o século dos cirurgiões - jurgen thorwald

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I? o SECULO DOS CIRURGIOES Conforme documentos de meu avo o cirurghio Ho E. Hartmann Traduc;ao de MARINA GUASPARI HEMUS - LIVRARIA EDITORA LTDA.

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Page 1: O Século dos Cirurgiões - Jurgen Thorwald

I?o SECULODOS CIRURGIOES

Conforme documentos de meu avoo cirurghio Ho E. Hartmann

Traduc;ao deMARINA GUASPARI

HEMUS - LIVRARIA EDITORA LTDA.

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Na histtlria da cirurgia, 0 enlreato, em que ela ja se eman-cipara da dol' nas interven<;5es cirurgicas, nao deveria ter-seprolongado pOl' espa<;o superior a tres decenios. Jit pauLO";::mos apns a descoberta da anestesia, deveriam estar averigua-das e eliminadas as causas do poder sinistro da febre traullla-tiea. 0 homem que viu essas- causas e percebeu a fatalidade,o homem que primeiro teve a intui<;ao do caminho para sail'do inferno da febre e da morte porinfec<;ao, e depois 0 en-xergou com clareza e 0 apontou desesperadamente aos SCllS

contemporaneos, existia. Mas, a semelhan<;a das idCias de'VeIls, as suas percep<;5es foram ridicularizadas e escal'l1eci-das. E nao houv(, desta vez UIll Morton que - fossem quaisf6ssem os motivos e as circunstfmcias - as patenteassc a \1m

mundo recalcitrante em admiti-Ias. Esse homem chanHlya··se Semmelweis.

Hoje, a biografia de Inacio Filipe Semmelweis C Ulll doslabens com que cientistas e medicos nao raro se ferretearmna si proprios, repudi::mdo aperfei<;oamentos e verdades rec""lll-deseobertas, Nao me e possivel fazer restri<;6es nem l1':,;-:(,l'atenuantes a este juizo da atualidade, pOl' mais que no SC~;l'I.:-

do do meu cora<;ao me fosse grato faze-Io, pais - COlllOnocaso de Horace '.VeIls 1 - eu me sinto um tanto eumplier (Inma sorte de Semmelweis. Pelo menos, cumpliee do apeg<) i1'-

raeional da :mloridade a teses tradicionais, apego que, nunrarO, a inibe de sc curvar as verda des mais simples.

Talvez, a despeito da minha idade juvenil, eu tenha ,idolima das primeiras pessoas que, nos Estados Unidos, t01\1a-ram conhecimento do nome de Semmelweis. E e bem plau-sivel att~ que, pOl' um dos singulares caprichos do acaso, erne

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tanta:; vezes me influenciaram a vida, eu tenha sido 0 pri-'meiro a saber cIa sua existencia.

A £) de agosto de 1848, isto e, poucos meses depois do meul'egreo;so da Escocia a America, em Lehrte, pequeno povoadoalemao, na regiiio de Hannover, um .homem suicidou-se, ati-rando-se sob as rodas dum trem em marcha. Os funcionario::ida estrada, que retiraram dos trilhos 0 corpo mutilado, iden-lificaram-no como 0 professor de obstetricia Gustavo AdolfoMichaelis, dire tor da Maternidade de Riel, com quem apena~um ana antes eu travara conhecimento.

No outono de 1847, durante a minha "viagemda aneste-sia" a tnlYcs da Eu ropa, eu visitara na Universidacle de Riel,onde ele ainda trabalhava, 0 drurgiao germanico Langen-heck que pouco depois se tornaria famoso e sucessor de Dief-fenbach em Bedim. Na mesma ocasiao, conheci Michaelis.

Causara-me este a impressao dum homem extraordina-riamente entusiasta, consciencioso, mas atonnentado pOl'qualquer sofrim en to intimo. Michaelis' mostl'ara-me 0 seu ins-tituto, muito mal instalado mesmo para aquela epoca, nas vi-zinhan<;as das aguas turvas do "pequeno Riel"; e queixara-sede que uma influencia maligna pairava wbre 0 estabeleci-menta: a' febre puerperal era sua hospeda permanente.

Meses antes, Michaelis vira-se obrigado a fechar 0 seuhospital semanas a fio, porque as parturientes morriam irre-mediavelmente, uma apos outra, de infecs:ao puerperal. E,mal a maternidade se reabrira, aprimeira gestante que hi fo-1'<1 dar a luz morrera em poucos dias, de infec<;iio puerperal.Em cinco meses, Michaelis perdera do mesmo mal treze puer,peras. POI' ocasiao do nosso encontro, ele fitou-me com osolbos azuis, profundamen te tristes, e perguntou-me, se nou·,tros paises, 0 estado ,de coisas era 0 mesmo; prOCUl'avapro-Y~n'elmente um consolo.

Infelizmente, eu nao podia responder a sua pergunta.Durante a minha excursao peIa Europa, so me preocupara 0

pretense "triunfo da anestesia". Na America, ell nao me in-teressava muito pOl' varias coisas, entre elas a obstetricia. E,sobre a infec<;ao puerperal, a minha ciencia se limitava aoque Iera em tratados de medicina. Noutras palavras, eu sa-bia se tanto que a febre puerpera1 e uma espccie de molesti~

epidemica e grassa especialmente nos hospitais, atribuida avarias causas, entre elas "certas perturba<;6es atmosfericas ",um miasma do ar das enfenllarias", "aglacta<;iio ou supres-sac do Ieite da parturiente, e outras analogas. Em conse-qiiencia, 0 que eu podia adiantar a Michaelis era, a vem di-zer, nada.

Ele perguntou-me entiio:- Conhece Boston?Respondi afirmativamente.- Nesse caso, poderia responder-me a outra pergunla?- Naturalmente; com muito gbsto, .. '- Conhece 0 Doutor Holmes?Eu conhecia, de fato, Holmes, como medico pnitico, es-

critor e tipo excentrico da cidade de Boston. Afora isto, meupai escrevera-me recentemente que, durante a minha ausen-cia, Holmes fora nomeado "Parkman-Professor" de anatb~mia em Harvard.

Este foi 0 teor da minha resposta. Nos olbos de Michae-lis passou como que um darao de esperan<;a.

- Alegro-me de saber isso - disse de, mais animado. -Ha muito tempo, soube pOl' um conhecido que 0 Doutor Hol-mes escreveu anos atras ... em 1843 se nao me engano, .. umartigo muito original sabre a causa da febre puerperal e apossibilidade de suprimi-Ia. 0 artigo tendia para a negativa;mas is to ja nem e novidade. Talvez esse escritor pudesse va-ler-me. Ate hoje, empenhei-me inutilment~ em obter umexemplar dessa publica<;ao. As minhas possibilidades SaDmuito limitadas. Seria abusar da sua cortesia pedir-lhe ...

Eu nao conhecia nenhum trabalho literario de Holmes, 0

que nao era de estranhar, dada a minba escassa cultura ge-ral, naquela epoca; em todo caso, isso nao queria dizer queHolmes nao houvesse escrito sabre a febre puerperal. Emconseqiiencia, prometi a Michaelis que procuraria 0 artigo e,logo que tivesse a sorte de encontra-Io, remeteria uma.copiapara Riel.

!Regressando a Nova York e dali a Boston, nao me custouaveriguar que Holmes escrevera de fato 0 artigo em questao,com 0 titulo de "Tbe Contagiousness of Puerperal Fever", "0

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CarMer Contagioso da Febre Puerperal". Provi-me dum.exemplar e, no vedio de 1848, enviei-o a Michaelis, selll mejll'eoeupar demais com tomar conhecimento dos pontos deyisla do autor. Eu anclava enHio na pista da sorte de Horace\Vells. Nao estranhei nao receber nenhuma resposta, pOl' fimde cantas, 0 caso nao passava dum pequeno episodio sem im-]Jol'lancia. Mas, inesperadamente, a 2 de outubro cle 18-18, che-gml-me uma carta de Kiel. Surpreendeu-me que fosse escri-la com letra feminina. Abri 0 envelope e, mal comecei a leI',th'e UB! verdadeiro choque.

"A sua amavel remess::! chegou-nos oportunamente - di-zia a carta - e nos the agradecernos a cortesi a . . . Infeliz-mente, 0 artigo chegotl rnuito tarcle, para consolar, ou ajudm',() Professor Michaelis. Como, naturalmente, cedo ou tarcle 0

scnhor virll a saber cia sorte do Professor Michaelis, eu dese-.i aria contar-lhe, sem omitir nada - como it pessoa a quemde provavelmente confiou os seus aborrecimentos - 0 fimdo professor. Ele suicidou-se, desalentado pela sua impoten-cia e pela impotencia cia medicina, perante um surto de fe-bre puerperal. Tenho raz5es para crer que a pretensa clesco-heda do jovem medico chamado Inacio Semmelweis, cIa qual() Professor Michaelis lomou conhecimento numa revista cien-tifica de Viena, mnito contribuiu para 0 seu suicidio. 0 men-cionado Dontor Semmelweis, que trabaJ.ha numa maternida-de Vienense, sustenta - contrariando todos os conhecimen-tos mcdicos do nosso tempo _ que a infecc;ao puerperal enmseqiiencia da transmissao de assim chamados germes in-fC{'ciosos, pelas maos dos medicos e dos estudantes que se te-llham ocupado com seccionar cadaveres das vitimas do mal,sem lavar convenientemente as maos. Semmelweis condenatodo 0 sistema cientifico cia nossa meclicina e proclama que,])ara banir a febre puerperal dos hospitais, se faz necessariauma limpeza rigoro3a das maos, com uma soluC;ao de acidoel(')rico. 0 Professor Michaelis acreditou na tese do don torSemmelweis. Como ele proprio, de ano a ano, sempre seccio-11liU escrupulosamell te os cadaveres saidos do seu hospital edepois examillava as suas parturientes, selll as desinfecc;oesexageradas do Doulor Sen)Jnelweis, sentiu-se aniquilado pelaenormidade das culpas que atribuia a si mesmo. A sua bela

consclencia 0 responsabilizava pela Illortandade tIas suas pa-cientes. ExaCf'rbou-lhe mais esse esiado de animo a morteduma parenta que ele muito prezava e que estava sob 0 seutratamento, levada como as outras pela fehre puerperal. 0professor caiu numa depressao cacla vez mais grave, em con.seqiiencia do que, no dia 9 de agosto deste ano, se suicidouem Lehrte, atirando-se cIebaixo dum trem ... "

Durante a leitura, senti-me tomado dum horror ine'pri-mivel. Via Michaelis diante dos meus olhos, como 0 tivera aomeu lado em Kiel. De Sllbito avultou no centro da sua ima-gem a exprcssao dolorida do seu 01har. que entno eu notaracasualmente. E, de sllbito, lembrei-me de que Michaelis mefalara do seu hospital como dum foco tcrrivel de lllortali-dade ...

Tambem me assaltou de improviso a recorda<;ao da his-toria que de me con tara na mesma ocasiiio: a historia das ra-parigas de Kiel que esperavam filhos ilegitimos. Em virtl1deduma lei dinamarquesa, esse deslise as condenava a traba-lhos for<;ados e ao inslituto correcional. £1;)S iam, portnnto amaternidade, permitiam que, durante as dOl'es, ilS parteiraslhes "atTancassem" 0 nome dos pais das crian<;ils e atiravam-se aos pcs de Michaelis, implorando que as admitisse no hos-pital, que s6 assim escap~niam ,\ casa de corre<;ao. Logo aMichaelis I A Michaelis, convel1cido de que, no seu institutoelas teriam castigo pior: a marte, apos dias terriveis de fc-brei .

Tudo isto despertou na minha memona, quando acabeide IeI' a carta de Kiel. Como ja disse, ela me comovera tantoquanto se podia emocionar um rapaz da minha idade. Ecom isso me j Ulglli;i desoLrigado.

GUal'dei a carta.

Nao agarrei a mao que 0 destino me estendia. Eu, teste-mUl1ha <Ia descoberta <Ia anestesia, grac;as a ela convertidoem jovem doutor crente do progresso, nao captei a importan-cia da noticia da descoberta de Semmelweis, a descoberta da"infec<;ao pelo contacto", que ja. entao, depois da elimina<;aoda dor, se prestaria para combaler a prolifera<;ao mortifera

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das molestias traumaticas infecciosas, a febre traumatica, aerisipela, 0 tetano, nas enfermarias cirurgicas do mundo in-teiro.

A minha incompreensao foi tao grave como ados titu-lares de catedras famosas, que pOl' essa epoca, na Europa, ri-dicularizavam, condenavam e escarneciam, na mais lidimaacep<;ao destes termos, ° jovem Inacio Filipe Semmelweis earquivaram as comunica<;oes da sua descoberta, exatamentecomo eu quardei e esqueci a carta vinda de Riel.

Hoje, isto parece incompreensivel; evidencia, porern, atea que ponto somos, todos nos, escravos de preconceitos arrai-gados, ou pelo menos consagrados pelo usa, e como nos custaaceitar qualquer inova<;ao, tanto mais quando a novidade senos afigura demasiado simples, para resolver problemas com-plexos.

Hoje, decorrido mais de meio seculo, nao ha quem pos-sa contestar a Semmelweis 0 meriio de haver sido ° primeiroa ler a intui<;ao do problema da "infec<;ao pelo contacto" cde tel', pela primeira vez, dominado amplamente essa "infec-<;ao de contacto" na pratica .. Mas a historia da sua descober-ta assemelha-se a uma epopeia de lances extraordinariamentetragicos.

o medico teuto-hungaro de vinte e oito anos, natural deOfen, Inacio Filipe Semmelweis que, em fevereiro de 1846, foinomeado assistente da Primeira Clinic a Obstetrica de Viena,ate ai nunca se ocupara de obstetricia. Nao tinha a menorideia de que ia ao encontro do maior encargo da sua vida, queseria ao mesmo tempo a sua tragedia. Procurava apenas umemprego, e aceitara esse lugar de assistente, porque 0 acasoo oferecia.

No fundo, tambem se tornara medico, gra<;as a urn acaso.A primeira casualidade levara-o ainda estudante de di-

reito, como espectador, a choupana denominada "Blockhaus",naquela epoca 'necroterio do Hospital Geral de Viena. Sem-melweis vira la 0 jovem professor vienense Karl Rokitanskyque se propunha obter a aprovagao geral para urn novo ramo

tla medicina: a anatomia patologica. Anatomia patologicanao significava apenas anatomia do corpo humano normal,mas anatomia do corpo enfermo e dos seus orgaos doentes.Ninguem ten tara ainda substituir as informa<;oes isoladas deautopsias praticadas ca e. la individualmente, pOl' medicosinteressados em apurar a causa da morte de pacientes seus,pelo quadro anatomico do organismo doente, baseado em de-zenas de milhares de autopsias.

A visita casual de Semmelweis ao mais que modesto lo-cal de trabalho de Rokitansky impressionou profundamenteo estudante de direito a ponto de induzi-lo, contra a vontadedo pai, a abandonar a jurisprudencia pela medicina e, emparticular, pela anatomia patologica. Naquele tempo, Sem-melweis poderia considerar-se--um rapaz frivolo, de bom cora-<;ao, sempre contente, urn tanto desajeitado no modo de fa-lar e de escrever e, no fundo, destituido de aptidoes para apesquisa cientifica. Em 1844, superados os exames de medi-cina, procurara lrabalho como assistente, na clinica do Pro-fessor Skoda que, ja entao, gra<;as a aplica<;ao sistematica dometodo de' percussao e ausculta<;ao, elevara a um grau aindanao atingido 0 diagnostico das enfermidades. Semmelweis foipreterido a favor doutro medico mais velho. Em conseqiienciadisso, depois de longa espera, agarrou-se quase as cegas aolugar de assistente que the propunham na Primeira ClinicaObstetrica. Tratava-se, em verdade, duma coloca<;ao pred-ria, porque 0 antecessor de Semrnelweis assegurara a si pro-prio a possibilidade de voltar. Mas uma situa<;ao revogavelsempre era melhor do que nada.

Semmelweis assurniu 0 cargo,' ainda com a despreocupa-<;ao dos seus anos de estudante. Meses depois, porem, eramuito autro; meses depois, era urn homem arnadurecido, otor-mentado pOl' escrupulos de consciencia.

Quando come<;ou a trabalhar, a febre puerperal nao erapara ele senao urn conceito medico, urn fenorneno usual, nemsempre evitavel, do puerperio - ou, como se lia nos tratadosda epoca, numa parolagem ingenua e prolixa: " ... molestiazim6tica, de curso agudo que, segundo a predisposi<;ao do in-dividuo, tanto pode ser provocada pOl' nocividades de ordem

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geral, como ser consequencia de abalos psiquicos e resfria-mentos; mas, acima de tuclo, de influencias epidemicas e en-clemicas que poem em fermenta<;ao a massa do sangue ... "1\1ais sucintamente expresso, isto significava que a ciencia obs-tetrica daquele tempo nao sabia, acerca da infec<;ao puerpe-ral, mais clo que sobre as infec<;oes traumaticas. A ignoran-cia, a' aceita<;ao cia febre puerperal como fatalidade inevita-vel, tambem fora transmitida a Semmelweis pelos seus mes-tres; e como fato natural ele a encarava - ate ao instante emque se defrontou com a enfermiclade mortifera.

A sec<;ao de obstetricia do Hospital Geral de Viena era,nessa clecada closeculo, urn foco de infec<;ao puerperal. Quan-do Semrnelweis assumiu 0 posto de assistente nas enferma-rias de obstetricia, de duzentas e oito puerperas moniam na-da menos cle trinta e seis. As parturientes internaclas no Hos-pital Geral de Viena eram essencialmente os assim charna-dos "casos pobres"; muitas vezes, maes "sem a ben<;ao ciaIgreja". As rnulheres, que tinharn alguma coisa de seu, davarna luz os filhos em casa. 0 cliretor cia clinica, Professor Klein,que Cerca de vinte an os antes sucedera ao famoso ProfessorJohann Boer - entao incliscutivelmente 0 primeiro da Euro-pa na sua profissao - adotava, em relw,:ao a febre puerpe-ral, uma atitude indiferente, apatica. 0 proprio Boer 0 cle-finira: "0 mais ineapaz clos incapazes". Nao poderia, no en-tanto, obstaI' a que 0 favor palaciano elevasse, aquele homemsem imagina<;ao a um posto cle tanta importancia.

Meses depois que Sel1l111elweiscomcc;ara a exercer as suasfUIlc;6es no hospital, 0 Professor Klein notoll, com a incom-llreensao mais lerda, que a sorte das maes vitimadas pela in,·fec<;ao puerperal, a desola<;ao dos maridos cons tern ados, 0

choro clos recem-nasciclos orfaos ao virem ao mundo, tortu-ravam a consciencia do novo assistente de obstetricia. Cha-mava a aten<;ao 0 empenho com que ele investigava, com per-guntas ociosas, as eausas da febre puerperal. Estudava todosos livros disponiveis, importimava 0 proprio Klein com assuas indaga<;oes, eorn 0 espirito de inquieta<;ao que se irradia-va dele e desagradava ao diretor. Sernmelweis nao se con-ten tava com as motiva<;6es cieritificas existentes. Negava-se

a crer na inevitabilidade do mal; punha em duvida 0 seu ca-rateI' epidemico; ousava atacar 0 sistema cientifico [radicio-nal que, para Klein, era intangivel.

A clinic a obstetric a do Hospital Geral de Viena, subdivi-dia-se em duas sec<;6es. A primeira divisi'io, onde trabalhavaSemmelweis, servia para a pn\.tica abstetrica dos estudantesde medicina. A segunda rHio era freqiientada pOl' des. Alise treinavam as parteiras. Semmelweis verificou que a pri-meira sec<;ao perdia mais de dez pOl' cento das parturientes, defebre puerperal, enquanto a segunda acusava regularrneniemenos de urn pOl' cento de vitimas do mal. As duas divisoeseram contiguas. Se a febre puerperal tivesse carateI' epide-mica - argumentava 0, assistente - 0 nlllnero de mortes seriao mesmo, nas duas enfermarias. A diferen<;a de percentagemparecia-Ihe inexplicavel. A essa argurnenta<;ao, Klein respon-dia, encolhendo simplesmente os ombros.

Sernmehveis, 0 despreocupado Semmelweis, que ate ai naose defrontara com problemas serios, sen tiu-se imp elida peloseu c.ora<;ao ·compassivo a sondar 0 inexpiicavel. Autopsia-va continuamente, no necroterio, em companhia dos estuaan-tes, os cadaveres das vitimas da febre puerperal. Deparava-se-Ihe invariavelmente 0 meSillO quadro. Supura<;oes e inflama-<;6es em quase todas as partes do cor'po; nao so no utero, co-mo no fig ado, no ba<;o, estendendo-se as glandulas linfMicas,ao peritonio, aos rins, as membranas do cerebro. 0 quadro dosfenomenos assemelhava-se singularmente ao das febres pu-rulentas e das infec<;oes traumaticas. No momenta, parem,essa afinidade escapou a percep<;ao de Semmelweis, ernpenha-do exclusivamente - com a imagem de Rokitansky diantedos olhos - em desvendar 0 rnisterio do mal que ceifava asparturientes.

Terminadas as autopsias, ia com os estudantes as enfer-marias de mulheres. Examinava escrupulosamente as ges-tantes proximas do parto, as que estavam de parto e as que jatinharn dado a luz. Ensinava aos estudantes - que aindatraziam nas maos 0 cheiro enjoativo dos cadaveres - os me-todos de exame entao em uso. Movido pela ansia torturantede saber, intensificava os exames mais do que se costumavanaquele tempo.

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Apesar de tudo, 0 resultado do seu zelo nao consislia emmelhores conhecimentos da natureza do mal; resumia-se, pe-10 contrario, numa subita majora<;ao do numero de entermase moribundas - e isso, enl verdade, so na primeira sec<;iio,alias, ja preferida pela morte. 0 obituario dessa enfermariaera 0 terror das mulheres que nao tinham mil lar proprio, on-de pudessem dar a luz e passar a seman a seguinte ao parto.E elas resistiam desesperadamente a que as aloj assem na sec-<;ao da morte.

As duas divis6es recebiam as pacientes de acardo comum esquema de tempo rigoroso: aos domingos, a primeira;as segundas-feiras, a segunda; as ler<;as, novamente a pri-meira; e assim pOl' diante. As gestantes chegavam a dar a luzna run, pOl' terem esperado demais a segunda, ou a quarta, oua sexta-feira que Ihes abriria as portas da segunda divisao.As que eram levadas contra a vontade, em pleno trabalho departo, a primeira sec<;ao, relutavam, lan<;avam-se aos pes deSemmelweis, suplicavam Ihes concedesse mais urn dia, paraficarem na segunda divisao. Podia urn ser pensante admitirseriamente que as influencias "atmosfericas cosmico-tieluri-cas" - que, segundo a explica<;ao cientifica, provocavam afebre puerperal - agissem s6 aos domingos, teryas, quintas esabado, isto e, nos dias de admissao a primeira enferma-rias?

Sob a impressao de tais fatos, Semmelweis mudava cadavez mais. Esquivava-se das pessoas com quem passara os seusanos alegres de estudante. Discutia consigo, enquanto traba-lhava. Mais e mais desesperado, discutianoites inleiras corno companheiro de quarto, 0 medico Markusowsky. Discutiacorn Kolletschka; 0 professor de medicina legal, que autopsia-va tadas as manhas ao lado dele,na sala anatomica. Sem-melweis parecia semprc esfalfado; os seus olhos perdiam 0

brilho antigo.

Em 1846, a mortalidade na sua sec<;ao atingiu a quota de11,4 pOI' cento. Na segunda divisiio, permanecia inferior a0,9 pOI' cento. Semmelweis estabelecia confrontos sobre con-frontos: nas duas salas; as mulheres provinham das mesmascamadas da popula<;ao; as condi<;6es ambientes eram as mes-

mas - piores talvez na segunda enfermaria, por estar ciaconstantemente superlotada; os metodos obstelricos tambemeram identicos.

Semmelweis determinou que as pacientes de parto se dei-tassem de lado porque assim se fazia na segunda secc;uo. Es··sa medida nao diminuiu absolutamente 0 quociente da 111111'-talidade. Semmelweis praticava os exames com a maximadelicadeza, pOI' lhe terem sugerido que as maos femininas uasparteiras da segunda divisao eram mais finas do que as muosmasculinas dos estudanles da primeira. Como todos os com-pendios mencionavam 0 merlo, como uma das causas da fe-bre puerperal, e 0 padre atravessava continuamente as cincosalas da sec<;ao, para auministrar 0 Yiutico as moribuudas,Semmelweis rogou ao sacerdote que, nessa' passagem, se abs-tivesse de tocar a sineta. Nem pOl' isso deixou de morrer se-quel' uma paciente. Semmelweis verificol1 que, nos casos departos mais demorados do que 0 normal, a parturientes, qua-se sem exce<;ao, nao escapavam a febre puerperal. Semlllcl-we is torturava 0 cerebro, procurando uma explicac;ao par'laquilo. Inutilmente!

Ql1inze anos depois, escreveu: '~Tudo era inexplicavel,tudo era incerto; so 0 numero elevado de 6bitos era uma rea-Iidade incon tes tavel".

Na primavera de 1847,Semmelweis chegara a tal esl<l-do de angustia e de aversao ao convivio com os seus seme-Ihantes, que 0 Professor Kolletschka, receando uma desgra-qa, obrigou 0 amigo a tomar algumas semanas de ferias, paradistrair as ideias e sail' daquele ambiente admonitor de ll1ori-bundas e de mortas, onde 0 pior era ° isolamento, a inco!ll-preensao de Klein, a inercia da maioria dos discipulos, a ill-sensibilidade comodista das enfermeiras.

Embora a muito custo, Kolletschka persuadiu 0 colega ~ausentar-se. A 2 de mar<;o de 1847. Semmelweis partiu parrrpassar tres semanas em Veneza. Nem eie nem Kolletschka,() amigo, desconfiavam de que essa excursao era a llltimapausa do destino, na estrada da vida de Semmelweis, antesua decisiio definitiva.

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Semmelweis regressou de Veneza, ao termo de tres se-manas, sem tel' propriamente gozado urn pouco de paz; em-brenhara-se demais no labirinto cIa duvida e da busca afano-sa da verdade. Chegou a Viena, na tarde de 20 de mar<;o.Ao alvorecer do dia seguinte, ja estava no necroterio. De 01'-

dinario, Kolletschka trabalhava ao lado dele. Semmelweisestranhou ver-lhe 0 lugar vazio. Esperou 0 amigo. Mas es-perou em vao.

Entrou afinal 0 servente da sala de anatomia. Semmel-weis perguntou-lhe pelo colega.

o velho olhou-o, assarapan tado, sem compreender; e disse:- Entao 0 senhor doutor nao sabe nada?

.- Que hei de saber? - redarguiu Semmelweis, assaltadopOI' subita angustia.

--- 0 Senhor Professor Kolletschka morreu - articulouo criado.

creveu Semmelweis mais tarde - senti que me penetrava noespirito, com clareza incontrastavel, a idcntidade do mal quematara Kolletschka com a febre de que eu vira morrer tan-tas centenas de puerperas ... "

Nesse instante, Semmelweis pressentiu que vivia uma des-sas "horas de inspirac;:ao", em que se faz subitamente a luz,nas trevas dum dos misterios grandiosos cIa natureza. MasaincIa ignorava que esse instante decidia da sua sorte.

Se os dados das autopsias eram identicos - perguntavaa si mesmo - nao seriam as mesmas tambem as causas cIamorte de Kolletschka e cIa morte das doentes de febre puer-peral? Kolletschka morrera duma lesao na qual 0 bisturi in-troduzira germes da decomposic;:ao da materia caclaverica .He, Semmelweis, e os seus discipulos nao traziam com as sua;;maos os mesmos germes ao regac;:o das parturientes, rasgadopelo parto, quando vinham cIa faina do necroterio as salas<Ia enfermaria, para 0 exarne das puerperas?

Semmelweis pos-se a remoer, dia e noite, essa pergunts.E uma hipotese tremenda, dolorosa, juntou-se-lhe no cerebroas outras do seu tumulto mental: se a sua lese fusse fundada,estariam subi tamen te explicadas as diferenyas das quotas damortalidade clas duas secc;:i3es. Na segunda secc;:ao, nao tra-balhavam medicos nem estudantes; ali s6 havia parteiras quenao seccionavam cadaveres, antes de examinar as parturi-entes.

E, como pOl' magia, insinuou-se em Semmelweis a certe-za de que 0 numero de 6bitos de febre puerperal aumentaratanto, porque ele - na esperanya va de descobrir anatomica-mente 0 segredo da febre puerperal - passara tantas horasna sala de anatomia. Revelou-se-Ihe, num vislumbre, a ra-ZUO pOl' que as gestantes de pm-to demorado adoeciam maisfacilmente do que as outras: aquelas sujeitavam-se a maisexames do que estas; 0 colo do utero era, nelas, mais sensi-,'el a virulencia da putrefac;:ao.

o abalo sofrido pOl' Semmel we is foi tao violento, que elereceou perder a razuo. Chegou a pensar no suicidio. 0 re-morso de ser 0 causador da morte dum numero incaJculavelde mulheres tirava-lhe 0 sono. Perseguiu-o pelo res to . da vi-

A principio, Semmelweis nao entendeu. Fez 0 velho re-petir a resposta. Depois, largando 0 escalpeJo na mesa, cor-reu a procura de Rokitansky. Soube entao tada a verdade.Ao fazer uma autopsia, 11l1l estudante desastrado ferira Kol-letschka no brac;:o com 0 bisturi. Dm talho insignificante,com que ° professor nem se preocupara. Aoanoitecer do diuseguinte, estava com febre e tremores de frio. Morreu deli-rando, dias depois, Semmelweis fez questao de ·tomar co-nhecimento do protocolo da aut6psia do corpo do amigo.

Mal Ihe deitou os olhos, teve a impressao de que 0 sololhe fugia debaixo dos pes. Atestava 0 documento: "Supura-yao e inflamaC;ao das glandulas linfMicas, das veias, da pJeu-ra, do peritonio, do pericardio, da membrana cerebral. .. "

Semmelweis julgou estar lendo, nao 0 protocolo do exa-me cadaverico do amigo morto, e sim um das muitas cente-nas, que ele mesmo redigira, seccionando vitimas da febrepuerperal. 0 texto do protocolo de Kolletschka coincidia am-plamente com odos protocolos das suas pacientes.

"Ainda entusiasmado pelos tesouros artisticos de Veneza,mas alvoroc;:ado pela noticia da rri.orte de Kolletschka - es-

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<la. Muitos an os depois, de ainda escreveu: "So Deus sabea conta das que, pOl' minha causa, desceram prerriaturamente11 sepultura".

o cheiro adocicado de cadaver, nas suas maos e nas dosseus discipulos - ate ai, atributo soberbo de anatomistas ha-beis e ativos - tornou-se para ele simbolo de assassinio. MasInacio Semmelweis conseguiu escapar a loucura. Em maiode 1847, travou a luta contra a morte.

No dia 15 desse mes, sob a sua responsabilidade, sem se-quer consultar Klein, mandou afixar a porta dn clinica est(l.determinac;ao:

"A partir de hoje, 15 de maio de 1847, to do estudante, Olllllcdico, proveniente da sala de anatomia, e obrigado, antesde entrar nas salas da clinic a obstetrica, a laval' as maos, comlima solu~ao de acido clorico, nn bacia colocada nn entrada.Esta disposic;ao vigorara para todos. Sem excec;ao. I. F. Sem-Inelweis".

Semmelweis nada sabia entao das bacterias, como gera-doras de bacilos propagadores nao so da febre puerperal, masde toda infecc;ao tramm'ttica, purulenta, all cirurgico-purulen-ta. Bans trinta anos a scparavam ainda da descoberta dosmicrobios. tIc desvendara, porem, 0 segredo da transmiss5.oclos germes infecciosos, par meio das maos e dos instrumen-tus dos medicos e cirurgi6es, revelac;ao que scria tres deceniosdepois a pedra angular da assepsia. A 15 de maio, iniciava-sc,pais, a luta fatidica da sua vida.

Sabao, escovas para unhas, aciclo clorico tiveram entra-da na sua secC;ao. Embora contra a vontade, 0 Professor Kleindeixava-o agir. Alguns estudantes esclarecidos obedeciam es-pontaneamente. A maioria dos outros achava tao incomodoa "lava-maos absurclo ", que Semmelweis teve de vigiar' pes-soalmente, para obriga-Ios a conformar-se com a sua dispo-siC;ao. E sempre clescobria alguns tl:ansgressores. 0 estaducronico de excitac;ao em que a mantinham a sua descobertac os escrlllmlos de consciencia suscitados pOI' ela tornara-osujeito a acessos de colera. 0 homem, outrora alegre e bom,convertera-se num tirano.

Em maio de 1847, em trezentas pacientes as mortes ainclase clevaram a mais do que a decima parte, ou 12,3:1 pOI' cento.

Nos meses seguintes, porem, registraram-se apenas 56 obitosem 1841 partos - ou 3,04 pOl' cento.

Essa percentagem ainda excedia, em verdade, a de cer-ca de 1 por cento de casos fatais da segunda seCC;ao. Masquando se ti\'era, noutro tempo, quociente tao diminuto demortalidade? Nunca!

Semmelweis ja se julgava proximo da vitoria definitiva.Mas raiou 0 dia 2 de outubro de 1847, data em que ele tevede afrontar a batalha mais terrivel que se the poderia de-pmar.

Entranc10 nessa manha numa sala on de se alojavam dozeparturientes, encontrou-as toclas atacadas de febre puerperal,a despeito de toda a desinfec<;:ao, de toda a vigilancia, da cer-teza absoluta de que ninguem viera da sala de analOlllia aenfermaria das puerperas, sem laval' as maos.

Mas, ao chegar ao lei to da duodecima enfel'lna, Semmel-weis j a se refizera cia decepC;ao ari'asadora, a ponto de po-del' encarar 0 seu sequito de estudantes que JIlal dissimula-vam 0 seu triunfo, a vista da "prova decisiva do absurdo dofanatislllo pelo asseio". No espac;o de poueos dias, morreralllnada menos de nove das doze mulheres.

Semmelweis nao fraquej ou. Martirizava 0 cerebro, fiea-va mais e mais despotico e severo. Mas achou a soluc;ao.

No primeiro leito da sala, onde 0 mal nao poupara nin-guem, a paciente sofria dum carcinoma putrido do utero.Semmelweis e os discipulos lavavam as maos, antes de entrarna enfermaria; depois, um apos outro, examinavam a cance-rosa, passando em seguida as outras doentes, sem lhes ocor-reI', entre urn e Qutro exame, a conveniencia de nova desin-fecC;ao.

Semmelweis fez, nesse dia, a segunda descoberta cla suavida. .

Nem so os mortos transmitiam aos vivos os germes infec-ciosos. Tambem os podiam propagar os vivos enfermos, por-tadores de processos putridos e purulentos, comunieando-osaos individuos saos.

Semmelweis inaugurou lima nova fase da sua luta, de-terminando a mais rigorosa desinfec<;:ao das maos, depois de

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cada exame. Superintendia a esterilizagiio dos instrumentosque, ate ai - no seu hospital, como em tocio 0 mundo - selimpavam as abas da sobrecasaca. E removeu para salas doisolamento as parturientes portadoras de processos inflama-torios.

As novas medidas, mais e mais severas, valeram-Ihe umaonda de resistencia, franca ou dissimulada. Estudantes e ell-ferl1leiras - estas naquele tempo, autenticas flores do loda-gal da imundicie - queixaram-se ao Diretor Klein; e este, jafarto do fanatico desmancha-prazeres, resolveu alijar, quan-to antes, do cargo de assistente, 0 jnovador importuno.

Semmelweis nao prestava atengiio aos sinais de perigo.Enlevava-se nos resultados que lhe assinalaram 0 r.no de 1848.Nesse ano, de 3.556 parturientes morreram apenas 45. Pelnprimeira vez, 0 quociente da mortalidade da primeira secc;aodescera a 1,33 pOl' cento; apenas pouco mais do que 0 da se-gunda. Onde, em nome de Cristo, se poderia encontrar pro-va mais luminosa do acerto das suas teorias e da sua aC;ao?

Em fins de 1847, Semmelweis comunicara pela primeiravez os seus exi tos' aos seus mesh'es; antes de tudo a Skoda;mas tambem a HeI)l'a, 0 criRcior vienense cia clinica de mo-lestias da pele. Ambos exigiram um relatorio escrito das suasrealizac;oes. Ele, porem, retomado de repente pelo sentimen-to da dificuldade de falar e de escrever, que j~'l 0 caracteri-zara quando estudante, nao se atreveu a redigir a comullica-C;ao. A vista disso, Hebl'a resolveu ocupar-se pessoalmentedas experi€mcias cle Semmelweis; e sabre elas escreveu, nonumero de dezembro de 1841 cia revista cia Associac;ao clos Me-dicos de Viena. Em abril de 1848, publicou novo artigo sabreesse assunto. Foi, sem duvida, uma clessas puhlicac;oes a ..quechegou as maos de Gustavo Adolfo Michaelis, em Riel, e Ihedeterminou a sorte.

De resto, nenhuma delas suscitou outro eco. As afirma-goes de Semmelweis eram novidade tao sensacional para amentalidade estagnada clos meclicos e dos parteit·os da Euro-pa, que particularmente os mais esclarecidos e os mais famo-sos recalcitravam em aceita-Ias; e reagiam com silencio ab-soluto e absoluto pouco casa.

Em princlplOs de 1849, 0 medico primaz Haller da Asso-eiac;ao dos Medicos de Viena, tomoD 0 partido de Semmel-weis, declarando pela primeira vez que a descoherta do as-sistente de ohstetricia do Hospital Geral de Viena, era im-portante e nao so como medida preventiva contra a febrepuerperal: "A significaC;ao desta descoberta, mormen te pa-ra os estabelecimentos hospitalares e, em particular, para assalas cirurgicas, e tao incomensuravel, que a toma digna damaxima atenc;ao de todos os homens de ciencia ... "

Ainda assim, nenhum dos cirurgioes, em cuj as enferma-rias morriam, das diferentes formas de febrles e infeceolCstraumaticas, milhares de pacientes - reagiu a esse apelo."

Skoda convidou 0 corpo docente da Universidade de Vie-na a nom ear uma comissao ·com a incumbencia de submetera deseoLerta de Inacio Semmelweis a um teste decisivo. 0carpo docen te aceitou a sugestao.

Mas, assim que se inteirou dissc, 0 Professor Klein, espi-rito tacanho, desconfiou de que 0 assistente ridicularizado es-tivesse na iminencia de conseguir uma vitoria inexplicDvel;e, para a conj ural', 0 direlor desenvolveu uma aea 0 incnvel-mente traic;oeira e baixa. "

POl' ocasiao das Iulas revolucioIlC'lri'as irrompidas em Vie-na, no ano de 1848, contra 0 governo constituido, Semmelweis,natural da Htll1gria, simpatizara com os reVOlllcionarios.Klein denllllciou-o pOl' essa atitude; e 0 ministerio proibill arealiza~ao do teste das teorias de Semmelweis sobre a origemda febre puerperal! Ao mesmo tempo, Klein obteve que 0

contrato Lienal do assistente Semmelweis nao fosse prorroga-do. Vendo-se despedido da clinica, Semmelweis intentou de-mOllslnu' em cobaias que 0 colo uterino pode ser a porta deentrada para uma infecgao gen';ralizada do organismo. EKlein negou-lhe ate a utilizaC;ao das fichas das doentes dasecc;ii.o do ex-assistente, dados de que este necessitava urgen-temenle para investiga.:;oes estatisticas.

Incitado llovamente pOI' Skoda e Hebra, Semmelweis de-cidiu-se afinal a combater as suas inibic;6es e a reivindicar,peranle a Associac;ao clos Medicos, 0 direilo de promover umcxallle impal'{:ial do seu ·trabalho. E submeteu-se ao teste, no

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diu 15 de maio, sem jeito, sem habilidade, nervoso, exaspera-.do, transbordando de revolta contra a cegueira com que sechoc.ava em toda parte. Mas a sua exposi<;ao foi tao objeti-va e convincente, que se the seguiu outra prova, a 18 dejunho e, em 15 de julho, um debate cujas conclus5es forampela primeira vez, favoraveis a Semmelweis.

Ai., porem, 0 assaltou de novo ° temor panico da pena; derecusou transcrever a sua exposi<;ao verbal. E s6 vieram apublico informa<;oes eivadas de lacunas, redigidas' pOl' lei-gos.

Frustrada a primeira tentativa de se tornar conhecidomediante a palavra e os escritos, Semmelweis nao se deixouinduzir a outra. Convencera-se de que s6 poderia impor-seagindo. Subvencionado pOI' Skoda, procurou uma coloca<;aocomo professor. Encontrou-a ao termo de oito meses de es-pera, isto e, de tempo perdido. Ja a tinha aceito com grandesatisfa<;ao, quando percebeu as peias que the estorvariam aatividade: era-Ihe vedado ensinar, fazendo as demonstra<;5esem mulheres vivas; tinha de ilustrar as prele<;5es numa bone-ea desmontavel.

Opresso pOI' uma onda mais esmagadora de decep<;-ao eazedume, ja sem paciencia para suportar, Semmelweis dei-xou Viena, da noite para 0 dia, sem se despedir sequel' dosamigos que sempre the haviam prestado solidariedade.

Budapest, a sua cidade natal 0 acolheu e, fora dali, umsih~ncio de varios anos fez crer que ele houvesse desaparecido.

A ma sorte continuava a persegui-Io., Semmelweis ten-tou ganhar a subsistl~ncia para si e os seus, com a sua pro-fissao de medico, e parteiro. Mas uma queda do cavalo e umacidente no telheiro de nata<;-ao 0 inibiram semanas a fio dcexercer a sua atividade. Semmelweis encheu-se, nessa cir-cunstancia, duma grande resigna<;ao fortalecida, alias, pelascondi<;-5es do ambiente medico e cientifico da Hungria. Des-de a Revolu<;-ao Hungara, no ana de 1848, os professores maisilustres haviam sido afastados dos seus cargos. Outros ti-nham procurado salvar-se no exterior. A publica<;ao da prin-cipal revista medica da 'Hungria: "Orvisi tar", fora suspen-

Os meses escoavam-se, urn· ap6s outro. Em Viena, ja naose mencionava 0 nome de Semmelweis. 0 novo assistentepronunciara-se, em termos inequivocos sabre 0 ridiculo dastentativas do seu antecessor. Aproximava-se a primavera de1851. Um acaso levou Semmelweis a sec<;-aode obstetricia doHospital Sao Roque de Budapest. Das seis gestantes que ha-.viam dado a luz, no velho e decaido palacio medieval, umamorrera, outra agonizava e as quatro restantes encontravam-se em estado grave, tadas de febre puerpe~al. 0 medico deservi<;o era 0 primeiro cirurgiao da casa, que - sem a me-nor no<;-aode higiene das maos, dos instrumentos e das rou-pas - andava de ca para la, entre as incis5es supuradas dosoperados da sua sec<;ao cirurgica e as puerperas da mater-nidade.

A hora daquela visita foi, para 0 homem que ja ia sub-mergindo numa resigna<;-ao sem aspira<;5es, como que 0 des-pertar da paixfio antiga, da sua responsabilidade perante es-sas maes ceifadas pelo mal, da sua no<;-aodo dever de comb a-tel' a morte de cujo segredo de se julgava senhor. E Sem-melweis voltou a ser Semmelweis, 0 entusiasta, 0 homem dea<;ao.

Como a sec<;-aode obstetricia nao tinha diretor, afigurou-se-Ihe que deveria candidatar-se' a esse posto. Era, em ver-dade, urn requerimento sem esperan<;a.

Contra toda expectativa, porem, a 20 de maio de 1851,Semmelweis viu-se nomeado diretor honorario sem hono-rarios.

A maternidade ocupava urn predio antigo e insalubre.Constava de cinco salas das quais s6 tres tinham uma jane-linha. No pavimento inferior, instalara-se urn laborat6riOiquimico, cuj as exala<;5es deleterias se evolavam no aI', dian-te das j anelas da sec<;-aodas puerperas. ·0 mau cheiro infes-tava as salas onde, no verao 0 calor era insuportavel. As en-fermeiras nao tinham a menor no<;ao. de higiene. .

Semmelweis recome<;ou do principio, lunge de Viena, lon-ge do mundo cientifico da epoca, do cla dos luminares. Tevede combater novamente a inercia dos estudantes.. Mais umavez, impediu 0 caminho entre as salas de anatomiu e a sec-

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<;ao de obstetricia. Mais uma vez, cumpriu-Ihe exercer Vlgl-lancia para que se lavassem as maos. E, mais uma vez, eo-lheu ma vontade, odio, escarnio.

M,lS, em seis anos de trabalho afanoso, conseguill que, de933 parturientes, monessem apenas .oito, 0 que significuvamenos de 1 por cento.

Ainda dessa vez, os reveses 0 levaram a novas. descoDerLa-;.Um surto completamente inesperado da molestia mostrou-lhe que, mal lavada, a roupa de cama podia propagar' ger-mes de infec<;ao. Semmelweis convenceu-se disso encontran-do, nos leitos preparaclos para novas pacieutes admitidas, re-siduos das secre<;5es purulentas das que ali tinham mOJTid(l.Empreendeu entao lllta ferrenha, com a administra<;iio do 11OS-

pital, em prol da higieniza<;ao cia rouparia. \'eneeu, Icvandocom indignac;iio as len<;ois sujos ao gabinete do diretor udmi-nistrativo e estendenclo-Ihe na mesa panos mal cheirosos.

A 18 de julho de 1855, Semmelweis foi nomeado profes-sor de ob~tetricia. Mas essa distinc;iio era-Ihe outorgada pOl'uma universidade fora de mao, sem cola<;ao aprecillvcl ungrande mundo cientifico. Todavia, foi ela talvez que acordollnele a antiga aspira<;ao de convencer os ccptieos, a sah'ur asdezenas de milhares de criaturas humanas que morriamanualmente no mundo. Nao queria nada para si. Quando aUniversidade de Zurich (lim de eujos lentes, a Professor Roseera, na Europa, 0 unieo eirurgiao que experimentavCl ua suacliniea eirurgica- as teorias de Semmelweis, antecipando-se as-

'sim II assepsia dos decenios seguintes) the ofereceu em lR:i7 aca tedra de obstetricia, Semmelweis declinou a oferta.

. Dir-se-ia que receava 0 contacto pessoal com 0 IllllIH]O,

fora da sua cidade natal.So em 1860, 0 desejo de divulgar os eonhecimelllos' ad-

qlliridos se tornou tao intenso que, pela primeira vez na vi-da, Semmelweis tomou de motu proprio a pena. Secllndudilpelo seu ex-companheiro de quarto Markusowsky, que assis-tiu em Viena as suas primeiras descobertas, Semmelwcis es-creveu "Etiologia,Conceito e Profilaxia da Febre Puerperal".

Era apenas um opusculo mal eserito, in<;ado de repeti<;oes.l~, apesar disto, um dos livros mais empolgan tes que j II sedeverain a pena dum medico. Urn livro de verdade eOlllezi·

nha, contraposto ao erro que dominava 0 mundo. UIll livroprofetico, um livro que aparecia nurna epoea em que Semmel-weis lutava pela sua descoherta, nao jn exclusivamente emrela<;ao a febre puerperal, mas tendo em vista a fabre trau-matica dos operndos, tao semelhante aquela que assolavaas salas de opera<;oes, as enfermarias cirllrgicas. Nao haviamuito, Semmelweis persuadira 0 catedratico de eirurgia deBudapest a fazer a tentativa de reduzir os casos de infec<;.aotraumatica entre os pacientes operados, protegendo as inci-soes cirurgicas de todo contaeto com instrumentos e maosque nao se houvessem submetido a uma linpeza rigorosa. Mashaveria quem se dispusesse aIel' () livrinho de Semmelweis,.com isenC;ao de animo, e a Ihe ado tal' as teorias? Mais umavez Inacio Filipe Semmelwei~ teria de alum'gar unlfl desilu-SaD imensa.

Durante 0 Tl'igesimo Sexto Congresso de Medicos e Natu-ralistas Alemaes, reunido em Speyer no ana de 1861, so 0 Pro-fessor Lange de Heidelberg se manifestou a favor de Semmel-weis, atentanda que the adotara os metodos e, em trezentospartos, nao tivera a registrar um s6 caso de morte pOI' febrcpuerperal. Mas essa voz era uma voz clamando no deserto.Em tempo algum, a soberba, a parcialidade, a intransigenciados "deuses consagrados da medicina" se mostraram tao hos-tis aos progr:essas da sua eiencia.

Virchow, 0 fundador da pa lalogia celuiar, que nao pen-sava senao na importancia da cclula, condenou as teorias deSemmelweis, p,or nao serem elas conciliaveis com as suas, se-gundo as quais toda enfermidade se origina automaticamentenas celulas do corpo humano. Mas, como nao raro acnntece,a palavra de Virchow era, para os seus sequazes, a palavradum deus.

Niio; nao havia quem estivesse disposto a dar ouyido aInclcia Filipe Semncelweis. Ignoro que esperan<;as de funda-ra no seu livro. Tambem nao sei se, j a en tao, ele sofI'era aprimeiro ataque do mal terrivel, gerado pelas afli<;61es dasua vida e que, em breve, 0 envolveria· na sua sombra si·nistra.

Ao tel' conhecimento do pouco apre<;o dispensado ao seulivro, Semmelweis deixou escapar uma exclama<;ao litera ria:

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nao havia esperanc;a para de nem para as suas teorias; nemressuscitariam os mortos que continuariam a morter, em con-sequencia da inepcia e da miopia dos homens. Mas esse gri-to entrou na Hist6ria como testemunho dum homem que serevoltava, com tbda a energia da sua consciencia, contra amorte absurda. Esse desabafo manifestou-se, sob forma deCarta Aberta, enderec;ada aos Professores Scanzoni, Siebolde Spath - cada qual deles, urn luminal' da obstetricia euro-peia contemporanea.

"A sua doutrina, Senhor Conselheiro Aulico - escreviaSemmelweis a Scanzoni - assenta nos cadave'res' das puer-peras assassinadas pela ignorfmcia,.. Se a minha teoria seIhe afigura falsa, convido-o a expor-me as raz6es em quefunda a sua opiniao. .. Se Vossa Senhoria, Senhor Conselhei-ro Aulico, persi.stir em amestrar os seus discipulos e discipu-las na doutrina da febre puerperal epidemica, eu - diantede Deus e do mundo - 0 declararei assassino ... "

E dirigiu-se a Siebold nestes termos:"Ligam-me a sua pessoa, Senhor Conselheiro Aulico, re-

corda<;6es agradaveis; mas os lamentos das gestantes, quemorrem de parto, abafa a voz do meu corac;ao .. , Sou de pa-recer que a febre puerperal e conseqiiencia duma infecyao e,no ano de 1848, passaram da minha enfermaria ao necroterioquarenta e cinco puerperas. Em 1854, isto ~, seis an os depois,Gustavo Braun e a seus discipulos inscientes, opinando quea Jebre puerperal e de origem epidemica, enviaram ao necro-terio quatrocentas parturientes. .. Se me coubesse optar ex-clusivamente entre permitir que continuem a morrer de fe-bre puerperal numerosas puerperas, que poderiam ser salvas,e salva-Ias, mediante a demissao de todos os professares deabstetricia que nao querem ... ou ja nao podem adotar a mi-nha teoria. .. eu optaria pela demissao dos professores, poisestou convencido de que se trata de' evitar a mortandade demilhares e milhares de maes e de lactantes; e, diante disto,algumas dezenas de professbres carecem de importancia".Nao ser da minha opiniao equivale a ser assassino ... "

Tal como 0 outro mencionado acima, estes brados de Bu-oapest nao tiveram eco. Serviram apenas de pretexto para

executar Inacio Semmelweis como individuo que, "pelo seudescomedimento" se excluia pOI' si mesmo da classe medica;e ate como homem de juizo nao de todo saa:

Os que 0 tinham na conta de doido, mal sabiam que seantecipavam ao que sucederia nos anos seguintes. E, se 0

pudessem preyer, de modo algum reconheceriam que eles pro-prios, com a sua hostilidade cega, tudo haviam feito para ace-lerar 0 cursu da paralisia que evoluia em Semmelweis.

No ana de 1864, manifestaram-se os primeiros sin tom asinequivocos. Acometido de acessos de choro convulso, Sem-melweis teve de interromper as liy6es, nas quais ressoavaconstantemente 0 tema das suas angustiosas Cartas Abertas.Encerrado no quarto, ele andava dum lado a outro, horas afio, como urn animal enjaulado. Atravessava-se, em plenarua, ua passagem de casais de namorados e exortava-os a queexigissem de medicos e parteiras a desinfecC;ao das maos,quando os consultassem para futuros partos, A menor con-tradi<;ao, Semmelweis enfurecia-se, No mes de julho de 1865,em presen<;a do Colegio de Professores de Budapest, pUXOlldo bolso uma falha de papel e leu 0 texto dum juramenta,pelo qual as parteiras deveriam obrigar-se a esterilizar asmaos e os instrumentos. N a mesma noite, arrancou do her-yO a filha ca<;ula e estreitou-a nos brayos, manifestando 0 re~ceio de que the raptassem a crianya, para a matar,

Na manha seguinte, a esposa desolada escreveu a Hebra,o amigo e ex-professor vieuense do marido, pedindo-Ihe con-selho. A 20 de julho, sob 0 pretexto de que, ao termo de ,tan-tos anos, Hebra queria ve-Io, a senhora Semmelweis conse-guiu levar 0 enfermo a Viena.

Hebra acompanhou pessoalmente 0 ex-discipulo - quenao 0 reconhecera - ao asilo de alienados. Passearam osdois algum tempo, no jardim. S6 ao ser conduzido a cela,Semmelweis complieendeu, num instante de lucidez, 0 queIhe sucedia. Os enfermeiros tiveram de subjuga-Io e de lheimp or a camisa de forc;a.

Pais bem: 0 destino que tanto 0 maltratara, reservava-Ihepelo menos uma morte misericordiosa: Semmelweis morreucia morte que levara 0 seu camarada Kolletschka, it morte da

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qual, na hora da sua agonia, expiravam ll1umeras parturien-tes e vitimas incontaveis de opera<;oes cinhgicas septicds; eoutras muitas continuariam a morrer pOl' muito tempo.

Numa das suas ultimas autopsias em Budapest, Semmel-weis ferira levemente urn dedo. POl' essa lesao insignifican-te entrara 0 mal a ClljA. extin<;ao ele sacrificara a melhor par-te da vida: sepsia generalizada.

~() dia 14 de agosto de 1865, contando apenas qllarenta esete anos, Semmelweis I,I1orreu,delirando de febre. 0 examecadaverico, porem, revelou - simultaneamente com os sin-tomas anatomicos da paralisia -- 0 mesmo quadro que eletivera tantas vezes ante os olhos: inflama<;oes e supura<;oesem tada parle.

o primeiro homem que desvendou 0 segredo da sepsia eda assepsia - as bases em que se havia de erigir 0 futuro dacirurgia - morreu de sepsia.

A major tragedia de Inacio Filipe Semmelweis consistiucertamente em ja estar agindo em Londres, no ana da suamorte, 0 homem que havia de dar a solu<;ao do problema dainfec<;ao e das doen<;as traumaticas 0 impulso decisivo, con-quistando assim fama e honras ilimitadas. 0 nome desse ho-mem, pOl' assim dizer desconh.ecido fora de Edimburgo e Glas-gow, era Joseph Lister, professor de cirurgia da Universidadede Glasgow.

Em principios de 1866, quando ouvi pela primeira vez es-se nome, eu acabava de viver quatro an os indescritiveis, ser-vindo como cirurgiao, na Guerra Civil americana. A minha se-de de aventuras e de experiencia levara-me, nos caoticos pri-meiros meses da luta, ao lazareto do exercito do Potomac, pro-priamente com a inten<;ao de passar alialgumas semanas, ven-do, observando, e continual' depois a minha vida de viagens,de sensa<;oes perenemente novas. A miseria espantosa dos fe-ridos - talvez tambein a influ~ncia do Dr. Lettermann, de \Vas-hington - fizeram das poucas seman as quatro anos. Em ju-nho de 1866, eu vivia, j a licenciado, em \Vashington. Visita-va alguns lazaretos, mas preparava-me a deixar definitivamen-te 0 servic;o, para rever a Europa, ao termo de tantos anos.Justamente nessa ocasiao, recebi de Edirnburgo uma carta deJames Syme, que ja devi<l.tel' entao os seus sessenta anos.

Era a resposta atrasada a que eu the endere<;ara, durantellma epidemia de febre traumatica num hospital de sangue naYirginia. A minha carta a Syme, 0 antigo conselheiro pater-nal da minha primeira visit a a Edimburgo, fora um desabafoda minha irnpotencia desesperada e acusadora entre centenasde moribundos, na epoca em que certas partes do proprio hos-pital de \\'ashington ainda cheiravam muito a pus.

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Syrne passara muito tempo sem responder. Escrevia-me,enfim, laconicamente, como de costume. Contudo, nas suaspoucas linhas, participava-me a sua convicC;ao de que seu gen-1'0, Joseph Lister, estava em vias de pOl' cobro a febre e asdoenc;as traumaticas, bem como a gangrena. Syme salienta-·va que nao se tratava de tentativas feitas a esmo, como as mui-tas ja conhecidas, mas de experiencias ~aseadas nos novos co-nhecimentos sabre as causas da origem das infecc;oes trauma-ticas. Lister vinha obtendo exitos surpreendentes.

Os prop6sitos de acabar com as infecc;oes traumaticas ha-viam sido, no decenio anterior, tantos quantos os seus malo-gros. Todavia, se Syme, cuj as opinioes nunca me haviam en-ganado, se expressava com tamanha certeza, 0 que ele me co-municava merecia atenC;ao.

A falar verdade, no estado de animo em que me encon-trava, talvez eu me interessasse ate pOl' noticias menos sensa-eionais. Mais do que tudo quanto me sucedera vel' ate ai, in-clusive as horas de horror de Escutari, as peripecias da guerracivil me haviam ensinado como fora prematuro 0 jubilo dadescoberta da anestesia e com que inimigo temivel ainda nosdefrontavamos na realidade. Decidi logo comec;ar pOl' Glas-gow a minha projetada viagem a Europa.

Cheguei a Glasgow, no dia 6 de julho de 1866, urn dia nu-blado, apesar de estarmos em plena estio. A fumac;adas cha-mines, fundindo-se em massa suja e amarelenta com 0 nevoei-1'0, pairava sabre 0 casaria e as centenas de milhares de escra-vas das maquinas, homens, mulheres, crianc;as, pacientes ouinsubmissos. 0 fragor dos milhares de martelos de rebitar,nos estaleiros de Clyde, troava incessantemente; perseguiu-meate ao hotel enevoado. Escrevi algumas linhas a Lister; namesma tarde, de convidou-me a visita-lo, na sua residenciJ.sossegada de Woodside Square. A casa ficava a poucos mi-nutos do parque, 0 unico oasis verde, na periferia do casario deGlasgow.

Eu ignorava que, em 1847, quando assistira, na sala. de ope-rac;6es de Liston, a primeira anestesia pelo eter na Europa, Jo-seph Lister estivera bem perto de mim. Tambem nao repara-ra nele em Edimburgo, embora 'ele ja fosse, entao e depois

da minha visita, assistente de James Syme. Talvez 0 fizessempassar despercebido a modestia e a reserva esquiva que Ihevinham da sua educaC;ao quaker. Syme que, segundo a lendanao esperdic;ava uma gata de sangue - 0 que era exato -'tambem era homem de poucas palavras; nunca julgara neces-sario dar-me explicac;6es sobre a sua numerosa familia, Wlgranja maravilhosa de Millbank, ricamente provida de estu-fas para orquideas, ananases e bananeiras. Nunca me fala-ra, em todo caso, do casamento de sua filha mais velha, Agnes,com 0 seu assistente Lister.

Em conseqiiencia, entrei quase desprevenido na sala deestar do casal e vi-me pela primeira vez diante do rosto deli-cado e do olhar serio e bondoso de Agnes Lister. Senti queela est;:tva comovida. No momento, porem, nao compreendipOl' que. Viera procurar junto de Lister urn meio de evasao dosgrilh6es da morte nos hospitais. Eu almejava, queria, espera-va alguma coisa dele; ele nada esperava de mim que era, setanto, urn cirurgiao pratico e, a nao ser na guerra civil, nun-ca praticara seriamente. Nao podia adivinhar que Agnes eJoseph Lister estavam no inicio duma luta pela teoria incipi-ente do professor de cirurgia de Glasgow - luta que se pro~longaria pOl' mais de dez an os ; e 0 numero dos que acreditavamem Lister, ou contavam com ele, ainda era tao diminuto, quequalquer deles - logo, eu tambem - era acolhido como ami-go. AgnesLister desculpou 0 marido, que se atrasara e pediu-me afavelmente que esperasse.

A despeito da sua aparencia calma, Agnes Lister nao eradessas pessoas que escondem urn sentimento sincero.

- Meu marido ficara tao contente!. " - repetiu ela va-rias vezes. - Os colegas dele sao duma indiferenc;a!. .. To-dos acreditam que as condic;6es ora vigentes nos hospitais vemde Deus, ou da natureza, e que nao se deva mudar nada. Ou-tras nao veem nenhum meio senao arrasar os hospitais, comose estes fossem os culpados de toda a mortandade. Acha 0

senhor que meu marido conseguira mudar as cousas? ..- 0 senhor seu pai acredita nele - respondi eu. - Isso

quer dizer muito. Com dezoito anos, fui testemunha da pri-meira aplicaC;ao da anestesia. Ate ai, quase todos os cirurgi6escontentavam-se com pensar que a dol' fizesse parte da cirur-

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gia, que fosse institlli~ao de Deus ou da natureza; e nao admi-tiam a possibilidade de elimina-Ia. Eu era urn deIes... Mas,desde a descoberta da anestesia, deixei de crer em cousas ins-titllidas pela natureza, que em caso algllm possam sofrer al-terac;oes ...

Nesse instante, ell mesmo acreditava nas minhas pala-"ras. Todos nos tendemos para atenuar 0 que nos pode gran-jear antipatia. Calei-me, pOl·tanto, sobre 0 tempo em que eumesmo considerava "born aroma cirurgico" 0 cheiro de po-dridao nos hospitais, porque, "nao degenerando a supura<;aoem febre traumatica, erisipela ou gangrena" a cura era cer-ta. Omiti 0 tempo em que tambem me parecera inevitavelque, ocorrida a "degenera~ao", com a elevac;ao rapid a ou len-fa da febre, sobreviessem a piemia, a septicemia, ou a gangre-na. Preferi guardar silencio sobre a minha aceita~ao da paro-lagem acerca de miasmas e contagio, exatamente como, maistarde, me custava admitir que um acaso fatidico me houvessefeito chegar tilo cedo as maos uma nobcia sabre Semmelweise a sua descoberta da transmissao da febre puerperal pelasmaos e pelos instrumentos dos medicos, e que, apesar disto,eu - verdadeiro filho da velha cirurgia pratica - ainda nil.Guena Civil fizera conscientemente cousas que hoje seriam con-sideradas crime prbneditado, tanto contrariavam os preceitosmais elementares da assepsia.

Lister chegou com cerca de meia hora de' atraso. Paraquem, como eu, vinha a ele com tanta esperanc;a, a primeiraimpressao que me causou 0 seu aspecto foi uma decepc;ao.Lister tinha entao trinta e oito anos e descendia duma proli-fica familia quaker, cujo chefe; John Jackson Lister, era co-merciante de vinhos, num suburbio distante de Londres.

Joseph Lister nao impressionava a primeira vista. A suafisionomia nao tinha ahsolutamente os trac;os dum lutador;era, pelo contrario, 0 rosto dum homem bom ao qual as ini-mizades, as oposi<;oes, feriam a alma.

Lister enxugou a testa suada. Acessos leves, mas cons tan-tes, de transpirac;ao ja 0 constrangiam naquele tempo, comoa gaguez, sempre agravada em momentos de emo<;ao, que 0

tornava mau orador. Notei-Ihe as maos excepcionalmente ma-

Lias. Ele proprio se definiu mais tarde como um homem quea natureza nao agraciara com 0 talento, mas dotado de per-severan~a, de tenacidade e duma coerencia inquebrantavel nopensamento e na a<;ao. Talvez fbsse definic;ao acertada, embo-ra nao se expliquem so com isso as vitorias da sua vida.

Lister confirmou 0 que a sua espasa me anunciara.

- Alegro-me ... - repetiu varias vezes.mui to ...

Mal nos sentamos a mesa do cha, ele comec;ou a interro-gar-me sobre 0 resultados dos metodos de tratamento dosfe-ridos, nos nossos lazaretos. As perdas da Uniiio ainda nao ha-vi am sido dadas a publicidade. Sabe-se hoje exatamente quetomharam no campo 67.000 dos seus partidarios; mas tambemse salle com a mesma certeza que outros tantos, isto e 67.000doentes e feridos mOl:reram nos hospitais. Sobre as baixas dosEstados do SuI, nem mais tarde se divulgaram dados exatos.Entretanto, os calculos provisorios relativos ao exercito doPotonwl: e a minha experiencia pessoal bastavam para trac;arlllll Cjuadro dos hospitais.

Estabelecida certa ordem no estado caotico dos mcsmos eestando disponivel pelo menos a metade do numero necessa-rio de cirurgi6es, nao haviam faltado entre nos experienciasde tratamento, as quais - como scmpre acontece quando hitincerteza sabre as causas dos processos morbidos - propostase realizadas anualmente, em numero assustador, pOl' cirur-gi6es eUl·opeus. Todo inventor se proclamava coroado pelosucesso; no fim, eram sempre decep<;6es. A velha doutrina, queatribuia as supurac;6es de ma indole ao aI', contava com bomnumero de' adeptos, nos hospitais da guerra civil. Tentara-se.de conformidade com os metodos de Chassignac e de Guerinna Franc;a, vedaI' os ferimentos com borracha e aura em fo-lhas, para os isolar do ar atmosferico. Cobriam-se os cotos dasamputa~6es com toucas de borracha, inventadas entao nn.Fran~a e munidas de bombas de succ;ao que expeliam 0 ar.Experimentaramos as pastas de algodao de Guerin, aplicadasdiretamente ao ferimento e conservadas semanas inteiras, pa-ra obstaI' a penetra<;ao do aI', durante a substitui<;ao das ata-dUl'as; 0 cheiro horrivel do algodao sujo, encharcado de san-

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gue e pus, tornava-se intoleravel, empestava as enfermarias.E os exitos positivos eram minimos. Tambem se consultaramos cirurgioes franceses que, em razao das curas bem sucedi-das de feridos do exercito napole6nico no Egito, isto e numclima quente, atribuiram ao calor uma influencia contraria amanifestac;iio de infecc;oes purulentas. Contudo, nao adianta-ram as caixas termicas de Guyot nem os banhos quentes deMayor de Lausanne. Contrastava radicalmente com isso 0 tra-tamento mediante banhos gelados, metodo do alemao yon Es-march de Kiel, cujos resultados tambem foram insignificantese, em todo caso, de natureza mais ou menos casuaL 0 trata-mento mais eficiente ainda foi 0 "tratamento aberto" do vie-nense Kern, metodo assim chamado, porque em· oposi<,:ao di-reta ao de Guerin, nao cobria 0 ferimento; deixava-o exposto,sem atadura. Finalmente, os novos hospitais de vVashington,construidos durante a guerra, adotavam 0 que se denominava"sistema de pavilhoes·"; certas experiencias de lazaretos em bar-racas e tendas, arm ados as pressas ao ar livre, no campo, au-torizavam a sup or que a distribuic;ao dos feridos em locais se-parados, evitando assim a promiscuidade da aglomerac;ao, obs-tava ao surto e a propagac;ao da febre traumatica,. da erisipe-la, da grangrena e do tetano. Dispunham-se os pavilhoes, demodo que na,a ficassem· um atras do outro, na direc;ao do ven-to, a fim de evitar Clue 0 ar mefitico passasse duns aos outros.

Lister mostrava-se particularmente interessado pelos re-sultados dessas instala<,:6es. Interrogava-me:-- a mim queviera aprender com ele uma forma nova e eficaz de trata-mento - com uma circunspec;ao que, a principio, me irritou.

- Vi muitos hospitais - disse eu. - Estive na segundabatalha de Bull Run, em Antietam, em Gettysburg, em Chatta-noog e nas regioes despovoadas da Virginia. Em Washing-ton, servi um semestre, no nosso pavilhao-hospital de Judia-ry Square; mais tarde, no Armory-Square Hospital. As infec-c;6es traumaticas apareciam em tada parte, embora com in-tensidade diferen te. Sou de pa1'ecer que a distribuic;ao empavilhoes tambem nao e meio seguro de combater esses ma-les. POI' islo 0 procurei, ..

Mas Lister ainda nao chegara ao unico ponto que me in-te1'essava.

- Atualmente, esse modo de vel' tem iludido n~uita gen-te, na Europa - disse ele, num tom quase doutoral. - Des-de certo tempo, born numero de ci:entistas sao de fato de opi-niao que, em virtude do numero crescente de enfermos, oshospita~s se converteram em verdadeiros focos· de febres; econcluem que s6 resta um recurso :ar1'asar todos os hospitaisantigos existentes. A experiencia de que, nas ope1'ac;6es rea-lizadas em casas particulares, especialmente fora' das cida-des, as infecc;oes traumaticas sao muito mais raras, e fatoirrefutavel. Mas demolir os hospitais, para banir do mundoas doenc;as, seria 0 mesmo que, para matar 0 porco, incen-diarmos 0 estabulo. 0 Professor Simpson que, grac;as a des-coberta do c1orof6rmio, granj eou tamanha benemerencia, ul-timamente vem reunindo ell! tomo de si, em Edimburgo, ho-mens que pretendem queimar os nossos hospitais e levantar,no lugar deles, guaritas de ferro com espac;o, se tanto, paradois ocupantes. Nao me parece rumo acertado, , .

Lister calou-se, como se the parecesse que falara demais,ou fizera alguma afirmac;ao demasiado categ6rica. Mais tar-de, quando me foi dado avalia1' a sua grande timidez e dis-crec;ao, essa interrupc;ao, justamente no mQmento em que ereia exprimir a sua opiniao, ja nao me .pareceria tao estranha.Lister temia qualquer precipitac;ao, qualquer tese que nao pu-desse comprovar salidamente. Coube-me, pois, encetar eumesmo 0 tema pelo qual me encontrava em presenc;a dele.Colhi, portanto, 0 ensejo que me ofere cia a sua ultima frasebreve e positiva:

- Equal e 0 caminho certo?

A minha interpelac;ao brusca talvez the pareeesse um tan-to americana. Fosse como fosse, ele a acolheu ate com cer-to alivio e convidou-me a visitar a sua enfermaria.

A Universidade de Glasgow estava entao situada na zonamais antiga da cidade, onde se ergueria mais tarde a estac;aode St. Enoch, no quarteirao miseravel onde 0 proletariadoirlandes vivia e procurava afogar a magua da sua existen-cia irremediavel, nas tabernas dos dois lados das vielas es-treitas. Em pleno dia, os ebrios jaziam nas sargetas - entreeles, mulheres com lactantes agarrados ao seio. As carroc;as

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A carruagem parou no patio do casarao avermelhado dt}hospital. Lister apeou e atravessou a passos rapidos em di-recao a entrada, 0 grupo dos estudantes que 0 saudavam.Uma parte do edificio era de constru<;ao recente. Subimos aescada larga. No pavimento superior, 0 unico andar do pr6-dio, as portas correspondialll a duas salas espa<;osas e a al-gumas pec;as men ores. Lister parou finalmente it porta dumadas salas.

Voltou-se para mim e olllou-me com uma expressao qLIeme ficou gravada na memoria. Era 0 olhar dum homclll .quetenl 0 sucesso nas maos e, no entanto, receia contlnuumenteUlll imprevisto que Ihe torne a arrebatar a exito conquistado.Tornei a notal' as gotas de suor que the emperlavalll a testa.Ele enxugou-as com um geslo irresoluto e disse:

- Queira entrar.Abriu entao a porta.Avistei uma sala guarnecida de leitos, separados lIns dos

outros, iluminada pOl' janelas de dimens6es excepcionais na-quele tempo. 1\1al dei 0 primeiro passo 18.dentro, uma scnsa-<;ao esquisita me fez parar de repente. So ao chegar il meta-de da distancia que me separava dos leitos, para ondc LisleI'se dirigia tive subitamente a intui<;ao do que havia algo deinsolito naquela sala, que a distinguia de tadas as eufcrma-rias que eu conhecera em. anos anteriores: 0 cheir().

Estaquei maquinallllente e voltei onariz, farej ando, emtodas as direc6es. Nesse ambiente, nao adejava 0 cheiro ado-cicado, repugnante nas formas pim'es, que impregnava [udo,que perseguia os cirurgi6es nas suas proprias casas, 0 cheirode pus que, ate esse dia, eu nunca deixara de sentiI' em ne-nhum hospital, em nenhuma sala de opera<;6es, em nenhumaenfermaria. Nao 0 sentia ali; ou entao, 0 abafava outra ema-na<;ao desconhecida, medicamentosa.

Lister chegara ao primeiro lei to.- Aproxime-se, pOl' favor - disse, voltando-se para mim,

num tom que pretendia ser indiferente, se bem que nele vi-brasse uma tensao incoercivel. .

Talvez, nesse instante, the passasse despercebida a mi-nha expressao de estranheza.

-- Aproxime-se mais - insistiu Lister.J azia nesse leito um rapaz de aparencia robusta, eviden-

temente urn operario. Levantou para 0 cirurgiao os olhoscheios duma devo<;ao agra·decida. Estendeu-Ihe a mao, paraque ele the tomasse 0 pulso, pas de fora uma lingua de aspec-to sadio.

- Este e John - disse Lister. - Internado no dia 19 demaio, tres horas depois de sofrer um acidente grave, numafundic;ao de ferro. Urn recipiente de ferro, cheio de areia, pe-sando meia tonelada, caiu-Ihe sabre a perna, fraturando-Ihea tibia e Ci peranio, em conseqiiencia do que a tibia ficou ex-posta entre os musculos estra<;alhados. Que faria 0 senhor,se fosse 0 cirurgiao assistente, num caso destes?

Para responder a essa pergunta, de acordo com 0 modode verda epoca, nem havia necessidade de refletir. Era opi-niao aceita que, so em casos simples de fratura exposta, hO,-via esperan<;a de salvar 0 membro lesado. Na area trauma-tica da grande maioria das fraturas expostas, a infec<;ao trau-matica, ou a gangrena manifestavam-se de ordinario 110 pra-zo maximo de tres dias. Uma e outra impunham a amp uta-<;8.0,para salvaI' ao menos urn coto de perna. Naturalmente,quando nao fosse demasiado tarde.

Respondi, portanto:- Eu amputaria imediatamente.Sem dizer palavra, Lister descobriu os membros inferio-

res do paciente. E eu tive a surpresa de nao tel' ante os olhoso quadro que, em casos desse genero, observara centenas devezes. 0 que vi nao era 0 res to dum membro amputado.

Diante de mim estavam duas pernas, uma delas vislvel ..mente mais fina e mais fraca do que a outra, com a parte in-ferior coberta pOI' uma folha de estanho. J a ao ser arrega<;a-do 0 cobertor, nao me chegara as narinas 0 minimo cheirode pus, 0 cheiro sem 0 qual eu nao concebia a existencia du-ma ferida. Senti, isto sim, mais intenso do que antes, 0 aro-ma quimico-medicamentoso.

Lister curvou-se profundamente sobre 0 enfermo. Reti-rou com cuidado extremo a folha de estanho e, em seguida,

do. policia, aonde os guardas os arremessavam, os removiallldali.

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uma gase recheiada de algodao empastado de sangue e soro,a ponto de parecer uma crosta.

No instante em que a ferida ficou a mostra, Lister endi-reitou-se um pouco e olhou-me com uma fisionomia em quea tensao desaparecera subitamente, cedendo 0 lugar it satis-fac;ao, ou melhor: a uma expressao de verdadeira felicidade.

Eu mal reparava nessa transformac;ao das suas feic;6es.Absorvia-me demais 0 aspecto do ferimento. Em vao eu pro-CUl'ava nele 0 pus. Nem a menor supurac;ao malsa! Maisainda: tao pouco 0 menor sinal do pus alvissareiro, desde mi-lenios tido em medicina como prenuncio de cura e, ate ai,salida parte integrante do meu pensamento e da minha ac,ao.Em vez disso, eu verificava, sobre a parte da tibia ja rosea cconsolidada, 0 aparecimento duma granulac,ao de aspectoperfeitamente sadio.

- Ou e urn acaso feliz - murmurei - ou e milagre ...Lister nao respondeu. Acenou a urn jovem medico, em

cuja presenc,a eu nem tinha reparado.- Apresento-lhe 0 meu interno de cirurgia, 0 Doutor Mc-

Fee. Enfaixe como estava - prosseguiu, dirigindo-se ao as-sisten te. - Continuemos? - acrescentou, voltando-se de no-vo para mim.

Anui, em siH~ncio. Nao me seria possivel formular limapergunta; nem sequel' me sentia capaz de dizer uma palavl'i.l.

Lister ultrapassou 0 pedestal circular onde assentava acoluna que sustentava 0 teto. Chegou-se ao leito seguinte.Estava ali urn menino duns dez anos, uma dessas crianc,as dobairro opera.rio de Glasgow, que em vez de brincar acompa ..nham os pais as fabric as, porque tern a fome no encalc,o.

- Born dia, James - disse Lister.o garoto sorriu, com 0 riso comovente, com 0 riso a pro-

va de dol' dos pequenos da sua idade.- Tudo bem? - continuou Lister, com a mao no pulso

esquerdo do rapazinho.-- Sim; muito bem - respondeu uma vozinha rouca.POI' eima do ombro de Lister, olhei 0 bra<;o esquerdo do

menino, envolto em ataduras e estendido na colcha. Estavainteiro. Embora dessa vez Lister' nao se voltasse a olhar-me,

do que Ihe podia vel' dos movimentos dos musculos da nucadeduzi que 0 dominava a mesma tensao de pouco antes, aope do leito do fundidor.

- James esta conosco, desde 0 dia primeiro de maio - in-formou Lister. - Nesse dia, 0 brac,o direito ficou-lhe presoentre urn torno e uma correia motriz. So foi possivel p~rara maquina ao termo de dois minutos. 0 antebrac,o ficara to-do rasgado; as partes musculares caiam em frangalhos, tan-to que tiveram de ser parcialmente cortadas; os dois ossos doantebrac,o estavam quebrados e uma polegada do cubito saiapelo corte; exigiu anestesia. Em tudo e pOl' tudo, um casomuito grave. Concord a comigo, se the disser que, segundo osnossos conceitos atuais, 0 garbto estava destiqado a ser vitimada febre traumatica, ou da ,.gangrena?

- Naturalmente! - afirmei.

Lister dizia a verdade. Cirurgiao algum tentaria salvaI'aquele brac,o fragil de crianc,a; qualquer cirurgiao tratarialogo de amputar quanto antes.

- Agora vai vel' - murmurou Lister, retirando a atadu-ra, uma fblha metalica e depois 0 algodao empapado em san-gue e soro, mas absolutamente isento de pus, que cobria aferida e, nas O1'las, pouco sobressaia da epiderme sa.

POI' longo instante, enquanto me curvava pOl' cima doombro de Lister, nem me animei a respirar. E, pela segundavez, totalmente desconcertado, cravei os olhos num ferimen-to limpo como nunca vira - posso afirmar - em casos anci-logos. Nem sinal de supurac,ao, nem 0 menor mau cheiro,nem sombra de inflamac,ao ou da suj a saburra acinzentada!Em lugar de tudo isto, mais uma vez a granulac,ao sadia, 1'0-

sada, preenchendo a maior parte da lacerac,ao horrivel, sal-vo num cantinho onde ainda estava a vista 0 cubito, masigualmente roseo, sem a corrosao livida dos ossos gangrena-dos.

Enquanto eu debatia comigo mesmo 0 pressentimento deque desmoronava em mim urn mundo de conceitos, para darlugar a outro mundo de ideias novas, e procurava salvar-mena plataforma do "aeaso''', entrou Me-Fee, trazendo numa ba-cia urn liquido levemente colorido do qual se evolava 0 aro-

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ma singular, novo, medicamentoso, que impregnava a atmos-fera da sala.

Entretanto, Lister chegara ao terceiro leito. E eu vi aliontro rostinho ptUirlo e emaciado de crianc;a - de garoto ane-mico, esfaimado, exausto, com uns 'olhos desmesuradamenteabertos, esgazeados, tristes - como s6 0 sabem ser olhos {Iecriany9. -- inexpressivos e fixos.

__ Este e Charlie - disse Lister, em voz baixa, passandoa muo na testa do menino. - En gostaria de the perguntar;como agiria 0 senhor, em sa consciencia, se Ihe lrouxessemeste garoto? Duas rodas dum onibus cheio de passageirosllassaram-lhe sobre uma perna, no dia 23 de junho. Frattl-1'a da tibia e' do per6nio; os fragmentos dos ossos, acumula-dos num talho extenso e muito fundo. Em conseqiiencia dochoque e da perda de sangue, 0 menino estava desacordado.o pulse com 168 pulsac;i5es, con tad as a muito custo.

Lister esperou em vao uma resposta; dadas as ideias ge-ralmente aceitas naquela epoca, era dificil responder a suapergunta. Baseando-me nos meus conhecimentos : na mi-nha experiencia, eu nao tentaria sequel' a amputac;ao; 0 g~-rota nao a sllportaria. Restava s6 a resignaC;ao, a expectatl-va desolada de vel' aparecer naquele rosto infantil os sintomassinistros da gangrena ou da febre traumatica. Talvez. rest as-se tambem a esperanc;a dum fim rapido emisericordlOso.

E de erer que Lister nem esperasse resposta, porque jaa conhecia de antemao. Arregac;ou as cobertas e desfez a ata-dura lentamente, quase hesitando. Dir-se-ia que ao pe desseleito mais do que junto dos outros dais, ele receava um im-previsto, uma ameac;a as suas esperanc;as, a sua <:onvicc;ao.Mal descobriu 0 ferimento, um suspiro leve, quase Impercep-tivel, urn suspiro de alivio, escapou-lhe dos labios.

. A ferida era enorme; e os dois extremos da tibia apare-ciam, soltos - a extremidade superior, j a em parte cobertade granulac;i5es; a inferior, esbranquic;ada e morta, como osinumeros ossos que eu vira nos hospitais de sangue, separan-do-'se dos ossos vivos, sob uma violenta supurac;ao. Entre-tanto, na tibia do garoto nao se me ceparava trac;o algum depus.

- Quando nao se manifestar na ferida nenhum processopurulento, 0 organismo reabsorve os pr6prios ossos sem vi-da - disse Lister.

E repetiu a mesma frase, devagar, pala-vra pOl' palavra,como se formulasse um conhecimento novo que s6 nesse mi-nuto se lhe revelasse coni clareza.

- Eu nao tinha muita esperanc;a de salvar este menino- continuou. - Mas creio. '. que ele vivera. Sim: ele vive-ra - acentuou, com alegria comovente; uma alegria de cri-anc;a.

Sao tambcm os meus votos - disse eu, igualmente co-movido. - E creio, como 0 senhoI'. Mas aqui me vejo entreenigmas. Sert't aeaso ou milagre?

- Eu mesmo ainda nao "sei, .. - tornou Lister. - Espcl'oque sej a milagre; e espero novos milagres todos as elias. Masainda nao sei ...

Calou-se urn instante, observando osFee que substituia a atadura do menino.do-se de vez, concluiu;

- Venha. Queriapoderei clizer-lhe mais

movimen tos de Mc-Depois endireitan-

acompanhar-·me ao meu gabinete.sobre 0 que acaha de vel'.

o gabinete de Lister era c.ontiguo a sala de cirurgia, notorreao oeste do edificio da Universidacle de Glnsgow. Poucodepois, estavamos la; eu, encostado it j anela; Lister, undandodum lado a outro, com 0 seu passo dpido. Entao - gague-jando a principio, depois com vt'trias pausas - de me exposem que con sisti a 0 seu metodo dc tratamento e 0 modo comochegara as suas experiencias. E 6bvio que nao poclerei trans-creveI' textualmente 0 que ouvi .. Limito-mc a parafrasear :::l

exposiC;ao que Lister comec;ou mais ou men os assim;- Sempre me preocupei com 0 problema dus supllrac;6es,

da inflama<;ao, das infecc;6es traumatic as. Quando estucavaem Londres com Erichsen, de pendia deciclidamente para ahipotese de que os gases' e miasmas da atmosfera dos hospi-

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tais, penetrando nos ferimentos, geram fermenta<;:ao e putre-fa<;:ao. Erichsen calculava exatamente a quantidade de gase de miasmas que 0 ar po de conter, sem ser perigoso. Eu, po-rem, comecei a duvidar da teoria dos gases em 1849, quandotivemos em Londres urn sur to de gangrena hospitalar entre0[, operados. So urn recurso nos valeu, embora esporadica·-mente: a cauterizac;ao dos ferimentos, com pedra infernal.Mas a pedra infernal nao podia atacar gases; servia, no ma-ximo para extirpar alguma cousa que estava nas feridas. Eu,pelo men os, pensava assim. Mas poderiam objetar-me natu-ralmente, que a pedra infernal interrompia 0 processo putri-do origin ado pelos gases.

Lister apressara 0 passo e falava com mais fluencia:

__ Eu fazia entao ex ames microscopicos de tecidos gan-grenados e descobria neles certos corpusculos de tamanhoquase sempre invariavel, uma especie' de formac;ao fungo-sa. Nao aprofundei essas pesquisas e dediquei-me a outras in-vestiga<;6es. Depois, come<;ou 0 meu tempo em Edimburgo.Mais tarde, foi a transferrncia para ca. Em todo esse tempo,nao me afastei da rotina, no metodo de tratar ferimentos.Ha mais ou men os ano e meio, Anderson procm·ou-me. An-derson e professor de quimica em Glasgow. Eu me entretive-ra frequ.entemente com ele, a respeito de enfermidades trau-maticus e do fato de acusarem elas certa semelhan~a com adecomposic;iio da carne morta e a fermenta<;:iio e l~utrefa<;:aodoutras substfmcias. Nessa ocasiao, Anderson trazla-me urnartigo extraordinario que lera, no numero de junho de 1863cia revista francesa "Comptes Rendus Hebdomadaires". 0 ti-tulo do artigo era: "Recherches sur la Putrefaction" - "Pes-quisas Sobre a Putrefa<;:ao". 0 nome do autor, Louis Pasteur.Conhece-o?

Tive de confessar entao que nao conhecia Louis Pasteur.

_ 0 senhor ainda vira de certo a ocupar-se dele - pros-seguiu Lister. - Deve ser urn grande quimico, urn homem do-tado duma imagina<;:ao fora do comum, capaz de se oriental'numa parte do nosso mundo, que para nos ainda e, em 'todosos sentidos, muito escura para ser perscrutada. Foi aqui mes-mo, neste gabinete. Anderson estava ai, onde 0 senhor esta

agora; deu-me urn breve resumo do conteudo do artigo dePasteur. Ou melhor: uma breve sintese da quinta-essenciadesse escrito. E, enquanto de falava, ocorreu-me uma ideiadefinida. Vou resumir-Ihe, por minha vez, 0 que Pasteur des-cobriu. Em 1863, ja fazia tempo que ele se vinha ocupandocom a pesquisa dos processos· de fermentac;uo; e, com os seusmeti'culosos ex ames microscopicos de substancias fermentan-tes descobria de continuo minusculos seres vivos, cujo Illlme-ro se multiplicava as vezes da noite para 0 dia, em escala co-lossal - multiplicac;iio que soia ser acompanhada duma in-tensificac;ao dos processos de fermentac;iio. Pasteur concIui'ldai que esses organismos microscopicos podiam ser causa defermentac;ao e de putrefac;ao. Onde houvesse fermentac;ao eputrefac;iio, apareciam esses microrganismos, sob diferentesform as. Pasteur averiguou que, submefendo as materias fer-mentantes a ebulic;iio, au ate aquecendo-as fortemente, cessa-va de golpe 0 desenvolvimento dos seres microscopieos. Afer-ventando 0 leite, ou 0 vinho, por exemplo, impedia-se a fer-mentac;ao que se observa comumente nesses liquidos. A tesede' Pasteur, que apresentava como causa de fermentac;iio e pu-trefac;ao microrganismos de especie desconhecida, suscitollnos meios tecnicos violenta contradic;ao. Afirmava-se -- econtinua-se a afirmar na propria Franc;a - que esses' seresmicroscopicos (admitindo que existam) nao suo a causa e 81muma consequencia das fermentac;6es, por assim dizer a con-sequencia de novas combinac;6es moleculares de varia8 espe-cies. A esse repudio da sua teoria, Pasteur respondeu conti-nuando 0 seu trabalho e, finalmente, com uma experienciaque, pelo men os na minha opiniao, refutol! os seus adversa-nos.

Lister, continuando 0 seu v'aivem, chegou-se a U1llU mesa,tirou duma p~sta um papel e mostrou-me nele 0 desenho dumbojudo garrafao de vidro, de gargalo muito comprido e fino.No extremo superior, 0 gargalo curvava-se levemente paraum dos lados e descia quase ate a altura da mesa em quepousava 0 recipiente; dali voltava para cima e terminava numorificio aberto.

- Com este garrafao - continuou Lister - Pasteur pro-YOU que os microrganismos ou microbios, geram fermentac;ao

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e putrefa<;ao. Cumpria-lhe provar que urn liquido s6 come-ca a fermentar, se de fora certos micrabios viel'em tel' com~le. Se conseguisse prova-lo, estaria refutada a teoria con-traria de que os micr6bios nascem espontaneamente da fel'-mentacao. Em conseqiH~ncia, Pasteur encheu 0 bojo do gar-rafao ~om molho de carne, ou com leite, e ferveu-co. N adaocorreu. Nau houve fermenta<;ao. Se quisessem chegar aoleite, ou 8.0 molho de carne, de fora, isto e, pOI' meio do ar edas suas particulas de poeil'a, os micrabios teriam de passarpelo comprido gargalo do garrafao. Pasteur calculou que, nolabirinto do gargalo de vidro, os micl'abios pereceriam e naochegariam ao bojo do garrafao. Assim sendo, a fermenta<;aoso se operaria, inclinando 0 recipiente, de modo que 0 seucontelldo liquido con"esse no gargalo, ate a curva profundaonde, segundo a hipatese de Pasteur, as micrabios ficavam re-tidos. Ele colocotl 0 garrafao na posi<;ao conveniente, e espe-rou. Nao teve de esperar muito: ao tel'mo de pouco tempo,descobriu microrganism.os, no conteudo do garrafao esteriliza-do peIa fervura. Os micr6bios multiplicaram-se com rapidezprodigiosa e prodllziu-se a fermenta<;ao.

Lister fez nova pausa. Os cabelos castanhos, luzidios, co-lavam-se-lhe as temp or as; os seus olhos cas tanhos claros pers-erutavam.me, querendo evidentemente indagar se eu 0 com-preendia, se 0 seguia naquele seu mundo novo; se, antes detudo, me dispunha a entrar na ponte que ele estendeu logodepois, entre a descoberta de Pasteur e 0 seu trabalho.

Eu, pon~m, gra<;as a un:. desses momentos m{lgicos de ilu-mina<;ao improvisa, que nos esclarecem de quando em quan·do trevas que, dantes, nos pareciam impenetnlveis, j a entra·ra na ponte _. nao sem certa sensa<;ao de receio. E Lister tal-vez 0 estivesse lendo na minha fisionomia. .

__ Paz ideia do que £oi? -- continuou Lister. -- Imagineo que se passou em mim,. no instante em q:le vim a. saber ~adescoberta de Pasteur? Lei. estava 0 garrafao, atraves de cUJogargaIo entravam micrabios geradores de putrefa<;ao, paraprovoca-la. Aqui, no hospital, jaziam os doentes cor:n. fratu-ras expostas, morrendo regularmente de febre traumalIea, degangrena, enquanto as fratm'as simples saram sem supura~',sem gangrenar Impunha-se 0 paralelo de que as mesmos n1l-

cr6bios, ou micrabios semelhantes, geradores de putrefa<;ao,se insinuam nas les6es abertas, infeccionando primeiro a fe-rida, depois todo 0 organismo. A partir desse instante, ellpensei em demonstrar que a supura<;ao \raumiltica, a gangre-na, a piemia tambem poderiam ser provocadas pOl' micr6biosClue penetrassem nas 1..;s6es. Demonstra<;ao mllito dificil, por-que eu nao poderia ferver feridas; tao pouco as poderia re-fundir na forma do gargalo arqueado do garrafao. Cumpria-me escogitar outro fiItro que vedasse aos supostos micr6bios() caminho para 0 ferimento.

Lister voltou a mesa; apanhou urn peda<;o de certa ml1-teria consistellte, alcatroada, de aroma penetrante.

- Poueo depois de tel' lido 0 artigo de Pasteur - pros-seguiu ele - tive conhecimento de que, nos campos de irriga-<;ao (Ie Carlisle, certa Doutor Crooks conseguiu eliminar 0

cheiro de poclriclao dos valos, com uma substflllcia quimica.Esta e 0 feno], ou acido carb6lico, obticio do alcatrao de hu-Iha; ULIui0 tern no estado solido, nao dissolviclo. Da elimi-Ila<;ao do mall cheiro, deduzi que a precedeu, sem duvida, ()exterminio dos micrabios, segundo Pasteur geradcres de pu-trefa<;:ao. Essa mortandade, em suma, so poderia ser opera··<Ia pe]o acido carbalico Oll ei.cido fenico. Se eu cobl'isse a fe-rimento com uma substancia embebicla em fenol, talvez a ata-dura fizesse as vezes do gargalo de garrafao de Pasteur, istoc: agisse como urn filtro, para manter os micrabios a distan-cia da lesao, Foi este a meu encadeamento de ideias; e tam-bcm e tudo quanto tenho para the dizer, pOl'que venho agin-do de acordo com este plano; e nao sa nos casas que acabo'lde vel'. De todos os pacientes tratados pOI' este metoda, alehoje so perdi um; e esse, porque escapara a ateI~<;ao uma le-sao secundaria e ela nao fora protegida com fenol. Todos osdemais curaram-se, E nao s6 nao tiveram gangrena nem fe-brc lraumatica; as suas les6es sararam, na maior parte, semsupurar, donde e licito desconfiar de que 0 conceito do pmsalutar, prenuncio de cura, assente em bases falsas. Os mila-gres a que tenho assistido aqui, ate agora, san tao gran des,que ell mesmo me vejo obrigado a duvidar. Toda substitui-~>5.() de atadura come<;a com estas duvidas. Elas, porem, sedissipam cad a vez mais, Ja nao encontram alimento.

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quieo, apos 0 exito do seu tratamento do Rei Leopoldo da Bel-giea, sentava-se ao meu lado. Junto dele estava Syme, jamuito eoneeituado em Dublin. Nao longe de nos, na frente,a esquerda, reeonheei 0 vulto possante e obeso de James Simp-son de Edimburgo.

Nesse momento, porem, nao experimentei a estranha sen-saC;ao de estar eaptando 0 fluido singular de hostilidade queestava habituado a sentiI', tbda vez que Simpson e Syme seencontravam. Tambem me perturbava 0 constrangimento quesempre me tolhera, noutro tempo, durante esses encontros,como objeto que fui da protec;ao - direi mais: da amizadepaternal desses dois homens. T6da a minha atenc;ao conver-gia, Hesse minuto, para 0 momento em que os congressistascomec;ariam a ouvir, dos labios de Lister, a historia dos mi-lagres que eu verificara em Glasgow. Eu chegara a Dublin,vibrando da certeza de assistir a um triunfo memoravel, comovinte anos antes, quando nascera a anestesia pelo eter. Ce-dia a urn dos equivocos padronizados da nossa vida. Comoestava convencido, acreditava piamente que os demais se dei-xariam convencer com a mesma facilidade. Gotas de suorrorejavam a £ronte de Lister. Vi os musculos do pesco<;o, ten-sos como quando ele se preparava a dominar as fortes inibi-c;6es que Ihe estorvavam a elocuC;ao. Fazia mais dum ano queLister me precedera pela primeira vez, na visit a a sua enfer-maria, em Glasgow. Desde entao, ele sofrera reves'es, mastambem obtivera vitorias. Aprendera silenciosamente a pre-parar soluc;6es de acido carbolico dosadas para produzirem C)

seu efeito, sem irritar os tecidos, como ocorrera varias vezes,no principio. Aprendera a colocar entre 0 ferimento e a ata-dura com fenol uma camada de "material protetor", a fim deque 0 antisseptico impedisse 0 caminho da lesao aos gennesameac;adores externos e fosse isolado dos tecidos. Pelo menosera assim que eu imaginava a ac;ao da camada protetora deLister. Apos os seus primeiros sucessos, no tratamento antis-septico das fraturas expostas, ele experimentara 0 seu siste-ma em cas os duma enfermidade cirurgica quase mais peri-gosa: 0 abcesso do musculo iliaco.

Repletos duma supurac;ao de indole particularmente ma-ligna, esses abcessos conduziam infahvelmente a mortc len-

Parece-me, ainda hoje, muitas vezes, que 0 vejo diantede mim, no momento em que se dirigia para a tribuna: bai-xo, de aparencia modesta, casaca preta e calc;as pard as, a ca-beca levemente inclinada, com a timidez que nunea 0 aban-do~ou. Levava na mao 0 seu manuscrito: "Sobre 0 PrincipioAntisseptico, na Clinic a Cirurgiea".

Era 0 dia 9 de agosto de 1867, em Dublin. A "BritishMedical Society" realizava ali 0 seu trigesimo quinto congres-so anual na Irlanda, sob a presideneia do Dr. Stoekes, da Uni-versidade de Dublin, na sede do Trinity College, edifieio, pa-ra aquela epoca, belo e monumental.

Estava-se no quarto e ultimo dia do congresso, inaugura-do a 6 de agosto, com a participac;ao de varias centenas de me-dicos ingLeses, escoceses e irlandeses, bem como de variosprofissionais estrangeiros.

As primeiras conferencias da chamada sec<;ao cirurgicahaviam terminado. George Southam falara sabre calculos ve-sicais. A minha atenc;ao concentrava-se na pr6'xima prelec;ao,a de Lister que, nesse momento, subia os degraus da tribuna,a fim de comunicar aos corifeus da medicina do seu pais -apos varias publicac;6es anteriores, pouco apreciadas e malcompreendidas, na revista "The Lancet" - a sua descobert-ldo tratamento antisseptico dos ferimentos.

Eu deixara Londres na manha de quinta-feira; emprega-ra na viagem de vapor, de Euston-Square e Kingstown e dalia Dublin, cerca de onze horas. J a desde quatorze dias, vinhasofrendo de colicas biliares; nada, porem, me demoveria deassistir, a estreia de Lister. So gra<;as a Syme, e sobretudo aSimpson, tive a sorte de conseguir urn Jugal', numa das pri-meiras filas. Thompson, agraci'ado com urn titulo nobililH-

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ta, pOl' piemia au septicemia, quando se aguardava que desse rasgassem pOl' si mesmos. Mas, lancetados com bisturi,acelel'avam com virulencia sinistra 0 fim dos pacientes. Lis-ter abalan<;ara-se a abri-los, sob a prote<;iio do fenol e cominstrumentos lavados na mesma solw;iio. Depois duma noi-te em claro, achara 0 abcesso desinchado em vias de se cica-trizar, sem febre, sem a mortifera secre<;iio purulenta. Ain-ria assombrado, Lister lancetara outro abcesso e colhera ou-tro exito. A datal' dai, as experiencias se haviam sucedid'Jumas as outras. Lister estendera a aplica<;iio do seu metod!)a ou tros casos cirurgicos de varias especies. IncisBes cirurgi-cas recentes - depois da abla<;3.o de tumores, pOl' exemplo ---saravam sem complica<;Bes. E Lister perguntava a si mesmose, cicatrizando-se os talhos sem supurar, ainda seriam prcci·sas as complicadas laquea<;Bes com que ate ai se obliteravamos vasos sangllineos, nas interven<;oes cirurgicas. Ainda se-ria necessario deixar pendente da incisao cinhgica a pontasolta da ligadura, a maneira de condutor de pus, para serpuxada, quando afinal apodrecia? Num futuro proximo, es-tando eliminado 0 perigo de supura<;ao, nao seria preferiveleorlar a ligadura hem rente ao vasa atado e conjurar assimas perturba<;oes que eIa nao podia deixar de causal', duran-te a cicatriza<;iio do talho? Kao haveria meio de inserir sim-plesmente, no COl'pOdo operado, um material qualquer, em-bebido em acido carb6lico, uma substancia suscetivel de serabsorvida pelos tecidos saneados, mesmo depois de cicatriza-cIa a incisao superficial? Lister iniciou imediatamente as ex··periencias; e vinha obtendo sucessos que se the afigllravnlllauspiciosos.

Mas todos t'sses cxitos talvez nao 0 convencessem a to-mar 0 caminho de Dublin, a vencer a sua reserva, 0 seu es-crupulo quase excessivo, a sua aversao a discutir. 0 desti-no, porem, impusera-lhe pOI' assim dizer uma prova singular,dernasiado assinalada, do acerto da sua tecnica. ~ a prima-vera de 1867, uma sua irma mais velha, Isabel Sofia Lister, dequarenta e dois anos de idade, adoecera de cancer no seio.TocIos os cirurgiBes consultados, inclusive Syme, negavam-sea praticar a opera<;ao. Depois da descobertada anestesia, aatividade da cirurgia, a principio' mais desassombrada sob a

protel:ao da interven<;ao indolor, evidenciara caaa \'ez maisque a extirpa<;ao do cancer do seio, para ser duruvel, tinha deser completada com a extirpa<;ao dos feixes de musculos edas gliindulas axilares. Essa opera<;ao radical, em. quase to-dos os casos tenninara pela morte, porqne a incisao enorme,que se fazia necessaria, lhe' ahria carninho, no cor]lo das pa-cjentes, on com a gangrcna ou com a fehre traumatica.

A 17 de junho, num estado de flllimo dificil de descrever,Joseph Lister operou a irma. So Ihe vencera a resistencia 0

desespero de Sofia, a sua tentativa de achar salva<;:'io, entrc-gando-se a curandeiros. E so 0 encoraj avam Syme e a f0 nasua descoherta, a esperan<;a de que, tambem nesse caso, elaimpedisse a gangrena ou a infec<;ao mortifera.

Depois dessa opera<;ao, Lister passou pOI' um pc;'iodo cui arepeti<;ao, no seu dizer, naoteria for<;as para suportar. Emponeas semanas, sob a prote<;ao da compressa de fenol, a feri-dn cnorme sarou, sem supura<:ao digna de nota. Pelo quesei, com essa opera<;iio, Joseph Lister foi, na hist6ria tIa me-dicina, 0 primeiro cirurgiao que teve a sorte de pratiear, comexitc) positivo, a amputa<;ao do seio, com escarifica<;ao da axi-la. Lister nao tinha ilusBes, quando it recidiva; mas isso na-da linha a vel' com 0 sucesso da interven~:ao. E dai Ihe vie-ra 0 llltimo impulso, para nao se opor mais tempo its insis-tcneias de Syme que 0 concitava a se valer do grande ensejodo congresso de Dublin, para a divulga<;ao do seu sistema detratamenlo.

Joseph Lister pronunciou as primeiras palavras, hesitan-do a prineipio, depois com dic<;ao a pouco e pouco mais cla-ra c mais sonora. Descreveu 0 modo como as pesquisas dePasteur 0 tinham induzido a ahandonar a idcia de que 0 aI',carregado de corpusculos fluidos, constituisse um perigo pa-ra a cicatriza<;ao dos ferimentos. Referiu como 0 influencia-ra a tcoria de Pasteur, segundo a qual nao se deve procLlrara causa das infec<;Bes traumaticas em corp os fluidos dificeisde imaginal', e sim em microganismos aloj ados nesses cor-pusculos e que chegam a insinuar-se nas lesBes. Expos a suaprocura duma substancia capaz de exterminar esses peque-nos portadores de infec<;ao, antes do seu contacto com 0 feri-mcnto.

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Entrementes, so de espa~o a espa<;o, eu prestava aten-«ao as palavras de Lister. 0 que ele dizia ja era do meu co-nhecimento. Em vez de escuta-Io, eu procurava em del'redol'os esperados primeiros sinais de interesse e de surpresa. Oh-servava il direita e a esquerda a expressao dos espedadores.Virava-me discretamente, procurando ver 0 que se passavaatras de mim. Tudo estava estranhamente quieto. Yoltei-mede novo para Lister; adivinhava 0 efeito perturbador da sunelocu<;ao hesitaute.

- Meu Deus! - pensei, com outra olhadela a Lister. ---Domina-te, homem! Supera tudo a que te tolhe! Deixa-learrebatar pelo entusiasmo! Fala, como falaria Simpson, de-fendendo uma causa!

A impaciencia, 0 pressen timento de que ali se in pOl' uguai1baixo uma vitoria, na qual eu tivera e tinha fe, convertia-me a imobilidade num tormento. Notei que Syme tambclllestava nervoso e olhava disfar<;aciamente para Simpson.

A descoberta da anestesia tambcm se chocara com 0 pre-conceito e a incredulidade. Mas a elimina<;ao da dol' era umilrealidade Hio visivel, tao positiva, tao evidente a qualquer um,que aos proprios cepticos mais obstinados nao restara senaocurvar-se. Mas essn historia de germes que penetrnm numaincisao cirurgica e la provocam gangrena ou febre traumati-cn ... germes que 0 fenol inibiria de infecClo.nar feridas! ...Acaso Lister os tinha na mao, para os mostrar? E Pasteur'!Quem j a ouvira falar de Pasteur, em Dublin? Pasteur naoera medico. Tcllvez nenhum dos presentes the conhecesse ()nome. Afora isso._. poderia ele exibir os tais germes? Nao!Proval'a acaso que os germes esparsos no ar sac os culpadosda fermenta<;ao e da putrefa<;ao? Quando? Onde? Engalla-va-se, de certo. Formulara, se tanto, uma das numerosasteorias 'que, desde seculos, tratam da fermenta<;ao e da putre-fa<;ao; uma especula<;ao como tantas outras, goradas uma aposoutra.

Eu sen tia a muralha! Farej ava a resistencia! Que eraafinal 6 fenol? Fenol?.. Talvez U1l1 dos tantos remedios jaempregados no mundo para cauterizar, laval' au ungir feri-das. .. E a atadura destinada a manter afastados dos feri-

mentos os tais microrganismos que la da tribuna Lister deno-minava germes'? Nao era, no fundo, a mesma cousa que asinumeras tentativas tao notorias de protegeI' as les6es contraoar, os seus miasmas e contagios? Logo, nada de novo, ab-solutamente nada!

Nao sei ao certo 0 que passava pelas cabe<;as, em t6rnodemim, Hesse momento. E dificil dizer se eu mesmo pensava esen tia como ° descrevo agora. Talvez se haj am misturadocom as imagens da minha memoria muitas do periodo subse-qiiente. 0 que e asolutamente certo e que me dominava °selltimento, a vontade de ajudar. Parecia-me um dever esti-mular Lister, 0 homem meticuloso, calmo, diligente, incapazna fala e nos modos, dum arrebatamento, dum esconjuro, dumassomo de entllsiasmo.

Como os demais oradores - com poucas exce<;6es - Lis-ter dispunha de vinte minutos para falar. Aproximando-se 0

fim da prelec;ao, tentei mais uma vez leI' nas fisionomias dosque me rodeavam; e, nisso, pousei 0 olhar em Simpson quese voltava para um vizinho. Consegui assim ver-lhe 0 rosto.Parecia alvoroC;ado. Presumi que Ihe avennelhasse as facesum interesse excepcional, um assentimento entusiastico. Maso lampejo dos seus olhos esclareceu-me: era calera 0 que lhefazia subir 0 sangue a cabe<;a.

Quase sem querer, eu continuava a escutar Lister. Che-gava ele ao ponto da sua conferencia em que tratava das la-quea<;6es, explicando que a aplica<;ao rigorosa do &eu mc-todo permitiria dispensar, para ligar artcrias, os longos cor-deis purulentos e pUtrid os. De acordo com 0 seu sistema, desseriam subs ti tuidos por fios assepticos, cortados rente; e osnos poderiam ficar na incisao cicatrizada. Se experienciasulteriores confirmassem os primeiros resultados, esse fato sig-nificaria a eliminac;ao dos perigos cuja causa ainda podia seratribuida as ligaduras putrefatas e ao vasamento de sanguedos vasos ligados.

Nao percebi no momento pOl' que essas frases provoca-yam em Simpson tamanha indigna<;ao. Compreendi apenasque devia ter acontecido alguma cousa, para transformar es-se homem, esse leao velho e agressivo, em adversario de Lis-ter.

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Entl'etanto, este eoncluia a sua exposH;ao, dizendo que assuas enfel'marias, outrol'a as mais malsas, desde a introduc;aodo seu metodo de tratmnento, apresentavam todo outl'o as-pecto. Em nove meses, nao se registrara hi urn caso sequel' defebre tl'aumittiea.

Lister desceu lentamente da tribuna, retoDlou 0 seu lugarDOlado de Svme. Nos seus limpidos olhos cDstanhos, haviauma inlerrog~~c;uo dirigida primeiro a Syme, depois a mim. Osaplausos tardaram; e nuo eram manifestac;ao espontanea deentusiasmo. Nem de longe se assemelhavam ao triunfo com(lue eu contava no fundo do meu cora<;ao. Mostravam, em to-do caso, que estava presente urn grupo de medicos, aptos pa-ra eompreenderem a significa9ao dos esfor<;os de Lister. Tal-vez se houvesse lan<;ado com exito a primeira semente.

Mas, enquantoainda as palmas me ecoavam no intimo cLister agradecia, relancei outro olhar a ear a de Simpson evi que a raiva continuava a excita-Io. Quase no meSDlO ins-tante, de pediu a palavra - um pouco tarde para ser 0 pri-meiro a falar no debate. Cum efeito, 0 presidente Adams aconcedeu antes ao Dr. Hingston, de Montreal. Mas 0 que Hin-gston declarou, num tom de intimo convencimento, _foi paramim uma decepc;uo; provava, com efeito, que de nao en ten-dera Lister. Afirmava, de fato, que 0 fenol ja fora aplicadona Europa; na sua liltinw viagem, porcm, ele averiguara queesse antisscptico caira em toda parte em desuso, em razaodos seus maus resultados. 0 metodo Ingles de borrifar feri-menlos com fenol e 6leo, lembrava-Ihe urn processo de tresseculos atras, desde muito banido da ciencia. Pois, com gran-de desilusuo minha, foi aplaudido.

En tretanto, Simpson leva!1tara-se e dirigia-se para a tri-buna, a passo curto e pesado, premendo 0 peito com a maoesquerda. 1\1ostrava-nos um rosto que, em poucos segundo setransformara: ainda congestionado, dissimulava, no entanto,a raiva sob uma expressao de superioridade displicente dequem se apresta a arrasar 0 obstaculo que se the ergue nocaminho. Enquanto Lister se limitava a expoI', Simpson ata-cava em altas vozes, indignado, majestoso. Ja as suas primei-ras palavras, eu the avaliei a furia. E de procedia como se

nem vale sse a pena ocupar-se do trabalho de Lister. LacClni-co e desdenhoso, dec1arou que tudo quanto Lister descreveraja fora aplicado e rejeitado muito antes, na Fran<;a e na Ale-manha, nao the cabendo, pois absolutamente quel' em teoria,quer na pra tica, 0 direito de reivindicar 0 cariller de no\'i(b-de. Nao satisfeito com isso, pretendia voltar as ligaduras defila<;a, fossem os fios de seda ou de origem animal, preconi-zando assim um retrocesso, nnn1 tempo em que ele, Simpson- como era do conhecimento de todos os presentes - haviamais ou menos dez anos, conseguira vedar a sangria das ar-terias cortadas, sem ligaduras, mediante grampos de metalque, justamente pela sua natureza metaJica, nnrlca provoca-yam supnrac;ao ...

Naquele tempo, eu ainda- nao sabia que Simpson, irritadopelas experiencias bem sucedidas do americano Marion Simsem suturas com fios de seda, deixara de atar vasos sangui-neos com as compridas 1igaduras de uso COllum. Grampea-va os tecidos com fios de metal, que se mostrassem particular-mente refratarios a supurac;ao. f:sses fios envolviam os va-sos sanguineos, apertando-os a ponto de comprimi-los. For-mava-se assim um coagulo de sangue que os obliterava. 0meu tempo de servic;o no exercito do Potomac privara-me detomar conhecimento de muita literatura cientifica. Eu aindaignorava, em conseqiitmcia, que os grampos metalicos se ha-viam convertido para Simpson em ponto nevralgico, porquemuitos cirurgioes nao os aceitavam. Arrolhar arterias comum coagulo de sangue parecia-lhes meio pouco segura. E ashemorragias ocorriam com excessiva frequencia. Apesar dis-so, Simpson batia-se pela aceitac;ao geral do seu invento, comtodos os recursos de que podia dispor. Ainda na vespera, 0

Dr. Pirrie, de Aberdeen lera urn relat6rio sobre a acupressurade Simpson e este 0 apoiara com paixao. ~ao tendo conheci-mento d~sses fatos, eu s6 podia conjeturar 0 motivo dessa re-plica de Simpson, tao superficial como nociva. Notei que 0

audit6rio escutava no silencio respeitoso a que se habituarao famoso Simpson. E ouvi, desconcertado, os aplausos que 0

saudaram, quando ele terminou.Vislvelmente furioso, Syme vo1\ou-se para Lister. Este

baixou a cabe9a em silencio. E eu compreendi nesse instante

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quiio ilusoria era a minha convicc;ao de que a descoberta dcJoseph Lister tomaria de ass alto 0 mundo.

o ataque de Simpson, 0 seu menosprezo pOI' assim dizerdeliberado dos fatos atingiam-me tiio profundamente, que to-mei a resoluc;ao de procura-lo, assim que terminasse a ses-SaD. Esquecera-se Simpson de que ele proprio tivera de lu-tar pelo reconhecimento da cloroformizac;ao aplicada aos par-tos? Acaso, nesses dez anos em que j a nao tivera de comb a-tel', a idade e a gloria a tornavam intolerante e soberbo aponto de 0 fazer enxergar so os seus proprios exitos? A.cer-taria Syme, denominando-o "lobo em pele de ovelha ",. egois-ta em vestes - quando fosse oportuno - de bondade huma-na, enquanto Syme sempre proclamara francamente, sem dis-farces, a sua rudeza e a sua opiniao?

Encerrada a sessao dos cirurgi5es, cumprimentei Listercom urn aceno e segui Simpson que se retirava da sala, nomeio dum grupo de aderentes. Juntei-me ao sequito e espereique ele se dissolvesse lentamente, diante da carruagem queaguardava Simpson. Afinal, aproximei-me dele. Simpsonnan me reconheceu logo. Era de crer que os an os da GuerraCivil me houvessem mudado muito. Mas, ouvindo 0 meu no-me e a minha alusao ao nosso primeiro encontro, na epocaoa descoberta do cloroformio, a memoria se lhe desanuviou.

- N:3.o assistiu a minha replica? - perguntou ele, ViSl'velmente ainda absorto no problema da acupressura. - Queideia se faz, na America, da minha sutura dos vasos sangui-neos? Fizeram-se boas experiencias, durante a Guerra Civil,nao e verdade?

Eu nao sabia 0 que havia de responder. Do meu silencioele deduziu que as suas agulhas ja eram conhecidas.

- Consta-me que houve otimas experiencias - disse 'eu,decidindo-me subitamente a mentir. - Mas, a falar verdade,o motivo que me traz a sua presenc;a e outro; nao vim paraIhe dizer 0 que 0 senhor de ce.ftd j a sabe ...

Lisonjeado na sua vaidade, Simpson perguntou-me ernquc me poderia ser uti!. Respondi:

- Gostaria de Ihe falar a respeito do Professor Lister, deGlasgow.

Simpson mediu-me COlll um olhar em que havia estranhe-za e antipatia. E tornou:

- Seja ...

- Desejaria OUVIr a sua opiniao, sobre as metod os doProfessor Lister.

- Posso repeti-la ao senhor, em poucas palavras: "Naosao absolutamente novidade" - respondeu de. - Mas tercil11uito gosto em the explicar porque nao SaG novidadcs. Acom-panhe-me. Tenho tempo ate a' recepc;ao do Colegio de Cirur-gi6es, que so principia as nove. Folgarei de recordar os bonstempos passados ...

Simpson embarcou, gemendo, na carruagem; tornou apremcr ostensivamente a mao no lado esquerdo do peito.

- Ja nao somos jovens ... - arquejou com esf6r<;o.Quarenta anos de parteiro, podendo a campainha tocar aqualquer hora da l1oite... Quarenta anos de visitas, comqualquer tempo, em caminhos pessimos, viaj ando ein h'ensinct>modos ... paradas em estac;oes varridas pelos ventos ...sao cousas (IUC nao favorecem. Recentemente, numa viagemdc lrcm, tive de dormir no soalho do vagao; ja nao podia es-tar sentado ...

Se bem me lembro, Simpson hospedara-se no hotel "Prin-cipe de Gales ", em Sackville Street, ao passo que eu me alo-jara no "Gresham". Simpson subiu penosamente a escada.Jit nuo tinha a mobilidade do obeso que, outrora, ell tanto ad-mirara nele. Deixou-sc cair, afinal, numa poltrona iJ. janela.

- E agora - come<;ou - escli te 0 que the vou dizer s(j-

hre 0 Professor Lister. Donde 0 conhece? POI' intermcdio domcn amigo Syme? Como?

- Em certo scnlido - confinnei. -- Mas tamucm devodizer que 0 conhe<;o pessoalmente muito bem; e assisti aosseus sucessos cm Glasgow ...

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_ Seja - tornou Simpson, com uma inflexiio l'aneorosa.___~a sua idade, pOl'em, 0 senhor nao pode conhecer a litera-tura medica tanto como eu. Gra<;as a este conhecimento, pudedesmascarar muita Lente que presumia apregonr noyidadesinauditas. Sou de pareeer que, ncst~ caso, se trata de cousaanaloga ...

- Como devo interprctar as suas pala\Tas? - pergllntci,alarm ado pelo seu tom quase malevolo que, dez anos antes,nunea Ihe notara na voz.

- Deve interpreta-Ias assim - replicou ele - 0 Profes-sor Lister propala, como inven<;iio sua, 0 que outro descobriullluito antes dele. JiJ. ouviu falar do frances Jules Fran<;oisLemaire?

- Nao.-- Ell logo vi.

\'ell em 1863, sobremento de les6es.

Tanto quanta se pode cre!' na honradez dum homem, ell<lcreditava na de Lister.

-- Vi, com os meus olhos, 0 efeito prodigioso do ~tcidocarb61ico -- disse, pois. - Vi, nn Guerra Civil, milhares de fe-ridos. Sei onde hll forma<;ao de pus e onde ela nao existe.='los pacientes de Lister, ela nao existe. Se 0 frances Lemairedescobriu, antes de Lister, 0 modo de tratm' ferimentos comfenol, pOl' que esse metodo nao se tornou conheCido h~t muitonos ambientes ucdicos '?

-- Par que? - acudill Simpson. - POl' que') POl'que es-sa descoberta foi um equivoco e, como tal, jil caira em ({eslI-so, antes que 0 Professor Lister se pusesse a anunciar <l mcs-ma panaceia. Todos os anos surge Ulll novo profeta, um' llO-\'0 descobridor cla cura de ferimentos, abcl'ta ou cobertn, comou scm substancias quimicas, a quente ou a frio, com atlldu-ras e sem filacas, Cada urn deles pi;oclama exitos milagro-sos, infalh'eis;' e nenhum mantem 0 que promete. ~,fns, akagora, nuo me sucedera \'er apregoar um remcdio como (). (tcj-

do carbalico, um meio com que outro ja se saiu mal, e <lIndaem cima enredado nessa hist6ria de germes misteriosos, quezomba do saber de todos os cienti-stas serios. Nao hi gc'rlllcs

Mas conhec;o 0 livro que Lemaire esere-o empregodo acido carb6lico, no trata-

vivos; nunca havera, pOl'que isso contraria a lei <ia gerac;aoespontanea.

Simpson ofegava.Eu desejaria replicar alguma cousa; ele nao me deixou

abrir a boca.- Se alguem alertou a atenc;ao a respeito da grangrena

c da piemia nos nossos hospitais, esse alguem fui eu, dez anosantes que 0 Professor Lister se erigisse em profeta contra asinfecc;oes hospitalares. Fui eu quem primeiro as estudou.:Nao sabia disto? Se 0 senhor nao sabe, todo 0 mundo cien-tifieo esta a par oeste fato. Fui eu quem primeiro pesquisoua diferenc;a entre os resultados das operac;6es nos hospitais e

. as que se praticam fora deles, no campo, em casas particula-res. Se nunca viu as minhas -estatisticas, compiladas duran-te anos, consulte-as. Em 1847, verificou-se em Edimburgo que,de dezoito pacientes de amputa<;6es, se salvaram dois; os de-mais morreram, de gangrena, de piemia. Eu c os meus assis-tentes come<;amos a organizar estatisticas. Elas atent'l.m que,de 2.089 operados em hospitais, sucumbiram 855, isto e cer-ea de 41 pOI' cento, ao passo que de 2.089 operados em l'esi-dcncias privadas morreram s6 266, ou cerca de 13 pOI' cento.Dai tirei a unica ilaC;ao salvadora possive!. E de minha la-\'ra a sentenc;a: "0 homem, que se deita na mesa de opera-t,'oes dum hospital, corre mais perigo de perder a vida do queum sold ado ingles na batalha de \Vaterloo." Partiu de mim 0

movimento, que vem aumentando constantemente e que, cedoou tarde, resultara na demolic;ao dos hospitais antigos e n'lconstrucao de muitas tendas-hospitais, mais arejadas, desmon-taveis e' faceis de rearmar em sitios salubres. 0 restn sc fez,grac;as a minha acupressura. Nao ouviu 0 Doutor Pinie ex-pOI' ao Congresso os exitos conseguidos? Onde ela e aplicada,tambem nao ha supurac;ao. E ela sera adotada. S6 as"imvenceremos a piemia, a gangrena. .. S6 assim.

Estou certo de que ele nem reparava na minha apreen-sao, no medo que me causavam 0 seu auto-panegirico, a re-peti<;ao continua: " ... eu ... eu ... ", os seus propositos abso-Ietos de nos livrar da febre e da supurac;ao, do elogiG da suaacupressura, em prol da qual ele se batia abertamente, coma convicC;ao dum "deus que ficou cego".

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Acreditava realmente no que dizia? Estava convicto dasua missao de combater as febres hospitalares? Ou, debaixodessa auto-exaltac;iio, se escondia a consciencia de que a senplano de tendas-hospitais, a sua aCllpressura eram criac;oes doseu espirito condenadas a morrer e' a cuj a morte ele nao de-sej aria assistir? Lutava pelas suas teorias, porque a corac;aocans ado lhe anunciava a fim proximo da sua existencia?

~ Vejo perfeitamente 0 caminho que pretende seguir ~disse eu, tentando uma interrupc;ao. ~ Mas esse caminho naoe a de fugir da enfermidade? Nao se limitariio as suas ten-das a rechac;ar a doenc;a dum para outro ponto, deixando-asempre ocupar urn lugar? 0 que a Professor Lister se pro-p6e C uma luta sem quartel.

Simpson cravou nos meus as seus olhos faiscantes, comoS8 estranhasse que eu ainda ousasse falar de Lister.

~ Nao se combatem conceitos ja refutados ha muitosentenciou depois.

Enguli em seco. Assaltou-me a tentac;ao de pOl' de par-te a considerac;ao,a admirac;ao que sempre tiverae semprcteria par ele e fazer-Ihe vel' a cegueira do seu procedimento,lembrando-Ihe 0 tempo em que ele proprio fora paladino deinovac;oes capazes de alvoroc;ar a mundo. Mas as seus 0lh05continuavam a fixar-me ameac;adoramente.

~ Nao preciso preocupar-me ~ rosnou ele. ~ Nao ten-ciono morrer, antes do reconhecimento da. acupressura e deresolver a questao dos hospitais. Para isto, as energias domeu corac;ao ainda sao suficientes. Tenho a impressao de quea senhor e eego a ponto de crer no fenol. .. Mas. " Mas tam-hem pode acreditar que levei a melhor com gente mais podc-rosa do que Joseph Lister.

Despedi-me, sem replicaI'. A mao que Simpson me esten-deu tremia de excitac;ao; e os seus olhos envelhecidos flame-.i avam. Em breve surgiu-me no intimo uma ouvida: seria detemer au de lastimar, esse'velho que, ja em luta com a marte,visava a fins inatingiveis? E conclui que era perigo temivela ameaC;a desse deus cego, aureolado de tanto prestigio, quepoderia congregar em torno de si outros deuses cegos da me-dicina, em numero suficiente para dar corpo a ameac;a.

Duas horas depois, encontrei-me com Lister, na recep<;iio.Discreto como sempre, ~le nao me interrogou sobre Simpson;e eu, da minha parte, nao me j ulguei autorizado a referir-Ihca conversac;ao desagradavel qlie tanto me fazia recear pOl'cle.

A guerra de Simpson contra Lister declarou-se uma se-mana depois. Comec;ou em circunstancias singulares. E pos-sivel que, a principio, Simpson hesitasse. Impeliu-o talvez aagir, depois, 0 eco ~ limit ado em verdade, mas digno deatenc;ao ~ das comunicac;oes de Joseph Lister.

Houvera em Dublin certo numero de homens que a cscu-tara pelo menos com interesse; e os artigos anteriores de Lis-ter em "Thp- Lancet", depois da conferencia vinham merecen-do atenc;ao. Na imprensa, numerosos artigos focalizavam 0

problema do tratamento de feridas com fenol.Eram, na sua maioria, muito reservados; mas 0 assunto

parecia-lhes digno de menc;ao. Quase todos encerravam opi-ni6es err6neas ~ antes de tudo a erro fundamental de ser aelemento decisivo da descoberta de Lister 0 acido carbolico, cnao a principia da protec;ao das lesoes contra as germes vi-vos agressores, quer pOI' meio do fenol, quer com outra sllbs-tancia. A propria "The Lancet" publicou integralmente aconferencia de Lister, mas dec1arava, num editorial: "Se osresultados auspiciosos colhidos pelo Professor Lister, relati-vamente a eficiencia do acido carbolico nas fraturas osseascomplexas, forem confirmados pOI' novas experiencias e ob-servac;oes, nao havera palavras bastantes para enaltecer asua descoberta. "Ate nesse trecho laudatorio, se insinuara 0

erro concernente ao fenol.Joseph Lister reagiu com retificac;6es. Recomendava que

elas fossem tomadas em considerac;ao, a fim de se corrigissemas interpretac;6es err6neas; ou que, pelo men as, se fizesse em-penho em compreender as diferenc;as, sub tis em verda de, masdecisivas.

A 21 de setembro, 0 "Edinburg Daily Review" publicouuma carta an6nima, com esta assinatura: "Chirurgicus", cujo

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objeto eram Lamaire e 0 suposlo ph'lgio de Joseph Lister. 0texto era a reprodw;ao textual do qne Simpson me dissera,pOl' ocasiao da minha visita, sobre 0 frances Lemaire. Con-tinha uma cita<;ao dum artigo do "North British Agricultu-rist", dedicado a Lister e ao emprego do ferrol; e a declarac:aode que esse artigo viuha a proposito, "para piorar as reI a-<;6es ·;om I) vizinho frances·". 0 emprego do fenol nao erainven<;iio de Lister. 0 autor da carta, pOl' exemplo, tinhadiante dos olhos um volume de setecentas paginas, urn livrodo Dr. Lemaire, publicado em segunda edic;ao em Paris, noano de 1865. Com essa obra, 0 Dr. Lemaire se antecipava atc)das as expJica<;6es de Joseph Lister, subre 0 {\cido carbolico.

Dias depois, um dos assistentes de Lister averiguou queSimpson expedira a todos os medicos conhecidos circulares,cujo texto correspondia exatamente ao da cal·i.::: an6nima --IJrova de que Simpson se acobertara sob 0 psel1d6nimo de "Chi-rurgicl1s". Uma das circulares chegou tambem a "The Lan-cet". Reproduzida, bastou para operaI' uma surpreelldenteviravolta na atitude do periodico e do seu dire tor, JamesGosschild 'Vakle)', herdeiro timido e ambiguo do fund adoI'.Bastou. il circular de Simpson, para sail' nessa publicac;iio im··portante Ull;',\ no~icia que tamJ.)(~m acusava Lister de se tel' Ii-mitado a imitar uma descuberta francesa, ju conhecida ha-via muito.

cancer com fenol; Uio pouco criara, como Lister, um metodade protec;ao dos ferimentos.

Em carta a "The Lancet", Lister fez saber que lera ell-fim 0 livro de Lemaire; e apontou essas diferenc;as. Declm'ollque mlllca tivera a preten<;ao de ser 0 primeiro em aplicar aucidu carbolico. Reivindicava apenas a prioridade da des-eoherla dum sistema defensivo contra a penetra<;ao de ger-m'es vivos nos ferimentos, protec;ao que, provavelmente, sepodel'ia aIcanc;ar tambem com olltras substancias quimicns.Prevenia contra a expectativa de se obterem milagres como fenol. So se conseguiriam resultados, usando-o de acurdoCOlll ns normas da aplica<;ao rigorosa do seu sistema.

Lister procurou 0 livro de Lemaire. Nao existia em Glas-gow. Foi ellcontrado finalmente na biblioteca· cIa Universida-<Ie de Edimburgo. Lister estudou-o com a sua meticulosida-de peelante. 0 farmaceutico frances, Fran<;ois Jules Lemai-re, nascido em 1814, fizera experiencias com alcatrao de hu-IlIa e obtivel'a acido carbolie.o. Descobrira casualmente queeste. aeido matava pequenos seres vivos que tivessem contactocom ele. Como, alem elisso, nuo se formavam pustulas nasineis6es da vacina, tratadas pur Lemaire com acido carbolico,o farmaceutico deeluzira dai que a forma<;ao de pus poderiaprovir ele minusculos organbmos vivos, como os que nao re-sisti am ao acido carbolieo. Baseando-se nisso, desenvolveratambem uma teoria fundamental. Mas - e is to era decisivo- Lemaire contentara-se com a deduc;ao e a teoria. Nuncafizera experiencias praticas variadas; nem tratara casos ele

Escrita a 5 de outubro, a_carta de Lisk':, foi publicada nodia 19. Dois dias depois, Simpson entrou definitive: e franca-mente na arena da controversia. Com 0 seu panfleto "0 Aci-do Cnrbolico e os Seus Compostos, em Cirurgia", ocupou va-rias pl~ginas de "The Lancet". Continuava a ser um meslr'cdo debate, oa polemica levada ao extremo, do sarcnsmo arrn-sadol', das cita<;6es liten'lrias oportunas. Desta vez, porcm,nas }inhns com que ele nao s6 visava a provar a precedeneiade Lemaire, mas exumava, numa ofensiva medico-hist6ricageral, todos os medicos da Europa que, antes de Lister, hou-vessem usado infrutiferamente 0 fenol, perpassavam irr'ita-<;ao e animosidade mal disfarc;adas, sentimentos que Ihe ins-piravam reminiscencias historicas cintilantes e, pOl' ultimo, 0

induziram a arrancar a mascara, a patentear os seus obje-tivos, a revelar ate a que ponto Lister 0 ofendera, e que elepelo amor de si mesmo, pretendia sufocal' no nascedouro 0

sucesso do rival.

No seu dizer, a finalidade suprema que Lister - segundopalavras suas - pretendia alcan<;ar era a cicatrizac;ao de fe-rimentos, sem supurac;ao e, em conseqiiencia, a eliminac;ao ciainfec<;ao traumatica, mediante 0 emprego do acido carboJ.ico.Mas essa finalidade ja foraatingida, havia mllito, no hospi-tal de Aberdeen, sem uso de acido carb6lico, exclusivamer,tecom a apIica<;ao da acupressura, a sua acupressura. 0 mes-mo publico, perante 0 qual 0 Professor Lister falara em Du-blin, fora informado pelo Dr. Pirrie, de Aberdeen, de que a

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amputa<;ao do seio, praticada em oito pacientes, nao proyo-.cara uma gota de secre<;ao purulenta, desde que a citado Dr.Pin-Ie vedara as vasos sanguineos, com a sutura ideada JlorSimpson. A partir de entao, tambem nao se regisirara ne-nhum caso de febre traumatica em- Aberdeen. Logo - per-guntava ele, sem rebw;os, com a rivalidade rancorosa de ve-lbo, que jit me deixara perceber em Dublin - pOl' que Listere outros se negavam a adotar 0 metodo da acupressura, cujouso unica e exclusivamente garantia a cura de ferimentos, semfebre e sem supura<;ao?

Lister replicou, no dia 2 de novembro, ao ataque de Lis-ter publica do em "The Lancet". Mas, avesso como era a t()-da oposi<;iio violent a, a animosidade, ao odio, 0 professor deGlasgow na 0 estava a altura de combater Simpson com asmesmas armas. A comunica<;ao cuidadosamente elaboradade Sir James Simpson parecia exigir uma res posta - escrevenLister. - Como sempre timbrara em ser objetivo, abstinha-sede comentar as afirma<;6es de Simpson. Pretendia expor mi-nuciosamente 0 seu sistema, Duma serie de artigos. Os leito-·res poderiam assim formal' 0 seu juizo sabre 0 ataque do selladversario.

Esse era absoilltamente 0 Lister que eu conhecia, 0 qua-ker de Upton House, manso, inimigo de brigar. Nao era 0tom que Simpson entendia. Nem era 0 tom gue, naquela epoca,poderia agitar a massa dos cirurgi6es.

A 30 de novembro, Lister iniciou a publica<;ao dos seusartigos. Sobrios, obj etivos, sem alus6es a Simpson, publica-dos pOI' "The Lancet" sem comentarios, nao estavam destina-dos a suscitar sensa<;ao. J a era demasiado tarde.

Em todo caso - e a impressao que tive e me ficon -essa controversia, provQCada pOI' Simpson, para estabelecera prioridade do uso do acido carbolico, foi a prepara<;ao daserie de fatos que valeu a Lister nm reconhecimento mais ra-pido na Inglaterra. A questao: Lister ou Lemaire, Lister oua acupressura, j a nao desempenhava um papel. Em breve,perdeu toda significa<;ao. A ideia do metoda de Lister asso-ciava-se exclusivamente a ideia do fenol. A associa<;ao deideias - que ja antes se divulgara mais e mais - depois das"tiradas" de Simpson alastrou-se pelo pais inteiro, atraindo

para a sua orbita ate os mais bem intencionados. Medicos dis-postos a adotar 0 "tratamcnto de Lister" lavavam os ferimen-tos com fenal e depois aplicavam ataduras nao desinfetadas.Como e hem de Yer, colhiam maus resultados e, com absolutaboa fe, atestavam a ineficiencia do novo metodo. Vertiam 0

antisseptico sabre uma atadura suja, que passara dias sobrea ferida, e declaravam-se logrados pelo fenol. Um profissio-nal competente e h3.'1il como Sir James Paget, em Londresfechou a ferida duma fratura exposta com colodio e, so dozehoras depois, a medico\! com acido carbolico; mais tarde co-municou que 0 tratamento falhara totalmente. A inercia in-telectual, 0 aferro iJ. tradi<;ao faziam do f~nol urn elixir mila-groso e the falseavam a significa<;ao de remedio essencialdum sistema. A rela<;ii.o ~ constantemente acentuada pOl'Lister - entre a seu metodo de tratamento e as teses de Pas-teur so Ihe agravava a situa<;ao, ja que 0 seu sistema incom-preendido, e pOI' isso mesmo combalido, se ligava a uma teo-ria nao menos hostilizada.

Em vao Lister. nao cessava de esclarecer de que se trata-va e em que sistema exatamente calculado se baseavalll osseus exitos. E vao era 0 seu apdo: "Esfor<;ai-vos p0t" ver,com os olhos do espirito, os germes vivos que podem, do aI',infeccionar urn ferimento, justamente' como vedes as 1l10scas,com os olhos do corpo".

Em fevereiro de 1870, quando morreu dum mal cardiaco,Simpson nao realizara em verdade os seus propr.sitos gran-diosos: nem se haviam arras ado os hospitais antigos, nem asua acupressura conquistara 0 mundo. Mas, com a sua pole-mica, Simpson deixava apos 5i Lister, em grande isolamento.

No ano de 1873, a revista "The Lancet" publicou estesquesitos:

"Da.do 0 estado alual da ciencia, continuara Pa.steur asustentar a sua teoria dos germes vivos?"

E:"Continuara Lister, futuramente, a dar a sua adesao a

essa teoria sem qualifica<;ao?"Na Inglaterra, estudantes e cirurgi6es, cantavam can<;6es

satiricas deste teor: "Nao temas microbinhos em casa ... ";

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ou" Microbio, microbio ativo ... " Nos hospitais, continuavama morrer inumeros pacientes das secc;6es cirllrgicas, de piemia,de septicemia ...

de fenol satur~.va 0 operador e os asslstentes, causando-Ihestosse e dol' de cabec;a. Mas Lister nao se deixava influenciar.

Instaurou, em seguida, 0 usa de laval' a pele dos pacien-tes, no campo operatorio, com soluc;6es de acido carbolico; deusaI' toalhas desinfetadas com fenol; de deixar descoberta soa regiao onde se deveria praticar a incisao cirurgica. E, comuma paciencia sem par, procurava material imune de germes,para as laqueac;6es das arterias.

Em 1868, Lister passon 0 Natal em Hnpton, na casa pa-terna, em companhia de sua esposa Agnes. NemaIi 0 seu es-pirito podia tel' sossego. Assistido pelo sobrinho, RickmanJohn, Lister operon, no antigo local de trabalho do pai, umbezerro anestesiado e ligon-Ihe alguns vasos sanguineos comfios de categute, imersos durante quatro horas numa soluc;aode <lcido carbolico.. Esperava qne esses fios, provenientes detripas de animais, fossem - alem de assepticos, e cicatrizantes- snscetiveis de serem absol'vidos. Sendo 0 bezerro abati<1oquatro semanas depois, Lister pode verificar que as ligaduras,dentro do corpo do animal, nao so nao tinham causado supu-1'ac;ao, mas haviam sido devidamente absorvidas pelos teci-dos circunstantes.

Lister lanc;ou, nessa ocasiiio, os alicerces em que se eri-giria a tecnica da laquea<;ao das arte1'ias, da futura cirurgia.

Mas Lister, a despeito dos seus exitos, permanecia isola-do na Inglaterra. Quadrava-Ihe 0 velho ditado de que nin-gnem e profeta no seu pais. Entre 1869 e 1870, porem, vie-ram-lhe da Alemanha noticias que 0 tornaram sumamentefeliz, it sua maneira tranqiiila.

J ~I em 1867 quando se divulgaram os primeiros informessobre a descoberta de Joseph Lister, 0 Professor Karl Thiersch,lente de cirurgia em Leipzig, autor dum novo metodo de trans-plantac;ao da epiderme e desesperado pela furia das moles-tias trauma tic as na sua clinica, resolvera experimental' 0 sis-tema do colega de Glasgovv. Menosde tres anos depois, podiaanunciar a transformac;ao total da sua clinic a onde, a bemdizer, ja nao se conheciam nem piemia, nem gangrena. AKarl Thiersch, segniu-se 0 diretor da clinica cirurgica do Hos-pital da Misericordia de Berlim, Adolfo von Bardeleben. 0

A maior admira<;ii.o que votei a nl1l homcm, pela feillCJuebrantavel na sua causa, cabera ate ao fim dos meus diasa Joseph Lister. Hostilizado com freqiiencia, renegado pelamassa dos cirurgioes b1'iUll1icos, de continuava a trilhar a suasend a, no reino qlie era seu, nas suas enfermarias.

Nao the foram poupados novos golpes que, de quando emquando, 0 abalavam profundamente. Hoj e, esses reveses j ~l

nao constituem enigmas. Sabemos agora 0 CJue, apesar detodo 0 progresso, Lister nao sabia entao mais do que eu: oscasas que, a principia, ele tratava de preferencia: as fratu-l'as expostas, jel estavam contaminadas, antes que eles os vis-se e pudesse obstaI' <\ invasao doulros germes infecciosos. Pa-rece-me ate verdadeiro milagre que, em tais con(li~oes -- emsi, as mais desfavoraveis - Lister obtivesse tanto cxito. Da-das as circunstancias, as decep<;oes nao the podiam faltar.Lister sempre as superou.

Era, na vercladeira acepc;ao do lermo, lutar tacteando, naoraro desesperadamente, com inimigos embosca.dos no ~scuro,inimigos em cuj a presenc;a ele acreditava, mas que ainda naovia; nem lhes podia observar os habitos de vida.

Joseph Lister nao se Iimitou as ataduras embebidas emfenol. Comec;ou a laval' as maos eo's instrumentos, numa 50-

luc;ao de acido carbolico; ocorrera-Ihe que os microbios po-diam vir do ar a pousar neles e serem transmitidos as lesoespelos dedos e pelos ferros insuficientemente assepticos. Tam-bem nao se contentou com isso. Buscava a possibilidade deaniquilar no proprio campo operatorio os germes suspensosno aI', antes de tomarem contacto com a incisao cirurgica.Para esse fim, Lister inventou vaporizadores que criavam umadensa nevoa de antisseptico sabre 0 campo operatorio. Acio-nados a principia manualmente, pOl' um dos assistentes do ci-rurgiao, passaram depois a funcionar a vapor. A vaporizaC;alJ

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seu assistente A. W. Schultze, foi 0 primeiro cirurgiao da Ale-manha que estudou com Lister 0 metodo de tratar ferimentos.Regressando Schultze a sua terra, 0 sistema de Lister foi in-troduzido fundamentalmente no citado hospital de Berlim.Em 1872, acrescentou-se aos precedentes 0 nohivel cirurgiaode Halle, Richardo von Volkmann que, pOI' sua vez, foi imi-tado pelo Professor yon Nussbaum de Munich, em cuj a cli-nica as infec<;oes traumaticas grassavam assustadoramente,a ponto de ceifar oitenta pOI' cento dos operados. Nussbaumvira-se na contingencia de incendiar a sua clinica superlota-da de moribundos, ou render-se as enfermidades traumati-cas. Ateve-se rigorosamente ao metodo de Lister e conseguiuo resultado miraculoso de for<;:ar a febre traumatica e a gan-grena a desertarem 0 campo.

Mas, tambem da Sui<;a, da clinica cirurgica do ProfessorAugusto Socin, em Basileia, chegavam a Glasgow noticias al-vissareiras. Socin tratara vinte pacientes pelo sistema de Lis-ter e outros tantos, pOI' metodos diferentes. Os primeiros sa-raram, sem complica<;:oes; dos outros, nao menos de treze su-cumbiram a supura<;oes virulentas. Depois disso, a mortaIi-dade na clinica de Socin declinara de 43,7 pOI' eento das am-puta<;:oes a 11,5 pOl' cento; de 52,7 pOI' cento das fraturas demembros apenas a 10 pOI' cento; de 77,7 pOI' cento, em opera-<;oes de hernias inguinais, simplesmente a 10,2 pOI' cento.

A divulga<;ao desses resultados abalou. os preconceitos se-culares do mundo cirurgico sobre as infec<;6e's traumaticas detal modo, que se imp6s impreterivelmente a pergunta: quan-do se curariam da sua cegueira os deuses cirurgicos da In-glaterra?

Entretanto, Lister deixara Glasgow. Movido pela espe-ran<;a de combater melhor, em prol da sua doutrina, em Lon··dres, no cora<;ao da Gra-Bretanha, esfor<;ara-se inutilmentepOI' obter uma cadeira de professor na capital. Quando, emconseqi.iencia dum ataque de apoplexia, James Syme perdeua fala e ficou inibido de continual' a frente da sua cIinico. deEdimburgo, Joseph Lister ocupou 0 lugar do sogro. No. via-gem de Glasgo\v a Edimburgo, levava nos joelhos 0 garrafaode Pasteur, no qnal realizara as' primeiras experiencias com

germes vivos. Chegando a Edirnburgo, dentro em pouco ex-pulsou definitivamente do antigo hospital de Syrne a gangre-na e a infec<;ao traumatica.

Os seus discipulos foram, na hist6ria da cirurgia, os pri-meiros estudantes que nao consideraram 0 cheiro de pus atri-buto fatal, e ate necessario, dum hospital cirurgico. Mas, ape-sur de tudo, rnesmo em Edirnburgo, Joseph Lister continuavaa ser urn solitario, admirado apenas pelos alunos, que se vi-nharn criando no mundo de ideias do mestre, e pelos visitan ..tes, na maioria forasteiros que vinham pedir-lhe ensinamen-tos.

Foram provavelmente 0 isolamento e 0 desejo - embo-ra ja menos despotico - de se vel' compreendido e estirnu-lado 0 que induziu Lister a .visitar em 1875 a Alemanha. Pa-ra 0 cientista mal apreciado na sua pah'ia, essa viagem foi,pOl' assim dizer, uma desconcertante marcha triunfal atravcsdas universidades germanicas. Leipizig festejou-o como urnredentor. Lister nunca esperara tanto. Acolhia as bomena-gens com lagrimas nos olbos.

Seguiu-se a viagem aos Estados Unidos. Vi Joseph Lis-ter, no' Congresso In ternacional de FiladeJfia e, mais tarde, emBoston onde ele abriu varios abcessos, segundo 0 seu metodo,colhel1do aplausos que, alias, nao pel:sistiram, depois d~ suapartida, e pOI' largo espa<;o ainda cederam a lugar aos velhoshilbitos hereditarios.

Quando regressou il Inglaterra, Joseph Lister pisou 0 so-lo pittrio como que transfigurado. Pela primeira vez 0 an i-mava 0 sentimento do sucesso publico; exaltava-o uma con-fian<;a nova.

Deu-lhe esta a energia e a determina<;ao de se candidatarnovamente 0. uma catedra em Londres, de empenhar-se emconquislar lwra os seus mCtodos a adesiio do pais natal, co..mo granjeara a da Alemanha.

Em 1887, pOl' morte de Sir 'Villiam Fergusson, Clrurglao--chcfe da Rcal Universidade de Londres, Lister - emboraperseguido pOl' criticas desfavoraveis, obteve 0 lugar de Fer-gusson.

A 1.0 de ou tubro de 1877, pronunciou a sua aula inauguralcm Londres. Foi, para cle, mais uma tremenda decep<;iio.

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Lister falou,· naturalmente, sabre 0 argumento que 0 absor.vera nos ultimos dez anos: a putrefa<;ao, as bacterias vivasque, segundo a sua convic<;ao geravam as infec<;6es trauma-ticas. Mostrou, da tribuna, num garrafao de leite, a fermen-tac;ao provocada pelos microbios suspensos no ar. Nao tar-dou 0 primeiro "Muuh!" dos estudante~ ~lue, em crescentealgazarra, abafaram as paIavras do orad or. Vozes isoladasmotejavam: "Olhem a porta aberta! Mandem fecha-Ia! Kaova entrar um dos microbios de Lister!"

Con'ido peia zombaria, Joseph Lister despenhava-se, maisuma vez, num abismo de desprezo. A sua aula estava as mos-cas; :is enfermeiras da sua sec<;ao protestavam contra a sua"mania de asseio". E ele ficou sozinho, com as quatro assis-tentes: Stewart e Cheyne, Altham e Dobis, que 0 tinhamacompanhado de Edimburgo a Londres, para sentir pela pri-meira vez, num hospital londrino, a cheiro de podridao, econhccer a supura<;ao e a gangrena.

Contudo, Be nao esmorecera dez anos antes, Joseph Lis-ter nao desanimaria de certo nessa emergencia. Nem tinhamotivo par?. i8S0. Enquanto, na capital do seu pais, de seempenhava, com -toda a sua paciencia, toda a sua tenacidadeserena, em conquistar 0 cora<;ao dos discipulos, operava-sc uaAlemanha, a terra da sua vitoria, uma evolu<;iio que lhe va-lorizava as dez anos de luta e convenceriaos seus adverStl-rios de que haviam sido cegos e injustos.

Na cidadezinha alema de Wollstein, mIl medico rural, en-taa totalmente desconhecido, provava terminantemente, pelaprimeira vez, as hipoteses de Pasteur, que serviam de baseao metoda de Lister: a existencia de germes vivos, ou micro-bios, causadores de febre, supura<;ao e gangrena.

Esse obscuro medico rural era Roberto Koch.

Se 0 encontrasse na rua, eu nunca 0 tom aria pOl' urn ho-mem capaz de transformar 0 aspecto da medicina. Mesmoquando 0 vi peia primeira vez no consultorio, que cheiravaa ratos e a fenil, custou-me identificar nele a cientista quetornou visivel a olhos humanos a existencia dos germes decontagia e infec<;ao.

Em 1877, quando eu me sentia um tanto desalentado, aotermo de anos de VaG empenho em tornar compreensivel acirurgi6es americanos, meus conhecidos, os metodos de ope-ra<;ao asseptica de Lister, quando Roberto Koch dava a pri-meiro passo para a descoberta dum germe vivo agente deenfermidade, 0 bacilo da esplenite, a ideia que eu fazia deleera uma imagem muito definida, uma imagem heraica. Souma circunstflllcia pessoaI: a morte de meu filho Tom, viti-mado par moiestia entac ainda nao operavel, apendicite, meinibira de seguir imediatamente para a Alemanha e visitar I)

lugarejo quase desconhecido de \Vollstein, onde morava Ro-berto Koch.

Dais an os depois, quando Roberto Koch escreveu subrea primeira das bacterias agentes de molestias terriveis, a suaimagem assumiu na minha fantasia tra<;os mais e· mais signi-ficativos. Que cerebro possante, 0 do homem que provava,com experiencias incnvelmente simples, 0 que, em Lister ain-da eram conj eturas! Que genio esse que trazia a IllZ 0 "assas-sino emboscado", 0 inimigo mortal de operados e operandosiE com que lucidez inexcedivel de evidenciava a cegueira dosque nao queriam, ou nao podiam, compreender Joseph Lister!

Mal se anunciara a primavera de 1880, eu me encontreirodando no escabroso cal<;amento de pedra da estrada real"Monte Branco" de 'Vollstein, cujo leito pedregoso pelo me-

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nos a distinguia dos pessimos caminhos das redondezas.Apeei-me defronte da fachada de empena da casa do medicomunicipal, domicilio e consultorio de Roberto Koch que alidesempenhava essa fun<;ao.

Depois, esperei na sala de estar. E, como na residencirrde Lister, a dona da casa procurou amenizar-me a espera.Mas a talvez quadragenaria Emmy Koch, que sentara a fi1hi-nha num banquinho, aos seus pes, nao era Agnes Lister. Na-quela ocasHio, Agnes Lister tinha f{ no ma'rido, acreditava queele iria adiante, nem que fosse passo a passo. Emmy Kochera tada outra especie de mulher, urn especime de pequenaburguesa que - pelo menos assim me pareceu no primeiroquarto de hora de conversa arrastada - via de certo no tra-balho de pesquisa do marido, um poder inimigo. Das des-cobertas de Koch, desse ima pode:roso que me atraira aque-Ie recanto mesquinho da provincia de Posen, Emmy nao fa-Iou; ou, se a elas se referia, era num tom constrangido em quetransparecia uma especie de odio, ou de angustia, senao umafusao destes dois sentimentos.

Emmy queixou-se de que 0 marido fazia esperar os doen-tes, tal como me obrigava a esperar. Tivera, a principio, nu-merosa clientela; mas relaxara tudo. Os clientes j~ vinhamcontra a vanta de, ou nem apareciam; porque Koch so pensavano seu microscopio, nos seus ratos, nas suas' cobaias. Nao per-ecbia que, dessa maneira, comprometia u existencia da fami-lia. Havia noites em que ela nem 0 via. 'Talvez ate ele jahouvesse esquecido que eu 0 esperava.

Emmy tentou varias vezes lembrar a minha presen<;a aomarido ocupado no "laboratorio". Mas voltava sempre, en~colhendo os ombros. E esse encolher de ombros nada tinhade indulgencia nem de perdao compreensivo. Koch estavafotografando ao microscopio, explicou-me a Sra. Koch puxan-do a filha para 5i, com uma r~prova<;ao que nem se dava aoincomodo de disfar<;ar. Pocleria 0 ceu desmoronar; de con-tin uaria fotografanclo.

A medida que a espera se prolongava, tanto mais a de-pkrava a mulher que nao entendia 0 trabalho do marido nemlhe compreendia as aspir,a<;oes. -Talvez pressentis5e que essa<;

aspira<;oes 0 impeliam a esfer'ls aonde ela nao 0 podia acom-panhar. E elas eram, pOl' isso, objeto do seu odio.

Muitos anos depois, tornando a vel' Koch - ja separadoda mulher que Ihe "pendia do pesco<;o tal qual mo de moi-nho" - com a segunda espasa, Hedviges, durante uma via-gem pela Rodesia, recordei muitas ,vezes essa espera penosa.Ela me dava ideia da obsessao do homem que, atras das pa-redes que 0 separavam de mim, ca<;ava microbios, esqueci-do do mundo circunstante. '

Afinal, Roberto Koch assomou a porta baixa, antiquada:estatura mediana; carna<;ao palida; uns trinta e sete anos deidade; a cabe<;a, miuda, de testa aHa; cabelos ralos; no quei-xo, uma barbicha emaranhada; olhos injetados e palpebrasinflamadas, atras dos oculos pequenos, de pouco pre<;o.

Roberto Koch examinou-me com os seus olhos pestane-jantes de miope, abstrato e contrariado, como se 0 tivessemarrebatado a um mundo melhor. Era como se dissesse: "Quequer de mim, afinal de contas?"

Estendeu-me secamente a mao aspera, corroida pelos aci-dos, manchada de tinta. Depois levou-me ao consultorio, J}la entrada, veio-me ao encontro um estranho cheiro de fenole de coelheira. Vinha de tras dum tabique grosseiro que, pOl'falta de espa<;o, Koch mandara puxar de traves, duma a ou-tra parede da sala. Atnls dele, ficava 0 "laborat6rio de pes-quisas", uma instala<;ao realmente precaria, ,constando dal-gum as mesas, de prateleiras atulhadas de vid'ros corn liqui-dos, ou corp os de animais, durn banco girat6rio diante do mi-croscopio. Completavam 0 aparelhamento gaiolas, recipien-tes de vidro tap ados corn tela de arame e ocupados par umaquantidade de cobaias e ratos brancos. A urn canto, urn ar-mario fornecia uma especie de camara escUra primitiva.

Parei involuntariamente. Custava-me acreditar que vies-sem de tras dessa parede de tabuas as descobertas que revo-lucionavam 0 mundo e ajudavam 0 trabalho de Lister a tri-unfar.

Nao creio que Roberto Koch notasse ° meu movimentoinstintivo. Parado, com expressao abstrata, entre os seus ins-trumentos, ele erguia diante dos olhos miopes algumas lentesde microscopio. De repente perguntou:

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- 0 senhor vem da America?A minha resposta arrancou-o, pOl' assim dizer, a sua abs-

tra<;ao. Koch tornou-se logo outro homem, adquiriu uma es-pecie de vivacidade, embora em cada uma das suas palavras,das suas perguntas, das suas explicac;oes, nao deixassem detransparecer uma geIida precisao cien tifica.

POl' qualquer motivo - incompreensivel para mim na-qucIe momen to - a palavra "America" tocara-Ihe 0 cora-<;ao. Vim a saber, mais tarde, que 0 sonho da sua mocidadcde filho de mineiro era uma aventurosa viagem de circuna-vegaC;ao. Mas a primeira mulher, quando sua noiva em Ham-burgo, 0 forc;ara a escolher entre dar a volta ao mundo e vi-vcr, ao lado dela, uma vida burguesa. Ento.o compreendi Ro-berto Koch. 0 seu sonho nao morrera. 0 caminho maravi-lhoso, que 0 levava a descoberta das bacterias, talvez fosseuma senda sucedfmea, pela qual as suas aspira<;oes recalca-das 0 conduziam para longes misteriosos. Ele procUI'ava 0 des-conhecido num mundo menor, mas que estava ao seu alcance.

Pouco depois, eu me sentava ao microscopio de Koch.

E, pela primeira vez na vida, foi-me dado vel' as bacte-rias esfericas, denominadas COCCllS, a cujo respeito Koch aca-bava de descobrir que eram agentes da febre traumatica dosoperados, cujo cheiro pestifero continuava, apesar de Lister,a contaminar a maioria dos hospitais do mundo e as enfer-marias de milhares de cirurgioes formados ern conceitos ob-soletos.

Eu tinha ness.e momenta, quase ao alcance da mao, 0

inimigo milenario, 0 alvo cIa luta de Lister. E facil compre-ender a minha excita<;ao, bem como 0 interesse intenso comque ouvi ao termo de instantes, primeiro as explica<;oes, de-pois a narra<;o.o de Roberto Koch.

E, indubitavelmente, ele soube dizer pelo menos 0 que 0

impelira a tomar esse caminho. Na qualidadede medico mu-nicipal, examinara pOl' dever de oficio as ovelhas mort as que,naqueles anos caiam nos prados as centenas, abatidas pOl' ummal desconhecido. Sabia-se, em substancias, que no curso dadoen<;a, 0 ba<;o das ovelhas enegrecia. A epizootia recebera,em conseqiiencia, a denominaC;a'o de inflama<;ao do ba<;o.

Em 1849, Pollen del', um jovem medico j,'t esquecido, afir-mara tel' vis to estranhos bastonetes no sanglle das ovclhas vi-timadas pelo mal. Ento.c ninguem 0 tomara a serio.

Outro tanto acontecera ao frances Davaine que transmi-tira a molestia a ovelhas sas injetando nelas sangue "in<;adode bastonetes". Davaine tambem estava esqueeido havia mui-to quando Koch, bem contra a vontade da esposa economic;),adquirira 0 seu primeiro e modesto microscopio, com 0 qualtornara a identificar os bastonetes.

Cumpria-Ihe eseamotear a sua vida de medico rural 0

tempo para as pesquisas. Mas a vista dos cUI'iosos bastone-.tes reavivara nele 0 desej 0 recalcado de explora<;o.o e de aven-tura. A principio, os bastonetes pareciam inertes, sem vida.Distingui-Ios ao microscopio nao signifieava grande cOusa,tanto mais que eles se misturav31n, sob a lente, com outrosmicrorganismos. Koch disse de si para si que seria necess{l-rio isolar os bastonetes, acorchl-los para a vida, fora dos ani-mais vitimaclos pela peste. Era preciso averiguar se e comoe1es se mulliplicn-,.am. Depois, conviria cultiva-los c inocu-lar a cultura Cll animais sadios. Se estes contraissem 0 mal,estaria prov<l(].J que os bastonetes - arenas e exclusivamenteos bastonc!<.'·' I - eram os transmissores da epizootia.

Roberto Koch, a medico do interior, afastauo dos preten-sos gran des centros ml~dicos, distante dos gr::mdes 18borato-rios, longe tambem da estagna<;ito na qual, com 0 tempo, osteenicos se atolam tito facilmentc, procm'ou e encontrou 0

caminho para a concretiza<;o.o das suas aspira<;oes. Calculouquc, se conseguisse isolar a germe cIa enfermidade, de neces-sitaria duma substancia semelhante a do COl'pO,que Ihe ser-visse de terreno llutritivo. Essa substancia teria de ser isen-ta doutros germes; e transparente, afim de possibilitar as me-nores observa<;oes. Roberto Koch decidiu-se pelo humor aqllo-so de olhos de bois saos.

Ocorreu-Ihe nlais que, para mecIrar, as germes necessi-tariam duma temperatura an{lloga a do corpo; e, com 0 au xi-liD dum lampiao de querozene, construiu uma estufa. Mu-niu-se, em seguida, duma lasca de madeira e, para extinguiros germes que houvesse nela, a expos ao fogo, quase a ponto dr·

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carboniza-Ia. Servindo-se desse cavaco, pos em humor aquo-so uma pequena quantidade de sangue contaminado com bas-tonetes. A partir dai, durante a noite, com intervalos de me-nos duma hora, examinava a sua cultura. Convencia-se cad avez mais de estar assistindo a Ul11processo de multiplica<;aodos bastonetes. Ao mesmo tempo,' verificava a presen<;a depequenos corp os esfericos, que se multiplicavam em massasanalogas e confundiam a imagem. Eram microrganismos quehavial11 penetrado posteriormente no humor aquoso nutriti-vo da cultura.

Koch pos-se a refletir. Preocupou-se muito tempo com aquestao de escogitar urn meio de il11pedir a penetra<;iio de ger-mes estranhos.

Ocorreu-Ihe finalmente a solu<;iio. Koch aciaptou a len-te do microscopio, previal11ente aquecida, uma placa de vi-dro mais grosso tambem escaldada. No ponto onde se deve-ria aglutinar a cultura, a placa apresentava uma depresaopouco maior do que a gota de humor aquoso e que a continha,pOI' assim dizer sem a tocar. Em tomo da cavidade, espalha-va-se entre as duas superficies de vidro uma camada de va-selina, que as fazia aderirem uma a outra e impedia a pene-trac;ao do aI', na depressao e na gota.

Imprimindo aos dois vidros urn movimento rapido de 1'0-

ta<;ao, Koch conseguia manter a gota suspensa livremente S(j-

bre a cavidade na lente do microscopio, e protegida contra aintrusao doutros germes contidos no ar. Estava inventada a"gota suspensa" de Koch, 0 habitat para germes isolados.Koch pos os vidros sob 0 microscopio e teve a surpresa de naoesperar muito. Os bastonetes multiplicavam-se; e multipli-eavam-se com rapidez incrivel.

De poucos, tornavam-se milhares. Em breve, ja nao sepodiam contar. 0 cerebro exato de ,Roberto Koch - que nes-sa personalidade se aliava tao singularmente a urn corac;iioavellturoso e :recalcado - verificou: os bastonetes nao eramcousas mortas. Viviam. Multiplicavam-se como seres vivos;talvez se multiplicassem exatamente do mesmo modo, mal seinsinuavam num animal sao, ao qual infestavam 0 sangue eentupiam - assim sup6s Koch a principia - os vasos san-guineos.

Para 0 provar a evidencia, Roberto Koch tillha de inocu--lar germes isolados em animais sadios. Nao dispunha de re-banhos de ovinos para fins experimentais. Nao possuia se-quel' uma ovelha na qual pudesse ten tar a experiencia. MasposslVelmente, a doenc;a pegaria mesma em animais mcno-res e de menos pre<;o. Koch lembrou-se dos ratos.

Entrou, pois, a primeira gaiola de animais, em casa domedico de \Vollstein. Com opauzinho chamuscado, Koch ino-culou a sua" gota suspensa" numa incisao praticada no rabi-nhodum rato. E esperou. No outro dia, 0 rata estavfl morto.Koch dissecou 0 animal; abriu-Ihe 0 bac;o. Achou-o literal-mente inca do de bastonetes. Estavam presentes todos os sill-tomas da' esplenite. Koch podia considerar-se vitorioso. Con-seguira, cia noite para 0 dia, 0 que ninguem alcanc;ara antesdele. Mas 0 seu cerebro exato sugeria-Ihe que se guardassede ilusoes. Ulna experiencia nao era prova. Koch teve du-vidas, enquanto nao repetiu a primeira experiencia dezenasde vezes e nao obteve, em todas 0 meSillO resultado.

Nem com isso 0 pesquisador se deu pOl' satisfeito. Asovelhas apanhavam os germes nas pastagens, em qualque1

,'

parte. Os bastonetes das suas culturas - tao bem observa-dos - morriam, mal 0 humor aquoso perdia a temperaturanormal do corpo. Como conseguiam eles sobreviver, nos ex-crementos dos animais, nas ervas, noutros sHios on de fica-yam expostos a temperaturas tao variadas? Durante sema-nas, Koch observou a sua" gata suspensa", sob diferentes tem-peraturas. E fez outra descoberta decisiv.a: logo que Ihes fal-tava a temperatura conveniente, os gerllles se modificavam;transformavam-se em "esporos", dotados de resistcncia ex-traordinaria e aptos para sobreviver fora do corpo do ani-mal, sob temperaturas muito divers as. Mas, assim que tor-navam a penetrar num corpo vivo, revertiam ao estado degermes - de baeterias, au de bacilos, segundo a terminologiade Koch - e provocavam a mortifera inflamac;ao do ba<;o.Estava descoberto 0 germe vivo, agente de processos morbidoil.

o microscopio data de Galileu. Inumeros cientistas, queo manejaram, viveram, estudaram, pesquisaram. Nenhulll de-les, porcm, trilholl a senda de Koch. A tentativa de encon-

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trar uma resposta ao "porque" talvez permanecesse tao infru-tifera quanto a tentativa de explicar pOl' que foi Horace Wellsquem descobriu 0 efeito anestesico do gas hilariante.

Comprovada a sua descoberta, Koch dirigiu-se ao diretorda "Pflanzenphysiolgischen Institut" da Universidade de Bres-lau, 0 Professor Kohn.

A sorte 0 favoreceu, ao procurar esse homem que logoreconheceu 0 valor do trabalho de Roberto Koch e 0 convi-dou a ir a Breslau. L~l chegando, Koch repetiu as experien-cias e elas convenceram; nao davam aso a duvidas. Variosprofessores import antes de Berlim empenharam-se a favor deKoch, para 0 tirar do isolamento de \Vollstein, arranj ando-Ihe 1m) laboratc'Jrio e uma cadeira de professor, a hm de quede pudesse trabalhar em sossego. Mas, justamente em Ber-lim, elevou-se contra de 0 mesmo homem influente que ja sedeclarara contra Semmelweis: Virchow.

A muito custo, conseguiu-se para Koch apenas urn lugarde medico municipal em Breslau, para 0 tel' nas vizinhan<;asda universidade. Koch muclou-se imediatamente para lit, coma familia. Ao termo de tres semanas, parcm teve de deixarBreslau, porque os hOllorarios correspondentes ao seu cargonao Ihe bastavam para mallte1' os seus.

Desiludido, acalJrunlwdo pelas queixas e l"ecriminat;oesda esposa, Koch voltou a \Vollstein e reencetou a sua dupla eexaustiva atividade. S() uma vantagem llle adveio da sua de-mera saida de \Vollstein: U1n dos seus ensaios sobre 0 baciloda esplenite foi publicado e chegou its maos dum grupo, aprincipio limitado, de cientistas. E 0 espa<;o atr{lS do tabi-que malcheiroso tornou a ser 0 laborat6rio de Roberto Koch,

Entretanto, ele propusera-se UIlla nova meta. Ocorrera-Ihc que seria necessLlrio tarnal' as bacterias tao evidentes, quequahluer pessoa as pudesse identifical'. E, com a intui<;ao dosprivilegiados, escogitou um meio de 0 cOllseguir. Descobriraque os germes vivos absorviam os corantes. Gracas a colo-ra<;ao, seria possivel diferen(({l-los uns dos outros °e das con-dio;oes ambientes. Isto era de suma importancia

A seguir, Koch descobriu '1 possibilidacle de fotografar osgermes vivos, ou bacterias, atraves do microscopio. Partin-

do clessa base, Koch dedicou-se a pesquisa dos germes respon-saveis pelas infecc;6es hospital ares : febre traumatica, erisipe-la, tetano, gangrena. Averiguou assim que a infeccao trau-mMica e provocada realmente pOI' microbios - er~ concor-dancia, pois, com a hip6tese em que Lister baseara todo 0 seumetodo de cura, sem a poder provar.

"Pesquisas Sobre as Infec<;6es Traumclticas ... " Assim seil1titulava a segunda publica<;ao de Koch; nela, 0 antor des-creve 0 primeiro clos "assassinos emboscados" e Ihe demons-tra os efeitos, com experiencias realizadas em animais. Eraapenas 0 principio, pOl' serem os germes das varias molestiasinfecciosas mais dificeis de identificar do que os cla espleni-te. Era, porem 0 prenllllcio duma transformacao total DOmundo medico e, particulannente, na cirurgia. 0

Disto estava eu plenamente convencido, quando deixeiWollstein. (5).

Partindo para \Vollstein, eu deixara Suzana, a min11a es-posa, em Halle, hospedada na residencia do Professor Vol-kmann que, em 1872, fora entre os cirurgioes aJemi'ies 0 pri-meiro a aclotaros metodos assepticos de Lister, e, desde enUio,se COl1tava entre os seus sequazes mais fervorosos. Suzananao se sen tia bem; queixava-se de indisposi<;6es leves que na-da mais eram senao precursoras da sua ja proxima e graveenfermidade. Alem disto, ela dava-se muito bem com a Se-nhora Volkmann cujo conhecimento pouco vulgar do Inglesj a impressionara Lister, pOl' ocasiao da sua visita a Alema-nha. Regressei portanto a Halle, afim de seguir com minhaesposa para 0 nosso proj etado veraneio na costa francesa deBiscaia.

Chegando it bela residencia de Volkmann, encontrei Su-zana no salao, conversanclo com um mo<;o que se exprimia

(5) Meses depois, Roberto Koch era nomeado membro do Servi~oImperial de Saude em Berlim. Entre os exitos mundialmente famososdas primeiras pesquisas, conta-se a descoberta do bacilo da tuberculosee do bacilo da calera, em 1883. Roberto Koch morreu em 1910.

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com sotaque americana, mas que, no modo de trajar mais pa-recia ingles.

- Querido - disse-me Suzana, depois das primeiras efu-soes - este e a Senhor Halsted, de Nova York. Cursou o Co-legio Medico-Cirurgico; serviu no Hospital Bellevue; e est:i,hli dois anos, na Europa. Estudou em Viena com 0 ProfessorBillroth; ern Leipzig corn 0 Professor Thiersch; em \Vurtz-burgo, corn ... corn quem, Senhor Halsted?

- Com 0 Professor yon Bergmann - informou 0 mocaamericana. ..

- Sim - continuau Suzana -ainda nao ouvi meu ma-rido dizer esse nome; deve ser, porem, 0 dum homem muitointeressante. Agora, 0 Senhor Halsted esta praticando com 0

Professor Volkmann. Interessa-se especialmente pOI' Lister epela assepsia; e estamos ambos ansiosos pOI' ouvir 0 que nospode can tar a respeito do Doutor Koch.

Halsted era um rapaz esbelto, de ombros esportivamentealleticos, fisionomia energica, tra<;os irregulares, largas ore-lhas despegadas, olhas miopes, mas inteligentes.

Ja enEio, mostrava muito da elegancia apurada, quascafetada, que 0 caracterizaria mais tarde. Tambem ressalta-yam na sua personalidade uma reserva esquiva, disfar<;adusob aparencias de cortesia, e urn sarcasmo precoce.

Na hora desse nosso primeiro e fortuito encontro, Hals-ted nao desconfiava mais do que eu da sua atua<;ao, uns dezanos depois, como professor de cirurgia da Universidade deJohn Hopkins de Baltimore, onde ia ser pioneiro duma novucirurgia cientifica da America e fundador da que seria tal-vez a sua escola cirurgica mais importante.

POI' minha vez, eu nem imaginava que, na futura cam-panha em prol da difusao da assepsia ern tadas as salas ope-rato1'ias do mundo, Halsted desempenharia urn papel de re-levo na America e especialmente em Nova York, e the trariaenfim uma contribui<;ao de carateI' absolutamente peculiar.

- E raro ouvir que urn americano se interesse pela assep-sia de Lister; e alegra-me pa1'ticularmente - disse eu. _ As-sisti a alguns lances decisivos da exposi<;ao de Lister e tenteicomunicar a uma serie de cirui'gi6es nossos a convic<;ao de

que as infec<;oes hospitalares sao causadas pOl' germes vivose que e necessario manter esses agentes de infec<;ao a distan-cia das lesoes, ou extermina-Ios. Mas foi empenho vao; tan-to quanto continua a ser quase intitil, ainda hoje, a tentati-va de conquistar adesao aos metodos de Lister. Daqui erp di-ante, e possive! que as descobertas do Senhor Koch mudemalguma cousa.

- Antes do meu embarque - disse Halsted - em NovaYork so dois cirurgioes, no College e no Bellevue, se nortea-vam pelo sistema de Lister: Thomas Sabine e Stephan Smith.E, como certos professores de Filadelfia, so 0 adotaram haquatro anos, epoca da viagem de Lister aos Estados Unidos.Vi a diferen<;a entre as suas enfermarias higienizadas e assec<;6es malcheirosas de Hamilton, de Mason, de Mott, ondeeu trabalhava. Hamilton e Mott pouco se preocupavam, gru-<;as a Deus, corn 0 que eu fazia; e eu, quando podia, operavaa moda de Lister. E obtinha os mesmos resultados que Sabi-ne e Smith.

- Entao volte para lit quanto antes - tomei. - Na Ale-manha, jit agora quase todos os cirurgioes aderiram a Lister.A meu vel', a cirurgia alema progrediu consideravelmente.

- E possivel - admitiu Halsted. - Mas de quem se ha-bituou a nao desinfetar as maos nem os instrumentos, e a usaI'a roupa corn que faz as opera<;oes ate ela ficar dura de puse sangue ressecados, nao se pode esperar que de credito ahistoria das bacterias malfazej as. Nao e desfazer dos !lOSSoscirurgi6es do campo, da floresta, da pradaria; mas 0 senho.:jit pensou ern que a maioria deles talvez nao tenha vista urnmicroscopio? Camo haa de acreditar nas bacterias? Paraintroduzir permanentemente a assepsia, tera de vir uma novagera<;ao de cirurgioes. Dadas as circunstancias, Lister pode-ria ser apenas 0 principio dessa gera<;ao ...

- Como devo interpretar isso? - pergunteL- E muita simples, a meu vel' - respondeu ere. - Lis-

ter nao via as bacterias, mas admite que existam. Para ser-mos exatos, ele desenvolveu urn metoda de combate a um ini-migo que nunca viu, cujos hitbitos de vida e pontos vulnera-veis desconhece ... assim como eu me debateria as cegas, no

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escuro, se me assaltasse alguem que eu nao pudesse vel'. Ago-ra, 0 Senhor Koch trouxe a luz as primeiras baeterias. Conhe-l:;~ a sistematica dos alemaes: eles van trabalhar, ate par avIsta todos os microbios agentes de infeccoes. 0 metodo deLister ~ puro :mpirismo. Cedo ou· tarde ~era substituido pOl'um metodo ngorosamente cientifico. A Senhora Hartma:nnacaba de dizer que 0 senhor ainda nao conhece pessoalmentea Professor von Bergmann, de \Vurtzburgo ...

Acenei afil'mativamente.- Penso que cleve conhece-lo - tomou Halsted. - E pe-

na que, durante 0 ultimo trimestre do ano, ele' tenha estadogravemente enfermo; e a muito eusto se restabeleeeu. Vem deDorpat, nas provincias balticas da Russia; hit tres anos ser-viu, como cirurgiao, na guerra russo-turca. La nao se ~savaf~noL Mas Bergmann conseguiu curas normais e positivas,snuplesmente engessando de maneira sumitria, em faixas lim-pas, pemas e brac;os mal feridos, fraturas expostas. Berg-mann trabalha em \Vurtzburgo, rigorosamente de acordo comos preceitos de Lister; hi dois anos, reformou de alto a baixoo velho Hospital Julius, para 0 adaptar ao metodo de Lister.E, porem, urn dos maiores sistematicos que encontrei na Ale-man~l~; nao t~rit sossego, enquanto nao averiguar porque asbactenas das ll1fecc;oes traum:iticas, mesmo sem acido carbo-lico, sob ataduras engessadas nao provocam supura<;oes. Soude parecer q~e ainda poderia haver descobertas e surpresas.

- TamlJem sou desse parecer - interveio Volkmann quee~trara, sem ser percebido: - Americanos que se encontram,nao? 0 mundo esta cada vez menor, Senhor Halsted!. Acabeide ouvir que a conversac;ao versava sabre urn tema oportu-no ...

Volkmann aproximou-se, alto, esbelto, com 0 rostd emol-durado pOl' opulenta barba ruiva, calc;:as de tecido escoces, fra-que ornado de bordados coloridos e uma gravata de artist9.,encarnada e esvoa<;aqte, que era 0 encanto de Suzana.

Estranho como a sua aparencia era 0 proprio Volkmann,mescla de el)ergia, de tenacidade, de poucos escrupulos dedevaneios roma?ticos alemaes e duma infinita bondade ~es-soal. .Apenas qUll1quagenario, vivia ja sob a ameac;a duma en-fermIdade da medula espinhal que 0 atonnentaria ate ao sell

fim prematuro. Ele, porem, recalcava os seus sofrimentos,com ferrea disciplina. Lutando pOI' uma ideia, podia chegara extremos de arrebatamellto. A sua adesao a antissepsia va·1era-lhe, ern Viena, a inimizade de Bi1lroth, seu amigo inti-mo, mas contrario aos metodos de Lister. Era 0 mesmo ho-mem que, alto oficial medico alernao, durante 0 assedio deParis, em 1870/71, escrevera fabulas dcliciosas: "0 Caiporae 0 Fe1izardo", ou "0 Diabinho que Caiu na Pia Batismal daCatedral de Colonia", e 0 seu livro "Devaneios, ao Pe dumaLareira Francesa", que 0 tornaram famoso. Professor de ci-rurgia, era adOl'ado pelos discipulos, pOl'que lhes falava comfantasia cintilante. A sua sensihilidade foi uma das razoescapitais pOl' que, especialmente apos a guerra franco-prussia-na - guerra em que os franceses perderam, em conseqi.ien-cia de infec<;oes traumaticas, 10.000 dos 13.175 amputados, naose salvando urn s6 caso de ampu ta<;ao no setor germanico on-de muitos hospitais de sangue eram reconheciveis, a quil6-metros de distancia, pelo cheil'o pestilencial - Volkmann,procurando desesperadamente urn remedio, depois de eertot:epticismo a principio, aderira resolutamente a Lister. E 1i-cito dizer, e sem receio de errar, que a sua contribuic;ao pes-soal foi decisiva para a propagac;ao da antissepsia.

- Vim convida-los para 0 cafe - disse ele, voltando-separa mim. - Antes, porem, encomendo-lhe que siga 0 con-selho do sell j ovem compatriota e visite von Bergmann. Nosnos conhecemos desde a guerra; e, anos atras, talvez eu 0

tenha salvo de morrer duma infec<;ao operat6ria. Ele experi-mentou em si pr6prio a erisipela e, desde entao, se tarnou ini-migo mais encarnic;ado desse mal. Com ele, 0 senhor nao en-contrara s6 0 vaporizador de fenol, as ataduras com fenol etodo 0 arsenal da tecnica de Lister. Depois que aboliu nasopel'a<;oes, os aventais pretos usados pelo seu antecessor ...aventais que eram pretos, s6 para que nao se vissem tanto 0

sangue e a sujeira, ... medicos e enfermeiras, a roda de Berg-mann, usam aventais brancos, recem-lavados. E urn quadrocompletamente novo. Aconselho-o a ve-lo. Encontl'ara 130urnhomem que tern urn grande futuro ...

Volkmann fitava Suzana, Com os seus belos olhos azuis;e eu tive a impressao de que, a palavra "futuro", uma som-

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bra. os ~oldou, como se ele pressentisse que, para ela, ja naohavla tao longo prazo de vida. .

Mas, agora, ienham a bondade ... - apressou-se a di-

e assumia 0 carateI' dum encarni<;ado combate de retirada.Em Viena, Bi11roth renunciava com grande pesar a sua tesedum "zim6ide flogistico", ou substfmcia irritante que se alo-.ia no ferimento e excita 0 sangue. As bacterias - opinavade - s6 intervinham mais tarde e agravavam apenas 0 efei-to do "zim6ide".

Billroth tambem era autor da tese de que existe s6 urn"micr6bio basico" 0 qual, segundo a natureza da lesao, assu-me diferentes formas. Teorias analogas brotavam pOI' assimdizer do solo, especialmente em Paris. Originavam-se, antesde tudo do fato dos sens autores nao dominarem a tecnica deKoch e confundirem bacterias com micleos de celulas mor-tas. 0 quadro desse· combate de retirada, em que uma era in-teira tinha de se render a uma nova epoca, se nos afigura ho-je extravagante e, muitas vezes, um tanto ridiculo. Todavia,nos anos em que essa transforma<;ao se operava de fato, 0

conflito de opinioes era ferrenho e duma seriedade obstina-da, mal se chocavam as mentalidades dirigentes daquele tem-po. No campo vasto da clinica cirurgica, agiam porem, ou-tros fatbres. As for<;as progressistas haviam aderido aos me-todos de Lister e aceitavam inevitavelmente as descobertas deKoch. Mas, para a grande mass a de "carreiros cirurgicos" domundo inteiro, os process os de Lister eram demasiado minn-ciosos e dificeis. A sua meticulosidade contrariava-Ihes a te-se fundamental que lhes regera 0 aprendizado e a atividadeprofissional: a rotina. Qualquer teoria que nao apoiasse fl

de Lister parecia-Ihes preferivel a ciencia de Koch. A inerciahumana, a que ja sucumbira Semmelweis, evidenciava maisuma vez 0 seu poder.

o fato de causal' 0 fenol, a pele das maos de numerososcirurgioes, lesoes refratarias a todo tratamento, nao menosdo que a circunstfmcia de provocar acidentalmente a vapori-za<;ao do antisseptico intoxica<;6es e afec<;oes renais, forne-cia urn pretexto, aproveitado de born grado para evitar os in-c6modos do metodo de tratamento listeriano. Em muitos hos-pitais, s6 se instaurou 0 emprego do acido carb6lico, depois damorte dos cirurgi6es mais antigos. Outros profissionais s6capitularam. quando os pacientes dos seus hospitais malchei-rosos deixaram de procura-Ios. Insensi~ilizados, durante lon-••

Vivendo Duma despreocupa<;ao feliz, Suzana e eu adia-n~o~ a visita a Wuerzburg para depois do nosso periodo defenas na Fran<;a. Sobreveio, porem, a terrivel enfermidadede minha esposa. A luta desesperada para salva-la, 0 aba-10 subseqiiente e duradouro sofrido pela minha fe na ilimi-tada capacidade de evolu<;ao e poder da ciencia cirurgica,afastaram··me pOI' muito tempo do curso ulterior da campa-nha pela assepsia. S6 anos depois conheci Bergmann. Fossecomo fosse, mantinha-me suficientemente a par do movimen-to, para acompanhar a transforma<;ao em maravilhosa reali-dade das hip6teses formuladas, naquela noite mem6ravel, emcasa de Volkmann.

Nos anos, que se seguiram imediatamente ao de 1880 os"assassinos emboscados" foram arrancados, mll a um, aos ;eusesconderijos milenarios e trazidos a luz. Descobriram-se 0

"StaP.hyl~~occus pyogenes", 0 "Streptococus pyogenes", agen-tes dwbollcos de diferentes formas de febre purulenta. 0alemao Fehleisen descobriu a bacteria da er.isipela, uma for-ma de estreptococo de resistencia excepcional. Essa extraor-dinaria capacidade de resistencia explica pOl' que e tao difi-cil banir a erisipela dos hospitais onde ela se instalou. Car-le Batton demonstrou que 0 tetano bestial tambem se origin ade bacterias; e Kitasato, 0 discipulo japones de Koch, desco-briu essa especie de micr6bio: 0 bacilo do tetano - desco ..berta esta, precedida, sem duvida, duma luta longa e penosa,porque 0 bacilo do tetano s6 medra isolado do ar.

Bern larga parecia a estrada aberta pela obra de Lister.A obsessao com que, pOl' esse tempo, biologistas e cirurgi6esaventavam teorias novas, meramente para se eximirern deaceitar como germes vivos os agentes da febre purulenta, daerisipela, do tetano, era em 'ultima analise apenas fantastica

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gos anos, pelo habito de verem morrer os seus enfermos viti-mados pelas infec<;oes traumaticas, suhmetiam-secontra a von-tade. E, quando me lembro de quanto teni.po eu proprio acre-ditei na inevitabilidade dessa forma de morte, nem me ani-mo a condena-los. So se poderia cQndenar a imperfei<;ao hu-mana.

Nos primeiros tempos da sua atividade em Nova York,Halsted nao podia empregar, no anfiteatro cirurgico do Hos-pital Bellevue, a tecnica operatoria antisseptica. Viu-se for-<;ado a armar, no j ardim, uma tenda mantida em rigorosascondi<;oes de higiene, e ali operava. No hospital presbiteria-no, houve luta e animosidade entre Halsted e 0 cirurgiao or-dinario do estabelecimento, Briddon, porque 0 colega maisnovo' 0 concitara, no anfiteatro, em presen<;a dos discipulos,a laval' finalmente as maos.

Esse estado de cousas prolongou-se ate a ultima decada doseculo, quando 0 metodo de cur a de Lister conquistou 0 mun-do. E -- caso freqiiente, na his tori a da ciencia - os conver-tidos mais uma vez ultrapassaram amplamente 0 exemplo ea finalidade marcada pelo mestre tao longamente desprezado.Nao se limitaram a mergulhar os instrumentos em solu«oesde fenol, a banhar em fenol 0 material das suturas, a embe-ber as ataduras em fenol; 0 vaporizador pulverizava mais fe-nol do que 0 empregado pOl' Lister nas suas opera<;6es. A~incisoes, a cavidade abdominal eram lavadas com litros desolu<;ao de fenol. Verdadeira mare doutros antissepticos as-sociou-se ao fenol, Ii frente de todos os sublimados. A mar-cha triunfal do "listerianismo" tornou-se impressionante.

Estando ainda em movimento essa marcha triunfal tar-dia, que evideneiava dum lado os seus triunfos, do outro asseus perigosos exageros, iniciou-se a evolu<;ao prevista duran-te a nossa conversa<;ao em casa de Volkmann. 0 ponto departida principal foi a Alemanha; a sede mais importante, exa-tamente a clinica de von Bergmann, 0 qual sucedera,no anade 1882, von Langeberck, em Berlim. Alguns assistentes de Ro-berto Koch e os franceses Toussaint, Chauveau, Vinay e Ter-rier desempenharam papeis de relevo nesse movimento.

Como e notorio, Lister presumira que os germes infeccio-sos vinham, princi:' ?.1mente do' ar, contaminar as les6es, as

maos e os instrumentos. Conseqiientemente, acumulava-se emnuvens, sobre as mesas de opera<;6es, a pulveriza<;ao antissep-tica do seu vaporizador. Lange e Schimmelbusch, assistentesde von Bergmann, ja entao dispunham das possibilidades tec-nicas criadas pOl' Koch, para pesquisar os germes suspensosna atmosfera. 0 resultado da pesquisa causou verdadeiro as-sombro. Nao adeja, no ar, a bem dizer nenhum agente de in-feC(;ao traumatica; no ar, so se identificaram fungos: do bo-lor, criptococos e esquisomicetos. No espa<;o de meia hora,nao se depositaram na superficie duma lesao, calculada emcern centimetros quadrados, mais duns setenta germes. na suamaioria inofensivos. Na poeira do solo, numa gota de secre-<;ao dum ferimento supurado, num instrumento cirurgico, usa-do numa ferida infeccionad!i e nao desinfetado depois douso, ou aderentes as maos, encontraram-se pelo contrariocentenas de milhares, milh6es de microbios, em grande parteperigosos e da especie mais temivel. POl·tanto, as baeteriascausadoras de infec<;6es traumaticas dificilmente poderiamprovir do ar. Derivavam evidentemente, e com mais probabi-lidade, do contact a imediato da lesao com a falta de asseio,com instrumentos e maos contaminados. Semmelweis, a h.i-glenista esquecido havia tanto tempo, falara com acerto em"infec<;ao pelo contacto".

Dentra em pouco, 0 vaporizador de Lister desaparecia dassalas de opera<;6es do mundo inteiro. Em 1887, 0 proprio Lis-ter nao hesitou em declara-lo superfluo. E urn grave pontode interroga<;aa se desenhou no horizonte. Nao teria razaoJoseph Lister? Seriam vitimas duma ilusao todos os que, aposdecenios de incerteza, the haviam adotado os metodas? E naopassariam de ilusoes as resultados incontestaveis, obtidos comos metodos de Lister? Em breve, porem, desanuviavam-se asfrontes e as ideias. Nao havia duvida de que Lister partiradurn pressuposto teorico' errado; mas isso carecia quase deimportancia, na pratica da sua a<;ao. Combatendo as bacte-rias no ar, ele chegara for<;osamente, etapa pOl' etapa, a exter-minar os germes depositados nas maos, nos instrumentos, nasataduras, nos fios das suturas, em tudo quanto estava em con-tacto quer com 0 ar, quer com as les6es, e podia em conse-qiiencia ser transmissor de contagia. Lister presumira que os

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microbios estivessem suspensos no ar. 0 fato de, na base dosconhecimentos mais recentes, se lhes. atribuir outras origensnao influia no result ado final.

Contudo, na c.linica de yon Bergmann, as pesquisas criavamum novo problema. Qual seria a grau de eficiencia dos meiosempregados pOI' Lister, na luta contra os germes de infec<;ao?Nada era ja entao mais facil do que cultivar esses germes onbacterias em filamentos, mergulhar os filamentos em acidncarbolico, ou em sublimado, e averiguar se prosperavam ounao se multiplicavam, se a fenol e 0 sublimado os aniquila-vam ou nao.

Estava-se, ja entao, em condic;6es de verificar exatamen-te quanto tempo teria de agir 0 acido carbolico, em bacteriase esporos, para os matar. Ja se podia calcular 0 tempo ne-cessaria de ac;ao, em dias, horas e minutos. Os resultados de-monstraram que acida carbolico a dois pOI' centa aniquilava!lum minuto as bacterias da esplenite, mas que - embora nadose de cinco pOl' cento e agindo dias a fio - 0 mesmo antis-septico ca.recia do poder de exercer qualquer influencia sobrea forma duradoura das bacterias: as esporos.

. As pesquisas dos efeitos do sublimado deram resultadossemelhantes. Explicar-se-iam assim certos insucessos do me~todo de Lister: isto e, certas bacterias escapariam ao efeitodo fenol? Investigac;6es subseqiientes proporcionaram, porem,outras surpresas. Atuando sabre um meio sujo ou gorduroso,o efeita das substfmcias quimicas ricocheteia simplesmente.As bacterias envolvem-se na imundicie e na graxa, como nummanto protetor. Seria porissoque os fios para suturas, fric-cionados com cera, lie bem que mergulhados dias a fio emsollH;6es de acido carbolico, sempre eausavam supurac;6es?Iluminava-se a escuridao em que Lister se debatera, nortean-do-se mais pela sua intuic;ao do que pOl' ciencia exata. Basea-do em experiencias, Roberto Koch deu a eonhecer um meioque excedia, em poder bactericida, tada salw;.ao de acido car-bolico e qualquer combinac;ao de sublimado: 0 jaeta de vapord'agua. 0 vapor da agua em ebulic;ao exterminava bacteriase esporos que sobrevivessem ~o efeito das soluc;6es quimicas.Dado que, nas ineis6es cirurgieas recentes, as bacterias so po-deriam penetrar pelo tramite' das maos, dos instrumentos e

do material empregado nos curativos - foi a eonclusao deSchimmelbusch, 0 assistente de yon Bergmann - bastariaexpor os instrumentos e 0 material de suturas e ataduras, aoj acto de vapor d'agua, para conseguir uma esterilizac;ao abso-luta. Schimmelbusch transpos a teoria para a pratica e foi,quase simultaneamente com 0 franees Terrier, 0 criador daesteriliza<;ao pelo vapor d'agua, que em breveconqui.~tou assalas de operac;6es da terra inteira. Na mesma epoca, 0 ci-rurgiao alemao Gustavo Adolfo Neuber - que transformaraa sua clinic a em campo experimental da assepsia em arandeestilo - ideou novos instrumentos, sem os cabos de r;:;,7ideiratradicionais, facilmente danificaveis pelo vapor d'agua. Osnovos instrumentos eram inteiramente metalicos e podiam sersubmetidos a feFvura. Eles t~mbem passaram a ser atributode todo 0 mundo cirurgico.

Num ponto deeisivo, porem, nem a agua fervente nem °vapor d'agua poderiam exereer a sua ac;ao: nas maos dosoperadores. POl' outro lado, pesquisas realizadas na Alema-nha provavam que justamente as maos, com 0 sabugo dasunhas, os refolhos e dobras da pele, eram urn viveiro de di-ferentes especies de bacterias. A imersao das maos em solu-c;6es de acido carbolico, instaurada pOl' Lister e ja entao ado-tada pela quase totalidade dos cirurgi6es, evidenciava uma efi-cicncia muito limitada. A soluc;ao de fenol nao atingia nu-merosas bacterias aloj adas nos paros e sulcos da epiderme.E como, alem dissa, 0 fenol atacava seriamente muitas maos,tarn an do-as asperas e gretadas, criavam-se com isso aos mi-crobias esconderijos adicionais. Os exitas do metodo liste-riano de imersao das maos, que tanto contribuira para domi-nar as infecc;6es traumaticas, s6 se explicavam pelo fato deserem os operadores abrigados a laval' simultaneamente asmaos com agua e sabao, para atenuar a cheiro do antissepti-co, que os acompanhava a toda parte. Mas isso, depois deprovada a evidencia a existencia das bacterias e das seus vi-veiros, ja nao resalvia 0 problema.

Na segunda meta de da oitava decada do seculo, fizeram-se numerosas tentativas. As maos eram lavadas, escovadas,friecionadas com toalhas esterilizadas, algodaoembebiqo .em

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alcool e sublimado corrosivo. Conseguia-se assim Ulll altograu de asseio; nao, porem, uma esteriliza<;:aoperfeita. Re-vestiram-se as maos com pastas estereis; estas esfarelavam-se, durante a intel'ven<;:ao. 0 austro-alemao Mikulicz foi 0

primeiro a protegeI' as maos com .luvas de linha, esteriliza-das a vapor. Mas, operando, essas luvas umedeciam-se e eraprecise troca-Ias constantemente.

Nisso, no verao de 1890, chegou de Baltimore uma Doti-cia aparentemente banal, mas que era, na realidade, uma no-ticia salvadora. Procedia da Universidade John Hopkins e ti-nhacomo centro de interesse Guilherme Ste'ward Halsted, jaentao professor de cirurgia em Baltimore. Halsted resolvenlo problema das "maos limpas".

Depois do nosso breve encontro em Halle, eu nao torna-ra a vel' Halsted, ate que num dia de jlinho de 1886, passan-do casualmente em Nova York pela Rua Vinte e Cinco, entreMadison e a Quarta Avenida, me vi sllbitamente defronte dacasa onde ele residia com 0 Dr. Thomas McBride.

Desde que Halsted, com uma atividade quase excessiv:Ol,inaugurara uma clinica cirurgica, a qual dedicHva to do ° seutempo, entre as primeiras horas da manha e.o unoitecer, cssacas a luxuosamente decOl'ada se tarnara a sua residencia. .hIentaa, ele operava em' nada menos de seis hospitais, contando-se entre des 0 Roosevelt, 0 Bellevue, 0 Presbiteriano e a ChilIll-bery Street Hospital. Alem disso, lecionava ate aIta noite, naRua Vinte e Cinco, aproximadamente cinqi.ienta alnnos quenele adivinhavam 0 futuro grande mestre, estribado na siste-matica cientifica europeia.

Nesse dia de junho, uma resolu<;:ao repentina me fez locm'a campainha. Mas encontrei so McBride, alguns an os maisvelho do que Halsted e um dos medicos mais procurados emais abastados de Nova York. Com uma reserva, que poderiaparecer constrangimento, McBride informou-me de que Hals-ted se achava, descansando, num hospital de Providence; ain-da nao se conhecia a data do seu regresso. McBride tambem

aparel1tava a mesma ignorancia singular, acerca da naturezada enfermidade de Halsted. Despertada assim a minha aten-<;:ao.averiguei, dias depois, que Halsted realizava em si pro-prio experiencias com cocaina - esta, ja em vias de ser anes-tesico local - e se tornara cocainomano. 0 tratamento, a quese submetera, era uma cura de desintoxica<;:ao e, em verdadc,nao a primeira. Seja-me permitido omitir agora esse ate tra-gico da vida de Halsted. Nessa ocasiao, pouco se podia apu-rar sabre 0 estado de Halsted; e qualquer pessoa, que seprontificasse a fornecer esses escassos informes, dava a im-pressao de considera-Io viciado incuravel e, portanto, urn ho-mem liquidado.

Qual nao foi, pois, a minha surpresa, na primavera de1890 - pOl' ocasiao da minha .primeira \'isita a Baltimore, pa-ra vel' a John Hopkins University e a constl'lH;aO do hospitallocal - encontrando Halsted no exercicio d IS fun<;:6es de len-te de nova escol a de meclicina! 0 Dr. Welch, professor de ilna-tomia em Baltimore - que, baseando-se nas experiencias rer.-lizadas na Europa, no setor cia anatomia pato16gica, se empe-nhava desde anos em implantar 0 meSl110 ramo de ciencia naAmerica e em dar a medicina americana, ate ai empirica, lIm:lsubestrutura cientifica - ja tratara Halsted, durante a en-fermidade desle em Nova York e pusera-Ihe a disposi<;ao 0 la-boratorio patol6gico do hospital. Em conseqiiencia, como se

. - contrariando toda expectativa - embora cm'ado cIa into-xica<;:ao do entorpecente, the houvesse eSlllorecido 0 dinamis-mo do periodo de sucesso novaiorquino, Halsted entl'egara-sea uma atividade cientifica solitaria, especialmente ao estudomais amplo cIa infec<;:ao traumatica e a experiencias efetua·-das em tire6ides de caes. Meses antes, fora nomeado profes-sor de Cirurgia. Quando 0 tornei a vel', Halsted vivia emduas pe<;:as,no terceiro andar do hospital. Embora um tantomudado, em conseqiiencia do abalo sofI-ido em Nova York,nao perdera 0 seu acentuado senso de elegfmcia e de estilo.Mandara pintar as paredes da sala, tantas vezes quantas fos-sem precisas, para the satisfazer inteiramente·o gosto. Gual'-necida de ;preciosos moveis antigos, com a sua lareira aberta,a pe<;a causava uma impressao de elegancia requintada. Nu-ma das paredes, pendia uma reprodu<;:ao da Madona Sixtina.

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Contando ja trinta e sete anos de idade, meio calvo, ex-traordinariamente miope, Halsted usava urn tel'no do maismoderno corte Ingles. Welch, esse exemplar de genuina bo-nomia, sempre de charuto entre os dentes, contou que Hals-ted possuia algumas duzias de trajes dos melhores alfaiateslondrinos. Apesar do. sua popula<;ao de mais de duzentos milhabitantes, Baltimore ainda era uma autenticacidade sonha-dora e meridional, com arvores de sombra, orlando as velhasru.as, e jardins vi<;osos defronte das residencias mais bem tra-tadas, em Charles Street, Cathedral Street e St. Paul Street.Nas noites quentes de estio, improvisavam-se tertulias juntodas cercas. Nao havia canalizal;ao; em dias chuvosos, o.tra-vessavam-se as ruas, aproveitando saliencias do cal<;amento.Nas tar des de sabo.do, a agua das banheiras inundava as sar-get as. Os mosquitos vinham, aos bandos, de Jones Falls. Amalaria e 0 tifo eram endemicos.

Portanto, urn mundo diferente do de Nova York. Halsted,porem conservava os habitos de luxo dum "gentleman" no-vaiorquino. Em BaltilTIOre ninguem usava chapen de seda.Halsted tinho.-o e saia com ele a rua. Encomendava 0 cal<;a-do em Paris; ele mesmo escolhia 0 couro, e nao usava 0 cal<;a-do se 0 material nao the preenchesse as medidas. As camisastambem vinham de Paris; e no. Fran<;a ele as mandava laval'e engomar, pouco se lhe dando que demorassem semanas. Osseus raros lazeres passava-os no Maryland-Club; ou, como es-pectadar empertigado e digno, nos rings de boxe. Era umcs-quisitiio, sob varios aspectos. Bastava, alias, ve-lo 0.0 lado deOsler - igualmente recerl1-nomeado c que, mais tarde, se tor-nou clinico famosa do Hospital John Hopkins - para perce-LeI' que as suas singularidades derivavam do. illcapacidade dese external' e duma extraordinaria timidez. A sua grande dig-nidadc, a sua cortesi a wlene, a tendencia para zombar do SCll

umbiente - 0.0 passo que ficava meio vexado, quando era 0.1-vo dum gracejo - nada mais eram do que tentativasde res-guardar 0 seu sensivel eu interior contra 0 mundo externo.Halstcd convidou-me para tomar cafe no seu aposento; sur-preendeu-me bastante encontrar uma mulher ocupada em pre-para-la. Os cigarros Pall-Mall e 0 cafe turco forte figuravamentre as paixoes de Halsted, pi'incipalmcnte depois que clc

renunciara a cocaina. Mas 0 cafe tinha de ser feito de ma-neira especial. Halsted nao hesitava em catar pessoalmente,no seu cafe puro, os graos mal torrados, com 0 mesmo cui-dado com que passava a feuo uma toalha de mesa, antes dum

Fig. 10 ~ Luvas de borracha usadas durante as opera90es cirurgicas.Foram empregadas pe!a primeira vez par Halsted, medico americano,

no fim do secu!o passado.

jantar, ou fazia preparativos experimentais, para urn novometoda de opera<;ao.

Notei que a 1110<;0.conhecia a arte de fazer cafe, a pontode satisfazer as exigencias de Halsted. Elt apresentou-a como

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a Senhorita Carolina Hampton, enfermeira-chefe da sala deoperal(oes. Simpatizei com ela, nao so pela sua beleza bemtratada, como pela sua aparencia distinta que tinha algumacousa cia dignidade cordialmente correta de Halsted, se bemque temperada pOl' uma dose de encanto meridional. As pou-eas frases, que ela pronunciou, revelavam a sua boa educa~«aO, certa cuHura e urn carateI' energico. A Senhorita Hamp-ton retirou-se quase logo; era, sob todos os aspectos, umadama.

Halsted nao esperdiyou palavras com assuntos pessoais.Falamos da evolu«ao da assepsia e cia bacteriologia, da extir-paC;ao total da vesicula biliar, operac;ao que, partindo de Ber-lim, come<;ava a ser praticada e a qual eu proprio me submc-tera. Halsted interessava-se pOI' ela, especialmente desde que,em 1882 - com men os de trinta anos - em Albany, operarade noite a mae, limitando-se, porem, a abrir a vesicula e aextrair as calculos.

Halsted me expos alguns dos seus pIanos, relativos ao tra-tamento das doenc;as da tireoide, e do cancer do seio, bemcomo 0 seu projeto de fazer do John Hopkins Hospital 0 nu-cleo duma cirurgia 'cientifica na America. Nem uma palavra,porem, sobre a sua inven<;ao - importantissima para a con-secw;ao duma assepsia isenta quanto possivel de falhas: asluvas de borracha.

l\lais tarde compreendi pOl' que ele naa tocara nesse pon-to C pOl' que - salvo alus6es fortuitas - gUal'dOll silencio so-bre de, ate ao fim da vida. Na historia dessa invenC;ao, 0 ob-jetivo funde-se com 0 que 0 eu tem de mais pessoal, com 0

subjetivo que ele sempre timbrava em cercar dum muro. Es-se subjetivo, porem, personificava-se em Carolina Hampton,com quem Halsted se casou a 4 de junho de 1890, isto e, pou-co depois da minha visita.

A historia da inven9ao de Halsted figura indubitavelmen-te entre os epis6dios mais encantadores que acompanham amarcha da cirurgia. A Senhorita Hampton, enfermeira recem-formada, chegou de Nova York a Baltimore, na primavera de1889. Pelo que parece, a sua personalidade aristocratica des-de logo impressionou profundamente Guilherme Halsted. Ca-rolina pertencia. a uma familia abastada de plantadores do

SuI, cuja propriedade de Millwood fora destruida pOl' urn in-cenuio, durante a Guerra Civil. Seu pai, Frank Hampton, mar-rera na batalha de Brandy Station, urn ana apos a morte (laesp(isa.

Criada pelas tias, no estilo de vida do SuI, a pequenatemperamental, voluntariosa, revoltara-se contra 0 isolamen-to e a tutela em que vivia e, de iniciativa propria, fora a No-va York, para ser enfermeira. A simpatia nascente de Hals-ted confiara-lhe a dire~ao das "nurses" da sala de operac:;5es,para poupar a beldade orgulhosa 0 vexame de se suhordinal'a superiora. Nessa func:;ao, Carolina acabara de conquistar 0

cora~'iio blindado e esquivo do Dr. Halsted.

:\'a inverno de 1889, manifestaram-se na pele das maos def:arolinil Hampton, certas alterac;oes cuja causa era, sem dll-vida, 0 sublimado corrosivo, usado para desinfeta-Ias, na sa-la de operac:;6es. Adviera-Ihe clai urn eczema que se alastravaJlwis e mais e atacara tambem os bra<;os. Ate entao, ninguemdes('onfial's do sentimento de Halsted peIa bela en:errneira.S(>0 seu cuidado extremo pelas maos dela alertou a atenc:;aooos assistentes. Halsted fez numerosas experiencias, para de-belar 0 eczema; todas for am vas. No fim desse ano, nao res-tava a Carolina senao assistir a corrosao eczematosa das suasmuos, ou abandonar a sala de operac:;6es e, com ela, 0 JohnHopkins, Baltimore e Halsted.

Como este nunca revelou 0 que se passou no seu cora<;ao,naqnelas horas decisivas, so podemos presumir que 0 receiointimo de ser privado da companhia de Carolina lhe estimulas-se 0 talento inventivo. 0 certo e que, um belo dia, ele se apre-sentou a Senhorita Hampton e Ihe entregou um par de luvasde borracha, muito finas, que protegeriam as maos, sern es-torvar as movimentos. Ate entao, nao existiam luvas assim.As luvas de borracha, usadas ocasionalmente pelos anatomis-tas, eram de material grosseiro, poueo maleavel, inadequa-das para operaI' urn vivo eate para 0 trabalho de assistente deoperador. As luvas de Halsted, pelo contrario - encornenda-das pessoalmente pOI' ele a Goodyear Rubber Company _cram Ieves, macias, como uma segunds epiderme fina.- Ca-rolina Hampton usou-as, a partir daquele dia, esterilizadas

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com vapor d'agua. Com elas, as maos dispensavam 0 subli"mado. Tornando-se Senhora Halsted, Carolina deixou a salade opera<;oes. As luvas ficaram; e, nascidas pOl' assim dizercomo "luvas do anlOr" converteram-se, nas maos dos assisten-tes, em utensilio cirilrgico indispensavel.

A linguagem dos assistentes do Dr. Halsted nem sempreera eastigada como a dele. 0 Dr. Bloodgood, urn dos seus ill-timos c mais notaveis assistentes, ao enfiar pela primeira vezluvas" ,Ie borracha para uma opera<;ao, deixou eseapar estafrase:

-0 que serve a galinha tambem serve ao galo ...Ja enHio, as luvas de borracha haviam conquistado des-

de muito as salas de opera<;oes do mundo, preenchendo umalacuna importante, no sistema de assepsia. A cirurgia esta-\'a armada, para estender a sua a<;ao a todos os orgaos doem'po humano, inclusive os mais secretos, e para evitar a il1-fecc;ao.

Estava irrevogavelmente superada a segunda grande bar-reira que the travava 0 desenvolvimento.