corrente de ações intergeneracionais, cada vez mais densa, impor-se-ia irreversivelmente por intermédio das redes de interação contemporâneas causando danos à consciência da liberdade cotidiana, conectada à indisponibilidade prática da natureza subjetiva, que caminha junto, de modo performativo.

Tal experimento mental revela o modo como a autocompreensão não-naturalista de sujeitos agentes poderia impor-se pelo caminho de uma implantação muda de novas tecnologias e de práticas modificadas. No entanto, tal solapamento silencioso da consciência da liberdade não atinge propriamente nossa questão sobre a estabilidade dessa consciência. Já que, para se chegar a um saber desestabilizador sobre a determinação natural de nossa vontade, que supomos seja livre, não basta uma objetivação prática da subjetividade vivenciadora e realizadora do homem: é necessária, além disso, uma objetivação epistêmica. No sentido das ciências experimentais, os fenômenos culturais tal como pensamentos, atitudes proposicionais, intenções e vivências tornam-se "disponíveis epistemicamente" tão logo são traduzidos para uma linguagem observacional. E a partir daí, podem ser descritos, exaustivamente, como fenômenos mentais. Tal linguagem é talhada conforme a ontologia nominalista de coisas e eventos identificáveis no espaço e no tempo, o que possibilita uma interpretação de estados intramundanos com o auxílio de conceitos de um evento explicável em termos de causas e encadeado em termos de regularidades. Se tal tipo de programas de pesquisa naturalista fosse bem-sucedido, seria possível substituir os fenômenos acessíveis na perspectiva participante por autodescrições objeti vadoras. E com isso, teríamos encontrado equivalentes funcionais para a consciência intuitiva da liberdade, os quais abririam o caminho a uma solução naturalista para a terceira antinomia kantiana.

( 2 ) Adomo jamais se ocupou de tais tentativas de redução. Mesmo assim, ele poderia interpretar como vestígios do "não-idêntico" os

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"furos'' semânticos que surgem regularmente nas tentativas destinadas a reconceitualizar argumentos em termos de causas. Parece que o poder de objetivação de uma razão que submete tudo a si mesma topa, na dimensão de uma auto-relação, com o sentido próprio de uma natureza interior espontânea e, na dimensão horizontal das relações sociais, com a vontade e as características próprias de segundas pessoas -pessoas que se diferenciam umas das outras e que podem contradizer. Quando um alter ego tenta tomar disponível, de modo objetivador, uma outra pessoa, está ferindo essa pessoa, num duplo sentido. E com isso, ele deixa transparecer outros dois aspectos da indisponibilidade.

O sentido próprio do outro faz-se valer, de um lado, como individualidade de uma pessoa inconfundível, a qual se subtrai às intervenções de determinações gerais. O Adomo da Dialética negativa confere grande destaque a esse momento do "não-idêntico".18 Ora, a s ingular idade histórica do indivíduo só pode ser acessada performativamente, a saber, pelo caminho de um reconhecimento da alteridade do outro, a ser obtido no decorrer de uma interação.19 Somente uma intersubjetividade invulnerada pode impedir que os desiguais sejam assimilados ao igual. Ela consegue evitar a anexação de um pelo outro e salvaguardar a possibilidade de ambos "continuarem sendo, numa proximidade consentida, o distante e o diferente, num plano situado além do heterogêneo e do próprio" (ND, 192). De outro lado, o sentido normativo próprio do "outro" também se manifesta nos posicionamentos do interlocutor, os quais não são manipuláveis.

I8BUTLER, Judith ocupa-se, em suas aulas sobre Adomo, das implicações éticas do "não-idêntico" (Kritik der Gewalt. Frankfurt/M., 2003). Seu princípio intersubjetivista consegue descobrir, na obra de Adorno, aspectos que ele mesmo deixa imersos na penumbra levado pelo seu ceticismo em relação à comunicação. Não obstante isso, ela dramatiza a responsabilidade para com a segunda pessoa impulsionada pela visão cripto-teológica de Emmanuel Levinas, o qual - diferentemente do, neste ponto kantiano Adorno - entende a relação interpessoal não de modo igualitário, mas como uma relação triádica assimétrica: LEVINAS, E. Die Spur des Anderen. Freiburg, 1983.

19 HABERMAS, J. "Individuierung durch Vergesellschaftung", in: id. Nachmeta-physisches Denken. Frankfurt/M., 1988, 187-241.

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Qualquer tentativa de instrumentalização nega ao outro a posição de uma pessoa insubstituível que toma, por conta própria, posição crítica, dizendo "sim" ou "não" e que age de forma correspondente, por vontade própria.20 Não podemos interferir arbitrariamente nos posicionamentos autônomos do outro.

Ao topar com tais resistências singulares nos lembramos dos problemas conceituais com os quais se defrontam as tentativas que pretendem reduzir os argumentos a causas.21 Esse é o primeiro lance no jogo epistêmico de uma naturalização da consciência da liberdade: Já que a vontade livre é uma vontade determinada por bons argumentos, a motivação racional por argumentos tem de ser derivada de uma causação de acordo com o modelo nomológico. Os argumentos, todavia, não valem de modo absoluto, porquanto são, naturalmente, argumentos comunicáveis - são sempre argumentos para alguém. Além disso, a comunicação de argumentos realiza-se pelo médium de uma linguagem comum, de tal sorte que o "sim" ou o "não" dos participantes segue determinadas regras "gramaticais". O fato de que uma das partes não pode dispor, num enfoque objetivador, sobre as tomadas de posição da outra pode ser explicado lançando mão da circunstância de que a linguagem comum precede as intenções dos falantes singulares. "Os significados são desprovidos de intenções" (Meanings ain 't something in the head) (Putnam). A precedência de uma estrutura de perspectivas entrecruzadas obriga os participantes a se posicionarem uns em relação aos outros na qualidade de segundas pessoas. Por meio disso, cada um toma-se dependente dos incalculáveis posicionamentos de um outro. Através da socialização em uma linguagem natural e pela entrada performativa no status de membro de uma comunidade lingüística, as pessoas adentram o espaço público dos argumentos. A fim de adquirir a capacidade de prestar contas uns

2U GÜNTHER, K. "Grund, der sich selbst begründet. Oder: Was heist eine Per-son zu sein", in: Neue Rundschau, 114 (2003), 66-81.

21 Cf. CRAMM, W.-J. Reprüsenlation oder Verstündigung. Eine Kritik naturalistischer Philosophien der Bedeutung und des Geistes. Tese de dout. em filosofia. Frankfurt/M., 2003.

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aos outros, o que constitui uma qualidade essencial para qualquer pessoa em geral e para um autor de ações, responsável, é imprescindível a capacidade de participar de uma troca de argumentos.

Corresponde a tal precedência ontológica e social da linguagem a precedência metodológica de que gozam, na ordem da explicação, as significações incorporadas nas práticas comuns e compartilhadas intersubjetivamente, as quais precedem os estados internos dos indivíduos participantes. Até agora, todas as tentativas elaboradas com o intuito de substituir a imagem pragmático-social da incorporação do espírito em práticas compartilhadas intersubjetivamente pela imagem naturalista de processos neuronais, que têm lugar no cérebro humano, ou por operações desenvolvidas no computador fracassaram ante a ineludibilidade de um dualismo de jogos de linguagem.22 Os fundamentos desse fosso semântico, insuplantável, o qual se abre entre o vocabulário das linguagens do cotidiano - que se apresentam carregadas normativamente permitindo a primeiras e segundas pessoas comunicarem entre si sobre algo - e o feitio nominalista das linguagens científicas, especializadas em asserções descritivas, ancoram-se na diferença profunda que separa a perspectiva do observador da de um participante. Ambas são complementares no sentido de que nem tudo o que é acessível por uma dessas perspectivas pode ser alcançado por intermédio da outra. Tal complementaridade pode ser comprovada por um argumento epistemológico capaz de estremecer a convicção básica do naturalismo cientificista, o qual insiste na precedência da perspectiva do observador.23

De um lado, o saber "duro" sobre fatos, próprio das ciências naturais, destaca-se da compreensão "branda" de práticas e contextos de sentido simbólicos. Uma das formas do saber pode apelar para a "experiência" no sentido de uma confrontação controlada com "o

22KEIL, G e SCHNÀDELBACH, H. (orgs.) Naturalismus. Frankfurt/M., 2000, Introdução.

23 Cf. sobre o que se segue: WINGERT, L. "Die eigenen Sinne und die fremde Stimme", in: VOGEL, M. e WINGERT, L. Wissen zwischen Entdeckung und Konstruktion. Frankfurt/M., 2003, 219-248.

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mundo", apoiada em observação; e aqui supomos que esse mundo é "objetivo", isto é, constitui um mundo de objetos (de possíveis referentes), o qual é idêntico para todos os observadores e independente de suas descrições. Ao passo que a outra forma de saber apela para a interpretação ou para a explicação de significações e casos que podem ser controlados por questionamentos e respostas hipotéticos. O sentido de exteriorizações simbólicas somente se revela ao intérprete na base de suas próprias competências de linguagem e de ação, adquiridas performativamente, ou seja, a partir de uma pré-compreensão que eles adquiriram enquanto participantes de práticas comuns. Os conhecimentos das ciências da natureza distinguem-se do saber hermenêutico pela sua força de explicação e pela capacidade de formular prognósticos. A autoridade do conteúdo empírico desse saber sobre o mundo decorre de sua aproveitabilidade técnica. Com isso, temos a impressão de que, em última instância, existe apenas um caminho para nos certificarmos da realidade. O progressivo "desencantamento do mundo" (M. Weber) parece justificar a sugestão de que o saber apoiado na observação é mais importante do que a compreensão, a qual depende da comunicação.

Tal convicção alimenta a assunção naturalista de que o saber hermenêutico, menos rígido, ligado á perspectiva de um participante, pode ser substituído, em geral, por um saber sobre fatos, mais "consistente". Não obstante isso, tal programa fracassa, desde logo, pelo simples fato de que a própria pesquisa do mundo objetivo depende de uma disputa, a qual, mesmo estando estribada num evento ao qual se tem acesso na perspectiva de um observador, também lança mão de recursos hermenêuticos, já que só pode ser decidida num foro argumentativo. Isso porque as experiências são estruturadas de modo conceituai e podem, no decorrer da aquisição do saber, assumir o papel de uma instância de controle, porém, somente à proporção que contam como argumentos e podem ser defendidas perante segundas pessoas. Construção e descoberta, conceito e intuição, interpretação e experiência são momentos que não podem ser isolados uns dos outros durante o processo de conhecimento. Por isso, a perspectiva de um observador que, ao fazer experiências, assume um enfoque objetivador

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em relação a algo no mundo, não pode ser separada da perspectiva de alguém que participa de uma disputa teórica, isto é, de alguém que, à proporção que apresenta argumentos, refere-se a seus críticos assumindo um enfoque performativo: "Experiência e argumento constituem dois componentes não-independentes da base ou do fundamento de nossas pretensões de saber algo sobre o mundo."24

Os programas reducionistas perdem, no entanto , sua plausibilidade se for demonstrado que a complementaridade das perspectivas do saber, reciprocamente encadeadas, não pode ser abolida, já que a intersubjetividade do entendimento não pode ser subordinada à objetividade da observação. Internamente, a instância do protesto da experiência, que parte do mundo objetivo, e a representação de algo no mundo continuam referidas a um entendimento com outros participantes da argumentação sobre algo no mundo e à instância de justificação do contraditório por eles manifesto. Isso significa que só podemos aprender algo do confronto com o mundo à proporção que formos capazes de aprender algo da crítica do outro. A ontologização dos conhecimentos das ciências naturais, a qual culmina numa imagem de inundo, naturalista, encolhida em fatos "duros", não é ciência, apenas metafísica ruim.

A ineludibilidade do dualismo de linguagens impõe a idéia de que o cruzamento complementar entre perspectivas antropológicas de saber, profundas, surgiu junto com a própria forma de vida cultural. Uma emergência "co-originária" das perspectivas do observador e do participante poderia explicar, em uma visão evolucionária, por que os complexos de sentido acessíveis numa visão dirigida a segundas pessoas não podem ser objetivados nem esgotados totalmente por meios das ciências naturais. Isso pode levar a uma revisão de certas concepções epistemológicas;25 mesmo assim, a "indisponibilidade epistêmica" da subjetividade do homem, que vivência e realiza, não eqüivale à imunização de um "inteligível" distanciado do mundo. Pois, a partir do momento em que o dualismo de linguagens, dependente

"WINGERT, L. (2003), 218. 25HABERMAS, J. WahrheitundRechtfertigung. Frankfurt/M., 1999, Introdução.

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de perspectivas, é tido na conta de uma característica emergente de formas de vida culturais, ele pode conciliar-se com um naturalismo "menos rígido".

E a concepção de uma razão enlaçada com a natureza, que respeita conhecimentos neodarwinistas, não constitui ameaça à estabilidade reflexiva de nossa consciência da liberdade. Quando compreendemos que a consciência da liberdade, atualizada performativamente, é co-originária com a forma de vida estruturada lingüisticamente, não precisamos mais nos inquietar com a idéia de que essa mesma forma de vida encontra-se num processo de evolução natural.

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8. A FRONTEIRA ENTRE FÉ E SABER. SOBRE O ALCANCE E A IMPORTÂNCIA HISTÓRICA

DA FILOSOFIA DA RELIGIÃO, DE KANT.1

O processo de helenização do cristianismo não foi unilateral. Resultou de uma apropriação teológica e de uma contratação da filosofia grega, a qual passou a servir à teologia. Durante a Idade Média européia, a teologia era a protetora da filosofia. Enquanto pendant da revelação, a razão natural tinha seus direitos reconhecidos. No entanto, com o advento da guinada antropocêntrica, provocada pelo humanismo, nos inícios da modernidade, o discurso sobre a fé e o saber conseguiu evadir-se do cercado clerical. O peso da prova mudou de lado a partir do momento em que o saber profano tornou-se autônomo, não necessitando mais de uma comprovação enquanto saber secular. Ora, a partir desse momento, a religião foi intimada a comparecer em j uízo perante a razão. E nesse momento surge a filosofia da religião.2 A autocrítica da razão, formulada por Kant, visa dois pontos, a saber: a posição da razão teórica quanto à tradição metafísica

1 Agradeço a Rudolf Langthaler por seus comentários e por suas prestimosas indicações de textos. Suas objeções e os resultados críticos de uma reiterada leitura dos textos kantianos no decorrer de um seminário sobre filosofia da religião ministrado na Northwestern University obrigaram-me a corrigir a primeira versão que serviu de base a uma conferência em Viena e foi publicada a seguir.

2LUTZ-BACHMANN, M. "Religion, Philosophie, Religionsphilosophie", in: JUNG, M., MOXTER, M., SCHIMIDT, Th., M. (eds.). Religionsphilosophie. Würzburg, 2000,19-26: id., "Religion nachderReligionskritik", in: Theologie und Philosophie, Ano 77, Cad. 2, 2002, 374-388.

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e a posição da razão prática quanto à doutrina cristã. Ao passar pela auto-reflexão transcendental, o pensamento filosófico configura-se, de um lado, como pensamento pós-metafísico e, de outro lado, como pensamento pós-cristão - o que não significa, todavia, que ele deva ser necessariamente anticristão.

Ao traçar as linhas demarcatórias entre o uso especulativo da razão e o transcendental, Kant lançou as bases do pensamento pós-metafísico mesmo que ele continuasse a utilizar os nomes de uma "metafísica" - da natureza e dos costumes - e mesmo que a "arquitetônica" de sua construção teórica, a qual separa o mundo inteligível do mundo dos sentidos, continue servindo-se dos préstimos de um pano de fundo metafísico. A própria razão transcendental projeta, ela mesma, uma totalidade do mundo, lançando mão de idéias capazes de fundar unidade; por essa razão, ela é obrigada a renunciar a asserções hipostasiantes sobre qualquer tipo de estrutura ontológica ou teleológica da natureza e da história. Porquanto, nem o ente em sua totalidade, nem o mundo ético enquanto tal forma um objeto possível de nosso conhecimento. Tal confinamento epistemológico da razão teórica, a qual se vê limitada ao uso de uma capacidade cognitiva (Verstand) dependente da experiência, encontra o seu pendant na filosofia da religião onde temos o "confinamento da razão - limitada às condições de seu uso prático - tendo em vista todas as nossas idéias sobre o supra-sensível".1 Nesse ponto, Kant enfrenta "arrogâncias da razão" que se manifestam nas duas direções.

Na perspectiva da autocompreensão da filosofia, a crítica da metafísica vem, certamente, antes da crítica da religião. Mediante ela, Kant tenta combater as fantasmagorias especulativas de uma razão que não resultam apenas de erros, isto é, de proposições falsas, mas de uma ilusão da razão - assentada em raízes profundas - sobre o modo de operar e sobre o alcance da própria capacidade de conhecer. Ao delimitar o uso teórico da razão, Kant pretende franquear à filosofia, que até aquele momento simplesmente vagueara pelo campo de batalha 'KANT, I. Kritik der Urteilskraft. A, 435/B, 440. (Todas as citações de Kant

são extraídas da edição das obras de Kant (Werkausgabe) em 12 vols., organizada por W. Weischedel para a Edit. Suhrkamp, Ia ed., 1974).

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da metafísica, o "andar seguro da ciência". Ao passo que a liquidação da metafísica tem como objetivo liberar o caminho para uma moral autônoma fundada sobre a razão prática; não obstante isso, o objetivo imediato de tal superação tem de ser procurado no próprio negócio teórico da filosofia. Já que o traçado de fronteiras entre o uso prático da razão e a fé positiva segue numa outra direção. Uma domesticação da religião pela razão não é tarefa da autoterapia filosófica, uma vez qüe ela não se presta à higiene do pensamento, mas à proteção de um público em geral contra duas formas de dogmatismo. De um lado, o Kant iluminista pretende fazer valer a autoridade da razão e da consciência individual contra uma ortodoxia coagulada em igrejas, a qual "transforma os fundamentos naturais da eticidade numa coisa secundária". De outro lado, o Kant moralista também se volta conüa o derrotismo esclarecido da descrença. Ele pretende, inclusive, salvar, das garras do ceticismo, certos conteúdos da fé e certas normas da religião, as quais podem ser justificadas dentro das fronteiras da simples razão.4 Aqui, a crítica da religião se liga ao motivo de uma apropriação salvadora.

O atual fundamentalismo religioso que pode ser observado dentro e fora dos muros do cristianismo, confere inusitada atualidade, triste, à intenção daquela crítica da religião. Existe, no entanto, um deslocamento nas acentuações. Aqui, no Ocidente europeu, uma auto-afirmação antropocêntrica ofensiva, da compreensão de si mesmo e do mundo, a qual se posiciona contra uma auto-afirmação teocêntrica, é tida na conta de uma batalha já passada, de ontem. Por esta razão, a tentativa de recuperar conteúdos centrais da Bíblia numa fé racional passou a ser mais interessante do que a luta obstinada contra o obscurantismo e as mentiras dos clérigos. A razão prática pura não pode mais estar tão segura de sua capacidade de enfrentar, sozinha e lançando mão apenas das compreensões perspicazes de uma teoria da justiça, uma modernização que está começando a sair dos trilhos. Ela não possui a criatividade que permitiria franquear o mundo por meio da linguagem, sem a qual toma-se difícil regenerar, a partir de si mesma, uma consciência normativa que está fenecendo em todas as partes.

4 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. B, VII-XLIV, prefácio à segunda edição.

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Por isso, meu interesse na filosofia da religião, de Kant, toma como orientação a seguinte questão: é possível apropriarmo-nos da herança semântica de tradições religiosas sem borrar os limites que separam os universos da fé e do saber? E em caso afirmativo, como isso é possível? No prefácio à Disputa das faculdades, o próprio Kant lembra - e isso certamente não foi provocado por motivos de autoproteção - "a deficiência teórica da pura fé da razão, que esta não nega". Ele entende a compensação de tal deficiência como "satisfação de um interesse da razão" e pensa que as sugestões e estímulos provenientes de doutrinas da fé, transmitidas historicamente, podem contribuir "mais ou menos" para tal processo. E nesse sentido, pelo ângulo da própria fé da razão, "a revelação é tida como uma doutrina da fé, contingente e não essencial, porém, mesmo assim, não supérflua ou desnecessária".5 A pergunta que se coloca agora é: que razões as tradições religiosas podem aduzir e em que sentido elas podem exigir, por parte de uma filosofia da religião agnóstica - desenvolvida sem nenhuma intenção apologética - um tratamento que as considere "não-supérfluas?" A resposta, à qual pretendo chegar por intermédio de uma leitura crítica, não pode estribar-se tanto em asserções sistemáticas de Kant como em motivos e explicações de intenção.

Em primeiro lugar, vou lembrar o traçado dos limites delineado por Kant em sua filosofia da religião (1-5); num segundo momento, lançarei um olhar sobre a repercussão histórica e a atualidade dessa tentativa de apropriação racional de conteúdos religiosos (6-12).

(1) Nascida do espírito do Iluminismo - cujo principal alvo era a crítica da religião - a filosofia da religião, de Kant, pode ser interpretada inicialmente como a ufana declaração de independência da moral racional e profana das amarras da teologia. O próprio prefácio já inicia com uma declaração altissonante: "A moral, à medida que está fundada no conceito do homem tido como um ser livre, isto é, como alguém que, mediante sua razão, se liga a leis incondicionais, não necessita

s KANT, I. Streit der Fakullaten, A XVII.

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da idéia de um outro ser acima dele [...] nem de outra mola impulsionadora que não seja a própria lei".6 Para descobrir a lei moral e reconhecê-la como pura e simplesmente obrigatória não se necessita mais da fé num Deus criador do mundo nem de uma fé num Deus salvador.

A moral do igual respeito por cada um vale independentemente de qualquer tipo de contexto religioso. Numa outra passagem, Kant confessa, é verdade, que não somos capazes de intuir o sentido de validade categórica de obrigações morais, isto é, a "obrigatoriedade moral, sem pensar, ao mesmo tempo, em um outro e em sua vontade (perante o qual a razão legisladora em geral se transforma numa mera locutora), ou seja, sem pensar em um Deus." Convém destacar, entretanto, que esse "tomar acessível à intuição" serve apenas para "fortalecer as molas impulsionadoras da moral em nossa própria razão legisladora".7 O fato de considerarmos Deus ou a razão como legisladores morais não muda o conteúdo das leis morais - já que "quanto à matéria, isto é, quanto ao objeto, a religião não se distingue, em nenhum ponto, da moral, já que ela tem a ver com obrigações em geral".8 Uma doutrina religiosa só é possível, enquanto disciplina filosófica, no sentido de uma aplicação crítica da teoria moral a tradições históricas dadas. Nesta medida, a filosofia da religião também não é parte da ética desenvolvida pela simples razão prática.9

Na perspectiva de uma crítica à religião, Kant descreve a religião positiva como simples "fé da igreja", particular e exterior. As grandes religiões mundiais, fundadas por profetas, transmitidas por doutrinas

6KANT, I. Die Religion innerhalb derGrenzen blosser Vernunft. BA, III. Cit, a seguir, como Religion.

7 KANT, I. Metaphysik der Sitten. (Doutrina das virtudes), A, 181. 8Streit der Fakultüten, A, 45. ''Nesta perspectiva, uma proposição contida na "Conclusão" da Doutrina das

virtudes, que é ocasião de muitas interpretações falsas, adquire um sentido menos capcioso: "É possível numa 'religião nos limites da simples razão', a qual, no entanto, não é deduzida apenas da simples razão, mas também, ao mesmo tempo, está fundada nas doutrinas da história e da revelação [...].". Cf. Metaphysik der Sitten. Tugendlehre, A, 182.

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e praticadas em formas de culto fundamentam uma fé ligada a determinados fatos e testemunhos históricos, cuja influência se desenvolve nos limites de uma determinada comunidade religiosa em particular. A fé eclesial, que se apoia sobre verdades reveladas, surge sempre no plural; ao passo que o elemento puramente moral da religião natural se "comunica a qualquer um": "Existe apenas uma (verdadeira) religião; pode haver, no entanto, muitos tipos de fé."10 A religião criada pela pura razão prática não necessita de formas de organização nem de estatutos; já que ela está ancorada na interioridade "do coração para observação de todos os deveres humanos", "não em estatutos ou observâncias"." As doutrinas bíblicas formam um invólucro que não podemos confundir com o conteúdo racional da religião.12

Os filósofos "ilustrados pela razão" fundam-se nessa premissa quando pretendem discutir com os teólogos "ilustrados pela Bíblia" a correta interpretação da Bíblia no que tange ao essencial da religião ("que consiste no elemento prático-moral, naquilo que devemos fazer"). Kant eleva a razão como medida para a hermenêutica da fé das igrejas transformando, destarte, "a melhora moral do homem, a finalidade propriamente dita de toda religião racional" no "princípio supremo de toda a interpretação da Escritura".13 Na Disputa das faculdades o tom se agudiza ainda mais. Aqui trata-se explicitamente da pretensão da filosofia, a qual se julga no direito de decidir sobre as verdades da Bíblia e de colocar de lado tudo aquilo que não pode ser reconhecido "mediante conceitos de nossa razão à proporção que eles são puramente morais e, com isso, infalíveis". É interessante notar que o pronome pessoal "nossa", sublinhado, é elucidado ironicamente por intermédio de uma referência ao princípio protestante da exegese individual de leigos. Porquanto, somente "o Deus em nós mesmos", é intérprete autêntico, o qual é confirmado por meio de um fato da razão, a saber, a lei dos costumes.14

10 Religion, A, 146/B, 154. "Religion, A, 107/B, 116. 12 Streit der Fakultaten, A 65. "Religion, A 152/B 161. 14Streit der Fakultaten, A 70 e A 108.

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É natural que a hermenêutica racional marginalize, sobre tal base antropocêntrica, inúmeros artigos da fé, tal como, por exemplo, a ressurreição dos corpos, sob a alegação de que se trata aí de simples ornamento histórico. Ela se vê obrigada, além disso, a despir proposições centrais da fé, como a encarnação de Deus na pessoa de Jesus Cristo, de sua significação essencial e a reinterpretar, por exemplo, a graça de Deus, passando a tratá-la como imperativo para o auto-engajamento: "Por conseguinte, as passagens da Bíblia que parecem conter uma entrega passiva a um poder exterior que provoca em nós santidade têm de ser interpretadas de tal sorte que fique claro que nós temos de trabalhar por nós mesmos no desenvolvimento daquelas disposições morais que se encontram em nós."15 O contexto histórico e salvífico do pecado, do arrependimento e da reconciliação e, com isso, a própria confiança escatológica no poder retroativo de um Deus salvador, retiram-se, passando a ser retaguarda do dever que exige um esforço moral no interior do mundo. A retroligação subjetiva de todas as referências transcendentes da fé à razão prática pura do homem tem, no entanto, o seu preço. Isso aparece tão logo é colocada a seguinte pergunta: qual é o ponto de partida de nosso agir moral: "a fé no que Deus fez por nós? Ou o que temos de fazer para nos tomarmos dignos disso (independentemente da forma que isso venha a assumir)?";16 Kant decide-se pelo valor intrínseco do modo de vida moral: "O que o homem é em sentido moral, ou deve ser - bom ou mau - tem de ser feito ou deve ser feito por ele mesmo."17 Sem embargo, o comportamento moral não lhe confere nenhum direito à felicidade. Por intermédio disso ele se mostra, quando muito, digno de experimentar felicidade. A eticidade torna o justo digno da felicidade, mas não necessariamente feliz.

( 2 ) À proporção que tradições religiosas são reduzidas, por este caminho, a um conteúdo puramente moral, não podemos resistir à

15 Streit der Fakultaten, A 60. 16Religion, A 163/B 172. ''Religion, A45 /B 48.

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impressão de que a filosofia da religião se limita, a exemplo da crítica da metafísica, à destruição de uma aparência transcendental. Kant, no entanto, não permite que a filosofia da religião se esgote no negócio da crítica da religião. Precisamente na passagem onde ele lembra à teologia que "a lei moral não [promete], por si mesma, nenhuma felicidade",18 fica claro também um outro aspecto da filosofia da religião, construtivo, porquanto ela é capaz de encaminhar para a razão certas fontes religiosas das quais a própria filosofia pode extrair estímulos e, desta forma, aprender algo. Entretanto, mesmo que não fosse possível descobrir, nas próprias leis morais, "a menor razão para um nexo necessário" entre a pessoa que se tornou moralmente digna da felicidade e a felicidade de que realmente ela goza, o fenômeno dos que sofrem injustamente ofende um sentimento profundo. Nossa indignação provocada pelo andar injusto do mundo nos revela, de modo inequívoco, que "não pode ser indiferente o fato de um homem honesto e justo até o final de sua vida não encontrar, ao menos aparentemente, nenhum tipo de felicidade como recompensa para suas virtudes ou o fato de um homem desonesto e violento até o final de sua vida não encontrar nenhum tipo de castigo para seus crimes. É como se [nós] captássemos uma voz que dissesse, tudo tem de ser diferente"}9 Certamente, a respectiva felicidade de cada um, que pretendemos usufruir tendo em vista nosso comportamento virtuoso constitui apenas o fim terminal e subjetivo de seres racionais que vivem neste mundo, para o qual eles tendem por sua própria natureza. Em que pese isso, existe um outro pensamento que é quase mais ofensivo à razão prática - que visa o geral - do que a falta de garantia da felicidade individual para as pessoas que agem corretamente: trata-se do fato de que todas as ações morais no mundo, tomadas em seu conjunto, não conseguem fazer nada para melhorar o estado desastroso em que se encontra a convivência da humanidade em sua totalidade. E este protesto contra a contingência de um destino natural da sociedade que "relança na goela do caos absurdo da matéria aqueles que poderiam

18 KANT, I. Kritik der praktischen Vernunft, A 231. 19Kritik der Urteilskraft, A 434/B 439. Sublinhado por mim. 242

acreditar estarem sendo o fim terminal da criação",20 encontra certamente ouvidos na "doutrina do cristianismo".

A mensagem religiosa enfrenta a proverbial insensibilidade de mandamentos morais válidos incondicionalmente, os quais são impassíveis ante as conseqüências do agir moral na história e na sociedade, lançando mão de uma promessa: "A lei moral, de si mesma, não promete nenhum tipo de felicidade [...]. Entretanto, a doutrina moral cristã preenche tal lacuna [...] por meio da representação do mundo - no qual seres racionais se entregam de todo coração à lei ética - como um reino de Deus no qual a natureza e os costumes [...] entram em harmonia através de um autor sagrado que toma possível o bem supremo inferido."21 Como se vê, Kant traduz a representação bíblica do "reino de Deus" lançando mão do conceito metafísico de "bem supremo", porém, não o faz - como era de se esperar - na intenção de uma crítica da metafísica, isto é, na intenção de recolocar em seu devido lugar uma razão especulativa divagadora. Porque à filosofia da religião não interessa colocar limites à razão teórica, a qual é importunada por questões não respondidas, e sim, ampliar o uso da razão prática para além da legislação moral de uma rigorosa ética do dever, incluindo os postulados presuntivamente racionais de Deus e da imortalidade.

Já no prefácio ao texto sobre a religião, Kant chama a atenção para o momento excedente que distingue a pura fé religiosa da simples consciência de deveres morais, porquanto nós, na qualidade de seres racionais, temos interesse na promoção de um fim terminal, mesmo que a sua realização - proporcionada por um poder superior - só possa ser pensada como resultado de uma acumulação feliz de efeitos colaterais, para nós inteiramente imprevisíveis, do agir moral incondicional. Sem dúvida, um agir correto não necessita de nenhum tipo de fim. E, inclusive, qualquer representação de fim desviaria os que agem moralmente da incondicionalidade daquilo que é respectivamente exigido de forma incondicional. Mesmo assim, "a

0 Kritik der Urteilskraft, A 423/B 428. 1 Kritik der praktischen Vernunft, A 231 s.

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razão não pode deixar de ser afetada pelas respostas dadas à pergunta: o que advirá de nosso agir correto, o qual não pode deixar de ser o fim para o qual dirigimos e continuaríamos a dirigir nosso fazer e deixar de fazer, mesmo que isso não estivesse plenamente ao nosso alcance?".22 O que transforma a pura fé religiosa numa fé é o interesse (que ultrapassa a consciência moral) da razão "em aceitar um poder capaz de assegurar a elas (às leis morais e às ações conformes à lei) o inteiro efeito possível num mundo e coerente com um fim terminal ético."23

Por que razão tal carência tem de ser racional e por que esse interesse tem de ser precisamente um interesse da razão? A tarefa de mostrar isso compete à própria razão prática. E a prova não pode ser esperada do encontro da filosofia com as doutrinas históricas da religião. Ela tem de ser apresentada na própria teoria moral (e franqueada pela crítica da faculdade do juízo, teleológica, portanto, por considerações heurísticas da filosofia da natureza24). Como ponte, serve o antigo conceito de "bem supremo", o qual pode ser recheado com conteúdos escatológicos quando é equiparado ao conceito bíblico de "reino de Deus". De fato, é graças à antecipação imperceptível da força semântica religiosa - capaz de franquear o mundo - que Kant tem condições de avançar, tateando, até uma doutrina de postulados, a qual é capaz, apesar de tudo e apesar dos paradoxos, de emprestar à razão prática a força necessária para insuflar esperança numa "promessa da lei moral".25

( 3 ) Em sentido estrito, a competência da razão prática abrange apenas as exigências morais que cada pessoa singular toma como seu dever de acordo com a lei dos costumes. O próprio "reino dos fins", no qual todas as pessoas se encontram reunidas na qualidade de cidadãos de uma comunidade moral e no qual legislam e agem em

22 Religion, BA VII. 23 Religion, A 139/B 147. 24 Não posso aprofundar essas considerações nos parágrafos 82-91 da Critica

da faculdade do juízo. Por isso, limito-me algumas passagens esporádicas. 25 Kritik der Urteilskraft, B 463, nota de rodapé.

2 4 4

consonância com a lei, é uma simples idéia que nada acrescenta ao conteúdo da lei moral dirigida a cada indivíduo em particular. Com o auxílio de tal idéia transcendental, Kant soletra, é bem verdade, a forma de uma convivência (ordenada, de certo modo, à maneira de uma republica) que adquire forma sob as condições de uma obediência geral a leis morais (quando "cada um faz o que deve fazer"). Não obstante isso, somente quando tal idéia deixasse de ser uma simples diretriz de um agir moral individual e fosse traduzida para o ideal de um estado político e social, a ser realizado cooperativamente no mundo das manifestações fenomênicas, o reino inteligível dos fins transformar-se-ia em um reino deste mundo. Ora, a filosofia da religião, de Kant, tentou realmente concretizar tal transposição mediante o conceito "comunidade ética". Ele introduzirá, todavia, no quadro de sua teoria moral, na forma de escrito intermediário, a concepção do "bem supremo", a qual também projeta a "consonância entre moral e felicidade" como um estado no mundo. Tal ideal, entretanto, não é representado como um alvo a ser perseguido cooperativamente, mas como o esperado efeito coletivo de todos os fins particulares perseguidos individualmente sob leis morais.

Tal estado ideal de felicidade geral, derivado indiretamente da suma de todas as ações morais, não pode, no entanto, sob premissas da teoria moral kantiana, ser proposto propriamente como um dever. Quando Kant declara "nós devemos tentar promover o bem supremo", tal dever fraco - como ele poderia ser chamado - bate de encontro aos limites da perspicácia racional humana, a qual, quando se trata da persecução comum de fins benemerentes logo se enreda, inevitavelmente, nas malhas intransparentes de efeitos colaterais não intencionados.26 Por si mesma, a razão prática não pode ir além da reprodução fenomenal da realidade "noumenal" do reino dos fins no

26Sobre a concretização do bem supremo cf. a análise primorosa de WIMMER, R. Kants kritische Religionsphilosophie. Berlim, 1990, 57-76 e 186-206. Eu não vejo, entretanto, como é possível (75s.) entender a "promoção" do bem supremo como idéia moral obrigatória sendo que, ao mesmo tempo, a "realização" desse fim terminal vale apenas como ideal. Eu posso "promover" um fim à medida que tento contribuir para a sua realização.

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ideal do bem supremo - que transparece em contornos debilitados - , o qual não é, em todo caso, vinculante do ponto de vista moral. E sabemos que os "ideais" são para Kant "platônicos", isto é, menos importantes. E já que a capacidade cognitiva humana não consegue prever a complexidade das conseqüências da cooperação ética no mundo conduzido por leis da natureza, o agir por dever exige de quem se decide por ele uma orientação por idéias e uma circunscrição da escolha de seus objetivos (Zwecke) de acordo com leis morais; ele não pode, por outro lado, ser obrigado moralmente a perseguir um alvo (Ziel) efusivo, isto é, um fim que ultrapassa as leis morais -como seria o caso da concretização de um estado ideal no mundo.

É interessante notar que, não obstante isso, Kant manipula todos os registros conceituais disponíveis para alçar a realização do bem supremo no mundo à categoria de um dever moral. E mesmo que o mandamento, segundo o qual cada um deve colocar como fim terminal (Endzweck) de seu agir o maior bem possível no mundo - uma afinação geral entre moralidade e felicidade, - não possa estar contido nas próprias leis morais, ou seja, não possa ser justificado a partir da lei dos costumes, como é o caso de todos os deveres concretos ("por conseguinte, quando se coloca a questão acerca do princípio da moral pode-se passar por alto e deixar de lado a doutrina do bem supremo [...]"27), Kant gostaria de nos convencer de que no "respeito pela lei moral" já está implícita a "intenção dirigida ao bem supremo".28 Nós devemos representar o bem supremo como "o objeto inteiro da razão prática", "porque é inerente a esta um mandamento que exige envidar todos os esforços possíveis para a concretização dele".29 Só é capaz de entender tal mandamento "supramoral" quem tiver ciência da pergunta que provocou tal resposta, a saber: o que nos obriga a ser seres morais?30

27 KANT, I. Über den Gemeinspruch, A 213. 28 Kritik der praktischen Vernunft, A 239. 29 Kritik der praktischen Vernunft, A 214. ., Parece que Karl -Otto Apel dá esse passo na "Parte B" de sua ética, o qual

conduz, mediante apreensão de um princípio deontológico, a uma conclusão

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Tal pergunta, no entanto, não conseguiu aflorar em Kant tendo em vista a obrigatoriedade incondicional de uma lei dos costumes fundada unicamente no fato do sentimento do dever. Podemos convencer-nos da obrigatoriedade da lei dos costumes mesmo privados da possibilidade de uma promoção efetiva de um bem supremo e sem a posse da idéia dos correspondentes postulados. Numa referência ao exemplo de Spinoza temos: "Suposto que: um homem se convence a si mesmo [...] de que não existe Deus: mesmo assim, ele seria, aos seus próprios olhos, alguém sem nenhuma dignidade caso considerasse as leis do dever como simplesmente forjadas, inválidas, não obrigatórias".31 Por conseqüência, as próprias tentativas de fundamentação, que Kant elabora em diferentes contextos, não conseguem convencer de forma cabal. Uma ética fundamentada deontologicamente, a qual entende todo o agir moral como um agir sob normas justificadas moralmente, não consegue subordinar, a seguir, a vontade autônoma, a qual se autovincula a compreensões morais, a uma finalidade.

No entanto, Kant objeta: "Não existe nenhuma vontade sem algum tipo de finalidade (Zweck); mesmo que, ao se tratar da pura obrigação legal das ações, seja necessário abstrair dele [...]."32 Convém, pois, perguntar se, ao desistirmos de um comportamento injusto, devemos subordinar a decisão de nos atermos a leis morais a um fim (Zweck). Entretanto, se todos os fins (Zwecke) já se subordinam a uma avaliação moral, como é possível o "despontar" de um fim terminal (Endzweck) a partir do conjunto de todos os fins legítimos, o qual justifica a própria moralidade? Kant se satisfaz com uma indicação da inexistência de proveito próprio na necessidade de participar da realização do fim terminal, a qual só pode ser pensada nas condições

teleológica falsa. Cf. APEL, K.-O. Diskurs und Verantwortung. Frankfurt/M., 1988,103-153; contra essa posição cf. HABERMAS, J. "Zur Architektonik der Diskursdifferenzierung", in: BÕHLER, D., KETTNER, M. SKIRBEKK, G. (eds.). Reflexion und Verantwortung. Frankfurt/M., 2003, 44-64. No presente volume, cap. 2.

31 Kritik der Urteilskraft, A421/B 426. 12 Kritik der Urteilskraft, A 42 l/B 426.

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de um agir totalmente moral: "Por isso, no homem, a mola propulsora - que consiste na idéia do maior bem possível no mundo mediante a sua participação - não é a felicidade própria, visada com isso, porém, apenas essa idéia como fim em si mesma, portanto (?) sua persecução enquanto um dever. Porquanto ela não contém a perspectiva da felicidade enquanto tal, apenas a perspectiva de uma proporção entre ela e a dignidade do sujeito, qualquer que ele seja. Entretanto, uma determinação da vontade que confina a si mesma - e sua intenção de pertencer a essa totalidade - a semelhante condição não é interessei™."33 Não obstante isso, a ausência de interesse próprio não perfaz o sentido de um dever, pois, ela pode eventualmente constituir uma pressuposição para a obediência a um dever determinado que se opõe aos próprios desejos. No final, Kant é obrigado a admitir que aqui nos defrontamos com "uma determinação da vontade de tipo especial",34 a qual não pode ser colocada no mesmo plano dos "deveres" que ele caracteriza geralmente.

( 4 ) Por que razão Kant insiste, mesmo assim, no dever de promover o bem supremo? Uma primeira resposta já é sugerida pelo postulado da existência de Deus. Entretanto, supondo que aceitemos um tal dever efusivo, não temos como fugir à seguinte pergunta: de que modo uma obediência geral a leis morais poderia realizar o bem supremo em um mundo dominado pela causalidade da natureza? A razão prática só pode transformar numa tarefa moralmente obrigatória a co-participação na realização de tal fim se a concretização desse ideal não fosse impossível a priori. Em que pese isso, ela tem de ser possível ao menos em pensamentos. Por conseguinte, a razão prática nos incumbe de uma tarefa que aparentemente ultrapassa as forças humanas, e que consiste em contar com a possibilidade de uma inteligência superior capaz de harmonizar os efeitos intransparentes da moralidade com o movimento do mundo que é controlado por leis da natureza: "Nós devemos tentar promover o bem supremo (que deve ser possível, apesar de tudo). Por conseqüência, postula-se também a

33 Über den Gemeinspruch, A 213, nota de rodapé. 34 Über den Gemeinspruch, A 212, nota de rodapé. 248

existência de uma causa de toda a natureza, distinta da própria natureza, que contem o fundamento de tal coesão, isto é, da coincidência precisa entre felicidade e eticidade."35

Será que tal concepção do bem supremo, a qual não se coaduna sem mais nem menos com os fundamentos da teoria moral, não obriga Kant a costurar uma argumentação sinuosa a fim de postular, ao menos, a existência de Deus? Sem embargo, a imputação de tal motivo ao espírito incorruptível que se exterioriza em cada uma das proposições elaboradas por esta filosofia seria, não somente barata, mas também inverossímil. Longe disso, Kant tentou acrescentar ao modo de pensar moral a dimensão que abre a perspectiva de um mundo melhor por amor à própria moral, isto é, para fortalecer a própria confiança no modo de pensar e sentir moral e para protegê-la contra o derrotismo. Adorno afirma que o segredo da filosofia kantiana reside em "a inesgotabilidade (Unausdenkbarkeit) do desespero, o qual jamais pode ser tematizado inteiramente pelo pensamento". Ora, eu não consigo entender tal dito apenas no sentido de uma crítica aos olhos azuis do iluminista, mas como assentimento ao Kant dialético que mira os abismos de um iluminismo que se enrijece e empert iga na subjetividade. Kant pretende imunizar o Spinoza secular - "que se mantém firmemente convencido de que: não existe Deus [...] nem vida futura" - contra o desespero provocado pelos efeitos lamentáveis de um agir moral que tem o seu fim apenas em si mesmo.

E bem verdade que Kant pretendia superar a metafísica, a fim de abrir espaço para a fé. Não obstante isso, ele encara a "fé" mais como um modo do que como conteúdo. Ele procura um equivalente racional para a atitude de fé, a saber, o hábito cognitivo do crente: "Afé (Glaube) (caracterizada pura e simplesmente como tal, por conseguinte, não somente afé religiosa, mas também afé da razão {Vernunftglaube) é uma confiança no êxito de uma intenção cuja promoção é dever, cuja possibilidade de concretização, no entanto, não temos condições de ver."36 Na nota de rodapé, Kant acrescenta, a título de explicação: "É

15 Kritik der praktischen Vernunft, A 225. "'Kritik der Urteilskraft, A 456/B 462 (as palavras em itálico foram inseridas

por mim).

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uma confiança na promessa da lei moral; porém, não enquanto tal, ou seja, enquanto promessa contida na mesma lei, mas como promessa que eu insiro nela [o itálico é meu] precisamente porque possuo uma razão moralmente suficiente." Kant gostaria de manter um momento da promessa, porém, destituída de seu caráter sacral. Para imunizar o modo de sentir e pensar moral contra as aparências que sufocam a coragem, ele deve ser ampliado pela inserção da dimensão de uma confiança num sucesso finito que poderia ser tomado como fim de todas as ações morais contempladas em conjunto. Com esse passo, Kant não pretende recuperar conceitualmente, em primeira linha, conteúdos religiosos, e sim, integrar na razão o sentido pragmático do modo da fé religiosa. Nessa passagem ele mesmo comenta sua tentativa como "imitação lisonjeira" do conceito cristão da fé (fides). A fé da razão conserva, ao que tudo indica, o caráter especial de uma espécie de "ter-por-verdadeiro" que mantém, pelo ângulo do saber moral, a referência a argumentos convincentes e, pelo ângulo da fé religiosa, o interesse na realização de esperanças existenciais.17

Quando tentamos explicar a complementação da lei dos costumes por meio do dever de colaborar na realização do fim terminal -que é problemática, inclusive, à luz dos próprios pressupostos kantianos - lançando mão do motivo da "inesgotabilidade do desespero que jamais pode ser tematizado cabalmente pelo pensamento" toma-se claro o ponto da tradição judeu-cristã pelo qual Kant deve interessar-se acima de tudo. Mais do que a promessa de um além envolvendo a existência de Deus (ou, inclusive, a imortalidade da alma humana) trata-se da perspectiva da promessa do reino de Deus sobre a terra: "A doutrina do cristianismo, mesmo quando não se a considera como doutrina da religião, fornece [...] um conceito do bem supremo (do reino de Deus) que é o único capaz de resistir às exigências mais severas da razão prática."38 O pensamento escatológico de um Deus, que age na história e que supera todos os ideais platônicos, permite

Esse conceito não cabe no esquema dos três modos de "ter por verdadeiro" que Kant tinha introduzido na Crítica da razão pura (A 828/B 856).

Kritik der praktischen Vernunft, A 230 s.

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traduzir a idéia do "reino dos fins", isto é, permite transpô-la da palidez transcendental do inteligível para uma utopia intramundana. Por este caminho, os homens adquirem confiança, a qual lhes permite pensar que, com o seu agir moral, eles podem colaborar na realização da "comunidade ética" que Kant soletra filosoficamente lançando mão da metáfora de um domínio de Deus sobre a terra.

Sem a antecipação histórica que a religião positiva fornece à nossa imaginação por intermédio de seu tesouro de imagens estimulantes, a razão prática estaria privada de estímulos epistêmicos capazes de alçá-la ao nível de postulados dos quais ela lança mão para recuperar, no horizonte de considerações racionais, uma necessidade que já se encontra articulada em conceitos religiosos. E caso seja possível apropriar-se, segundo medidas racionais, do material histórico encontrado, a razão prática pode encontrar algo já estruturado nas tradições religiosas que promete compensar uma precisão formulada em termos de "carência da razão" (Vemunftbedürfhis).

Kant não reconhece tal dependência epistêmica quando concede à religião positiva e à fé eclesial uma função meramente instrumental. Ele é de opinião que os homens necessitam de modelos concretos, de histórias exemplares de profetas e de santos, de promessas e milagres, de imagens sugestivas e narrativas edificantes apenas como "ocasiões" para superar sua "descrença moral" e explica tal fato apelando para a fraqueza da natureza humana. A revelação apenas abrevia o caminho para a propagação de verdades da razão. Sob uma forma doutrinária, ela toma acessíveis verdades às quais os homens "poderiam ter chegado por si mesmos [...] mediante o simples uso de sua razão" mesmo sem condução autoritária.39 De sorte que, no final das contas, "a fé puramente moral" surgirá das cápsulas convencionais da fé eclesial: "E preciso depor [...] as cápsulas [...]. O tomo principal da sagrada tradição, com seus apêndices, estatutos e observâncias que, no seu

Religion, A 219/B 233. Cf. também Streit der Fakultaten, A 46: "O teólogo bíblico diz: procurai na Escritura onde pensais encontrar a vida eterna. Esta, porém, uma vez que as condições são as mesmas do aprimoramento moral do homem, não pode ser encontrada em nenhum lugar de nenhuma escritura.

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tempo, prestou bons serviços, torna-se, mais e mais dispensável e, no final, peia [...]."40

(5) Sem embargo, quando Kant descreve tal "passagem da fé eclesial para o domínio exclusivo da pura fé religiosa" sob o aspecto de uma "aproximação do reino de Deus"41 (o que constitui, por sua vez, uma cifra para representar o estado do "melhor dos mundos" realizado), e quando o faz de tal modo que as formas de organização eclesial já antecipam determinadas características essenciais de uma constituição futura, isso não combina com a rígida compreensão crítica da fé eclesial, segundo a qual, esta constitui simples "veículo" para a propagação da fé da razão. A fórmula da "aproximação" pode ser entendida em dois sentidos: no sentido de um genitivo subjetivo, o reino de Deus aproxima-se do homem (aproximação do reino de Deus); no sentido de um genitivo objetivo (aproximação ao reino de Deus), o homem aproxima-se do reino de Deus. Isso significa que, quando nós entendemos a realização de um "reino de Deus sobre a terra" - em que pese o "contra-senso que é a idéia, segundo a qual, os homens deveriam fundar um reino de Deus"42 - como resultado dos esforços cooperativos do próprio gênero humano, as instituições voltadas à salvação, que surgem inicialmente no plural, desempenham um papel organizatório importante no difícil caminho que leva à "verdadeira igreja". Ao passo que a aproximação ao reino de Deus é representada "na forma sensível de uma igreja [...], cuja organização compete aos homens enquanto obra que lhes é confiada e que pode ser exigida deles".43

A instituição de uma comunidade eclesial que se auto-entende como "povo de Deus reunido sob leis éticas" estimula Kant a formar, na filosofia da religião, um conceito que oferece, para a pálida herança metafísica contida no "bem supremo", a incorporação plástica na figura

w Religion, A 170/B 179. 41 Cf. o título do capítulo in: Religion, A 157/B 167. 42 Religion, A213/B 227. 4} Religion, A 212/B 226.

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concreta de uma forma de vida. Kant não desenvolve o conceito da "comunidade ética" em contextos da filosofia prática, mas no decorrer de sua aplicação "a uma história já feita".44 Tudo indica que a "religião nos limites da simples razão" não extrai das tradições religiosas tudo aquilo que poderia fazer sentido perante a razão;45 ao contrário, parece que ela também recebe, por seu turno, impulsos para a ampliação de um "estoque de razão" bem circunscrito do ponto de vista deontológico. No processo de reconstrução do conteúdo racional das "doutrinas da história e da revelação" Kant interessa-se especialmente pela contribuição oferecida pelas comunidades de fé organizadas para a "fundação do reino de Deus sobre a terra". A "doutrina da religião aplicada" elabora o conceito racional de uma "comunidade ética" -que corresponde à cifra do reino de Deus sobre a terra - e obriga, destarte, a razão prática a superar o plano de uma simples autolegislação moral por intermédio de um "reino dos fins", inteligível.

Conforme já vimos, a teoria moral atribui ao "reino dos fins" um status inteligível, o qual não tem precisão de nenhuma complementação terrena.

Tal idéia dirige-se, respectivamente, a cada um dos destinatários da lei dos costumes. Ela não necessita de nenhum tipo de realização na figura de uma comunidade moral porque o sentido de tal modelo de uma "união de seres racionais mediante leis objetivas comuns" não consiste em forçar qualquer tipo de cooperação ou de participação numa prática comum. Somente in abstracto o "reino dos fins" coloca ante os olhos um estado em que dominam leis morais válidas categoricamente - sem a consideração das conseqüências fáticas da ação no complexo mundo dos fenômenos. O caráter público desse mundus intelligibilis permanece, de certa forma, virtual. O seu pendam real no mundo encontra-se na comunidade de cidadãos

44 Metaphysik der Sitten, A 182 s. 45 A meta declarada da filosofia da religião consiste em "representar [...] somente

aquilo que, no texto da religião tida como revelada, isto é, no texto da Bíblia, pode ser reconhecido pela simples razão". Prefácio a Streit der Fakultaten, A XI, nota de rodapé.

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republicanos organizados sob leis jurídicas. E a moralidade, que é tida como interna, só pode aflorar passando pelo médium do direito coativo, o qual permite que ela deixe pegadas visíveis no comportamento legal.

Ora, Kant desfaz-se desse forte dualismo entre dentro e fora, entre moralidade e legalidade, quando traduz a idéia de uma igreja geral, invisível e inscrita em todos os tipos de associação religiosa para o conceito de "comunidade ética". Como resultado de tal passo, o "reino dos fins" se evade da esfera da interioridade e assume uma figura institucional - em analogia com uma comunidade eclesial inclusiva e universal: "Podemos designar [...] uma relação entre homens sob simples leis da virtude [...] uma relação ética e, à medida que tais leis são públicas, podemos caracterizá-la como relação ético-cidadã (ethisch-bürgerlich) (para diferenciá-la da relação jurídico-cidadã) (rechtlich-bürgerlich).,,46Tai passagem clarifica sobremaneira o fato de que a formação dos conceitos e teorias da filosofia depende de uma fonte de inspiração que se alimenta da tradição religiosa.

Ao elaborar a concepção de um "estado ético-cidadão" de uma comunidade organizada apenas de acordo com leis da virtude, o qual surge ao lado do "estado jurídico-burguês", Kant fornece uma nova possibilidade de interpretação, intersubjetivista, do "fim terminal de seres do mundo racionais". Através disso, o próprio dever de colaborar na realização do fim terminal adquire um novo sentido. Até agora, a "realização" do bem supremo tinha de ser pensada mais como uma "espécie de resultado" (Hervorgehen) - não intencionado pelo homem - constituído pela soma de efeitos e efeitos colaterais complexos e imprevisíveis de todas as ações morais. Por isso, o curioso "dever" de colaborar na realização do fim terminal não poderia ter uma influência direta sobre a orientação do agir, apenas, quando muito, sobre a motivação para o agir. Somente as leis morais possuem força orientadora, pois, segundo elas, cada pessoa decide por si mesma o que o dever exige em cada situação. Mesmo quando o estado ideal da convergência entre virtude e felicidade não é referido apenas à salvação

Religion, A 122/B 129 s.

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individual, mas também àquilo que é "melhor para o mundo", isto é, para todos, o "superdever" de promover tal estado continua vazio de sentido; porquanto ele não pode ser concretizado a não ser pelo caminho indireto da obediência individual a deveres simples.

Cada um em particular está ligado "diretamente" à lei dos costumes. Ora, isso se modifica quando o bem supremo, que toda pessoa justa espera promover mediante um agir moral perseverante, é substituído pela visão de uma forma de vida que Kant traduz pelo conceito de comunidade ética. Porquanto, a partir de agora, as práticas locais de uma vida em comunidade, que tal forma de vida antecipa mesmo que de forma truncada, e que incorpora de forma mais ou menos aproximada, podem constituir "pontos de união" para tentativas cooperativas de uma aproximação maior: "Pois somente assim pode-se esperar uma vitória do bom princípio sobre o mau. A razão que dita leis morais, além de prescrever leis a cada um em particular, ainda empunha a bandeira da virtude como ponto de união para todos os que amam o bem, a fim de que eles se reúnam sob ela[...]."47 Nesta perspectiva, o dever individual de promover o bem supremo transforma-se no dever de membros de comunidades distintas, já existentes, de se unir em um "Estado ético", isto é, em um "reino da virtude" cada vez mais abrangente e inclusivo.48

( 6 ) Entretanto, a razão não é capaz de recuperar a idéia de uma aproximação do reino de Deus sobre a terra - a qual extrapola a lei dos costumes - lançando mão apenas dos postulados de Deus e da imortalidade. Muito mais do que isso, a intuição que se liga a tal projeção lembra que o correto tem de procurar respaldo no bem concreto de formas de vida melhores e melhoradas. As imagens orientadoras de formas de vida não-fracassadas que poderiam auxiliar, de certa forma, a moral, pairam ante nossos olhos - mesmo sem a certeza da proteção divina - como um horizonte do agir que é, ao mesmo tempo, confinante e propiciador de abertura, porém, não como

Religion, A 12 l/B 129. Religion, A 122/B 130.

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a comunidade ética kantiana no singular e também não nos contornos rígidos daquilo que é devido. Elas nos inspiram e nos encorajam a tentativas cautelosas de cooperação, e a repetições teimosas de um mesmo tipo, que mui freqüentemente transcorrem sem sucesso algum porque elas só podem ser bem sucedidas em circunstâncias felizes.

A doutrina dos postulados deve sua existência à introdução de uma obrigação {Pflicht) problemática que permite ao "dever ser" {Sollen) ultrapassar a tal ponto o "ser capaz de" (Kõnnen) humano, que tal assimetria precisa ser sanada pela ampliação do "saber" (Wissen) acerca da fé. Tal estado de coisas reflete também o dilema no qual Kant se enreda por causa do conflito provocado por sua intenção de considerar a religião como oponente e, ao mesmo tempo, herdeira. De um lado, a religião é, para ele, fonte de uma moral que satisfaz a medidas da razão; de outro lado, ela pode ser tida como um refúgio desde que a filosofia a purifique da ganga do obscurantismo e do fanatismo. Entretanto, a tentativa de uma apropriação reflexiva de conteúdos religiosos entra em conflito com o objetivo declarado da crítica da religião, que consiste em julgar filosoficamente sobre sua verdade e falsidade. A razão não pode realizar, ao mesmo tempo, duas coisas opostas: comer o bolo da religião e, ao mesmo tempo, conservá-lo. Mesmo assim, a intenção construtiva da filosofia da religião, kantiana, continua merecendo nosso interesse quando nossa questão é: será que - na perspectiva de um pensamento pós-metafísico - o uso prático da razão poderia aprender algo da força de articulação das religiões mundiais?

A tradução da idéia do poder de Deus sobre a terra para o conceito de uma república sob leis virtuosas revela de maneira exemplar que Kant liga a delimitação crítica, e, ao mesmo tempo, autocrítica, entre saber e fé, com a atenção para a possível relevância cognitiva de conteúdos conservados em tradições religiosas. No seu todo, a filosofia moral de Kant pode ser interpretada como tentativa de reconstruir o dever-ser {Sollen) categórico dos mandamentos divinos por um caminho discursivo. Em seu todo, a filosofia transcendental tem o sentido prático de transladar o ponto de vista transcendente de Deus para uma perspectiva intramundana funcionalmente equivalente e de

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conservá-la ai como ponto de vista moral.49 A tentativa visando desinflacionar racionalmente o modo da fé sem, contudo, liquidá-lo, também se alimenta de tal genealogia.

O próprio idealismo kantiano, destituído de ilusões, é expressão de uma atitude cognitiva que liga uma abertura honesta para os protestos pessimistas da razão teórica a uma decisão otimista de uma razão prática que não se deixa intimidar. Tal combinação preserva um "habitus da razão", o qual tende naturalmente ao ceticismo, de cair na indiferença derrotista ou na autodestruição cínica. É bem verdade que Kant não conseguiu superar o umbral de uma consciência histórica, cuja relevância foi reconhecida, logo a seguir, por Hegel. Ele ainda entendia a apropriação reflexiva de conteúdos religiosos na perspectiva de uma substituição gradativa da religião positiva por uma fé pura na razão, e não como a decifração genealógica de um contexto de surgimento histórico da qual a própria razão participa. Porém, de um certo modo, a doutrina dos postulados já reconcilia a razão, que tem certeza de si mesma e que critica a religião, com a intenção de uma tradução salvadora de conteúdos religiosos.

Nosso olhar hermenêutico sobre a filosofia da religião, de Kant, passa naturalmente pelo filtro de duzentos anos de influência histórica. Nesse contexto, lembro-me do caráter apologético da obra de Hermann Cohen, o filósofo da religião mais importante no âmbito do neokantismo: ele utiliza a religião da razão, de Kant, como chave para uma interpretação detalhada das fontes literárias da tradição judaica.50 Contra o anti-semitismo intelectual de seu entorno, ele pretende colocar em relevo o conteúdo humanista e o sentido

HABERMAS, J. "Eine genealogische Betrachtung zum kognitiven Gehalt der Moral", in: id., Die Einbezieliung des Anderen. Frankfurt/M., 1996, 11-64, aqui, 16 ss.

COHEN, H. Religion der Vernunft aus den Quellen des Judentums (Reimpressão da segunda ed. 1928), Wiesbaden, 1988, 4: "Uma vez que o conceito de religião me leva às fontes literárias dos profetas, tenho a dizer que elas permanecem mudas e cegas se eu não me aproximar delas com um conceito na mão - certamente instruído por elas, porém, não simplesmente conduzido por sua autoridade - o qual coloquei na base do ensinamento que elas me forneceram."

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universalista do Antigo Testamento, além de tentar comprovar com meios filosóficos a igualdade de status entre judaísmo e cristianismo.51

Entretanto, as três figuras mais influentes nas quais pretendo concentrar-me, a seguir, não são herdeiras diretas de Kant. Hegel, Schleiermacher e Kierkegaard reagiram às delimitações enüe fé e saber, estabelecidas pela crítica da religião, de Kant, de modo inteiramente distinto. E o pensamento dos três teve grande influência. Eles estavam convencidos de que Kant, crítico da religião e filho do século XVIII, tinha ficado preso a uma forma abstrata da Aufklarung, privando, destarte, as tradições religiosas de sua verdadeira substância. É bem verdade que nesse capítulo da história da repercussão do pensamento kantiano, dominado pelo protestantismo - o que não aconteceu por mero acaso - luta-se especialmente por uma descrição não-fragmentada do "fenômeno religioso" e pelo estabelecimento correto dos limites entre razão e religião. Limitar-me-ei a delinear, em pinceladas bem amplas, as três linhas metacríticas que se originam, respectivamente, em Hegel, Schleirmacher e Kierkegaard e atingem até a constelação atual.

( 7 ) Kierkegaard critica Kant como o iluminista que apreende a religião mediante conceitos abstratos da razão cognitiva e menospreza o seu conteúdo essencial caracterizando-o como algo meramente positivo. Ao dar esse passo, a razão subjetiva estaria obtendo apenas uma vitória de Pirro sobre o pretenso obscurantismo; e a falsa autodelimitação transcendental da razão produziria, enquanto pen-dant seu, um conceito de religião truncado de modo positivista.52 E

•1I BRUMLIK, Micha saúda a obra como expressão do "humanismo hebreu" in: id. Vernunft und Offenbarung. Berlim/Viena, 2001, 11-28.

52 HEGEL, G W. F. Glauben und Wissen. Obras, vol. 2, Frankfurt I986, 288: "Após a vitória gloriosa da razão esclarecedora sobre aquilo que ela, à luz de sua mínima compreensão religiosa, considerava como fé oposta a ela descobrimos, no entanto, que nem o positivo que ela combateu, a religião, continuou sendo religião nem ela, que venceu, continuou sendo razão." Cf. nesse contexto, SCHMIDT, Th. M. Anerkennung und absolute Religion. Stuttgart-Bad Cannstatt, I997.

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possível entender tal crítica como radicalização do princípio kantiano, à proporção que ela própria pretende superar a oposição entre fé e saber no interior do horizonte de um saber ampliado de modo racional. Hegel certamente entende, de um lado, a história das religiões na amplitude de suas práticas rituais e de seus mundos de representações; de outro lado, porém, as interpreta como genealogia de uma razão abrangente, cujo porta-voz é a filosofia. Ele se apega, além disso, às pretensões do esclarecimento filosófico que justifica o conteúdo de verdade da religião de acordo com as medidas da razão.53

De outro lado, no lugar de uma apropriação seletiva de conteúdos religiosos isolados por uma razão consciente de seus limites, entra em cena a superação consciente da religião em seu todo. A filosofia reconhece o que é racional no pensamento representador da religião. Todavia, o casamento desproporcional que o abraço da filosofia impõe, no final das contas, à religião subjugada, acarreta para o parceiro aparentemente superior um resultado de dois gumes. O conceito do espírito absoluto que se aliena em natureza e história, a fim de recuperar-se reflexivamente nesse "outro" permite à filosofia incorporar o pensamento fundamental do cristianismo e fazer da encarnação de Deus o princípio do próprio pensamento dialético -isso, implica, no entanto, um preço dobrado: De um lado, a ultrapassagem dos limites da razão transcendental, traçados numa autocrítica, relançam a filosofia de volta à metafísica; de outro lado, o fatalismo de um espírito que gira em torno de si mesmo - e que, após ter alcançado o cimo do saber absoluto precisa ser relançado de volta á natureza - fecha precisamente a dimensão escatológica de um novo começo, para o qual se dirige, apesar de tudo, a esperança de salvação dos crentes.54

A dupla desilusão - a da recaída numa metafísica e a da retirada quietista de uma teoria que abandona a prática - incitou os discípulos

53 HEGEL, G. W. F. Vorlesungen über die Philosophie der Religion II, Obras, Vol. 17, 318: "O verdadeiro conteúdo da fé cristã tem de ser justificado pela filosofia."

54LÕWITH, K. "Hegels Aufhebung der christlichen Religion", in: id. Zur Kritik der christlichen Überlieferung. Stuttgart, I966, 54-96.

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da esquerda hegeliana a radicalizarem a crítica da religião, de Kant, num outro sentido, materialista. Feuerbach e Marx contrapõem à história idealista do desenvolvimento do espírito absoluto a visão de uma razão intersubjetiva, encarnada na linguagem e no corpo e situada na história e na sociedade. Além disso, atribuem primazia à razão prática, não à teórica. E bem verdade que eles entendem a religião, de modo sóbrio, como um reflexo de condições vitais dilaceradas e como o mecanismo que permite à vida alienada ocultar-se de si mesma.55 A sua crítica da religião antecipa uma explicação psicológica de Freud, segundo a qual, a consciência religiosa preenche projetivamente precisões negadas. Em que pese isso, aqui, como em Kant, tal destruição de uma positividade falsa deve liberar um conteúdo de verdade que está à espera de uma concretização prática. E aqui como lá, é novamente a idéia do reino de Deus sobre a terra, interpretada como comunidade ética, que deve encontrar uma incorporação profana, agora na figura revolucionária de uma sociedade emancipada.56

Tal apropriação ateísta de conteúdos religiosos teve continuadores no marxismo ocidental. Aqui é fácil identificar os motivos teológicos, seja na filosofia da esperança de Bloch, fundada na filosofia da

" MARX, K. Einleitung zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosoplüe (1843), Berlim/DDR, 1976, 378: "O homem, isto é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Esse Estado, essa sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo porque eles se encontram em um mundo invertido. A religião é a teoria geral desse mundo [...], seu entusiasmo, sua sanção moral, sua complementação festiva, sua razão geral de justificação e de consolo. Ela é a realização fantástica da natureza humana porque a natureza humana não possui uma realidade verdadeira. A luta contra a religião é, pois, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião."

54 FEUERBACH L. Grundzüge der Philosophie der Zukunft (1843), § 59: "O ser humano individual não tem, para si mesmo, a natureza do homem, seja enquanto ser moral, seja enquanto ser pensante por si mesmo. A natureza do homem só está contida na comunidade, na unidade dos homens com os homens - uma unidade, porém, que se apoia somente na realidade da diferença entre 'eu' e 'tu'." Aqui Feuerbach antecipa motivos essenciais da filosofia do diálogo, de Martin Buber; cf. nesse contextoTHEUNISSEN, M. DerAndere (1964), Berlim, 1977,243-373.

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natureza, seja nos esforços de salvação, de Benjamin, desesperados, porém, inspirados messianicamente, seja no negativismo gretado de Adomo. De outro lado, certas concepções filosóficas encontraram, inclusive, ressonância no interior da própria teologia. Encontram-se nesse caso Johann Baptist Metz e Jürgen Moltmann.

Desde Hegel até Marx e o marxismo hegeliano, a filosofia tenta, seguindo as pegadas semânticas do "povo de Deus" deixadas para trás por Kant, apropriar-se do conteúdo de libertação coletiva encontrável na mensagem de salvação judeu-cristã. Entretanto, para Schleiermacher e Kierkegaard, a salvação individual - a qual levanta as maiores dificuldades para a filosofia orientada para o geral - constitui o núcleo da fé. Esses dois pensadores são cristãos, porém, pós-metafísicos. O primeiro assume alternadamente dois papéis que Kant separara: o do teólogo e o do filósofo; o outro mergulha no papel do escritor religioso, passando a enfrentar os desafios de um Sócrates que filosofa à maneira kantiana.

(8) Diferentemente de Hegel, Schleiermacher respeita as balizas fincadas pela crítica à metafísica, elaborada por Kant. E bem verdade que ele compartilha com Hegel a reserva contra uma crítica que reencontra na religião apenas uma moral. Em que pese isso, no que respeita à crítica do conhecimento, Schleiermacher mantém firme a auto-referência da razão subjetiva. Ao elaborar, no horizonte dos conceitos fundamentais da filosofia da consciência, o sentido e o direito próprios do elemento religioso, ele desloca a fronteira entre fé e saber para além da simples razão, tentando favorecer, por este traçado, a fé autêntica. Na sua qualidade de filósofo, Schleiermacher não se interessa pelos conteúdos da fé religiosa - "a fé que se acredita" (fides quae creditur) - mas pela questão: o que significa, de um ponto de vista performativo, ser um crente? - A fé pela qual se acredita" (fides qua creditur).51 Ele distingue entre uma teologia científica que elabora

"Isso explica por que Bultmann pode encontrar um caminho que o leva de Schleiermacher a Kierkegaard: cf. a contribuição de F. Nüssel sobre Bultmann in: NEUNER, R, WENZ, G. (eds.) Theologen des 20. Jahrhunderts. Darmstadt, 2002, 70-89.

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dogmaticamente conteúdos nos quais se acredita e uma piedade devota que inspira e serve de base à conduta de vida pessoal do crente.

Schleiermacher amplia, por certo, a arquitetônica das faculdades da razão kantiana. Contudo isso, ele não a implode, mesmo quando cria um lugar transcendental próprio para a fé religiosa, o qual fica situado ao lado do saber, da intelecção moral e da experiência estética. A partir de agora, ao lado das já conhecidas faculdades da razão, surge a religiosidade da pessoa crente que, no sentimento da devoção toma-se imediatamente consciente de sua própria espontaneidade e de sua dependência pura e simples de um outro. Schleiermacher põe à mostra o modo como a autocertificação e a consciência de Deus se cruzam. O famoso argumento toma como ponto de partida a posição intramundana de um sujeito cuja característica principal consiste na sua capacidade receptiva e na auto-atividade, bem como numa ação recíproca entre o seu modo de relacionar-se com o mundo, o qual é ativo e passivo.58 Para um sujeito ftnito que se volta para o mundo é impensável uma liberdade absoluta, assim como é impensável uma dependência absoluta. Do mesmo modo que uma liberdade absoluta é inconciliável com as barreiras colocadas pelo mundo ao agir situado, assim também uma dependência absoluta não se coaduna com a distância intencional do mundo, sem o qual, estados de coisas não podem ser apreendidos de modo objetivador nem manipulados. Todavia, se este sujeito, ao tornar-se consciente da espontaneidade da própria vida consciente, se desvia do mundo, ele é sacudido por um sentimento da mais absoluta dependência: na realização da autocertificação intuitiva, ele se conscientiza da dependência de um outro, o qual - aquém da diferença entre aquilo que recebemos do mundo e aquilo em função do qual agimos no mundo - toma possível nossa vida consciente.

Tal análise transcendental do sentimento de devoção proporciona à experiência religiosa uma base geral e independente, tanto da razão teórica como da prática, sobre a qual Schleiermacher desenvolve uma alternativa bem-sucedida para o conceito de "religião da razão" no

SCHLEIERMACHER, F. Der christliche Glaube (1830)/31 ),§§ 3-5.

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iluminismo. A experiência religiosa que lança raízes na "consciência de si mesma imediata" pode reclamar co-originariedade com um uma razão que brota da mesma raiz. A filosofia transcendental da religiosidade, de Schleiermacher, possui, inclusive, vantagens, quando confrontada com o conceito de religião da razão, já que tem condições de fazer jus ao pluralismo religioso na sociedade e no Estado sem prejudicar a positividade de tradições religiosas recalcitrantes, isto é, sem reduzir nem eliminar o direito delas. O cunho pietista da interioridade religiosa conduz ao segundo argumento, segundo o qual, o sentimento antropológico e geral da dependência ramifica-se em diferentes tradições, tão logo o sentimento piedoso é articulado de uma certa maneira, isto é, alçado por sobre o umbral da expressão simbólica adquirindo a figura prática de uma fé praticada de modo eclesial na socialização comunicativa de crentes.

A compreensão filosófica de que todas as religiões têm a mesma origem racional abre para as igrejas - e para a interpretação dogmática dos respectivos credos eclesiais - a possibilidade de encontrar um lugar legítimo em cápsulas diferenciadas das sociedades modernas. Sob tal premissa, elas podem, sem nenhum prejuízo de sua respectiva pretensão de verdade vis a vis não-crentes ou crentes de outras confissões, exercitar a tolerância recíproca, reconhecer a ordem secular do Estado liberal e respeitar a autoridade das ciências que se especializam num saber sobre o mundo. A justificação filosófica da experiência religiosa em geral liberta a teologia de um peso de prova desnecessário. Provas da existência de Deus, metafísicas, bem como especulações similares, são supérfluas. E ao lançar mão dos melhores métodos científicos para a elaboração de seu núcleo dogmático, a teologia estabelece-se, sem nenhum alarde, nas universidades, ao lado de outras disciplinas práticas. Todavia, o protestantismo cultural do final do século XIX e do início do século XX chama a atenção para o preço pago por Schleiermacher por esta elegante reconciliação entre religião e modernidade, entre fé e saber. A integração social da Igreja e a privatização da fé retiram da referência religiosa à transcendência sua força explosiva capaz de influenciar o interior do mundo.

A pessoa e a obra de Adolf von Harnack levantaram a suspeita de que a seriedade religiosa tinha passado por um processo de

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amenização. Ora, a adaptação moderadora da religião ao espírito da modernidade priva o agir solidário da comunidade religiosa da força de uma práxis reformadora no mundo, especialmente da energia de uma práxis revolucionária. Sob tais premissas, a presença de Deus retira-se para as profundezas da alma individual: "O reino de Deus chega à medida que ele vem ao indivíduo e habita na sua alma."59 Max Weber e Ernst Troeltsch entendem a religião do mesmo modo que Schleiermacher, como uma formação da consciência que mantém sua autonomia e sua força configuradora nas sociedades modernas. E claro que, para eles, o sentido da tradição religiosa só pode ser captado por meio de evidências empíricas. Para extrair algum tipo de conteúdo religioso normativo da esteira do historismo, eles têm de lançar mão de uma reflexão astuta sobre as raízes cristãs da cultura individualista atual, esclarecida em termos liberais, na qual eles reencontram sua própria autocompreensão.60

(9) A obra de Kierdegaard apresenta-se como um contraponto à análise schleiermacheriana, apaziguadora, de uma existência devota reconciliada com a modernidade. Ele compartilha, inicialmente, com Marx, seu coetâneo, a consciência de crise que acompanha uma modernidade inquieta. Não obstante isso, distanciando-se dele, ele busca o caminho que permite sair do pensamento especulativo e da sociedade burguesa corrompida, o qual não consiste, segundo ele, numa inversão da relação entre teoria e práxis, mas na confecção de uma resposta existencial à questão luterana dirigida a um Deus misericordioso, que o atormenta. A consciência do pecado,

HARNACK, A. v. Das Wesen des Christentums (ed. Por RENDTORFF, T.), Gütersloh, 1999, 90 ; cf, tam.bém WENZ, G. "A. v. Harnack -Herzensfrõmmigkeit und Wissenschaftsmanagement", in: NEUNER, WENZ (2002), 33-52.

GRAF, F. W., TROELTSCH, E. "Theologie ais Kulturwissenschaft des Historismus", in: NEUNER, WENZ (2002), 53-69; sobre Max Weber cf. SCHLUCHTER, W. "Zukunft der Religion", in: id. Religion und Lebensführung. Vol. 2, Frankfurt/M., 1988, 506-534.

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radicalizada, faz com que a autonomia da razão caia na sombra do poder pura e simplesmente heterogêneo daquele Deus que é irreconhecível, atestado apenas pela história e que se comunica a si mesmo. Tal lance neo-ortodoxo que contradiz a autocompreensão antropocêntrica da modernidade constitui um estágio extremamente importante na história da filosofia da religião inspirada em Kant. Porquanto ele fortalece o traçado de limites entre a razão e a religião, desta vez partindo do continente da fé da revelação. E neste procedimento demarcatório, Kierkegaard emprega a autolimitação transcendental da razão kantiana contra o próprio antropocentrismo inerente a ela. Não cabe à razão traçar limites à religião, já que a experiência religiosa indica á razão o espaço que ela não pode ultrapassar. No entanto, Kierkegaard sabe muito bem que a razão só pode ser batida com suas próprias armas. Por isso, ele tem convencer "Sócrates" - que nada mais é do que a figura de seu próprio opositor kantiano - de que a moral da consciência, pós-convencional, só poderá tornar-se um ponto de cristalização de uma conduta de vida consciente quando for inserida em uma autocompreensão religiosa.61

Kierkegaard descreve desta maneira, inspirando-se em formas de vida patológicas, estágios sintomáticos de uma "doença para a morte", salutar, e figuras de um desespero inicialmente reprimido e que, a seguir, ultrapassa o limiar da consciência obrigando, finalmente, a uma conversão da consciência centrada no eu. Essas diferentes figuras do desespero constituem outras tantas manifestações do fracasso da relação existencial fundamental que poderia tomar possível um ser "si mesmo" (Selbst) autêntico. Kierkegaard descreve os estados inquietantes de uma pessoa que, de um lado, se conscientiza de que está determinada a tornar-se um "si mesmo" mas que, de outro lado, foge para uma das seguintes alternativas: "desespera de querer ser alguém ou, num nível ainda mais baixo: desespera de querer ser "si mesmo" ou, descendo para o nível mais baixo de todos: desespera de

61 HABERMAS, J. "Begründete Enthalsamkeit. Gibt es postmetaphysische Antworten auf die Frage nach dem 'richtigen Leben'?", in: id. Die Zukunft der menschlkhen Natur. Frankfurt/M., 2001, 11-33.

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querer ser um outro diferente do que se é."62 Quem, no final das contas, reconhece que a fonte do desespero está, não nas circunstâncias, mas nos próprios movimentos de fuga, empreenderá a tentativa recalcitrante, porém, mesmo assim, infrutífera, de "querer ser alguém".

O fracasso desesperado desse derradeiro ato de força - do querer ser "si mesmo" que se empertiga sobre si mesmo - tem como finalidade mover o espírito finito para o transcender de si mesmo e, com isso, também para o reconhecimento da dependência de um outro em sentido absoluto, no qual se fundamenta a própria liberdade. Tal reviravolta marca o ponto de virada, isto é, a superação da autocompreensão secularizada da razão moderna: "À proporção que se relaciona consigo mesmo e à proporção que pretende ser ele mesmo, o "si mesmo" apóia-se de modo cristalino sobre o poder que o instituiu."6, Somente tal consciência torna possível um ser si mesmo autêntico.64 A razão que reflete sobre o fundamento mais profundo descobre sua origem num outro; e ela tem de reconhecer tal poder, que é também um destino, a fim de não perder sua orientação no beco sem saída de um híbrido apoderar-se de si mesma.

Em Schleiermacher, tal conversão da razão tem início na autoconsciência de um sujeito que conhece e age; em Kierkegaard, na historicidade da autocertificação existencial. Em ambos os casos, uma razão que se torna consciente dos seus limites ultrapassa a si mesma, indo em direção a um outro: seja no sentimento da dependência protegida de um elemento cósmico que tudo abrange ou na esperança desesperançada em um evento histórico de salvação. A diferença decisiva consiste no fato de que Kierkegaard entende a conversão da razão como abdicação da razão perante a autoridade do Deus cristão que se comunica a si mesmo; ao passo que Schleiermacher mantém a visão antropocêntrica e fundamenta filosoftcamente a experiência religiosa fundamental, da qual derivam as tradições positivas da fé.

62 KIERKEGAARD, S. Die Krankheil zum Tode (ed. por RICHTER, v. L.), Frankfurt/M., 1984,51.

65 Ibid., 14. MTHEUNISSEN, M. Das Selbst auf dem Grundder Venweiflung. Meisenheim-

Frankfurt/M., 1991.

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Para Karl Barth, tal compreensão filosófica da religiosidade e da religião constitui pura e simplesmente "incredulidade" - já que a revelação cristã é, pura e simplesmente, "superação da religião".65 Barth e Bultmann fazem coro a Kierkegaard, a fim de destacar, com perseverança, o sentido normativo próprio da fé na revelação e a existência da fé cristã contra a corrente do pensamento histórico, contra a pressão de secularização da sociedade e contra a privatização da fé. Eles destacam na mensagem da fé cristã o elemento não integrável, a oposição irreconciliável entre fé e saber. Todavia, tal confrontação se desdobra sobre a base de um pensamento pós-metafísico, o qual é capaz de impedir que a crítica á modernidade seja vítima das presas do antimodemismo reacionário (o posicionamento político de Barth e Bultmann quanto ao regime nazista revelam bem isso).

De outro lado, a filosofia da existência assume a herança de Kierkegaard. Ela o acompanha no caminho para uma ética que caracteriza o modo histórico de uma conduta de vida consciente e autocrítica como sendo puramente formal.66 Karl Jaspers tenta, além disso, reconstruir em termos racionais a tensão radical entre a transcendência e o elemento intramundano na visão secular de uma "clarificação da existência". E o preço que ele tem de pagar por isso se contabiliza na equiparação da pretensão de validade das proposições filosóficas ao status de verdades de fé. Ele generaliza para toda a filosofia o conceito kantiano de "fé da razão", talhado para os postulados de Deus e da imortalidade, e distingue a "fé filosófica" do modo de conhecer da ciência. Tal procedimento enseja uma similaridade familiar entre as doutrinas filosóficas e as tradições religiosas. Ambos os lados encontram-se em concorrência com os poderes da fé. A filosofia pode, quando muito, esclarecer o caráter dessa disputa; mas não pode decidir a própria disputa com argumentos.67

M PFLEIDERER, G. "Karl Barth - Theologie des Wortesals Kritik der Reli-gions", in: NEUNER, WENZ (2002), 124, aqui 135.

66 HABERMAS (2001) , 11-33. 67 JASPERS. K. Der philosophische Glaube angesichls der Offenbarung.

Munique, 1984. 267

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(10) O que nos ensina esse rude traçado histórico da atualidade da filosofia da religião kantiana? Tal pergunta se coloca hoje, porém, na perspectiva de uma ameaça que coloca em risco o conteúdo normativo da modernidade configurada no Ocidente. Hegel caracterizara as conquistas da modernidade lançando mão dos conceitos "autoconsciência", "autodeterminação" e "auto-realização". A autoconsciência decorre de um incremento da reflexividade no contexto de uma revisão permanente de tradições fluidificadas; a autodeterminação é fruto da disseminação do universalismo individualista e igualitário no direito e na moral; ao passo que a auto-realização acompanha a pressão à individuação e a um autocontrole sob as condições de uma "identidade-eu" extremamente abstrata.68 Tal autocompreensão da modernidade também é resultado da secularização, portanto, da desintegração das coerções oriundas de religiões detentoras de poder político. Hoje em dia, no entanto, aquela consciência normativa corre perigo porque sofre ameaças, não somente "a partir de fora" devido a pretensões reacionárias de uma contra-modernidade fundamentalista, mas também "a partir de dentro", pela própria modernização que está saindo fora dos trilhos. A divisão do trabalho entre os mecanismos integradores do mercado, da burocracia e da solidariedade social deixou de ser equilibrada, o que permitiu um deslocamento na direção de imperativos econômicos que estimulam apenas um tipo de convivência dos sujeitos agentes entre si, isto é, a convivência orientada pelo sucesso. A familiarização com novas tecnologias que interferem profundamente nos substratos da pessoa humana, os quais eram tidos, até agora, como "naturais" fomenta, além disso, uma autocompreensão naturalista nos sujeitos que vivem e se comunicam entre si.69 Tal abalo da consciência de normas manifesta-se também na insensibilidade cada vez maior para com patologias sociais - para com uma vida fracassada em geral. Ora,

HABERMAS, J. Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt/M 1985, 390-435.

HABERMAS, J. "Auf dem Weg zu einer liberalen Eugenik?" in: id (2001) 34-126.

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uma filosofia que se tomou sóbria em termos de metafísica não tem mais condições de compensar tal falta, a qual já tinha sido farejada por Kant. Ela não dispõe mais daquele tipo de argumentos capazes de isolar uma única imagem de mundo motivadora, e de colocá-la, a seguir, acima de todas as outras; ou seja, uma imagem de mundo capaz de preencher expectat ivas exis tencia is , de or ientar normativãmente uma vida em sua totalidade ou de distribuir consolo. Tivemos ocasião de averiguar que Kant, ao formular sua doutrina dos postulados da religião, pretendia extrair da razão prática mais do que ela realmente suporta.

O que ele intencionava com o modo da fé racional tem mais a ver com a compreensão de si mesmos de membros de comunidades religiosas e de grupos culturais em geral, os quais são determinados por fortes tradições que cunham a identidade. Tal modo de fé equipara-se aos enfoques proposicionais que nós assumimos perante modos de vida que são nossos e, por isso, tidos como autênticos. Nós só vivemos com a certeza de um modo de vida quando estamos convencidos de seu valor. Entretanto, existe uma pluralidade de modos de vida autêntica, de tal sorte que, neste contexto, a certeza e a validade em termos de verdade não coincidem, o que não deixa de ser curioso. Por mais certos que estejamos de tal autocompreensão existencial, não podemos confundir juízos de valor, subjacentes, com convicções morais generalizáveis (ou, muito menos ainda, com proposições teóricas). Em todo caso, nós não atribuímos a Orientações valorativas, que têm para nós - e para outros membros tal como nós - uma significação existencial, uma pretensão ao reconhecimento universal.

Temos de assegurar inicialmente, contra Kant, que as representações do reino de Deus ou de uma "comunidade ética" surgem sempre no plural. E temos de saber que não foi Hegel, e sim Kant, isto é, o Kant da filosofia da religião, quem percebeu que a moral da razão, que surge no singular, e a institucionalização jurídico-constitucional dos direitos humanos e da democracia necessitam de uma inserção no denso contexto de uma forma de vida. Porquanto eles adquirem força impulsionadora mediante a inserção nos multifacetados contextos de imagens de mundo e de modos de vida, nos quais estão inscritos fins

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terminais concorrentes. Existe entre eles um dissenso que a própria razão já pressupõe, o qual deve ser trazido à linguagem em discursos públicos, a fim de evitar que ele fique chocando a violência ou leve à inimizada surda. Nesse ponto, a filosofia, no papel de uma tradutora, pode promover uma concórdia moral, jurídica e política caso ela consiga esclarecer a multiplicidade legítima dos projetos de vida substanciais de crentes, de crentes que crêem de forma diferente e de incrédulos sem assumir a postura de um concorrente que sabe mais do que os outros. Nesse papel de intérprete, ela pode, inclusive, contribuir para renovar sensibilidades, pensamentos e motivos que se originam, é verdade, de outras fontes, mas que permaneceriam encapsulados caso o trabalho conceituai filosófico não os trouxesse á luz da razão pública.

A filosofia da religião, de Kant, estabeleceu medidas para dois papéis distintos da razão, a saber: para a contenção autocrítica de uma razão que traça limites e para o papel maiêutico de uma apropriação discursiva e pública dos potenciais particularistas encapsulados em linguagens especiais. Em que pese isso, para descobrir a luz que tal filosofia da religião pode lançar sobre a constelação formada pela fé e o saber em nossas sociedades pós-seculares é necessário considerar também a história de sua repercussão. Em cada uma das três linhas citadas - a do marxismo hegeliano, do protestantismo cultural e da dialética da existência - destaca-se um aspecto diferente de tal constelação modificada. Isso toma necessária uma breve observação no final das presentes considerações.

( 1 1 ) 0 olhar genealógico de Hegel consegue decifrar imagens sugestivas e a narrativa densa das religiões mundiais interpretando-as como história de um espírito que está à espera de uma apropriação reflexiva mediante o trabalho do conceito. Sob tal ângulo de visão, a filosofia pode encontrar, ainda hoje em dia - em tradições religiosas não-compreendidas e em práticas da vida da comunidade - intuições, compreensões perspicazes, possibilidades de expressão, sensibilidades e formas de trato, as quais não são de todo estranhas á razão pública, e que são, não obstante isso, por demais enigmáticas, o que impede a sua aceitação pura e simples pelo círculo comunicativo da sociedade

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em seu todo. Entretanto, tais conteúdos podem adquirir força regeneradora perante uma consciência normativa, que se encontra em via de encolhimento, caso se consiga desenvolver, a partir desse fundo, novos conceitos formadores de perspectiva. Por esse caminho, conceitos tal como "positividade", "alienação" ou "reificação" - os quais não escondem a sua procedência do pecado original e da proibição de criar imagens - conseguiram, em sua época, modificar uma percepção geral. Porquanto eles permitiriam, de um lado, que a marcha triunfal da modernização capitalista fosse visualizada numa outra luz, e que os sentidos, os quais não conseguiam mais captar patologias sociais, fossem sensibilizados. O uso crítico de tais conceitos tirou o véu da normalidade que cobria tais condições transformadas em hábito.

Após o colapso da civilização, o conceito benjaminiano de "solidariedade anamnética" com injustiças passadas - um conceito que, sem dúvida alguma, tenta cobrir a lacuna aberta pela perda da esperança em um juízo final - traz a recordação de uma responsabilidade coletiva, a qual se estende para além da obrigação moral.70 A idéia da aproximação do reino de Deus adotada no âmbito das fronteiras da simples razão apenas dirige o olhar para o futuro. Em geral , tal idéia desperta em nós uma consciência de responsabilidade coletiva pelos auxílios não prestados, pelos esforços cooperativos não envidados para evitar um mal que se aproximava ou simplesmente para melhorar uma situação que causa indignação. Certamente, apenas em momentos felizes, uma cooperação bem-sucedida pode estar à altura de tal expectativa. Todavia, a fraca responsabilidade pelo destino coletivo do próximo ou dos que se encontram distantes não é tirada de nossos ombros pelo simples fato de ela superar, na maioria das vezes, nossas forças falíveis levando, de quando em quando, à loucura espíritos fanáticos ou obstinados que desconhecem sua própria falibilidade.

PEUKER, H. Wissenschaftstheorie, Handlungstheorie, jündamentale Theologie. Düsseldorf, 1976,278 ss. Cf. também HABERMAS, J. Vorstudien undErganz.ungen zur Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt/M., 1984, 514 ss.

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Kant, Hegel e Marx fizeram com que a consciência secular sentisse o aguilhão da herança religiosa. Schleiermacher e Kierkegaard, no entanto, foram os primeiros a exigir da filosofia que aceitasse a religião como uma parceira a ser situada no mesmo nível. Eles liberaram o cristianismo dos laços que o prendiam à metafísica grega e o criticaram ou defenderam, ao nível de um pensamento pós-metafísico kantiano, contra os eruditos e os indiferentes entre seus detratores.

Schleiermacher, de sua parte, explica por que a religião não é algo simplesmente passado e fechado à complexidade da modernidade. Ele mostra como a Igreja, a consciência religiosa e a teologia podem afirmar-se, no interior de uma diferenciação cultural e social, na qualidade de figuras contemporâneas e, inclusive, funcionalmente específicas. Neste sentido, Schleiermacher apresenta-se como um precursor no quadro da consciência de uma sociedade pós-secular que procura estar em sintonia com a continuidade da religião num entorno em vias de secularização. Ao mesmo tempo, ele realiza, como que a partir de dentro, uma modernização da consciência religiosa que faz coro com as condições normativas inalienáveis do direito pós-convencional, com o pluralismo de visões de mundo e com o saber de mundo institucionalizado cientificamente. Sem sombra de dúvida, Schleiermacher, ao tentar uma reconciliação entre religião e modernidade utilizando meios filosóficos, aproxima-se de uma filosofia que pretende farejar na fé elementos do saber.

Kierkegaard foi o primeiro a confrontar o pensamento pós-metafísico com a heterogeneidade insuperável da fé que nega, descompromissadamente, a visão antropocêntrica do pensamento filosófico, o qual toma como ponto de partida o interior do mundo. Por intermédio deste desafio, a filosofia obtém uma relação dialética com o domínio da experiência religiosa. O núcleo dessa experiência subtrai-se às intervenções secularizadoras de uma análise filosófica do mesmo modo que a experiência estética, a qual também resiste a intervenções racionalizadoras. Com os conceitos do belo, do feio e do sublime, a filosofia consegue apenas circunscrever cuidadosamente a excitação sensível e desprovida de linguagem que impulsiona o jogo da faculdade do juízo reflexionante. A fonte da sensibilidade evade-

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se da faculdade cognitiva (Verstand). O mesmo acontece no caso de uma "transcendência" que irrompe no mundo a partir de fora. Por meio desse conceito, a filosofia circunscreve o abissal e o ascendente, inerentes a essa energia utópica, reinterpretando-os como "promoção do bem supremo" sobre cuja fonte uma razão destranscendentalizada não possui mais nenhum poder. Porquanto ela só é capaz de reconstruir uma transcendência discursivãmente, a partir de dentro.71

Entrementes, a filosofia só consegue nutrir-se, de modo racional, da herança religiosa até o momento em que se tomar inaceitável a fonte da revelação que lhe é contraposta de forma ortodoxa. As perspectivas centradas exclusivamente ou em Deus ou no homem não podem ser substituídas uma pela outra. Por isso, tão logo a fronteira entre fé e saber toma-se porosa e tão logo motivos religiosos se infiltram na filosofia sob nome falso, a filosofia perde seu sustentáculo, caindo em devaneios. A autocrítica da razão, de Kant, não tinha como tarefa apenas a de clarear a relação entre razão teórica e prática, mas também a de isolar a própria razão, em seu uso teórico e prático justificados, das extravagâncias de pretensões de conhecimento metafísicas, de um lado, e das certezas da fé religiosa, de outro lado. Tais determinações das fronteiras do pensamento pós-metafísico (e pós-cristão) podem servir-nos, ainda hoje, como medida, a partir do momento em que pretendemos obter orientação, na paisagem filosófica atual, sobre as relações entre fé e saber.

(12) A fim de obter indicadores de caminho para uma localização genérica, gostaria de fazer uma distinção entre três tipos de correntes de pensamento: (a) as que retomam à tradição da metafísica situando-se atrás das fronteiras traçadas por Kant; (b) as que se atêm às fronteiras do pensamento pós-metafísico; (c) e as que apagam novamente tais marcas à proporção que "saem das fronteiras" e imergem num pensamento criador de fronteiras.

(a) É bem verdade que a necessidade especulativa caracterizada por Platão, no momento em que propunha uma escalada até o cimo 71 HABERMAS, J. Texte und Kontexte. Frankfurt7M., 1991, 127-156.

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das idéias e uma libertação das peias da matéria, como sendo o berço da filosofia, jamais se aquietou. De sorte que a revivescência, ou melhor, a apropriação dialética - na plataforma pós-kantiana de uma consciência de si - de padrões de argumentação da tradição clássica também serve, ao menos de forma implícita, à recuperação de pensamentos relevantes para a salvação. Freqüentemente tais motivos se combinam com impulsos de crítica à modernidade e correspondentes intenções políticas (como é o caso de Leo Strauss). No entanto, a re-obtenção da tradição da metafísica ocidental nem sempre aponta para os inícios gregos, estando voltada mais para uma onto-teologia medieval (como no caso de Carl Schmitt). Neste caso, as feridas abertas pela modernidade não podem ser curadas pelo caminho da certificação contemplativa de uma ordem cósmica (do ente em geral), ou seja, pelo "caminho da salvação" que funda um parentesco entre a "vida teórica" (bios theoretikos) e as práticas de meditação orientais. Trata-se, neste caso, acima de tudo, da justificação metafísica de proposições fundamentais de doutrinas monoteístas, como era feito antes no neotomismo e como ainda acontece, hoje em dia, na filosofia islâmica. Em determinadas interpretações, é possível detectar um hegelianismo teológico ou a ontologia analítica como continuação da apologética clássica com outros meios.

(b) Kant elaborou uma diferenciação entre fé e saber, a qual pressupõe uma ruptura com a pretensão totalizadora do conhecimento metafísico. Tal guinada rumo ao pensamento pós-metafísico desvalorizou certos conceitos ontológicos e uma determinada estrutura de explicação, já que ela deveria trazer a filosofia para o mesmo plano da ciência moderna.72 E certo que, após tal guinada, a filosofia passou a adotar vários posicionamentos quanto à religião.

A apologética moderna, cuja importância não arrefeceu na filosofia da religião católica, distingue-se da apologética clássica não somente pelos meios do pensamento, como também pelo alvo da

H A B E R M A S , J. "Motive nachmetaphys ischen Denkens", in: id. Nachmetaphysisches Denken. Frannkfurt/M., 1988, 35-60.

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argumentação. Ambas não falam mais, é verdade, como a teologia "em nome" de uma tradição de fé, mas "referindo-se" a uma tradição de fé tida como verdadeira, e ambas aproveitam os princípios filosóficos atuais (da Teoria Crítica até Wittgenstein) com a finalidade de uma justificação racional dos componentes cognitivos da respectiva doutrina religiosa.71 Todavia, a apologética moderna não compartilha mais com a clássica a idéia de que a sociedade e a cultura seculares não têm nenhuma base espiritual. (Lado a lado com a moderna teologia) ela promove, levada por uma intenção, ao mesmo tempo crítica e apologética, a racionalização interna de uma tradição de fé com o objetivo de encontrar uma resposta dogmaticamente satisfatória para os desafios modernos do pluralismo religioso, do monopólio científico das ciências e do Estado de direito democrático.

O pólo oposto a tal reconstrução racional de conteúdos de fé é formado pelo cientificismo, no entender do qual, as convicções religiosas são per se inverídicas, ilusórias e destituídas de qualquer sentido. De acordo com tal interpretação, saber legítimo é somente aquele que pode apoiar-se nos conhecimentos aceitos pelas ciências experimentais institucionalizadas na sociedade. A validade de convicções religiosas, ela mesma, deve ser avaliada por essa mesma medida e somente por ela; por isso, o jogo da linguagem religiosa tem de ser recusado como sem importância cognitiva, já por simples razões gramaticais. Nesse caso, a avaliação prática da religião - a qual decide se ela deve ser combatida ou eventualmente tratada de modo terapêutico por ser tida como perigosa - depende apenas de uma pesquisa empírica sobre suas causas, funções e conseqüências. O cientificismo, não obstante isso, entra numa verdadeira concorrência com as doutrinas religiosas tão logo ele se propõe a desenvolver uma imagem do mundo extraída das ciências da natureza e quando estende

7,Cf. PEUKERT, B. H. Wissenschaftstheorie, handlungstheorie, fundamentale Theologie. Düsseldorf, 1976; LUTZ-BACHMANN, M. "Materialismus und materialismus-kritik bei max Horkheimer und Theodor W. Adorno", in; Festschrift Alfred Schmidt. Munique, 1991, 143-159; RICKEN F. Religionsphilosophie. Stuttgart, 2003.

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o olhar científico, objetivador, ao mundo da vida, à pessoa que age e vivência coisas exigindo dela uma auto-objetivação da consciência do dia-a-dia.

Caracterizo, finalmente, como pós-metafísicas num sentido substancial, portanto, não apenas num sentido puramente metódico, o qual atinge apenas os procedimentos e os meios do pensamento, as posições agnósticas que estabelecem uma distinção rigorosa entre saber e fé, porém, sem supor a validade de uma determinada religião (como é o caso da apologética moderna) e sem negar (como no caso do cientificismo) a essas tradições em geral um possível conteúdo cognitivo. E gostaria também de fazer uma distinção entre princípios racionalistas que suprassumem a substância da fé no conceito filosófico (seguidores de Hegel) e princípios dialógicos que se comportam ante as tradições religiosas de uma maneira, ao mesmo tempo, crítica e disposta a aprender (Karl Jaspers).74

Tal divisão pode servir de auxílio quando tentamos enfrentar a seguinte questão: será que a filosofia pode decidir por si mesma o que é verdade na religião e o que não é? Ou será que ela deixa as questões internas de validade da religião entregues às disputas de uma apologética racional, limitando-se a conservar conteúdos cognitivos extraídos das tradições religiosas? Tenho na conta de "cognitivos", nesse sentido, todos os conteúdos semânticos traduzíveis em um discurso que não se encontra sob o "efeito ferrolho" que acompanha normalmente verdades da revelação. Nesse discurso, contam apenas argumentos "públicos", por conseguinte, argumentos capazes de convencer também os que se encontram fora de uma comunidade particular de fé. A separação metódica dos dois universos de discurso combina com a abertura da filosofia para possíveis conteúdos cognitivos da religião. A "apropriação" acontece sem nenhuma intenção de intromissão ou de "assunção hostil". Em tal delimitação, ao mesmo tempo clara e tolerante, em relação à dogmática religiosa reflete-se, além do mais, o estado de consciência de cidadãos seculares

74 JASPERS, K. Der philosophische Glaube angesichts der Offenbcirung. Munique, 1962.

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conscientes de estarem vivendo numa sociedade pós-secular. Nessa atitude, a autocompreensão pós-metafísica de cunho kantiano distingue-se do neopaganismo, o qual se reporta - com ou sem razão - a Nietzsche.

(c) A posição da filosofia diante da religião não expressa apenas uma autocompreensão controversa da filosofia, ou seja, o que, segundo ela, ainda pode ser feito por ela mesma e o que não pode mais ser feito. A interpretação da relação entre filosofia e religião deixa entrever, além disso, uma dupla atitude: de recusa pura e simples da modernidade ou de aceitação crítica. De sorte que a força regeneradora da herança metafísica deve compensar uma falta sentida na modernidade. Em contrapartida, o pensamento pós-metafísico pode retirar-se dos conteúdos de uma formação do mundo a partir da natureza e da história, ou seja, da construção de um todo, porque ele simplesmente adota as diferenciações modernas, após terem passado pelo crivo de uma ressalva crítica; as três "Críticas", de Kant, revelam que o pensamento pós-metafísico integra-se às esferas de validade da ciência e da técnica, do direito e da moral, da arte e da crítica, já diferenciadas. O nexo, quase sempre implícito, entre posicionamentos quanto à religião, de um lado, e posicionamentos quanto à modernidade, de outro lado, eclode explicitamente no arraial pós-moderno dos herdeiros de Nietzsche.

Aqui aparece em primeiro plano, tematicamente, a intenção de superação - que no gesto é revolucionária e voltada ao futuro - de uma modernidade funesta e condenada. Desta feita, porém, o retorno a um "outro começo" conduz para um contexto situado atrás da "era axial" (Jaspers). Na modernidade, agarrada a si mesma e esquecida das tradições, deve culminar uma história da queda que já se constata nos inícios da metafísica e da religião, com Sócrates e Moisés. Resulta desse diagnóstico do tempo o escalonamento nivelador da religião -ela deve ser, do mesmo modo que a metafísica, expressão do esquecimento do ser. Somente os poderes originários de um Mythos que ainda está por vir conseguem levar a cabo a tão sonhada conversão que permite superar obstruções do Logos. Sem embargo, ao falar de

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um local situado além do Lagos, tal especulação neopagã sobre "a chegada ou a fuga dos deuses" é obrigada a apropriar-se de uma retórica na qual a força do argumento convincente foi substituída pela auto-encenação evocadora do "grande e oculto Indivíduo".

Ironicamente, nesses casos somente encontramos à nossa disposição um único vocabulário, a saber, o escatológico! O Heidegger tardio utiliza claramente as seguintes expressões: susto (Schrecken), risco (Wagnis) e salto (Sprung), decisão (Entschlossenheit) e serenidade (Gelassenheit), recordação (Andenken) e arrebatamento (Entrückung), privação (Entzug) e chegada (Ankunft), entrega (Hingabe) e dádiva (Geschenk), acontecimento (Ereignis) e volta (Kehre). Ao mesmo tempo, ele se vê obrigado a borrar os vestígios da procedência de tal jogo de linguagem. Pois a mensagem de salvação cristã, a cuja semântica ele não pode renunciar, foi por ele, mesmo assim, degradada como interlúdio ontoteológico insignificante de uma "dominação de igrejas, que já perdeu sua força".75 O confinamento da razão ao seu uso prático, levado a cabo por Kant na sua filosofia da religião, atinge hoje em dia, não tanto o fanatismo religioso, mas uma filosofia efusiva que apenas se aproveita das conotações proféticas de um vocabulário religioso e salvífico a fim de se eximir do rigor de um pensamento discursivo. Nesse contexto, Kant tem algo a nos dizer: porquanto sua filosofia da religião pode ser entendida, no seu todo, como advertência contra uma "filosofia religiosa".

" H E I D E G G E R , M. Beitrcige zur Philosophie. Vom Ereignis. Gesamtausgabe, vol. 65, Frankfurt/M., 1989.

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IV. TOLERÂNCIA 9. A TOLERÂNCIA RELIGIOSA

COMO PRECURSORA DE DIREITOS CULTURAIS.

(1) No século XVI, a palavra "tolerância" foi emprestada do latim e do francês, por conseguinte, no âmbito do grande cisma religioso. Nesse contexto de surgimento, ela tinha, inicialmente, o significado mais restrito de uma transigência com outras confissões religiosas.1 No decorrer dos séculos XVI e XVII, a tolerância religiosa passa a ser um conceito do direito. Governos redigem documentos de tolerância que impõem aos funcionários e a uma população ortodoxa um comportamento tolerante no trato com minorias religiosas -luteranos, huguenotes e papistas.2 O ato jurídico das autoridades que toleram pessoas e práticas de outras crenças estabelece a exigência de um comportamento tolerante com os membros de uma comunidade religiosa até então perseguida ou oprimida.

1 Cf. Allgemeines Handwõrterbuch der philosophischen Wissenschaften nebsl ihrer Literatur und Geschichte (ed. K.RUG, Willelm Traugot, 2a. ed. 1832): 'Tolerância (de tolerar, agüentar, aturar) é transigência [...]. Entretanto, aquela palavra é empregada na maioria das vezes no sentido estrito de transigência religiosa, assim como a palavra oposta intolerância é empregada no sentido de intransigência religiosa."

2 Em 1598 Henrique IV promulga o Edito de Nantes; cf. também o Act Con-cerning Religion do governo de Maryland no ano de 1649; o Toleration Act do rei inglês de 1689; ou ainda - como um dos últimos nessa série de "permissões" da autoridade - o Toleranzpatent, de José II. Em 1781.

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No inglês, mais do que no alemão, é possível uma distinção mais nítida entre "tolerance" enquanto virtude ou disposição para o comportamento e "toleratiori\ que constitui um ato jurídico. Nós empregamos a mesma expressão "tolerância" {Toleram) para designar ambas as coisas: tanto uma ordem jurídica que garante tolerância, como a virtude política do trato tolerante. Montesquieu destaca o nexo consecutivo que existe entre aturar e tolerar: 'Tão logo as leis de um país conseguem ajustar-se à admissão de várias religiões, elas têm de obrigá-las, a seguir, a se aturarem mutuamente [...]. Por isso, é aconselhável que as leis estabeleçam a seguinte exigência: que essas diferentes religiões não apenas deixem o Estado em paz, mas que mantenham, além disso, a paz entre si."3

Até à época da Revolução, o conceito de tolerância englobava dois aspectos: de um lado, referia-se, acima de tudo, a destinatários religiosos, e de outro lado, tinha a conotação de uma simples transigência das autoridades. Em que pese isso, já desde Spinoza e Locke, as fundamentações filosóficas da tolerância religiosa apontam para um caminho que leva do ato jurídico autoritário, o qual declara unilateralmente a transigência religiosa, a um direito ao livre exercício da religião, o qual repousa no reconhecimento recíproco da liberdade de religião dos outros e que carrega após si um direito negativo de ser poupado de práticas religiosas estranhas. Rainer Forst contrapõe à "concepção de permissão" de uma autoridade que garante liberdades religiosas, a "concepção do respeito". Esta última corresponde á nossa concepção da liberdade de religião, a qual é tida como um direito fundamental que compete a toda pessoa enquanto ser humano, independentemente da religião à qual adere.4

Pierre Bayle continua a inventar novos exemplos, a fim de levar seu oponente intolerante a assumir a perspectiva do outro e a aplicar as próprias medidas aos seus adversários: "Por conseguinte, se o Mufti for assaltado pelo desejo de enviar alguns missionários para doutrinar

'Citado de acordo com HERDTLE, C. e LEEB, Th. (eds.) Toleram, Texte zur Theorie und politischen Praxis. Stuttgart, 1987, 49.

"Cf. nota de rodapé n° 10.

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os cristãos, do mesmo modo que o Papa os envia às índias, e se surpreendermos esses missionários turcos no momento em que se introduzem em nossas casas a fim desempenhar sua tarefa na qualidade de missionários, eu não creio que teríamos autorização para castigá-los. Porquanto, se eles dessem a mesma resposta que é dada pelos missionários no Japão, isto é, que eles vieram levados pelo zelo de pregar a verdadeira religião àqueles que ainda não a conhecem e de cuidar da salvação de seus próximos [...], - se enforcássemos esses turcos, não seria, neste caso, extremamente ridículo nos queixarmos se os japoneses agissem da mesma forma?"5 Bayle pratica uma assunção de perspectivas recíprocas insistindo na generalização das idéias sob cuja luz nós julgamos "a natureza do agir humano - e neste caso ele pode ser tido como um precursor de Kant".6

Na base de um reconhecimento recíproco de regras do trato tolerante, é possível solucionar também o paradoxo que levara aparentemente Goethe a rejeitar a tolerância por considerá-la uma benevolência desdenhosa. O paradoxo estaria no fato de que todo ato de transigência tem de circunscrever, ao mesmo tempo, um âmbito de características daquilo que precisa ser aceito e, com isso, tal ato traça, inevitavelmente, um limite à própria tolerância: Nenhuma inclusão sem exclusão. E à proporção que esse traçado de limites se desenvolve de modo autoritário e, por conseguinte, unilateral, o ato de tolerar traz impressa a mácula de uma exclusão arbitrária. Somente a concepção de liberdades iguais para todos e a fixação de um domínio de tolerância capaz de convencer simetricamente a todos os atingidos são capazes de extrair da tolerância o aguilhão da intolerância. Os possíveis atingidos têm de levar na devida conta perspect ivas dos respectivamente "outros" caso pretendam chegar a um acordo sobre as condições sob as quais desejam exercitar tolerância recíproca apoiando-se no argumento de que todos merecem igual respeito.

As conhecidas condições para a convivência liberal de diferentes comunidades religiosas passam por tal teste de reciprocidade, o qual

'BAYLE, P. cit. de acordo com HERDTLE e LEEB (1987), 42. 6 Ibid., 38.

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implica, em primeira linha, a renúncia a meios de coação política para a imposição de verdades de fé, bem como uma liberdade de associação que exclui qualquer tipo de coação moral contra os próprios membros. Quando encontram reconhecimento intersubjetivo para além das fronteiras confessionais, normas desse tipo podem fornecer argumentos em condições de sobrepujar razões subjetivas alocadas a favor de uma recusa de convicções e de práticas religiosas estranhas. Em que pese o fato de a tese de Jellinek sobre o surgimento dos direitos humanos a partir da liberdade de religião não ter consistência histórica, existe, mesmo assim, um nexo conceituai entre tal fundamentação universalista do direito fundamental da liberdade de religião, de um lado, e as bases normativas de um Estado constitucional, isto é, da democracia e dos direitos humanos, de outro lado.

Porquanto os cidadãos só poderão especificar consensual mente a fronteira de uma tolerância exigida reciprocamente, se tomarem suas decisões à luz de um modo de deliberação que leva as partes, ao mesmo tempo atingidas e participantes, à assunção recíproca de perspectivas e à eqüitativa ponderação dos interesses. Os procedimentos democráticos do Estado constitucional estão precisamente a serviço de tal formação da vontade deliberativa. A tolerância religiosa pode ser garantida de modo transigente pelas condições sob as quais os cidadãos de uma comunidade democrática se concedem mutuamente liberdade de religião. Desta maneira, é possível solucionar o aparente paradoxo há pouco mencionado: pelo direito ao livre exercício da própria religião e pela correspondente liberdade negativa de não ser molestado pela religião dos outros. Na visão de um legislador democrático que eleva os destinatários do direito à condição de autores desse mesmo direito, o ato jurídico que impõe a todos uma tolerância recíproca funde-se com a auto-obrigação virtuosa a um comportamento tolerante.

Parece, todavia, que o paradoxo envolvendo uma intolerância que habita no âmago de toda tolerância delimitada não se dilui inteiramente mediante a generalização recíproca da liberdade de religião, concebida em termos de um direito fundamental; e ela retoma no âmago do próprio Estado democrático constitucional. Uma ordem constitucional que pretende garantir tolerância precisa precaver-se

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contra os inimigos da constituição. Quando da passagem "legal" da República de Weimar para o regime nazista, as pessoas tomaram consciência da peculiar dialética da auto-afirmação de uma democracia "militante" ou "disposta à reação".7 Os tribunais podem enfrentar a questão sobre os limites da liberdade religiosa num determinado caso concreto apelando para a lei e a constituição. No entanto, quando a própria constituição - a qual garante a liberdade - se defronta com inimigos da liberdade, coloca-se, de forma auto-referencial, a questão acerca dos limites da liberdade poética: Até que ponto e em que medida a democracia pode tratar tolerantemente os inimigos da própria democracia?

Caso o Estado democrático pretenda evitar sua própria dissolução, ele tem de se comportar de modo intolerante contra o inimigo da constituição lançando mão dos meios do direito penal político ou das determinações para a proibição de partidos políticos (Art. 21,2 GG [Lei Fundamental]) e para a perda de direitos fundamentais (Art. 18 GG, Art. 9,2 GG). Na figura do inimigo da constituição, retorna, revestido de conotações originariamente religiosas, o inimigo do Estado - seja na figura secularizada do ideólogo político que combate o Estado liberal, seja na figura do fundamentalista que combate formas de vida moderna enquanto tal. Entretanto, convém perguntar, quem deve definir o inimigo da constituição a não ser os próprios órgãos do Estado constitucional? Este último encontra-se na iminência de enfrentar, não somente a inimizade de opositores existenciais, como também traições aos seus próprios princípios - e o perigo permanente de uma recaída culposa numa prática de fixação unilateral e autoritária de fronteiras da tolerância. À proporção que a tolerância religiosa consegue passar adiante a tarefa paradoxal de uma autodelimitação, colocando-a nas mãos da democracia, esta se vê confrontada com o paradoxo da tolerância constitucional no próprio médium do direito.

Uma proteção paternalista da constituição agudizaria, além do mais, tal paradoxo. Pois um direito objetivado na forma de "ordem 7LOEWENSTEIN, K. "Militant Democracy and Fundamental Rights", in: Ameri

can PoliticalScience Review (31), 1937; id., Verfassum>slehre, 3a. ed. 1975 348 ss.

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objetiva de valores" carrega consigo, no entender de Konrad Hesse, "a tendência a uma segurança da constituição e do Estado, constituído por seu intermédio, de preferência num sistema de defesa e de policiamento." Não deveríamos deixar de levar na devida conta que "a substância da democracia garantidora da liberdade não pode ser assegurada porencurtamentos da própria liberdade."8 Se conseguisse transladar a auto-referencialidade do procedimento democrático, que se auto-instala na própria disputa democrática - que é aberta em termos de resultados - para as interpretações corretas de uma determinação da constituição, a democracia militante poderia evitar o risco do paternalismo

Em tal contexto, o trato da desobediência civil constitui uma espécie de teste do tornassol. Evidentemente, a própria constituição determina os procedimentos a serem seguidos para se enfrentar um conflito de interpretações da constituição. Em que pese isso, mediante a justificação da "desobediência civiC por parte das instâncias judiciais superiores, (a qual não é isenta de pena), o espírito tolerante de uma constituição liberal ultrapassa a totalidade das instituições práticas nas quais o seu conteúdo normativo se solidificou. Uma constituição democrática que se auto-entende como projeto de realização de iguais direitos cidadãos tolera a resistência de dissidentes que, após o esgotamento de todos os caminhos legais, combatem decisões tomadas de modo legítimo, com a reserva, no entanto, de que os cidadãos "desobedientes" conseguem justificar sua resistência apoiados em princípios da constituição e em meios não-violentos, os quais são, por conseqüência, simbólicos.9 Essas duas condições especificam a fronteira de uma tolerância política aceitável por parte de uma democracia erigida sobre os alicerces de um Estado de direito, o qual se protege contra seus inimigos utilizando meios não-patemalistas -mesmo em se tratando de opositores com mentalidade democrática.

"HESSE, K. Grundzügedes Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 17a. Ed. Heidelberg, 1990, Randnotiz, 694; cf. FRANKENBER, G Die Verfassung der Republik, 107, ss.

' 'Sobre a problemática da desobediência civil cf. minhas duas contribuições in: HABERMAS, J. Die neue UnüberskhlichkeH. Frankfurt/M;. 1985, 79-117.

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Reconhecendo a desobediência civil, o Estado democrático consegue processar o paradoxo da tolerância, o qual reaparece na dimensão do direito constitucional. Com isso, ele traça a fronteira entre um trato tolerante e um trato autodestrutivo com dissidentes ambíguos, de tal sorte que estes - que no final das contas poderiam ser considerados como inimigos da constituição-obtêm, contra todas as aparências, a chance de aparecer como os verdadeiros patriotas consti tucionais, ou melhor, como os amigos de um projeto constitucional interpretado de forma dinâmica. Tal traçado de fronteiras de tolerância da constituição, que é auto-reflexi vo, pode ser entendido, ele mesmo, como expressão do princípio da inclusão simétrica de todos os cidadãos, cujo reconhecimento geral tem de ser pressuposto, caso se pretenda institucionalizar corretamente a tolerância com pessoas que seguem outras crenças ou que pensam de modo diferente.

O pluralismo em termos de visões de mundo e a luta em prol da tolerância religiosa forneceram, certamente, combustível para o surgimento do Estado constitucional democrático; em que pese isso, eles ainda continuam, hoje em dia, a fornecer impulsos para a configuração conseqüente desse Estado. Pretendo guarnecer o conceito de tolerância com contornos mais nítidos e mostrar em que consiste, mais precisamente, o fardo das exigências de tolerância recíprocas(2); a seguir, tentarei abordar o tema da tolerância religiosa como precursora de um multiculturalismo bem-entendido e de uma coexistência, com iguais direitos, de diferentes formas de vida no interior de uma comunidade constituída de modo democrático (3).

(2) Já assinalamos en passant os três componentes do moderno conceito de tolerância destacados por Rainer Forst: recusa (Ablehnung), aceitação (Akzeptanz) e repulsão (Zurückweisung).10 Normas de tolerância surgem quando há conflitos de religião. O desafio

FORST, R. "Toleranz, Gerechtigkeit und Vernunft", in: id. (ed.). Toleram. Frankfurt/M., 2000, 144-161; id. "Grenzen der Toleranz", in: BRUGGER, W. e HAVERKATE, G. (eds.) Grenzen ais Thema der Rechls- und Sozialphilosophie, ARS, Beiheft, 84, Stuttgart, 2002; agora também: FORST, R. Toleranz im Konjlikt. Frankfurt/M., 2003.

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consiste em que a recusa mútua de convicções e práticas pode ser entendida, é bem verdade, na base de bons motivos subjetivos mesmo não havendo expectativa racional de uma dissolução cognitiva do dissenso (a). Por isso, o dissenso persistente entre crentes, crentes que acreditam de forma diferente, e incrédulos, tem de ser desacoplado da esfera social, a fim de que as interações entre os cidadãos da mesma comunidade possam prosseguir sem estorvos inoportunos. Para que isso aconteça, há mister de uma base de argumentos imparciais, aceitos em comum, os quais não neutralizam, mesmo assim, bons argumentos em prol da recusa, já que os superam (b). A regulação jurídica obrigatória exige, finalmente, um traçado de fronteiras entre aquilo que deve ser tolerado e aquilo que não pode mais ser tolerado. A imparcialidade dos argumentos reflexivos, tecidos, seja em prol da aceitação, seja a favor da recusa, é assegurada, conforme mostramos, por meio de um procedimento inclusivo de formação deliberativa da vontade, o qual exige, da parte dos participantes, respeito recíproco, bem como a assunção das perspectivas um do outro. A isso corresponde um mandamento de neutralidade dirigido ao Estado, que passa a oferecer, a seguir, a base normativa para a generalização dos direitos religiosos e culturais (c).

Ad a) A especificação do componente de rejeição responde à seguinte pergunta: quando é que a situação exige um comportamento tolerante e quando é que tal comportamento é possível? Estaríamos utilizando o conceito num sentido demasiado laxo caso a "tolerância" se estendesse, em geral, às disposições para um trato paciente e tolerante com outros ou com estranhos. O que se entende aqui é, antes de tudo, a virtude política, não exigível juridicamente, de cidadãos no trato com outros cidadãos que se apegam a uma convicção rejeitada. Devemos continuar respeitando no outro o co-cidadão, mesmo quando avaliamos a sua fé ou seu pensamento como falsos ou rejeitamos a correspondente conduta de vida como ruim. A tolerância preserva uma comunidade política pluralista de se dilacerar em meio a conflitos oriundos de visões de mundo diferentes.

De sorte que, só pode praticar tolerância quem tem argumentos subjetivamente convincentes para a rejeição de pessoas que seguem

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credos diferentes. Já que tolerância não é indiferença, uma vez que indiferença por convicções e práticas estranhas e, inclusive, a avaliação do outro e de sua alteridade em termos meramente apreciativos, anularia o objeto da tolerância. Todavia, os argumentos de rejeição, que exigem tolerância, não podem ser tidos como bons apenas de um ponto de vista subjetivo: eles têm de valer como legítimos perante a esfera pública. Preconceitos não contam. Só podemos falar em tolerância quando os participantes puderem apoiar sua recusa em uma não-concordância que encontra motivos razoáveis para continuar existindo. Nesse sentido, nem toda recusa é racional. Porquanto não atingimos o racista, nem o chauvinista, apenas clamando por tolerância, mas exigindo que eles superem seus preconceitos. Tendo em vista o "ser diferente" exige-se, inicialmente, que seja evitado qualquer tipo de discriminação, ou melhor, que se imponha o igual respeito por cada um - e não, como no caso do "pensar diferente", quando se exige simplesmente tolerância.

Isso nos leva à conclusão interessante de que a tolerância só pode ter início além da discriminação. Como no caso da liberdade de religião, nós só podemos exigir tolerância após a eliminação do preconceito que permitia a opressão de uma minoria. É bem verdade que a rejeição de crentes de outros credos, e o exemplo do anti-semitismo pode ilustrar bem isso, se liga a preconceitos enraizados faticamente, cujo alcance ultrapassa, em muito, a emancipação jurídica dos cidadãos judeus. Todavia, o Nathan, de Lessing, revela que, aos olhos do cristão esclarecido, do muçulmano e do judeu, as diferenças da fé capazes de proporcionar "bons" argumentos para uma rejeição de convicções e práticas estranhas só podem manifestar-se após a superação de todos os preconceitos em relação àquelas diferenças de fé. De outro lado, após a superação dos preconceitos contra pessoas de cor, homossexuais ou mulheres, não restaria mais nenhum componente do estranho ou do "heterogêneo" sobre o qual uma rejeição fun-ddmentada e reconhecida em geral como legítima pudesse apoiar-se.

Ao lado de tal qualificação dos fundamentos da rejeição, que resultam de um dissenso cuja continuidade é razoável, as próprias concepções rejeitadas, porém, toleradas, têm de comprovar uma

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relação interna com a práxis. Por tal caminho, religiões de salvação adquirem, devido à sua importância para a salvação pessoal do crente, força, a qual é capaz de orientar diretamente a ação. Todavia, as próprias cosmovisões de origem metafísica e, inclusive, as ideologias políticas, explicam o mundo, a história, ou a sociedade numa linguagem dotada de conteúdo normativo que traz conclusões práticas para uma vida que pode não ser bem-sucedida. Somente concepções com tal conteúdo ético têm eficácia para o comportamento e se qualificam para uma imputação de tolerância capaz de frear o comportamento. De outro lado, nossa atitude em relação a teorias científicas concorrentes pode ser crítica e inspecionadora; mas jamais tolerante."

No caso de uma disputa sobre teorias, a própria especificação funcional do empreendimento científico cuida para que haja uma neutralização dos conflitos envolvendo uma ação no mundo da vida, os quais, no entanto, eclodem quando se trata de uma querela de religiões - devido à relevância direta das verdades de fé para a conduta da vida pessoal. Os cientistas só são envolvidos em conflitos desse tipo quando a prática de pesquisa (como no caso da pesquisa sobre embriões) permite prever conseqüências que irão afetar a autocompreensão ética das pessoas, mesmo fora do contexto da pesquisa propriamente dita. E nesse caso revela-se, além do mais, que o naturalismo, enquanto fruto de um processamento sintetizador de informações científicas, é de natureza metafísica - relacionada a cosmovisões - e se encontra, no que tange á relevância do saber para orientações éticas da ação, no mesmo plano das interpretações religiosas.

De outro lado, somente exigem tolerância concepções que conflitam umas com as outras por razões que podem ser reconstruídas subjetivamente, porém, sem a expectativa racional de uma união motivada racionalmente. Os cientistas tomam como ponto de partida a idéia de que estão trabalhando com problemas que admitem, por via de regra, uma solução convincente mesmo que esta, no fundo, seja

" HABERMAS, J. "Wann müssen wir tolerant sein? Über die Konkurrenz von Weltbildern, Werten und Theor ien" , in: Juhrbuch (2202) der Berlin-Brandenburgischen Akadenüe der Wissenschaften. Berlim, 2003, 167-178.

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criticável. Eles estão à procura de verdades ainda não descobertas que, em relação a nós, estão depositadas no futuro. Ao contrario disso, os crentes se entendem a si mesmos como intérpretes de uma verdade revelada no passado, que não é passível de revisões, podendo ser defendida, sobre a base de bons argumentos, contra verdades de fé concorrentes. Nessa linha de pensamento, a disputa das compreensões políticas de partidos que se digladiam entre si, seguindo procedimentos democráticos, a fim de conseguir influência, tem mais semelhanças com a disputa entre teorias dos cientistas do que com a disputa dogmática dos teólogos. Mutatis mutandis, a própria disputa entre as opiniões políticas é regulada por procedimentos metódicos democráticos, de tal forma que os participantes dessa contenda os adotam a fim de chegar a soluções aceitáveis de um ponto de vista racional. É bem verdade que, nas contendas políticas, o traçado do horizonte em cujos limites o presumível dissenso se desenrola é mais amplo do que o horizonte das disputas científicas. Porém, a expectativa de um dissenso permanente refere-se somente à inserção mais forte das convicções políticas em contextos de convicções básicas metafísicas, tecidas com fibras de visões de mundo, que servem de pano de fundo.

Por conseguinte, a fala sobre "tolerância política" precisa configurar-se num sentido mais restrito - ela não pode dar-se ao nível dos assuntos políticos que constituem a rotina diária de uma democracia, já que se situa no contexto de conflitos entre ideologias políticas abrangentes. Porque durante o tempo em que os cidadãos discutem sobre problemas que eles julgam solucionáveis, é suficiente um comportamento civil: a tolerância não é o mesmo que a virtude política do trato civil. A definição que John Rawls propõe para tal "dever de civilidade" (civüity) aproxima-se muito, é verdade, da tolerância: "Esse dever implica a disposição de ouvir outros e um modo de pensar e sentir eqüitativo (fair) quando se trata de decidir, de forma razoável, sobre o momento em que deveríamos fazer concessões às opiniões de outros."12 Todavia, tolerância dos que pensam de modo 12 RAWLS, J. Politischer Liberalismus. Frankfurt/M., 1998, 317 s.

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diferente não pode ser confundida com disposição de compromisso ou de cooperação. Já que, para além de uma busca paciente da verdade, abertura, confiança mútua e de um sentido de justiça, a tolerância só é requerida quando as partes não buscam de modo razoável nem julgam possível uma união na dimensão de convicções conflitantes.

Ad b) Se pretendemos saber em que consiste precisamente o fardo de imputações de tolerância, temos de explicar, antes, a aceitação de argumentos capazes de superar moralmente argumentos de recusa. Trata-se, pois, de um duplo fardo: quem é tolerante, só pode realizar, de um lado, o próprio etos no interior das fronteiras daquilo que compete, em igual medida, a todos. De outro lado, no espaço de tais fronteiras, ele tem de respeitar também o etos dos outros. O que se deve aceitar, não são, porém, opiniões recusadas ou pretensões de validade concorrentes. Já que as próprias certezas e pretensões de verdade permanecem intocadas. O fardo não resulta de uma relativização de convicções próprias, mas de um "confinamento" de sua efetividade prática. A imputação resulta da conclusão, segundo a qual, o modo de vida, prescrito pela própria religião, ou o etos inscrito na própria imagem de mundo só podem ser praticados sob a condição de iguais direitos para todos e cada um. Tal fardo é de tipo cognitivo, já que a moral e o direito de uma sociedade configurada em moldes liberais têm de ser sintonizados com as convicções religiosas nas quais o próprio etos está enraizado. O significado disso pode ser detectado naquelas adaptações cognitivas que foram exigidas da consciência religiosa na Europa, desde a era da Reforma.

Cada religião é, originariamente, "imagem do mundo" ou, como afirma John Rawls, "doutrina compreensiva" {comprehensive doc-trinè), inclusive no sentido de que ela pretende estruturar uma forma de vida em sua totalidade. Em sociedades pluralistas, uma religião tem de renunciar a tal pretensão a uma configuração abrangente da vida, que inclui a própria comunidade, tão logo a vida da comunidade religiosa se diferencia da vida da comunidade política, que é mais ampla. Caso haja, entre as duas comunidades, um nexo genealógico -como é o caso da tradição judeu-cristã na Europa -, as grandes religiões

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têm de apropriar-se, elas mesmas, dos fundamentos normativos do Estado liberal, lançando mão de premissas próprias. Para a "inserção" da moral dos direitos humanos em diferentes imagens de mundo religiosas, John Rawls escolheu a imagem de um módulo a qual, mesmo tendo sido construída com auxílio de bases metafisicamente neutras, cabe dentro dos respectivos contextos de fundamentação ortodoxos.11 De um ponto de vista funcional, a tolerância religiosa tem por finalidade receptar a destrutividade social de um dissenso irreconciliável e permanente. Não obstante isso, a necessária diferenciação dos papéis de membro de uma comunidade e de cidadão da sociedade precisa ser fundamentada, convincentemente, na visão da própria religião. Caso contrário, os conflitos de lealdade aprofundar-se-ão.

A socialização religiosa só estará afinada com a secular quando os valores e normas se diferenciarem entre si, não apenas numa visão interna, mas também quando uma socialização surgir consistentemente da outra. A diferenciação dos dois tipos de pertença, concebida para superar o plano de um simples modus vivendi, só será eficaz caso a modificação não se esgote numa simples adaptação - destituída de pretensões cognitivas - do etos religioso a leis impostas pela sociedade secular. Ela exige, além disso, que a moral da sociedade, inscrita na constituição democrática, se diferencie cognitivamente do etos da comunidade. E, em muitos casos, isso torna necessária uma revisão de prescrições e representações que repousam sobre uma longa tradição de interpretação das Escrituras Sagradas - como é o caso, por exemplo, da condenação dogmática da homossexualidade. Em casos mais difíceis, inclusive, a própria codificação de matérias carentes de uma regulamentação enquanto "éticas" e/ou "morais" é questionada. Na questão do aborto, por exemplo, os católicos têm de aceitar que lhes seja imputada, por parte dos tribunais públicos e como parte de seu etos religioso específico, uma compreensão que, na sua perspectiva, está apoiada em juízos morais, mas que, de acordo com sua própria pretensão, está apoiada em juízos válidos em geral. Sob tal ponto de " Ibid.,76 ss.

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vista complementar do respeito pelo etos do outro, torna-se ainda mais claro que o peso resultante da tolerância não está distribuído de modo eqüitativo entre crentes e incrédulos. Para a consciência do cidadão secular, que lida com pequena bagagem metafísica, e que é capaz de aceitar uma fundamentação "livre" ou autônoma da democracia e dos direitos humanos, o ponto de vista do justo - ou moral - precede o bem substancial. Sob tal premissa, o pluralismo dos modos de vida, nos quais se refletem, respectivamente, diferentes imagens de mundo, não desperta nenhuma dissonância cognitiva nas convicções éticas próprias. Porquanto agora, nos diferentes modos de vida, incorporam-se apenas diferentes orientações de valores. E valores distintos constituem, quando comparados entre si, valores diferentes que não se excluem reciprocamente como verdades diferentes.

Nos juízos éticos fica inscrita a relação a uma primeira pessoa -à história da vida de um indivíduo singular ou à forma de vida de uma coletividade. Por esta razão, o que é bom para um, em seu próprio contexto, pode ser ruim para um outro, em outro contexto. E já que a forma de assentimento geral, exigido para uma avaliação de formas e projetos de vida, estranhos, não é a mesma que se exige para juízos de justiça ou asserções sobre fatos, podemos respeitar de igual maneira cada um em particular, mesmo que não avaliemos da mesma maneira todas as formas de vida. Por isso, não é difícil, para uma consciência secular, reconhecer que um etos estranho pode ter, para os outros, a mesma autenticidade e gozar da mesma precedência que o etos próprio tem para cada um de nós mesmos. Em que pese isso, a pessoa que obtém sua autocompreensão ética a partir de verdades de fé, as quais pretendem validade universal, não pode tirar essa mesma conseqüência.

Para o crente, assim como para o viajante que carrega uma grande bagagem metafísica, o bem precede epistemicamente o justo. Sob tal premissa, a validade do etos depende da verdade de uma imagem de mundo, a qual forma o seu contexto. E em conformidade com isso, as pretensões de validade, exclusivas, das imagens de mundo subjacentes ligam-se a diferentes orientações éticas de vida e a formas de vida concorrentes. E tão logo a própria representação da vida correta se orienta por caminhos de salvação religiosos ou por concepções metafísicas sobre o bem, adquire contornos uma perspectiva divina

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(ou uma "visão de algo que não se encontra em nenhum lugar") (view from nowhere), à luz da qual (ou a partir da qual) outros modos de vida aparecem, não somente como diferentes, mas também como fracassados. Quando o etos estranho constitui, não apenas uma questão da avaliação hipotética de valores, que pode ser relativizada, mas também uma questão de verdade ou inverdade, a exigência que obriga a ter, por cada cidadão, o mesmo respeito, independentemente de sua autocompreensão ética e de sua conduta de vida, passa a ser tida na conta de uma impertinência. Por isso, a concorrência entre verdades éticas, ao contrário do que ocorre quando de uma concorrência entre valores, obriga à tolerância.

Tal assimetria entre os pesos que oneram, de modo diferençado crentes e não-crentes, é contrabalançada, em todo caso, pelo fato de que o cidadão desprovido de ouvidos religiosos vê-se confrontado com uma imputação de tolerância de outro tipo. Porquanto, em sociedades pluralistas constituídas de modo liberal, a compreensão da tolerância não exige apenas dos crentes,' no seu trato com crentes de crenças diferentes, que levem na conta, de modo razoável, a devida permanência de um dissenso. Já que a mesma compreensão é exigida dos não-crentes no seu trato com crentes em geral. Para a consciência secular isso implica, contudo, a exigência de determinar, de modo autocrítico, a relação entre fé e saber. Pois a expectativa de uma não-coincidência continuada entre saber de mundo, razoável, e tradição religiosa só merece o predicado "racional" quando se atribui, na perspectiva de um saber secular, a convicções religiosas um status epistêmico que não é pura e simplesmente irracional.

No entanto, como poderia a naturalização progressiva do espírito humano estar afinada com tal asserção de uma teoria política em geral? Hoje em dia, o tema do "saber e fé", que ocupou as atenções da filosofia desde o século XVII, toma-se novamente explosivo, ante os progressos da biogenética e das pesquisas sobre o cérebro. O Estado secular, em todo caso, só pode garantir, de modo imparcial, tolerância quando for capaz de assegurar, na esfera pública política, que o pluralismo de cosmovisões se desenvolva sobre a base do respeito mútuo - sem regulamentações preconceituosas. E isso possui um bom sentido. Já

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que opiniões políticas sobre um assunto polêmico, que podem ser expostas numa linguagem religiosa e numa perspectiva metafísica apoiada em visões de mundo, podem abrir os olhos de outros cidadãos para um aspecto até então negligenciado, de tal sorte que eles podem influenciar a formação da maioria - mesmo quando a descrição do assunto, sobre o qual é necessário tomar uma decisão, não está impregnada de conotações metafísico-religiosas.

Ad c) Com isso se atinge, após a apresentação das razões de rejeição e de aceitação, o terceiro componente conceituai: Pelas razões de exclusão aduzidas a favor de um comportamento intolerante é possível descobrir se o Estado observa ou não o mandamento da neutralidade e se a legislação e a jurisprudência institucionalizam a tolerância de modo correto. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, por exemplo, os Sikhs conseguiram abrir exceções nas medidas de segurança válidas em geral para o porte de turbantes e punhais (Kirpans). Também aqui, entre nós, nas respectivas querelas jurídicas, trata-se do traçado de fronteiras entre as práticas e leis da cultura cristã majoritária, de um lado, e as pretensões de minorias religiosas, de outro lado. Em nome da liberdade de religião, estas exigem igualdade de tratamento (as testemunhas de Jeová, por exemplo, conseguiram reconhecimento judicial como corporação de direito público), regras de exceção (por exemplo, para o uso de turbantes ou para a rejeição de comidas tidas como impuras) ou medidas do Estado (por exemplo, para o ensino da língua materna nas escolas públicas). Em tais casos, os tribunais têm de decidir quem deve e quando deve aceitar o etos de outros: os cristãos que habitam nas aldeias devem atender às chamadas do muezim? Os nossos protetores dos animais devem aceitar o abate de bezerros? Os alunos que não seguem nenhum tipo de religião ou que são de outra denominação religiosa devem aceitar o traje da professora islâmica? Ou o pai turco deve aceitar que a filha tenha aulas de esporte juntamente com meninos?14

14Cf. a enumeração de GRIMM, D., in Frankfurter AUgemeine Zeitung de 21 de junho de 2002, 49: "Pode um sikh, que dirige motocicleta, apelar para o

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( 3 ) A liberdade de religião constitui uma prova para a neutralidade do Estado. Freqüentemente ela é ameaçada pelo predomínio de uma cultura da maioria que abusa de seu poder de definição, adquirido na história, para determinar, de acordo com suas próprias medidas, o que pode valer, na sociedade pluralista, como a cultura política obrigatória em geral.15 Tal fusão, quando não solucionada, pode levar a uma substancialização furtiva da compreensão de uma constituição, a qual é, não obstante, essencialmente procedimental. A substância moral dos princípios da constituição é assegurada por procedimentos que devem sua força legitimadora à imparcialidade e à consideração eqüitativa de interesses; e perdem tal força quando certas idéias de uma eticidade substancial se imiscuem na interpretação e na prática das prescrições formais. E neste caso, é possível que o mandamento da neutralidade venha a ser ferido, seja pelo lado religioso, seja pelo laico.

seu dever religioso de portar um turbante, a fim de eximir-se da obrigação geral de portar um capacete de proteção? É imperativo fornecer a um prisioneiro judeu alimentação pura? Terá um operário islâmico o direito de interromper inopinadamente o trabalho para fazer orações? Pode-se demitir um operário que não comparece ao trabalho nos dias santos de sua comunidade religiosa? E terá alguém, demitido nestas circunstâncias, o direito ao seguro-desemprego? É preciso permitir aos negociantes judeus a abertura de suas lojas aos domingos, já que eles, por motivos religiosos, não podem fazer nenhum tipo de negócio aos sábados? Terá a aluna islâmica o direito de ser dispensada do ensino do esporte, dado que a ela não é permitido aparecer diante dos outros alunos em trajes esportivos? Deve ser permitido às alunas islâmicas portar na escola o véu na cabeça? E como as coisas ficam quando se trata de professoras em um escola pública? Será que as normas que valem para as irmãs católicas não valem para as professoras islâmicas? [...] Deve-se admitir, nas cidades alemãs, as conclamações do muezim, transmitidas por alto-falante, da mesma forma que o dobrar dos sinos nas igrejas? Deve-se permitir a estrangeiros o abate de animais, mesmo que isso constitua uma violação das regras de proteção nacionais? [...] Deve-se permitir aos mórmons exercer entre nós a poligamia, desde que ela seja permitida em suas nações de origem?"

15 Sobre a unidade da cultura política na pluralidade das subculturas, cf. HABERMAS, J. Die Einbeziehung desAnderen. Frankfurt/M., 1996, 142 ss.

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Dois exemplos merecem menção neste contexto: oAffaire Fou-lard e a reação do governo bávaro à sentença sobre o crucifixo, emitida em Karlsruhe. No primeiro caso, a direção de uma escola proibira as alunas muçulmanas de portarem seus tradicionais véus na cabeça; noutro caso, o governo de um Estado opusera-se à sentença do Tribunal Constitucional Federal que aceitara a queixa de pais antroposóficos que se opunham à manutenção do crucifixo na sala de aula de sua filha. No primeiro caso, colocou-se à discussão a liberdade de religião positiva. No segundo, a negativa. Os católicos opõem-se à sentença contra o crucifixo alegando que defendem o símbolo religioso do crucificado enquanto expressão de "valores ocidentais" e, com isso, enquanto componente de uma cultura que pode ser compartilhada por todos os cidadãos. Este é o caso clássico da generalização cultural e política de uma prática religiosa predominante a nível regional, da qual o regime das escolas primárias da Baviera, estabelecido em 1983, é um exemplo. Na França, no entanto, as alunas muçulmanas são proibidas de usar o véu sob a alegação laicista de que a religião tem de ser encarada como algo atinente à esfera privada, a ser excluída da esfera pública. Este é, sem dúvida alguma, o caso de uma determinada compreensão laicista da constituição e é necessário perguntar se a interpretação tradicional, republicana, a qual predomina na França, não é por demais "forte", a ponto de ferir a exigida neutralidade do Estado no trato da pretensão legítima de uma minoria religiosa que tem direito à auto-apresentação e ao reconhecimento público.

Tais casos conflituosos podem ilustrar bem por que a propagação da tolerância religiosa, que pode ser tida como pioneira do surgimento das democracias, tomou-se não somente um modelo, mas também um estímulo para a introdução de outros tipos de direitos culturais. A inclusão de minorias religiosas na comunidade política desperta e promove a sensibil idade para pretensões de outros grupos discriminados. O reconhecimento do pluralismo religioso pode assumir tal função de modelo porque ele traz à consciência, de modo exemplar, a pretensão de minorias a inclusão. E bem verdade que o debate sobre o multiculturalismo não gira tanto em tomo da preterição de minorias religiosas como em tomo de pontos controversos tal como a fixação de feriados nacionais, a regulamentação da(s) língua(s)

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oficial(is), a promoção do ensino do idioma materno para minorias étnicas ou nacionais, o estabelecimento de cotas para mulheres, negros e autóctones na política, no emprego ou na universidade. No entanto, sob o ponto de vista da inclusão eqüitativa de todos os cidadãos, a discriminação religiosa, qualquer que ela seja, continua sendo discriminação, não se distinguindo de outros tipos de discriminação: cultural, lingüística, étnica, racista, sexual ou física.

A inclusão atinge um de dois aspectos da igualdade de cidadãos do Estado. Mesmo que, na maior parte das vezes, a discriminação de minorias venha acompanhada também de discriminação social, recomenda-se que ambas as categorias de tratamento desigual sejam mantidas separadas. A primeira pode ser medida pelos critérios do direito à livre associação ilimitada; a segunda, pelo princípio da justiça distributiva.16 Sob pontos de vista da justiça distributiva, o princípio do tratamento eqüitativo exige que todos os cidadãos tenham iguais chances de fazer uso concreto de liberdades e direitos, igualmente distribuídos, a fim de realizar seus respectivos e pessoais planos de vida. As lutas políticas e movimentos sociais que se dirigem contra uma desigualdade de status, ancorada em estruturas de classes, visando uma redistribuição de chances de vida sociais alimentam-se das experiências de injustiças havidas na dimensão da justiça distributiva. Ao contrário, nas lutas pelo reconhecimento da integridade de uma determinada identidade coletiva encontra-se uma experiência de injustiça de tipo diferente, isto é, a experiência do desprezo, da marginalização ou da exclusão por razões de pertença a um grupo que, de acordo com os padrões da cultura da maioria dominante, é tida como "inferior".17 É nesse sentido que a superação da discriminação religiosa toma-se, hoje em dia, uma precursora de direitos culturais de tipo novo.

As proibições de discriminação por motivos de religião, do sexo, da orientação sexual ou da raça não têm na mira, em primeira instância,

l6Cf. sobre essa distinção FRASER, N. "From Redistribution to Recognition?", in: WILLET, C. (ed.) Theorizing Multiculturalism. Oxford, 1998, 19-49.

17 HONNETH, A. (Das Andere der Gerechtigkeit, Frankfurt/M., 2000) trata especialmente dessas patologias envolvendo o reconhecimento retido.

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a distribuição desigual de chances de vida sociais. Em muitos casos, inclusive, elas não podem visar uma compensação pelas conseqüências da desigualdade de status; as mulheres e os homossexuais distribuem-se, de modo mais ou menos igual, em todas as camadas da sociedade. A exclusão de determinadas esferas da vida social revela o que é recusado aos discriminados: uma pertença social isenta de qualquer tipo de limitação. Mecanismos de exclusão estruturalmente cristalizados são de difícil apreensão. É bem verdade que, à luz da igualdade formal de direitos, a discriminação retirou-se para zonas menos salientes do trato informal, chegando até os confins da linguagem corporal; até mesmo essas formas de discriminação mais sutis são, não obstante, muito dolorosas.18

Os direitos culturais, do mesmo modo que o exercício da religião, têm por objetivo garantir a todos os cidadãos um acesso eqüitativo às comunicações, tradições e práticas de uma comunidade que eles julgam necessária para o exercício e a manutenção de sua identidade pessoal. Tal fato não precisa limitar-se apenas a grupos de procedência, podendo incluir também entornos eleitos. É certo que, em muitos casos, membros de minorias nacionais, lingüísticas ou étnicas, atribuem aos meios e possibilidades da reprodução desejada dos próprios idiomas e formas de vida grande importância, a qual não é menor que a importância atribuída, por minorias religiosas, à liberdade de associação, à transmissão da doutrina religiosa e ao exercício de seu culto. Por isso, a luta pela igualdade de direitos da comunidade religiosa proporciona, seja na teoria política, seja na jurisprudência, argumentos e impulsos para o conceito de uma "cidadania estatal multicultural".19

Em todas as culturas, as práticas e convicções religiosas têm influência decisiva na autocompreensão ética dos crentes. Detectamos relevância semelhante nas tradições lingüísticas e culturais para a formação e manutenção da identidade pessoal dos falantes ou dos membros - que está sempre entrelaçada com identidades coletivas. Tais conhecimentos sugerem uma revisão dogmática do conceito

18 Cf. a fenomenologia da discriminação racial em MILLS, Ch. W. The Racial Contract. Ithaka (N. Y.), 1997, Cap. 2, 41-89.

'"KYMLICKA, W. Multicultural Citizenship. Oxford, 1995.

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"pessoa de direito". A individuação de pessoas naturais ocorre pelo caminho da socialização. E indivíduos socializados desta maneira só conseguem formar e estabilizar sua identidade no interior de uma rede de relações de reconhecimento recíproco. Esse fato tem conseqüências para a proteção da integridade da pessoa de direito - e para uma ampliação intersubjetivista do próprio conceito, que até o momento era tecido de uma forma por demais abstrata (e talhado conforme as dimensões de um individualismo possessivo).

Os direitos constitutivos para a proteção da integridade do indivíduo singular determinam também seu status como pessoa de direito. Tais direitos têm de ampliar-se a ponto de garantir o acesso aos contextos da experiência, da comunicação e do reconhecimento nos quais uma pessoa pode articular a compreensão de si mesma, bem como desenvolver e manter uma identidade própria. De acordo com isso, os direitos culturais, exigidos e introduzidos à luz de uma "política do reconhecimento", não podem ser entendidos como sendo naturalmente direitos coletivos. De acordo com o modelo da liberdade de religião, trata-se, antes de tudo, de direitos subjetivos que garantem uma inclusão completa.20 Eles garantem a todos os cidadãos um acesso eqüitativo aos entornos culturais, às tradições e relações interpessoais à medida que estas são essenciais para a formação e a garantia de sua identidade pessoal.

Todavia, os direitos culturais não significam simplesmente "mais diferença" e autonomia. Já que grupos discriminados não chegam ao gozo de direitos culturais iguais "de graça". Eles não podem ser simples aproveitadores de uma moral da inclusão eqüitativa antes de se engajarem, eles mesmos, nela. Isso não será difícil para velhos discriminados, homossexuais ou deficientes, porque, neste caso, a característica formadora de grupos, decisiva paia a discriminação, não está ligada a tradições emperradas. Ao contrário, comunidades "fortes" (tal como as minorias étnicas, subculturas de imigrantes ou de moradores autóctones, descendentes de escravos, etc.) trazem o cunho

TAYLOR, Ch. Multikulturalismus und die Politik der Anerkennung. Frankfurt/M., 1993. Cf, neste texto, minha crítica à compreensão comunitarista dos direitos culturais que os trata como direitos coletivos.

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de tradições comuns e já formaram uma identidade própria.21 Tais tradições também abrem "perspectivas de mundo" que podem, por seu turno, entrar em concorrência, do mesmo modo que as imagens de mundo religiosas.22 Tolerância mútua exige, por isso, das próprias comunidades seculares "fortes", o engate cognitivo de seu etos interno à moral da humanidade, a qual prevalece no entorno social e político. Em casos de "assincronia histórica", isso lhes parecerá, talvez, mais difícil do que às comunidades religiosas que podem lançar mão de fontes conceituais altamente desenvolvidas das religiões mundiais.

O empurrão para a reflexão que as sociedades dotadas de uma pluralidade de visões de mundo esperam da consciência religiosa constitui, por seu turno, um protótipo para a configuração mental de sociedades multiculturais. Porquanto um multiculturalismo bem-entendido não constitui apenas uma via de mão única para a auto-

ç/3 afirmação cultural de grupos que possuem identidade própria. Por 3 outro lado, a coexistência, com igualdade de direitos, de diferentes

formas de vida não pode levar a uma segmentação. Ela exige uma - j integração dos cidadãos do Estado - e o reconhecimento recíproco de

suas pertenças a grupos subculturais - no quadro de uma cultura política compartilhada. A autorização para formar características culturais típicas exige, como condição preliminar, que os "cidadãos da

Q sociedade" se entendam - para além de qualquer tipo de fronteira DO 1 subcultural - como "cidadãos do Estado" de uma mesma comunidade

política. Direitos e autorizações culturais encontram os seus limites nos fundamentos normativos de uma constituição que forma a base de sua legitimação.

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U.

21 Sobre o conceito de tais "encompassing groups" cf. M ARG ALIT. A., RAZ, J. "National Self-Determination", in: KYMLICKA, W. (ed.). The Righls of Minority Cultures. Oxford, 1995, 79-92, aqui, 81 ss.

22 Quanto mais abrangentes as formas de vida culturais, tanto mais forte será o seu conteúdo cognitivo e tanto mais elas assemelhar-se-ão aos modos de vida estruturados mediante imagens de mundo religiosas: "The inescapable aspect of any culture that it will include ideas to the effect that some beliefs are true and some are false, and that some things are right and others wrong." BARRY, B. Culture and Equality. Cambridge, 2001, 270.

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10. DIREITOS CULTURAIS IGUAIS -E OS LIMITES DO LIBERALISMO PÓS-MODERNO.

O liberalismo clássico cujas origens remontam, em primeira linha, a Locke, lança mão do médium e dos conceitos do direito moderno, a fim de domesticar o poder político e colocá-lo a seu serviço. O pensamento liberal tem na mira o seguinte alvo: proteger a liberdade do indivíduo enquanto cidadão da sociedade (Gesellschaftsbürger). O núcleo de uma constituição liberal reside na garantia de liberdades subjetivas iguais para todos. Tal núcleo eqüivale ao "princípio geral do direito", de Kant, segundo o qual "a liberdade do arbítrio de cada um pode conviver com a liberdade de todos os outros de acordo com leis gerais". O "poder do povo" também continua sendo um insü-umento do "poder das leis". A autonomia política dos cidadãos do Estado (Staatsbürger) não constitui um fim em si mesmo, uma vez se mede pela tarefa de assegurai- a autonomia privada simétrica dos cidadãos da sociedade.

O liberalismo é indicado porque nele se entrelaçam, elegantemente, duas intuições normativas fortes. A idéia das liberdades subjetivas iguais para cada um satisfaz, de um lado, a medida moral de um universalismo igualitário que exige igual respeito e a mesma consideração por cada um; de outro lado, ela satisfaz a medida ética de um individualismo, segundo o qual cada pessoa deve ter o direito de configurar sua vida conforme as próprias preferências e convicções (ou de deixar-se conduzir por outros). Na generalidade das leis manifesta-se a igualdade de todos os cidadãos, ao passo que os direitos reclamáveis, que são inferidos das leis em cada caso particular, abrem

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espaços, bem circunscritos, os quais permitem a cada cidadão modelar sua própria forma de vida. O individualismo ético constitui, pois, o sentido próprio do universalismo igualitário, que o direito moderno empresta da moral.

A distinção entre projetos de vida éticos e questões de justiça vem ao encontro das necessidades de um pensamento pós-metafísico desarmado. Após lançar fora sua ambição de concorrer com imagens de mundo religiosas, a filosofia não pretende mais formular fundamentações ontoteológicas ou cosmológicas a fim de tecer modelos gerais e obrigatórios de uma vida não-fracassada. Ela continua mantendo uma pretensão geral, porém, apenas no que respeita a asserções morais sobre o que é do "interesse simétrico de todos", isto é, sobre o que é igualmente bom para todos ou suportável por todos. Tal teoria moral não pretende mais configurar representações substanciais de uma conduta de vida exemplar determinante para todos. A moral que, sob tal aspecto, tornou-se "formal" guarda semelhanças com a idéia do igual respeito e consideração por cada pessoa. Tal idéia retorna no próprio direito positivo da modernidade, estruturado de maneira individualista e obrigatório, a saber, no direito a um tratamento igual e no conceito da "dignidade do homem" (purificado de todas as características estamentais).

Tal idéia de igualdade, liberal, foi submetida a reiteradas críticas. Inicialmente, o republicanismo, suplantado pelo liberalismo, retirou-se objetando que a "liberdade dos antigos" não poderia ser sacrificada no altar da "liberdade dos modernos". O liberalismo clássico ameaçava realmente reduzir o sentido de liberdades éticas iguais a uma interpretação individualista possessiva de direitos subjetivos interpretados de forma instrumentalista. E com isso ele falseou uma intuição normativa importante, a qual merece ser salvaguardada mesmo nas condições de sociedades modernas, a saber, a solidariedade que une entre si, para além dos meros laços políticos, não somente membros, amigos e vizinhos em esferas da vida privada, mas também cidadãos do Estado enquanto membros de uma coletividade política. O núcleo da ordem jurídica liberal consiste em direitos de liberdade talhados para relações econômicas de proprietários privados, bem

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como para a consciência religiosa e a confissão religiosa de pessoas privadas. Isso permitiu o surgimento de uma interpretação "egoísta" da liberdade ética, a qual ainda repercute na polêmica do jovem Marx contra as declarações dos direitos humanos na França e nos Estados Unidos. Segundo tal objeção, a liberdade do indivíduo não consiste apenas na autorização para uma busca utilitarista da própria felicidade "pursuit of happiness", ou seja, não se esgota na autorização para a persecução privada do interesse em bens da terra ou do céu.

Para compensar tal déficit, a retomada moderna do republicanismo coloca em jogo uma outra compreensão da liberdade, ampliada intersubjetivamente e ligada ao papel do cidadão democrático. Nessa tradição, que remonta a Rousseau, os iguais direitos de participação e de comunicação servem não somente para a configuração de direitos privados subjetivos, mas possibilitam, além disso, uma práxis exercida em comum pelos cidadãos de um Estado, a qual é valorizada como fim em si mesma. Numa visão republicana, a autolegislação democrática funda solidariedade, que é abstrata, uma vez que é mediada pelo direito, a qual permite, mesmo assim, que um indivíduo cidadão possa engajar-se pelo outro (mesmo estando com uma arma na mão). Na formação democrática da vontade do povo soberano reproduz-se e se renova o etos político da coletividade. Em contrapartida, direitos iguais garantem a liberdade ética, porém, agora não mais, em primeira linha, a liberdade subjetiva de um cidadão da sociedade, mas a liberdade entendida como soberania de uma nação de cidadãos de um Estado, solidários. Tal soberania ramifica-se, internamente, na liberdade política - entendida de maneira comunitarista - dos membros de uma comunidade nacional; e externamente, na liberdade de uma nação - entendida de maneira coletivista - que defende sua existência contra outras nações.

Não obstante isso, tal republicanismo ético conta com uma limitação do universalismo igualitário, que é o preço a ser pago por uma solidariedade dos cidadãos de um Estado. É bem verdade que cada cidadão goza de iguais direitos, porém, isso tem de ser entendido nos limites de um etos particular que se presume ser partilhado por todos os membros da comunidade política. A fusão entre cidadania do Estado e cultura nacional gera uma interpretação dos direitos dos

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cidadãos que é "de uma cor só" e insensível a diferenças culturais. No âmbito de sociedades pluralistas, quando se atribui precedência política a um bem comum impregnado eticamente em detrimento da garantia efetiva de liberdades éticas iguais, gera-se discriminação de modos de vida divergentes e, em escala internacional, impotência perante a "guerra de culturas".

Num nível fundamental, tais problemas não encontram solução a não ser no quadro de uma concepção que desconfina a mobilização da solidariedade entre cidadãos de um Estado lançando mão de pontos de vista de um universalismo igualitário radicalizado em termos de uma solidariedade entre "outros". Além do mais, à proporção que a formação soberana da vontade de cidadãos de um Estado, democráticos, se liga a princípios constitucionais universalistas e a direitos "dos homens", ela apenas está sendo coerente com os pressupostos que exigem uma institucionalização da própria práxis, juridicamente legítima.1 O entrelaçamento da idéia republicana da soberania do povo com a idéia de um poder da lei, soletrada em direitos fundamentais, pode transformar, não destruir, as formas históricas da solidariedade. De acordo com essa terceira interpretação, que propõe uma mediação entre liberalismo e republicanismo, os cidadãos do Estado entendem o etos político que os mantém coesos como nação, como sendo o resultado voluntarista da formação democrática da vontade de uma população acostumada à liberdade política. E no futuro ter-se-á depositado, no orgulho nacional de uma consciência da liberdade, adquirida e compartilhada intersubjetivamente, a experiência histórica de que o nexo interno entre a autonomia privada do cidadão individual da sociedade subsiste em harmonia cumulativa com a autonomia política do cidadão de um Estado, exercitada em comum.

'HABERMAS, J. Faktizitat und Geltung. Frankfurt/M., 1992,cap. III; id.,"Über den internen Zusammenhang von Rechtsstaat und Demokratie", in: id. Die Einbez.iehung des Anderen. Frankfurt/M., 1996, 293-305; id. "Der demokratische Rechsstaat - eine paradoxe Verbindung widersprüchlicher Prinzipien?", in: id. Zeitder Übergünge. Frankfurt/M., 2001, 133-154. Para as considerações que seguem devo gratidão aos participantes de um seminário realizado no verão de 2002 na Northwestern Univesity.

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O uso adequado dos direitos políticos por parte dos cidadãos do Estado requer a configuração de uma vida autônoma e privada, assegurada eqüitativamente, o que só é possível quando eles se encontram em condições de agir e julgar de modo independente. De outro lado, os cidadãos da sociedade só chegam ao gozo simétrico de sua autonomia privada plena se eles, enquanto cidadãos de um Estado, fizerem um uso adequado de seus direitos políticos, isto é, se não agirem apenas de modo auto-interessado, mas também orientados pelo bem comum. A idéia, introduzida por Rousseau e interpretada em termos universalistas por Kant, segundo a qual, os destinatários do direito têm de poder entender-se, ao mesmo tempo, como seus autores, não coloca nas mãos dos cidadãos unidos de uma coletividade democrática nenhum tipo de carta de alforria para decisões arbitrárias. Eles devem decidir somente sobre aquelas leis que extraem sua legitimidade do fato de poderem ser desejadas por todos. A liberdade subjetiva que permite fazer e deixar de fazer, no âmbito das leis, qualquer coisa que se deseje, constitui o núcleo da autonomia privada, não da autonomia de cidadãos de um Estado. Ao invés disso, aos cidadãos do Estado, democráticos, imputa-se, tomando como base uma liberdade de arbítrio garantida juridicamente, autonomia no sentido mais pretensioso de uma formação racional e solidária da vontade - mesmo nos casos em que essa última pode apenas ser sugerida e não exigida legalmente. Um dever jurídico exigindo solidariedade seria algo tão absurdo como, por exemplo, um "ferro de madeira".

A configuração democrática de um sistema dos direitos que a própria democracia tem de pressupor, a fim de poder operar em formas juridicamente institucionalizadas, liberta o liberalismo clássico da obstinada abstração de leis gerais fundadas no direito natural, as quais são tidas como imprescindíveis para que se tenha liberdades subjetivas igualmente distribuídas. De outro lado, permanece intacta a lógica, segundo a qual, o universalismo igualitário do Estado de direito cria condições de possibilidade para o individualismo ético dos cidadãos. Sem sombra de dúvida, tal lógica não transparece mais objetivamente no poder anônimo das leis, passando, por assim dizer, por sobre as

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cabeças dos cidadãos; já que, enquanto lógica internalizada pelos próprios cidadãos, ela se incorpora no procedimento democrático de formação da sua vontade política. A idéia de iguais liberdades para cada um, uma vez liberta de suas petrificações jusnaturalistas, assume uma figura reflexiva no processo da autolegislação. Ela obriga os participantes do processo democrático a se concederem mutuamente, pelo caminho de uma assunção recíproca de perspectivas e da generalização comum de interesses, os direitos exigidos pelo projeto de uma associação voluntária e autônoma de parceiros do direito, livres e iguais, à luz de circunstâncias históricas específicas.

A solidariedade de cidadãos do Estado, a qual se produz, atualiza-se e se aprofunda mediante um processo democrático, faz com que a viabilização igualitária de iguais liberdades éticas assuma forma procedimental. Em casos favoráveis, tal dinâmica pode colocar em andamento processos de aprendizagem cumulativos e iniciar reformas duradouras. Uma democracia enraizada na sociedade civil consegue criar, na esfera pública política, uma caixa de ressonância para o protesto, modulado em muitas vozes, daqueles que são tratados de modo desigual, dos subprivilegiados, dos desprezados. Tal protesto contra o sofrimento provocado por injustiças e discriminações pode transformar-se num aguilhão de autocorreções, as quais conseguem extrair, partícula por partícula, o conteúdo universalista inerente ao princípio da igualdade de cidadãos de um Estado utilizando como meio de troca a moeda das iguais liberdades éticas.

Em que pese isso, tal interpretação democrática do liberalismo político também está sujeita a críticas, que ainda encontram eco. E nesse ponto, gostaria de salientar três tipos de objeções: as que são oriundas das ciências sociais, da teoria da sociedade e de uma crítica da razão. As reservas críticas da sociologia contra o normativismo esclarecido - e contra o idealismo dissimulado - de uma teoria política cuja metodologia consiste numa análise conceituai oferece, é bem verdade, correções salutares. Não obstante isso, tais reservas não se condensam, por via de regra, numa objeção de princípio, segundo a qual, as teorias normativas fracassam, em geral, ante a complexidade social, mesmo quando as entendemos num sentido "meliorista". Isso

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somente pode acontecer a partir do momento em que se rejeita pura e simplesmente a premissa, segundo a qual as próprias sociedades complexas são capazes, pelo médium do direito e da política, de influir sobre si mesmas, porquanto nesse momento se "tira a terra debaixo dos pés" das considerações essencialmente normativas.

Desde Hegel, passando por Marx e chegando até Foucault, a grande crítica à "impotência do dever ser", confeccionada em termos de teoria da sociedade, agudizou-se. Nesta linha de visão, os projetos normativos fracassam ante o desmentido gritante de uma realidade que se contrapõe, já pelo simples fato de que eles mesmos ainda fazem parte integrante da totalidade dominadora de uma forma de vida denunciada como "alienada" ou "esmigalhada". Tais diagnósticos críticos, contudo, que atingem mais fundo, atribuem a lamentada força niveladora e, ao mesmo tempo, isoladora do "geral abstrato" à facticidade de estruturas sociais, não ao poder dos conceitos de uma normatividade fechada em si mesma. De sorte que a uniformização sincronizadora e o isolamento devem ser atribuídos a mecanismos penetrantes do mercado e do poder administrativo, por conseqüência, a mecanismos da integração social que se transformam em poder reificador quando conseguem atingir o coração do mundo da vida, que é estruturado de modo comunicativo. Enquanto o esgotamento dos recursos da solidariedade social se apresenta como efeito da invasão de relações de troca e de regulamentações burocráticas na área nuclear das esferas públicas e privadas do mundo da vida, estruturadas de modo comunicativo, porém, desfiguradas patologicamente, a crítica ainda não se dirige a contradições aninhadas conceitualmente nas próprias normas.2 A obra de Adorno constitui a passagem para o terceiro degrau de uma crítica ainda mais aguda, já que ele interpreta a troca de equivalentes e o poder de organização - que são os dois mecanismos sistêmicos da integração social - à luz de uma crítica da razão. Eles são, aos seus olhos, expressão de uma racionalidade instrumental que contradiz a forma espontaneamente individuadora de relações

2 HABERMAS. J. "Konzeplionen der Moderne". in id. Die Postnationale Konstellation. Frankfurt/M., 1998, 195-231.

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solidárias. Ao passo que Derrida dissolve os laços que - na tradição das teorias da racionalização weberianas que remontam a Lukács -ainda uniam a crítica da razão à teoria da sociedade1 e se limita a uma desconstrução dos conceitos fundamentais da teoria política. Ele se interessa especialmente pela heterogeneidade interna do conceito de um direito unido indissoluveltnente a um poder soberano.4 Em que pese isso, a desconstrução da justiça, projetada por Derrida, aproxima-se muito da perspectiva de uma esperança messiânica indeterminada, nos termos delineados por Adorno. O discurso instante sobre um "evento" esperado com hesitação5 faz supor que Derrida "critica uma compreensão da igualdade liberal existente, que é excludente e opressiva, na perspectiva de uma compreensão da igualdade liberal aturadora, ampliada e isenta de dominação".6

Parece que a recordação das promessas da tradição da radical democracia continua inspirando Derrida; já que ela continua sendo, para ele, uma fonte de esperança - contida, é verdade - numa solidariedade universal, capaz de permear todas as relações. Contrapondo-se a isso, Christoph Menke imprime ao negócio da desconstrução da justiça uma guinada anti-utópica. E nesse empreendimento, ele desenvolve uma interpretação do liberalismo, interessante, autônoma e pós-moderna. Ele partilha com a versão clássica a opinião, segundo a qual, o papel desempenhado pelo procedimento democrático e pela participação política dos cidadãos não é essencial para a determinação da idéia liberal fundamental de iguais liberdades éticas. Neste caso, a tentativa visando comprovar que a concepção de iguais liberdades cai em autocontradição constitui

'Tal ligação continua sendo feita na 'Teoria do agir comunicativo"; sobre o correspondente procedimento "reconstrutivo" cf. PETERS B. Die Integra-tion moderner Gesellschaften. Frankfurt/M., 1993. 371 ss.

4 DERRIDA, J. Gesetzeskraft. Frankfurt/M., 1991; id. Politik der Freundschaft. Frankfurt/M., 2000. Sobre o nexo constitutivo entre direito e poder cf também HABERMAS, J. (1992), 167-186.

•'Cf., por exemplo, DERRIDA, J. Die unbedingte Universitiii. Frankfurt/M 2001.

6MENKE, Ch. Spiegelungen der Gleichheil. Berlim, 2000. IX.

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uma crítica da razão. Um tratamento igual, por mais refletido que seja, não seria justo quando se tem em vista os interesses da pessoa singular, "porque a realização da igualdade pode (sempre) entrarem conflito com as obrigações resultantes do enfoque individual da justiça".7 A revolução, a graça e a ironia são "três formas do trato soberano" da "relação" indissoluvelmente "paradoxal" entre tratamento igual e modo de ser justo individualmente.

O lado anti-utópico de tal concepção transparece no quietismo de uma reflexão que teima em focalizar os limites da liberdade. E bem verdade que os atos de tratamento igual não conseguem jamais atingir seu alvo, porém, tal visão desconstrutiva, que nos mantém na consciência do fracasso, não deve impedir que nossas tentativas individuais visando maior justiça sejam ainda mais determinadas.8 Na opinião de Menke, a desconstrução nada mais é do que uma preparação para a consciência da finitude, já que ela franqueia à filosofia a natureza oculta e paradoxal de sua própria ação.9 A análise conceituai desse "mundo" inconsciente tem por finalidade processar a "contradição performativa [...] entre dizer e fazer".10 Isso implica naturalmente um entendimento do modo como "a" filosofia interpreta o seu próprio fazer.

No entender de Menke, a filosofia tem a ver, desde o início, com aquilo "em que consiste o sucesso de nossa práxis" e ela entende tal conhecimento transcendental como "compreensão do que é bom". E com isso, ela pretende dar uma contribuição prática para a promoção do bem." E caso a filosofia não possuísse tal autocompreensão metafísica, faltar-lhe-ia um critério de interpretação capaz de atribuir

7 MENKE, Ch. (2000), 41. "Ibid., 33. 9 Não estou convencido de que a interpretação tecida por Menke sobre do

procedimento da assim chamada "desconstrução" coincida com a prática de Jacques Derrida ou com a sua autocompreensão. Também não pretendo tomar posição quanto a isso.

,0Cf. a introdução a KERN, A. e MENKE, Ch. Phdosophieder Dekonstraktion. Frankfurt/M., 2002 a, aqui, 9.

11 MENKE, Ch."Kõnnen und Glauben". in: MENKE, KERN (2002 a), 243 ss.

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à desconstrução um significado próprio. E nesse contexto, a prova de que "as condições de possibilidade" de uma prática bem-sucedida são, ao mesmo tempo, "condições da impossibilidade de ela ser bem-sucedida" continua a movimentar-se no universo conceituai de um pensamento metafísico que lança mão do conceito de totalidade. Por isso, o verdadeiro rival de uma crítica da metafísica é a autocompreensão pós-metafísica da modernidade, a qual toma como ponto de partida a pressuposição da autonomia de sujeitos que agem de modo responsável e autoconsciente: "A desconstrução dirige-se à pressuposição filosófica, segundo a qual, apenas nosso 'ser capaz de' (Kónnen) toma possível o sucesso da práxis."12 Nos termos de tal interpretação, a desconstrução tem por alvo inquietar uma modernidade desencantada afugentando-a da inquestionabilidade de suas pressuposições mentais.

Não obstante isso, as teorias da moral e da justiça, cujas referências encontram-se no universalismo igualitário kantiano e na sua concepção de autonomia, devem constituir um grande desafio para tal tipo de projeto. E esse é precisamente o pano de fundo para a controvérsia com John Rawls,11 que Cristoph Menke retomou na Deutsche Zeitschriftfur Philosophie.14 A excelente análise merece ser destacada, não somente por sua argumentação clara, mas também por seu objeto. Menke desenvolve sua crítica à idéia de igualdade tomando como exemplo o liberalismo político, ou seja, mais precisamente, tomando o exemplo de uma interpretação da igualdade juridicamente institudionalizada de cidadãos de uma coletividade política. Ele pretende chamar a atenção - no âmbito das relações entre pessoas de direito - para o sofrimento que a abstração violenta de leis gerais inflige às pretensões individuais das pessoas atingidas. Tal concentração no direito e na política é importante à proporção que os

12 Ibid., 247. 13 MENKE, Ch. "Liberalismus im Konllikt", in: id. (2000), 109-131. 14 MENKE, Ch. "Grenzen der Gleichheit". in: Deutsche Zeitschrift fiir

Philosophie. 50, (2002), 897-906. As páginas citadas no texlo relerem-se a esse artigo.

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argumentos em prol de uma "outra" justiça ou de uma "cuidadosa" justiça apontam para uma dimensão situada além do direito. Um emprego moralmente obrigatório, inferido dos encontros pessoais e contextos comunicativos de biografias individuais enlaçadas solidariainente, transforma-se numa medida pretensiosa da crítica do direito, porém, inadequada.

O direito obtém, naturalmente, sua legitimidade de conteúdos morais; todavia, ordens jurídicas construídas complementam as orientações morais da ação, adquiridas mediante socialização, inclusive com o objetivo de aliviar, em condições complexas e intransparentes, os cidadãos do peso das exigências cognitivas e motivacionais de uma moral pretensiosa. Isso explica diferenças de forma entre a moral e o direito, que têm de ser levadas na devida conta quando se fala de "justiça" em sentido moral ou jurídico. O fato de o direito não poder contradizer a moral não significa, no entanto, que ele esteja situado no mesmo plano que ela. As diferenças aparecem, com inteira nitidez, nas pretensões a nós dirigidas por deveres positivos direcionados ao "próximo". E precisamente as éticas pós-modernas giram "não menos do que a teoria moral de Adomo - a qual nunca foi escrita - em tomo da idéia de que a pretensão da justiça humana só pode ser satisfeita plenamente no trato correto do não-idêntico".15

Numa comparação entre tais princípios, Axel Honneth já chamara a atenção para o perigo de uma supergeneralização. O "cuidado sem limites para com um indivíduo singular e insubstituível", sublinhado pela fenomenologia de Levinas, é inferido de relações face-to-face em situações existenciais agudizadas, as quais lançam luz sobre o impulso moral fundamental e freqüentemente fundamentam deveres positivos de virtude; mas não é típico de deveres do direito. E bem verdade que a própria função da jurisdição consiste em aplicar as leis de tal forma que, no caso singular, elas sejam justas tendo em vista as "circunstâncias especiais". De uma jurisdição eqüitativa nós temos de esperar, inclusive, um extraordinário senso hermenêutico para

15 HONNETH, A. DasAndere der Gerechtigkeit. Frankfurt/M., 2000, 133-170, aqui 134.

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circunstâncias cuja relevância é distinta, dependendo das perspectivas biográficas individuais dos envolvidos no caso. Caso contrário, não seria possível encontrar nem aplicar de modo suficientemente "flexível" a única norma "adequada".16 Mesmo assim, as pretensões individuais de pessoas de direito são, de certa forma, cunhadas previamente pelos predicados da norma do direito; elas restringem-se basicamente àquilo que pessoas de direito podem esperar umas das outras: um comportamento sob as determinações de uma forma do direito, que, em última instância pode ser imposto. Normas do direito regulam relações interpessoais entre atores que se reconhecem reciprocamente como membros de uma comunidade abstrata criada apenas mediante normas do direito.17

Meu interesse pela tentativa sagaz de Menke, que procura desconstruir o princípio da igualdade de cidadãos de um Estado, garantidor da igualdade, lançando mão do exemplo do liberalismo político de Rawls, resulta do fato de que ele se limita à idéia liberal de igualdade na sua forma clássica. Ou seja, ele desconsidera a generalização preliminar de interesses, a ser propiciada mediante legislação democrática, ou melhor, por meio de uma justificação, deliberada e aceita em comum, das determinações legais de iguais liberdades subjetivas (II). Mesmo sob premissas de uma interpretação que leva tal aspecto em consideração, não está excluída totalmente a crítica quando pensamos nos efeitos ambivalentes de direitos de grupos fundamentados de modo tnulticulturalista. Tais direitos, que têm por função reforçar capacidades de auto-af i rmação de grupos discriminados, parecem, apesar de seu surgimento democrático exemplar, falar a favor de uma transformação dialética da igualdade em repressão (III). E como conclusão, eu gostaria de submeter novamente à prova, numa perspectiva histórica, a consistência conceituai do cruzamento entre igualdade e liberdade em casos de tratamento cultural igual, ou seja, mais precisamente na perspectiva da imputabilidade

l6GÜNTHER, K. Der Sinn für Angemessenheit. Frankfurt/M., 1988, 261 ss. E 135 ss.; cf. também HABERMAS (1992), 272 ss.

17 Sobre as determinações da forma do direito, cf. HABERMAS, (1992), 143 ss. 312

dos custos a serem assumidos pelas comunidades religiosas para a adaptação cognitiva a exigências da modernização cultural e social (IV).

II

Mencke pretende mostrar que a idéia das liberdades éticas iguais para todos cai em contradição consigo mesma no decorrer da execução do programa liberal. Apesar de ele não se interessar pela proposta específica que o Rawls tardio apresenta como solução para o fato do pluralismo das visões de mundo, isto é, a concepção de um módulo de consenso que se sobrepõe,18 a teoria de Rawls é indicada para tal desconstrução, já que ela configura, explicitamente, uma concepção "política" da justiça por conseguinte, neutra e igualmente aceitável por todos os cidadãos. Uma constituição liberal garante a todos os cidadãos a igual liberdade de configurar sua vida seguindo os ditames de suas próprias "concepções do bom". Caso fosse possível demonstrar que a própria garantia siméünca de liberdades éticas é apenas expressão de uma determinada compreensão substancial do que deve ser uma vida "correta", os cidadãos que não compartilhassem tal visão liberal do mundo, agora predominante, teriam de sentir-se tolhidos no trabalho espontâneo da configuração de sua vida. Suponhamos, por um só momento, que determinada compreensão antropocêntrica - por exemplo, o contexto da fé nos ideais do iluminismo francês do século XVIII - fosse o único caminho viável para a explicação do princípio das iguais liberdades éticas. Neste caso, o pluralismo das visões de mundo, institucionalizado no Estado liberal, teria de marginalizar, no longo prazo, todas as doutrinas religiosas.

Rawls precisa evitar tal liberalismo ético, o qual, em nome da igualdade de direitos, iria confinar eo ipso o igual direito de seguidores de doutrinas que se digladiam entre si. Menke concorda com ele, não

"FORST R. Kontexte der Gerechtigkeit. Frankfurt/M., 1994, 152-160; HABERMAS, J. "'Vernünflig' versus 'wahr' oder die Moral der Weltbilder", in: id. Die Einbeziehung des Anderen. Frankfurt/M., 1996, 95-127.

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no que tange à solução do problema, mas na sua formulação. No seu entender, qualquer tentativa, mesmo a mais refletida, visando garantir a todos os cidadãos liberdades éticas iguais sobre a base de um conceito de justiça neutro do ponto de vista das cosmovisões, está destinada ao fracasso, por razões conceituais. Com isso, porém, Menke não pretende afastar-nos da tentativa continuada que busca justiça sobre a base do tratamento igual de todos. Mas sugere que abandonemos a presunção de produzir a justiça por nós mesmos.

Na consciência trágica de um conflito aparentemente insolúvel entre aquilo que é justo para todos e aquilo que é bom para um indivíduo, a realização da igualdade política deve continuar sendo "um objeto da esperança e do desejo" - porém, não no sentido trivial de que existe, sempre, uma diferença de nível entre norma e realidade, mas num sentido metafísico mais profundo que nos leva a reconhecer a "impossibilidade de realizações garantidoras de sucesso". Na própria teoria de Rawls deveria ser possível pensar o "estar-por-chegar da justiça", por conseguinte, a idéia de que "o âmbito da justiça torna-se algo independente face à realização subjetiva da justiça".19 Ou seja, utilizando os termos da gramática hegeliana: a causalidade do destino mantém a supremacia frente à justiça abstrata - agora, na tura lmente , não mais em nome de uma razão objet iva, sobrepujadora ou absoluta.

Mesmo quando os correspondentes princípios constitucionais assumem a forma de procedimentos da legítima determinação ou aplicação do direito, uma concepção de justiça política não pode ser neutra no sentido de que lhe falta qualquer tipo de conteúdo normativo.20 Rawls exige, para uma ordem política justa, a neutralidade do fim que se contrapõe às formas de vida e cosmovisões difundidas nas sociedades civis (1) , mas não a neutralidade dos efeitos que certas normas e medidas exercem sobre diferentes

'"MENKE (2002 a), 250. 2uCf. a crítica de Rawls a minha compreensão procedimentalista, in: "Reply to

Habermas", in: The Journal of Philosophy, XCII, 1995, 170 ss, bem como minha réplica in: HABERMAS (1996), 124ss.

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grupos culturais (2).21 Menke julga poder mostrar, sob ambos os aspectos, que as condições que viabilizam uma ordem constitucional universalista e igualitária revelam-se, no final das contas, aporéticas, isto é, aparecem como condições da impossibilidade de sua realização.

(1) A neutralidade da meta de uma concepção de igualdade de cidadãos do Estado se mede pela inclusão completa e simétrica dos cidadãos. Todos eles devem ser incluídos simetricamente na comunidade política, isto é, sem nenhuma discriminação de seu modo de viver ou de sua autocompreensão ou da compreensão que eles têm do mundo. Tal meta exige, evidentemente, uma demarcação (Abgrenzung) de doutrinas (tal como as sexistas, racistas ou fundamentalistas) inconciliáveis com o princípio da igualdade de cidadãos do Estado, bem como uma limitação (Begrenzung) de direitos e deveres para com pessoas (tal como, por exemplo, crianças menores de idade ou pacientes não imputáveis no sentido do direito) que ainda não têm - ou que provisoriamente não têm - condições de preencher os papéis de cidadãos ou de pessoas privadas capazes de negociar. O problema especial da demarcação, que se coloca no contexto de cosmovisões fundamentalistas e de membros dos assim chamados grupos "iliberais", pode ser ignorado aqui.22

Menke fundamenta a tese, segundo a qual a neutralidade da meta é inatingível quando se trata de grupos ou doutrinas que aceitam premissas igualitárias, lançando mão do seguinte argumento: A história das constituições européia e americana oferece exemplos drásticos da exclusão de mulheres, de desclassificados, de negros, e tc , a qual fere, evidentemente, o princípio do tratamento igual: "Por isso, qualquer concepção liberal da igualdade não se encontra apenas em oposição com representações de ordem e de justiça não-igualitárias, mas constitui, além disso, a tentativa de ultrapassar as determinações passadas da idéia de igualdade liberal e de superar a opressão que ainda é inerente a elas." (901) Entretanto, a compreensão retrospectiva

21 FORST (1994), 82 s. 22Cf. abaixo, secção III.

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das inconseqüências de uma implantação seletiva e penosa de direitos fundamentais, não leva, como seria de se esperar, Menke a concluir que houve progressos de um processo de aprendizagem autocorretivo se corrige. Ao invés de entender que as tentativas passadas visando a concretização da idéia da inclusão simétrica de todos os cidadãos só foi bem-sucedida em parte havendo, inclusive, contradições à idéia, da igualdade, ele explica que isso tudo foi conseqüência de uma inconsistência da própria idéia da igualdade de cidadãos de um Estado, subjacente: é impossível "determinar", de modo neutro, a idéia liberal de liberdades iguais porque nem os descendentes têm certeza quanto à validade de suas tentativas visando corrigir os erros do passado.

E bem verdade que as gerações posteriores podem tentar "obter" a neutralidade do alvo, mas não têm como "garanti-la". O grau de falibilidade da razão prática é, inclusive, muito maior do que o da teórica.21 Além disso, não devemos excluir a possibilidade de que, à luz de uma projeção futura, nossas atuais reformas também poderão ser consideradas incompletas e necessitadas de correções. Todavia, é necessário perguntar, será que elas terão sido falsas ou terão de ser necessariamente tidas na conta de falsas? A consciência falibiIista que nos acompanha quando formulamos uma asserção não significa, no entanto, que com isso nós relativizamos ou, menos ainda, que abandonamos a pretensão de verdade que exteriorizamos a favor dela. A compreensão que obtemos mediante a retrovisão de uma terceira pessoa, segundo a qual, alguns de nossos esforços cognitivos sempre fracassam, não nos força, na perspectiva de um participante, a descrer completamente de qualquer tipo de conhecimento.

Menke recusa uma interpretação falibilista de sua tese. Para isso ele não fornece, no entanto, uma fundamentação plausível. O fato de as conseqüências de juízos práticos incorretos serem, em geral mais graves do que as conseqüências de juízos teóricos falsos não impede que juízos morais e decisões jurídicas sejam privados do status de proposições que podem ser correias ou falsas. Cf. HABERMAS, J. "Richtigkeit versus Wahrheit. Zum Zinn der Sollgeltung moralischer Urteile und Normen", in: Wahrheit und Rechtfertigung. Frankfurt/M., 1999,271-318.

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No entanto, é exatamente sobre isso que se apoia a objeção. E já que a nossa situação epistêmica não difere essencialmente, aqui e agora, da situação epistêmica das gerações anteriores, cujas tentativas destinadas à obtenção de determinações neutras da idéia de igualdade sempre fracassaram, não podemos lançar fora a idéia "de que nossas próprias propostas e determinações, quando inseridas numa consideração retrospectiva, são, por seu turno, criticadas por aparecerem como não-neutras" - nessa passagem Menke não afirma: "poderiam ser criticadas" (902). As gerações passadas também erraram e em todas as direções. Como o exemplo americano de uma tradição constitucional continuada de mais de duzentos anos revela, os descendentes corrigiram erros dos predecessores e dos pais fundadores, por exemplo, no período da reconstrução ou na época do New Deal ou ainda no movimento dos direitos dos cidadãos ocorrido no século passado. E uma vez que a idéia da igualdade de cidadãos do Estado ultrapassa sua respectiva institucionalização, é possível eliminar exclusões reconhecidas como injustificadas á luz de outras circunstâncias históricas. Como no caso de domínios teóricos, aqui também a relativização de compreensões antigas pode levar à ampliação, não à liquidação de conquistas passadas.

Eu não consigo entender como seja possível explicar as cegueiras notórias que desvendamos hoje em dia obnubilando interpretações passadas da igualdade cidadã e como seja possível concluir que as práticas de exclusão e discriminação - que decorrem daquelas interpretações - são conseqüência de "condições de impossibilidade" conceituais embutidas na própria idéia (da igualdade cidadã, n.t.). As interpretações seletivas de normas que são, de acordo com sua forma gramatical, frases universais, mas que, no plano semântico não são, de forma alguma, imunes à interpretação particularista dos "conceitos fundamentais" nelas empregados, tal como "pessoa" ou "homem", exigem uma explicação empírica. E esta tem de englobar a semântica do pano de fundo metafísico e religioso, o qual impregna previamente as interpretações de normas de igualdade que representam valores.

Thomas A. McCarthy segue tal método em sua análise dos preconcei tos raciais detectáveis na antropologia de Kant:

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"Cosmovisões substanciais - religiões, cosmologias, metafísica, história da natureza, etc. - têm, para normas gramaticalmente universais, o efeito de um mecanismo de retração {...}. A significação dos conceitos-chave utilizados para a formulação de normas universais foi, curiosamente, modificada, a fim de tomar visíveis diferenças de sexo, de raça, de etnia, de classe, de status ou de outras formas de pertença a grupos e de adscrição de identidade, de tal modo que aqueles que entendiam a questionabilidade da linguagem podiam distinguir as diferenças da esfera de validade das normas, intencionada."24 Interpretações seletivas de princípios fundamentais universalistas constituem sintomas de uma diferenciação incompleta entre o "justo" e o "bom". Todavia, a experiência histórica, segundo a qual nós, felizmente, também podemos aprender algo a esse respeito não confirma eo ipso a natureza paradoxal do projeto que se propõe garantir liberdades éticas para todos em geral.

( 2 ) Rawls pretende neutralidade para sua concepção de justiça tomada como um todo, não para os efeitos das normas singulares que asseguram igualdade. As repercussões dessas (normas) sobre a autocompreensão ética e o modo de vida de cada um dos destinatários não são necessariamente as mesmas. Aparentemente, Menke é de opinião que essa tese tem de ser considerada como uma quase-concessão à desconstrução. Consideremos, no entanto, os fenômenos que constituem alvo de tal reserva. O primado conceituai do justo sobre o bom significa que, em certos casos, uma norma que é do interesse simétrico de todos impõe não somente limitações em geral (Einschrànkungen), mas também, de acordo com o círculo de destinatários, sobrecargas não-simétricas que acarretarão restrições, as quais penalizarão um grupo mais do que outros na configuração de sua forma de vida, que onerarão algumas pessoas mais do que outras na persecução de metas individuais de vida. Uma regulamentação

24M ACCARTHY, Th. "Die politische Philosophie und das Problem der Rasse", in: WINGERT, L. e GÜNTHER, K. (orgs.) Die ôffenllichkeit der Vernunft und die Vernunft der Ôffenllichkeit. Frankfurl/M.. 2001, 627-654, aqui. 633.

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liberal do aborto, por exemplo, imputa aos crentes católicos e a todos os que se posicionam a favor da vida (Pro-Life) - fundamentados na religião ou em visões de mundo - um peso maior do que ao cidadão secular, o qual, mesmo quando não compartilha a posição a favor da escolha (Pro-Choice), é capaz de enfrentar com menor sofrimento o pensamento de que o direito à vida do embrião humano pode, em determinadas circunstâncias, ser suplantado pelo direito de autodeterminação da mãe.

De outro lado, Menke pretende limitar sua análise a perdas em formas de vida e cosmovisões que são não-anti-igualitárias por natureza. Nesse caso, porem, ele não deveria referir a não-neutralidade dos efeitos a grupos dotados de identidade que não sobreviverão durante muito tempo na sociedade bem ordenada do liberalismo político." Porquanto, nesse caso, Rawls fala em grupos "iliberais" cuja sobrevivência depende, por exemplo, da condição de que seus membros "controlem o aparelho do Estado e tenham condições exercer efetivamente intolerância".25 Poderíamos encontrar um exemplo disso na interpretação xiita do Corão tal como é concebida atualmente pelos mullahs que detêm o poder no Irã; no entanto, ela não poderia ser classificada como uma "concepção do bom que não é, em princípio, anti-igualitária". Muito mais do isso, a questão gira em torno do seguinte ponto: será possível constatar, - a partir das sobrecargas diferenciais que as normas imputam, às vezes, aos seus destinatários mesmo quando justificadas sob o ponto de vista da consideração simétrica dos respectivos interesses de cada um - uma aporia que habita no âmago da própria idéia de igualdade?

Menke toma como guia de seu pensamento uma intuição, segundo a qual, qualquer determinação mais particularizada da idéia do tratamento igual constitui um geral abstrato, o qual necessariamente é levado a forçar a vida individual de pessoas singulares. Neste ponto, é importante evitar uma falsa colocação de diretrizes. Do ponto de vista cognitivo, nós sempre temos à disposição a alternativa de julgar estados de coisas na perspectiva participante de cidadãos que

"RAWLS, J. Poiitischer Liberalisimts, Frankfurt/M., 1998. 294.

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colaboram, por intermédio de metas coletivas e normas obrigatórias, na formação política da opinião e da vontade, ou na perspectiva de uma primeira pessoa que, na qualidade de indivíduo inconfundível, toma a decisão de refletir sobre o seu próprio modo de vida. Tal possibilidade de mudança de perspectivas, que existe no plano cognitivo, não encontra, no entanto, uma correspondência simétrica no plano normativo. Aqui, os "direitos" da perspectiva imparcial da justiça não coincidem exatamente com os de uma avaliação ética da própria vida, já que a prioridade da justiça não pode ser arbitrariamente invertida, a qualquer momento, a favor de uma precedência ética de metas de vida próprias: isso eqüivaleria a um nivelamento da prioridade da imparcialidade, da qual não podemos desvencilhar-nos.

Certamente, os atingidos podem submeter a uma avaliação pessoal, à luz de uma perspectiva subjetiva, os efeitos que normas justificadas intersubjetivamente têm sobre sua vida. Tal opção, no entanto, da qual os participantes lançam mão ex ante - durante o processo de justificação - não implica, na seqüência dos passos da reflexão e durante a assunção da respectiva perspectiva, numa valorização capaz de conferir, normativamente, a derradeira palavra ao auto-entendimento ético.

No final das contas, a fusão simbiótica destas duas perspectivas tenta preparai- o caminho para a concepção de uma justiça supostamente "superior" capaz de garantir uma coincidência feliz entre o justo e o bom26 individual: "E neste caso, a prioridade da justiça liberal poderia ser tida como uma prioridade política e ética, não apenas para as instituições, mas também para nós, na qualidade de indivíduos que participam de instituições."27 No entanto, a natureza paradoxal de tal standard, introduzido subrepticiamente, explica por que qualquer tipo de "justiça política" distribuída mediante a utilização da moeda de liberdades éticas iguais, aparece, à luz de tal standard, como não-

36 MENKE (2000, 7) pretende colocar a idéia da igualdade numa relação tal com "as obrigações derivadas da individualidade" que ela não esteja decidida desde o início a íavor da prioridade da igualdade.

"MENKE (2000), 122.

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realizável. Por boas razões, a justiça política não tem, nos contextos da maioria das biografias dos indivíduos, prioridade sobre outras orientações valorativas individuais, tidas como mais importantes.

A falha inerente a tal consideração pode ser descoberta facilmente, já que as perspectivas da justiça e da "vida boa", opostas, não se integram completamente, a ponto de formar uma verdadeira simbiose, mas permanecem, por boas razões normativas, entrelaçadas entre si de modo assimétrico. No longo prazo, o auto-entendimento levado a cabo na visão da primeira pessoa só pode ser bem-sucedido com a ressalva de que a persecução de metas da vida individual não ultrapasse as fronteiras da consideração moral por outros.28 De outro lado, os cidadãos - no seu papel de co-legisladores democráticos - dependem de procedimentos da assunção recíproca de perspectivas, a fim de que as perspectivas dos atingidos, que não pretendem deixar que suas metas de vida individuais sejam confinadas de uma forma existencialmente insuportável, encontrem acesso à perspectiva da justiça.

A aplicação adequada de uma norma depende de tal justificação democrática. Pode ser considerada "adequada" a um caso individual a norma em cuja luz todas as características relevantes do conflito e das pessoas envolvidas no conflito puderem ser consideradas "de modo inteiramente satisfatório".29 Quem se satisfaz apenas com as características semânticas de uma norma geral e afirma que ela não pode fazer jus às especificidades de um caso e do contexto histórico individual, passa por alto o sentido pragmático da "generalidade" de normas justificadas democraticamente. Tal espécie de normas foi encontrada e estatuída após um procedimento de deliberação e de decisão que cria bases para uma suposição capaz de fundar aceitabilidade racional e, neste sentido, geral. Não se pode dizer, de forma alguma, que o Estado de direito, democrático, ignora "o

SEEL, M. Versuch über die Form des Glücks. Frankfurt/M., 1999, 191 ss. GÜNTHER, K. "Ein normativer Begriff der Koharenz", in: Rechtstheorie, 20

(1980), 163-190; id. "Warum es Anwendungsdiskursegibt", \ nJahrbuch für Recht und Ethik, vol. 1, (1993) 379-389.

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problema da possível demarcação do bem individual por meio da igualdade política" (905). Nos cenários hipotéticos de uma esfera pública militante e nas controvérsias políticas do legislador democrático, os efeitos não-neutros constituem ex ante o tema propriamente dito, portanto, não apenas nos discursos de aplicação da jurisdição.

Uma vez que o procedimento democrático faz a legitimidade das decisões depender das formas discursivas de uma formação inclusiva da opinião e da vontade, as normas destinadas a garantir iguais direitos só podem surgir quando se tem conhecimento dos fardos diferenciados que elas implicam e após a avaliação de tais fardos. Menke declara que os efeitos não-neutros das normas de igualdade são "efeitos não visados" da "efetivação da igualdade" (903). Isso trai uma fixação na posição observadora de um teórico; ele se recusa a assumir a perspectiva de cidadãos que se entendem, ao mesmo tempo, como autores da lei e do direito. O liberalismo pós-moderno, ao seguir de perto o clássico, desfocaliza o componente democrático presente na legislação e na idéia diretriz das iguais liberdades, além de não prestar mais atenção ao nexo dialético que une a autonomia privada à de cidadãos de um Estado.

Desta maneira, o processo de "determinação" da igualdade realiza-se apenas na cabeça do observador filósofo. Falta um lugar para a prática comunicativa dos cidadãos participantes. Somente neste espaço pode realizar-se como "autodeterminação" - na figura de uma formação democrática da opinião e da vontade - o processo de determinação daquilo que deverá culminar numa aplicação eqüitati va, assumindo a forma de uma norma geral. Tendo participado do processo de diferenciação do justo e do bom, tanto na perspectiva da compreensão de si mesmos e do mundo como sob a condição da recíproca assunção de perspectivas, os atingidos vêem as normas gerais que encontraram assentimento geral, após a consideração discursiva da exclusão antecipada e do confinamento, não mais - e, especialmente, não mais devido à sua generalidade garantidora de igualdade - como um poder estranho que mutila sua vida individual.

Não é necessária uma desconstrução da idéia de igualdade para se chegar ao ponto ao qual tende naturalmente o procedimento

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democrático. Já que o discurso político, à proporção que direciona o olharem direção àquilo que é igualmente bom para todos, permanece naturalmente referido aos juízos éticos "que os indivíduos emitem tendo em vista o que é importante e bom para a sua vida" (898). E quando tal sobrecarga puder ser imputada tendo em vista a eliminação de uma discriminação, os participantes podem aceitar como justa até mesmo uma norma (por exemplo, uma regulamentação liberal do aborto) cujos efeitos onerarão - na sua visão pessoal - mais a eles próprios do que aos outros cidadãos. Dado que a norma tem de ser legitimada pelo caminho democrático, isto é, com o conhecimento e a consideração de seus efeitos não-neutros pela totalidade daqueles que têm de suportar seus efeitos, as restrições assimétricas aceitas por razões normativas são expressão do princípio da igualdade cidadã (de cidadãos de um Estado), não menos do que a própria norma - e não simples sinais de sua "heterogeneidade interna".

Por conseguinte, nem as delimitações impostas pela "neutralidade da meta" (1), nem os "efeitos não-neutros" de direitos distribuídos de maneira efetivamente igual (2) proporcionam argumentos para uma "fronteira da igualdade" inerente à idéia da igualdade de cidadãos do Estado. O inevitável "sofrimento dos indivíduos, provocado por toda ordem da igualdade e que resulta de seus efeitos de delimitação" (Begrenzung) (906) não pode ser comprovado pelos meios de uma análise conceituai. Apenas o universalismo igualitário que exige iguais direitos, sem deixar de ser sensível a diferenças, tem condições de satisfazer à exigência individualista que consiste em garantir eqüitativamente a integridade vulnerável do indivíduo que é insubstituível e cuja biografia é inconfundível.

ffl

E bem verdade que tal asserção atinge apenas as condições conceituais visadas pela desconstrução, e não as condições de fato, deformadas pela violência. Naturalmente, até hoje, as "ordens da igualdade", liberais, encobrem a injustiça gritante da desigualdade social. Nos quarteirões miseráveis de nossas cidades e nas terras

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devastadas residem os "que se tomaram supérfluos" e foram expulsos, para os quais os iguais direitos não têm o "mesmo valor". Eles sofrem, sob a aparência da igualdade, a miséria da insegurança e do desemprego, a humilhação da pobreza e da subalimentação, o encapsulamento de uma vida à margem da sociedade, o sentimento repleto de mágoa de que se é algo que não possui nenhuma utilidade, o desespero pela perda de todos os meios que seriam necessários para uma mudança, a partir das próprias forças, da situação acabrunhadora. Nesses fatos, porém, não se manifesta nenhum paradoxo oculto na normatividade da própria idéia de igualdade. Antes, pelo contrário, a percepção da contradição que existe entre a pretensão normativa levantada pelas condições de vida e a visão moralmente obscena que elas realmente oferecem produz dissonâncias cognitivas.

Desde os primeiros socialistas até os atuais opositores da globalização, o protesto político é desencadeado por fatos que desmentem a pretensão normativa de uma igualdade de direitos entendida de forma conteudística. Nasceu daí a promessa do Estado social, segundo a qual, a garantia de liberdades éticas iguais tem de incluir também a chance de poder fazer uso fático de direitos distribuídos de forma igual. Cidadãos em condições de vida subprivilegiadas têm o direito a realizações de compensação quando lhes faltam os recursos e as chances de fazer uso de seus direitos seguindo preferências e orientações axiológicas próprias.

E bem verdade que a visão sobre as contradições que resultam da contraposição entre facticidade e validade pode até transformar-se numa mola política capaz de impulsionar uma autotransformação da sociedade - mediante uma desconstrução que projeta a contradição na normatividade enquanto tal - caso as dissonâncias cognitivas não venham a ser desarmadas por uma ontologização porque, neste caso, elas perderiam o seu aguilhão. Entrementes, temos de averiguar se a implantação de direitos culturais para os membros de grupos discriminados e a introdução de direitos sociais acompanham um desenvolvimento do direito regido pelo princípio da igualdade cidadã (de cidadãos do Estado)( 1). A justificação de direitos culturais explica a concorrência inquietante entre direitos de grupos e direitos de

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indivíduos (2), a qual ainda desperta, apesar de tudo, a aparência paradoxal de uma mudança dialética: os direitos iguais transformam-se em opressão (3).w

( 1 ) Na jurisprudência mais recente das nações ocidentais podemos encontrar muitos exemplos de correções de leis gerais que tinham efeitos assimétricos insuportáveis: autorizam-se os sikhs a portar seu turbante enquanto dirigem a motocicleta ou a portarem publicamente seu punhal ritual; mulheres muçulmanas e alunas têm a permissão de manter, na escola ou no trabalho, o seu "véu"; os açougueiros judeus podem abater animais e aves seguindo métodos "puros", etc. E parece que se trata, nesses casos, de exceções de leis gerais (da segurança do trânsito, da proteção dos animais, etc.) Todavia, a interpretação de tais decisões como regulamentações de exceção sugere a idéia, enganadora, de uma dialética inerente à idéia de igualdade. De fato, nesses casos, a jurisprudência apenas tira conseqüências do fato de que sikhs, judeus e muçulmanos gozam da mesma liberdade de religião que a maioria da população cristã. Não se trata, pois, de uma misteriosa "virada do geral no particular", mas de um caso, trivial, onde se atribui prioridade a um direito fundamental sobre simples leis ou prescrições de segurança. Como no caso da decisão de Karlsruhe sobre a equiparação da comunidade das testemunhas de Jeová (que, mediante o reconhecimento enquanto instituição de direito público, obteve o gozo dos mesmos privilégios usufruídos pelas outras igrejas), aqui também se üata da implantação do direito cultural igual pelo caminho normal de uma materialização do direito.

Regulamentações na parte organizacional da constituição (tal como a transmissão de competências da auto-administração para corporações regionais ou a concessão de direitos especiais de representação para minorias culturais) e políticas multiculturais para a proteção e a promoção de grupos discriminados (tal como regulações de cotas no sistema de educação, no mercado de trabalho e na política;

Pelas considerações que seguem devo agradecer aos participantes de um seminário realizado na Northwestern University no verão do ano de 2002.

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subvenções para programas de ensino da linguagem e currículos escolares; a regulação de linguagens oficiais, feriados oficiais, símbolos nacionais) são medidas destinadas a evitar a exclusão de grupos com forte identidade própria. Um estudo de Charles W. Mills11 revela que tais tendências continuam a difundir-se mesmo sob o umbral dos direitos formais iguais. Até na semântica da linguagem do corpo operam mecanismos menos evidentes de exclusão nas formas de trato e nos padrões de comunicação do intercâmbio cotidiano. É bem verdade que uma "política do reconhecimento" se choca com os limites estruturais do médium do direito, pelo qual é possível obter, no melhor dos casos, um comportamento conforme as normas, mas não uma mudança de mentalidade. Entretanto, os limites factuais de atuação de um médium de controle, como é o caso do direito, não podem ser confundidos com barreiras conceituais numa idéia da igualdade do conteúdo do direito, aparentemente contraditória.

Designamos como liberal uma cultura que se caracteriza por relações simétricas de reconhecimento recíproco - mesmo entre membros de grupos de identidade diferentes. Tais condições de reconhecimento, que sobrepujam limites subculturais, podem ser criadas indiretamente com os meios da política e do direito, não diretamente. Direitos culturais e políticas de reconhecimento podem fortalecer a capacidade de auto-afirmação de minorias discriminadas, inclusive sua visibilidade na esfera pública; mesmo assim, não se pode modificar, mediante a ameaça de sanções, o registro social de valores. O reconhecimento recíproco de membros com iguais direitos, o qual constitui o alvo do multiculturalismo, pressupõe relações interpessoais modificadas que se produzem pela via do agir comunicativo e do discurso e se harmonizam na esfera pública democrática, em última instância, mediante controvérsias políticas sobre a identidade.12 Todavia, esses mesmos processos desenrolam-se num espaço que se

11 MILLS, Ch. W. The Racial Conlract. Ithaka (N. Y.), 1997. •,2 FRASER, N. "Struggle over Needs", in: id. Unruly Practices. Minnesota,

1989, 161-190; BENHABIB, S. The Claims of Culture. Princeion. 2002, 114-122.

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constitui mediante a participação política e os direitos de comunicação dos cidadãos do Estado. Por conseguinte, a "auto-reflexão" que visa "reconhecimento da diferença", para a qual Menke, com razão, chama a atenção, não depende de uma outra política, inteiramente distinta, a qual - por sobre os escombros da igualdade desconstruída - livrar-se-ia das algemas do direito refugiando-se na esfera da virtude.-1-1

A discussão sobre "multiculturalismo" obriga a uma diferenciação cuidadosa no conceito da igualdade cidadã (de cidadãos do Estado). Discriminação ou desprezo, ausência nas arenas públicas da sociedade ou deficiente auto-respeito coletivo são indicadores de inclusão incompleta dos cidadãos, aos quais é vedado o status pleno de membros de uma comunidade política. O princípio da igualdade cidadã é ferido na dimensão da pertença, não na da justiça social. O grau de inclusão tem a ver com relações horizontais entre membros da comunidade política, ao passo que a extensão da ordem de status atinge as relações verticais entre cidadãos de uma sociedade estratificada.

Camadas sociais formam-se na dependência de padrões de distribuição da riqueza social. Dependendo do status, os cidadãos dispõem de mais ou menos recursos e de mais ou menos oportunidades diferentes para uma vida configurada de acordo com preferências e orientações axiológicas próprias. Entre cidadãos de um Estado dotados de iguais direitos, toda ordem de status lança a questão acerca da legitimidade de uma medida de desigualdade social a ser admitida. Independentemente do modo como se encara a exploração econômica e a marginalização social (de acordo com os princípios da justiça distributiva aceitos na sociedade14), e para além das interpretações urdidas para a privação (de meios necessários para uma vida autodeterminada), isso fere o princípio da igualdade cidadã, porém,

"Não consigo entender bem o significado da seguinte tese: "que uma política da igualdade tem de formar em si mesma a atitude ou virtude de fazer jus às experiências de sofrimento e queixas dos indivíduos" (905), se a essa política deve ser permitido "(ir) alé o ponlo extremo em que a igualdade se limite a si mesma tendo em vista tais limites".

,J PAUER-STUDER, H. Autonom leben. Frankfurt/M., 2000.

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não da mesma forma que uma inclusão incompleta. Já que a desigualdade reside na dimensão da justiça distributiva, não na de uma inclusão de membros.

Nancy Fraser reconheceu a importância de uma separação analítica das duas dimensões (quase sempre ligadas entre si no plano empírico) da desigualdade cidadã (de cidadãos de um Estado) e delineou uma distinção entre políticas da distribuição e políticas do reconhecimento.15 A luz desta diferenciação, torna-se claro por que o sentido de direitos culturais é falseado quando os integramos em uma forma de Estado social ampliado.16 Diferentemente dos direitos sociais, os direitos culturais têm de ser justificados tendo em vista as possibilidades da inclusão simétrica de todos os cidadãos. Tal consideração nos obriga, é verdade, a uma ampliação do conceito clássico de pessoa de direito, talhado conforme dois papéis distintos: o de cidadão da economia e o de membro da comunidade; tal revisão, no entanto, parece implicar, ao mesmo tempo, direitos de grupos, ambivalentes, os quais eventualmente podem em conflito com direitos individuais.

M FRASER, N. "From Redistribulion to Recognition?", in: WILLETT, E. (otg.)Theoriiing Multiculturalism. Oxford, 1998, 19-49; nas revisões que ela fez até o momento (in: FRASER, N. "Rethinking Recognition", in: New Left Review, maio/junho, 2000, 107-120) não consigo descobrir modificações do princípio original. Cf. agora também FRASER, N. e HONNETH, A. Umverteihmg oder Anerkennung?'. Frankfurt/M., 2003.

16 Assim procede BARRY {Culture andEquality. Cambridge [Mass.] 2001) , que deriva a pretensão de grupos discriminados a reconhecimento de uma falta de "meios e opções", porque ele mede a igualdade cidadã pela justiça distributiva, por conseguinte, por "oportunidades e recursos" necessários para que todo cidadão tenha as mesmas chances de fazer uso efetivo de direitos distribuídos de fomia igual. Tal assimilação da falta de reconhecimento a uma marginalização, a ser compensada materialmente leva, a seguir, a uma equiparação conira-intuiti va de convicções de fé, religiosas, a preferências: 'The position regarding prelér-ences and beliefs is similar."(36) De acordo com isso, seria pennitido aos sikhs conduzir uma motocicleta portando um turbante porque, em caso contrário, o seu espaço de opções quando da decisão por uma ou outra comunidade religiosa estaria submetido a limites injustificados.

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(2) A garantia de liberdades éticas iguais para cada um constitui o padrão de justificação para direitos culturais.17 Tais liberdades têm a forma de direitos subjetivos que abrem um espaço bem definido de opções para decisões orientadas por preferências. A pessoa dotada de direitos só consegue obter sua liberdade de decisão para fins de uma conduta de vida ética quando dispuser de um espectro suficientemente amplo de orientações axiológicas que lhe permitam escolher metas de ação e fins. Ela só chega ao gozo real de iguais liberdades éticas quando, ao escolher suas preferências, puder confiar na força orientadora de valores culturais internalizados. Por isso, o valor de uso de iguais liberdades éticas necessita das garantias de acesso a recursos culturais, dos quais os valores exigidos podem ser extraídos, isto é, adquiridos, reproduzidos e renovados.

Em que pese isso, tal justificação instrumental não atinge o sentido propriamente dito de direitos culturais. Já que o conceito de uma pessoa que age de modo racional-teológico e que realiza uma escolha entre opções dadas seguindo preferências que trazem marcas culturais é demasiadamente estreito para iluminar a significação intrínseca da cultura para o modo de viver individual. Recém-nascidos, por exemplo, vêm ao mundo ainda incompletos do ponto de vista orgânico e permanecem, durante um longo tempo, extremamente dependentes dos cuidados de outras pessoas. As pessoas só podem desenvolver-se enquanto membros sociais de comunidades culturais. E para se desenvolverem como pessoas, elas têm de entrar no caminho da socialização, introduzindo-se num universo de significações e práticas, compartilhado intersubjetivamente. Tal constituição cultural do espírito humano explica por que o indivíduo depende , ininterruptamente, de relações interpessoais e de comunicações, de redes de reconhecimento recíproco e de tradições. Isso explica também por que os indivíduos só conseguem desenvolver, revidar ou manter sua autocompreensão, sua identidade e o projeto de uma vida própria em contextos desse tipo.

"RATZ, J. "Multiculturalism: A Liberal Perspective", in id., Ethics in tlie Public Domain. Oxford, 1994, 155-176.

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Entretanto, a partir do momento em que referimos a garantia de iguais liberdades éticas a tal processo de formação, de reprodução e de continuação, o qual é entendido de modo intersubjeti vista, somos obrigados a ampliar, de modo correspondente, o conceito da pessoa de direito tida como portadora de direitos subjetivos.18 Ante tal pano de fundo, recomenda-se inferir os direitos culturais diretamente do princípio da intocabilidade da dignidade humana (Artigo Io da Lei Fundamental): A proteção eqüitativa (gleichmâssig) da integridade da pessoa, à qual todos os cidadãos têm pretensão, inclui a garantia do igual acesso aos padrões de comunicação, às relações sociais, às tradições e condições de reconhecimento, os quais são necessários14 ou desejáveis40 para o desenvolvimento, a reprodução e a renovação de sua identidade pessoal.

Tal papel cultural dos direitos fornece razões que permitem explicar por que eles podem exercer resistência à inclusão incompleta de membros de minorias raciais, étnicas, lingüísticas ou religiosas desprezadas (também de mulheres, de crianças, de velhos, e t c , marginalizados e oprimidos). O alvo da garantia do livre acesso ao pano de fundo cultural, à rede social e ao tecido de comunicações de "grupos de identidade" (com forte identidade própria) também torna compreensível a introdução de direitos coletivos. Uma vez que tais

Uma visão geral sobre essa nova discussão pode ser encontrada em KIRSTE, St. "Dezentrierung, Überforderung und dialektische Konstruktion der Rechtsperson", in: Feslschrifi fiir A. Hollerbach. Berlim, 2001, 319-362.

MARGALIT, A. e HALBERTAL, M. "Liberalism and the Righl to Culture", in: Social Research, Vol. 61, 1994, 491-519. GANS, Ch. {The Limils ofna-tionalism, Cambridge, 2003, 43 ss.) fala em "identity based argument".

Lanço mão dessa qualificação para prevenir o estreitamento de direitos culturais que teria lugar se fossem entendidos apenas como um acesso a culturas de origem. Não podemos reificar ou transformarem totalidade fechada a herança cultural, que sempre é o resultado híbrido do entrelaçamento de diferentes tradições; nem podemos concluir que a identidade de uma pessoa continua dependente, durante todo o tempo de sua duração, de uma determinada cultura ou do enraizamento na cultura em que nasceu. Cf. WALDRON, J. "Minority Cultures and the Cosmopolilan Alternative", in: University of Michigan Journal for Law Reform. Vol. 25, 1992. 751-793.

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direitos fortalecem as organizações que se engajam na auto-afirmação de culturas ameaçadas. Direitos coletivos autorizam grupos culturais a manter recursos e a disponibilizá-los para que seus membros possam lançar mão deles a fim de formar e estabilizar sua própria identidade pessoal.

Direitos de auto-afirmação concedem às representações de "grupos de identidade" autorizações de organização ampliadas e competências de auto-administração. Em nosso contexto, tais direitos desempenham um papel especial porque, com eles, surge um tipo de conflito que constitui um cotpo estranho no interior de ordens de igualdade estruturadas de modo individualista. Conflitos jurídicos típicos nascem das relações entre pessoas de direito individuais (quando um deles fere os direitos do outro) ou entre cidadãos individuais e o poder do Estado (quando este ultrapassa os limites das intervenções legais). Com a introdução de direitos coletivos surgem conflitos de outra espécie, ou seja, mais precisamente: (a) quando "grupos de identidade" distintos contestam entre si seus direitos ou prerrogativas; (b) quando um grupo exige tratamento igual tendo em vista o status de outros grupos (como é o caso normal de pretensões multiculturais); (c) ou quando não-membros se sentem prejudicados em relação a membros de grupos privilegiados (por exemplo, os brancos que se sentem prejudicados pela regulamentação de cotas para negros).

Em nosso contexto, é interessante salientar (d), isto é, o caso de uma opressão no interior do próprio grupo. Nesses casos, elites utilizam suas competências e direitos de organização ampliados com a finalidade de estabilizar a identidade coletiva do grupo ferindo direitos individuais de membros do grupo que não concordam. Onde a vida comunitária de grupos religiosos é determinada por uma "lei" protegida e interpretada pela ortodoxia, como é o caso dos paises islâmicos e de Israel, e onde o direito religioso complementa ou até substitui o direito civil, especialmente no âmbito da família, as mulheres e crianças estão expostas a repressões por parte das próprias autoridades.41 No caso

41 SCHACHAR, A., "On Citizenship and Multicultural Vulnerability", in: Po-lilical Theory,Vo\. 28, fevereiro 2000, 64-89.

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das "condições especiais de poder" da família, o próprio direito secular dos pais, o qual existe em paises ocidentais, pode levar a conflitos semelhantes (assim, por exemplo, quando pais turcos afastam suas filhas do ensino do esporte coeducati vo praticado em escolas públicas).

Em que pese isso, os direitos coletivos não são suspeitos per se. Por exemplo, os direitos que uma constituição democrática concede a comunas, governos estaduais ou instituições semi-oficiais são, por via de regra, discretos, já que tais transmissões de competências podem ser justificadas a partir dos direitos fundamentais dos cidadãos não podendo, por isso, entrar em conflito com eles. Todavia, nem todos os grupos culturais, cuja posição é fortalecida mediante direitos coletivos, satisfazem, em sua estrutura interna, às medidas liberais. Eles também não precisam obedecer a tais princípios de organização como se fossem partidos políticos. A Igreja católica, por exemplo, goza do direito de excluir as mulheres do ministério sacerdotal, mesmo que a igualdade de direitos entre homem e mulher seja constitucional e seja implantada noutros setores da sociedade. A Igreja fundamenta tal política apelando para a sua própria doutrina, que é o alvo de seu ministério."'-

Na visão do Estado liberal, o princípio da igualdade não será ferido enquanto nenhum membro for impedido de manifestar seu dissenso saindo da organização ou mobilizando forças de oposição no interior da própria organização. Não obstante isso, convém perguntar, como encarar a discriminação racial, fundada em motivos religiosos, levada a cabo pela Bob Jones University, uma instituição americana de cristãos fundamentalistas, a qual, ante a ameaça da autoridade competente de suspender os privilégios com o imposto de renda, modificou uma de suas práticas de admissão restritivas aceitando estudantes negros, mas que continuou, ao mesmo tempo, a proibir relações sexuais e o casamento entre estudantes brancos e negros?" Qual a diferença entre os dois casos?

Quando o Estado liberal preenche condições que tornam possível a reprodução de uma minoria, a qual, de outra forma, estaria ameaçada

42Cf. a discussão de casos correspondenles in BARRY (2001), 169 ss. JTbid., 165 s.

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em sua sobrevivência, e quando, no intuito de tal reprodução, ele assume uma violação de direitos fundamentais de membros individuais, parece que tem lugar a supracitada dialética entre direitos iguais e opressão, delineada por Menke. Neste sentido, a Supreme Court dos Estados Unidos, numa decisão célebre, aceitou a queixa que uma comunidade amish dirigiu contra a mais alta autoridade na área da educação do Estado de Wisconsin garantindo à autora da queixa uma exceção coletiva do dever geral de freqüentar a escola durante dez anos seguidos. Tal decisão permite aos pais da comunidade amish impedir os filhos de freqüentar a nona e a décima classe do ensino básico sob a alegação de que nesses períodos eles iriam ser confrontados com material de ensino considerado incompatível com a imagem de mundo, o modo de vida e a sobrevivência da comunidade religiosa. Parece que o direito à proteção da forma e da prática de vida religiosas que, de acordo com o princípio da igualdade, deve valer, não somente para a comunidade amish (que segue, aliás, fielmente a lei), mas também para outras comunidades religiosas, só pode ser resgatado quando o Estado levar em conta uma violação do direito de cidadania do jovem, o qual implica uma formação básica em condições satisfatórias para a necessidade de orientação em sociedades complexas.

Brian Barry, em seu estudo sobre "igualdade e cultura", trata de um grande número de casos que seguem tal padrão clássico. E apoiando-se nesses exemplos, Barry desenvolve uma polêmica com autores tal como William Galston, Charles Taylor e íris Young. Em que pese isso, seria necessário comprovar que existe, na virtual ameaça de liberdades individuais fundamentais, decorrente de direitos coletivos que garantem o tratamento igual de grupos culturais, uma reviravolta paradoxal da liberdade em repressão, o que abriria as portas a uma contradição embutida na própria idéia da igualdade cidadã (de cidadãos do Estado).

(3) Para dissipar os indícios de tal paradoxo, Will Kymlicka introduziu uma distinção entre dois tipos de direitos de grupos - entre direitos legítimos mediante os quais uma organização pode proteger-

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se contra as pressões que vêm de fora, do entorno social, e direitos problemáticos, com o auxílio dos quais ela pode impor-se internamente a fim de evitar a desestabilização da vida comunitária costumeira pela ação de membros de grupos dissidentes.44 Não obstante isso, em casos como os da comunidade amish, quando o mesmo direito coletivo serve, simultaneamente, ás duas funções, tal distinção não ajuda muito. E bem verdade que direitos coletivos autorizadores não colidem necessariamente com direitos individuais;45 mesmo assim, o presumível paradoxo só pode ser solucionado quando for possível demonstrai- que nenhum direito de grupos, legitimado sob o ponto de vista da igualdade cidadã (de cidadãos de um Estado), pode colidir com os direitos fundamentais de membros individuais de grupos. De acordo com a intuição liberal, os direitos de um grupo só são legítimos quando puderem ser interpretados como direitos derivativos - ou seja, deduzidos dos direitos culturais dos membros singulares de grupos.

Os adeptos de um multiculturalismo "forte" não se limitam a tais condições, já que perseguem uma estratégia de fundamentação que não exclui direitos coletivos que virtualmente restringem direitos fundamentais. Se o direito igual à liberdade ética obriga o Estado a garantir, de modo simétrico, para cada cidadã o acesso eqüitativo a recursos culturais de que necessita para manter e desenvolver sua identidade pessoal, nesse caso, o Estado também tem de envidar esforços para que tais recursos culturais estejam disponíveis - e continuem sempre disponíveis. A expressão pretende chamar a atenção para o passo lógico, quase invisível, porém, decisivo, que diferencia a disponibilidade desses recursos no presente e a possibilidade de dispor deles no futuro. Se o multiculturalismo "forte" pretende justificar uma "política da sobrevivência", é obrigado a dar esse passo.

Charles Taylor, por exemplo, defende a tese de que, do direito inquestionável que os cidadãos francófonos de Quebec possuem de dar continuidade às suas tradições nacionais de origem segue o dever controverso do governo provincial de tomar todas as medidas

44 KYMLICKA, W. Multicultural Citiz.enship. Oxford, 1995, 34-48. 4 ,KYMLICKA(1995),38.

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necessárias para garantir a sobrevivência da línguai francesa: "Poderíamos considerar a língua francesa como fonte coletiva, da qual os indivíduos podem servir-se, e poderíamos engajar-nos pela sua manutenção, do mesmo modo que nos engajamos pela manutenção do ar puro ou da sobrevivência de superfícies verdes. Com isso não se satisfaz, no entanto, o impulso de uma política orientada para a sobrevivência cultural. Porque aqui não se trata apenas de manter a disponibilidade do idioma francês para aqueles que se decidem por ele [...]. Já que a política da survivance pretende garantir, além disso, que continuem existindo, no futuro, grupos de pessoas que realmente façam uso do francês. À proporção que toma medidas para que gerações futuras também possam identificar-se como francófonas, tal política está criando ativamente membros para esse grupo."4í1

Com esse argumento se justifica, entre outras coisas, a intervenção do governo de Quebec nos direitos dos pais que fazem parte da população francófona. Porquanto esses cidadãos são obrigados a mandar seus filhos para escolas francesas, desconsiderando possíveis preferências por uma formação em instituições de fala inglesa. O argumento estriba-se tacitamente na premissa, segundo a qual, os recursos culturais têm, de certa forma, primazia ante os que delas se alimentam, possuindo, em todo caso, um valor intrínseco que é capaz de fundamentar uma pretensão independente à proteção. Tal opinião pressupõe uma ética de bens, fundamentada metafisicamente, que não pode ser aprofundada aqui.47 Não é trivial o fato de os direitos poderem referir-se, diretamente, a recursos culturais. Porquanto, nesse caso, é necessário justificar a dignidade de proteção desses bens coletivos independentemente do interesse dos cidadãos pela manutenção de sua identidade pessoal.

Direitos coletivos de um grupo que não estão a serviço dos direitos culturais de seus membros individuais, mas que, passando por cima 46TAYLOR, Ch. Multiculturalismus und die Politik der Anerkennung. Frank

furt/M., 1993, 52. 47 Sobre a teoria dos hyper-goods cf. TAYLOR, Ch. Quellen des Selbst. Frank

furt/M., 1989, Parte I; cf. também HABERMAS, J. Erlüuterungen zur Diskursethik. Frankfurt/M., 1991, 176 ss.

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deles, servem diretamente à manutenção de um pano de fundo cultural da coletividade, dão guarida a um potencial de opressão no interior do grupo: "As culturas não são simplesmente um tipo de entidade à qual se pode atribuir direitos. As comunidades definidas por certas características culturais compartilhadas (por exemplo, a língua) podem ter, sob certas circunstâncias, pretensões válidas, mas, nesse caso, as pretensões surgem dos interesses legítimos dos membros do grupo."4" A objeção de Barry, no entanto, sofre da mesma inversão dogmática que afirma a prioridade das reservas culturais sobre o seu beneficiário. Como fundamentar a asserção, segundo a qual, os direitos coletivos que garantem a oferta de recursos culturais só podem ser justificados por direitos culturais dos membros a um acesso a tais recursos?

A observação acidental de Barry, de que as culturas não constituem "o tipo certo de objetos" que podem funcionar como portadores de dire i tos , já contem uma indicação. Mesmo desconsiderando, por razões morais, a feição individualista de ordens jurídicas modernas,49 a estrutura ontológica de objetos simbólicos fala contra o fato de as culturas se qualificarem como portadoras de direitos. Uma cultura não pode, enquanto tal, ser considerada sujeito de direitos porque ela não consegue preencher, por força própria, as condições de sua reprodução, já que depende de uma apropriação construtiva mediante intérpretes detentores de razões próprias, os quais são capazes de dizer "sim" ou "não". Por isso, a sobrevivência de "grupos de identidade" e a continuidade de seu pano de fundo cultural não podem ser garantidas mediante direitos coletivos. Uma tradição tem de estar em condições de desenvolver seu potencial cognitivo de tal forma que os destinatários possam adquirir a convicção de que compensa dar continuidade a essa tradição em particular. E as condições hermenêuticas exigidas para o prosseguimento de tradições só podem ser salvaguardadas por meio de direitos individuais.

Uma "cultura" pode ser entendida como um conjunto de condições viabilizadoras para atividades destinadas à solução de

BARRY (2001), 67. Cf. minha controvérsia com K.-O. Apel no presente volume, Cap. 3. 91 ss.

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problemas. Ela dota os sujeitos que crescem nela, não somente de capacidades elementares de linguagem, de ação e de conhecimento, mas também de imagens de mundo pré-estruturadas gramaticalmente e de reservas de saber acumuladas semanticamente. É bem verdade que uma cultura não pode ser mantida viva apenas por disciplina ou por doutrinação robusta, apenas pelo uso implícito das gerações posteriores que se exercitam nos correspondentes jogos de linguagem e práticas. Já que as tradições conservam sua vitalidade unicamente na medida em que se introduzem nos canais difundidos e entrelaçados das biografias individuais, passando pelos umbrais críticos do juízo autônomo de cada possível beneficiário singular. Ora, a partir daí, revelar-se-á o valor intrínseco de uma tradição, o que sucederá, o mais tardar, na fase da adolescência. Os jovens têm de ser convencidos de que eles, no horizonte da tradição da qual se apropriaram, podem levar uma vida dotada de sentido, não-fracassada, ou uma vida totalmente vazia. O teste para a vitalidade de uma tradição cultural consiste, pois, em última instância, em averiguar se, à sua luz, os desafios enfrentados pelos jovens se transformam em problemas solucionáveis.

É bem verdade que esse teste também funciona em sociedades fechadas; em que pese isso, sua relevância é tanto maior quanto maior o número de alternativas que ele abre para o indivíduo. Em sociedades pluralistas, os grupos culturais só conseguem transmitir sua herança de uma geração para outra através do filtro hermenêutico das tomadas de posição por "sim" de seus membros que, à luz de ofertas alternativas, também estão em condição de dizer "não". Por esta razão empírica, os direitos coletivos só podem fortalecer um grupo em sua auto-afirmação cultural se eles garantirem, simultaneamente, aos membros individuais o espaço de que eles necessitam, numa visão realista, para se decidirem criticamente entre três alternativas possíveis: apropriação crítica, revisão ou recusa pura e simples.30 E bem verdade que a própria

GALSTON enumera várias condições "realistas" para sair de uma tradição: "condições de conhecimento - a consciência de alternativas para a vida que alguém está vivendo de fato; condições de capacidade - a habilidade de

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liberdade de associação assegura uma pertença voluntária ao grupo. Porém, tal aspecto voluntário é apenas o selo posto sobre um direito realista que permite a saída (de uma tradição cultural, n.t.). Para a sobrevivência de grupos culturais é decisiva a garantia do espaço interno necessário para a apropriação de uma tradição sob condições de um possível dissenso. Uma cultura encapsulada dogmaticamente não terá jamais condições de se reproduzir, sobretudo num entorno social repleto de alternativas.

IV A crítica do multiculturalismo "forte" tende a adotar a idéia de

que o princípio da igualdade cidadã (de cidadãos de um Estado) confronta todos os grupos culturais com a expectativa normativa geral de que seus membros não devem ser exerci tados apenas maquinalmente em convicções e práticas transmitidas, mas introduzidos em uma apropriação reflexiva e crítica da tradição. Quanto mais pretensiosa a formulação das condições de saída, tanto mais elas se nutrem da nova suspeita de que a idéia de "direitos culturais iguais" continua presa, no decorrer de sua implantação, ao pensamento secularista e antropocêntrico do humanismo e do iluminismo, sendo, por isso, obrigada a desmentir, perante outras formas de vida e visões de mundo, a pretensa "neutralidade da meta". Isso nos recoloca perante a questão da equidade (Fairness) dos procedimentos de adaptação

avaliar essas alternativas quando isso for desejável; condições psicológicas - em particular, a liberdade das diversas formas de lavagem cerebral que dão origem a esforços de desprogramação (de cortar o coração) de pais a favor de seus filhos e, de modo mais amplo, formas de coerção não puramente físicas que podem dar origem à interferência justificada do Estado em auxílio de indivíduos atingidos; e, finalmente, condições de aptidão - a habilidade de indivíduos (desejosos de obter êxito) de participar efetivamente de modos de vida que são, em última instância, diferentes daqueles que eles desejam abandonar." (GALSTON. "Two concepts of Liberalism".. in: Ethics, 105 (abril de 1995), 516-534, aqui, 533 s.); cf. também, numa perspectiva feminista MÕLLER OKIN, S. "Mistress of their own Destiny: Group Rights, Gender. and Realistic Rights to Exit", in Ethics, 112 (janeiro 2002), 205-230.

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que o Estado liberal exige das doutrinas e comunidades tradicionais, cujas origens são muito mais antigas que as condições de vida modernas.

Recomenda-se, aqui, tomar como ponto de partida duas distinções. Em primeiro lugar, não devemos confundir exigências normativas de uma ordem liberal com os imperativos funcionais de uma modernização social que forçam o poder do Estado à secularização. Em segundo lugar, a adaptação estrutural de "grupos de identidade" ou comunidades religiosas a condições de vida modernas em geral, especialmente às expectativas cidadãs (de cidadãos do Estado) de autonomia e às imputações de tolerância de uma república liberal, não significa submissão a uma pressão de reflexão destinada a dissolver, no longo prazo, orientações de vida e doutrinas teocêntricas ou cosmocêntricas.

Existem naturalmente formas tribais de vida e de sociedade, bem como práticas cultuais, que não se encaixam, de forma alguma, na moldura política de ordens jurídicas igualitárias ou individualistas. Isso pode ser observado nas tentativas exemplares dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, que pretendem reparar a injustiça histórica cometida com os povos nativos conquistados, integrados à força e discriminados durante séculos. Tais tribos utilizam a permissão de uma autonomia mais ampla para desenvolver ou restaurar determinadas formas de propriedade coletivistas e formas tradicionais de poder, mesmo que essas, em muitos casos particulares, colidam com o princípio igualitário e com a referência individualista dos iguais direitos para cada um. A compreensão moderna do direito proíbe certamente um "Estado dentro do Estado". Por isso, se no seio de um Estado liberal um grupo, que (de acordo com sua própria compreensão) é "iliberal", tiver a permissão de doar-se a si mesmo uma ordem jurídica própria, isso acarretará, certamente, como conseqüência, contradições não-solucionáveis.

Se, por motivos morais, determinadas comunidades tribais forem agraciadas com direitos de autogestão amplos, como compensação pela integração forçada de seus antepassados na ordem estatal dos conquistadores, as obrigações impostas a determinados membros da

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tribo poderão colidir com direitos que lhes cabem enquanto cidadãos estatais de uma coletividade política mais ampla. Os direitos de autogestão concedidos aos territórios dos indígenas nos Estados Unidos e no Canadá provocam tais problemas, especialmente no que tange às pretensões de propriedade e de direitos de família. E neste caso, são novamente as mulheres as mais atingidas: "Quando um membro da tribo indígena sente que os seus direitos foram violados por seu concilio tribal, ela pode solicitar correção numa corte tribal; porém, ela não pode (exceto em casos muito especiais) solicitar reparação da Su-pretne Court [...]. Tais limites na aplicação de declarações constitucionais de direitos cria a possibilidade de que indivíduos ou subgrupos - dentre os quais, comunidades indígenas - possam ser oprimidas em nome da solidariedade do grupo ou da pureza cultural."'11

No caso especial da reparação de injustiça por parte do Estado, a moral e o direito podem enredar-se em contradições, mesmo que ambos sejam regidos pelo princípio do igual respeito por cada um, já que o direito constitui um médium fechado recursi vãmente em si mesmo, o qual só pode assumir atitude crítica em relação às suas próprias decisões passadas, mas é insensível a episódios que acontecem fora da área do passado jurídico.52 Nesse ponto, o conflito reflete-se no direito, porém, ele não surge do direito. O modo de vida de grupos "iliberais" forma, no interior da ordem jurídica liberal, um cotpo estranho. Por isso, as conseqüências contraditórias que resultam de uma tolerância jurídica, moralmente fundada, de estruturas estranhas, não atingem o interior do próprio direito igualitário. No caso dos grupos religiosos, as coisas são diferentes, já que, ao pretenderem afirmar-se no interior da estrutura diferenciada da modernidade, são obrigados a adaptar suas formas de vida e doutrinas - que remontam a origens pré-modernas - à secularização do Estado e da sociedade.

51 KYMLICKA (1995), 38 s. " S ã o diferentes os modos como o direito e a moral interferem em casos de

exigências de reparação para descendentes de coletividades ou de vítimas de uma política criminosa de governos passados quando são responsabilizados os seus sucessores de direito.

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Hoje em dia, o judaísmo e o cristianismo, que não apenas configuraram a cultura ocidental, mas que também tiveram um papel importante na genealogia da idéia de igualdade, não encontram mais qualquer tipo de dificuldade de princípio na estrutura igualitária e no feitio individualista de ordens liberais. Todavia, como todas as religiões mundiais, eles levantaram, no passado, pretensões de validade e de configuração exclusivas que não se combinavam, de forma nenhuma, com as pretensões de legitimidade de uma ordem de poder e de direito seculares. Na companhia das sociedades modernas e dos poderes seculares, a própria consciência religiosa foi motivada a seguir, por assim dizer, na direção da "modernização". Um exemplo disso pode ser observado na re-orientação cognitiva da mediação da tradição que passou para imputações de reflexão e condições realistas de saída.

A questão que se levanta agora é a seguinte: será que tais processos de adaptação não dissimulam a submissão do etos religioso às condições de uma neutralidade hipócrita, atrás da qual se entrincheira simplesmente e defacto o poder de uma outra concepção do bom, isto é, o etos secular da igualdade? Será que uma comunidade religiosa que renuncia à coação da consciência e garante espaço para uma apropriação autoconsciente de verdades de fé não está se dobrando simplesmente às normas impostas pelo Estado ou não está seguindo também, com isso, motivos próprios? Na Europa, a Igreja teve de se posicionai", de um lado, e já bem antes do surgimento do Estado neutro em termos de visões de mundo, contra o pensamento antropocêntrico do humanismo e do pensamento secular da nova física, também contra o turbilhão secularizador da economia capitalista e da administração burocratizante; de outro lado, ela teve de enfrentar a crise profunda de uma divisão interna das confissões de fé. A neutralização do Estado, que se desligou das visões de mundo (religiosas e metafísicas, n.t.) foi a resposta política encontrada para a implacabilidade das guerras religiosas. E tal resposta não serviu apenas ao interesse do Estado em manter o direito e a ordem, mas também às necessidades das próprias comunidades religiosas, já que permitia, numa situação crítica da consciência, submeter sua autocompreensão tradicional a uma revisão.

A liberdade de religião do Estado liberal, ampliada na forma de um direito de cidadãos (Bürgerrecht) não somente impediu que a

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coletividade pluralista se desintegrasse levada por conflitos metafísicos e/ou religiosos. Muito mais do que isso, ela também ofereceu às comunidades religiosas, desejosas de encontrar um lugar ao sol na cápsula diferenciada da modernidade, uma moldura institucional para a solução de seus próprios problemas internos. A solução política para uma coexistência, em iguais condições, dos poderes da fé que se digladiavam consistia numa concepção de tolerância que levasse em consideração o caráter absoluto, por conseguinte, não-negociável das pretensões de validade de convicções religiosas. Pois, tolerância não pode ser confundida com indiferença.

Já que uma indiferença por convicções e práticas estranhas ou até a valorização do outro em sua alteridade fariam com que a tolerância se tornasse supérflua. A tolerância é exigida daqueles que têm boas razões subjetivas para recusar outras convicções e práticas tendo consciência de que se trata de um dissenso que é, realmente, cognitivo, porém, insolúvel no longo prazo. Já os preconceitos não contam como argumentos legítimos para a rejeição; a tolerância só é necessária, e possível, quando os participantes apoiam sua rejeição sobre uma não-concordância que pode ser prosseguida de modo razoável. Porquanto nós enfrentamos o racista ou o chauvinista, não mediante apelos para mais tolerância, mas exigindo que ele vença seus preconceitos." Tais condições específicas vêm, certamente, ao encontro das atitudes dogmáticas de comunidades de fé. Em que pese isso, é necessário perguntar: qual é o preço a ser pago por tais condições? O que se exige daqueles que aproveitam da tolerância dos outros?

Mediante o direito fundamental à liberdade de religião, o Estado liberal pretende enfrentar o dissenso que perdura, ao nível cognitivo, entre crentes, não-crentes e crentes que seguem outras crenças, já que tal direito permitiria desacoplar a dissidência do nível social, a tal ponto que as interações entre cidadãos da comunidade política não seriam afetadas por ela. Para o Estado, o ponto mais importante nisso tudo consiste em desarmar a destruti vidade social inerente a um conflito

Cf. FORST, R. "Toleranz, Gerechtigkeit, Vernunft", in id. (org.) Toleranz. Frankfurt/M., 2000, 119-143.

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de visões de mundo lançando mão da neutralização mais ampla possível das suas conseqüências para a ação. Para as comunidades religiosas, ao contrário, é importante a circunstância de que o Estado reconheça a legitimidade do dissenso que perdura. Isso lhes assegura a liberdade de movimento que lhes permite, a partir da perspectiva interna de suas doutrinas - cuja substância não foi tocada - colocar-se numa relação cognitiva razoável, não somente com as diretrizes dos credos de outras comunidades religiosas, mas também com as formas de pensamento e de comunicação de seus entornos seculares. Por este caminho, complementam-se as funções que a tolerância garantida juridicamente preenche tanto para um lado, como para o outro. Tal tolerância serve não somente à auto-afirmação das comunidades religiosas numa sociedade que se moderniza sem cessar, mas também à manutenção do estado político do Estado liberal. Em que pese isso, convém perguntar, uma vez mais: Qual é o preço a ser pago pelas comunidades rel igiosas por esse espaço que permite uma transformação de si mesmas? Será que as condições possibilitadoras não são, ao mesmo tempo, outros tantos tipos de confinamento cujo preço é demasiadamente alto?

Cada religião é, originalmente, "imagem de mundo" ou "compreensive doctriné\ inclusive no sentido de que ela pretende ser, ela mesma, uma autoridade capaz de estruturar uma forma de vida em seu todo. Sob as condições da secularização da sociedade e do pluralismo de visões de mundo, a religião é obrigada a lançar fora tal pretensão a uma configuração abrangente da vida. Juntamente com a diferenciação funcional de sistemas parciais da sociedade, a própria vida da comunidade religiosa se separa de seu entorno social. O papel do membro de uma comunidade diferencia-se do de um cidadão da sociedade. E uma vez que o Estado liberal depende de uma integração política dos cidadãos, a qual ultrapassa o degrau de um simples modus vivendi, tal diferenciação das pertenças não pode esgotar-se numa mera adaptação, destituída de pretensões cognitivas, do etos religioso a leis impostas pela sociedade secular. Para que a socialização religiosa possa afinar-se com a socialização secular é necessário, não somente, que as correspondentes formulações ou frases contendo normas e valores

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se diferenciem umas das outras numa visão interna, mas também que uma frase proceda da outra de uma forma lógica e consistente. Para tal "inserção" do universalismo igualitário da ordem jurídica no respectivo etos de imagens de mundo religiosas John Rawls escolheu a imagem de um módulo, o qual, mesmo que tenha sido construído com o auxílio de argumentos neutros do ponto de vista das visões de mundo, deve encaixar-se nos respectivos contextos de fundamentação ortodoxos.54

Tal diferenciação cognitiva entre moral igualitária da sociedade e etos da comunidade não é apenas uma expectativa normativa com a qual o Estado confronta as comunidades religiosas. Já que ela vem ao encontro do próprio interesse delas de se afirmar no interior da sociedade moderna e de obter condições para exercer, através da esfera pública política, influência na sociedade como um todo. Por meio da participação nas controvérsias nacionais sobre questões morais e éticas, as comunidades religiosas podem promover uma autocompreensão pós-secular da sociedade em sua totalidade, a qual permite entrever uma continuidade vital da religião até mesmo num entorno que se encontra em franco processo de secularização.

Em que pese isso, ainda não fornecemos uma resposta à pergunta sobre o preço a ser pago pelas comunidades religiosas: não será ele não-eqüitativo sob o ponto de vista de uma igualdade cidadã (de cidadãos de um Estado)? A imputação de tolerância revela dois aspectos. E cada um deles pode realizar apenas o próprio etos nos limites de iguais liberdades éticas. Por conseguinte, cada um deve, dentro desses limites, respeitar o etos dos outros. Nenhum deles é obrigado a aceitar as opiniões recusadas dos outros, já que as próprias certezas e pretensões de verdade permanecem intocadas. A imputação não resulta de uma relativização de convicções próprias, mas de um "confinamento" (Einschrdnkung) de sua eficácia prática, como conseqüência do fato de que o próprio etos só pode ser vivido de forma limitada e de que as conseqüências práticas do etos dos outros têm de ser aceitas. Por conseguinte, tais fardos resultantes da tolerância não se distribuem de maneira simétrica entre crentes e incrédulos.

,4 RAWLS, J. (1998), 76 ss.

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Na consciência do cidadão secularizado, cuja bagagem metafísica é extremamente reduzida, permitindo-lhe inserir-se com facilidade numa fundamentação da democracia e dos direitos humanos - isenta de moral -, a prioridade do justo sobre o bom substancial aparece naturalmente. Sob tal premissa, o pluralismo de modos de vida nos quais se refletem, respectivamente, diferentes imagens de mundo, não provoca dissonâncias cognitivas com convicções éticas próprias. Porquanto, à luz de tal perspectiva, nos diferentes modos de vida incorporam-se apenas diferentes orientações axiológicas. Ora, valores diferentes não se excluem reciprocamente da mesma maneira que verdades distintas. De sorte que não existe, para a própria consciência secular, dificuldade alguma em reconhecer que um etos estranho tem para o outro a mesma autenticidade e a mesma prioridade que o próprio etos tem para mim mesmo.

As condições modificam-se no caso de um ciente que adquire sua autocompreensão ética de verdades de fé cuja pretensão de validade é universal. Tão logo a representação da vida correta se orienta por conceitos metafísicos do bom ou por caminhos salvíficos religiosos, entra em cena uma perspectiva divina (ou uma viewfrom nowhere), à luz da qual (ou de onde) outros modos de vida aparecem não somente como diferentes, mas também como fracassados. Quando o etos estranho não é apenas uma questão de valorização relativizadora, mas também de verdade ou inverdade, a exigência de manifestar igual respeito por cada cidadão sem considerar sua autocompreensão ética ou sua conduta de vida particular constitui um peso maior.

O fato de crentes e não-crentes serem afetados de maneira diferente pelos efeitos da imputação de tolerância não deve suipreender-nos; mesmo assim, ele não constitui, per se, expressão de uma injustiça. Porque não se trata de um fardo unilateral. E que os próprios cidadãos privados de "ouvido religioso" têm de pagar um preço. Porquanto a interpretação da tolerância nas sociedades liberais dotadas de estrutura pluralista não imputa apenas aos crentes no seu trato com crentes que acreditam de forma diferente a compreensão de que eles devem conta-, de modo razoável, com um dissenso que não pode ser eliminado totalmente. Essa mesma compreensão é imputada

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aos próprios não-crentes no seu trato com crentes. Para a consciência secular, isso implica a exigência, que de forma alguma é trivial, de determinar de modo autocrítico a relação entre fé e saber na perspectiva de um saber de mundo. A expectativa de uma não-concordância entre saber de mundo e tradição religiosa só pode ser tida como "racional" quando conferimos às convicções religiosas, na perspectiva de um saber secular, um status epistêmico que não é, pura e simplesmente, irracional.

A concessão de iguais liberdades éticas exige a secularização do poder do Estado. Não obstante isso, ela proíbe igualmente a supergeneralização política de uma visão de mundo secularista. À proporção que cidadãos (Bürger) secularizados assumem o seu papel de cidadãos de um Estado (Staatsbürger), não podem negar que as imagens de mundo religiosas possuem, em princípio, um potencial de verdade nem contestar o direito dos co-cidadãos religiosos de apresentarem contribuições a discussões públicas lançando mão da linguagem religiosa. Uma cultura política liberal pode, inclusive, esperar que os cidadãos secularizados participem de esforços visando a tradução de contribuições religiosas relevantes para uma linguagem acessível publicamente.55 Mesmo que essas duas expectativas não conseguissem contrabalançar inteiramente a não-neutralidade dos efeitos resultantes do princípio da tolerância, esse resto de desequilíbrio não conseguiria colocar em xeque a justificação do próprio princípio. Porquanto, á luz da superação de uma injustiça gritante por via da eliminação uma discriminação religiosa, não seria razoável ou proporcional às circunstâncias o fato de os crentes, devido à distribuição assimétrica dos fardos, passarem a eliminar a própria exigência de tolerância.

Tal consideração abre caminho para uma compreensão dialética da secularização cultural. Quando entendemos a modernização da consciência pública na Europa como um processo de aprendizagem que envolve, simultaneamente, as mentalidades seculares e as religiosas, modificando-as, à medida que força, tanto a tradição do

"HABERMAS, J. Glauben und Wissen. Frankfurt/M., 2001.

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iluminismo como a das doutrinas religiosas, à reflexão sobre seus respectivos limites, uma nova luz se espalha sobre a tensão, difundida em escala internacional, entre as grandes culturas e religiões mundiais. A globalização de mercados, meios e outros tipos de entrelaçamentos complexos fecha o caminho para uma saída da modernização capitalista: nenhuma nação consegue mais trilhá-lo. As próprias culturas não-ocidentais, como conseqüência de uma modernização insuficiente que elas mesmas impulsionam ativamente, não conseguem fugir aos desafios provocados pela secularização e pelo pluralismo das visões de mundo. Elas só poderão afirmar suas características culturais próprias contra a cultura secular capitalista do Ocidente em geral pelo caminho de uma "modernidade alternativa". Isso significa, no entanto, que elas só poderão enfrentar, com reservas culturais próprias, o poder nivelador que vem de fora, se nesses paises a consciência religiosa se abrir a uma modernização a partir de dentro.56 Enquanto tais culturas, ao se defrontarem com desafios semelhantes, encontrarem equivalentes para a inovação européia da separação entre Igreja e Estado, a adaptação construtiva a imperativos da modernização social não poderá ser considerada uma submissão sob normas estranhas à cultura, assim como a mudança de mentalidade e a destradicionalização das comunidades de fé no Ocidente não constituiu uma simples submissão sob normas de igualdade, liberais.

'"TAYLOR, Ch. "TwoTheories of Modernity", in: Public Culture. 11,1 (1999), 153-174.

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//. Uma Constituição Política para a Sociedade Mundial Pluralista?'

Após a invasão do Iraque, e tendo em vista as violações do direito das gentes, que vieram na sua esteira, as chances de um projeto destinado a promover um "estado de cidadania mundial", cosmopolita, (weltbürgerlich) não são piores do que em 1945, após a catástrofe da Segunda Guerra Mundial, nem mais remotas do que em 1989/90, quando teve fim a constelação formada por um poder bipolar. Isso não significa, no entanto, que as atuais chances sejam boas; em que pese isso, não deveríamos perder de vista as proporções. O próprio projeto kantiano só conseguiu entrar numa agenda política duzentos anos após ser confeccionado, isto é, no momento em que foi criada a Liga das Nações; e a idéia da criação de uma "ordem de cidadania mundial" só assumiu forma institucional permanente quando da fundação das Nações Unidas. Desde o início dos anos 90, as Nações Unidas adquiriram peso político tomando-se fator expressivo a ser levado em conta nas controvérsias sobre política mundial. A própria superpotência foi obrigada a uma confrontação com a organização mundial quando esta negou, apesar das ameaças sofridas, a legitimação para uma intervenção militar unilateral. E as Nações Unidas conseguiram superar, com sucesso, as tentativas de marginalização que se seguiram, chegando mesmo a empreender uma auto-reforma, há muito tempo necessária.

' Agradeço a Armin von Bogdandy, um especialista em direito internacional, pelas sugestões de correção e comentários.

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Desde dezembro de 2004, estão concluídas as propostas da comissão de reformas, exigidas pelo secretário-geral. E as reformas propostas, conforme iremos ver, resultam de análises perspicazes de eixos. É interessante notar que tal processo de aprendizagem tende, inequivocamente, a dar continuidade ao projeto kantiano. Porquanto nele não se expressa apenas e simplesmente a idéia de um estado de paz assegurado sem interrupção. O próprio Kant já havia ampliado o conceito negativo de "ausência de guerra" e de violência militar transformando-os no conceito de uma paz que implica liberdade em termos do direito. Hoje em dia, o conceito mais abrangente de segurança coletiva inclui também os recursos para as condições de vida sob as quais cidadãos de todas as partes da terra podem chegar faticamente ao gozo de liberdades garantidas por lei. E bem verdade que podemos continuar tomando como orientação a idéia kantiana de uma constituição de cidadania mundial, mas para que isso aconteça é necessário guarnecer tal idéia de contornos suficientemente abstratos. Pretendo mostrar que a alternativa kantiana de uma república mundial e de uma federação de povos é incompleta (I) e esclarecer de que modo o projeto kantiano pode ser entendido à luz das circunstâncias atuais (II). A seguir, gostaria de explicar por que o sucesso desse projeto envolve, nada mais, mas também nada menos, que uma substância democrática de formas de socialização política, ainda hoje possíveis (III). E no final, pretendo abordar duas tendências históricas que vêm ao encontro de tal projeto (IV e V).

I Hobbes interpreta de modo funcionalista o nexo entre direito e

garantia da paz: os cidadãos submetidos ao direito barganham a garantia de proteção do poder da ordem estatal oferecendo em troca sua obediência incondicional.2 Para Kant, ao contrário, a garantia da paz, que é função do direito, enti ecruza-se conceitualmente com as funções de uma situação constitucional, a qual constitui e assegura a liberdade, 2 Nas páginas que seguem apóio-me sobre meu ensaio intitulado: "O projeto kantiano

e o Ocidente dividido", in: HABERMAS, .1. Dergespaltene Westen. Frankfurt/ M., 2(XM.

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sendo reconhecida como legítima pelos cidadãos. Porquanto a validade do direito não se apoia apenas taticamente sobre a ameaça de sanções de um poder do Estado, mas também e intrinsecamente, sobre os argumentos a favor da pretensão de reconhecimento, formuláveis pelos destinatários. Kant não opera mais com um conceito empírico do direito. Entretanto, ao lançar mão da idéia de uma passagem do direito das gentes (Vòlkerrecht), centrado em Estados, para o direito de cidadãos do mundo (Weltbürgerrecht), Kant também se distancia de Rousseau.

Ele abandona a representação republicana, segundo a qual, a soberania interna do povo reflete-se na soberania externa do Estado, ou seja, a autodeterminação democrática dos cidadãos reflete-se numa auto-afirmação diplomática e, em caso de necessidade, militar, da própria forma de vida. Para Kant, ao invés disso, o enraizamento particularista da força da vontade democrática no etos de um povo, o qual constitui o poder, não significa necessariamente um confinamento da força racionalizadora do poder de uma constituição democrática a um Estado nacional. Porquanto o sentido universalista dos princípios da constituição de um Estado nacional aponta para além das fronteiras dos costumes nacionais que também se expressam, certamente, nas instituições constitucionais locais.

Com essas duas operações - a do cruzamento da idéia de paz com a do estado de liberdades garantidas juridicamente, e a do desligamento da autodeterminação democrática interna de uma auto-afirmação belicista voltada para o exterior - abriu-se o caminho que permitia tirar a "constituição cidadã" (bürgerliche Verfassung), engendrada, à época de Kant, pelas Revoluções Francesa e Americana, do plano do Estado nacional e projetá-la para um plano global. Isso franqueou o espaço para o conceito de uma constitucionalização do direito das gentes. A grandiosa inovação de tal conceituaiização, que ultrapassou, em muito, as condições existentes à época, reside principalmente na reformulação do direito internacional tido como um direito de Estados: ele passou a ser entendido como um "direito de cidadãos do inundo" (Weltbiirgerrecht), isto é, um direito dos indivíduos. Estes passam a gozar do status de sujeitos de direito, isto é, não são mais, apenas, "cidadãos" (Bürger) de um Estado nacional.

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mas também membros de uma sociedade mundial estruturada de forma política.

Em que pese isso, Kant não consegue entender a constitucionalização do direito das nações a não ser como traslado de relações internacionais para relações intra-estatais. Até o último instante, ele mantém a idéia de uma república mundial, mesmo quando ele, ao dar o passo seguinte rumo a um tal Estado de povos, propõe como "sucedâneo" uma federação de povos. Tal concepção fraca de uma associação voluntária de Estados desejosos de paz, os quais continuam, mesmo assim, soberanos, parecia recomendável como estação intermediária no caminho que leva a uma república mundial. Nós, os pósteros, que possuímos, sem mérito algum de nossa parte, um saber melhor sobre o emaranhado político e jurídico de uma sociedade mundial pluralista, altamente interdependente e, ao mesmo tempo, diferençada em termos funcionais, podemos reconhecer com facilidade as barreiras conceituais que impediram Kant de abandonar aquela alternativa infecunda e de determinar a meta de uma constitucionalização do direito de povos, a qual consiste numa "situação de cidadania mundial" (weltbürgeriicher Zustand) delineada de forma tão abstrata, a ponto de impedir que tal situação seja confundida com uma república mundial ou que seja simplesmente rejeitada por ser considerada utópica.

A república francesa, centralizadora, que Kant tinha ante os olhos como modelo para um Estado constitucional democrático sugere a idéia de que a soberania de um povo é indivisível.1 Em que pese isso, num sistema de vários planos, estruturado de modo federalista, a vontade democrática do povo, entendida como a totalidade de seus cidadãos, ramifica-se, na própria fonte, em diferentes canais de legitimação, ligados paralelamente, das eleições para os parlamentos da comunidade, dos Estados ou da federação. O modelo dos Estados Unidos (e o debate conduzido nos Federalist Papers) constitui um testemunho bem antigo de tal concepção de uma "soberania

KERST1NG, W. "Globa le Rech t so rdnung oder we l lwe i t e Verteilungsgerechtigkeit?", in: id. Reclu, Gerechtigkeil und demokraiisihe Tugend. Frankfurt/M.. 1997, 243-315, aqui 269.

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compartilhada".'1 A imagem de uma república mundial constituída de modo federalista poderia ter poupado Kant do medo de que os povos, sob as pressões da normalização e do "despotismo desalmado" de um "Estado de povos", espalhado pelo mundo, faria com que eles perdessem sua identidade e suas características culturais próprias. Esse temor pode explicar porque Kant vai em busca de um "sucedâneo", mas não constitui a verdadeira razão que o levou a julgar necessário representar a situação de cidadania mundial em geral por meio da figura institucional de um Estado.

A razão para isso deve ser procurada numa outra dificuldade conceituai, que somente hoje em dia pode ser superada, ante o entrelaçamento complexo e cada vez mais denso das organizações internacionais. O republicanismo que impera na França explica a força racionalizadora de uma juridificação do poder político apoiando-se na idéia de uma vontade popular - doadora da constituição - a qual constitui o poder político a partir da base, e de modo inteiramente novo. O contrato social rousseauiano sugere a unidade do Estado e da consti tuição, já que ambos procedem, uno actu, isto é, co-originariamente, da vontade do povo. Situado em tal tradição, Kant passa por alto uma tradição constitucional concorrente que desconhece tal entrelaçamento conceituai entre Estado e constituição, uma vez que, na representação liberal, a constituição não pode ter nenhuma função de constituição da dominação (herrschaftskonstituierende), uma vez que lhe cabe apenas uma função de limitação do poder (inachtbegrenzende). Já nas primeiras assembléias dos estamentos dos inícios da modernidade, toma corpo a idéia de uma limitação recíproca e do balanceamento dos "poderes dominantes" - da nobreza, do clero e das cidades, os quais se opunham ao rei. O liberalismo desenvolve tal idéia no sentido da moderna divisão de poderes de um Estado de direito. 4 Sobre a teoria da soberania no Estado constitucional cí. KRIELE, M. Einfiihrung

in die Staatslehre. Opladen. 1994, 273 ss.; Erhard Denninger pensa que, tendo em vista o atual Estado constitucional europeu, o conceito da "soberania partilhada" gera confusões: DENNINGER, E. "Vom Ende nalionalstaallicher Souveranilat in Europa", in: id. Rechl in globaler Unonlnung. Berlim. 2005, 379-394.

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A constituição política que visa, em primeira linha, uma limitação do poder, estabelece um "poder das leis" capaz de reformular normativamente condições de poder existentes e canalizar o uso do poder político para condições juridicamente vinculantes. Uma constituição desse tipo toma possível - já que renuncia identificar os dominadores com os dominados - uma distinção conceituai entre os seguintes elementos: constituição, poder do Estado e cidadania.5 Aqui não existe nenhuma barreira conceituai que se contraponha a uma dissolução dos elementos, que se encontram engrenados entre si, no Estado democrático. De fato, a juridificação da cooperação entre Estados em redes multilaterais ou em sistemas de negociação transnacionais gerou certas formas de constituição no seio de organizações internacionais, cujo caráter não é mais estatal, as quais dispensam, inclusive, a base de legitimação oriunda da vontade de uma cidadania organizada. Tais constituições regulam as relações e o jogo funcional que se estabelece entre os Estados nacionais; as próprias redes inclusivas, tecidas em escala mundial, não possuem mais uma "metacompetência" tida como característica própria de Estados: a de poderem determinar, e, eventualmente, ampliar, por própria conta, suas competências.

De sorte que o tipo de constituição liberal, a qual limita o poder do Estado, abre a perspectiva conceituai de uma "constitucionalização" não-estatal do direito das gentes na figura de uma sociedade mundial sem governo mundial, estruturada politicamente. Com a passagem do direito das gentes, centrado em Estados, para o "direito de cidadãos do mundo" (Weltbürgerrecht), o espaço de ação dos atores estatais é circunscrito, sem que sua característica, enquanto "sujeitos de uma ordem jurídica que abarca o mundo", seja marginalizada pelos "sujeitos individuais do direito de cidadãos do mundo". Estados estruturados de forma republicana podem continuar sendo, ao lado dos "cidadãos do mundo" (Weltbürger), sujeitos de uma constituição mundial que,

5 Cf. FRANKENBERG G. "Die RUckkehr des Vertrages. Überlegungen zur VerfassungderEuropaischen Union", in: WINGERT, LeGÜNTHER, K. (orgs.) Die Ôffenllichkeit der Vernunft und die Vernunft der Ôffenllichkeit. Frankfurt/ M., 2001,507-538.

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por sua vez, não possui núcleo estatal. Todavia, o ensamblamento dos tipos de constituição, formados até agora em tradições jurídicas concorrentes, levanta o seguinte problema: como retroligar decisões políticas do plano organizacional supra-estatal aos caminhos de legitimação estatais?6 Esse tema será retomado mais abaixo.

Um segundo motivo poderia ter levado Kant a procurar um sucedâneo para a idéia, efusiva, de uma república mundial. As duas revoluções constitucionais do século XVIII provocaram, entre os contemporâneos e os pósteros, a idéia de que as constituições políticas são fruto de um ato de vontade repentino que irrompe num momento histórico favorável. A imagem dos acontecimentos em Paris sugere um levante espontâneo das massas entusiasmadas que se aproveitam da janela temporal de um momento favorável. A entronização da constituição republicana parecia estar ligada a um ato fundador, quase mitológico, e a uma situação de exceção. E se a irrupção do instante revolucionário num determinado lugar já tinha sido considerada improvável, uma coincidência de tais improbabilidades em muitos lugares teria de ser considerada, com muito mais razão, inimaginável. Suponho que tal intuição oculta-se atrás da asserção, curiosa, de Kant, de que os povos da terra "de acordo com sua idéia de direito das gentes", isto é, de acordo com sua representação da autodeterminação soberana, "não querem" unir-se formando um único Estado de povos.7

Entrementes , nós nos acos tumamos a interpretar a institucionalização do direito das gentes como um processo no longo prazo, o qual não é portado por massas revolucionárias, mas, em primeira linha, por Estados nacionais e uniões de Estados regionais. De um lado, tal processo é impulsionado intencionalmente, pelos meios clássicos do contrato internacional e da fundação de organizações internacionais; de outro lado, e como reação aos impulsos sistêmicos liberados e aos efeitos colaterais indesejados, ele também se desenvolve de modo incrementalista. Tal mistura de agir intencional e

6Chr. Mõllers analisa esse contexto lançando mão do exemplo da União Européia. Cf. capítulo introdutório sobre constituição e constitucionalização, in: BOGDANDY, A. v. (org.) Europaisches Verfassungsrecht. Berlim, 2003, 1-56.

7 KANT, I. Zum ewigen Frieden. BA 38 (cit. conforme a edição de W. Weischedel)

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espontaneidade com aparência de natureza, pode ser constatada no exemplo da globalização econômica (do comércio, dos investimentos e da produção), a qual é fruto de vontade política, e na constante construção e reconstrução dos núcleos institucionais de um regime econômico global, o que configura uma reação à necessidade de regulação e de coordenação provocada pela globalização.

O longo prazo de um tal processo, no qual o controle político se liga ao crescimento sistêmico, faz supor a necessidade de se falar em degraus ou, até, em graus de constitucionalização.8 O melhor exemplo é fornecido pela União Européia, que continua evoluindo, mesmo que as asserções normativas não tenham conseguido, até o presente momento, responder à seguinte questão da finalité: será que a União Européia desenvolver-se-á rumo a um Estado de nacionalidades, estruturado à maneira federalista, ou será que ela continuará amarrada ao nível de integração de uma organização supranacional , internacionalmente pactuada, sem assumir qualidades estatais? Um papel importante é desempenhado pela "dependênc ia do caminhtfXPfadabhangigkeit), isto é, a dependência de um modo de decisão que, dadas as conseqüências cumulativas de determinações passadas, restringe, cada vez mais, o espaço de jogo de futuras alternativas, inclusive contra a vontade dos participantes.

Até o presente momento, abordei três pontos de vista, sob os quais a idéia kantiana que reformula o direito das gentes, centrado no Estado, transformando-o num "direito de cidadãos do mundo" (Weltbürgerrecht), pode ser dissociada de uma forma de concretização que assume a figura de uma república em formato de mundo, a qual gera absurdos. Em primeiro lugar, fiz menção da figura de pensamento federalista da soberania partilhada e do conceito geral de um sistema em vários degraus. Introduzi, a seguir, a distinção entre dois tipos de constituição que visam, respectivamente, a criação do poder e a sua delimitação; na constituição política de uma sociedade mundial desprovida de governo mundial, ambos os tipos de constituição

8 Esse ponto é sublinhado por: COTIER,Th., HERTIG M. 'The Prospects of 21 st. Century Constitutionalism", in: Max Planck Yearbook of United Nations Law, vol. 7, 2004.

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poderiam contrair uma nova relação. E mencionei, finalmente, a representação procedimental de uma constitucionalização do direito das gentes, que avança aos poucos, a qual é iniciada e portada mais por governos do que por cidadãos, antes de obter repercussão ampla por meio da gradativa internalização de construções jurídicas antecipadoras.

Com os olhos voltados para as estruturas atualmente existentes é possível, sobre essa base, esboçar uma alternativa conceituai para a república mundial (e para suas variantes contemporâneas).1' Mas para atingir tal objetivo é necessário proceder, ainda, a três mudanças no estoque conceituai da teoria política, a saber:

(a) Adaptar o conceito de soberania do Estado às novas formas de governar que se estendem para além do Estado nacional.

(b) Rever o nexo conceituai que liga o monopólio estatal do poder ao direito coercitivo levando em conta que um direito supra-estatal tem o respaldo de potenciais de sanção estatais.

(c) Nomear o mecanismo que explica de que modo as nações podem modificar a compreensão que têm de si mesmas.

(a) Segundo a interpretação do nacionalismo liberal, é possível compreender a soberania estatal, bem como a proibição de intervenção, inerente ao direito das gentes, como uma conseqüência do conceito de soberania do povo. Na competência de uma auto-afirmação no exterior reflete-se a autodeterminação democrática de cidadãos, a qual é determinante no interior.10 O Estado deve possuir o direito e a capacidade de conservar a identidade e a forma de vida da coletividade política, desejada democraticamente, e, em caso de necessidade, de protegê-la contra outras nações lançando mão do poder militar. A

"Sobre a "democracia cosmopolita" cf.: ARCHIBUGI, D. e HELD D. (orgs.) Cos-mopolitan Democracy. Cambridge, 1995; HELD, D. Democracy and the Global Order. Cambridge, 1995; sobre a república mundial federal cf.: HÕFFE, O. Demokratie im Zeitalter der Globalisierung. Munique. 1999.

luCf. WALZER, M. Just and Unjust Wars. Nova York, 1977; id. Erkldrte Krige - Kriegserklarungen. Hamburgo, 2003; cf. também as contribuições in: "Twenty Years of Michael Walzer's Just and Unjust Wars", in: Ethics & International Affairs, II (1997), 3-104.

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autodeterminação no interior necessita da proteção contra uma determinação por outros, oriunda do exterior. E bem verdade que tal concepção vai de encontro a dificuldades tão logo é analisada à luz das condições de uma sociedade mundial, extremamente interdependente. E quando até mesmo as superpotências não conseguem mais, apoiadas apenas em suas próprias forças, garantir a segurança e o bem-estar da própria população, sendo obrigadas a entrar em cooperação com outros Estados, o sentido clássico de "soberania" passa por uma transmutação.

A proporção que a soberania estatal, no interior, não se esgota mais na simples manutenção da tranqüilidade e da ordem, já que abrange também uma garantia eficaz dos direitos dos cidadãos, a soberania no exterior exige, hoje em dia, não apenas capacidade para a cooperação, mas também uma capacidade de se defender dos inimigos exteriores. A assunção soberana dos encargos constitucionais exige também a capacidade e a disposição do Estado em participar, com iguais direitos, dos esforços coletivos visando processar problemas que se colocam no plano global e regional e que só podem ser solucionados no quadro de organizações internacionais ou supranacionais." Isso pressupõe não somente uma renúncia ao jus hei li, como também o reconhecimento do dever que tem a comunidade internacional de proteger as populações contra o poder de Estados criminosos ou que se encontram em decomposição.

(b) E interessante notar que a comunidade internacional pode transmitir a uma organização mundial o direito de impor sanções sem ser necessário conferir a ela, ao mesmo tempo, um monopólio global do poder. Contrariamente à representação convencional da estrutura do direito coativo, abre-se uma forte diferença entre as instâncias su-pra-estatais, que dispõem de uma competência de direito, e instâncias estatais, que têm na reserva meios de aplicação legítima da força para a implantação do direito estatuído a nível supranacional. O monopólio

"Cf. a correspondente definição da "nova soberania" in: CHAYES, A. e A. H. The New Sovereigníy: Compliance with International Regulatory Agreements. Cambridge (Mass.), 1995.

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do poder continua nas mãos dos diferentes Estados singulares soberanos, mesmo que estes, na qualidade de membros das Nações Unidas, tenham cedido formalmente ao Conselho de Segurança o direito de decidir sobre a aplicação do poder militar (salvo em casos muito especiais de autodefesa fundamentada). De acordo com padrões de comportamento estabelecidos em sistemas de segurança coletivos, para as resoluções de intervenção do Conselho de Segurança serem eficazes basta que um número suficientemente grande de membros potentes coloquem à disposição suas capacidades para a realização de uma missão decidida em comum. A União Européia oferece um exemplo convincente para o efeito vinculante de normas jurídicas prioritárias, as quais recebem, por esse caminho circular, o "apoio" de Estados-membros formalmente subordinados. Os meios de coerção para sancionar o direito estatuído em Bruxelas ou em Strassbourg estão "estacionados", agora como antes, nas casernas dos Estados singulares que colocam esse direito em prática.

(c) Tal exemplo também se presta à ilustração da "hipótese da eficácia da norma",12 a qual tem de ser admitida para que o projeto kantiano de uma "situação de cidadania mundial" adquira alguma plausibilidade empírica. As construções jurídicas introduzidas pelas elites políticas em arenas supra-estatais são fórmulas cuja eficácia se assemelha à de uma antecipação que tende a se realizar por si mesma (seif-fulfilling prophecy). Tal tipo de colocação do direito antecipa a modificação da consciência que tem lugar apenas no decorrer de uma implementação gradativa. No médium dos discursos que a acompanham realiza-se, passo a passo, uma internalização de um teor de prescrições que inicialmente são reconhecidas apenas de modo declamatório. Isso vale, em igual medida, para os Estados e para os cidadãos. Num processo de aprendizagem desse tipo, circularmente auto-referencial e desencadeado de modo construtivo, modifica-se, a nível nacional, a compreensão dos papéis das partes contratantes. No

12 Sobre a importância do conceito de aprendizagem social-conslruiivisia para a teoria das relações internacionais cf. ZANGL, B. e ZÜRN, M. Frieden und Krieg. Frankfurt/M., 2003, 118-148.

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decorrer do processo de exercitação de cooperações que inicialmente foram combinadas de modo soberano, a autocompreensão de atores coletivos que decidem transforma-se na consciência de membros de uma organização, os quais são detentores de direitos e estão submetidos a deveres. Por esse caminho, os próprios Estados soberanos podem aprender a subordinar interesses nacionais às obrigações que eles assumiram na qualidade de membros da comunidade internacional ou como parceiros de redes transnacionais.

II

Sobre a base de tais explicações preliminares é possível soletrar a idéia kantiana de uma situação de cidadania cosmopolita de uma forma tal que antecipa, certamente, a realidade, mas que preserva, mesmo assim, um contato com ela. Eu gostaria de descrever a sociedade mundial politicamente constituída, que esbocei alhures,11 como um sistema em vários níveis, o qual poderia viabilizar, mesmo na ausência de um governo mundial, uma política interna mundial , especialmente nos campos da política econômica mundial e da política do meio ambiente. A nova estrutura da "sociedade de cidadãos do mundo" (Weltbürgergesellschat), constitucionalizada, passa a ser caracterizada por três arenas e por três tipos distintos de atores coletivos, fato que a distingue do sistema do direito das gentes, centrado em Estados e que conhecia apenas uma única espécie de jogadores, isto é, os Estados nacionais, e dois campos de jogo, a política interior e a exterior, ou melhor, assuntos internos e relações internacionais,

A arena supranacional é ocupada por um único ator. A comunidade internacional vislumbra sua figura institucional numa organização mundial capaz de agir em campos políticos bem circunscritos sem ter de assumir, ela mesma, caráter estatal. As Nações Unidas não têm competência para determinar nem para ampliar, de acordo com seu arbítrio, suas próprias competências. Elas estão autorizadas a preencher, de modo eficaz e, especialmente, não-seletivo, duas funções, as quais consistem em preservar a segurança

"HABERMAS, (2004), I33ss. e 174 ss.

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internacional e implementar, de modo global, os direitos humanos; elas ficam, pois, confinadas a essas duas funções fundamentais, bem determinadas. A reforma das Nações Unidas, iminente, não deve, por conseguinte, visar apenas o fortalecimento das instituições nucleares, mas também um des-entrelaçamento funcional do complexo emaranhado de organizações especiais e colaterais (inclusive organizações que se ligam a outras organizações internacionais) que constituem os ramos da ONU.14

A formação da opinião e da vontade da organização mundial deveria, certamente, ser retroligada aos fluxos de comunicação de parlamentos nacionais, estar aberta à participação de organizações não governamentais autorizadas a participar de discussões e ser expostas à observação de uma esfera pública mundial mobilizada. Entretanto, mesmo uma organização mundial, corretamente reformada, compõe-se diretamente de Estados nacionais, não de "cidadãos do mundo" (Weltbürger). E neste particular, ela se parece mais com uma aliança de povos do que com o Estado de povos, kantiano. Porquanto, sem república mundial, não é possível a existência de qualquer tipo de parlamento mundial, por mais despretensioso que ele seja. Os atores coletivos não podem dissolver-se inteiramente, sem deixar resto, na ordem que eles próprios têm de criar, mediante um contrato ci mentado num direito internacional das gentes, o único instrumento disponível no início. Caso pretenda ser a coluna portadora de um pacifismo legal protegido do poder, a organização mundial tem de ser apoiada continuamente por centros de poder organizados na forma de Estados.15 Ao lado dos indivíduos, os Estados continuam sendo sujeitos de um "direito de povos" transmutado em "direito de cidadãos do mundo" (Weltbürgerrecht), a fim de que a comunidade internacional possa proporcionar, em caso de necessidade, proteção dos direitos fundamentais, mesmo quando isso implica um posicionamento contra seu próprio governo.

14 Uma visão geral sobre a "família da ONU" pode ser encontrada in: HELD, D. Global Covenant. Cambridge, 2004, 82 s.

"Sobre a "indispensabilidade do Estado nacional" cf. GRANDE, E. "Vom Nationalstaat zum transnationalen Politikregime", in: BECK, U. e LAU, Ch. (orgs.) Entgrenzung und Entscheidung. Frankfurt/M., 2005, 384-401.

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Na qualidade de membros da comunidade internacional, os Estados também devem manter um lugar privilegiado tendo em vista as metas de longo alcance proclamadas pelas Nações Unidas sob o título de "metas de desenvolvimento do Milênio" (Millennium De-velopment Goals). A proteção dos "cidadãos do mundo" (Weltbürger), soletrada nos pactos dos direitos humanos, não se restringe mais, apenas, a direitos fundamentais liberais e políticos: ela se estende, muito mais do que isso, as condições de vida materiais "autorizadoras" que colocam os sobrecarregados e sofredores desse inundo em condições de fazer uso tático de seus direitos garantidos formalmente.1(1 Hoje em dia, no palco das redes e organizações transnacionais, já se condensam e se sobrepõem mecanismos capazes de satisfazer a crescente necessidade de coordenação de uma sociedade mundial cada vez mais complexa.17 Em que pese isso, a coordenação de atores estatais e não-estatais constitui uma forma de regulação destinada a uma única categoria de problemas que ultrapassam fronteiras.

Para questões técnicas em sentido amplo (tal como a padronização de medidas, a regulamentação das telecomunicações ou a prevenção de catástrofes, a contenção de epidemias ou o combate do crime organizado) bastam procedimentos da troca de informações, da deliberação, do controle e do acordo. E já que o demônio se encontra sempre no detalhe, tais problemas também exigem o ajuste de interesses. Mesmo assim, eles se distinguem das questões de natureza genuinamente "política", as quais, como é o caso das questões da política da energia e do meio ambiente, das finanças e da economia -que são relevantes em termos de distribuição - interferem em interesses de sociedades nacionais, profundamente arraigados, e de difícil remoção. Com respeito a tais problemas de uma futura política interna mundial, existe uma necessidade de regulamentação e de configuração.

l6Com isso, impôs-se, no próprio direito das gentes, a concepção da "democracia social" que deriva da iradição da teoria do direito do Estado, de Hermann Heller. Cf. sobre tal ponto, MEYER, Th. Theorie dersozialen Demokratie. Wiesbaden, 2005.

17 Uma listagem impressionante das organizações internacionais pode ser encontrada em SLAUGHTER, A. -M. A New World Order. Princeton e Oxford, 2004. XV-XVIII.

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Porém, ainda não temos, nem o quadro institucional, nem os atores que poderiam suprir tal necessidade. As redes políticas existentes são especificadas de modo funcional e formam, no melhor dos casos, organizações compostas de modo inclusivo que trabalham multilateralmente, nas quais os representantes do governo -independentemente de quem mais seja admitido - carregam a responsabilidade e têm o poder da palavra. Por via de regra, elas não formam, em todo caso, um quadro institucional para competências legisladoras ou correspondentes processos de formação da vontade política. Não obstante, mesmo que tal quadro fosse estabelecido, ainda não teríamos os atores coletivos capazes de colocar tais decisões em prática. Eu penso em regimes regionais que detêm um mandato de negociação suficientemente representativo para continentes inteiros, dispondo também do necessário poder de implementação.

A política somente poderia satisfazer a necessidade de regulamentação, surgida espontaneamente, de uma sociedade mundial e de uma economia mundial integrada de modo sistêmico, isto é, de uma forma que é natural somente na aparência, se a arena intermediária fosse ocupada por um número não exagerado de "jogadores globais" (global players). E estes deveriam ser suficientemente fortes a ponto de poderem formar coalisões não fixas e equilibrios do poder flexíveis - especialmente em questões da estruturação e do controle geral do amplo sistema de funções econômicas e ecológicas - e negociar compromissos obrigatórios que tenham condições de implementação. Por este caminho, as relações internacionais no palco transnacional tal qual as conhecemos hoje iriam continuar a existir, porém, numa forma modificada - já pela simples razão de que, sob um efetivo regime de segurança das Nações Unidas, nem mesmo o mais poderoso entre os global players teria permissão para apelar à guerra como meio legítimo de solução de conflitos. O problema derivado do fato de que na arena do meio, que é a arena transnacional, não haja, por enquanto, com exceção dos Estados Unidos, atores com capacidade de ação, chama a atenção para um terceiro nível, que é o dos Estados nacionais.

Tal nível só conseguiu atingir dimensões globais na era da descolonização. Somente durante a segunda metade do século XX,

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surgiu uma comunidade inclusiva de Estados nacionais; nesse espaço de tempo, o número de Estados-membros das Nações Unidas passou de 51 para 192. Tais Estados nacionais constituem, por conseguinte, uma formação política relativamente jovem. Entretanto, mesmo que os Estados nacionais continuem a aparecer, nas arenas internacionais, como os atores "natos" e mais poderosos, como aqueles que, agora como antes, tomam as iniciativas, eles se encontram, hoje em dia, sob pressão. As interdependências crescentes da economia mundial e os riscos da sociedade mundial, que não respeitam fronteiras nacionais, colocam exigências excessivas aos seus fluxos de legitimação e a seus espaços de decisão que se encontram vinculados a certos espaços territoriais. Há muito tempo, os ent recruzamentos globais desmascararam como absurda a suposição da teoria da democracia, segundo a qual, existe uma congruência entre aqueles que participam responsavelmente das decisões políticas e aqueles que são atingidos por elas.ls

Por isso, em todos os continentes, os Estados singulares vêem-se obrigados a assumir uniões regionais, em todo caso, formas de uma cooperação mais estreita (APEC, ASEAN, NAFTA, AU, ECOWAS, OAS etc.)". Tais alianças regionais não passam, todavia, de inícios frágeis. Caso pretendam assumir, ao nível transnacional, o papel de portadores coletivos de uma "política interna mundial" (Weltinnenpolitik), ou seja, caso pretendam adquirir a capacidade de ação de global players e obter a legitimação democrática para os resultados dos acordos transnacionais, os Estados nacionais têm de se aglutinar em formas de cooperação que ultrapassam as formas intergovernamentais. Somente Estados nacionais da primeira geração ensaiaram um salto para uma figura política desse tipo, mais sólida. Devido aos excessos de um nacionalismo radical que a si mesmo se dilacerou, surgiu na Europa um impulso para uma união política. '"HELD. D.. MCGREW, A., GOLDBLATT, D., PERRATON, J. Global Transfor-

niaiion. Cambridge, 1999. ' APEC (Ásia - Pacific Economic Cooperation); ASEAN (Associalion of South

East Asian Nalions); NAFTA (North American Free Trade Agreement); AU (African Union); ECOWAS (Economic Communily of West African Slaales); OAS (Organization of American Staies) (n.t.)

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Hoje em clia, a União Européia atingiu, ao menos, o estágio no qual pode pleitear capacidade de ação global. Seu peso político pode equiparar-se a regimes continentais "autóctones" tal como a China e a Rússia. No entanto, diferentemente dessas potências, que saíram relativamente tarde da formação de antigos reinos através de uma fase de socialismo estatal intermediária, a União Européia poderia assumir o papel de um modelo para outras regiões porque ela consegue harmonizarem um nível de integração superior os interesses de Estados nacionais que já eram independentes anteriormente, gerando, por este caminho, um ator coletivo numa escala não conhecida antes. Entretanto, a União Européia só poderá servir de modelo para a estruturação de capacidades de ação regionais caso ela consiga atingir um grau de integração política que permita à União perseguir, seja internamente, seja no exterior, políticas comuns legitimadas democraticamente.

Não fiz, até agora, menção do pluralismo cultural, o qual pode produzir efeitos "de ferrolho" nos três níveis. A politização das grandes religiões mundiais, que pode ser observada atualmente em todos os paises, eleva as tensões a nível internacional. No quadro de uma sociedade mundial, estruturada em termos constitucionais e políticos, tal "choque de civilizações" (clash of civilizations), do qual se tem consciência hoje em dia, poderia sobrecarregar, antes de tudo, os sistemas de negociação transnacionais. Em que pese isso, no quadro do estabelecimento de um sistema de' vários níveis, esboçado há pouco, o processamento desses conflitos seria significativamente aliviado caso os Estados nacionais tivessem passado por processos de aprendizagem e tivessem modificado, não somente sua autocompreensão, mas também sua atitude.

O primeiro processo de aprendizagem tem a ver com uma internalização de normas da organização mundial e com a capacidade de defender os próprios interesses inserindo-os, de modo sagaz, em redes transnacionais. Numa sociedade mundial constituída politicamente, os Estados soberanos têm de entender-se, ao mesmo tempo, e sem lançar fora formalmente seu monopólio do poder, como membros pacificados da comunidade internacional e como parceiros potentes

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na organização internacional. O outro processo de aprendizagem tem a ver com a superação de uma situação da consciência, renitente e ligada historicamente à formação dos Estados nacionais. Durante o processo regional de união de Estados nacionais, da qual resultam atores com capacidade de ação global, a consciência nacional, isto é, a base existente de uma solidariedade de cidadãos de um Estado, já por demais abstrata, tem de se ampliar, mais uma vez. Uma mobilização de massas por motivos religiosos, étnicos ou nacionalistas torna-se tanto mais improvável, quanto mais as imputações de tolerância de um etos de cidadãos de um Estado democrático tiverem sido implementadas no âmbito de fronteiras nacionais.

Aqui se levanta a objeção da "impotência do dever ser". Não pretendo abordar, no entanto, a pretensa superioridade do projeto . kantiano frente a outras visões de uma nova ordem mundial.'1'Todavia, por mais bem fundamentados que sejam, do ponto de vista normativo, os projetos, eles permanecem sem efeito, caso a realidade não lhes corresponda. Hegel levantou tal objeção contra Kant. Ao invés de se limitar a opor a uma realidade incompreensível a idéia racional, ele pretendia elevar a factualidade (Realitát) da história à realidade (Wirklichkeit) da idéia. Hegel e Marx, entretanto, que se apoiaram em tal retaguarda filosófico-histórica, foram desmascarados. Antes de abordar duas tendências históricas que aceitam um projeto kantiano revisado, eu gostaria de lembrar o que, de modo geral, está em jogo nesse projeto: porque se trata de saber se temos de renunciar ao mundo de representações de uma coletividade democrática estruturada de modo político ou se esse mundo, o qual se desenrola num plano do Estado nacional, pode ser trasladado para uma constelação pós-nacional.

III

As concepções modernas da const i tu ição referem-se , explicitamente, à relação dos cidadãos ao Estado. Implicitamente, porém, elas esboçam sempre, também, uma ordem jurídica global

"'HABERMAS, J. (2004) 182-193.

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capaz de abranger a totalidade da sociedade "burguesa" (no sentido de Hegel e Marx),2" portanto, a totalidade do Estado de administração, da economia capitalista e da sociedade de cidadãos. A economia entra em jogo pelo fato de que o Estado moderno, enquanto Estado fiscal, depende das relações de mercado organizadas pelo direito privado. E a sociedade civil é tematizada, nas teorias do contrato social, como a rede de relações entre cidadãos - seja como as relações entre cidadãos de uma sociedade que procuram maximizar seus lucros (como é o caso do conceito de constituição liberal), seja como as relações entre cidadãos solidários (como é o caso do modelo republicano).

É bem verdade que a constituição jurídica de uma coletividade de cidadãos livres e iguais é o tema propriamente dito de uma constituição. Os termos "segurança", "direito" e "liberdade" colocam o acento, de um lado, sobre a auto-afirmação interna da coletividade política; de outro lado, sobre a garantia dos direitos que pessoas livres e iguais se concedem a si mesmas na qualidade de membros de uma associação que se administra a si mesma. A constituição fixa o modo como o poder (Gewalt) organizado no Estado pode ser transformado em força legítima (Macht). Com a solução do problema envolvendo "direito e liberdade" se decide também, implicitamente, sobre os papéis a serem desempenhados pela economia, enquanto sistema funcional portador, e pela sociedade dos cidadãos, enquanto fundamento da formação pública da opinião e da vontade, na relação com o poder de organização do Estado.

Com a ampliação do catálogo das tarefas estatais, que não residem mais, apenas, na clássica manutenção da ordem e na garantia da liberdade, tal caráter abrangente da ordem constitucional, inserido implicitamente nela, vem claramente à tona. Numa sociedade capitalista, as injustiças sociais têm de ser superadas; numa sociedade de riscos ameaças coletivas têm de ser afastadas e numa sociedade pluralista é necessário instaurar direitos iguais de formas de vida

Porquanto esses dois elementos são inicialmente diferenciados no conceito clássico da sociedade civil ou reduzidos à "sociedade burguesa". Cf. o prefácio à nova edição de HABERMAS, J. Struklurwandei der Ôffenllichkeit. Frankfurt/M 1990, 45 ss.

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culturais. Nas diferenças de status, geradas de modo capitalista, nos riscos provocados pela ciência e pela técnica e nas tensões do pluralismo cultural e das visões de mundo, o Estado enfrenta desafios que não se adaptam, sem mais nem menos, aos meios da política e do direito. Ele não pode, no entanto, fugir à sua responsabilidade política pelo todo porque ele mesmo depende, não somente das realizações sistemicamente integradoras dos sistemas funcionais privados, por conseguinte, em primeira linha, da economia, mas também das realizações socialmente integradoras da sociedade dos cidadãos. O Estado que prove e previne a existência tem de familiarizar-se, moderadamente, com o sentido próprio dos sistemas funcionais e com a dinâmica própria da sociedade dos cidadãos.21 Expressão desse novo estilo são os sistemas de negociação corporativistas, no interior dos quais, no entanto, o Estado tem de continuar se orientando, agora como antes, pela constituição - ou por uma interpretação da constituição adaptada às circunstâncias do tempo.

A referência da constituição à tríade constituída pelo Estado, pela economia e pela sociedade civil , pode ser expl icada sociologicamente quando se considera que todas sociedades modernas são integradas precisamente por três meios - podemos caracterizá-los como "poder", "dinheiro" e "entendimento". Em sociedades diferençadas de modo funcional, estabelecem-se relações por meio da organização, do mercado e da formação de um consenso (isto é, por meio da comunicação lingüística, por meio de valores e por normas). Tipos correspondentes da socialização condensam-se no

21 Cf. o caderno de temas para a transformação do Estado, editado por: LEIBFRIED, St. e ZÜRN, M.: European Review, 13, suplemento I (maio de 2005), bem como a listagem ilustrativa das tarefas do Estado na introdução dos editores: "A new perspective on the State", 2: "O Estado regula o mercado de trabalho, dirige a economia, persegue o crime e prove diferentes formas de educação; ele regula o tráfego, prove uma estrutura para a democracia, negócios próprios, entra em guerra e redige tratados de paz, cria uma estrutura legal confiável, dá suporte ao bem-estar social, constrói ruas, prove a água, impõe o serviço militar, mantém o sistema de pensões, recolhe taxas e dispõe de 40% do produto nacional bruto, representa os interesses nacionais e geralmente regula a vida cotidiana, descendo até os mínimos detalhes."

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Estado burocrático, na economia capitalista e na sociedade civil. A constituição política tem como meta colocar tais sistemas em forma com o auxílio do médium do direito e correlacioná-los entre si, de tal sorte que eles possam preencher suas funções de acordo com a medida de um suposto "bem comum". E a fim de fornecer uma contribuição para a maximização do bem comum, a constituição deve prevenir, lançando mão da capacidade estruturadora de uma ordem jurídica global, desenvolvimentos falhos de sistemas específicos.

Nesta linha, o poder organizacional do Estado deve garantir direito e liberdade, sem descarrilar para os lados do poder repressivo, da tutela paternalista ou da coerção normalizadora. A economia deve promover produtividade e bem-estar sem ferir os padrões da justiça distributiva (ela deve promover o maior número possível, mas sem prejudicar ninguém); e a sociedade civil deve engajar-se pela solidariedade de cidadãos independentes, sem descambar para o coleti vismo ou para a integração coagida e sem provocar fragmentação ou polarização das visões de mundo. O bem comum, postulado, não está ameaçado apenas pelos "fracassos do Estado" (insegurança do direito e opressão), mas também por "fracassos do mercado" e pela evaporação da solidariedade. O caráter indeterminado do bem comum, que é questionado em sua natureza," é fruto da falta de equilíbrio entre essas duas grandezas independentes, o qual precisa ser estabelecido.

Mesmo quando o Estado preenche suas tarefas genuínas de manutenção da ordem e de garantia da liberdade, ele não consegue manter ininterruptamente o requerido nível de legitimação caso uma economia bem-sucedida não consiga gerar as condições para uma distribuição dos ressarcimentos sociais, que seja aceita, e caso uma sociedade de cidadãos não consiga produzir motivos para uma medida razoável de orientações pelo bem comum.210 mesmo vale vice-versa.

22OFFE, C. "Wessen Wohl ist das Gemeinwohl?" in: WINGERT/GÜNTHER, (2001)459-488.

21 HOFMANN, H. "Verfassunsrechtliche Annaherung an den Begriff des Gemeinwohls", in: MÜNKLER, H. e FISCHER, K. (orgs). Gemeinwohl und Geminsinn im Rechl. Berlim, 2002, 25-42.

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Por isso, a constituição coloca nos ombros do Estado democrático uma responsabilidade paradoxal pelos pressupostos da existência econômica e cultural da coletividade política, a qual ele pode, é verdade, influenciar e promover com os meios da pressão política e da coação jurídica, os quais estão à sua disposição. Ele pode, com isso, "torná-los controláveis" politicamente; mesmo assim, ele não pode garantir juridicamente o sucesso. O desemprego e a segmentação social, do mesmo modo que a falta de solidariedade, não são expulsos do mundo por meio de proibições ou de medidas administrativas.

Existe uma assimetria entre a imagem da sociedade, inscrita na constituição, e o alcance limitado dos meios de configuração política, dos quais o Estado dispõe. Tal assimetria não foi prejudicial enquanto a economia política se encaixava na moldura do Estado nacional e enquanto e solidariedade se alimentava da consciência nacional de uma população mais ou menos homogênea. Enquanto o sistema do livre comércio do Hemisfério Ocidental, estabelecido após o ano de 1945, mantinha um câmbio fixo, as fronteiras para o comércio internacional estavam abertas, porém, os sistemas da economia, que continuavam inseridos em contextos sociais nacionais, eram sensíveis a intervenções do Estado. E uma vez que, nessas circunstâncias, os governos nacionais mantinham um grande espaço para os seus próprios territórios - o qual também era aceito como suficientemente grande -era possível tomar como ponto de partida uma controlabilidade política dos processos sociais detentores de relevância pública.

Acompanha a suposição da "controlabilidade política" a construção jurídico-constitucional de uma sociedade que, por meio de agências estatais, age sobre si mesma conforme a vontade de seus cidadãos. A substância democrática de uma constituição, a qual faz dos cidadãos autores das leis às quais eles mesmos, enquanto destinatários, estão submetidos, depende da possibilidade de um tal auto-influenciamento. Somente à proporção que uma sociedade estiver em condições de influenciar a si mesma por meios políticos, a autonomia política dos cidadãos pode adquirir conteúdo. E em nosso contexto, tal ponto é decisivo. Entretanto, os canais de legitimação do Estado nacional já foram sobrecarregados, até o limite do que é suportável normativamente, com a ampliação dos domínios de

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responsabilidade política e da instauração de sistemas de negociação corporativistas.24 Não obstante isso, a partir do momento em que se passou para um regime econômico neoliberal, tal limite foi ultrapassado definitivamente.

Hoje em dia, assistimos a uma privatização cada vez mais ampla de realizações que até agora, por boas razões, eram reservadas ao Estado nacional. Com a transmissão para empreendedores privados, afrouxam-se os laços que prendiam tais serviços e produções ao texto de uma constituição. Isso é tanto mais arriscado quanto mais a privatização atingir esferas nucleares do poder de soberania - segurança pública, forças armadas, sistema penal ou a geração de energia. O legislador democrático, no entanto, ainda é submetido, além disso, a um outro tipo de despotencialização, a partir do momento em que a globalização da economia, desejada politicamente, passou a desenvolver uma dinâmica própria. Porquanto agora, os processos sociais que são relevantes para a garantia da liberdade e da segurança do direito, para a justiça distributiva e para a convivência com igualdade de direitos subtraem-se ao controle político, numa proporção cada vez maior. Agudiza-se , em todo caso, a assimetria entre a responsabilidade atribuída ao Estado democrático e o espaço real de sua influência.25

Com a desregulamentação e o desconfinamento dos fluxos de informação e de comércio internacionais em muitas outras dimensões surge uma necessidade de regulamentação, a qual é captada e processada por redes e organizações transnacionais. Mesmo quando há a colaboração dos funcionários dos governos nacionais, as decisões dessas redes políticas interferem profundamente na vida pública dos Estados nacionais, mesmo sem estarem conectadas aos fluxos de legitimação destes últimos. Michael Zürn descreve as conseqüências de tal desenvolvimento da seguinte maneira: "Os processos democráticos que preparam as decisões nos Estados nacionais estão.

"GRIMM, D. Die Zukunft der Verfassung. Frankfurt/M., 1991, 372-396; id. "Bedingungen demokratischer Rechlsset/.ung", in: WINGERT/GÜNTHER (2001), 489-506, aqui, 500 ss.

25 HELD, D. e MCGREW. A. (orgs.). The Global Transformalions Reader Cambridge, 2000.

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por conseguinte, perdendo sua ancoragem. Eles são suplantados por organizações e atores que realmente são, de modo geral, responsáveis, de uma forma ou de outra, por seus governos nacionais, mas que são, ao mesmo tempo, mais remotos e inacessíveis aos que se envolvem nacionalmente nas regulações em questão. Dado o fato da extensão da intromissão dessas novas instituições internacionais nos negócios das sociedades nacionais, a noção de autoridade 'delegada e por isso controlada' não se mantém mais no sentido principal e agente."26

Caso tal descrição esteja correta, a constelação pós-nacional nos coloca perante uma alternativa desconfortável: Ou abandonamos a idéia, pretensiosa, de uma constituição tida como associação de cidadãos livres e iguais que se administra a si mesma, dando-nos por satisfeitos com uma interpretação sociologicamente desenganada de democracias e Estados de direito, dos quais permanecem apenas as fachadas. Ou nós temos de tomar a idéia remanescente da constituição e dissociá-la do substrato do Estado nacional, revivificando-a, a seguir, na figura pós-nacional de uma sociedade mundial constituída politicamente. Naturalmente não é suficiente mostrar, à luz de um experimento mental filosófico, como o conteúdo normativo da idéia pode ser suprassumido conceituai mente em uma "sociedade de cidadãos do mundo" (Weltbiirgergesellschaft) desprovida de governo mundial. A idéia deve poder contar com um correlato empírico situado no próprio inundo.

Há muito tempo já, os Estados nacionais enredaram-se em dependências de uma sociedade mundial altamente interdependente. Por meio dos fluxos cada vez mais acelerados da informação e da comunicação, por meio de movimentos de capital, em escala mundial, fluxos de comércio, cadeias de produção e transferências de tecnologias, por meio do turismo em massa, da migração do trabalho, da comunicação científica, etc , os sistemas parciais de tal sociedade mundial perpassam, sem a menor dificuldade, as fronteiras nacionais. Tal sociedade global, do mesmo modo que as sociedades nacionais, será integrada pelos mesmos meios que são o poder, o dinheiro e o

:,'ZÜRN. M. "Global Governance and Legilimacy Problems", in: Government and Opposition. 39. 2 (2004), 260-287, aqui, 273 s.

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entendimento. Por que deveria uma constituição, que ao nível nacional enfrentou com sucesso tais mecanismos de integração lançando mão dos meios da política e do direito, fracassar no nível transnacional ou supranacional? Eu não encontro nenhum argumento de cunho social ou ontológico que obrigue a aceitar a idéia de que a solidariedade de cidadãos de um Estado e a capacidade de condução da constituição política deva ser confinada em limites nacionais. No entanto, como já foi dito, o experimento mental filosófico que permite mostrar o modo como o conteúdo normativo da idéia da constituição pode ser suprassumido conceitualmente em uma sociedade de cidadãos do mundo desprovida de governo mundial, não é suficiente.

Num sistema global de vários níveis, a clássica função de ordem, que é atribuída ao Estado, isto é, a garantia de segurança, de direito e de liberdade seria transferida para uma organização mundial supranacional, especializada nas funções da garantia da paz e da implementação global dos direitos humanos. No entanto, tal organização seria desonerada das tarefas imensas de uma política interna mundial, as quais consistem não somente em superar o extremo desnível do bem-estar da sociedade mundial estratificada, em redirecionar fardos ecológicos desiguais e em afastar ameaças coletivas, mas também em implementar um entendimento intercul-tural com o objetivo de conseguir efetivamente direitos no diálogo das civilizações mundiais. Tais problemas exigem um outro modo de elaboração no quadro de sistemas de negociação transnacionais. Eles não podem ser solucionados por um caminho direto, no qual se lança mão do poder e do direito contra Estados nacionais incapazes ou recalcitrantes. Eles atingem a própria lógica dos sistemas de funções que ultrapassam fronteiras e o sentido próprio das culturas e religiões mundiais com as quais a política tem de se acertar pelo caminho de um controle e de um equilíbrio inteligente de interesses, bem como através de uma abertura hermenêutica.

Na busca por tendências que, na própria sociedade mundial, façam jus à idéia de uma constituição de cidadãos do mundo, a distinção entre um plano transnacional e outro supranacional permite dirigir o olhar, de um lado, para a iminente reforma das Nações Unidas (IV), e, de outro lado, para a dinâmica que resulta do déficit de

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legitimação das formas existentes de governo global {global governante), que são sentidas de modo cada vez mais nítido (V).

IV Na reflexão sobre o abismo que se abre entre "ser" (Sein) e "dever

ser" (Sollen), John Rawls tinha feito uma distinção entoe "teoria real" e "teoria ideal". Em que pese isso, tal distinção metódica ainda não é suficiente para uma destranscendentalização eficaz da distinção kantiana entre o inundo dos noumena e o inundo dos fenômenos. Idéias têm acesso à realidade social por meio de pressuposições inevitavelmente idealizadoras de nossas práticas cotidianas e obtêm, por esse caminho imperceptível, a força de resistência típica de fatos sociais. Cidadãos, por exemplo, participam de eleições políticas porque eles pensam, na sua perspectiva participante, que seu voto conta independentemente daquilo que os politólogos, na perspectiva nâo-efusiva de um observador, informam sobre a geografia e os procedimentos das eleições. E clientes continuam a apelar para os tribunais na expectativa de que o seu caso seja avaliado de modo imparcial e decidido corretamente, independentemente daquilo que professores de direito e juizes proferem sobre a indeterminidade de normas e procedimentos. As idéias, no entanto, só desenvolvem sua eficácia por meio de pressuposições idealizadoras de práticas já estabelecidas ou exercitadas. Somente depois que as práticas encontraram apoio, por exemplo, em instituições constituídas juridicamente, é necessário levar a sério também, na qualidade de fatos, as ficções ou suposições com as quais operam.

As Nações Unidas constituem uma instituição desse tipo. No quadro de tal instituição do direito internacional das gentes formaram-se, ao longo de décadas, novas práticas e procedimentos com forte carga normativa. Pretendo examinar o conteúdo de realidade do projeto kantiano tomando como fio condutor uma reforma desta organização mundial, a qual se encontra em andamento. Com isso, abandonamos o solo de uma teoria desenvolvida, em primeira linha, com argumentos normativos, e passamos para uma interpretação construtiva de um âmbito do direito positivo que se encontra em rápido desenvolvimento.

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Entrementes, o direito das gentes adaptou-se ao modo de validade do direito estatal modificando, destarte, seu status. No plano transnacional "trata-se de uma nova mistura de direito estatal e supra-estatal, de contratos privados e de direito público"; no plano supranacional "forma-se, além disso, um direito constitucional".-7 Com isso, perdeu sentido, no entanto, a controvérsia que se desenrolava entre uma compreensão dualista da relação entre direito estatal e direito das gentes (Võlkerrecht), e a doutrina monista que propõe uma dissolução de ambos os direitos, o estatal e o das gentes, internacional, num sistema jurídico global.28

De qualquer modo, hoje em dia, para muitos especialistas, o desenvolvimento acelerado do direito das gentes apresenta-se como uma "const i tucional ização" impulsionada pela comunidade internacional dos Estados com a finalidade de fortalecer a posição jurídica de pessoas de direito, individuais, as quais foram revalorizadas em termos de cidadãos do mundo e de sujeitos de um direito internacional (das gentes).29 A própria comissão designada por Kofi Annan™ toma como um ponto de partida evidente a idéia de que a reforma necessária da organização mundial se desenrola na mesma direção estabelecida pela Carta da ONU, a qual englobava quatro inovações de grande envergadura. Porquanto ela tinha,

2 7PETERS, A. "Wie íunktionierl das Vólkerrecht?", in: Basler Jurislisdw Mitteilungen. Fevereiro 2004, 24; ZANGL, B. "Is there an emerging inlerna-tional ruleof law?", in: European Review, 13, Suplemento I (maio 2005) 73-91.

2K KELSEN, H. "Sovereignty", in: PAULSON, St. e LITSCHEWSKI, B -PAULSON (orgs.). Normalivity andNorms. Oxíbrd, 1998, 525-536

2"TOMUSCHAT,C. •1üO painel de alto nível sobre "Ameaças, desafios e mudanças" (Threats, Clwl-

lenges and Change) (citado aqui como "TCC") apresentou, em 01 /12/2004. um relatório de cujo conteúdo Kofi Annan lançou mão em seu discurso sobre a reforma da ONU, pronunciado em 31/05/2005 e publicado in: Larger Free-dom: - Towards Development. Security and Freedom for ali (LF). Cf. o primeiro posicionamento de FASSBENDER, B. "UN-Reform und kolleklive Sicherheit", in: HEINRICH BÕLL SITUFTUNG (ed.) Global Issue Papers n° 17, abril 2005.

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(a) (seguindo as pegadas de Kant), entrelaçado explicitamente a meta da garantia da paz com uma política da implementação, a nível mundial, de direitos humanos;

(b) reforçado a proibição da violência apoiando-a na ameaça de sanções e de intervenções capazes de forçar a paz (e aberto, com isso, a perspectiva de uma penalização da guerra quando utilizada como um mecanismo de solução de conflitos entre os Estados);

(c) relativizado a soberania dos Estados em particular à luz do objetivo do paz mundial e da segurança coletiva;

(d) e estabelecido, mediante a inclusão da totalidade dos Estados numa organização mundial inclusiva, um pressuposto importante para a prioridade e a força vinculante e universal do direito da ONU.

(a) Ao contrário da Liga das Nações, a carta da Organização das Nações Unidas (ONU) une (no Artigo 1, n° 1 e 3) o objetivo da paz mundial ao "respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais de todos sem consideração de raça, sexo, língua ou religião". Tal obrigação de implementar no mundo princípios constitucionais que até agora eram garantidos apenas no interior de Estados nacionais determinou, de modo cada vez mais freqüente, a agenda do Conselho de Segurança, levando, durante as últimas décadas, a uma interpretação cada vez mais extensiva dos casos de ruptura da paz, da agressão e da ameaça da segurança internacional. Como conseqüência de tais desenvolvimentos, a Comissão de Reforma ampliou o "novo consenso de segurança" estendendo-o à tríade indivisível composta de: rechaço dos perigos, garantia de direitos individuais de liberdade e de participação e emancipação de condições de vida indignas do homem. Ela não somente amplia as fontes clássicas de perigos, que resultavam apenas de conflitos entre Estados singulares, mas passa a incluir, também, a guerra civil e a violência no interior do próprio Estado, o terrorismo internacional, a posse de armas de destruição em massa e o crime organizado a nível transnacional; ela alarga tal catálogo das fontes de perigos com o olhar fixo nos paises em desenvolvimento, onde há uma deprivação maciça da população pela pobreza e a doença, marginalização social e destruição do meio ambiente.

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Deste modo, a manutenção da segurança internacional é diluída conceitualmente pelo postulado da observância dos pactos (votado na Assembléia Geral de 1966) tendo em vista os direitos cidadãos e políticos, econômicos, sociais e culturais. Nesse ponto, a Comissão promove conscientemente uma desmilitarização do conceito de segurança quando alerta, por exemplo, para o fato de que a epidemia internacional de gripe de 1919 provocou, segundo estimativas, mais de cem milhões de mortos no espaço de um ano,11 ou seja, exigiu mais vítimas do que as lutas militares sangrentas durante toda a I Guerra Mundial: "Qualquer evento ou processo que leva à morte em larga escala ou que diminui as chances de vida e solapa O Estado como a unidade básica do sistema internacional é algo que tem a ver com a segurança internacional." (TCC, 12)

(b) O núcleo da Carta das Nações Unidas é formado pela proibição geral da violência e pela autorização, conferida ao Conselho de Segurança, de empregar sanções adequadas nos casos em que tal proibição é violada. Prescindindo das medidas de coação, que a própria ONU toma, a proibição geral da violência é restringida apenas por meio de um direito, bem circunscrito, à autodefesa no caso de um ataque claramente identificável e iminente. A Comissão fortalece, de um lado, a prerrogativa de decisão do Conselho de Segurança, colocando-a acima das superpotências que pretendem ter um direito a ataques preventivos.12 De outro lado, ela insiste no direito do Conselho de Segurança, o qual pode ordenar uma intervenção militar: "O uso da força, autorizado coletivamente, pode não ser a regra hoje em dia, mas não constitui mais uma exceção" (TCC, 81). Ela também acentua isso tendo em vista a prática, entrementes exercitada, de intervir em conflitos intra-estatais: "Nós endossamos a norma emergente de que constitui responsabilidade coletiva internacional proteger, no caso de

" Os historiadores contestam o n° de 100 milhões, fornecido em TCC, 19. Isso não modifica, no entanto, o tamanho da tragédia.

"TCC, 189 s.: "E pouco evidente que a aceitação internacional da idéia de segurança seja melhor preservada por um equilíbrio do poder do que por uma superpotência em particular.

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genocídio e de outras formas de assassinato em larga escala, de "limpezas" étnicas ou de violações sérias do direito humanitário internacional que governos soberanos não podem ou não querem prevenir." (TCC, 203)

Sobre a base de uma análise das falhas e dos erros até agora cometidos, desenvolve-se uma crítica à inacreditável seletividade da percepção e ao escandaloso tratamento desigual de casos similarmente relevantes (TCC, 86-88,201).-" O relatório também formula sugestões:

- para uma especificação mais precisa das possíveis sanções e para sua fiscalização;

- para uma diferenciação mais adequada entre as missões destinadas a manter a paz (peace-keeping) e as destinadas a promovê-la de modo mais intenso {j>eace~enfofCÍng)\

- para a avaliação correta das tarefas construtivas de uma configuração pós-conflictual da paz (post-conflict peace-building), das quais a ONU não pode eximir-se após uma intervenção militar,

- e para condições extremas que exigem o emprego legítimo da força {seriousness ofthreat, properpurpose, last resort, proportional means, balance ofconsequences).

Em que pese isso, a Comissão não se manifesta sobre a questão das conseqüências do uso da força quando este não é mais atribuição das forças armadas, mas de uma polícia mundial para o humanitário direito das gentes: Quando forças armadas executam uma missão decidida pelo Conselho de Segurança, não se trata mais de uma delimitação civilizadora de um poder de guerra, mas da obrigação de um uso da força policial para proteger direitos fundamentais de cidadãos do mundo, contra seus próprios governos nacionais, ou contra um ouüo poder intra-estatal saqueador.

"TCC, 41: "Com demasiada freqüência, as Nações Unidas e seus Esiados-membros abordaram de modo discriminatório assuntos da segurança internacional. Basta contrastar a presteza com a qual as Nações Unidas responderam aos ataques do 11 de setembro de 2001 com suas ações quando confrontadas com um lato que é, de longe, muito mais mortal: de abril de 1994 até meados de julho do mesmo ano, Ruanda foi vítima de algo equivalente a três ataques do 11 de setembro, a cada dia, durante 100 dias. Isso em um pais cuja população eqüivalia apenas a trinta e seis avos da população dos Estados Unidos.

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(c) Entretanto, quando nos apoiamos apenas no teor literal da Carta, topamos como uma tensão entre o Artigo 2, n° 7 - que parece confirmar a proibição de intervenção do clássico direito internacional das gentes - e o Capítulo VII, o qual concede ao Conselho de Segurança direitos de intervenção. Na prática, tal inconsistência criou inúmeros obstáculos ao trabalho do Conselho de Segurança, especialmente quando se tratava de enfrentar catástrofes humanitárias que aconteciam sob a capa da soberania de um regime criminoso ou cúmplice de crimes.14 A comunidade internacional viola sua obrigação de garantir, em escala mundial, proteção aos direitos do homem, quando se limita a assistir impávida, sem intervir, a assassinatos em massa, a violentações em massa, a limpezas étnicas e expulsões ou a uma política de propagação de epidemias e da fome (TCC, 200-203). A Comissão lembra que as Nações Unidas não são apenas fruto de um projeto utópico. Ao invés disso, a construção do Conselho de Segurança deveria fazer com que "princípios" fossem revestidos de suficiente "poder político" a fim de submeter relações internacionais a um direito coativo (TCC, 13 s.).

Com a crescente descentralização dos monopólios do poder, isso só pode funcionar se ao Conselho de Segurança for atribuída tanta autoridade que ele possa colher, em todos os casos, junto a membros cooperativos, potenciais de sanção para a implementação do direito das Nações Unidas, que é prioritário. As propostas para a reforma do Conselho de Segurança - tendo em vista a composição, os procedimentos de escolha e o equipamento - servem para o fortalecimento da disposição de cooperar de membros potentes e para

TCC, 199: "A Carta das Nações Unidas não é tão clara como poderia ser quando se trata de salvar vidas em paises em situação de atrocidade de massa. Ela 'reafirma a íé nos direitos humanos fundamentais' mas não pode lazer muito para protegê-los, e o Artigo 2.7 proíbe a intervenção 'em assuntos que se encontram essencialmente dentro da jurisdição de cada Estado'. Como resultado, houve uma longa argumentação na comunidade internacional entre aqueles que insistem sobre um 'direito de intervenção' em catástrofes provocadas pelo homem e aqueles que argumentam que o Conselho de Segurança [...] não pode autorizar nenhum tipo de ação coercitiva contra Estados soberanos em nenhum tipo de evento que ocorra dentro de suas fronteiras."

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o "enfaixamento" de uma superpotência para a qual o processo de modificação da autocompreensão, o qual implica uma passagem da idéia de jogador autônomo para a de um jogador participante, é muito mais difícil - por razões óbvias.

Em certos casos, a proibição da força e os direitos humanos fundamentais têm de ser implementados, contra Estados nacionais singulares incapazes ou recalcitrantes, com o auxílio das capacidades dos outros Estados-membros, unidas num feixe, cada um dos quais continua monopolizando, agora como antes, os meios do uso legítimo da força. O exemplo da União Européia revela que isso não constitui apenas uma premissa irrealista; porém, ela ainda não foi solucionada no plano supranacional da organização mundial. Deve ser colocada nesse contexto a recomendação de que o Conselho de Segurança precisa cooperar de maneira mais estreita com as alianças regionais. Porquanto tudo indica que as forças armadas, situadas nas proximidades dos locais em que se encontram as missões das Nações Unidas, têm especial responsabilidade por suas próprias regiões.

Sob a premissa da utilização dos monopólios estatais do poder para a implementação de um direito de status superior, é possível solucionar, de maneira elegante, a questão dogmática que tem a ver com compreensão da "igualdade soberana" dos Estados: "Ao assinar a Carta das Nações Unidas, os Estados não somente se beneficiam dos privilégios da soberania, mas também aceitam suas responsabilidades. Não importa o tipo de percepções que tenham prevalecido quando o sistema westfaliano deu origem à noção de Estado soberano: hoje em dia, ele carrega consigo a obrigação de um Estado que deve proteger o bem-estar de seus próprios povos e arcar com suas obrigações para com a comunidade internacional mais ampla." (TCC, 29). O Estado nacional continua equipado, agora como antes, com competências fortes, porém, agora, ele opera como um agente falível da comunidade mundial. O Estado soberano tem por tarefa garantir, no âmbito das fronteiras nacionais, os direitos humanos positivados na forma de direitos fundamentais; o Estado constitucional preenche tal função em nome de seus cidadãos unidos democraticamente. Todavia, na qualidade de sujeitos do direito das gentes -isto é, enquanto "cidadãos do mundo" (Weltbürger) - tais "cidadãos

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do Estado" (Staatshiirger) também transferiram, ao mesmo tempo, à organização mundial uma espécie de "garantia por perdas e danos", a qual permite que o Conselho de Segurança assuma uma função da garantia de direitos fundamentais nos casos em que o governo de uma nação não for mais capaz disso ou não tenha vontade de promover isso.

(d) A "Liga das Nações" pretendia contigurar-se apenas como uma espécie de vanguarda de Estados liberais; ao passo que a "Organização das Nações Unidas" (ONU) estabeleceu, desde o início, a inclusão de todos os Estados. Hoje em dia, elas abrangem também, ao lado de Estados constituídos de modo liberal, regimes autoritários, às vezes despóticos ou criminosos, os quais ferem, em sua prática, o teor da Catta - que eles reconhecem formalmente - ou as resoluções das Nações Unidas - que eles mesmos sustentam. De sorte que^ no próprio instante em que é preenchida uma condição necessária para a val idade universal de um "direito consti tucional mundia l" (Weltverfassungsrecht), sua força vinculante é desmentida. Essa tensão entre facticidade e validade, com a qual se conta, conscientemente, aparece de modo drástico no caso das violações dos direitos humanos, as quais são cometidas pelas grandes potências que têm poder de veto, podendo bloquear todas as medidas do Conselho de Segurança dirigidas contra elas. Por razões semelhantes, a credibilidade de outras instituições e procedimentos foi corrompida pelo emprego de dois tipos de medidas. Isso valé especialmente para a prática da comissão dos direitos humanos, que deve ser inteiramente reformulada: "O estabelecimento de padrões para reforçar os direitos humanos não pode ser realizado por Estados que não demonstram compromisso com sua promoção e proteção." (TCC, 283)^

De outro lado, a diferença de nível entre norma e realidade também exerce uma pressão de adaptação em sentido contrário sobre Estados-membros autoritários. A percepção internacional modificada e a discriminação pública de Estados que rompem os padrões de segurança e de direitos humanos, estabelecidos, levaram a uma

"Sobrea proposta institucional apresentada por Kofi Annan para a formação de um novo conselho para os direitos humanos, cf. Label France (LF), 181-183.

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materialização da prática de reconhecimento do direito das nações. O princípio da efetividade, segundo o qual, para se ter o reconhecimento da soberania de um Estado é suficiente a manutenção do direito e da ordem sobre o próprio território, já foi superado amplamente e substituído pelo princípio da legitimidade.16 Os relatórios que regularmente são publicados sobre organizações que operam em todo o mundo tal como Human Rights Watch ou Amnesty International contribuem essencialmente para que os Estados injustos percam sua legitimidade.

Nesse contexto, o desejado reconhecimento do Tribunal Penal Internacional assume uma importância especial. Já que a prática de decisão de um tribunal, o qual especificasse os latos apenáveis à luz de um direito internacional, poderia influenciar decisões futuras do Conselho de Segurança, o que conferiria maior força a um direito supranacional e o protegeria contra as pretensões de soberania de Estados com reputação duvidosa, e reforçaria, em geral, a autonomia das Nações Unidas contra os "monopolistas" do poder do Estado. Isso também robusteceria e conferiria autoridade à voz de uma "esfera pública mundial" (Weltóffentlichkeit), difusa, a qual se comove com os crimes políticos em massa e com regimes injustos.

V Atingimos, com isso, a questão referente à necessidade de

legitimação e à capacidade de legitimação de decisões políticas em organizações internacionais. Elas subsistem sobre a base de acordos multilaterais entre Estados soberanos. Quando tais organizações são sobrecarregadas com as tarefas de "governar além das fronteiras do Estado nacional", acrescente necessidade de legitimação ultrapassa o modo e a medida da legitimação de que gozam os contratos celebrados no âmbito do direito das gentes, em caso ideal, à luz da constituição democrática das partes que celebram o contrato. Nas próprias Nações

"FROWEIN, .1. A. "Konslitutionalisierung des Volkerrechts", in: Volkerrechl und inlemalionales Rechl in finem sich globalisierenden internationalen System. Bericlu der Deuischen Gesellsclwjifiir Volkerrechl. Vol. 39, Heidelberg, 2000. 427-447, aqui 444429 ss.

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Unidas, que devem vigiar a segurança internacional e a manutenção de padrões de direitos humanos, parece que existe tal desproporção.

A comissão encarregada da reforma recomenda a inclusão, nas del iberações da Assembléia Geral , de organizações não governamentais (TCC,24), o que permitiria aumentar, ao menos, a aceitabilidade das decisões da organização mundial na esfera pública mundial. Ligações transversais com os parlamentos nacionais dos Estados-membros talvez forneçam novos subsídios." A convenção, segundo a qual. os "assuntos externos" competem aos arcanos dos executivos, torna-se obsoleta, à proporção que a soberania estatal que estava construída sobre competências de decisão de um só indivíduo, é trasladada para competências de co-decisão. Não nos iludamos, todavia: porque tais reformas, mesmo desejáveis, não são suficientes para se criar uma ligação adequada entre as decisões supranacionais e os caminhos de legitimação, os quais funcionam democraticamente no interior de um Estado. O abismo existente não é subrepujado.

De outro lado, é necessário enfrentar a seguinte questão: será que a forma de legitimação resultante de uma colaboração entre um Conselho de Segurança reformado e um tribunal penal reconhecido universalmente "IntemaHomlerStmfgerichtshof'^ a exigir uma ponte para sobrepujar tal abismo? À luz de uma observação mais atenta, descobre-se que a questão da legitimação tem de ser colocada, e respondida, em dois planos distintos, a saber, o supranacional e o transnacional. À proporção que o direito internacional das gentes segue a peculiar trilha lógica do desenvolvimento e da explicação de direitos humanos, e à proporção que a política internacional se orienta por tal desenvolvimento, o plano supranacional reserva tarefas que são mais de cunho jurídico do que político. E numa sociedade mundial constituída politicamente as coisas ocorreriam dessa forma. Duas razões favorecem a suposição de que a inserção de uma organização mundial reformada em uma esfera pública política é suficiente para conferir às decisões de duas de suas instituições centrais, as quais não são, mesmo assim, majoritárias, uma legitimação suficiente.

BUMMEL, A. Intemalionalc Demokrulie eniwickeln. Sluttgarl, 2005.

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Suponhamos que o Conselho de Segurança se ocupe de questões da garantia da paz e da proteção dos direitos humanos, submetidas a decisão judicial (Justiziable) seguindo regras eqüitativas, não-seletivas, imparciais. E suponhamos, além disso, que o ISTGH tenha decomposto e determinado os fatos principais (provisoriamente caracterizados como genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão) de modo dogmático. Uma vez caracterizados dessa forma, a organização mundial poderia contar, como pano de fundo, com um amplo consenso, em três sentidos: concordância quanto aos objetivos políticos da concepção de segurança materialmente ampliada; concordância quanto à base legal das convenções do direito internacional das gentes e dos pactos sobre direitos humanos votados pela Assembléia Geral e já ratificados por muitos Estados (concordância quanto ao núcleo do jus cogens do direito das gentes); e concordância quanto ao modo pelo qual uma organização mundial reformada processa suas tarefas. Tal prática pode obter reconhecimento caso ela, conforme esperamos, se ativer a princípios e procedimentos que reflitam o resultado de processos de aprendizagem democráticos no longo prazo. A confiança na força normativa do atual procedi mento conforme a justiça pode alimentar-se de uma antecipação de legitimação que as histórias exemplares de democracias comprovadas colocam, de certa forma, à disposição da memória da humanidade.

Tais suposições de consenso não explicam ainda, é verdade, qual é a razão que nos leva a atribuir uma função crítica à esfera pública mundial. O próprio Kant, no entanto, era otimista quanto a isso, porque "a transgressão do direito em algum lugar determinado da tetra é sentida por todos".11* As decisões sobre a guerra e a paz, sobre direito e não-direito, que são tomadas num plano supranacional, encontram de fato, hoje em dia, ressonância crítica e chamam a atenção do mundo -podemos tomar como exemplos as intervenções no Vietnam, em Kosovo e no Iraque ou nos casos Pinochet, Milosevic e Saddam. A "sociedade de cidadãos do mundo" (Weltbürgergesellschdft), difundida, integra-se, caso a caso, por meio das reações espontâneas a decisões dessa envergadura. A partir do acordo uníssono entre

KANT. ZIIIII Ewif>en Frieden. BA. 46.

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indignação moral sobre violações maciças de direitos humanos e infrações da proibição da violência e a partir do sentimento em comum com as vítimas de catástrofes humanas e naturais surge paulatinamente um sopro de solidariedade de cidadãos do mundo.

Os deveres negativos de uma moral da justiça, universulisla -especialmente o dever de evitar crimes contra a humanidade e guerras de agressão - estão ancorados em todas as culturas e correspondem, felizmente, às medidas jurídicas de que lançam mão as próprias instituições da organização mundial quando justificam suas decisões. No entanto, para decisões regulativas negociadas no plano transnacional, as quais transcendem o clássico catálogo de tarefas visando a segurança, o direito e a liberdade, essa base é por demais estreita. Nas questões relevantes para a distribuição, emerge uma carência de legitimação do tipo da que é encontrada no interior do Estado nacional e que só pode ser satisfeita pelo caminho democrático (mesmo que de forma não tão justa). Tal caminho, todavia, está fechado no plano transnacional, a partir do momento em que renunciamos ao sonho de uma república mundial. De sorte que se coloca aqui um déficit de legitimação que passa a ser percebido, cada vez mais, como um verdadeiro problema.™ Gostaria de caracterizar, no final, três reações típicas a esse desafio.

As Nações Unidas descrevem corretamente o problema da legitimação que se coloca com as novas formas de governar, as quais ultrapassam as dimensões de um Estado nacional, (a) Sua forma de enfrentá-lo, no entanto, resume-se a um apelo desamparado, (b) Na perspectiva do neoliberalismo e do pluralismo em direito, o problema não constitui ameaça ao status quo, já que a concepção de uma

KUMM, M. 'The Legitimacy of International Law: A Constitutionulist Frame-work of Analysis", in: Tlie Europeun Journal of International Law, 15,5 (2(X)4), 907-931. Tal sugestão tem a ver com princípios jurídicos legilimadores e desconsidera o plano institucional. O exemplo contrafático de uma regulação da proteção do clima, emitida pelo Conselho de Segurança, com a finalidade de limitar a emissão de dióxido de carbono (ibid., 992 ss.) revela que Kumm não leva em consideração a natureza genuinamente política de questões relevantes no âmbito da distribuição nem os lipos de carência de legitimação por elas provocados.

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sociedade de direito privado, com dimensões mundiais, desinflaciona as exigências legitimadoras. Em que pese isso, o alcance do apelo à força de legitimação de instituições não-majoritárias é demasiadamente restrito, (c) Entretanto, mesmo quando supomos a correção da teoria econômica inserida na base neoliberal do desinflacionamento do problema da legitimação, a inversão de polaridade que ocorre ao nível de esferas da vida reguladas politicamente e funções de controle do mercado, desencadeia uma questão extremamente inquietante que pode ser formulada da seguinte maneira: será que podemos nos responsabilizar pelo autocontinamento político, em escala mundial, de espaços de ação políticos?

(a) A ampliação do conceito de segurança internacional impede que a comunidade internacional se limite às tarefas centrais da política da paz e dos direitos humanos. Originariamente, o conselho social e econômico tinha por tarefa fazer um cruzamento com tarefas da política de desenvolvimento global. Nessa área, porém, as Nações Unidas logo atingiram os seus limites. Uma vez que a construção do regime econômico internacional se deu fora de seus quadros, sob a hegemonia dos Estados Unidos. Tal experiência reflete-se na seguinte constatação, não-efusiva: "As tomadas de decisão em assuntos de economia internacional, particularmente na área das finanças e do comércio, deixaram, há muito tempo, o recinto das Nações Unidas, e nenhum tipo de reforma institucional conseguirá trazê-las de volta." (TCC, 274). Sob a pressuposição da igualdade soberana de seus membros, as Nações Unidas estão talhadas mais para a formação de um consenso regulado normativãmente do que para um equilíbrio de interesses a ser conquistado politicamente. Numa palavra, não são talhadas para tarefas de configuração política.

De outro lado, as Multilaterais Econômicas Globais (MEG) -em primeira linha, a Organização Mundial do Comércio (OMC), o Banco Mundial (BM) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) -estão muito longe de enfrentar as tarefas que se colocam na perspectiva do novo consenso de segurança. É nesse contexto que se coloca a constatação de uma "fragmentação setorial" da colaboração de organizações internacionais. Os círculos de comunicação entre ministros

385

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de finanças e instituições monetárias internacionais, entre ministros do desenvolvimento e programas de desenvolvimento internacionais, entre ministros do meio ambiente e agências internacionais do meio ambiente, fechados de modo auto-refeiencial, impedem a percepção correta dos problemas: "As instituições internacionais e os Estados não se organizaram de forma a permitir um tratamento coerente e integrado dos problemas relativos ao desenvolvimento. Por isso, continuam a tratar a pobreza, as epidemias contagiosas e a degradação do meio ambiente como ameaças isoladas. [...] Entretanto, para enfrentar os problemas de um desenvolvimento sustentável, os paises têm de negociar com os mais variados setores envolvendo diferentes questões tais como ajuda a estrangeiros, tecnologia, comércio, estabilidade financeira e política de desenvolvimento. Mesmo assim, é muito difícil negociar tal tipo de pacotes, os quais requerem dos paises, onde os impactos econômicos são mais profundos, um elevado nível de atenção e de liderança." (TCC, 5 5 s.).

A exigência de uma instituição-na qual se encontram, não apenas funcionários de um governo revestidos de competências especiais delegadas por secretarias de certas repartições, mas também representantes de governos que possuem responsabilidade abrangente e círculos de ministros, todos interessados em analisar os problemas em seu respectivo contexto e em tomar decisões de modo flexível -pode ser entendida como uma resposta implícita à defesa de uma "ordem mundial desagregada", à luz de um pluralismo jurídico. Os encontros descompromissados de governos tal como o "G 8" ou as rodadas de negociação formadas ad hoc, tal como o "G 20" e o "G 77" não permitem desenvolver nenhuma perspectiva convincente para a constituição de uma política interna mundial. Com exceção dos Estados Unidos e da China (quiçá da Rússia), os atuais Estados nacionais não se adequam ao papel de parceiros de uma política mundial, com capacidade de ação. Já que eles teriam de se agregar a ordens continentais ou subcontinentais sem serem obrigados a pagar por isso o preço de déficits democráticos.

(b) O projeto que se contrapõe a tal visão de uma política interna mundial apresenta como vantagem o fato de poder ancorar-se na

386

estrutura das redes de política global {global policy networks). No entender dos "juspluralistas", das necessidades funcionais da sociedade mundial diferençada nascem redes transnacionais que condensam a comunicação entre os sistemas de funções que até o momento se constituíam a nível nacional, mas que agora ultrapassam tais fronteiras. Os fluxos de informação, hoje em dia condensados em rede, propiciam uma geração espontânea de regras e servem à coordenação e à votação de standards, ao estímulo e à regulamentação da concorrência, bem como à moderação e à estimulação recíproca de processos de aprendizagem.4" Para além do Estado nacional, as dependências verticais, baseadas no poder, ocultam-se atrás dos entrelaçamentos funcionais e das influências horizontais. Anne Marie Slaughter combina tal análise com a tese de uma desagregação da soberania do Estado.41

Nesta perspectiva, a força estruturadora das realizações funcionalmente especificadas e as relações de troca se avantajam ao poder organizado territorialmente a ponto de as redes transnacionais retroagirem sobre os seus portadores essenciais, ou seja, os governos nacionais que celebram contratos. As forças centrífugas estilhaçam a soberania do Estado em direções horizontais. E a soberania estatal decompõe-se na soma de poderes parciais funcionalmente autônomos. O Estado perde a competência de determinar suas próprias competências e de se posicionar - tanto no foro interno como no externo - como ator dotado de uma só voz. Tal imagem da desagregação da soberania do Estado ilumina, ao mesmo tempo, o desengate crescente que ocorre entie decisões regulatórias - as quais intervém, a partir de cima ou a partir de fora, nas sociedades nacionais - e a soberania popular organizada na forma de Estados nacionais: as competências e decisões que passam para as Multilaterais Econômicas Globais (MEG) continuam, é bem verdade, vinculadas formalmente à responsabilidade política dos governos participantes; de fato, porém. 4"Cf. sobre o papel de atores privados: TEUBNER. G "Globale Zivilverfassungen:

Alternativen zur staatszentrierien Verfassunstheorie", in: Zeitschrift für auslandisches õffentliches Recht und Võlkerrecht. 63, I (2003), 1-28.

41 SLAUGHTER, À. -M. (2004), 12 ss. 42Cf. aqui também ZÜRN, M. (2004, 273 s.), cit mais acima, pág. 371.

387

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são privadas da crítica pública e dos posicionamentos dos cidadãos democráticos em suas respectivas arenas nacionais.4-1 De outro lado, além das fronteiras do Estado nacional não se vislumbra nenhum substituto para os déficits de legitimação, cada vez maiores, que despontam a nível nacional.11

Slaughter enfrenta tal questão de legitimação lançando mão de uma proposta cujo mérito não consiste tanto na solução apresentada como no fato de ter enfocado o problema de modo correto: "Em primeiro lugar, os membros dos sistemas governamentais [têm de) [...] [...] responsabilizar-se pelas atividades transgovernamentais de seus clientes domésticos na mesma medida em que são responsáveis por suas atividades domésticas. Em segundo lugar, enquanto participantes de estruturas de um governo global, eles devem estar de posse de um código básico de operação que faça jus aos direitos e interesses de todos os povos."44 Entretanto, convém perguntar, a quem os funcionários devem prestar contas quando negociam regras obrigatórias em escala multilateral, as quais são rejeitadas pelos eleitores nacionais? E quem deve determinar o que é do interesse de todas as nações atingidas, já que, nas organizações internacionais, o poder de negociação está distribuído de modo assimétrico e, no mundo, o poder militar e o peso econômico dos paises participantes se distribuem de modo desigual?45

A estratégia de defesa neoliberal, que tem na mira um desafogo de pretensões de legitimação pretensamente exageradas, é mais promissora. A força de legitimação de governos eleitos democraticamente, que enviam seus funcionários para as organizações internacionais, deve bastar para negociações internacionais, mesmo quando os respectivos paises não conhecem um debate democrático aberto. 4 , NANZ, P., STEFFECK, J. "Global Governance. Participation and lhe Public

Sphere", in Government and Opposilion, 39. 3 (2004), 314-335. 44 SLAUGHTER, A. -M. "Disaggregaied Sovereignty: Towards lhe Public Ac-

countability ot Global Government Networks", in Government and Qposilion 3 9 , 2 ( 2 0 0 4 ) , 163.

45 JOERGES, Ch., GODT, Ch. "FreeTrade: the erosion of national and the birth of transnacional governance", in: Eumpean Review, 13, Suplemento I (maio de 2005), 93-117.

388

De acordo com tal interpretação, a divisão desigual do poder no interior das Multilaterais Econômicas Globais (MEG) não constitui mais um problema sério. Já que corporações representativas não poderiam ser tomadas como modelo adequado. A falta de legitimação deve ser compensada especialmente pela força autolegi t imadora da racionalidade de especialistas, associada a uma transparência maior das negociações, a uma informação melhor dos atingidos e, caso haja necessidade, a uma pailicipação de ONGs. Aqui, o protótipo tem de ser buscado num profissionalismo de organizações não-majoritárias: "As democracias contemporâneas atribuíram um papel amplo e crescente a instituições não-majoritárias, tal como o judiciário [...1 e os bancos centrais. [...] A responsabilidade de instituições internacionais, particularmente as globais, pode ser comparada à das instituições domésticas análogas."46

Em que pese isso, tais analogias desafogadoras confundem. A independência de bancos centrais deve ser expl icada pela pressuposição (aliás, controversa) de que a estabilização da moeda exige decisões específicas, a serem entregues a especialistas. Contrariamente a isso, as decisões das Multilaterais Econômicas Globais intervém profundamente nos interesses politicamente controversos de sociedades nacionais, eventualmente até na estrutura de toda uma economia nacional. Por esse motivo, a Organização Mundial do Comércio (OMC) adotou um procedimento de superação de disputas (Dispute Settlement) e um corpo de apelação (Appelate Body), cuja função consiste em levar em conta interesses de terceiros. De um lado, eles decidem, por exemplo, sobre conflitos de interesses econômicos, e, de outro lado, sobre normas de proteção da saúde e do meio ambiente, da proteção de consumidores e assalariados. Em que pese isso, a instituição de um tribunal arbitrai, cujos "relatórios" têm a função de "julgamentos" vinculantes, põe a descoberto, de modo nítido, o déficit de legitimação da OMC."

4"KAHLER,M."DellningAccountabilily UP. lheGlobal Economic Multilaterais", in: Government and Opposilion, 39, 2 (2004), 133.

47 O argumento apresentado a seguir estriba-se em I30GDANDY. A. v. "Verfassungsrechtliche Dimensionen der Wellhandelsorganisation", in:

3X9

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No quadro do Estado constitucional, a legitimidade da jurisdição ampara-se essencialmente no fato de que os tribunais aplicam o diieito de um legislador democrático e de que as decisões judiciais podem ser corrigidas num processo político. Todavia, na OMC não há instância legislati va capaz de i ndicar ou de modificar normas na esfera do direito econômico internacional. E uma vez que as negociações multilaterais - lentas e pesadas - não constituem substituto à altura, os órgãos encarregados de solucionar os conflitos exercem, mediante relatórios detalhados e fundamentados, uma espécie de desenvolvimento implícito do direito preenchendo, destarte, funções legisladoras. E tais obrigações de direito das nações podem, mesmo sem legitimação aparente, interferirem sistemas jurídicos nacionais, obrigando as partes a adaptações extremamente sensíveis (a disputa sobre hormônios, que se desenvolveu entre Estados Unidos e União Européia, constitui um exemplo bastante conhecido).1*

(c) O argumento a favor de um desafogo de redes de política governamental (governmental policy networks), as quais deveriam ser liberadas de exigências de legitimação exageradas, poderia ser aceito desde que as Multilaterais Econômicas Globais operassem como componentes de uma constituição liberal da economia mundial, suposta como legítima, a fim de implementar, contra as intervenções dos Estados nos mercado, uma desregulamentação mundial dos mercados. Existe um parentesco entre o programa neoliberul da produção de uma "sociedade de direito privado"'1' em escala mundial e a estrutura organizacional das Multilaterais Econômicas Globais existentes, controladas pelos governos e ocupadas burocraticamente. A projetada divisão do trabalho entre uma integração da sociedade mundial por meio de mercados liberalizados e a descarga dos demais

Kritische Justiz, 34, 3 (2001). 264-281 ' : 4. (2001). 425: id. "Law and Poli-tics in the WTO - Slraiegies to Cope with a Deliciem Relalionship", in: Max Planck Yeorbook of United Nations Law, vol. 5. Haia. 2001. 609-674.

Cf. a aula inaugural em Gòltingen, de STOLL. P. -T. Clobalixieruiig mui /.<<-gitimation. (Manuscrito, 2003)

MESTMÀKER, E. J. "Der Kampfums Recht in deroffenen Gesellschalt". in: Rechtstheorie, 20, 1989, 273-288.

390

encargos sociais e ecológicos nos Estados nacionais tornaria supérfluo qualquer tipo de "governo global" (global governance). Por este ângulo, a visão de uma política interna mundial deve ser tida na ponta de um delírio temerário.

Entretanto, convém perguntar, onde reside propriamente o perigo? A exportação - em escala global - do projeto de sociedade que o presidente Bush empreendeu em novembro de 2(X)3, por ocasião do vigésimo aniversário de fundação do National Endowment for Democracy™ não goza de assentimento geral. O assim chamado Washington Consensus tenta equilibrar-se sobre uma teoria lalível e altamente discutível costurada com elementos extraídos dos axiomas da Chicago School e de determinadas variantes da teoria da modernização. O problema não consiste no fato de que tal teoria, como qualquer outra, poderia ser falsa. O que preocupa realmente é a conseqüência resultante de uma re-estruturação neoliberal, no longo prazo, da economia mundial. A política de mudança de pólos, que passa do pólo das formas políticas de regulamentação para o pólo dos mecanismos de mercado, contribui para a perpetuação dela própria à proporção que uma mudança política se torna tanto mais difícil quanto menor for o espaço reservado a intervenções políticas. A autolimitação do espaço de ação política a favor de forças de controle sistêmicas, desejada politicamente, privaria as gerações futuras dos meios indispensáveis para uma eventual correção da rota iniciada. Mesmo quando cada nação se decide "de forma consciente e democrática a ser um 'Estado de concorrência' mais do que um 'Estado de bem-estar'", tal decisão democrática teria de destruir seus próprios fundamentos caso ela se encaminhasse para um tipo de organização de sociedade no qual se tornasse impossível rever tal decisão e, eventualmente anulá-la por um caminho democrático.M

Tal avaliação das conseqüências é recomendável, não somente no caso de um fracasso dos prognósticos neoliberais. Mesmo que as assunções teóricas se confirmassem grosso modo. a velha fórmula

' " O Presidente Bush discute a liberdade no Iraque e no Oriente Médio: www.whiiehouse.gov/new/release/2003/ll/pnnt/2003 I l06-2.html

51 BOGDANDY, v. (2001). 429. 391

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das "contradições culturais do capitalismo"5- poderia adquirir uma nova significação. Já no âmbito do Ocidente, que colocou em movimento a modernização capitalista, e que continua sendo seu motor, concorrem vários modelos de sociedade. Nem todas as nações ocidentais estão dispostas a assumir, para si mesmas e para o mundo, os custos sociais e culturais inerentes à falta de um equilíbrio do bem-estar que os neoliberais pretendem impor apoiados no argumento de um crescimento acelerado do bem-estar.5' E por isso aumenta o interesse na manutenção de um certo espaço de ação política em outras culturas que, ao terem acesso ao mercado mundial e ao darem seu assentimento à dinâmica da modernização social, revelam, é bem verdade, a disposição de adaptar e transformar as próprias formas de vida, porém, não a ponto de renunciar a das substituindo-as por uma forma de vida importada. As múltiplas e variadas faces da sociedade mundial pluralista - ou melhor, as múltiplas modernidades (multiple modernitiesf4 - não suportam uma sociedade de mercado mundial politicamente desarmada e totalmente desregulamentada. Porque em uma sociedade desse tipo as culturas não-ocidentais que trazem o cunho de outras religiões mundiais ver-se-iam privadas do espaço de ação que permite a elas apropriarem-se das conquistas da modernidade lançando mão de recursos próprios.

SBD / FFLCH / USP

Bib. Florestar, Fernandes Tombo: 325428 Aquisição: DOAÇÃO /

Proc. / PROF. RENATO JANINE , R $ 40,00 16/1

N.F. '

"BELL, D. The Cultural Contradictions of Capilalism. Nova York, 1976. "HELD, D. (2004), desenvolve unia alternaliva social-democrálica ao Wash

ington Consensus, atualmente predominante. MTAYLOR, Ch."TwoTheoriesoíModernity", in: Public Culture II I (1999)

153-174.

392

SOBRE OS CAPÍTULOS DESTE LIVRO

1. Discurso pronunciado por ocasião da recepção do Prêmio-Kyoto, no dia 11 de novembro de 2004. Publicado inicialmente no jornal Neue Zürcher Zeitung, 11/12 de dezembro de 2004.

2. Publicado separadamente e sob o mesmo título pela Universalbibliothek, Stuttgarda, 2001. Com autorização cordial da Editora Reclam.

3. Publicado sob o mesmo título in: BÕHLER, D., KETTNER, M. e SKIRBEKK, G. (orgs.) Reflexion und Verantwortung. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2003, 44-64.

4. Introdução a uma discussão com o Cardeal Joseph Ratzinger no dia 19 de janeiro de 2004, publicado in: Information Philosophie. outubro 2004, 7-15.

5. Inédito. 6. Conferência proferida por ocasião da recepção do Prêmio-

Kyoto, no dia 12 de novembro de 2004, impresso in: Deutsche Zeitschift für Philosophie, Cad. 6 (2004), 871-890.

7. Publicado sob o título '"Eu mesmo sou um bocado de natureza' - Adorno sobre o enlace da razão com a natureza. Considerações sobre a relação entre liberdade e indisponibilidade".

393

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in: HONNETH, A. (org.) Dialetik der Freiheil. Frankfurter Adorno-Konferenz 2003. Frankfurt/M.: Suhrkamp, 2005, 13-40.

8. Versão ampliada e corrigida de uma conferência publicada inicialmente in: NAGL-DOCEKAL, H. e LANGTHALER, R. (orgs.), Reclit, Gechichte, Religion. Berlim: Akademie Verlag, 2004, 141-160.

9. Publicado sob o mesmo título in: Archiv fiir Rechts- und Sozialphilosoplüe. Cad. Supl. N° 93, Stutttiarda: Franz Steiner Verlag, 2004, 23-36.

10. Publicado sob o mesmo título in: Deutsche Zeitschrift fiir Philosophie, Cad. 3 (2003), 367-394.

1 1. Inédito.

3 9 4

REGISTRO DE NOMES

A D E N A U E R , K. - 26 A D O R N O , TU. W. - 28 , 203 , 208,

2 1 0 , 211 , 2 1 2 , 217 , 220 , 222 , 2 2 3 , 225 , 228 , 229 , 2 6 1 , 275, 308

A N N A N , K. - 380 APEL, K.-O. - 26, 42 , 55 , 81 , 91 ,

9 2 , 9 3 , 9 5 , 9 7 , 9 8 , 104, 108, 1 10, 11 I, I 12, I 13, 114, 246, 247

A Q U I N 0 , T - 18 ARATO, A. - 33 A R C H I B U G I , D. - 356 A R E N S , E. - 149 ARISTÓTELES - 18, 19, 22 A R N A S O N , J. P. - 161 A U D I , R. - 140, 142, 143, 144,

1 5 1 , 1 6 0 BARRY, B. - 300 , 328 , 332 , 333 ,

3 3 6 B A R T H , K. - 267 B A Y L E , P. - 158, 280 , 281 BECK, U. - 360 BECKER, W. - 153 BELL, D. - 392 B E L L A H , R. - 141 B E N J A M I N , W. - 126, 211 . 223 ,

261

BERGER, P. L. - 129 B E R N S T E I N , R. F. 45 BIER1, P. - 175, 176, 177, 2 1 4 ,

216 . 2 2 0 B 1 R N B A U M , N. - 141 BLOCH, E. - 260 B L U M E N B E R G , 11. 166 B Ò C K E N F O R D E , E. W. 115.

118, 120 B O G D A N D Y . A. V. 348 , 354 .

3 8 9 . 3 9 I BÓIILER, D. 112. 247. 393 BÓLL, 11. 374 B R A N D O M , R. 34, 69, 80 , 87,

8 8 . 8 9 . 176 B R U G G E R , W . - 2 8 5 BRUML1K, M. - 258 B R U N K H O R S T , H. - 118, 161,

2 1 9 B U B E R , M. - 260 B U L T M A N N , R. - 144, 267 B U M M E L , A. 382 B U R C K H A R T , II. - 9 8 , 112 B U R U M A , 1. - 130 B U S H , G. W. 133, 391 BUTLER, .1. 229

395

Page 198: HABERMAS, Jurgen. Entre Naturalismo e Religião

C A R N A P , R. - 8 0 CASSIRER, E. - 20 C H A Y E S , A. - 357 C H A Y E S , A. H. - 357 C O H E N , H. - 257 C O L P E , C . - 161 COOK, M. - 34 COTTIER, TH. - 355 C R A M M , W.-J. - 188, 230 C U T R E F E L L O , A. - 72 DARW1N, CH. - 14, 191. 204 D A V I D S O N , D. - 34, 38, 68 , 69 ,

70, 7 1 , 72 , 7 3 , 75 , 76, 78, 80, 175, 178

D E N N I N G E R , E. - 352 D E R R I D A , J . - 32 , 308 D E S C O M B E S , V. - 188 DETEL, W. - 166 DEWEY, J. - 25 , 33 D1LTHEY, W. - 32 DÒBERT, R. - 202 D U M M E T T , M. - 34 , 38, 66, 68,

69 , 80 , 83 , 84 , 85 , 86, 189 D U R K H E I M , E. - 4 9 EDER, K. - 126 EISENSTADT. S. N. 161 ENGELS, E. M. - 186 F A S S B E N D E R , B. - 374 FENNEL, J. - 77 F E U E R B A C H , L. - 123, 260 FISCHER, K. - 368 FORST, R. - 129, 133, 136, 138,

146, 149, 158, 280 , 285 , 313 , 3 1 5 , 3 4 2

FOUCAULT, M . - 2 2 0 , 307

F R A N K E N B E R G G. - 284, 353 FRASER, N. - 297 , 326 . 328 FREGE, G - 66, 67 , 80 . 82, 83 , 84 F R E U D . S. - 25 , 2 6 0 F R I E D E B U R G L. V. - 203 FROWEIN, J. A. - 3 8 1 FRÜHAUF, M. 166 FULTNER, B. 72 G A D A M E R . II.-G. 5 3 . 7 9 G A L S T O N , W. 3 3 3 . 337 G A N S . CH. 330 G A U S , G F. 146 GEIILEN. A. - 27 GEYER, Cl 1. - 160, 169 GODT, Cl I. - 388 GOLDBLATT, D. - 363 G O O D S T E I N , L. - 133 G R A N D E , E. - 3 6 0 GR1MM, D. - 294 , 3 7 0 GÜNTHER, K. - I I I . 190, 230,

312 , 318, 321 , 353 , 368 . 370 H A B E R M A S , J. 7, 12, 14, 26,

33 . 34, 36. 4 1 , 4 3 . 4 4 , 48 . 53. 55, 6 1 , 64 . 65 . 78 . 87. 93 , 94. 98, 100. 101. 102. 103. 108. I 10. 116, 117. 128. 131. 137. 150, 151. 187. 190. 191. 192, 202. 203 . 220 . 226. 229 . 233 . 247. 257, 265 , 267 . 268 , 271 , 273 . 274 , 284 , 288 , 295 , 304 , 307, 308 . 312 . 3 1 3 . 316 . 3 3 5 . 346. 349, 359, 365 , 3 6 6

H A B E R M A S , T. - 169 H A H N , L. E. - 72 , 73 , 178 HALBERTAL, M. - 3 3 0 H A R N A C K S , A. V. - 263 . 264

396

HAVERKATE, G. - 285 HEGEL, G W. F. 31 , 123, 124,

125, 161, 257 , 258 , 259 , 2 6 1 , 268 , 2 6 9 , 270 , 2 7 2 , 276 , 307, 3 6 6

HEIDEGGER, M. - 26, 27, 3 1 , 32, 3 3 , 4 4 , 122, 161, 278

HELD, D. - 356 , 360 , 363 , 370, 392

HERDTLE, C. - 280 , 281 HERTIG, M. - 355 HESSE, H. - 25 HESSE, K. - 2 8 4 HÕFFE, O. - 3 5 6 H O F M A N N , H. - 368 H O N N E F E L D E R , L. - 161 H O N N E T H , A. - 2 2 3 , 297. 311 ,

3 2 8 , 3 9 4 HORKHE1MER, M. - 222 HOY, D. C. - 32 H U M B O L D T , W. V. H U M E , D. - 33 , 34 H U S S E I N . S . - 3 8 3 H U S S E R L , E . - 6 6 , 113 INGLEHART, R. - 131, 132 JASPERS, K. - 25 , 267 , 276 , 277 JELLINEK, G. - 118, 282 JOERGES, CH. - 3 8 8 JUNG, M. - 156, 235 JÜNGER, E. - 27 K A F K A , F. - 25 KAHLER, M. - 3 8 9 KANT, 1. - 14, 18, 32 . 34, 35, 36,

38, 40 , 4 2 , 4 3 , 4 4 , 46 , 47 , 48 , 50 , 59 , 65 , 8 1 , 118, 124, 156, 159, 161, 171, 191, 204 , 205 ,

208, 210 . 214 . 220 . 2 2 1 . 236 . 237 , 238 , 2 3 9 . 2 4 0 . 241 , 2 4 2 . 2 4 3 . 244 , 245 , 246 , 247 , 248 . 249 , 250 , 2 5 1 , 2 5 2 , 2 5 3 , 254 , 255 , 256 , 257 , 258 , 260 , 2 6 1 , 265 , 269 , 270 , 2 7 2 , 2 7 3 , 2 7 4 , 277 , 278 , 2 8 1 , 3 0 1 , 305 . 317, 349, 350 , 3 5 1 , 3 5 2 , 354 , 375 , 383

KEIL, G. - 231 KELSEN, H. - 118, 374 KERN, A. - 309 KERSTING, W. - 351 KETTNER, M. 247 , 393 K I E R K E G A A R D , S. - 26, 123,

161, 258 , 2 6 1 , 264 , 265 . 266 . 2 6 7 , 2 7 2

KING. M. L. - 140, 141 KRIELE, M. - 352 KRUG, W. T. - 279 KRÜGER, H. P. - 194 K U H L M A N N , W. - 114 KUMM, M. - 384 KYMLICKA, W. - 298 , 300, 333 ,

3 3 4 , 3 4 0 L A B A N D , P. - 118 LAFONT, C. - 4 3 L A N G T H A L E R , R. - 235, 394 LEEB, TH. - 280 , 281 LEIBFR1ED, S. 367 LESS1NG, G E . - 287 LIBET, B. - 169, 172, 173, 175 L I T S C H E W S K I - P A U L S O N , B.

374 LOCKE. J . - 2 8 0 L O E W E N S T E I N , K. 283

397

Page 199: HABERMAS, Jurgen. Entre Naturalismo e Religião

LÒSER, W. - 166 LÕWITH, K . - 2 5 9 L U H M A N N , N. - 118 LUKÁCS, G. - 223 , 308 L U T Z - B A C H M A N N , M. - 156,

1 6 1 , 2 3 5 , 2 7 5 M A D S E N , R. - 141 M A N N . T H . 25 M A R G A L I T , A. - 130, 300 , 330 M A R X , K. - 25 , 3 1 , 123, 260, 261 ,

2 7 2 , 3 0 3 , 307 , 366 M A U E R S B E R G , B. - 2 0 2 MCCARTHY, TH. - 3 1 , 32, 33, 34,

3 5 , 3 1 7 , 3 1 8 M C G U I N N E S S , B. - 4 4 M E A D , G . 1 1 . - 2 0 , 5 9 , 78 , 88, 192 M E N K E , CH. - 3 0 8 , 3 0 9 , 3 1 0 ,

312 , 314 , 316 , 318 , 319 , 320 , 3 2 7 , 3 3 3

MESTMÂKER, E. J. - 3 9 0 METZ, J. B . - 2 6 1 MEYER, TH. - 361 M I L B A N K , J. - 166 MILLS, CH. W. - 298 , 326 MILOSEVIC, S. - 383 M Õ L L E R O K I N . S . - 3 3 8 M Õ L L E R S , CH. - 3 5 4 M O L T M A N N , JÜRGEN - 261 MOXTER, M. - 156, 235 MUELLER, A. - 4 0 MÜNKLER, H. - 368 N A G E L , TH. - 179 N A N Z , P. - 388 N E U N E R , P. - 123, 2 6 1 , 264 NIETZSCHE, F. - 3 1 , 277 NIQUET, M. - 4 0

NORR1S, P. - 131, 132 N U N N E R - W 1 N K L E R , G - 2 0 2 ÜFFE, C. - 368 PAUEN, M. - 160 PAUER-STUDER. II. 327 PAULSON, ST. 374 PIERCE, CH. S. - 20, 33 . 4 1 . 88 .

159 P E R E L M A N , CH. - 5 5 PERRATON, J. 363 PETERS, A. - 374 PETERS, B. - 308 PEUKERT, H. 2 7 1 , 275 PFLEIDERER, G - 267 P1CARDI, E. - 7 2 P I C K S T O C K , C . - 166 P1NOCHET, A. - 383 PLATÃO - 22 PLESSNER. II. - 210 POPPER. K. R. - 169 P U T N A M . H. - 55, 67 QUINE. W. V. O. 80 , 169 RAWLS. J. 115. 127. 134. 136.

137, 138, 139. 140, 142. 152, 165, 166, 289 , 290 , 313 , 314 , 3 1 8 , 3 1 9 , 3 4 4 , 373

RATZ, J. - 3 0 0 , 329 R E H G W. - 60 RENDTORFF, T. V. - 2 6 4 RICKEN, F. - 275 R1COEUR, P. - 169 RORTY, R. - 72 , 7 3 , 186 ROSENFELD, M. - 33 ROTH, G. - 170, 172, 174, 178,

1 8 4 , 1 8 5

3 9 8

R O T T L E U T H N E R , H. - 160 R O U S S E A U , J.-J. - 305 ROYCE, J . - 8 8 SARTRE, J.-P. - 2 5 S C A N L O N , T. M. - 180 S C H A C H A R , A. - 3 3 1 S C H L A G E T E R , A. L. - 26 S C H L E I E R M A C H E R , F. D. E. -

123, 156, 2 5 8 , 2 6 1 , 262 , 263 , 264 , 266 , 272

S C H M I D NOERR, G. - 222 S C H M I D T , TH. M. - 129, 146,

156, 1 6 6 , 2 3 5 , 258 S C H M l T T , C . - 2 7 , 118, 122, 166,

274 SCHNÀDF.I .BACH, H. - 214, 231 SCHULTE, . 1 . - 7 2 S E A R L E , J. - 179, 184 SEEL, M. - 180, 213 , 321 S E L L A R S , W. - 58, 78 , 87, 190 SIMMEL, G. - 223 SINGER, W . - 128, 181, 184, 193,

1 9 4 , 1 9 6 , 1 9 7 , 2 2 6 SKIRBEKK, G. - 247, 393 S L A U G H T E R , A. -M. - 361 , 387 ,

388 SOKRATES - 265 S P I N O Z A , B. D E - 2 4 9 , 280 STEFFEK, J. - 388 STOLL, P.-TH. - 390 S T R A U S S , L. - 122, 274 S U L L I V A N , W. M. - 141 SWIDLER, A. - 141 TARSKI, A. - 6 9

TAYLOR, CH. - 2 9 9 , 3 3 3 , 334 , 3 3 5 , 3 4 7 , 3 9 2

T E U B N E R , G. - 387 T H E U N 1 S S E N , M. - 260 , 266 TIPTON, S. M. 141 TOMUSCHAT, CH. - 374 T O M A S E L L O , M. - 192 TROELTSCH, E. - 2 6 4 T U G E N D H A T , E. - 66 , 174, 2 0 1 ,

208 VOGEL, M. - 190, 231 W A L D R O N , J. 330 WALZER, M. - 356 W A R D , G. - 166 WEBER, M. - 131, 232 , 264 W E I T H M A N , P. J. - 141, 142,

1 4 3 , 1 4 5 , 1 5 0 , 151 WELLMER, A. - 4 3 , 55 , 189 W E N Z , G. - 123, 2 6 1 , 264 W1LLETT, C. - 297 , 328 WILLS,G. - 133 WIMMER, R. - 245 WINGERT, L . - 169, 190, 191, 195,

2 3 1 , 2 3 3 , 3 1 8 , 3 5 3 , 3 6 8 , 3 7 0 WITTGENSTEIN, L. - 20, 33 , 35 ,

38 , 44 , 68 , 77, 80 , 8 1 , 82 , 83 , 84, 85, 201

WITROCK, B. - 161 WOLTERSTORFF, N. - 140, 142,

144, 150, 151, 152, 153, 160 WR1GHT, G. H. V. - 189 YATES, M. - 129 Z A N G L , B. - 358 , 374 ZÜRN, M. - 358 , 367 , 3 7 1 , 3 8 7

399