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1 Teoria da Justiça como Crítica Social: Honneth e a reformulação hegeliana da noção de autodeterminação Erick Lima 1 RESUMO: O presente trabalho pretende se inserir num contexto contemporâneo de discussão, marcado não somente pela reaproximação entre a teoria da justiça e a crítica social, mas, de forma ainda mais enfática, pela tendência à sobreposição das reflexões empreendidas nesses âmbitos. Em geral, procuro localizar a motivação para esta sobreposição na explicitação, pela teoria crítica, de sua herança hegeliana. Primeiramente, trata-se de mostrar como o restabelecimento por Habermas dos fundamentos normativos da teoria crítica, frente às aporias da crítica da razão instrumental, é profundamente influenciado por certa compreensão hegeliana do sofrimento social, um encaminhamento retomado depois de maneira ainda mais explícita por Honneth (1). Em seguida, depois de mostrar como a compreensão hegeliana de intersubjetividade é traduzida por Habermas e Honneth em termos relevantes para uma teoria contemporânea da sociedade (2), concluo mostrando como Honneth recupera, no quadro mais amplo de uma teoria da justiça, aquela compreensão hegeliana de sofrimento social à luz da complementação proposta por Hegel do conceito de autodeterminação em termos de auto-efetivação (3). PALAVRAS-CHAVE: G.W.F HEGEL – FILOSOFIA POLÍTICA – TEORIA SOCIAL – FILOSOFIA DO DIREITO – TEORIA DA JUSTIÇA INTRODUÇÃO “A ideia mestra, que anima e estrutura a lógica e a metafísica de Hegel, é sua maneira de desenvolver, de acordo com o modelo de autoridade recíproca e responsabilidade cujo paradigma é o reconhecimento recíproco, o insight de Kant-Rousseau acerca do tipo fundamental de normatividade baseada na autonomia.” (BRANDOM, 2002, 234) Para Hegel, reconhecimento é a base para a compreensão das normas sociais e da subjetividade autoconsciente (BRANDOM, 2002, 228 e seg), bem como da constituição dos mundos-da-vida sócio-culturais (HABERMAS, 2004, 193 e seg). A dimensão política do reconhecimento está no centro mesmo da noção de 1 Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected] . Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do? metodo=apresentar&id=K4703131D1 . Endereço: SQN212, Bloco A, apartamento 108. CEP:70864-010. Brasília-DF

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1

Teoria da Justiça como Crítica Social: Honneth e a reformulação hegeliana da noção de autodeterminação

Erick Lima1

RESUMO: O presente trabalho pretende se inserir num contexto contemporâneo de discussão, marcado não somente pela reaproximação entre a teoria da justiça e a crítica social, mas, de forma ainda mais enfática, pela tendência à sobreposição das reflexões empreendidas nesses âmbitos. Em geral, procuro localizar a motivação para esta sobreposição na explicitação, pela teoria crítica, de sua herança hegeliana. Primeiramente, trata-se de mostrar como o restabelecimento por Habermas dos fundamentos normativos da teoria crítica, frente às aporias da crítica da razão instrumental, é profundamente influenciado por certa compreensão hegeliana do sofrimento social, um encaminhamento retomado depois de maneira ainda mais explícita por Honneth (1). Em seguida, depois de mostrar como a compreensão hegeliana de intersubjetividade é traduzida por Habermas e Honneth em termos relevantes para uma teoria contemporânea da sociedade (2), concluo mostrando como Honneth recupera, no quadro mais amplo de uma teoria da justiça, aquela compreensão hegeliana de sofrimento social à luz da complementação proposta por Hegel do conceito de autodeterminação em termos de auto-efetivação (3).

PALAVRAS-CHAVE: G.W.F HEGEL – FILOSOFIA POLÍTICA – TEORIA SOCIAL – FILOSOFIA DO DIREITO – TEORIA DA JUSTIÇA

INTRODUÇÃO

“A ideia mestra, que anima e estrutura a lógica e a metafísica de Hegel, é sua maneira de desenvolver, de acordo com o modelo de autoridade recíproca e responsabilidade cujo paradigma é o reconhecimento

recíproco, o insight de Kant-Rousseau acerca do tipo fundamental de normatividade baseada na autonomia.” (BRANDOM, 2002, 234)

Para Hegel, reconhecimento é a base para a compreensão das normas sociais e da

subjetividade autoconsciente (BRANDOM, 2002, 228 e seg), bem como da constituição

dos mundos-da-vida sócio-culturais (HABERMAS, 2004, 193 e seg). A dimensão

política do reconhecimento está no centro mesmo da noção de sujeito em Hegel: um

sujeito não pode ser constituído sem ser reconhecido. Hegel inaugurou uma maneira de

pensar que entende a Anerkennung – e a intersubjetividade – como constituinte de

sujeitos, de identidades e de conhecimentos.

Frente a uma “teoria da socialização” proveniente de Nietzsche (HONNETH, 1989,

caps. 4, 5 e 6)2 – da qual parece decorrer, devido a “premissas questionáveis”, um “certo

1 Professor Adjunto do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. Currículo Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?metodo=apresentar&id=K4703131D1. Endereço: SQN212, Bloco A, apartamento 108. CEP:70864-010. Brasília-DF2 Interessante aqui é recorrer, do ponto de vista da epistemologia da crítica social, à “integração hegeliana”, proposta por Honneth para o programa de uma crítica do poder. “ Foucault e Habermas, em contrapartida, alcançam o âmbito fenomênico do social (das Soziale), o qual permaneceu estranho à tradição da teoria crítica da sociedade, a partir de lados extremamente contrapostos, no que tange à teoria da ação: Foucault no paradigma da “luta” (Kampf), Habermas naquele da “compreensão” (Verständigung). A partir de uma análise das dificuldades às quais conduzem, em cada caso e num nível diferenciado de reflexão, estas propostas teóricas, devem resultar implicitamente as linhas que uma “crítica do poder” teria hoje de trilhar.” (HONNETH, 1989, 8)

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gênero de idealismo linguístico”, uma “crítica totalizante da razão” (HABERMAS,

2001, 186) e uma compreensão niveladora da modernidade (HABERMAS, 2004, 83) –

há que se lembrar certamente de que a anteposição da luta ao ser-reconhecido

(Anerkanntsein) inviabiliza a interpretação de Hegel como sustentando uma

“intersubjetividade pressuposta”, a qual poderia coincidir, no melhor dos casos, com

aquilo que o “grande metafísico” chamaria de “universalidade abstrata”. Ora,

justamente deste inconveniente Hegel procura desvencilhar-se ao especificar a estrutura

intersubjetiva do ser-reconhecido como resultado (HEGEL, 1970, 3, 12), como

“universalidade concreta”. De fato, poder-se-ia dizer, seguindo Honneth, que

desconectar a universalidade concreta, própria à subjetividade descentrada pelo

reconhecimento, do processo de seu devir como luta (Kampf) e crime (Verbrechen) é

eclipsar totalmente sua utilidade para a crítica social de relações de poder e de não-

reconhecimento (Missachtung) de diferenças sob noções autocráticas da universalidade

social. “Contudo, a justiça, a qual reconduz ao equilíbrio o universal preponderante

sobre o singular, é, da mesma maneira, o espírito simples daquele que sofreu injustiça”

(HEGEL, 1970, 3, 339), cita Honneth, como epígrafe de um livro recente (HONNETH,

2010). De outro modo, não se entende porque o reconhecimento é o desfecho que não

aniquila, mas conserva e suspende “a enorme contradição de que ... os dois Si que se

referem aqui um ao outro constituem uma só identidade: por assim dizer, uma só luz; e,

no entanto, são ao mesmo tempo dois que persistem em uma rigidez e aspereza

completas, um em relação ao outro, cada um como algo refletido sobre si,

absolutamente distinto do Outro e impenetrável por ele.” (HEGEL, 1970, 8, 218)

1. Repensando a Crítica Social a partir de Hegel: o sofrimento social

Bernstein abre sua interessante monografia sobre Habermas mencionando a sua

muitas vezes negligenciada herança hegeliana (BERNSTEIN, 1995, p.1) Não é difícil

encontrar, mesmo nos primeiros escritos de Habermas, corroborações diretas para esta

tese geral (HABERMAS, 1974, p. 194-195). Na verdade, a orientação hegeliana

permanece marcante mesmo nos anos 1980, depois do estabelecimento, com a Teoria

do Agir Comunicativo, das feições mais definitivas de seu pensamento. Por exemplo,

ele ancora sua apreciação da crítica da modernidade cultural3 numa inspiração

hegeliana: para fazer frente às aporias da “filosofia reflexiva da subjetividade”

3 Tal intuição, que permite a visualização do pós-estruturalismo num processo de reflexão crítica acerca da modernidade que foi desencadeado por Hegel, permanece com plena força até mais recentemente (HABERMAS, 2001, p.186).

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(HEGEL, 1970, 2, p. 286) a ideia de uma racionalidade entretecida nos recursos

intersubjetivos de uma forma de vida, tal como sugerida pelo jovem Hegel nas

discussões acerca da “causalidade do destino” (Idem 1, p.273 ss). Se observarmos o

célebre capítulo IV da Teoria do Agir Comunicativo, a “justificativa” para a adoção de

um novo modelo de crítica, capaz de não sucumbir às aporias da crítica da razão

instrumental, acaba por soar, com certa liberdade interpretativa, como disputa em torno

de um “Hegel viável”4.

A situação teórica da crítica da razão instrumental é, segundo Habermas, uma

“contradição performativa” (HABERMAS, 2002, p. 170): a absolutização da

racionalidade instrumental acaba por “demolir a barreira entre validade e poder ... A

razão, enquanto razão instrumental, assimilou-se ao poder e renunciou, desse modo, à

sua força crítica – este é o último desvelamento de uma crítica da ideologia aplicada a si

mesma.” (Idem, p. 170). Assim, com o desenvolvimento teórico do “conceito paradoxal

da não-identidade” (Idem, p. 184), Adorno aguça o “desenfreado ceticismo perante a

razão” (Idem, p.185) e, com isso, o déficit nos “fundamentos normativos da teoria

crítica da sociedade”. (Idem, p.185) Diante do forte nivelamento a que é conduzida a

Dialética do Esclarecimento em sua tematização do nexo especificamente ocidental

entre racionalidade e dominação, Habermas detecta, como condição para o olhar

catastrófico, a estrutura dialética da relação desfigurada entre espírito e natureza

(HABERMAS, 2012, p.655).

O problema é que tal conceito de verdade, que se deixa “interpretar sob o mote

da conciliação universal, de uma emancipação do homem por meio da ressurreição da

natureza” (Idem, p.657), teria de se apoiar, para obter sua explicitação categorial, numa

racionalidade prévia, na qual a própria reificação deixasse escritas suas marcas. Mesmo

que não tentem verter o inefável dialeticamente em termos de uma unidade da unidade e

da diferença, tal como Hegel e sua doutrina da “sentença especulativa” (HEGEL, 1970,

3, p. 57), a crítica da razão instrumental se revela não possuidora de um “instrumental

4 Habermas reconstrói, em termos de uma “auto-superação dialético-negativa do pensamento filosófico” (HABERMAS, 2012, p.630), a trajetória de Adorno desde a apropriação de motivos do alegórico benjaminiano, com o qual esperava despertar o cifrado e enrijecido, até a “aporética do conceito de não-idêntico” (Idem, p. 662). Na Teoria da Ação Comunicativa, a incapacidade, diagnosticada no projeto de “crítica da razão instrumental”, para responder pelos fundamentos normativos da crítica social se revela, em primeiro lugar, na forma da própria crítica imanente que Adorno faz a Hegel (Idem, p. 643).

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conceitual” (ADORNO/HORKHEIMER, 1985, p.50) adequado à tematização do

elemento que em seu diagnóstico aparece como oprimido5.

“Ora, o universo conceitual da razão instrumental [não] foi criado ... para dizer a uma natureza objetivada o que de mal se faz a ela. A razão instrumental ... não coloca à disposição instrumentos explicativos que possam esclarecer o que significa afinal a instrumentalização de relações sociais e intrapsíquicas sob a perspectiva de contextos vitais violados e deformados ... Assim, a evocação da solidariedade social pode apenas indicar que a instrumentalização da sociedade e seus integrantes destrói algo; mas ela não pode apontar de maneira explícita em que consiste esta destruição.” (HABERMAS, 2012, p. 671)

Faz-se necessário tematizar explicitamente “a integridade do que é destruído

pela razão instrumental.” (Idem, p. 671) Mas isso somente é possível, pensa Habermas,

se nas próprias “realizações miméticas ... se libera o núcleo racional em favor de uma

filosofia da linguagem, entendimento intersubjetivo ou comunicação” (Idem, p. 672).

Nestes termos, revela-se, como própria condição da mimese enquanto sugestão acerca

de um contexto vital violado, a ideia normativa de uma “intersubjetividade incólume”

(Idem), de uma “intersubjetividade sem violência” (Idem).

“As estruturas de uma razão, a que Adorno apenas alude, só estarão acessíveis à análise quando as ideias de conciliação e liberdade puderem ser decifradas como códigos de uma forma utópica de intersubjetividade (seja ela qual for) que possibilite tanto um entendimento entre os indivíduos no trato entre si, sem coerções, quanto a identidade de um indivíduo apto a manter entendimento consigo mesmo, também sem coerções – socialização sem repressão.” (Idem, p. 674)

Habermas pensa esta subordinação do “aspecto parcial cognitivo-instrumental a

uma racionalidade comunicativa mais abrangente” (Idem, p.672) a partir da inspiração

contida na “causalidade do destino”. O destino propicia uma reconciliação do

“criminoso” com a comunidade ao fazer com que o indivíduo “sinta” seu delito como

lesão da vida contra si mesma6. Nesta versão juvenil, prenhe de potenciais filosófico-

políticos e teórico-sociais, da compreensão da sociedade moderna como “sistema da

eticidade perdida nos seus extremos” (HEGEL, 1970, 7, p. 339) e que ainda levará o 5 “A dialética revela ... toda imagem como uma forma de escrita.” (ADORNO/HORKHEIMER, 1988, p. 36) A linguagem em sua significação dialética (Idem, p. 29), capaz da tensão entre o idêntico e o não-idêntico, é a “visualização conceitual” do fundo opaco das coisas, resgata a sacralidade e a divindade da natureza. Para que se possa produzir, a partir de uma racionalidade reificada, o acesso conceitual ao não-conceitual, à natureza inconciliada, impensada e esquecida de si mesma, faz-se necessário um novo conceito de conceito. É conduzindo ao resquício ainda não subsumido ao conceito identificador que o esclarecimento permite que se mantenha, no processo de sua autorreflexão, a esperança e a utopia (Idem, p. 50). Através do processo radical de autorreflexão, o esclarecimento se torna conceito que flerta com o indizível, conceito que empresta voz não à natureza originária e imaculada do “mana”, mas à natureza reprimida, impensada, não-dita e mutilada.

6 “O ato do criminoso não é, considerado desta maneira, nenhum fragmento. A ação que vem da vida, do todo, apresenta também o todo. O crime, que é a transgressão de uma lei, é somente um fragmento, pois fora dela [a transgressão E.L] está já a lei, a qual não pertence a ela. O crime, o qual provém da vida, expõe este todo, mas [o expõe] partido, e as partes hostis podem novamente integrar-se em um todo.” (HEGEL, 1970, 1, p. 345)

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Hegel maduro a explicitar os nexos reconstitutivos de uma intersubjetividade não

excludente como condição para a passagem ao Estado (Idem, p. 348), a condição

“subjetiva” de possibilidade do retorno da vida a partir da cisão é a percepção pelo

transgressor de seu ato como seu isolamento do todo vital, como destruição da unidade

da vida, o que se fundamenta na sua defrontação com a vida que, através de seu próprio

ato, se tornou hostil, isto é, com o destino; pois nesta consciência de si mesmo como

inimigo (Idem, p. 346), consciência da ruptura dos laços vivos com a comunidade, da

totalidade que se tornou hostil, está já contida a ideia de um impulso ao

restabelecimento da unidade. Para Hegel, a “pena” se transforma em “consciência

ética”, isto é, na tomada de consciência pelo indivíduo da preexistência, do caráter

originário dos vínculos éticos lesados por seus atos e, por conseguinte, do estado

atualmente fragmentado dos mesmos. Apenas esta radicalização da “pena” como

“consciência ética”, o reconhecimento reflexivo pelo(s) indivíduo(s) de sua pertença

originária a laços de reciprocidade e a um mundo constituído por expectativas mútuas

de comportamento, apenas o reconhecimento do “crime” e da “individualização” como

abstração da eticidade que a embasa, constitui a condição de possibilidade da

Versöhnung, ou seja, da reparação, da reposição da intersubjetividade originária

destruída pelo conflito.

O significado mais abrangente do problema da “causalidade do destino” 7 reside,

portanto, em que a “individualização” é pensada como realidade derivada, como algo

que pressupõe um todo ético marcado pela reciprocidade do reconhecimento e da

satisfação dos interesses privados. Nestes termos, um ato individual que põe em xeque a

integridade da vida ética, representa, na verdade, sua suspensão momentânea, seu

autoestranhamento, a neutralização forçada de sua validade prévia e originária8. A

equação, estabelecida por Hegel em Espírito do Cristianismo e seu Destino, entre a luta

como processo de “individualização” e a causalidade do destino como percepção de

uma “socialização originária” pode ser tomada enquanto antecipação de uma profícua

7 Para Habermas, a “causalidade do destino”, a força de restabelecimento de uma relação ética desencadeada pela complementaridade da comunicação não coagida e da satisfação recíproca de interesses, é o exemplo originário da “dialética da relação ética”, da Kampf um Anerkennung. Habermas a interpreta como experiência, “na relação dialógica do conhecer-se-no-outro, do fundamento comum de sua existência.” (HABERMAS, 1974, p.791/792)8 “A dinâmica do destino resulta antes da perturbação das condições de simetria e das relações recíprocas de reconhecimento de um contexto de vida constituído intersubjetivamente, do qual uma parte se isolou, alienando de si todas as outras partes da vida em comum.” (HABERMAS, 2002, p.43)

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teoria da modernização9. “A “reflexão” abandonada a si mesma deixa as totalidades

orgânicas desunidas ruírem nas suas partes isoladas. Ela desfaz as relações

intersubjetivas transformando-as em consequências da ação, observada reciprocamente,

de atores que decidem conforme fins racionais, de tal modo que os indivíduos isolados

são cortados das raízes das suas procedências comuns.” (HABERMAS, 2001, p. 174) O

escopo geral de uma teoria da modernização ressurge aqui aferível em termos da

tessitura simbolicamente mediada da intersubjetividade social. Se, como quer Adorno, o

processo de racionalização corresponde à gradual separação entre o signo convencional

e o conteúdo semântico, à introdução na linguagem, enquanto meio de reprodução

cultural, da diferenciação entre o signo e a imagem (ADORNO/HORKHEIMER, 1988,

p.30 ss), eis por que a revisão conceitual seja algo que o mundo esclarecido pode

suportar sem imediata ruptura e que ele próprio, na verdade, do ponto de vista da

objetivação e do incremento nas forças produtivas10, acaba por reivindicar

(HABERMAS, 2001, p. 164): a racionalização se inscreve na tessitura intersubjetiva das

formas de vida.

Se a crítica da modernidade sucumbe, em geral, à armadilha não-dialética de que

o travamento se deve à confusão iniludível entre gênese e validade, contraditoriamente

ligada à expectativa por um desmascaramento instantâneo sem a promissória de uma

dimensão enfática de validade, Habermas recupera tendências da dialética anteriores à

aporética da crítica totalizante: o entrelaçamento entre os contexto de sentido e o

contexto factual, entre a validade e a gênese11. Sendo assim, poderíamos dizer, 9 A “pragmática linguística universal” investigaria as normas imanentes da atividade comunicacional orientada ao entendimento mútuo. Para Honneth, embora seja a normatividade imanente do agir comunicacional que funda a possibilidade de se adotar um ponto de vista crítico sobre o que cria empecilhos à plena efetivação da interação, somente a perspectiva do “não-reconhecimento” e do “desrespeito” embasa o ponto de vista da crítica social, a auto-compreensão dos sujeitos como parceiros na interação linguisticamente mediada (FISCHBACH, 1999, p. 123). Eis por que o modelo de Hegel passa a servir, como “dinâmica social do desrespeito (Missachtung)”, enquanto reorientação da “teoria crítica” (HONNETH, 2000). Contudo, na interpretação fornecida por Habermas para a discussão sobre a “causalidade do destino” mostra-se que a virada linguística na teoria crítica vem inspirada por uma experiência da negatividade da cisão na eticidade.10 No que concerne à ideia do resgate cognitivo das pretensões de validade, Habermas sustenta, frente a Heidegger e Wittgenstein e inspirado em Frege, a tese de relativa independência da função cognitiva da linguagem em relação à função de abertura do mundo, notadamente no âmbito dos processos societários de aprendizado e na esfera cognitiva em sentido estrito, isto é, no sentido do domínio sobre a realidade exterior (HABERMAS, 1999, p. 94). Precisamente devido a esta concepção linguística uma teoria do agir comunicativo pode se conectar a uma teoria materialista da sociedade. Tal teoria da sociedade se despede de uma depreciação indiscriminada da modernidade, defendida por uma crítica totalizante da razão, na medida em que também faz justiça ao sentido autônomo sócio-evolucionário dos processos de aprendizagem intramundanos, alcançando uma apreciação diferenciada da modernização social e cultural (Idem, p. 94/95).11 “[E]las precisam ser separadas pelo pensamento que faz a mediação da maneira procedural, o que significa: sempre de novo. Na argumentação, crítica e teoria, esclarecimento e fundamentação se

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aproveitando a interpretação por Habermas da dinâmica crítica da sociedade capitalista

como desencadeada, em Hegel e Marx, pela “dialética entre sistema e eticidade”

(HABERMAS, 2012, p. 592), que Habermas procura preservar o potencial crítico pela

reconstrução da normatividade, suscitada pelas rupturas do tecido simbólico, na

perspectiva dos participantes dos jogos de linguagem pelos quais se reproduz um mundo

da vida em processo de modernização.

Em boa medida, as propostas defendidas por Habermas e Honneth para uma

conexão entre teoria da justiça e teoria social representam variações de sua herança

hegeliana, sobretudo no que diz respeito à conexão entre a crítica e a experiência da

cisão e do sofrimento. Por exemplo, Honneth proporá que a experiência de degradação

moral, advinda do reconhecimento malogrado, constitua o quadro pré-teórico capaz de

reatar a teoria crítica da sociedade aos anseios pela emancipação social. Com isso,

tenciona (HONNETH, 2000, p. 88-108) a “complementação” do paradigma

comunicacional, compreendido em termos da pragmática universal, pelo aguilhão

crítico da não emancipação, que brota diretamente da experiência de aviltamento gerada

pela ruptura dos nexos sociais fomentadores da constituição não patológica da

identidade do indivíduo. Haveria, portanto, um potencial normativo em jogo na

interação social, o qual não concerne, todavia, prioritariamente às normas linguísticas da

interação, mas se localiza, antes, na perspectiva dos sujeitos destituídos do

reconhecimento em que se baseia sua autocompreensão como parceiros na interação

(Idem, p. 98 e seg).

2. Intersubjetividade e Teoria Social

Ao tencionar aplacar, pela recuperação da pertinência das relações intersubjetivas e

da mediação linguística como elementos irredutíveis do “espírito”, a tendência marxiana

à “absolutização” do processo de reprodução material como elemento sócio-

determinante, Habermas acabou por recuperar para a teoria social o potencial das

concepções hegelianas de intersubjetividade, tornando possível, pela via do conceito de

reconhecimento, a conexão entre crítica social e teoria da justiça.

entrelaçam continuamente, mesmo quando os participantes do discurso tem de assumir que, sob os inevitáveis pressupostos de comunicação do discurso argumentativo, somente tem vez a coação não coercitiva do melhor argumento. Mas sabem, ou poderiam saber, que também esta idealização só é necessária uma vez que as convicções se formam e se mantém em um medium que não é “puro”” (HABERMAS, 2001, p. 185/186).

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Para Habermas, o que notabiliza a concepção hegeliana do eu em face dos seus

predecessores idealistas é justamente sua compreensão do mesmo, plasmada pela

estrutura lógico-especulativa do conceito, como unidade imediata de universalidade e

singularidade (HABERMAS, 1974, p. 790). Habermas relaciona este conceito de

unidade espiritual à constituição do mundo social pelos processos de socialização e

individualização12. Já em 1968, Habermas expõe, partindo da acepção hegeliana da

autoconsciência como unidade de universalidade e singularidade13 e se baseando em

Divisão do Trabalho Social de Durkheim, este caráter constitutivo14 dos processos de

socialização e de individualização15. Mesmo no texto sobre Hegel de 1999, comenta que

a compreensão pós-mentalista, alcançada por Hegel na teoria dos media do Esboço de

Sistema 1803/04, de que o sujeito cognoscente está, enquanto espírito, desde sempre

junto de seu outro, articula-se “nas reflexões contemporâneas ... sobre a individualidade

das pessoas agentes e de seus contextos de ação.” (HABERMAS, 1999, p. 188) Os seres

humanos constroem ou formam (ausbilden) sua individualidade em formas de vida

culturais, adquirindo uma específica autocompreensão como pessoas “que como eu e

outro, ego e alter, entram em relações uns com os outros e, ao mesmo tempo, formam

comunidades na consciência de sua absoluta diversidade.”(HABERMAS, 1999, p. 199)

12 Habermas sustenta que, ao compreender a intersubjetividade como cerne da subjetividade, Hegel descobre também “as consequências subversivas que a inicialmente imperceptível decisão mentalista de identificar o sujeito cognoscente com o eu traz consigo.” (Ibidem). Para Habermas, “este caráter individual de pessoas falantes, que se comunicam umas com as outras e que agem, reflete-se, de certa maneira, também nas formas de vida culturais e práticas que ela compartilha com outras. Hegel conheceu o desafio filosófico que reside nestes fenômenos.” (Ibidem) Eis por que Habermas considera que Hegel tenha sido o arauto da intuição que ele mesmo desenvolveu mais tarde num outro contexto: “todos os fenômenos históricos têm maior ou menor participação na estrutura dialética das relações de reconhecimento recíproco, nas quais pessoas são individualizadas pela socialização (Vergesellschaftung).” (Ibidem)

13“A percepção originária de Hegel consiste em que o eu enquanto autoconsciência somente pode ser compreendido quando é espírito, isto é, quando ele passa da subjetividade à objetividade de um universal, em que, sobre a base da reciprocidade, os sujeitos que se sabem como não idênticos são unificados.”(Ibidem)14 “Comunidades existem essencialmente na figura de relações de reconhecimento recíproco entre membros. É por esta estrutura intersubjetiva da comunitarização (Vergemeinschaftung) de pessoas individuais que Hegel se deixa guiar na explicação lógica do conceito de “universal concreto” ou de “totalidade””. (HABERMAS, 2004, p. 200)15 “[P]orque o eu é, exatamente neste sentido explicitado, identidade do universal e do singular, a individualização de um recém-nascido – o qual é, enquanto ser vivo pré-linguístico no corpo da mãe, exemplar do gênero e, biologicamente, pode ser suficientemente explicado a partir de uma combinação limitada de muitos elementos – somente pode ser compreendida como um processo de socialização (Sozialisierung). Nestes termos, certamente, a socialização não pode, por sua vez, ser pensada como simples socialização (Vergesellschaftung) de um indivíduo dado: ela mesma produz antes e primeiramente um ser individualizado.” (HABERMAS, 1974, p. 790-791)

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Honneth ampara seu abandono do caráter pretensamente abstrato da distinção

entre “sistema” e “mundo da vida” na radicalização do caráter constitutivo da dialética

entre socialização e individualização para o mundo social. Recorre à experiência moral

do malogro do reconhecimento, na qual a rede de interações implícita no conceito

comunicativo de liberdade é considerada no tocante ao estabelecimento insuficiente da

identidade individual. Inspirado pelo conceito de crime no jovem Hegel, Honneth já

considerara o potencial da vida ética, intensificada em seus laços pela aniquilação de

conflitos, para garantir o desenvolvimento das capacidades subjetivas necessárias a uma

individualização bem-sucedida (HONNETH, 1992, capítulos I e II). Procura então

tornar tal modelo profícuo a uma teoria da sociedade contemporânea, despindo-o do

teor especulativo advindo da inserção sistemática16. Com a tipificação naturalista dos

estágios de reconhecimento “idealizados” por Hegel, o modelo de uma individualização

crescente, suscitada pelas “lutas por reconhecimento”, abre-se, enquanto teoria social

normativa, à posterior investigação empírica e reconstrução do teor intuitivamente dado

nos degraus de socialização (Idem, p. 113 e ss).

3. Reconhecimento, Normatividade e Teoria da Justiça

Desde os anos 1960, a concepção hegeliana da mediação intersubjetiva da liberdade

positiva (HEGEL, 1970, 4, p. 118) tem sido desenvolvida em seus potenciais para uma

filosofia prática normativa e para uma teoria social crítica e emancipatória (SIEP, 1998, p.

27), chegando mesmo, numa fusão de Gerechtigkeitstheorie e Zeitdiagnose17, não só a uma

“reatualização” no âmbito de uma teoria da justiça, mas também a uma alternativa

normativista para a crítica social (HONNETH, 2007), embasada na “revitalização” da

dimensão enfática de validade18. “A tese de que as patologias sociais devem ser entendidas

16 Honneth dedica a segunda parte de seu livro de 1992 à tarefa de investigar se o modelo teórico de Hegel se deixa atualizar sob as condições do pensamento pós-metafísico. 17 Honneth procura mostrar como a intersubjetividade latente no conceito hegeliano de eticidade – que segundo ele teria, num misto de Zeitdiagnose e Gerechtigkeitstheorie, um papel eminentemente terapêutico em relação às concepções essencialmente modernas da liberdade, mas unilaterais e monológicas, típicas das esferas da pessoa jurídica e do sujeito autônomo, do direito e da moral – pode, por meio da recuperação das relações de reconhecimento recíproco, representar ainda um rico filão para atual filosofia política, mesmo para autores cuja teoria da justiça tenha sido cunhada pelo modelo kantiano do princípio universalista e formal da moral, como Habermas e Rawls. O objetivo desta reconstrução da teoria da eticidade é demonstrá-la “como projeto de uma teoria normativa daquelas esferas de reconhecimento recíproco, cuja manutenção (Aufrechterhaltung) é constitutiva para a identidade moral de sociedades modernas.” (HONNETH, 2007)18 Esta conexão da unidade espiritual com a ideia de uma normatividade intersubjetivamente engendrada, a relação ética, torna-se extremamente influente até mais recentemente: “A ideia mestra, que anima e estrutura a lógica e a metafísica de Hegel, é sua maneira de desenvolver, de acordo com o modelo de autoridade recíproca e responsabilidade cujo paradigma é o reconhecimento recíproco, o insight de Kant-Rousseau acerca do tipo fundamental de normatividade baseada na autonomia.” (BRANDOM, 2002, p. 234)

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como resultado de uma racionalidade deficiente é uma dívida da filosofia política, em última

instância, com Hegel.” (HONNETH, 2006, p. 339).

A ênfase na imbricação dos processos que originam a consciência singular e a

universal, que conduz a uma consideração da teoria da justiça a partir dos processos

mediadores de reconhecimento, traz, em relação a uma abordagem mais individualista e

abstrata, a vantagem de levar em conta estruturas sociais vinculadas à socialização e à

formação da personalidade. No registro da crítica à teoria do contrato social, formula-se

a objeção de inobservância dos processos sociais que constituem, contíguas às

instituições, as capacidades subjetivas ligadas à livre “agência”, pressuposta pelo

próprio contratualismo. Neste sentido, o movimento de reconhecimento fornece a

conexão fundamental entre universal e singular, a ser efetivada pelas instituições e

práticas da eticidade (PATTEN, 1999, p. 104). Para Hegel, a consciência universal, na

qual os singulares reaparecem numa união amalgamada pelo conhecimento afirmativo e

recíproco de si no outro, constitui “a forma da consciência da substância de toda

espiritualidade essencial (die Form des Bewusstseins der Substanz jeder wesentlichen

Geistigkeit)” (HEGEL 1995, §436). Para Hegel, o resultado do processo de

reconhecimento recíproco é este “aparecer do substancial” (Erscheinen des

Substantiellen), o “vir a ser fenômeno” do elemento “espiritual” no seu ser-aí. Na

fórmula que designa o “verdadeiro conceito de consciência-de-si”, “o eu que é um nós,

e o nós que é eu”, o qual marca o surgimento fenomenológico do espírito, trata-se do

“âmbito do normativo, enquanto produzido pelos processos de reconhecimento mútuo.”

(BRANDOM, 2002, p. 222) Ao conceber a liberdade positiva enquanto concretizada

pelo ser-reconhecido, e não simplesmente como autodeterminação da vontade

individual, Hegel está, na verdade, honrando uma intuição de juventude19 e, ao mesmo

tempo, introduzindo a forma da base institucional, ou seja, o modo consciente,

reflexivo, potencialmente moderno que tem de servir como sua mediação adequada: “A

liberdade, configurada em efetividade de um mundo, recebe a forma da necessidade,

cuja conexão substancial é o sistema das determinações da liberdade, e cuja conexão

fenomênica é como poder (Macht), o ser-reconhecido, isto é, seu vigorar na

consciência” (HEGEL, 1970, 8, p. 302). Tal resultado é da mais alta importância,

principalmente se tivermos em vista o alcance da crítica hegeliana às concepções

19 “a mais elevada comunidade é a mais elevada liberdade, tanto segundo o poder, quanto segundo a execução.” (HEGEL, 1970, 2, p. 82)

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limitadas da liberdade individual através do conceito de vontade livre em-si-e-para-si

(HEGEL, 1970, 7, §§7, p. 21; HONNETH, 2007, p. 77 e ss).

“Para Hegel, assim como para Kant, todas as normas são normas conceituais: falar

de normas e falar de conceitos são duas maneiras de caracterizar um fenômeno comum

fundamental. A primeira coisa a perceber é que Hegel entende conceitos, o conteúdo

das normas, como essencialmente articulado inferencialmente.” (BRANDOM, 2002, p.

223) Neste sentido, a noção de reconhecimento corresponde à mediação entre a

intersubjetividade dos sujeitos e a compreensão autoconsciente e compartilhada daquilo

que pode pretender ser legítimo ou “revestido de autoridade” (authoritative reason),

compondo, assim, o núcleo da concepção hegeliana de espírito (Geist) enquanto “forma

autoconsciente de vida”, enquanto “forma de “espaço social” refletindo sobre si mesmo

acerca de se é satisfatório em seus próprios termos” (PINKARD, 1996, p. 8-9).

Foi justamente a partir desta ideia da gênese da normatividade nos processos de

individualização e socialização que Honneth aprofundou sua incursão no debate entre

comunitaristas e liberais, propondo interessante contraponto à teoria da justiça de

Rawls, enquanto elabora um original redirecionamento da teoria crítica da sociedade.

Honneth apresenta uma promissora linha de fuga na elaboração de uma teoria da justiça,

na medida em que seu recurso a um ponto de partida de inspiração hegeliana – um

conceito intersubjetivista de liberdade individual que estipula, como condição de

contorno de uma teoria da justiça, uma concepção ético-institucional e

intersubjetivamente mediada do bem viver, o fomento à tessitura de interações

unicamente capazes de efetivar a liberdade do indivíduo –, recupera o aguilhão crítico

de algumas emendas “comunitaristas” (FORST, 1995, p. 181-212) ao liberalismo, sem

renunciar a uma concepção normativista de justiça. Com isso, Honneth não somente

elimina um excessivo individualismo fundacional, mas também neutraliza aquele

expediente “abstracionista”, proveniente da tradição kantiana e que se consuma na

pretensão de uma dedução do quadro institucional prioritariamente a partir de

princípios.

Honneth propõe uma contraposição entre o projeto de uma teoria da justiça

inspirada em Hegel, uma “reconstrução normativa”, e as linhas fundamentais do

construtivismo propugnado por J. Rawls, tencionando não somente eliminar impasses

oriundos do embate entre correntes liberais e adeptos do contextualismo, mas também a

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separação, que Habermas pretende estar superada pela ética do discurso, entre éticas

especializadas em questões de justiça e do bem viver20.

Ele parte da constatação de que vigora, atualmente, uma concordância acerca do

procedimento de fundamentação e o âmbito de objetividade de uma teoria social da

justiça (HONNETH, 2004, p. 213). Neste sentido, “igualdade e autonomia individual

aparecem, assim, atualmente, como os dois componentes indissociáveis de uma

concepção racional da justiça.” (Idem, p. 213-214) Todavia, Honneth percebe que “estes

dois conceitos fundamentais declaram realmente muito pouco a respeito da maneira

como a efetivação da liberdade individual de todos os membros da sociedade deve ser

igualmente garantida.” (Idem, p. 214); e, neste sentido, Honneth se pergunta “como

seriam constituídos os princípios da justiça decididos pelos membros da sociedade, sob

a condição de que eles vissem a efetivação de sua liberdade como dependente da

efetivação da liberdade dos outros”, abandonando assim, tal como Hegel, o ponto de

partida centrado em um individualismo metódico, e adotando “o conceito comunicativo

de liberdade individual.” (Ibidem)

Desta forma, sua reformulação do paradigma hegeliano de intersubjetividade

prenuncia uma ultrapassagem da dicotomia entre a ética aristotélica e a moral kantiana

da autonomia. Ele defende que o ponto de partida na teoria hegeliana do

reconhecimento poderia fornecer “a descoberta de uma alternativa na qual ambos os

pontos de vista são de tal forma integrados que com isso nós podemos viver uma vida

menos cindida”, um programa no qual vê “a tarefa central de uma teoria moral hoje.”

(HONNETH, 2000, p. 172)

O sentido da “reatualização”21 está em pensar uma teoria da justiça cujo

programa esteja centrado na proteção daqueles tecidos sociais, potencialmente

incorporados nas práticas intersubjetivamente mediadas, imprescindíveis à plena

efetivação da liberdade do indivíduo. Neste sentido, a “inspiração” hegeliana residira na

perspectiva ascendente, que parte da tessitura de práticas sociais definidas pelo próprio

mundo social moderno, perscrutando, assim, o potencial das mesmas para a realização 20 Sobre a separação entre as questões estritamente morais, ou concernentes à justiça, e as questões valorativas, que dizem respeito ao bem viver e à autorrealização, ver: Habermas, 1991, p. 80 e ss., e 1989, p. 143-223. Acerca de como esta importante questão se insere na problemática geral de fundamentação da ética do discurso, ver Habermas, 1989, 126 e ss.

21 Honneth se baseia na tese de que as ressalvas metodológicas corretas permitem o resgate, na Filosofia do Direito, de estruturas interativas que respondem por uma exitosa efetivação da identidade individual. Compreende-se como uma tentativa indireta de reatualização, na medida em que não tenciona tornar plausíveis nem a estruturação lógico-especulativa do conceito ontológico de espírito, nem o conceito substancial de Estado (HONNETH, 2007, p. 48 e ss).

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da liberdade; ao mesmo tempo em que, através de um aclaramento acerca dos riscos de

um desenvolvimento patológico destas estruturas, obtém-se um quadro normativo

criterioso para aferir a saúde das práticas sociais atuais. Neste diagrama fica delineada a

conexão interna, que Honneth quer tornar profícua ao pensamento político atual, entre a

teoria da justiça e o diagnóstico de época (Idem, p. 77 e ss.).

Honneth depreende, de sua inspiração hegeliana, um conceito normativo de

eticidade que contém, em seu vínculo indissociável às práticas do mundo social

moderno, as possibilidades de individualização bem-sucedida, propiciadas pelos nexos

socializadores – e, portanto, alinhavadas em práticas intersubjetivas –, os quais têm, por

sua vez, para desempenhar esta função, de se retroalimentarem (Idem, p. 114), ou seja,

de desenvolverem processos de formação22 que correspondam à progressiva aquisição,

por parte dos indivíduos, das capacidades e elementos motivacionais necessários à

participação nas estruturas desta “individualização através da socialização”.

Tal programa nada tem a ver com a “dedução” de um quadro institucional, capaz

de efetivar uma concepção de justiça, que faz abstração do contexto23, mas sim com

uma postura teórica que, inspirada no núcleo normativo proposto pelo conceito

hegeliano de espírito objetivo24, pauta-se pela reconstrução, a partir da necessária

ancoragem das possibilidades de autorrealização individual nas instituições existentes,

dos elementos normativos de uma concepção de justiça, desde o início atrelada à

condição de fomentar concretamente uma individualização bem-sucedida. A “Filosofia

do Direito hegeliana ... como projeto de uma teoria normativa, tem de ser concebida em

22 Compreendendo a mediação institucional do reconhecimento como Bildung, Patten percorre a crítica hegeliana ao contratualismo evidenciando a aposta em que os processos de socialização e individualização vinculados ao conceito de reconhecimento são imprescindíveis para formar a própria liberdade individual (capacidades, atitudes volitivas e autocompreensão), à qual recorre o contratualismo para basear o contrato social em um assentimento arbitrário por parte do indivíduo (PATTEN, 1999, capítulo 4).23 Aqui se faz valer a ideia de um reaproveitamento de Hegel, uma vez que, para Honneth, as interações formativas não são somente um bem básico, mas a própria concepção moderna de justiça se vincula à ideia de possibilitar, no tecido formado pela prática comunicativa, a plena autorrealização individual. Trata-se, portanto, de um vínculo entre os princípios da justiça e as instituições que a efetivam, preconizada pela condição de uma individualização plena (HONNETH, 2007, p. 63, 131, 140). 24 Apesar das ressalvas em relação ao conceito substancialista de estado e à estruturação lógico-especulativa da Filosofia do Direito (HONNETH, 2007, p. 50), Honneth se apropria da compreensão da sociedade moderna por trás do conceito de espírito objetivo, o qual, “sob a desconsideração de sua vinculação com o conjunto do sistema hegeliano, me parece conter a tese de que toda a realidade social possui uma estrutura racional” (Idem, p. 51). Ora, é lícito afirmar que a interpretação proposta por Honneth do conceito de espírito objetivo é, na verdade, o ponto nevrálgico de sua reatualização: a tese de que “uma racionalidade suficiente que já se manifestou em nossas mentalidades e tradições, em nossas normas e valores, para podermos aceitá-las como um contexto social cujas prerrogativas morais temos de pressupor geralmente como indubitáveis” (Idem, p. 96-97).

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relação àquelas esferas de reconhecimento recíproco cuja manutenção é constitutiva

para a identidade moral de sociedades modernas.” (Idem, p. 51)

Tal reatualização colabora, por conseguinte, com a percepção da atualidade da

filosofia política de Hegel. Primeiramente, sua pertinente interpretação da tese de Hegel,

vinculada à sua concepção ampla de Recht, de que práticas e instituições sociais

modernas tem direitos (§30), o que Honneth compreende sob o aspecto de sua

insubstitutibilidade no fomento à autorrealização individual (Idem, p. 66).

Em segundo lugar, a interpretação, a partir da noção de “volições de segunda

ordem”, do alcance da crítica hegeliana às concepções limitadas da liberdade individual

através do conceito de vontade livre em-si-e-para-si (HEGEL, 1970, 7, p. 53-54 e 70-

71; HONNETH, 2007, p. 77 e ss)25. Tal interpretação mostra como já no texto hegeliano

se encontra a ideia de que a eticidade moderna se constitui como conjunto de práticas e

instituições, fraca ou fortemente asseguradas, constitutivas de uma socialização

partilhada intersubjetivamente, responsáveis pelo forjamento de valorações,

motivadores e interesses, cuja racionalidade é, ao menos, potencial (HONNETH, 2007,

p. 112-113).

Em terceiro lugar, vem a interpretação de Honneth para a tese de Hegel,

logicamente estruturada, de que a eticidade constitui o fundamento e a efetivação dos

padrões de racionalidade típicos do direito privado e da moral da autonomia (HEGEL,

1970, 7, p. 285-286, 407). Em seu exercício de filtragem da estruturação lógico-

especulativa, Honneth acaba por fornecer um sentido social preciso para esta tese, a

qual é justamente a responsável, no contexto de sua reatualização, pelo vínculo interno

entre teoria da justiça e diagnóstico de época, entre a teoria da eticidade como teoria

normativa da modernidade, e a percepção dos limites e riscos de uma absolutização das

estruturas racionais que constituem a pessoa de direito e o sujeito moral (HONNETH,

2007, p. 80 e ss); vínculo que tem como pressuposto sua admissão do teor normativo

peculiar da noção de espírito objetivo (Idem, p. 84).

Honneth não se debruça tanto, ao menos em 2001, – e isto foi remediado

(NEUHOUSER, 2000, capítulo IV e V) – na elucidação de como as instituições e

práticas da eticidade colaboram na formação das capacidades subjetivas associadas

especificamente ao ser-pessoa e ao ser-sujeito. “É somente a participação na respectiva

25 Aqui Honneth parece se beneficiar da leitura, proposta por Patten, segundo a qual haveria mais condições para se fundamentar, na obra de Hegel, a “tese da reciprocidade” entre liberdade e autodeterminação moral do que na obra do próprio Kant, uma leitura que rendeu também uma interpretação inovadora da concepção hegeliana de autodeterminação (PATTEN, 1999, capítulo 2).

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práxis de ação que leva a que processos necessários de aprendizado possam ser

efetivados e as respectivas capacidades aprendidas.” (HONNETH, 2007, p. 138) Apesar

disso, pode-se considerar aquela discussão, proposta por Honneth ao final de seu livro,

segundo a qual Hegel persegue, em nome de uma estabilidade nas condições mínimas

para uma individualização saudável, uma “superinstitucionalização” (Idem, p. 132-133)

dos nexos comunicativos através de um recurso demasiadamente forte ao direito

positivo – em função da qual deixam de ser levadas em conta, em seu potencial de

formação prático-cognitiva, relações sociais não tão aptas a uma “institucionalização

forte” – como decorrência de uma extrapolação inadvertida das estruturas racionais que

forjam a regulamentação jurídica. Para Honneth, isto significa “uma diminuição do

caráter “ético” das condições de liberdade socialmente existente.” (Idem, 134)

Em quarto lugar, Honneth empreende uma interpretação da passagem da

moralidade para a eticidade, centrada na noção de Pflicht como Befreiung (HEGEL,

1970, 7, p. 296-297; HONNETH, 2007, 98 e ss) e que constitui o cerne da “terapêutica”

hegeliana das patologias do individualismo moderno, sedimentado na racionalidade

jurídico-moral, a qual parece, ao salientar a tomada de consciência pelos atores de uma

normatividade já intersubjetivamente engendrada, soterrar de vez algumas das ressalvas

que mais dificultaram uma leitura mais proveitosa da obra de 1821: a tese de que, com a

Aufhebung da moral na eticidade, tem início o hediondo colapso da reflexão crítica,

tragada pela ubiquidade do sufocante “interesse da substância”26.

O mais instigante na interpretação de Honneth reside na percepção do vínculo

indissociável, presente nas instituições e práticas da eticidade, entre reconhecimento

recíproco e a socialização como processo de formação das capacidades prático-

cognitivas27 (HONNETH, 2007, p. 122, 131) adequadas a uma completa realização da

liberdade, o que deixa claro que a filosofia política hegeliana não é, ao menos em

espírito, tão incompatível com a definição de uma esfera pública política, capaz de

possibilitar uma formação democrática da vontade (Idem, p. 145).

Referências Bibliográficas

26 Considere-se aqui um delineamento da questão (SIEP, 1992, 217-239) e uma perspectiva mais crítica em relação ao problema do substancialismo (THEUNISSEN, 1982, p. 317-381).

27 Schnädelbach se refere, exatamente no contexto da gênese da vontade livre em-si-para-si, à “autorreferencialidade prático-cognitiva da vontade” (SCHNÄDELBACH, 2000, p. 186).

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