h2o - água: o significado das fórmulas...

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19 mos dessa maneira — simplesmente por duas letras e um número —, temos a sensação de nos apropriarmos da própria essência da água. A água, como solvente universal, viabiliza a vida no planeta. É a única substância que, nas condições físico- químicas da Terra, apresenta-se nos três estados da matéria. O gelo tem a notável propriedade de ser um sólido menos denso que seu correspondente líquido: a maioria dos sólidos afunda em seus líquidos. O gelo flutua na água, e isso é fundamental para a vida no planeta, pois nas regiões frias os mares congelam apenas na superfície, preservando seu caldeirão de vida. A água é evidentemente muito mais que um simples solvente univer- sal. Quando matamos nossa sede ou nos banhamos nas águas límpidas de um riacho, “ela representa a soma dos olhos de toda a humanidade, porque no seu circular contínuo pelo ambiente já viveu a experiência de todas as lágri- mas, desceu por todas as gargantas, visitou geleiras, montanhas, rios e oceanos e vem transitando pelos nossos corpos desde a aurora do planeta” 1 . Mesmo do ponto de vista científico, vale a pena discutir qual o significado de atribuir- mos uma fórmula sim- ples a uma substância tão maravilhosa como a água. Quando Lavoi- sier anunciou à Academia de Ciências de Paris, em 1783, que a água era composta por hidrogênio e oxigênio, estava propondo uma maneira de definir um elemento químico comple- tamente diferente da visão aristotélica: um elemento poderia ser definido experimentalmente como qualquer QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Água = H 2 O? N° 3, MAIO 1996 A descoberta do elétron abriu imensas possibilidades para a química. E provocou, de imediato, especulações sobre a estrutura do átomo, problema que levaria algumas décadas para ser resolvido. Um modelo adequado para a estrutura atômica resultou na possi- bilidade de se tratar a estrutura mo- lecular como imagem de um objeto real. As fórmulas, que antes represen- tavam simplesmente a proporção com que os elementos se combinavam para formar a substância, passaram a ser objeto de investigação por mé- todos espectroscópicos. A elucidação de estruturas moleculares passou a ser uma rotina na investigação quí- mica. O que significa, porém, dizer que uma substância tem esta ou aquela estrutura molecular? Dizemos que a fórmula da água é H 2 O. Às vezes, quando a representa- A seção “Conceitos dientíficos em destaque” engloba artigos que abordam de forma nova e/ ou crítica conceitos químicos ou de interesse direto dos químicos. Neste número dedicado ao centenário da descoberta do elétron, vamos discutir o significado de se atribuir fórmulas às substâncias – tomando como exemplo a água —, procurando apontar as possibilidades e limites dos modelos de estrutura molecu- lar. fórmulas químicas, água, ligações químicas substância que não pudesse ser decomposta por métodos químicos. Quando John Dalton propôs a teoria atômica em 1803, sugeriu a interpre- tação de que cada elemento fosse constituído por uma única espécie de átomos. Em uma reação química, os átomos de diferentes elementos po- deriam combinar-se para formar mo- léculas (chamadas por Dalton de ‘áto- mos compostos’), que seriam a menor unidade da substância composta. Para Dalton, um átomo de hidrogênio combinava-se com um átomo de oxigênio para formar a molécula de água — que teria a fórmula HO. Gay- Lussac, seguindo os trabalhos de Cavandish e Priestley, verificou que na formação da água dois volumes de hidrogênio combinam-se com um vo- lume de oxigênio. Logo após a publi- cação desses resultados por Gay- Lussac, em 1808, Berzelius sugeriu a fórmula H 2 O para a água. A idéia de fórmula química surgiu, portanto, como uma forma de expressar as quantidades das substâncias elemen- tares que se combinam. A partir da segunda metade do século XIX, os químicos começa- ram a usar as fórmulas como uma representa- ção espacial da molé- cula, que poderia expli- car várias proprieda- des das substâncias. As fórmulas químicas passavam a representar não só as quantidades combinadas mas tam- bém a realidade molecular, permitindo antever como os átomos que cons- tituíam a molécula estavam dis- tribuídos no espaço e de que forma se ligavam uns aos outros. É interes- sante observar que, durante a segun- A idéia de fórmula química sugiu como uma forma de expressar as quantidades das substâncias elementares que se combinam Eduardo Fleury Mortimer = ? CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE o significado das fórmulas QUÍMICAS

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mos dessa maneira — simplesmentepor duas letras e um número —, temosa sensação de nos apropriarmos daprópria essência da água.

A água, como solvente universal,viabiliza a vida no planeta. É a únicasubstância que, nas condições físico-químicas da Terra, apresenta-se nostrês estados da matéria. O gelo tem anotável propriedade de ser um sólidomenos denso que seu correspondentelíquido: a maioria dos sólidos afundaem seus líquidos. O gelo flutua naágua, e isso é fundamental para a vidano planeta, pois nas regiões frias osmares congelam apenas na superfície,preservando seu caldeirão de vida.

A água é evidentemente muitomais que um simples solvente univer-sal. Quando matamos nossa sede ounos banhamos nas águas límpidas deum riacho, “ela representa a soma dosolhos de toda a humanidade, porqueno seu circular contínuo pelo ambientejá viveu a experiência de todas as lágri-mas, desceu por todas as gargantas,visitou geleiras, montanhas, rios eoceanos e vem transitando pelosnossos corpos desde aaurora do planeta”1.

Mesmo do ponto devista científico, vale apena discutir qual osignificado de atribuir-mos uma fórmula sim-ples a uma substânciatão maravilhosa comoa água. Quando Lavoi-sier anunciou à Academia de Ciênciasde Paris, em 1783, que a água eracomposta por hidrogênio e oxigênio,estava propondo uma maneira dedefinir um elemento químico comple-tamente diferente da visão aristotélica:um elemento poderia ser definidoexperimentalmente como qualquer

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Água = H2O? N° 3, MAIO 1996

Adescoberta do elétron abriuimensas possibilidades paraa química. E provocou, de

imediato, especulações sobre aestrutura do átomo, problema quelevaria algumas décadas para serresolvido. Um modelo adequado paraa estrutura atômica resultou na possi-bilidade de se tratar a estrutura mo-lecular como imagem de um objetoreal. As fórmulas, que antes represen-tavam simplesmente a proporção comque os elementos se combinavampara formar a substância, passaram aser objeto de investigação por mé-todos espectroscópicos. A elucidaçãode estruturas moleculares passou aser uma rotina na investigação quí-mica. O que significa, porém, dizer queuma substância tem esta ou aquelaestrutura molecular?

Dizemos que a fórmula da água éH2O. Às vezes, quando a representa-

A seção “Conceitos dientíficosem destaque” engloba artigosque abordam de forma nova e/ou crítica conceitos químicosou de interesse direto dosquímicos.Neste número dedicado aocentenário da descoberta doelétron, vamos discutir osignificado de se atribuirfórmulas às substâncias –tomando como exemplo a água—, procurando apontar aspossibilidades e limites dosmodelos de estrutura molecu-lar.

fórmulas químicas, água, ligaçõesquímicas

substância que não pudesse serdecomposta por métodos químicos.Quando John Dalton propôs a teoriaatômica em 1803, sugeriu a interpre-tação de que cada elemento fosseconstituído por uma única espécie deátomos. Em uma reação química, osátomos de diferentes elementos po-deriam combinar-se para formar mo-léculas (chamadas por Dalton de ‘áto-mos compostos’), que seriam a menorunidade da substância composta.Para Dalton, um átomo de hidrogêniocombinava-se com um átomo deoxigênio para formar a molécula deágua — que teria a fórmula HO. Gay-Lussac, seguindo os trabalhos deCavandish e Priestley, verificou que naformação da água dois volumes dehidrogênio combinam-se com um vo-lume de oxigênio. Logo após a publi-cação desses resultados por Gay-Lussac, em 1808, Berzelius sugeriu afórmula H2O para a água. A idéia defórmula química surgiu, portanto,como uma forma de expressar asquantidades das substâncias elemen-tares que se combinam.

A partir da segundametade do século XIX,os químicos começa-ram a usar as fórmulascomo uma representa-ção espacial da molé-cula, que poderia expli-car várias proprieda-des das substâncias.As fórmulas químicas

passavam a representar não só asquantidades combinadas mas tam-bém a realidade molecular, permitindoantever como os átomos que cons-tituíam a molécula estavam dis-tribuídos no espaço e de que formase ligavam uns aos outros. É interes-sante observar que, durante a segun-

A idéia de fórmulaquímica sugiu como

uma forma deexpressar as

quantidades dassubstâncias

elementares que secombinam

Eduardo Fleury Mortimer

=?

CONCEITOS CIENTÍFICOS EM DESTAQUE

o significadodas fórmulas

QUÍMICAS

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da metade do século XIX, o esforçocriativo de químicos como Kekulé, LeBell, Van’t Hoff etc. permitiu que sepassasse a ‘enxergar’ a realidade mo-lecular, a despeito de não haver ne-nhuma evidência direta de que essarealidade realmente existisse. A ima-ginação criativa desses cientistaspermitia que deduzissem essas fórmu-las a partir do estudo das propriedadesdas substâncias. Pode ser mais queuma feliz coincidência, por exemplo, ofato de Kekulé ter sidoarquiteto: assim comoos arquitetos constroemseus edifícios na imagi-nação e no papel antesque estes tomem formana realidade, osquímicos de então fo-ram capazes de preverestruturas químicas quesó se tornaramobserváveis muitos anosmais tarde.

A teoria quântica, aplicada àquímica a partir da década de 30 denosso século, introduz um significadomais preciso à idéia de valência quefora usada para explicar o poder decombinação dos elementos. O átomoé representado como sendo constituí-do por duas regiões de cargas dife-rentes. O núcleo, situado numa regiãoinfinitamente pequena no centro doátomo, tem carga positiva, pois éconstituído por prótons (de carga po-sitiva) e nêutrons (de carga neutra). Aoredor desse núcleo situam-se oselétrons (de carga negativa), numaregião cerca de 100 000 vezes maiorque o núcleo, denominada eletrosfera.A ligação química passa a representarum interação de natureza eletromag-nética que ocorre entre os núcleos(carregados positivamente) e as ele-trosferas (carregadas negativamente)de átomos vizinhos. O ‘tracinho’ comque ligamos os átomos de hidrogênioe oxigênio na fórmula da água repre-senta na verdade uma região do espa-ço ocupada por elétrons que estãosendo atraídos pelos dois núcleosvizinhos (o do oxigênio e o do hidro-gênio). Ele não tem a realidade físicade um elo material, apenas representauma interação ou força elétrica quetem uma direção preferencial. Uma

outra forma de representar essaligação seria uma nuvem eletrônica.Compare as duas representações naFig. 1. O fato de a primeira represen-tação ser mais usual está ligado a suasimplicidade. No entanto, do ponto devista de uma maior aproximação danatureza da ligação química, a segun-da representação é mais conveniente.

Uma das propriedades fundamen-tais da água é o fato de ela ser umsolvente muito melhor que a maioria

dos líquidos comuns.Essa propriedade estárelacionada à pola-ridade da molécula deágua, explicável pelaexistência de um ân-gulo de 104,5º entre asligações O-H. Comoos átomos de oxigênioatraem os elétrons daligação mais intensa-mente, aparece umacarga parcial positiva

nos átomos de hidrogênio e umacarga parcial negativa no átomo deoxigênio. Se a molécula de água fosselinear — com um ângulo de 180º en-tre as ligações O-H, a polaridade deuma ligação anularia a da outra, e amolécula seria apolar. É o que acon-tece, por exemplo, no gás carbônico,CO2.

Sendo polares, as moléculas deágua podem hidratar íons e outras mo-léculas polares. No processo de sol-vatação, representado na Fig. 2, íonspositivos e negativos ficam envoltospor moléculas de água, orientadas demaneira diferente em cada caso. En-quanto para os íons positivos é aregião negativa da molé-cula de água (próxima doátomo de oxigênio) queenvolve os íons, para osíons negativos é a regiãopositiva (próxima dos áto-mos de hidrogênio) quedesempenha esse papel.

A forte polaridade damolécula de água fazcom que apareça um tipode ligação especial entreas moléculas de águachamada ligação de hi-drogênio, formada quan-do os átomos de oxigê-

nio de uma molécula atraem os áto-mos de hidrogênio da molécula vizi-nha. Na Fig. 1b, os orbitais vazadoscomportam dois pares de elétronsnão-ligantes do átomo de oxigênio,que podem formar as ligações com ohidrogênio, que está parcialmente po-sitivo. Cada molécula de água pode,dessa forma, acomodar um númeromáximo de quatro ligações de hidro-gênio: duas através dos orbitais do oxi-gênio e duas através dos átomos dehidrogênio que vão acomodar duasoutras moléculas de água. A Fig. 3mostra como esse arranjo ocorre nogelo.

A existência desse tipo de ligaçãoexplica várias propriedades importan-tes da água. O fato de a água serlíquida à temperatura ambiente é umdeles. Moléculas maiores que a água

QUÍMICA NOVA NA ESCOLA Água = H2O? N° 3, MAIO 1996

Durante a segundametade do século XIX,o esforço criativo de

químicos permitiu quese passasse a

‘enxergar’ a realidademolecular a despeito

de não haver nenhumaevidência direta de que

essa realidaderealmente existisse

Figura 2: Modelo para a solvatação dos íons de um sólido iônico.

Figura 1: Representações para a molécula deágua. a: representação mais usual; b: repre-sentação usando orbitais.

O

H H

a

b

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— como CO2 e NH3 (amônia) — sãogasosas. A forte atração existente en-tre as moléculas de água, através dasligações de hidrogênio, explica essapropriedade incomum. Por outro lado,a notável propriedade de o gelo sermenos denso que aágua líquida está rela-cionada ao fato de ca-da molécula de águaformar o número máxi-mo de quatro ligaçõesde hidrogênio com su-as vizinhas no estadosólido. No estado líqui-do, cada molécula po-de formar, em média, 3,4 ligações dehidrogênio com suas vizinhas. Essenúmero fracionário se explica pelo fatode que, em conseqüência do constan-te deslocamento das moléculas noestado líquido, ligações de hidrogêniosão, constante e rapidamente, quebra-das e formadas. Embora em qualquerinstante a maioria das moléculas naágua líquida esteja formando ligaçõesde hidrogênio, a vida média de cadauma dessas ligações é da ordem de10-9 s. Isso explica porque a águalíquida é fluida. Se as ligações dehidrogênio persistissem por um tempomaior, a água tenderia a se tornarviscosa, como acontece com a glice-rina, que também forma ligações dehidrogênio entre suas moléculas.

Quando a água passa para oestado sólido, cada molécula de águapassará a acomodar um númeromáximo de quatro ligações de hidro-gênio. Como as moléculas no estadosólido geralmente não se deslocam —

apenas vibram em tor-no de suas posiçõesno retículo cristalino —essas ligações de hi-drogênio são duráveis.Para acomodar essegrande número de li-gações, o arranjo cris-talino do gelo é bas-tante ‘aberto’, pois as

moléculas acomodam-se em arranjoshexagonais, restando grandes espa-ços vazios no interior desses hexágo-nos (Fig. 3). Isso faz com que o arranjoocupe um volumemaior, o que explica amenor densidade dogelo. Quando o gelo sefunde, esses vaziosdesaparecem e as mo-léculas de água podemficar mais próximasumas das outras, o quefaz com que o volumeocupado por elas dimi-nua, aumentando adensidade.

É problemático, por-tanto, pensar na exis-tência de moléculasindividuais na águasólida e na água líqui-da. Essas moléculasestão constantemente se ligando aoutras, formando grupos de molé-culas. Portanto, a fórmula H2O pareceser realmente apropriada somentepara a água no estado gasoso, abaixas pressões e altas temperaturas.A água gasosa, sendo constituída pormoléculas individuais, não é visível enão deve ser confundida com o vaporque vemos saindo de uma chaleirafervente. O ‘vapor’ visível é água líqui-da que se condensou em pequenasgotículas que permanecem em sus-pensão no ar. As gotículas têm dimen-sões visíveis, o que não ocorre comas moléculas, que são invisíveis.

Mesmo a idéia de que a água

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gasosa seja formada por moléculasindividuais não pode deixar de consi-derar que essas moléculas são dinâ-micas e podem trocar átomos entre si.A idéia da existência de moléculasindividuais no estado gasoso tem deser compatibilizada com a observaçãoexperimental de que, ao se misturar,na fase gasosa, 50% de água comum(H2O) e 50% de água pesada (D2O,onde D representa deutério, umisótopo mais pesado do hidrogênio),obtêm-se, depois de certo tempo, umagrande quantidade de moléculas deágua com a fórmula HDO. As molécu-las de água interagem dinamicamenteno estado gasoso.

Todas essas considerações noslevam a concluir que a fórmula químicada água — H2O — é um importante

instrumento para expli-car várias de suas pro-priedades, inclusive asmais notáveis e inco-muns. No entanto, afórmula nada mais éque uma representa-ção da substância. Co-mo tal devemos usá-la,apropriando-nos dasinformações que elapode nos fornecer mastomando o cuidado denão confundi-la com arealidade mesma dasubstância água, mui-to mais complexa eprofunda do que aquiloque duas letras do alfa-

beto e um número permitem antever.

Eduardo Fleury Mortimer é bacharel e licen-ciado em química pela UFMG, doutor em educaçãopela USP e professor na Faculdade de Educação daUFMG.

Nota1. Alfeu Trancoso, em “Reflexões no

Cipó”, Estado de Minas, 18 de novembrode 1994.

Para Saber MaisBELTRAN, Nelson Orlando. Por que

a água se dilata ao ser congelada?Revista de Ensino de Ciências nº 17,março de 1987, São Paulo, p. 58-59.

Figura 3: Arranjo cristalino das moléculas deágua no gelo.

A fórmula química daágua é um importante

instrumento paraexplicar várias de suaspropriedades, inclusive

as mais notáveis eincomuns

A fórmula H2O nadamais é que uma

representação dasubstância. Como tal

devemos usá-la,apropriando-nos dasinformações que ela

pode nos fornecer mastomando o cuidado denão confundi-la com a

realidade dasubstância água, muito

mais complexa eprofunda do que aquilo

que duas letras doalfabeto e um número

permitem antever