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SANTOS, A de C.K.dos;CHO, Y.; ARAUJO, I. S.; GONÇALVES , G. P. Modelagem computacional utilizando STELLA. Rio Grande: Editora da FURO, 2002. VEIT, E.A ; MORS , P. M . & TEODORO, V. D. Ilustrando a segunda lei de Newton no século XXI. Revista Brasileira de Ensino de Física, São Paulo, v.24, n.2, p.176-184, jun . 2002. VEIT, E. A. Mod elagem computacional no ensino de Física. ln: SIMPÓSIO NACIONAL DE çNS INO DE FÍSICA, 16., 2005 . Rio de Janeiro. TEODORO , V. D. Modelação no ensino de Física : seis idéias básicas. ln: SIMPÓSIO NACIONAL DE ENSINO DE FÍSICA, 15., 2003, Curitiba. Atas . Curitiba: Nilson Garcia, 2003 . I CD-ROM. TEODORO, V. D.; VALENTE, M. O. Modellus, modelação matemática nas ciências Físicas e renovação do currículo. Inovação, Lisboa, v. 14,n. 3,2001. RESUMO: Faz-se uma reflexão sobre o reiterado insucesso das propostaseducacionais para oensinodefísicaapresentadas nosúltimos cinqüenta anos. Tem-se por hipótese que orienta esta reflexão o deslocamento do professor do centro do processo educacional como causa principal desse insucesso. Atribui-se às bases teóricas dessas propostas - o empirismo intuitivo dos projetos curriculares, o behaviorismo, essência da instrução programada, e o cognitivismo piagetiano, fundamento da maioria das propostas construtivistas - a causa dessa quase completa alienação do professor de seu papel no processo de ensino e aprendizagem das ciências. Tendo por base a Teoria Sócio-históricade Vigotski,conclui-se pelanecessidadede rever essa postura e recolocar o professor nocentrodo processo educacional sob pena de negar a própria natureza humana desse processo, Palavras-chave: Ensino de física, Propostas curriculares, Livros didáticos Instrução programada. Alberto Gaspar' * Depart amento de Físico - Química - Fac u ldade de Engenharia Universidade Es tadua l Paulista - UN ESP Campus Guaratinguetá CP: 205 - CEP: 12516·410 • Guaratinguetá - São Paulo <gasp. ,@feg.unesp.b,> 1. Introdução Faz-se uma reflexão sobre o reiterado insucesso das propostas educacionais para o ensino de fisica apresentadas nos últimos cinqüenta anos. Tem-se por hipótese que orienta esta reflexão o deslocamento do professor do centro do processo educacional como causa principal desse insucesso. CINQÜENTA ANOS DE ENSINO DE FÍSICA: MUITOS EQUÍVOCOS, ALGUNS ACERTOS EA NECESSIDADE RECOLOCAR O PROFESSOR NO CENTRO DO PROCESSO EDUCACIONAL . EDUCAÇÃO, ano 13, n.21, p.71-91, dez. 2004 ED UCAÇÃO, ano 13, n. 21, dez.2 004 70 MEDEIROS, A; MEDEIROS,C. F. de; Possibilidades e limitações das simulações computacionais no ensino de fi sica. Re vi sta Brasileira de E),sino de Física, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 77-86 ,jun. 2002, MODELLUS . Modelling with mathematics. Disponível em: h!!2;LL phoenix.sce.fct.unJ.ptlmodellusf . Acesso em: 10ju1.2005 . MOREIRA,M.A Modelos mentais. Investigações em Ensino de Ciências, Porto Alegre, v. I, n. 3, p. 196-206, setJde z.1996. MOREIRA,M.A; GRECA, I. M. Obstáculos representacionales mentales en el aprendizaje de conceptos cuânticos. ln: Sobre cambio conceptual, obstáculos representacionales, modelos mentales, esquemas de asimilación y campo s conceptuales. Ed. M.A Moreira; I. M . Greca. PortoAlegre:IF-UFRGS, 2004. NUSSENZVEIG , H. M. Curso defi sica básica. 1. ed. Ver. São Paulo: Edgard Blücher 1993. v. I. Mecânica. POWERSIM. Versãodemo.Disponível em :http://www.uni-klu.ac.atfusersf gossinútfswfPSLite.exe . Acesso em: 10jul. 2005.

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SANTOS, A de C. K. dos; CHO, Y.; ARAUJO, I. S.; GONÇALVES,G. P. Modelagem computacional utilizando STELLA . Rio Grande:Editora da FURO, 2002.

VEIT, E.A; MORS, P. M . & TEODORO, V. D. Ilustrando a segunda leide Newton no século XXI. Revista Brasileira de Ensino de Física , SãoPaulo, v.24, n.2 , p.176-184, jun. 2002.

VEIT,E.A. Modelagem computacional no ensino de Física. ln: SIMPÓSIONACIONAL DE çNSINO DE FÍSICA, 16., 2005 . Rio de Janeiro.

TEODORO, V. D. Modelação no ensino de Física : seis idéias básicas.ln: SIMPÓSIO NACIONAL DE EN SINO DE FÍSICA, 15., 2003,Curitiba. Atas . Curitiba: Nilson Garcia, 2003 . ICD-ROM.

TEODORO, V. D.; VALENTE, M. O. Modellus,modelação matemática nasciências Físicas e renovação do currículo. Inovação,Lisboa, v. 14,n. 3,2001.

RESUMO: Faz-se uma reflexão sobre o reiterado insucesso daspropostaseducacionais para oensinodefísicaapresentadas nosúltimoscinqüenta anos. Tem-se por hipótese que orienta esta reflexão odeslocamento do professor do centro do processo educacional comocausa principal desse insucesso. Atribui-se às bases teóricas dessaspropostas - o empir ismo intuitivo dos projetos curriculares, obehaviorismo, essência da instrução programada, e o cognitivismopiagetiano, fundamento da maioria das propostas construtivistas - acausa dessa quase completa alienação do professor de seu papel noprocesso de ensino e aprendizagem das ciências. Tendo por base aTeoria Sócio-histórica de Vigotski,conclui-se pelanecessidadede reveressa posturae recolocar o professor nocentrodo processoeducacionalsob pena de negar a própria natureza humana desse processo,

Palavras-chave: Ensino de física, Propostas curriculares, Livrosdidáticos Instrução programada.

Alberto Gaspar'

* Departamento de Físico - Química - Faculdade de Engenharia Universidade EstadualPaulista - UNESPCampus GuaratinguetáCP: 205 - CEP: 12516·410 • Guaratinguetá - São Paulo<gasp. ,@feg.unesp.b,>

1. Introdução

Faz-se uma reflexão sobre o reiterado insucesso das propostaseducacionais para o ensino de fisicaapresentadasnos últimos cinqüenta anos.Tem-se por hipótese que orienta esta reflexão o deslocamento do professordo centro do processo educacional como causa principal desse insucesso.

CINQÜENTA ANOS DE ENSINO DE FÍSICA: MUITOSEQUÍVOCOS, ALGUNS ACERTOS E A NECESSIDADERECOLOCAR O PROFESSOR NO CENTRO DO PROCESSOEDUCACIONAL.

EDUCAÇÃO, ano 13, n.21, p.71-91, dez. 2004EDUCAÇÃO, ano 13, n.21, dez. 200470

MEDEIROS, A; MEDEIROS, C. F.de; Possibilidades e limitações dassimulações computacionais no ensino de fisica. Re vista Brasileira deE),sino de Física, São Paulo, v. 24, n. 2, p. 77-86,jun. 2002 ,

MODELLUS . Modelling with mathematics. Disponível em : h!!2;LLphoenix.sce.fct.unJ.ptlmodellusf . Acesso em: 10ju1.2005 .

MOREIRA, M . A Modelos mentais. Investigações em Ensino deCiências, Porto Alegre, v. I , n. 3, p. 196-206, setJdez.1996.

MOREIRA, M . A ; GRECA, I. M. Obstáculos representacionalesmentales en el aprendizaj e de conceptos cuânticos. ln: Sobre cambioconceptual, obstáculos representacionales, modelos mentales, esquemasde asimilación y campos conceptuales. Ed. M. A Moreira; I. M . Greca.Porto Alegre: IF-UFRGS, 2004.

NUSSENZVEIG, H. M . Curso defisica básica. 1. ed . Ver. São Paulo:Edgard Blücher 1993. v. I. Mecânica.

POWERSIM. Versãodemo.Disponível em:http://www.uni-klu.ac.atfusersfgossinútfswfPSLite.exe . Acesso em: 10jul. 2005.

Atribui-se às bases teóricas dessas propostas - o empirismo intuitivo dosprojetos curriculares, o behaviorismo, essênciada instrução programada, eo cognitivismo piagetiano, fundamento da maioria das propostasconstrutivistas - a causa dessa quase completa alienação do professor deseu papel no processo de ensino e aprendizagem das ciências, Tendo porbase a Teoria Sócio -histórica de Vigotski, conclui-se pela necessidade derever essa postura e recolocar o professor no centro do processo educacionalsob pena de negar a própria naturezahumana desse processo.

2. As propostas curriculares

Uma das primeiras iniciativas de pensar e efetivar um ensino defísica atualizado, motivador e eficiente foi o projeto do PSSC (PhysicalScience Study Committee) . Criado nos EUA, em 1956, sob o patrocínioda National Science Foundation, o projeto inseriu-se em uma amplamobili zação nacional resultante do profundo impacto causado na épocapelo lançamento do Sputnik I, primeiro satélite artificial da Terra.O traumadeveu-se a uma evidência refletida por esse lançamento - a dianteiratecnológica assumida pel a URSS sobre os EUA - e sugeria aos norte­americanos a necessidade de providências urgentes para reverter essequadro sobretudo pela reformulação da formação educacional dos seusestudantes: "O Sputnik tornou claro ao público norte-americano que amudança da educação, em particular do curriculo de matemáticae ciências,era assunto de interesse nacional" (BYBEE, 1997).

O PSSC se compunha de um texto básico que sintetizavaa filosofiada proposta: "nele a física é apresentada não como um simples conjuntode fatos , mas basicamente como um processo ,em evolução, por meio doqual os homens pro curam compreender a natureza do mundo físico" .Complementavam o livro texto, "estreitamente correlacionados, um guiade laboratório e um conjunto de aparelhos modernos e baratos, um grandenúmero de filmes , testes padronizados, uma série crescente de publicaçõespreparadas por expoentes nos respectivos campos e um extenso livro doprofessor, diretamente ligado ao curso" (PSSC, 1963, pg. 7).

O "extenso livro do professor" orientava a sua at iv idade,sobretudo em relaç ão a ênfase a ser dada aos diferente s conteúdos,apresentava conteúdos suplementares e notas de laboratório em que eramdadas informações auxiliares e indicado s os momentos mais adequadospara que os alunos realizassem com maior proveito as atividadesexperimentais sugeridas.

Em síntese , o PSSC estava centrado, de um lado, em um a novaproposta curricular de física, e de outro, no entendimento de que o alunosó poderia aprender ciência por si, a partir da atividade experime ntai,como se dizia no prefácio do guia de laboratório incluído no texto básico:"As idéias, os conceitos, e as defin ições, só têm, na verdade, um sentidoefetivo quando baseados em experiências". E essas experiências dariamao aluno a possibi lidade de simular o papel do cientista na descoberta daciência, como se afirmava logo adiante: "Ao real izar exp eriências cujoresultado, de antemão, lhe é desco nhecido, fica o aluno tomado por umasensação de participação pessoal nas descobertas cienti fic as; tornam­se-lhe mais significativas a ciência e a importância do cienti sta." (PSSC,1963 , pg. 213).

Os resultados do PSSC não foram animadores nem nos EU Anem nos demais países em que foi aplicado . No Brasil, os textos forameditados no início da década de 1960 pela Editora Uníversidade de Brasíliae o material experimental produz ido pela Funbec (Fundação Brasileirapara o Desenvolvimento do Ensino de Ciências), empre sa criada em1966 e que teve na produção desses equipamentos sua principal atividadeinicial. A aplicação do projeto no entanto foi mui to restrita, lim itada apoucas escolas onde lecionavam os poucos professores que dele tomaramconhecimento e se sentiram capazes de fazê-la. Al guns, embora oconhecessem não an im aram a apli cá- lo (esse fo i nosso caso)principalmente pela dificuldade de utili zação do material experimentalentregue às escolas pela Funbec, com muitos kits incompletos , semidentificação adequada ou qualquer instrução auxiliar além daquela dopróprio texto. Acresce ainda o currículo proposto, desvinculado da nossarealidade educacional e para o qual certamente a esmagadora maiori ados professores não estava preparada.

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Outrascausasdevem terdeterminado o insucesso dessa propostaem outros países,masa nossover, de todasas causaspossíveisparaesseinsucesso, a mais relevante se originou paradoxalmente de sua maiorvirtude, a inéditae notávelcomissãoque o criou formadapor centenaseprofessores de física e alguns educadores, liderados por uma equipe defísicos do Institutode Tecnologiade Massachusetts (MID coordenadapeloprofessorJerroldR. Zacharias.

Essacomissão foi influenciadapelas idéias dopedagogo americanoJerome Bruner- Zacharias, em particular, seu amigopessoal- que logosematerializariam em umdos textosbásicosdaeducação em ciênciasdoséculoXX, O Processo da Educação (BRUNER, 1960),Essa influênciase refletiu naênfasecurricular, baseada em umnovoordenamento lógicopara a apresentação da fisica, dada à estrutura dos textos, mas grandeparteda orientação pedagógica do projeto não encontravarespaldo nasidéias de Bruner; baseou-se nas intuições ou crenças pedagógicas dopróprio Zacharias,avalizadas pelos membrosdacomissão:"Zachariasnãoacreditavaem um ensinode ciênciasfundado em abstrações e queria quetudo no seu projeto do PSSC estivesse firmemente baseado naexperimentação. Na avaliação de Zacharias, manifestaçõesde verdadestangíveis,visíveis,tinham deprecederfórmulas e gráficos,e nãohánenhumasugestão nesse sentido nas idéiasde Bruner" (RAIMI, 2004),

Assim, a crençade que a experimentação levaria à compreensãoou até mesmo à redescoberta de leis científicas - idéia que hoje seriaclassíficada como umequívoco epistemológíco - permeoutodoo projetodando a ele ênfase exagerada e irrealistaao papel da experimentação oque, a nosso ver, levou toda a proposta ao fracasso, É importante, emdefesa de Bruner, muitas vezes citado como mentor pedagógico desseprojeto, explicitar a sua descrença em relação a essa concepção: "Umbomintuitivo podeternascidocomalgo especial,masasuaintuição funcionamelhor quando ele tem um sólido conhecimento do conteúdo, umafamiliaridade que dá substânciaà intuição" (BRUNER, 1960,p.56),

De qualquer forma, essa proposta tomou-seummarco no ensinode fisica em todo o mundo e desencadeouum saudável movimento derenovaçãoeducacionalem ciênciascomo surgimento de outrosprojetes

semelhantes,comoo Projeto Harvard (Harvard Project Physics) lançadoem 1975, precedido de uma versào inicial em 1970. De acordo com atraduçãodo textobásico paraportuguêsrealizadapelaFundação CalousteGulbenkian, de Lisboa.o ProjetoHarvard eracompostode "uma grandevariedadede materiais de aprendizagem entre os quais o livro-textoeraapenasum;existiamainda ascolectâneasde textos,manuais deatividades,guias para o professor, livros de instrução programada, filmes sem-fim' loop' , filmes de 16 mm, transparências, aparelhos e livros de teste"((HOLTON, RUTHERFORD e FLETCHER, 1985, pg. XI),

Apesardessas semelhançascomoPSSC,tinhacomocaracterísticaa distinguí-lo o enfoque humanista, como está explícito em um de seusobjetivos:

"Ajudarosalunosa veremafisicacomo urna actividadecommuitasfacetas humanas, Isto significa apresentar o assunto numa perspectivaculturale histórica, e mostrarque as idéias da fisica têm uma tradiçãoaomesmo tempoquemodosdeadaptação emudança evolutivos" (HOLTON,RUTHERFORD e FLETCHER, 1985, pg. X).

Outro projeto importante, não traduzido para o português, foi oProjeto para o Ensino de Ciênciasda Fundação Nuffield. Há quem digaque oNuffieldfoi umaespécie de resposta inglesaao PSSC, nãoadotadono Reino Unido, e como eleeratambém umprojeto curricular produzidopor uma grandeequipede fisicos e educadores, Sua preocupação eradarao alunoumaformação básicaqueo tomasse"quase umfísico",seguindoum enfoque curricular voltado parao conhecimento futuro: "A fisica, ecomelao mundo, estámudandotãorapidamente queninguémpodepreverquaís capítulos da física serão utilizados dentro de, digamos, dez anos.Masestamos inteiramente segurosde que há algumas idéias básicas queserãomaisapropriadas para os novos problemasde amanhã.Procuramosbasear este curso no que acreditamos serão essas idéias" (BLACK &OGBORN, 1975, pg. 2).

Esses três projetos curriculares foramos mais importantes, tantopelo seu alcance - não se limitaram aos países de origem, mas foramtraduzidos e testados em muitos outros países - como também pelaqualidade das suasequipes e pelo materialproduzido, mas houvemuitos

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em muitos outrospaíses.No Brasil,consideramos o maisimportantedeleso PEF (projeto de Ensino de Física), iniciativa do Instituto de Física daUSP em convênio com o MEC e duas de suas instituições na época, aFENAME (Fundação Nacional do Material Escolar) e o PREMEN(programade Expansão e Melhoria do Ensino).Compunha-sede umtextobásico, apresentado em quatro conjuntos de fascículos - Mecânica I,Mecânica 2, Eletricidade e Eletromagnetismo - acompanhados de ummaterial experimental muitosimples,debaixocusto, edeguiasdoprofessor.Tendoem vistaa realidade brasileira,os fascículos tinham preçoacessivele incluíam o material experimental. Pela mesma razão optou-se porapresentartextos suplementares incluídos no texto básico.

Para a elaboração do projeto "formou-se uma equipe de cientistas(pesquisadores de fisicanuclear)e de professores com larga experiênciano ensino médio e universitário. além de programadores visuais ejornalistas" (HAMBURGER & MOSCATI, 1974).Não haviapedagogosnaequipe, masmuitos deseus membroscursavam naépocao recémcriadomestrado em ensino de física, programaconjunto do Instituto de Física eda Faculdadede Educação da USP. Aconcepção pedagógicaque se inferedo projeto reside no estímulo à postura ativa e individual do aluno, nacrença na validade do método científico e na convicção de que aexperimentação é essencialparaa compreensão dos conceitosfisícos: "(...]a parte experimental do PEF é integrada ao curso, sendo praticamenteimpossível seguir o texto sem realizar as experiências lá especificadas .Assim, o equipamento experimental não deve ser encarado como umapêndice acessório ao texto, mas como parte integrante do curso, sem oqual ele fica mutilado" (HAMBURGER & MOSCATI, 1974). .

Mas, assim como o PSSC, Harvard e Nuffield, o PEF tambémnão obteve sucesso. Com exceção de algumas causas específicas,brasileiras, como a ineficiente distribuição do material, a qualidade domaterialexperimental e a dificuldade de obtenção dos guiasdo professor,a causa principal do insucesso do PEF foi, a nosso ver, a mesma jáatribuída ao PSS C: a superestirnação da capacidade do materialinstrucional na promoção da aprendizagem ancorada basicamente naexperimentação.

(...]

Apesar do cuidadocom que foramelaborados os guiasdestinadosao professor, dele se pedia e se esperava muito pouco. O estímulo àinteração individualdo alunocom o material eraexplícito, como mostramestas recomendações iniciais dadas aoestudante:

"Elaboramos este curso para que você possa aprender física deum modoativo. Isto significaque vocêvai realizarexperiências, analisarediscutiros resultados obtidos. responder a perguntas e resolver problemas.

77CINQÜENTA ANOS DE ENSINO DE FlslCA

I. Você pode trabalhar sozinho ou então em pequenos grupos deaté 5 alunos.Mesmotrabalhando em grupo,é importanteque vocêfacaastarefassozinho, paraque aprenda melhor.

2. Leia o texto com atenção, tentando responder sozinho a cadauma das questões (...).

3. Depois de responder a cada questão, discuta com os seuscolegas se a resposta está caneta e por quê.

4. O professor, ou o próprio texto, indicará o momento em quevocê deve comparar sua resposta com as respostas corretas (...] "(HAMBURGER & MOSCAT[, 1974).

Os termos grifadosem itálico sãooriginais, os trechos sublinhadossão nossos. Todos -evidenciam a função orientadora, não essencial ,reservada ao professor na concepção do projeto - o alW10 trabalhandosozinhoaprenderiamelhore, até para essafunçãoorientadora,o professorpodia ser dispensado, bastava o aiuno recorrer ao próprio texto.

3. A ínstrução programada

A tendência de transferir a responsabilidade da aprendizagem aoaluno, dispensando-o da interação com o professor, acentuou-se com oadvento da instrução programada. Fundados no behaviorismo, os textosprogramados fragmentavam o conteúdo em pequenos trechos nos quaiseram inseridas lacunas ou indagações paraque o a1W10 as completasseourespondesse. Partia-se do pressuposto de que a resposta certa, além de

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elementoreforçadorqueestimulavao aluno a prosseguir, era também umindicativoválidodaaprendizagem: respostacertaera indicativosegurodeconhecimento adquirido.

Ao professor restavaapenas o papel de gerenciador do processo:distribuirmaterial,estabelecere controlarcronogramas,e aplicarprovas,estas freqüentemente já incluídasno pacoteeducacional.Radicalizava-seo pressuposto dos projetos curriculares, ensinar não era a obrigação dosprofessores, talvez nem saber - nenhuma das propostas de instruçãoprogramadaque conhecemos tinha guia do professor - mas do material.Aprender,claro, continuavaa serresponsabilidade exclusiva do aluno.

Houve na época um intenso movimento voltado à publicação detextos auto-instrutivos em todo mundo. No Brasil, em meado da décadade 1970,surgiu com grande repercussão,sobretudo comercial, o projetoFAI(FísícaAutoInstrutivo), criado porumgrupodeprofessores doInstitutode Físicada USP - contemplavapraticamente todoo curriculotradicíonalde tisicado antigosegundograuemcincotextosdeInstruçãoprogramada.Aqui, como colaboradormarginalna elaboraçãodos textos, aplicadordoprojeto em sala de aula e, de início, uma pessoa absolutamente convictados seus pressupostos pedagógicos,vale a pena um depoimento pessoal:

Trabalheicom os cinco textosprogramadosdo FAI durantequasedois anos em várias turmas dos três anos do então segundo grau. Foicertamenteo períodomais frustrante de minhalongacarreírade professor.De início, a sensação de minha inutilidade em sala de aula - os alunos,envolvidos em sua interação como texto,malnotavama minha presença­era compensada com a expectativa de que, agora sim, eles estariamaprendendo. Nunca os havia visto tão concentrados, lendo, estudando,preenchendo lacunas, algunsaté com avideze entusiasmo.As avaliaçõespareciam dar bons resultados, mesmo porque abordavam tópicos deconteúdo relativamente curtoseeramrepetidas atéqueosalunosatingissemum nível de acerto considerado satisfatório. A instrução programadapreconízava o respeito ao ritmo individualde compreensão do aluno e acondição para passar a um novo tópico era o domínio do conteúdo dotópicoanterior, dai a repetição dasavaliações atéquese pudesseconsideraro aluno capaz de iradiante. Como é óbvio, não havia reprovações.

4. Das teorias cognitivas ao construtivismo

Piagetcontestavaa possibilidade dealguémaprenderalgumacoisasem que tivesse a estrutura mentalque possibilitasseessa aprendizagem.Assim,um alunosó podiadarumarespostacertase a estruturamentalquepermitisseessarespostajá estivesseinstaladaem suamente. Dessaforma,para Piaget, o aluno, que já estava colocado no centro do processo deaprendizagem,deveriasituar-setambémno centrodo processode ensino.Em outras palavras, o aluno não deveria ser apenas o responsável pelaprópriaaprendizagem, como implícita ou explicitamente preconizavam osprojetos curricularese a Instruçãoprogramada,mas ele, ou melhor, a suaestrutura de pensamento, deveriaser também o balizadordo ensino.

Comotempo, percebi queaaprendizagemdosalunoseraestranhamentepassageira, algoquenão seconsolidava, umaespécie de"frentedeonda"quepareciacontero donúníodo alunode algumfragmento de conteúdo, talvezinduzido pelos estímulosrecorrentesdopróprio textooudasprópriasavaliações.Mas logooconhecimentoadquiridodesaj:meciapraticamentesemdeixar rastros.Noúltimobimestredo segundo anodaaplicação daproposta, angustiado econvencido da ineficiênciadaproposta, voltei àsminhasaulastradicionais eainteragir diretamente comosalunos. Desdeentão começou a seconsolidaremmim a convicção dequenão há material oupropostapedagógica quepossaprescindirdaação diretae insubstituível doprofessor.

Não foi possível saber se esse foi um caso isolado ou se ocorreutambém com outros professores, até porque a aplicação da instruçãoprogramada no Brasil, que em poucotempo havia se estendido a muitasoutras disciplinas além da Física, teve curta duração - foi bruscamenteinterrompida com a proibição por parte do MEC da publicação de livrosdescartáveis. Como todos os textos de instrução programada tinham deserdescartáveis,pois os alunos os utilizavam comomaterial de trabalho,essa proibição inviabilizoua continuidadeda proposta.Mas, mesmo nospaisesem que não houveessaação oficial,a instrução programadaacabouporextinguir-setambém.E um dospensadoresquemaiscontribuiuparaoabandono desse equívoco pedagógicofoi Jean Piaget cujas idéias, desdeentão, passaram a dominaro pensamentoeducacionalbrasileiro.

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Durante décadas deumextraordinário trabalho depesquisa, Piagete sua equipehaviam mapeado o cérebro humano, descobrindo a formacomonossasestruturas lógicasdepensamento evoluem. Utilizandoumaanalogia atual, Piaget e sua equipe teriam descoberto quais e como seinstalam geneticamenteos programas lógicosquecompõema estrutura docérebrohumano.E,assimcomoumcomputador sópode executartarefasparaos quais estejapreviamenteprogramado, o cérebrohumanosó podeprocessaras informações paraas quaisnelejá tenhamsido instaladososprogramas capazes de fazê-lo.

Em sintese, a implicação básica da teoria piagetiana foi oestabelecimentodeumnovocritério paraaestruturacurriculardequalquerdisciplina: ela não deveriabuscara estruturalógicada ciência que é seuobjeto, procedimento até então seguido pelos projetos curriculares epelos textos de instrução programada, mas obedecer à estrutura lógicade pensamento do aluno para o qual o ensino dessa ciência se destina.Por exemplo, seria inútil ensinar conceitos abstratos a um aluno antesdele dispor das estruturas formaisde pensamentoque possibilitariam asua aquisição, o que, de acordo com a teoria piagetiana, só acontece aofinalda adolescência.

A clareza das idéias de Piaget fundadas em um vasto, sólido econsistente acervo de pesquisas, não só tornava óbvias as causas dofracasso de todas as iniciativas voltadas ao ensino de ciência até entãopropostas como passou a redirecionar praticamente toda a atividade depesquisa dessaárea deensino. Aprimeira grande linhadepesquisa inspiradanas idéias piagetianasfoi a elaboração de currículoscompatíveis comosquatro estágios de desenvolvimento cognitivo do cérebro humano,geneticamenteprogramados,estabelecidosporessateoria: sensório-motor,pré-operatório, operatório-concreto e operatório-formal. Era precisoadequarosconteúdose a formade suaapresentação às estruturas mentaisque provavelmenteestariam disponíveis na mentedoalunonaocasiãoemqueessesconteúdos seriamensinados.

Masenquantoumaparceladospesquisadorespiagetianos voltava­seàs implicaçõeseducacionais dosestágiosdedesenvolvimento cognitivo,outra procuravadelimitarmelhoressesestágios buscando, porexemplo,

validar essa espéciede "cronograma genético-cognitivo"em diferentesamostrasdapopulação de diferentes regiões. Oinstrumento utilizado paraessavalidação foram algumas tarefas cognitivasentreaquelas apresentadasem umadasobrasde maiorimpacto educacional dateoriapiagetiana: Dalógica dacriançaà lógicado adolescente (pIAGET &INHELDER,1976).A forma como essas tarefas eram realizadas ou solucionadas por umadolescenteouadulto indicaria oseuestágio dedesenvolvimento cognitivo.Os resultados foram surpreendentes. Uma revisão desses trabalhos(CHIAPETTA, 1976)atesta que grande parte das pessoas, mesmo emidadeadulta,não chegavaa atingiroestágiooperatório formal. .

Esses resultados levaram a duas conseqüências imediatas. Aprimeira, emrelação àsestruturas curriculares defundamentação piagetiana:o ensino de conceitos formais aosadolescentesdeveria ser reduzido aomínimo, senão descartado, pois eles, em sua esmagadora maioria, nãotinhama estruturamental quepossibilitasse a suaaprendizagem. Atisica,portanto, só lhes poderia ser apresentada por meio de um enfoqueexperimental, concreto, semformulações abstratas, privilegiando-seseuaspecto informal oucultural.

A segunda conseqüênciateveconseqüências maisgraves.Segrandepartedapopulação adultapesquisadanãoapresentava umaestruturaformalde pensamento, tornava-se dificil aceitar aexistênciadeumaprogramaçãogenéticapara a estruturado cérebrohumano,postulado básico da teoriapiagetiana. Comparandoa supostaformaçãogenética do cérebro com aformação genéticadenossadentição, seriao mesmoqueencontrargrandeparte da população adulta sem seus dentes molares ou pré-molaressimplesmente por quenãoteriam nascido.

Piaget,de certaforma, reconheceu as dificuldades do seu modelode estágioscognitivose tentou contorná-las postergandoo cronogramada evoluçãogenéticado pensamento e restringindo-aa áreasespecíficasdo cérebro humano: "todos os sujeitos normais atingem o estágio dasoperações formais, de II ou 12anos a 14 ou 15 anos, ou em qualquercaso, entre 15 ou 20 anos. Entretanto eles atingem esse estágio emdiferentes áreas, de acordo com suas aptidões ou especializaçõesprofissionais - a formapelaqualessasestruturas sãousadas,no entanto,

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não é necessariamente a mesma em todos os casos" (PIAGET, 1972).Mas o abalocausadoporessaspesquisasfoi fatal- a sua teoriade estágioscognitivos acabou por ser abandonada assim como todas as propostascurriculares nelabalizadas.

A convicção dequea aprendizagem é funçãodo desenvolvimento,no entanto, continuou a prevalecer. Uma formulação que costumamoschamarde neopiagetiana, sugeriaque a programaçãogenéticado cérebrohumano existe, mas nem sempre se manifesta - as estruturas formais depensamento se completam mas não são detectadas, pois há obstáculos àsuautilização. Assim, podemoscomparar a estrutura formal dopensamentoa um grandearmáriocom inúmeras"gavetas lógicas"onde asconcepçõesformaisseriam acomodadase logoem seguidaassimiladas. Todasessasgavetas lógicas se formariam, obedecendo ao cronograma genéticopiagetiano,mas muitasnão poderiamser utilizadas. Seria como se elasjáestivessem cheias em decorrência de sua origem genética ou cultutal: aprimeira, faria com que algumas gavetasjá nascessem assim; a segunda,fariacom que elas se "enchessem" durante o crescimento da criança, nainteraçãocom seuambiente cultural.

Ressalvadas aspossíveis inadequações das analogias, essapodesera sinteseda tese da hipótese das concepçõesespontâneas,alternativasoupré-concepções, linhadepesquisaemensinodeciências preponderante nasduasúltimasdécadasdo séculopassado. Em todoo mundo,pesquisadoressairamem busca dessas"gavetas lógicasjá cheias" - era precisoachá-laspara esvaziá-las,casocontrárioseria impossívelo ensino das concepçõescientificas quedelas dependiam paraseremacomodadas eassimiladas. Muitasforam encontradas. Conhecemos hojeumgrandeacervodepré-concepções,sobretudo em física, mas todas as tentativas de "esvaziar essas gavetas"eliminando aspré-concepçõesdos alunos que"as enchiam" fracassaram.Hojesão poucosos que ainda insistem nessesdiagnósticose praticamentenãohámaisiniciativas destinadas aeliminarnenhumadessaspré-concepçõesdiagnosticadas - a grande maioria dos pesquisadores em ensino parece

.reconheceressa linhade pesquisacomoestérile inócua.

Esse imenso trabalho, no entanto,não foi inteiramenteem vão.Astentativasde superaçãodessaspré-concepções con olidaramum conjunto

de procedimentosdidáticosque acabouporconfiguraruma nova propostaeducacional,o construtivismo.Não há, ainda hoje, uma concepção clarado que seja o construtivismonemde qual devaser sua base teórica,mas éindiscutívela vinculaçãoda maioriadas propostasconstrutivistasà teoriapiagetiana, sobretudo por sua origem.Até o nome construtivismo pareceoriginar-se de uma analogia freqüentemente usada por Piaget: "odesenvolvimentomental éurnaconstrução contínuacomparávelàedificaçãode um grande prédioque, a medidaque se lheacrescentaalgo, ficará maissólido" (pIAGET, 1973).

Há propostasconstrutivistas com outrasfundamentações teóricas,mas tendo em vista o focodestas reflexões,optamos por destacar apenasum dos traços comuns a todas elas aproximando-asdos antigos projetoscurriculares e da instrução programada: a responsabilidade pelaaprendizagem continua a ser do aluno - é ele quem deve construir o seuconhecimento de forma ativa e concreta. Ao professor cabe avaliar amelhor estratégiaparaque ele tenhasucessonessaconstruçãolevandoemcontaseunívelcognitivoe,principalmente, suaspré-concepções. Suaaçãocontinuarestritaà orientação,ao fornecimento de pistase dedicas. Comosempre, o professor indica o caminho,mas é o aluno que deve aprenderequem aprende, aprende sozinho.

Essa parece ter sido a grande armadilha em que caíram todas aspropostas de ensino de tisica nestes cinqüenta anos. Talvez pela forterejeição aoautoritarismo do professor, sintetizado no magister dixit, espéciede divisaideológicadapedagogiatradicional contraa qualessaspropostassempre se voltaram, o professor,com mais ou menos ênfase, foi sempreposto de lado por todas as teoriaspedagógicasque fun.damentaram essaspropostas.Uma ironiade Piaget(aomenos assima entendemos)sintetizabemessaconcepção: "A melhoridéiaqueouvide um pedagogodo BureauInternacionalde Educaçãoem Genebrafoi feitapor um canadense.Disseque em sua província haviam acabadode decidirque cada classe deveriater duas salas de aula, uma em que o professor está, outra em que ele nãoestá" (DUCKWORTH, 1964).

Éjusto ressaltar, comoexceção a essaunanimidade, o GREF(Grupode Reelaboração do Ensino de Física), criado em 1984 também por um

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grupo de professores do Instituto de Física da USP e do ensino médio,pois seu alvo explícito é a preparaçãode professores para um ensino detisicavoltado àrealidadecotidiana. Contribuiuparaessaposturapedagógicaa visão freireana do processo de ensino e aprendizagem partilhada pelogrupo que o criou. Segundo Luis Carlos Menezes, um de seuscoordenadores, seu"gruponãoformalizou Freirecomoreferênciacentral,masfoiquempelaprimeiravez,parao ensinodeumaciênciaespecífica defato, adotou uma prática dialógica e desenvolveu uma metodologiacorrespondente". Assimele a descreve, brevemente:

Ressalvadaessaexceção - e talvezporassimo ser,o GREF aindase mantém vivo e atuante - essa postura de deslocamento do professorpara a periferia do processo educacional foi, a nosso ver, a causa doreiterado fracasso detodasaspropostas educacionais emensinodeciências.Emcontraposição, talveztenhasidotambéma causada permanênciaquaseinalteradaem nossaescoladas mesmaspráticasdoensino tradicionalqueelas se propuseram a extinguir. Estão bem mais atenuadas, é verdade ­afinal os tempos são outros - mas na essência, continuam o mesmoautoritarismo doprofessor e amesmapassividade reflexiva doaluno: eppurnonsi muovel

"O professor conduz com seus alunos umlevantamento detemasde interesse ou relevância paraeles, que tenham proximidadecoma disciplina da física prevista paraa sériee nível da turma,num procedimento que, naturalmente, já reflete a vivência e acondição sócio-cultural dos educandos, orientando o professor aapreender a realidade deles e a preparar-se para uma efetivainterlocução. Desta forma, se estabelece uma listade assuntosde interesse dos alunos, depois ordenada de acordo com osconceitos daementa formal dadisciplina.Oaprendizado éentãoconduzido numa seqüência quefavorece a construção conceituaIque, na medida do possível, se inicia pelo 'como funciona'eprossegue porníveis crescentes deabstração. O GREF produziulivros de Mecânica, FísicaT érmica, Ótica e Eletromagnetismoutilizados na preparação de professores do ensino médio paraadotarem aquela metodologia para cada uma dasdisciplinas"

(MENEZES, 2005).

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S. Vígotski c o parceiro mais capaz

Éobviamente impossível sintetizarumateoriaemalgunsparágrafos.Destacamosaqui apenasalgumasidéiasque podemauxiliaresta reflexãobaseadassobretudona tradução maisrecentede suaobramais importante(VIGOTSKI, 2001). Segundo Vigotski, o conhecimento é transferidodaqueles que o detêm para aquelesque devem ou querem adquiri-lo pormeio da linguagem. É a linguagem que origina o pensamento . A falaegocêntricade uma criançaentretidaem suas brincadeirasé, na verdade,a exteriorização do seu pensamento - ela está pensando alto. Quando acriança cresceessa linguagemexteriortendea desaparecer. Seucérebroesuas estruturas mentais se desenvolvem até que todo o pensamento dacriançase interiorizacoma interiorização da linguagem.

Ainda em busca da síntese, podemos apresentar a forma comoessa teoria entende o processo de ensino e aprendizagem por meio deumaanaiogia relativamente simples, ressalvando, mais umavez,aslimitaçõesque caracterizamas analogias.Atransferênciacognitivade determinadoconceito de um professor aos seus alunos pode ser comparada àtransferência de um programa de um computador para outro. Essatransferência, no entanto,não se fazdiretamente, em um seqüenciamentoordenado de impulsoseletromagnéticos, comoocorre entrecomputadores.O meio que a possibilita, ou seja, a forma pela qual um aluno podeapropriar-se do "programa" doprofessoré a linguagem, a interação verbale simbólicautilizadanessatransferência

Mas, ao contrário do que ocorre costumeiramente com oscomputadores que, ou têm memória suficiente e permitem a instalação

Jáé tempoderefletirmos sobreessaincapacidade detantos grupos depesquisa, sobretudonoBrasil, deinterferirnapráticadidáticaefetivadosnossosprofessores. Não se pode imaginarque nada dê certo apenas por causasexternas - elasexistem,é claro, e não sãopoucas. Éprecisotambémbuscarurnnovo referencial teórico,umnovo olharquenosexpliquea razãoparatantoinsucesso e tanta resistência à mudança. Temosa convicção que essenovoolharpoderealizar-sepormeiodaTeoria Sócio-históricadeVigotski.

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imediatado programa, ou nãoa tême nãoo instalam, o cérebrohumanoconstrói amemória dequeprecisaenquanto instalaoprogramaEmoutraspalavras, nossa mente cria as estruturas cognitivas necessárias àcompreensãode umdeterminado conceito à medidaque esseconceito éensinado, ou melhor, à medidaqueesseconceitoestá sendoaprendido.Ao contrário da teoriapiagetiana paraa qualum novoconceitosó podeseraprendido quando asestruturas mentais queessaaprendizagem exigejá estiveremconstruídas na mentedo aluno, na teoriade Vigotski essasestruturas mentaissó serãoou começarão a serconstruídas se e quandoesses novos conceitosforem ensinados. Nãoéodesenvolvimento cognitivoquepossibilita a aprendizagem, masé o processo de ensinare o esforçode aprenderquepromovem odesenvolvimentocognitivo.

ParaVigotski, aferramentacognitivabásicadesseprocessoéaimitação,eestatemcomocorolário apresença indispensável doparceiro maiscapaz:"Aimitação, seconcebida nosentido amplo, éa forma principal emqueserealizaa influênciadaaprendizagemsobreodesenvolvimento.Aaprendizagemdafala, aaprendizagemnaescolaseorganizaamplamentecombasenaimitação.Porquenaescolaa criançanãoaprende o quesabefazer sozinha maso queaindanão sabee lhevema seracessível emcolaboraçãocomoprofessor esobsuaorientação" (VIGOTSKI,2001 , pg. 331).

Atualizando avisão deVigotski, aaprendizagempodeserentendidatambém como umprocesso fisiológico deorganização e reorganizaçãodenossasredesneurais e, como tal,pode duraralguns minutos,umaaula, ummês, umanoou bemmais. Essetempodependeda forma comoo novoconhecimentoa seraprendido éapresentado, daforma comosedesenvolvea colaboração com o parceiro mais capaz, do desnível cognitivo a sersuperado e da complexidade das estruturas mentais que devem serconstruídas paraa formação dessas redes quepossibilitam essaaquisição.

Todo esse processo costuma ser englobado pelos educadoresvigotskianos em uma interação social, processo que se efetiva pelalinguagem, no sentido maisamplo dotermo,e é sempreassimétrico emrelação aoconhecimento nelepartilhado. Emumadescrição simplificada,paraque essa partilha sejapossível,em uma interação socialdevehaversempreparceiros mais capazesquedetêm esse conhecimcnt c transferem

aosparceiros menos capazes quepretendem adquiri-lo. Aaprendizagem,ouseja, aaquisição doconhecimento pelosparceiros menos capazesocorreenquanto estes se apropriamda linguagem dos parceirosmaiscapazes ­apropriar-seda1inguagem,nosentidoqueVigotski dáaotermo,é apropriar­se dopensamento.

Há certamente muito mais a dizer desta extraordinária teoriaeducacional, masessas idéias sãosuficientes para fundamentarestareflexão.Oaluno,como todo serhumano,não aprende comamanipulaçãodeobjetos,comexperiências oudiretamente coma natureza - eleaprendecomumoumuitos parceiros maiscapazes e,entreelesestá, é claro,o professor.

Como diziaHeisenberg emuma de suasmuitasreflexõessobrefilosofia e ciências "não podemos esquecer queasciências estão'entre' anatureza eo homem";exemplificandomaisadiante:"o conceitode 'lei danatureza' nãopodesercompletamente objetivo, pois a palavra 'lei' é umprincípiopuramente humano" (HEISENBERG, 2000).Afísica,como todaciência, é umaconstrução humana. Elanão estánanatureza, masnamentedos físicos e (deveria estar)na mente dosprofessores de tisica, logosó épossível ao alunoaprender tisicacomseusintermediários os quaisdetêmesseconhecimento, aquelesqueestão "entre"o aluno e a natureza.

Umaatividade experimental realizada isoladamenteporumgrupode alunos,por maisdesafiadora emotivadoraqueseja, não teránenhumsignificado se nãohouveralguém do grupoou comele interagindo queconheçae possa expor o seu modeloexplicativoaos demais. Só quemconhece a fundamentação teóricadeumaexperiênciapoderealizá-Ia deforma significativae fazer comqueamesmapossapromover a aquisiçãodo conhecimentoparaa qualfoipropostae apresentada.

Umasaladeaulasemprofessor,como ironicamente sugeriu Piaget,nãoépossívelaprender coisaalguma, amenosquenelahajaalguém quepossa desempenhar o seu papel.Acrençade que um material, mesmorico, motivador e exaustivamente planejado, possasubstituir o professorjá estásobejamente desautorizada portodosestesanosde insucesso daspropostas quepartiram dessepressuposto.Vale apenaainda, parareforçodeargumentação, expora forma como Bachelardviaopapeldoprofessornaatividade experimental:

6. Concluíndo: agora deve ser a vez do professor

Ateoria deVigotskijánãoé umailustredesconhecida, maspoucosparecem ter percebido seu verdadeiroalcance.Amaioria dos que nela seiniciam ainda se encanta com o conceito de zona de desenvolvimentoproximal (ouimediato, deacordo coma suanovatradução), idéiainovadora

"Em resumo, noensino elementar, asexperiências muitomarcantes,cheias de imagens,são falsoscentrosde interesse.É indispensávelque oprofessor passe continuamente da mesa para a lousa, a fim de extrair omaisdepressapossível o abstrato doconcreto. Quandovoltarà experiência,estarámais preparadoparadistinguir os aspectosorgânicosdo fenômeno.A experiênciaé feitapara ilustrarum teorema. [oo.]. Maisvalea ignorânciatotal do que um conhecimentoesvaziadode seu princípio fundamental"(BACHELARD, 1996,pg. 50).

Ressalvadaa nossadiscordânciacoma radical opçãodeBachelardpela "ignorância total" (talvez uma força de expressão para aguçar aimportância daapresentação do modelo teórico durante o desenvolvimentoda experiência), é muito importante o seu entendimento do papel doprofessore da experiência na aprendizagem. Nenhumaexperiênciaé auto­explicativa- sem a orientaçãodo professor, os alunosmuitas vezes nemsequer vêem o que se espera ou se deseja que vejam. E mesmo quandovêeme com essa visão seencantam, nãohá razãopara suporque isso sejao bastantepara que aprendamos conceitosque dela podem serextraídos.

Não é possível acreditarque, pela simplesobservação do apagarde uma vela tapada por um copo,um grupode alunospossa concluirquea chama apagou porque consumiu o oxigênio aprisionado; ou queobservando um bastão atritadocom um lenço atrairpapeizinhos alguémpossa, sem conhecimento teórico prévio, concluir que o lenço cedeu outirouelétrons dobastão, este polarizou eletricamente ospapeizinhose assimos atraiu. Isso só será possível se o professor,parceiro mais capaz dessainteração,ao passar"continuamente da mesaparaa lousa" apresentaraosseus alunos os modelos teóricos criados pelo ser humano ao longo deséculos para descrever essas observações.

Recebido e aprovado em agosto de 2005

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eproficua, masqueestámuitoaquém das suascontribuiçõesmaisrelevantes:a linguagem como formadora do pensamento, a precedência daaprendizagem sobre o desenvolvimento, a imitação como processocognitivobásicoda aprendizagem e, principalmente, o papelda interaçãosocialcomocondiçãonecessária paraa viabilização do processode ensinoe aprendizagem.

Detodasessasidéias transcendea naturezahistórica, social e culturalda formaçãoda mente humana- nãoé possívelconceberque o ensinoe aaprendizagem, instrumentos básicos desseprocesso, possamserpossíveissema interaçãodiretaentresereshumanos. Paraconcretizar e sistematizaresseprocessonossosantepassados criarama escolae instituiramo ensinoformal;instituiçõesdestinadasa tomarpossívela transmissão, de geraçãoa geração, do imenso acervo cultural por nós acumulado ao longo demilêniosde existência.Não há comoprescindirda presençahumana,dosdetentoresdesse acervo, noprocessoeducacional- alijardeleo professorou subestimar o seupapelé negarousubestimara próprianatureza humanada produçãoe transmissãodo conhecimento.

Se grande parte dos nossos professores está despreparada paraexerceressa tarefa- e essapareceser,infelizmente, a realidade- é precisovoltar nossa atenção para eles, melhorar a sua formação, dotá-los derecursose meiosparaque possamcontinuadamente adquirire dominaroconteúdoque devemtransmitiraos seusalunos.Ao contráriodo que temsido feito até aqui, é preciso recolocaro professorno centro do processoeducacional, tomado-o de fato o parceiromais capaz de quem os alunosjamaisvão poder prescindir.

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