há muito o que contar... aqui - a. l. kennedy

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há muito o que contar... aqui

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há muito o que contar... aqui

Um romance por

A. L. Kennedy

Tradução

Paulo Sanchez

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Tha móran an so.

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Alfred estava deixando o bigode crescer.

Um observador desatento poderia achar que ele estava ocioso, sem muito o que fazer no campo, mas não era este o caso. De fato, ele estava concentrado, alisando os pelos do bigode, certificando-se de que eles estavam alinhados.

Seu progresso até agora fora bastante impressionante: um crescimento respeitável o qual já sugeria confiança e calma. Ele tinha algumas desvantagens, alguns defeitos: a baixa estatura, as mãos deselegantes, um pouco de calvície, o hábito de “comer” as palavras antes que pudesse pronunciá-las, o costume de sempre olhar para o chão — e alguns quilos a mais na cintura, que mostravam falta de condicionamento físico —, mas ele não era totalmente feio nem desprezível.

Seu principal problema era o cansaço, ou melhor, uma irritação por causa de seu cansaço, ou possivelmente ambos. Ele não mais conseguia distinguir.

Não que ele fosse esquisito ou peculiar, pelo contrário: ele era dócil, sensível e comum, nada mais: mas até mesmo uma pessoa

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comum poderia, de vez em quando, ter o suficiente para se acomo-dar e, por exemplo, desejar ocasionalmente que lhe ofereçam uma oportunidade.

Seria apenas razoável, não seria? Um homem deveria achar que tem uma possibilidade de liberdade, um pouco mais de espaço. Um intervalo entre uma possibilidade e outra que lhe proporcionaria esse espaço. Mas, de vez em quando, você olha para si mesmo e tudo o que vê são problemas e se surpreende de ter conseguido al-guma vez sair de casa — de sua cama, que dirá de sua casa. Você se olha no espelho algumas manhãs e se surpreende por não se ter dado conta disso; como uma grande parte de você está sempre clamando por liberdade.

Com bigode ou sem, aquilo não iria mudar.O problema era que havia muito o que fazer: respirar, dormir,

andar, comer. Não havia como evitar, você fora concebido para precisar dessas coisas, e assim elas continuavam surgindo, vez após vez. Onde estariam as outras possibilidades, as mudanças que você poderia querer fazer — como andar sob o oceano —, não como um peixe, ele detestava peixes, mas sendo um homem consumido vigorosamente pelo oceano, por que não poderia tentar isso? Por que não tentar qualquer coisa de que tivesse vontade?

E o fato de ter de pensar, por si só, não ajudava em nada, mas mesmo assim você era obrigado a pensar o tempo todo. Era nos pensamentos que você sonhava, quando você falava, quando você cumpria com suas muitas outras obrigações. Se você não pudesse manter o controle de seus pensamentos e ficasse em estado de alerta, então você poderia imaginar qualquer coisa, exatamente a liberdade que você evitaria. Você poderia evitar algumas lembranças, se evadir delas, mas ainda assim elas o assombrariam.

Você tem de ter cuidado. Esta manhã ele podia senti-las, dentro de si e por todos os

lados, lembranças perversas caçoando dele, furtivas. Indesejadas, elas o invadiam por detrás de seu rosto, e por fora elas engrossavam o ar até que sua pele pudesse tocá-las, pressionando seus lábios, era

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muito mais rápido e complexo que apenas ar. Hoje elas tinham o cheiro de azul, suave azul da Força Aérea: do forte odor que vem da garoa sobre o couro e a lã, e por todos os lados o cheiro vívido de azul: da graxa e do gumex, do nauseante sabonete laranja rosado e de Woodbines1 e Sweet Caporal2 e outra marca barata, aquela que era distribuída depois das missões: o Thames, para aplacar os nervos.

“Olá, isso se parece com o nevoeiro de Londres novamente.”Pluckrose havia incentivado os demais a chamar para as

reuniões na sala de interrogatório após o término das missões de nevoeiro de Londres — a começar por ele e depois os demais — uma insinuação à névoa que paira sobre o rio Tâmisa. Algo que eles compartilhavam entre si como tripulação: “O nevoeiro de Londres novamente.”

Mas Alfred não queria se lembrar de Pluckrose, não deixaria que ele entrasse em seus pensamentos.

Pare com isso. Certo? E desta vez é sério. Está bem?Então o barulho diminuiu obedientemente, trazendo-o de

volta à realidade e à vontade onde ele estava.Não que ele tivesse certeza sobre isso — sua localização pre-

cisa —, a não ser pelo fato de que estava sentado, sentado atrás de um jovem bigode.

Eles haviam-se distanciado da rota original há muito tempo, Alfred nem percebeu quando isso aconteceu, mas não havia dú-vida de que estavam perdidos, se é que soubessem onde estavam

1 Woodbine é uma marca de cigarro apreciada pela classe trabalhadora do norte da Inglaterra desde o século XIX. Reconhecida por seus cigarros fortes e sem filtro, a marca tornou-se popular especialmente entre os soldados da Primeira Guerra Mundial (N.T.).2 Sweet Caporal era uma marca de cigarro canadense. Durante a Segunda Guerra Mundial a Imperial Tobacco Company of Canada Ltd. emitiu uma série famosa com desenhos de aviões aliados e inimigos estampados no verso dos maços e em cartões colecionáveis, especialmente úteis para aviadores (N.T.).

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em primeiro lugar. E isso tinha causado certo aborrecimento, uma irritação: chegar a lugar nenhum, tropeçando e vagando por trilhas que se dividiam, se multiplicavam, e que os abandonou comple-tamente: caminhando, suado, pela charneca atrás de um homem complemente desconhecido — Vasyl — de quem você já ouvira falar: rumores de uma história que não acabou bem e uma faca.

Mas, tudo bem. Eu ainda estou desfrutando de minha situação. Ela não me preocupa nem um pouco. Porque desejo estar contente. É tudo tão enorme e plano por aqui que posso ter espaço para isso.

E o dia está lindo e ótimo para descansar, escapar de tudo. Então, não vou me desanimar: não há motivo para isso.

Mesmo porque, pelo menos é tudo tranquilo e eu sempre gostei de apreciar um pouco de paz. Dá para ficar cansado das multidões. Elas incomodam sua mente.

Uma de cada vez, era possível lidar com as pessoas, mas não com multidões, e estas últimas semanas não haviam sido nem um pouco calmas — sendo transportados a lugares, instruídos, manda-dos — exatamente como no passado — demasiadamente parecido com o passado — você e os outros voluntários. Primeira regra da vida como civil: nunca seja voluntário. Então o sensato hoje, quando nada lhe é exigido, é que você possa recuperar o tempo perdido, se acomodar; e ninguém pode fazer isso tendo uma multidão em volta: não é possível nem digno.

Vasyl, é claro, não é uma multidão e, portanto, não conta. Ho-mens dos quais você ouve histórias não se interessam pelo que você faz. Eles o deixam seguir seu rumo da forma que você quiser e fazem de conta que não viram nada. Eles agem da forma que eles gostariam que você agisse com eles.

Deve ter passado um bom tempo desde que eles arrumaram a mochila para a caminhada, se acomodaram em um pedaço do gramado com pequenas flores amarelas, que ele desconhecia o nome, espalhadas por todos os lados. Sua vista do terreno em volta vibrava gentilmente por causa do calor e ele percebeu que havia uma poeira clara em suas botas, na barra de suas calças. Tudo o que

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ele vestia havia sido emprestado, nada realmente que fosse de sua responsabilidade, mas algo dentro dele ainda lhe dizia que essas roupas faziam parte de um equipamento que ele estava acostumando a zelar. Por que continuar vestindo isso? Ele não mais estava no serviço militar, não era necessário.

Veja como você está — imundo — todo sujo —, você teria sido repreendido por isso, Day. Você seria colocado na lista negra. Uma desgraça para todos. Ora, pare de se aborrecer.

Sem contar que não é mais necessário seguir os Regulamentos do Rei3.

E a poeira, você poderia dizer, estava localizada bem ao extremo de seu corpo e não tinha nada a ver com a limpeza da parte superior, os segredos limpos de seus pensamentos, pensamentos convidativos.

Um pouco de sol, isso o deixa mais vagaroso, permite relaxar — e ao longe, se houver algo suspeito, você pode enxergar com bastante antecedência para se preparar para o que está vindo. Este é o lugar e o clima para se relaxar, para o cultivo de pensamentos agradáveis.

Ele contorceu suas mãos e apenas se concentrou em aproveitar o bem treinado murmúrio que passava gentilmente em sua cabeça dentro de seu cérebro, fazendo o sangue circular, mantendo-o defen-sivo e funcionando, seus dedos acomodando sua nuca e alisando sua jaqueta dobrada. O uniforme de combate servia de péssimo apoio para a cabeça. Você até poderia pensar que ele fora concebido com algum outro propósito.

A grama afiada pinicava através de sua camisa, mas por alguma razão isso era bastante relaxante, assim como os enxames de inse-tos, zunindo acima dele por quilômetros após quilômetros de tufos de relva. Deitar-se assim: era muito bom — passara-se um longo tempo desde que você descobrira essa sensação agradável, melhor agora acompanhado deste estranho, este tal Vasyl, um tolo que ora

3 The King’s Regulations & Orders For The Army (1 de junho de 1837), atu-almente Queen’s Regulations, em português Regulamentos do Rei, são os regulamentos e as ordens que se aplicam a todos os postos em que as tropas po-dem estar servindo (N.T.).

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ficava sentado ora se agitava inquieto, acendendo constantemente um isqueiro americano, sugando cigarros americanos roubados. Muito possivelmente ele também roubara o isqueiro.

“Você precisa fazer tanto barulho para fumar?”“Sim, eu preciso.” Sua pronúncia era engraçada, como se sua

língua estivesse com algum problema ou anestesiada. “Estes são dos bons. Da melhor qualidade. Quer um?” Disse isso com uma voz seca, fraca — dando a sensação que uma parte dele estivesse morta, embora você ignorasse isso — que nada tinha a ver com você.

“Eu não fumo.”“Todo mundo fuma, sr. Alfred.”“Então eu não sou ninguém, Basil.” Desfrutando da ideia

de estar aborrecendo um homem que deve se sentir desajeitado quando aborrecido.

“Meu nome é Vasyl. Vasyl! Não é um nome difícil. Um belo nome ucraniano. Também pode me chamar de Slavko. Este é outro nome que tenho. Um nome melhor.”

“Quer dizer um segundo nome? Como Basil Slavko?”“Quero dizer meu outro nome. Outro nome para outras coisas.

E é Vasyl!” Soando tão irritado quanto sua voz fraca permitia, mas ainda não irritado o suficiente.

“Onde você conseguiu esse isqueiro?” E acrescentou, “Vasyl”, certificando-se de dizer o nome de forma tediosa e quase gritando, porque ninguém deveria ter de se preocupar com o nome das pes-soas, não agora — insistir nos detalhes era um absurdo — e porque ele desejava comprar uma briga. Alfred imaginou se isso, de fato, não teria sido a razão de ele ter vindo — fazer uma jornada pela charneca pelo exercício físico e o aprendizado, levar uma surra até perder os sentidos para depois voltar para casa. Isso, sim, seria uma mudança.

Mas agora Vasyl somente dava risada em um tom que fez Alfred se sentir enjoado, e ridículo também. “Pegue um.” O maço ofereceu com um tapinha no ombro. “Pegue um. Você vai gostar.” Vasyl se apoiou em seu braço, respirando, transpirando. “Chesterfields de

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verdade.” Seu uniforme parecia mais pesado e quente que o de Alfred.

Alfred esperou que a sanguessuga oportunista se afastasse. “Fume um por mim. Eu não sou ninguém, lembra-se? Nenhum outro nome. Nenhuma outra coisa.”

“OK.” Alfred olhou de relance e viu Vasyl acender um segundo cigarro,

segurando um em cada mão, a esse ponto sorrindo abertamente — olhos profundos demonstrando preocupação ou ocupados com algum tipo de cálculo mental, uma urgência qualquer —, mas a boca era aparentemente amigável e contente. Ele tinha a pele engraçada, toda marcada — isso fez Alfred pensar em fragmentos, explosões. O que não condizia com seu estado de espírito.

“E nem vou dizer com o que você se parece!” Alfred se deitou, apoiou a cabeça sobre as palmas das mãos e se esticou.

“Eu me pareço com um homem com muitos cigarros.” Enfa-tizando a frase, de forma afiada, seguida de uma risada curta que rapidamente se tornou em uma tosse, em silêncio, e depois em uma tragada com a mão esquerda, em uma tragada com a mão direita.

Eu nunca fumei por nenhum motivo. Eles disseram que ao final eu iria, mas não fumei. Minha mãe mandou que eu não fumasse — ela sempre dizia que não me queria ver gastar todo meu dinheiro, imaginando acidentes que poderiam acontecer comigo — combustí-vel, e máquinas, e fogo. Eu disse a ela que não precisava se preocupar. Mas de qualquer forma, você sempre fez o que sua mãe mandou, não é assim, filhinho da mamãe?Devo tentar manter minha palavra.

Enviei a ela um pouco de dinheiro. Não o suficiente.Não que ela pedisse. Ela nunca teria pedido.Eu tentei.Isso é o que conta. Que eu tentei.É isso mesmo. Eu fui um bom garoto. Eu matei, roubei e usei

grandes palavras, mas nunca fumei e fui um bom garoto. Que rapaz bonzinho eu fui.

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O céu estava encarando Alfred quando de repente algo chamou sua atenção e ele olhou para cima com os olhos semiabertos, sentiu que havia uma harmonia entre eles, fazendo-o sentir-se relaxado, purificando seu corpo. “Deve ter tido uma tempestade em algum lugar.” Ele estava tão à vontade a ponto de nem se mover, absorto por um suave devaneio.

“Hã?”Ao alto, nuvens com a aparência de um véu muito fino, es-

branquiçado e transparente, onde o azul era mais forte: ele havia aprendido o que isso significava. “Cirrostratus… umidade… Faz muito frio lá em cima. Tudo congela lá em cima.” Afastou o pen-samento antes que pudesse se tornar algo desagradável. “Deve ter havido uma tempestade em algum lugar. Mais cedo.” E ele estava contente por não tê-la escutado, que ninguém a tivesse escutado, porque ele estava calmo naquele momento, mas nunca se sabia o que podia se tornar um problema, o que poderia se tornar uma dificuldade para alguém. As pessoas eram imprevisíveis — even-tualmente, estar ao lado delas sempre mostrava a você a mesma coisa: não havia nada nelas em que confiar. Qualquer uma poderia te abandonar.

Um pensamento infeliz esse: não é mesmo, rapaz?O que não é de nosso feitio. Estamos tão felizes quanto este mal-

dito céu é grande.Sim, mas este maldito Day não é nem um pouco grande. Um

maldito metro e malditos sessenta e dois centímetros. Muito obrigado! Isso é que é ser pequeno.

Mas ser pequeno tem suas vantagens. Como Pluckrose costumava dizer: “Este é meu amigo e colega,

Sargento Day, Alfred F., e antes que você diga algo, ele não é um pequeno filho da mãe atarracado, ele é convenientemente pequeno. Não poderia caber na torre de metralhadora de um bombardeiro se não fosse pequeno, poderia?”

Pluckrose, que também era um sargento, embora isso não fosse apropriado a ele — não que uma patente fizesse alguma diferença.

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Seu rosto simplesmente não era compatível com o Conselho de Instruções Aéreas4: ele não tinha a aparência apropriada e seus superiores o ignoravam. Além do que, ele nunca conseguia calar a boca. “Bem... não fui eu quem pediu para vir.” Olhando por cima da cabeça de Alfred no primeiro dia, observando entusiasmado o hangar cheio de azul: homens em pé como se não tivessem nada mais a fazer; outros procurando por algo, como se estivessem atrasados, como se tivessem perdido alguma coisa ou tivessem sido esquecidos: outros que estavam agrupados, deixando de estar sozinhos. “Para falar a verdade, foi o Rei quem me pediu que viesse. Eu recebi um convite por escrito — por meio de intermediários, como se espera do protocolo, mas isso deveria fazer toda a diferença, não é mesmo? Obviamente, concordei em fazer minha parte. E nenhuma alma tem sido cortês comigo desde então, exceto você.” Ele olhou para baixo e Alfred podia ver que não havia dúvidas nele, nenhum constrangimento, somente a sensação de que ele o estava entretendo. “Não teria vindo se soubesse. Quero dizer, isso aqui parece que foi organizado de forma pouco eficiente, até agora. Isso mais se parece com uma merda de confusão.” E a amabilidade em sua voz fez com que o palavrão não soasse pessoal nem irritado, algo mais parecido a um comentário sem maldade. “É sério. Quero dizer, para começar, um homem poderia morrer com o maldito frio que faz aqui. E suspeito de outras coisas.”

Alfred, segurando as palavras, com vergonha da situação, disse apenas “sim” em alto e bom tom. Ele estava sendo discreto, so-mente dizendo frases que lhe davam confiança, não aquelas com a pronúncia de Staffordshire5:

4 Air Council Instructions, em português Conselho de Instruções Aéreas, é o conjunto de regulamentos da Royal Air Force (RAF), cujo padrão estrito de com-portamento e aparência os recrutas eram obrigados a se adaptar (N.T.).5 Staffordshire é uma cidade do Black Country, uma área pobre ao norte de Birminghan e ao sul de Wolverhampton. O Black Country é conhecido por seu dialeto distinto (N.T.).

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Yo bin and yo bay. Yo doe and yo day6. Mas as típicas da RAF ele ainda praticava em sua mente.Você é, ou tem sido e você não é, ou você não tem sido. Você faz

e não faz, ou você não fez.Tudo parecendo cada vez mais longo quando você dizia isso

dessa forma — e sons mais ásperos, com muitas palavras para se confundir, tendo de pronunciar uma de cada vez.

Eu tenho sido Eu sou. Eu fui.Como eu era. A forma suave como eu falava.Seu pai sempre lhe dizia: “Não fale com suavidade.” Mas ele

não queria dizer que você deveria falar sem se parecer um idiota. O que ele queria dizer era que Alfred era um idiota. Agora Alfred falava asperamente.

Ainda assim, ele não falava como Pluckrose nem queria — Pluckrose tinha vindo de outra Inglaterra. Pluckrose, com sua pronúncia impecável, poderia trabalhar na rádio: um inspetor de polícia, talvez, um amigo de Paul Temple7 ou um cavalheiro que perdeu documentos importantes e que precisa da ajuda de Sexton Blake8. Um cavalheiro com muito a dizer e atualmente comprome-tido em discorrer sobre seus problemas.

“Algumas dessas latas de geleia, você sabe — elas são da Grande Guerra. Geleia de ameixa e maçã, rejeitadas nas trincheiras. Isso não deve estar bem preservado.”

6 Dialeto do Black Country. Em português: “Você tem sido e não tem sido. Você não faz e não fez.” No correspondente em inglês: “You have been and you haven’t. You don’t and you didn’t” (N.T.).7 Paul Temple é um personagem de ficção criado pelo autor britânico Francis Durbridge (1912-1998). Um detetive particular amador que soluciona crimes por intermédio de um diálogo jocoso e sutil, Paul Temple surgiu em uma série para a rádio (N.T.).8 Sexton Blake é um detetive de ficção presente em muitos romances na Grã- -Bretanha. Suas aventuras também foram publicadas internacionalmente e em vários idiomas, de 1893 a 1978, em mais de quatro mil histórias e por duzentos autores diferentes (N.T.).

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Alfred não iria falar como Pluckrose, no máximo somente como uma desfiguração dele mesmo, sua melhor interpretação de como um sargento Day deveria ser.

As demais interpretações de Alfred foram treinadas, houve ajuda, e ele se dedicou a elas com certo deleite: ajustando suas mãos, entrelaçadas para ficar mais à vontade parado em pé, acertando o movimento circular do pino do gatilho em um único movimento, verificando o movimento da trava da culatra, aprendendo seus movimentos, sua nova aparência — o homem dentro da torre de tiro, o coração da metralhadora.

E era essa justamente a sensação de poder ter uma escolha, ter liberdade. Em algumas manhãs essa sensação era contagiante: uma permissão para manter essa nova identidade, para amar os padrões e hábitos de sua vida de aviador. Agora, entretanto, poderia ser diferente, essa nova tarefa era razoavelmente operacional e séria, muita correria para você pedir ajuda. Partes dele, como sua fala, não estavam tão bem assim, não funcionavam direito e talvez isso fosse um sinal de outras falhas mais graves que ele ainda não descobrira. Ele podia ver a si mesmo fracassando, sendo consumido em algum lugar frio e sem sentido de volta ao norte da Inglaterra, descascando batatas e lavando latrinas. E não seria isso um tipo de covardia: um medo que você não precisa admitir, porque você foge do perigo ao cometer erros demais? E talvez você tenha decepcionado outras pessoas antes disso, porque você estava com medo. Isso é o que eles sempre lhe diziam — entre em pânico e você destruirá equipamento valioso, você terá jogado fora todo o treinamento que lhe demos.

Pluckrose continuava falando, olhando para a porta, o teto, para Alfred e sua testa — que estava se franzindo — e para a única asa sobre o bolso no peito de Alfred — AG9 bordado sobre ela, o brevê do artilheiro, o emblema de sua qualificação. O primeiro

9 AG, Air Gunner ou Artilheiro Aéreo, membro de uma tripulação que opera a metralhadora na torre de uma aeronave. Bombardeiros mais antigos chegavam a ter até oito artilheiros (N.T.).

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teste que Alfred jamais havia passado. O primeiro que jamais ha-via feito.

Pluckrose piscou. “Você não está recrutando por conta própria, está? Sob instruções? Está montando uma tripulação?”

“Sim, encontrei você para o comandante.” Comendo as pala-vras como um murmúrio de sons típicos do Black Country, mas, tudo bem, porque era a primeira vez que ele havia dito aquilo — comandante — e ele sentiu o coração bater forte em seu peito, logo abaixo daquela asa solitária. Alfred tinha um comandante, ele já estava sob comando, ele estava bem cuidado. Ele se sentia con-fiante mesmo quando todos a seu redor estavam apreensivos e com tantas indecisões que ele mal podia compreender a profundidade. Homens inquietos e o vento batendo nas placas de metal soltas em algum lugar, e muitos deles largados aqui após os discursos de incentivo sabendo que eles teriam de se virar, fazer tudo de forma correta, porque você não podia acabar com os homens que sobras-sem e os mais fracos, não queria ser obrigado a se juntar a uma tripulação com nada além de perdedores e cabeças ocas, gente do tipo que mataria você.

Ele havia pensado rapidamente sobre isso, mas com muita clareza — do tipo que mataria você — e havia-se permitido esse pensamento, mas isso não lhe causou nenhum impacto, talvez porque Alfred já se sentia com um pouco de sorte, acomodado, com uma tripulação, a salvo.

Com sorte e quase sorrindo. Ele tinha um comandante.Ele foi capaz de dizer a Pluckrose: “Então, vamos. O coman-

dante está esperando.”Mas o comandante precisa ser o primeiro. Se você precisa

começar do zero, então você precisa começar por ele.O comandante era aquele que estava atrás de você e um pouco

a estibordo, esperando que você o reconhecesse no meio da mul-tidão, para se certificar que você tinha uma percepção dele, tinha instintos. Quando você se virou, ele foi solene, braços cruzados, olhando fixamente para você, a aba de seu quepe inclinada para

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frente de tal forma que você podia apenas vislumbrar sua inspeção: ele se manteve calado, mas já demonstrava um pouco de satisfação. “Casado?” Perguntou a Alfred sem intenção de desprezá-lo com a pergunta, sem querer ser desrespeitoso, mostrando que vocês eram colegas, como se já se conhecessem e que isso era o fim de uma conversa antiga, a última coisa que faltava ser verificada.

Ele inclinou sua cabeça por um momento e então deu para ver seus olhos, os quais você tinha certeza serem os olhos apro-priados a um piloto — você não tinha muito conhecimento sobre as coisas, mas eles deveriam ser assim mesmo: seu interesse muito distante e uma vivacidade estranha por detrás deles. Mais tarde, você veria o mesmo olhar em outros homens e você se lembraria do comandante, quer quisesse ou não.

Você percebeu que ele estava esperando por uma resposta e respondeu engasgado: “Não, senhor. Não sou casado.” como se você fosse um menino, como se nunca tivesse tocado uma mulher.

Mesmo porque você realmente não era casado e somente tinha tocado a si mesmo, e depois se corroeu por isso, e porque você era infinitamente mais jovem do que pensava.

Infinitamente: uma palavra que você aprendera logo — uma vez que o infinitamente já havia surgido e respirava contra você. O infinito aprecia as guerras, ele permite que elas surjam.

“Não, senhor. Não sou.”“Achei melhor perguntar. É melhor que sejam todos solteiros.

É mais fácil assim. Esse é meu plano.” E ele tira o quepe e avan-ça em sua direção e, antes que você pudesse se antecipar, você está sem seu quepe e apertando sua mão. Há murmúrio e gritos de muitos outros em sua volta, empurrões à medida que os homens tentam passar pela multidão, e você solta a mão dele, mas vocês es-tão juntos agora. Ele examina seu rosto e isso o deixa estático. Você vê seu rosto firme se contrastar contra a luz, seu olhar profundo, e você sente que ele fará o que for necessário, seja lá o que isso for, e parece que ele sentiu o mesmo em você, também, e está feliz. Ambos farão o que for necessário.

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“Posição?” Ele está quase sorrindo.“Posso ficar com a torre superior, se precisar.”“Mas você preferiria que não fosse assim, não é? Prefere ficar

sozinho na torre traseira por conta própria.”“A vista lá é melhor.” E eles matam você. Você é quem tem

maior probabilidade de morrer — é por isso que você sempre preferiu ficar ali, desde a primeira vez que você ouviu falar da torre de cauda. “Eu gosto da vista privilegiada.” Desde a primeira vez que ouviu falar dela.

“Achei que sim.” Falando de forma calorosa, mesmo que você não esperasse por isso — você só precisava conseguir o que queria, estava pedindo para receber o que você queria. E ele aceitou. “Bem que achei que tivesse encontrado o homem certo.” E agora ele sorriu. “Meu nome é Peter Gibbs.” Ele coçou seu cabelo loiro como o sol, deixando você perceber que essa cor o incomodava quando ele se dava conta disso. “Ou Sandy10. Por motivos óbvios.”

Você precisou levantar sua voz para se fazer entender sobre a multidão, e isso poderia ser considerado como pouco confiável, embora no momento isso não o tivesse preocupado. “Day, Alfred.” Surpreendendo a você mesmo ao bater continência, exatamente como eles esperavam que você fizesse, a forma como um cão trei-nado faria se fosse capaz. Você se incorporara à patente, adicionara brilho ao serviço militar, você acreditou em sua patente, e acredi-tou no homem, e acreditou em si mesmo, até você acreditou em si mesmo. Depois do qual, você se sentiu envergonhado, é claro. Bater continência sem seu quepe — como poderia você ter sido mais estúpido.

Mas o comandante não se incomodou com isso enquanto você cobriu sua cabeça, sentiu o suor — e ele estava sorrindo também: por você, não de você. A pronúncia de um oficial, só que não como um oficial. “Eu quero uma aeronave disciplinada, sargento.” Ele já havia pensado a respeito disso e o diz a você para que se torne

10 Sandy é um apelido que se dá a pessoas cujos cabelos são muito claros (N.T.).

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verdadeiro. “Mas não acho que teremos muito tempo para cerimô-nias.” Sua voz cheia de bondade, que o acolhe e o leva a confiar nele. “Escolhi você primeiro, porque você deve cuidar de minha retaguarda. Se for preciso, basta você falar que eu não hesitarei em voar como você mandar. Pelo menos tentarei. Tentarei escapar.” Então, caso você estivesse achando que ele estava apenas se gaban-do. “Para dizer a verdade, eu sou um péssimo piloto. Esta é sua última oportunidade de cair fora…”

Você sorri para ele como resposta e depois acrescenta: “Bem, se tudo der errado, você pode pelo menos voar em círculos em sentido anti-horário e desatarraxar as lâmpadas dos holofotes deles...” O que é uma piada antiga, mas você precisa dela para preencher a pausa, porque nenhum de vocês pode adivinhar o que vai acontecer, mas é impossível admitir isso, não há futuro nisso, assim você faz parecer que uma missão será tão promissora quanto a próxima, porque todas as missões são insanas e vocês dois precisam demonstrar certeza mesmo quando não a tiverem, e quando você achar que vai começar a rir, disfarce, cante Jerusalém11: não há como prever: qualquer coisa serve para ludibriar sua mente, porque você está realmente aqui e começando a se tornar parte de uma tripulação em uma guerra — você mesmo no meio de uma guerra — e porque você está tão vivo, tão infinitamente vivo.

O comandante tosse, não reclamando, mas ele gostaria de estar no comando, ainda bem, e você aprecia ficar calado por ele, tendo ele fazendo você se concentrar. Você é capaz de se concentrar — um bom artilheiro se concentra.

“Sargento Day, vou procurar um bombardeador. Você procura um navegador, pode ser? Reencontro-lhe em dez minutos perto do extintor de incêndios.”

“Sim, senhor.”

11 Jerusalém é um hino britânico patriótico, composto por Charles Hubert Hastings Parry (1848-1918) em 1916. A letra é de um poema de William Blake (1757-1827) (N.T.).

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Você já está afastando-se quando ele toca seu braço, se agacha para ficar em sua altura. “Veja, eu deveria supor que um artilheiro deseja atirar nas coisas, não é? Bem, eu espero não ter de lhe dar essa oportunidade. A não ser que você consiga atirar com sua ca-beça batendo no teto da torre de metralhadora. Minha intenção é chegar ao alvo em segurança e bombardeá-lo. É nosso trabalho bombardear. Se você não gostar disso, é melhor me dizer agora.”

“Claro. Precisamos bombardear.” Mas há uma contradição dentro de você, você fora treinado para não errar e para gostar de acertar seu alvo, compreendendo como se posicionar para o abate: mil cento e cinquenta tiros por minuto — você conhece os macetes sombrios disso.

“Tem certeza? Quero dizer que não haverá guinadas furtivas.”Entretanto, você deixa o comentário passar em vão, porque

você não tem alternativa: ele é o comandante: “Se houver um caça em meu caminho e ele se assanhar, eu vou disparar. Mas vou cantar meus movimentos o tempo todo.” Você gosta da expressão cantar meus movimentos — a forma como ele interpretaria isso. “Não importa se eu bater a cabeça quando você mergulhar em parafuso — não há nada de importante nela.”

“Quando você disser vá, eu vou.”“Quando eu disser vá, você vai.”Mas ele vai concretizar seu desejo: nada é mais importante que

o bombardeio, o motivo de você estar ali, o que Chopper Harris12 diz que é o motivo de você estar ali. O Grande Chefe: ele diz que vocês serão os rapazes que colherão a tormenta13.

12 Arthur “Chopper” ou “Bomber” Harris foi nomeado comandante chefe do Coman-do de Bombardeios em fevereiro de 1942. Piloto hábil, Harris era um especialista em bombardeios noturnos. Ele foi incumbido por Churchill de atacar cidades alemãs por meio de táticas de bombardeio massivo que resultaram na destruição de grandes áreas urbanas (N.T.).13 Whirlwind, ou tormenta, é aqui uma alusão às palavras de um discurso de Churchill citadas em Oseias 8:7, livro bíblico, Oseias em referência à retaliação pelas ações alemãs: “Semeiam ventos, e segarão tormentas” (N.T.).

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E você não apenas obedece ao comandante, você quer obedecê-lo e isso faz uma enorme diferença. Mesmo que ao final tudo aconteça precisamente da mesma forma. Falando mais do que deveria: “Vamos bombardear. Vamos bombardear os filhos da puta.” E você não se ilude, porque você se sente confortável com o piloto oficial Gibbs; você sempre estará. O comandante é seguro, você sabe disso. “Não se importe se eu disparar balas rastreadoras por todos os lados — apenas mergulhe em parafuso; livre-nos de preocupações e conseguiremos voltar para casa.”

“Quando você mandar, Chefe.”“Quando eu mandar.”E então ele sorriu de forma diferente, um pouco ridículo. “É

isso mesmo, Chefe. Estamos de acordo.” Não havia motivo para ele chamá-lo de Chefe — talvez ele

quisesse que você se sentisse mais leve, porque você acabava de conceder-lhe o comando, ou talvez porque você fosse pequeno e isso é engraçado. Você nunca conseguia diferenciar essas coisas, mas de agora em diante ele o chamará de Chefe e isso fará com que os outros façam o mesmo até que este se torne seu nome. Um nome estranho para se escolher quando você nunca foi chefe de coisa alguma.

Quando você traz Pluckrose a ele, novamente há o aperto de mãos e você percebe como o comandante se movimenta: que ele é gentil, preciso, e você pode confundi-lo como não sendo lá um grande homem, mas realmente não há nenhum desperdício em seus gestos. Ele se posiciona exatamente onde deseja e fica parado. Se ele quisesse lhe dar um soco, o faria muito bem e com rapidez.

O comandante está sozinho, ele não encontrou nenhum bombardeador, ainda. “Desculpe, Chefe.” Ele dá de ombros, apreciando o fato de que está arrependido. “Não consegui achar ninguém adequado. Quem é esse?”

Pluckrose se apressou em explicar, antes de você poder respon-der, o que não foi uma surpresa.

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“Pluckrose! De uma longa linha de Pluckroses: como meu pai e meu avô, e assim por diante, todos eles homens e, é claro, minha mãe, que recebeu esse sobrenome — arrancou-o, seria mais apropriado —, embora possivelmente sob o efeito de alguma bebida — e assim, tendo eles mesmos de se conformar com isso, tiveram o prazer de passá-lo a mim.” Ele parece não estar respirando. “Todos eles ainda vivos. Pode ser que outros não tenham tido tal entusiasmo, embora quem possa dizer — uma vez Pluckrose, suponho que sempre um Pluckrose.” E o comandante olha para ele, imóvel e sem deixar transparecer qualquer pensamento, e você se pergunta se não cometeu um erro terrível em trazer um Pluckrose a ele. “Você pode imaginar como desejo conhecer outras pessoas — especialmente garotas — e, nossa, como eu gostava das escolas em que estudei — todas as oito. Eu realmente não tenho nada a dizer sobre educação, mal consigo somar, assim que não contaria em nenhum momento com meus cálculos — para mim, geometria é um idioma inexplorado — e idiomas, é claro: eles também são um território inexplorado. Struan Macallum Pluckrose, esse é o pacote completo — com um pequeno toque da Escócia por parte de mãe.” Pluckrose pisca ao olhar para o comandante, um momento de notável silêncio. “Gostaria de ver meu diário de bordo?”

Ofereceu-o antes mesmo de ser solicitado, seu rosto lutando entre resignação e um peculiar tipo de exultação, e o comandante estudou cada página calmamente, fechando-o e gentilmente o devolveu. “Bem, pelo menos ninguém escreveu que você é perigoso!”

“Mas posso ser bastante plausível se for preciso.”“O que poderia ser útil.”Pluckrose finalmente respirou, e isso que fez com que ele se

parecesse menor e não mais rugia a plenos pulmões. “Eu espero que seja.”

“Meu nome é Peter Gibbs, Sandy.” O comandante coça o pescoço, desvia rapidamente o olhar a seu navegador — que é Pluckrose — e em seguida a seu artilheiro da torre de cauda — que é você — e depois ao hangar onde mais grupos estão formando-se,

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pares e equipes de homens ganhando definição. “Querem saber, é somente um palpite...” ele murmura para que apenas vocês dois — sua tripulação — possam ouvi-lo. “Mas acho que vamos precisar de algum tempo para nos acostumar uns com os outros. Então, a partir de agora, deveríamos andar en masse, como uma pequena equipe, e nos apresentar em conjunto. Assim, ou eles se juntam a nós ou não, sem perda de tempo.

Vasyl decidiu que o almoço seria sobre a grama, desembrulhando um bom pedaço de pão, queijo e três ovos cozidos. Engraçado isso — não dá para dividir três ovos entre duas pessoas.

“Não se preocupe. Eu tenho uma faca.” Vasyl, parecendo um pouco tímido, colocou sua mão no bolso da calça e tirou uma lâmina de metal, coisa pequena. Ela ainda poderia causar algum dano, mas não era assustadora. “Minha faca famosa, não é?” Deixando-a sobre a palma da mão por um momento até que parecesse completamente inocente, apenas um instrumento de corte, um objeto sem utilidade. Depois, ele cortou o ovo no sentido do comprimento através da casca, deveras zeloso, fazendo isso com destreza, a lâmina bastante afiada. “Pronto, viu? O que é justo é justo.” Oferecendo a metade a Alfred em sua grande mão avermelhada.

Finalmente eles tinham algo em comum: entendiam de comida.Gororoba; era assim que a chamávamos no campo de prisioneiros.

Gororoba. Talvez isso facilitasse as coisas. Você esperava algo a mais da comida, tinha grandes expectativas: mas não sabia exatamente o que esperar de gororoba. E você precisava ter cuidado com ela, manter as porções iguais e adequadas.

Não que eles não tivessem mais que o suficiente naquele momento. Uma ração razoável para a tarde e uma garrafa de chá gelado para cada um — chá de verdade, não aquela imitação barata feita de margaridas, ou Deus sabe o que — e refeições disponíveis a qualquer hora, porções generosas.

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Mas, mesmo assim, você poderia se preocupar.

Refletir sobre comida era algo que havia perseguido Alfred nos últimos seis anos, muito após o final da guerra: isso e não passar fome, o impulso de comer o que fosse, quando fosse; e uma nova fatia de pão a cada manhã, para ajudá-lo a se acalmar. É assim que você descobriu que era um animal — você pegou a si mesmo estocando alimentos, selvagem, devorando: a mente fechada.

Você poderia achar que todos aqueles livros fariam diferen-ça, não é mesmo, meu rapaz? É isso o que todos disseram que iria acontecer. Você acaba rodeado de pessoas que leem, que gostam das palavras e se sentem à vontade com elas, e por isso você demonstra interesse, curiosidade, e isso é somente de sua conta e de mais nin-guém, e assim você descobre que está amadurecendo — um pequeno rapaz, mas grande por dentro, com espaço de sobra. Só depois é que eles se amontoam à sua volta, interferindo, querendo que você seja como eles, o garoto deles, seu bebê, e eles dão a você preocupações mais apuradas — de acordo com eles, você nunca teve de lidar com algo que realmente valesse a pena —, então agora você tem poucas preocupações e problemas delicados, como se sua cabeça tivesse sido transformada em um salão vazio — e eles dão palavras a você as quais não consegue usar e colocar em seu repertório, e supostamente isso deveria fazê-lo uma pessoa melhor, um homem mais completo. Uma excelente oportunidade de melhorar a si mesmo, a guerra.

A menos que você esteja com fome.

Aí você acaba comportando-se como um cachorro faminto qualquer.

Ainda assim, eles tinham razão. Ser um autodidata — palavra horrível esta, autodidata, mas uma das primeiras que você aprende: tudo por conta própria, sem a ajuda das pessoas que leem, sem ninguém — ser um autodidata tinha feito a diferença. Se não fosse pelos livros você poderia ter-se sentido mais envergonhado. Ou arrependido. Sua vergonha poderia ter sido evitada, provavelmente fora, mas não seu arrependimento.

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Ora, dê um tempo, está bem? Tudo isso foi há muitos anos e você poderia ter-se saído pior.

E não foi por falta de aviso — por alguém que fora educado em escolas —, Ivor Sands o alertara, e toda sua vida havia sido dedicada aos livros — busque algo em seu passado e você se machucará, você se lembrará e sairá machucado. Mas você não aceitaria conselhos de ninguém.

Alfred coçou a cabeça com os dedos. Nem vou precisar de um tapa na cabeça — a essa altura já estou

fazendo isso muito bem dentro de mim mesmoEle semicerrou suas pálpebras, virou-se em direção do calor e

encarou a luz suave, o sol de sangue.Hora de se recompor, Day. Chega de autoindulgência. Pense

em seu ovo — sua metade de gema cremosa. Ela não deveria ser negligenciada.

Ele olhou para o ovo, tirou a casca, sua boca de repente estava interessada.

Mas não teria sido isso tudo um aprendizado gratuito — a uni-versidade da guerra, munição explosiva, perfurantes e incendiá rias, só por diversão. E tanto por descobrir: os limites sombrios das pessoas e os malditos portões que não levam a lugar nenhum; dos quais você nem quer saber.

Já chega! Se você controlar seus pensamentos, então as coisas ficam mais agradáveis e educadas.

Então, os controle!E depois, o quê?Levemos em consideração as coisas pelas quais você deve estar

agradecido. Por exemplo?Por exemplo, você não negaria que tem grande apreço por uma

refeição. Quando há comida, você não a leva em vão. Não, mesmo! É como se você simplesmente não conseguisse parar de agradecer a Deus pela refeição.

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Amém! ... doim.

Mas este regulamento14 não é mais exigido!E nada de faltar com o respeito a Deus agora.Ele se concentrou no ovo e na mastigação — a consistência

agradável da gema, parte dela um pouco mais cremosa onde fora menos cozida. “Até que está bom, suponho. Mas faltou o sal.” Quando lambeu os lábios ele sentiu cócegas por causa dos pelos do bigode — o ato de comer seria diferente agora, bastante diferente. Ele gostou disso.

“Desculpe. Onde estou com a cabeça?” Vasyl jogou a ele um papel dobrado que escondia uma boa

pitada de sal. Ele deveria ter sido um escoteiro. Se é que houvesse escoteiros na Ucrânia. Mas Alfred concluiu que Tio Joe15 não de-veria ser tão complacente assim. Aliás, não era na Rússia que eles tinham outro tipo de regimento, algo a ver com socialismo?

“Um ovo com sal, isso sim que é bom.” O pão melhorou as coisas ainda mais. Um gole de chá. Uma fatia modesta de queijo. Não dava para reclamar.

“Quer um pouco disso?”“Que diabos!”Vasyl mostrou uma lata de Klim16 e tão rapidamente quanto

você gostaria, já a havia aberto, um ato aparentemente ameaça-dor. Havia muitos anos que Alfred tinha visto uma lata de Klim pela última vez e o choque ao ver a marca estampada na lata, com letras grossas e quadradas, o deixou um pouco desconcertado; ele engoliu em seco. “Que diabos!” Klim era coisa do passado, do

14 Dar graças antes das refeições era uma prática comum no Exército da Rainha (N.T.).15 Uncle Joe, Tio Joe, era o apelido de Joseph Stalin na mídia ocidental (N.T.).16 Klim foi o nome dado às rações de leite em pó distribuídas pela Cruz Vermelha Internacional aos prisioneiros aliados mantidos nos campos alemães durante a Segunda Guerra Mundial. O nome significa leite — milk — em inglês — escrito de trás para frente (N.T.).

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tempo em que Alfred passou no campo de prisioneiros. Ele não servia em 1949.

“Você não gosta? Leite é bom para você.” Vasyl estava em es-tado de alerta, mais interessado do que deveria. “Faz você crescer com ossos fortes.”

“Meus ossos já são fortes o suficiente, obrigado.” Assegurando---se de dizer isso secamente. “Não gostaria de crescer mais do que minhas roupas já comportam e ter de gastar dinheiro comprando outras. De onde venho, você sabe, todos precisamos economizar. Economizar libras, conseguir dólares, esse tipo de coisa.” Porque você não podia deixar que ele assumisse o controle da situação. Não seria prudente se destacar dos demais ou querer marcar seu território, mas você também não podia deixar alguém tê-lo como alvo. Mostre a eles que você não está com medo e isso já é metade da batalha ganha. “Estou apenas surpreso em ver a lata. Klim. Não sei por que, mas achei que eles deveriam ter mandado todas as fábricas de Klim pelos ares e depois jogado cada lata ao mar. Mal-dito Klim, malditos rebanhos de mineradores, comendo os malditos campos de capim. Eu considerei isso como um sinal de que ainda há em algum lugar do mundo alguém com senso de humor. É muito importante ter senso de humor.” A explicação fora exage-rada, muito longa, o que poderia dar a Vasyl uma vantagem. O que foi exatamente o que ele queria, sem dúvida. Melhor não se incomodar, porque isso poderia levar à fraqueza e outros tipos de arrependimentos. “Mas talvez eu esteja sendo sentimental demais, somente porque ainda sonho com essa porcaria. Frequentemente.” Errado de novo — Alfred percebeu nos olhos de Vasyl como suas palavras eram um convite à intromissão, um atalho.

“E todos têm estado tão ocupados em tempos de paz: mantendo o racionamento, comendo o que têm vontade, certificando-se que estejamos todos contentes e recebendo o que merecemos. Cada um de nós recebemos o que merecemos por termos defendido nossos valores, você não sabia disso?” Alfred estava ciente que agora soava tão amargo quanto Ivor Sands quando, de fato, ele não se

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parecia com Ivor, tinha certeza que não era tão mimado a esse ponto. Ainda assim, e apesar das reclamações, Alfred estendeu a mão, pegou a lata e engoliu um tanto do pó velho e doce. “Meu Deus!”

“Gosto bom? Do jeito que você se lembrava?”“É horrível. E eu prefiro meu chá puro. Pode ficar com o

resto.” Seu estômago se contraiu, por isso ele se deitou, respirou fundo por um instante.

Mas Vasyl estava determinado a tirar vantagem, não podia es-perar. “Diga-me uma coisa, sr. Alfred.”

Sua língua no céu da boca, limpando-a dos vestígios de Klim. “Não...” Isso era o problema do bigode — deixava as coisas mais vagarosas.

“Você dorme?”“Todo mundo dorme.”“Você dorme do jeito que gostaria? Tem um bom sono? É

suficiente para você, seu sono?” Ele era agora um homem deses-perado, em busca de sangue. Como o médico em Cosford, um psiquiatra ganancioso. Querendo roubar o pouco que restava de você e fazendo de conta que você não deveria se opor a isso.

“Meu sono é mais que suficiente para mim, obrigado. De vez em quando acordo cedo, mas somente para não dormir em demasia.”

“E agora que você está aqui na Alemanha, fazendo de conta que está em um campo de prisioneiros — mesmo assim, você dorme bem?” O canalha adivinhou, adivinhou corretamente, que a insônia — uma palavra charmosa essa, cheia de latim —, a insônia tinha sido um problema, mas que desde sua chegada o havia abandonado completamente.

Poderia não ter sido assim, supôs Alfred, mas o barulho no alo-jamento o havia acalmado: o som do vento, os chiados da madeira, os corpos mudando de posição, a suavidade da escuridão, nada disso o incomodava como antes. Pelo contrário, seu sono era pro-fundo, como se estivesse sendo engolido, a penumbra o consumia

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tão logo ele se deitava e tomava conta dele, uma sombra espessa e sem imperfeições, até que precisassem sacudi-lo ao toque da corneta, trazê-lo de volta à luz.

Nem foi preciso dizer que ontem de manhã você se lavou, ficou mais apresentável e teve de fazer uma pausa, sentou-se nos degraus falsos de algum alojamento igualmente falso e percebeu que estava chorando, doído, porque o campo de faz de conta, as grades de mentira, os guardas falsos — era tudo isso o que você desejava. A merda da coisa o havia feito sentir saudades. A maldita coisa havia-se instalado tão profundamente dentro de você que você se sentia feliz em ver o campo de pé novamente e aos homens solitários — Kriegies17 de faz de conta — Kriegsgefangene: uma palavra tipicamente alemã —, prisioneiros de guerra de mentira, como você e outros além de você, retornando pela segunda vez, todos voluntários agora — e você se aborrece consigo mesmo, e se aborrece com eles, e se aborrece com a coisa e seu sabor, o medo que está vivendo dentro de si, e se aborrece que a filmagem do longa-metragem não vai durar muito, e que eles o mandarão de volta para casa.

E também estou ansioso para ver os rostos. Da época em que tudo era real. Do tempo em que éramos Kriegies de verdade.

Porque algo aqui se parece com o que fora real e isso leva você a desejar ver os rostos, mesmo que você tenha certeza que eles não virão: os rapazes que você precisa ver.

Alfred virou-se para o lado, viu Vasyl jogar a cabeça para trás para engolir o que restava do Klim no fundo da lata — engolindo tudo tão rapidamente sem sentir o sabor. Isso fez o idiota tossir por um momento antes de fazer uma pausa, e ele falou novamente, as palavras espessas por causa do leite.

“Eu perguntei, você dorme, sr. Alfred?”“Em meu campo, em meu campo de verdade, eu durmo.”

17 Prisioneiros de guerra na Europa chamavam a si mesmos de Kriegies. É a abre-viação para a palavra em alemão Kriegesgefangene, que significa prisioneiro de guerra (N.T.).

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“Então, o que você veio fazer aqui? Se seu campo é tão lindo, por que você não fica nele? Quer ser uma estrela de cinema, não é?” Alfred sentiu o cansaço chegando, convidando-o a uma dor de cabeça. “Ou você não teve o suficiente dessa merda de guerra?”

“PDs — Pessoas Desalojadas –, é assim que nos chamam, não temos nenhuma opção até que eles decidam o que fazer conosco, devemos ficar onde eles nos mandam. O trabalho é uma forma de escapar.” Vasyl suspirou como se fosse um homem distinto e de excelente formação acadêmica, uma pessoa de grande cultura que adorava porcelana, e talvez sinfonias, e era uma grande vergonha que uma pessoa com tantas qualidades tivesse de sofrer tanto e ter de conversar com uma pessoa tão inferior a ele e tão estúpida a ponto de não perceber isso. Ele fez questão de jogar o que restava do Klim na grama, um desperdício, observando a reação de Alfred.

Alfred apenas sorriu, não gritou nem olhou como se fosse um idiota, porque ele era bom nisso — autodidata. Autodefesa.

“Temos de ser pacientes e esperar; sermos agradáveis com os outros e não falar muito ou fazer perguntas. Tudo isso é muito chato”. Vasyl acendeu mais um cigarro. “Essa coisa de rodar um filme para o cinema não é uma festa, ou um recital ou poesia, ou como cavar um túnel, ou debater sobre a democracia e o futuro — em preparar a paz do amanhã, a influência inglesa nunca será dedicada a uma política de escravidão. Já ouvi isso tantas vezes a ponto de memorizar as palavras. Sempre palavras. Sempre as mesmas.”

“Engraçado, eu nunca ouvi nada a esse respeito.”“Os suíços, eles sempre falavam isso na guerra. Os suíços não

entendem de nada. Pessoas de mentes pequenas e ladrões, tentando dizer o que deveríamos ser.” Ele lambeu seu dedo indicador, colo-cou-o no monte de Klim sobre a grama, lambeu de novo. “E eles estão-nos pagando. Pelo trabalho de figurante que estamos fazendo neste filme, eles nos pagam seis marcos por dia.” Como se alguém pudesse acreditar que ele precisasse do dinheiro. “O dinheiro é útil e minha intenção é melhorar minha fluência em inglês.”

“Mas você deveria interpretar o papel de um alemão!”

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“Alemão eu já sei falar.”“Eu também, meu rapaz. Eu também.”

Depois disso comeram em silêncio por um bom tempo e Alfred deve ter divagado, cochilado, porque quando ele acordou a lembrança dos rapazes estava vívida em sua mente novamente, todos eles, olhando para sua cabeça. Dickie Molloy com seu mau humor, a chutar uma parede e depois a correr mancando, gritando como louco, e as balas de Bill, as balas de hortelã de Bill Torrington — um suprimento inesgotável que ele recebia de algum primo que trabalhava em alguma fábrica de doces — nunca recebia algo que fosse útil, como açúcar, somente balas de hortelã —, e Edgar Miles, que uma vez roubou três assentos para o refeitório de um cinema bombardeado — espalhando o cheiro de queimado por todo o lugar —, e Hanson, que era um imbecil.

“Deixe-nos ver seus polegares.” Hanson em seus trajes puídos. Seu uniforme amassado como se ele estivesse sido enterrado nele. “Vamos lá. Mostre os polegares.” Até aquele momento Alfred e o comandante haviam conseguido juntar Pluckrose, Torrington, Molloy e ainda estavam procurando um operador de rádio. Apesar da procura em vão, esse sujeito desleixado os estava seguindo e pro-vocou Alfred diretamente porque eles não o queriam, ou melhor, ninguém o queria. “Se é que você é um artilheiro de verdade... mostre-nos seus polegares.” Desafiou Hanson com sua cabeça achatada e seus olhos pequenos e provocantes.

“Eu sou um artilheiro!” O que mais Alfred poderia dizer.O comandante e os demais ficaram quietos, se posicionaram

atrás de Alfred esperando por sua reação já que ele tinha de fazer a coisa certa e ser o homem que eles acreditavam ser, do tipo que não desiste da luta ou recua diante da adversidade. “Eu sou um artilheiro!”

“Você diz que é um artilheiro.”

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“Porque realmente sou um artilheiro.” O calor subindo por suas pernas, sua nuca, e o peso da tripulação atrás dele fazendo-o sentir-se descontrolado, fazendo-o levar as mãos à cintura e encará---lo. “E você, o que é?” E alguém, ele achou que fosse Pluckrose, emitiu um som em sua garganta como uma risada detestável, apre-ciando a cena.

Hanson entrelaçou os dedos das mãos e os estirou, estalando---as juntas. Suas unhas sujas e o cheiro que você teria se dormisse com suas armas. Ele encarou Alfred sob seus cabelos loiros oleo-sos, exagerando o ato e fazendo sinal de positivo com os polegares. “Viu? É assim que nós artilheiros fazemos sinal de positivo.”

E, após alguns segundos, os outros deram risada entre eles, e Torrington e Molloy deram um tapinha nas costas de Alfred, mas ele não se moveu, porque Hanson é quem deveria se mover, re-troceder, e o coração de Alfred parecia mais alto em seu peito e impaciente.

“Meu Deus! É como um mangusto encarando uma cobra”, disse Pluckrose de costas, gentil. “Para citar Wellington18 — eu não sei se eles conseguirão assustar Goering19, mas a mim eles estão conseguindo.”

Hanson recuando, sorrindo. “Eu sou um artilheiro do Cabo a Rabá.” E ficou esperando pela aprovação do grupo.

“O que você acha?” Nesse momento o comandante estava ao lado de Alfred. “Nós o queremos?”

Ele gostou de ter o poder de escolher. “Não tenho certeza.”

“Precisamos dele, Chefe?”

18 Arthur Wellesley, 1° Duque de Wellington, famoso general e estadista britânico — nascido na Irlanda — que, juntamente a Blucher, derrotou Napoleão Bonaparte na Batalha de Waterloo (N.T.).19 Hermann Wilhelm Göring (ou Goering) foi político e líder militar alemão, membro do Partido Nazista, Marechal do reich, comandante da Luftwaffe e segundo homem mais importante da hierarquia do III Reich de Adolf Hitler (N.T.).

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“Provavelmente.” Alfred ficou surpreso com suas próprias palavras. “Provavelmente precisamos.” Ele não olhou para Hanson depois disso, evitou seu olhar pelo resto do dia.

Edgar Miles se juntou a eles pouco depois, bocejou e ficou de pé em seu jeito atrapalhado — parecia tão relapso que você pode-ria pegá-lo no colo e carregá-lo até a lixeira mais próxima — e ele disse que gostava de fazer parte de uma tripulação que dava risada, o que fez com que todos dessem risada de novo, quase uivando, e desta vez Alfred e Hanson se juntaram a eles, porque os sete se entrosaram e isso era um prenúncio de como eles se sairiam juntos e significava que agora estavam completos, uma tripulação.

Não que eles não tivessem aprendido alguma coisa na vida: eles apenas tiveram um ou dois treinamentos ministrados por loucos que apenas os deixavam descansar entre um turno e outro. De um modo ou de outro não havia com o que se preocupar, uma vida inteira não era tão longa assim.

E eles tinham muitas formas de passar o tempo.“Então por que você não sai com uma mulher? Por que não

satisfazer sua masculinidade?” sugeriu Molloy, um pouco bêbado uma noite, talvez duas semanas após se conhecerem, puxando o braço de Alfred insistentemente: “Se é que você tem uma amiga”.

Há coisas que você nem imagina.“Você tem uma mulher, não é?” Disse Molloy com o rosto

corado, porque já era tarde da noite e ele havia bebido muito, mas ainda assim continuava pálido.

“Eu não disse que não tinha.”Há coisas que você não nunca deveria se lembrar.“Ah, mas você deve ter. Não há opção. Circunstâncias especiais

por causa da guerra e coisas do gênero.” Seu rosto e as mãos bran-cas como papel, e as sobrancelhas, os olhos, a boca — a aparência sombria, como se tivesse sido desenhada, pintada com tinta preta.

“Eu não disse que tinha uma amiga.”“Ah, mas você tem. Ouvi dizer. Uma mulher séria. Você tem

uma dessas e outra para os domingos, com certeza.”

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Pluckrose intrometendo-se na conversa: “Você disse que está-vamos em guerra? Você sabe que isso explicaria todo esse maldito barulho”. Disse isso no bar cujo nome era A Cabeça do Pato, o primeiro ponto de encontro deles. “A Cabeça do Pato” — que outro nome dariam a esse lugar?”

“Você tem a mente suja.” Molloy sorriu e moveu seus olhos para cima: um olhar malicioso.

“Muito obrigado, eu faço o que posso.” Empinando a cabeça de forma que o fizesse se lembrar de outros Pluckroses — almirantes, juízes e homens importantes montados a cavalo caçando algum pobre animal, as longas bochechas dos Pluckroses balançando e seus pés finos e elegantes sendo arrastados pelo chão. “E, diga-me, Dickie… meu caro sr. Molloy, com quem exatamente estamos em guerra?”

“Com os esquimós, seu incrédulo.”“É mesmo? E por quê?”“Porque roubamos seus malditos pinguins, e não é que eles

resolveram que os querem de volta!”Há coisas das quais você nunca se lembra, porque você é razoá-

vel e estudou combate corpo a corpo. Você apenas se defende.“Mas quem se importa com isso? Você, Chefinho — você vai

comê-la ou não?”Você se defende. Desejar o melhor para ela se for preciso e depois continuar com

sua vida. Nenhum outro pensamento.Você não vai pensar nela.Você vai proteger a si próprio.

Alfred se levantou sedento e vagamente ofegante. Sua mochila estava ao lado da de Vasyl sobre a grama, mas não havia sinal dele a não ser o monte de leite esparramado pelo chão, as formigas de-vorando o que restara.

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Tudo bem… Ele demorou alguns instantes para imaginar que estava lim-

pando sua mente, lavando-a com gasolina, removendo as manchas. De vez em quando isso funcionava depois dos sonhos. O truque era se concentrar em outra coisa e deixá-las esvanecer.

Acho que consigo voltar por conta própria — o acampamento está a oeste. Eu reconheceria o caminho, mais ou menos. É tudo tão plano por aqui, deveria conseguir avistá-lo de longe. Mas, se me perdesse, havia lugares que você deveria evitar. Memórias deixadas para trás.

De qualquer forma, não há pressa. Ele desfrutou de um grande gole da garrafa de chá e depois se levantou, sacudiu suas calças, pensou sobre como tudo a sua volta estava verde: o sol do dia espar-zindo o aroma de terra viva, o calor dos animais.

Eu não vou ao campo como deveria. Não me exercito mais. Mas ainda poderia mudar isso. Se quisesse.

Ele não teve tempo de pensar sobre isso, porque um barulho vindo das árvores e o zumbido de um pedaço de pau batendo nas folhas anunciaram que Vasyl estava voltando. Ele gostava de andar destruindo tudo pelo caminho.

“Boa tarde, boa tarde. Você está acordado. Que ótimo! Temos o tempo justo para caminhar e chegar lá.”

“Você viu o local?”“Sim, sim. Eu não o trouxe até aqui à toa.” Ele dobrou sua

mochila, não pôde evitar avaliar seu peso, assegurando-se que Alfred não tinha pegado algo de dentro dela, mexido nela. “Seu equipa-mento, você os leva agora. Podemos não passar por aqui na volta.”

Alfred verificou sua própria mochila, por princípio, vagaro-samente. “Nunca passaremos por aqui novamente. Esta é a lei.” Contente por haver confundido Vasyl com isso. “Então vamos. Mostre o caminho, Macduff20.”

20 Macduff é uma personagem fictícia da peça Macbeth. Ele é um nobre escocês, leal ao Rei Duncan (N.T.).

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“Isso é de William Shakespeare, sim?”“Sim, isso é de William Shakespeare.” Mas eu ainda levo vantagem, porque descobri Shakespeare por

conta própria. Ninguém me ensinou sobre ele em uma escola: eu o conheci por mérito próprio.

Havia um tipo de trilha, e Vasyl o escoltou por entre as árvores jovens e do terreno irregular.

Alfred o seguiu. “Como você sabe que este é o caminho certo?”“Um capitão britânico me disse. Ele me indicou o caminho e

o lugar. Ele estava lá. Ele estava com Montgomery — viu quando assinaram os termos da primeira tentativa de rendição. Ele me dis-se que um dos oficiais alemães carregava uma valise: uma valise cheia, como se fosse precisar dela. Como se eles fossem deixar que ele ficasse com ela. Aquele foi um dia de esperança, sim?” Vasyl ficou de olho na expressão facial de Alfred enquanto dizia isso, falando muito alto.

Alfred o ignorou, e começaram a andar, levados a uma eleva-ção onde a grama amarela crescia e, entre ela, arbustos de cedro se elevavam em penachos escuros, bancos de urze21, mostrando sua primeira névoa de flores azuladas. Os passos desajeitados de Vasyl espantaram um bando de pequenos pássaros e Alfred esperava que fossem cotovias, porque ele gostava de cotovias.

Logo que alcançaram seu pequeno horizonte, outro se abriu diante deles por uma clareira entre as árvores e se definiu em um raio trêmulo de sol. Havia ovelhas ao longe, ou talvez fossem pe-dras claras, e um amontoado de edificações que poderiam ter sido alojamentos em algum momento: talvez ainda fossem, mas para um exército sem propósito. Havia um caminho estreito e ao longe um reflexo que poderia ser do para-brisa de um caminhão.

Alfred respirou a doce brisa, tranquila, saudável.

21 Urze é um tipo de vegetação rasteira, com flores de cores diversas, espontânea em terrenos pobres em cal (N.T.).

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“É aqui.” Vasyl ficou parado e cruzou os braços, olhando fixamente para um pedaço de grama. Parecia igual a outro pedaço de grama qualquer.

“O que é aqui?”Vasyl franziu as sobrancelhas. “Chegamos!”“Eu não vejo nada.”“E o que haveria para se ver? Eles fizeram de propósito, não

construíram um monumento. Ele se suicidou — na rua Ulzener, em Luneburg, você pode ir lá e verificar — e o enterram aqui onde ninguém o acharia, exceto por aqueles que o enterraram. Nenhum pobre coitado para trazer-lhe flores.” Vasyl virou de costas ligeira-mente, desajeitado e começou, Alfred percebeu, a urinar. “Você pode dizer a qualquer um que vim até aqui e que urinei sobre sua sepultura, é melhor assim.”

E o que exatamente você deveria fazer no local onde eles enterraram Himmler22? Dançar, talvez, se isso não parecesse frívolo demais, ou desejar que ele estivesse no inferno, se isso não fosse tarde demais, ou — por que não? — urinar sobre ele. Não havia um cerimonial específico para a ocasião. Além disso, Alfred não havia planejado o que fazer neste momento, não tendo acreditado que conseguiriam achar o local e ainda incerto se o lugar era, de fato, aquele. O chão ali se parecia com o resto, o ar ainda com aroma agradável.

Vasyl estava determinado: aliviando a si mesmo, e quem diria — um impressionante volume de urina. “Conte o que fiz a quem perguntar.”

22 Heinrich Luitpold Himmler era um dos mais poderosos homens da Alemanha nazista. Ele liderou a SS e a Gestapo e foi uma figura-chave na organização do Holocausto. Na primavera de 1945, Himmler perdera a fé na vitória alemã e chegou à conclusão que, para uma vitória do regime nazista, deveria buscar a paz com o Reino Unido e os Estados Unidos. Ele então contatou o Conde Folke Bernadotte da Suécia e iniciou negociações para a rendição no leste, mas foram descobertas. Himmler foi preso em 22 de maio de 1945, cometeu suicídio ao engolir uma cápsula de cianureto antes do interrogatório (N.T.).

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Como é que é? Que você é capaz de segurar quase um litro de urina? Que você se parece com o sr. Woo na letra da música sobre os procedimentos durante bombardeios23 — que é capaz de apagar um incêndio.

Alfred esfrega as sobrancelhas, concentrado. “Como é possível dizer que o lugar é aqui?”

Porque Alfred parecia irritado e Vasyl não esperava por isso, ele responde asperamente “Eu posso dizer.”

“Mas não será que eles…” Talvez abusando agora. “Eu ouvi dizer que eles…”

Vasyl finalmente terminou de urinar, a braguilha abotoada, e o encarou agressivamente.

Alfred continuou assim mesmo: “Ouvi dizer que eles voltaram e desenterraram o corpo e depois o cremaram.” A pequena e ino-fensiva faca ainda estava dentro do bolso de Vasyl, ele tinha certeza. “Não foi assim? Eu realmente achei que eles o desenterraram.”

Vasyl bateu o pé no chão com força, a terra seca parecia oca. “Eu ouvi isso. Eu sei. Eu não ligo.” Os grilos pararam de fazer ba-rulho. Tudo parou. “Ele esteve enterrado aqui por muitos meses antes disso. Você sabe o que é um corpo enterrado por meses? Ele lentamente virou o rosto para observar Alfred. “Eu já vi corpos enterrados há meses. Eles não o desenterraram completamente. Alguma parte dele ainda está aqui e, para mim, basta” ele cuspiu.

“Bem”, Alfred tirou o quepe de sua mochila e o colocou sobre a cabeça: o distintivo no centro da testa, a borda em ângulo de três

23 Obey Your Raid Warden [Obedeça ao Coordenador de Bombardeios] era uma música tocada por Big Bands como um serviço de utilidade pública. Em uma tradução livre um trecho da letra diz: Um, mantenha a calma/Dois, procure um abrigo/Três, não corra/Obedeça ao coordenador de bombardeiros/Quatro, fique em casa/Cinco, fique longe das estradas/Seis, não use o telefone/Obedeça ao co-ordenador de bombardeiros/Há regras que você precisa conhecer, o que fazer e aonde ir/Quando você escutar as sirenes, pare, olhe e preste atenção/Sete, não fume/Oito, ajude as crianças/Acima de tudo, obedeça ao coordenador de bom-bardeiros. Fonte: Les Burness e John Morris, Obey Your Air Raid Warden, 1942 (N.T.).

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centímetros sobre a sobrancelha direita. “Suponho que deveria dar minha contribuição em nome...”

Mas ele não consegue terminar a frase, não consegue falar, porque ouve um grito entre as árvores à sua esquerda, ele não tem certeza, mas alguém está correndo, chegando cada vez mais perto.

Uma perseguição.Alfred gira o corpo para um lado e para o outro, um pavor

enorme e estúpido toma conta dele, e não há nenhum lugar para se esconder, e eis que surge uma menina — dez anos, pouco mais ou menos — rindo e correndo, aproveitando o fim de seu dia, e para abruptamente quando entra na clareira e vê os homens.

“Está tudo bem. Não se preocupe.” O tom de voz de Alfred lhe pareceu agressivo, como uma ameaça, e a menina abriu a boca, mas em seguida a fechou. Ela segurava um pedaço de pano com alguma coisa dentro contra seu peito — talvez algo de valor, talvez comida, algo que ela tivesse colhido. Seu vestido está apertado contra seu corpo, lindo, desprotegido.

“Allusgoot. Está tudo bem. Allusgoot. Tudo bem?” Você já pre-senciou isso antes — a forma como ela se recusa em se mover e não o compreende porque ela está aterrorizada, e nenhum idioma faz sentido para ela. Você quer que Vasyl o ajude, mas não conse-gue tirar seus olhos dela, porque isso pode assustá-la ainda mais e parece que ela também quer olhar para Vasyl, ver o que ele está fazendo, mas ela não consegue, surge então uma segunda pessoa: uma mulher de aproximadamente quarenta anos, bastante roliça, feliz por estar um pouco irrequieta e surpresa pelo fato de estar sem fôlego e divertindo-se, desta vez longe de qualquer reprovação a não ser sua própria. A alegria foge dela imediatamente. Ela o vê. Ela para e você sabe que ela gostaria de estar mais perto da menina, obviamente sua filha, mas não tem certeza se isso vai ajudar — tal-vez ela seja a distração para que a menina tente fugir, talvez não demonstrar nenhum amor por ela possa ser mais seguro, talvez o afeto aberto o deixe desconfortável. Ela olha por detrás de você em direção a Vasyl e algo complexo acontece com seu rosto.

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“Está tudo bem. Allusgoot. Goot.” Você tenta se mover e isso as aterroriza ainda mais, isso o deixa perturbado, não é assim que deveria acontecer. “Eu inglês. Goot. O que vocês estão fazendo aqui?” As mãos da mãe estão trêmulas segurando um pacote e seus lábios se mexem, como se ela estivesse procurando uma saída.

E você não pode deixar a mãe de alguém nesse estado, não enquanto a filha observa, esta é a pior parte, e você fala com a mulher ainda mais devagar. “Não tenha medo — ela é uma boa menina — nós somos amigos, viu?”

Mas há algo em seu olhar que o faz finalmente se voltar para Vasyl e você tem um mau pressentimento, porque ele está seguran-do uma Luger: vestido em sua fantasia, seu uniforme de primeiro sargento da reserva, e apontando a pistola para elas, contemplando a expressão em seus rostos de que elas vão morrer.

“Seu filho da puta. Que merda você está fazendo? Vasyl! Que merda você está fazendo?”

E a mãe corre. Ela se arrisca, puxa a menina e solta um tipo de urro lamentoso, corre em direção das árvores e Vasyl vai persegui--la. Ele encara você como se você fosse o louco e começa a correr — uma lembrança de outra época — e ele está rindo sem motivo, deslumbrado com sua aparência, a forma como ela o vê, seu medo. E você está muito, mas muito transtornado, e percebe que está sobre a grama e mal consegue respirar, e você o segura.

Partes de seu corpo estão adormecidas, o peso de seu quadril e seus braços se movem independentes de você, suave e calmamente, enquanto você luta com este homem que tem uma arma na mão e você tem certeza que vai morrer, mas não quer que isso aconteça.

Embora você tenha-se esquecido do que aprendera há tanto tempo, seu corpo sabia o que fazer, e seu pé sobre o pulso de Vasyl e seu joelho pressionavam sua garganta. Sua posição é instável — você precisa se proteger melhor —, mas você o controla e ele até parece dócil agora. E sob ambos, é possível que haja uma pequena parte do corpo de Himmler, mas muito provavelmente apenas uma depressão no solo onde o próprio Himmler uma vez mandou que

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houvesse escavações para revelar seu passado ariano, onde ele tentou provar seu futuro — e isso é tudo o que você sabe, esses fatos es-tranhos e obscuros. Antes de Vasyl se soltar, e a arma sendo alçada em sua direção, você já o segurou, porque seus braços estão livres e alertas, e você segura seu pulso e pressiona sua canela em volta de sua garganta com toda a força de que é capaz, e observa ele sufocar, sente seu aperto enfraquecer até que você consegue tirar a Luger dele e o esbofeteia.

Você o esbofeteia novamente. Você decide que não vai se preocupar em esbofeteá-lo quantas

vezes for necessário. Não com socos, mas, sim, com tapas, deixe-o sentir-se inferior.

Isso faz você sorrir. Você se pergunta se quer somente bater e por que não atirar nele. Não haveria perigo?

Ninguém encontraria o corpo aqui por muitas semanas, enter-rado ou não.

Um lado do rosto de Vasyl está tremendo, ele está escorregadio por causa do suor, mas ele tenta manter seus olhos abertos e mostrar a você o quanto ele é patético, vulnerável. Ele quer que você sinta mais pena dele do que sentiria pela mulher ou pela menina, e isso o incomoda.

Mas, principalmente, você percebe o quão despreocupado você se sente, o quão insensível.

“Se eu te soltar é melhor você não tentar isso novamente. Você sabe que posso vencê-lo.” Isso provavelmente não é verdade. Mas você tem a arma dele e então respira, inclina-se para trás e se senta sobre o peito de Vasyl, mas o deixa solto. Ele está sem ar, sem fôlego, e seu peso não o deixa respirar.

Você observa a brisa sobre a grama, folha após folha balan-çando e depois o movimento cessa. Você mexe seus ombros, respira. Você vira seu rosto para o sol, para seu deleite. Você alisa seu bigode novo.

“Você não percebeu que eu não atiraria em você?” Disse Vasyl rouco. “Eu apenas assustei essas putas alemãs. É uma brincadeira.

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Você não consegue ver que sou uma boa pessoa que ama a Inglaterra? Eu sou uma boa pessoa.” Ele parecia que estava prestes a chorar. “Você me faz ter medo.” Ele é totalmente convincente. “Por favor!”

Você nitidamente sente o esforço da caixa torácica de Vasyl sob você e ele compreende que você gostaria que ele realmente estivesse com medo, e que esse medo fosse de você.

“Por favor. Deixe-me respirar.”Mas sua raiva por ele desaparece rapidamente — não há

espaço para isso dentro de você. Você está em um tipo de estado de choque particular que impede que pense sobre qualquer coisa exceto que você está tão surpreso, porque ela está de volta: seja lá o que for que evite que você morra, a sensação está de volta. Você não queria morrer.

Você não achou que se sentiria dessa forma novamente.