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PARTICIPAÇÃO DOS SUJEITOS NO PROCESSO JUDICIAL E A CONCRETIZAÇÃO
DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS1
Flávia Moreira Guimarães Pessoa2
Mayara Viana de Jesus3
SUMÁRIO
1. Introdução 2. Participação dos Sujeitos Processuais na Ação Judicial 2.1. Princípio do
Contraditório 2.2. Princípio da Cooperação 3. Considerações Finais 4. Referências
Bibliográficas.
RESUMO
O presente artigo tratará do Novo Código de Processo Civil relacionado à Constituição
Federal. Trará enfoque na participação dos sujeitos processuais na ação judicial através,
precipuamente, da observância dos artigos contidos no Capítulo I do CPC/2015 e eventual
correspondência com o CPC/1973.
Palavras-chave: Direitos Fundamentais, Normas Fundamentais, Processo Civil, Novo Código
de Processo Civil, Sujeitos Processuais, Contraditório, Cooperação.
1O presente artigo foi elaborado no âmbito do grupo de pesquisa “O Novo Código de Processo Civil à Luz da Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais”.2 Professora Adjunta da Universidade Federal de Sergipe, Juíza do Trabalho (TRT 20ª Região), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA, líder do grupo de pesquisa “O Novo Código de Processo Civil à Luz da Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais” da Universidade Federal de Sergipe. Artigo elaborado com o apoio do PIBIC da Universidade Federal de Sergipe.3 Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Sergipe, bolsista do PIBIC, integrante do grupo de pesquisa “O novo Código de Processo Civil à Luz da Hermenêutica Constitucional Concretizadora dos Direitos Fundamentais” da Universidade Federal de Sergipe.
1- INTRODUÇÃO
O Direito Processual não pode ser analisado de forma isolada do Direito
Constitucional. Com o fenômeno da constitucionalização, a Magna Carta passa a ser
analisada além da função de certificar a validade das disposições normativas. A Constituição
Federal passa a ser fundamento do critério interpretativo e elemento de integração do direito
ordinário4 (PIRES, 2014, p. 68). Nesse aspecto, o ordenamento jurídico toma a Lei Maior
como centro normativo ao redor do qual gravitam todas as outras espécies normativas. Sobre
o assunto, vejamos os ensinamentos de Hans Kelsen na sua obra “Teoria Pura do Direito”:
(...) sob a condição de pressupormos a norma fundamental: devemos
conduzir-nos como a Constituição prescreve, quer dizer, de harmonia
com o sentido subjetivo do ato de vontade constituinte, de harmonia
com as prescrições do autor da Constituição. A função desta norma
fundamental é: fundamentar a validade objetiva de uma ordem
jurídica positiva, isto é, das normas, postas através de atos de vontade
humanos, de uma ordem coerciva globalmente eficaz, quer dizer:
interpretar o sentido subjetivo destes atos como seu sentido objetivo.
(KELSEN, 1999, p. 141-142)
Por essa linha de intelecção, a Constituição não contém somente normas que
regulam a produção da legislação pátria. Ela também estabelece preceitos por força dos quais
as normas constitucionais não podem ser revogadas ou alteradas pela mesma forma que as leis
simples, mas somente através de processo especial submetido a requisitos mais severos
(KELSEN, 2014, p. 156). Assim, estão garantidos pela Lei Maior os direitos fundamentais,
que agem de modo a proteger o indivíduo contra o poder arbitrário e garantir o estado de
direito.
4 Ordinário aqui entendido como normas de direito infraconstitucional.
Os direitos fundamentais também englobam disposições de cunho processual.
Nessa perspectiva, a Carta Maior prescreve nos incisos de seu art. 5º o acesso à justiça
(XXXV), o devido processo legal (LIV, LV e LIII), o contraditório e a ampla defesa (LV), o
juiz natural (XXXVII e LIII), a inadmissibilidade das provas obtidas por meio ilícito (LVI) e
o respeito ao direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada (XXXVI). Dessa
observação, emerge o entendimento de Eduardo Cambi: “Por isso, para a noção de acesso à
ordem jurídica justa converge o conjunto das garantias e dos princípios constitucionais
fundamentais ao direito processual, o qual se insere no denominado direito fundamental ao
processo justo” (Grifo do autor) (CAMBI, 2007, p.25).
Devido à importância da temática, o Novo Código de Processo Civil,
estabelecendo divisão entre parte geral e especial, destinou todo um capítulo daquela parte
para disciplinar as normas processuais fundamentais. Vale mencionar que o Código de 1973
já trazia algumas das disposições desse capítulo, porém de forma dispersa em seu texto.
Percebe-se, assim, a sistematização das normas processuais fundamentais como importante
inovação do Código de 2015.
O capítulo referido é o Capítulo I- Das Normas Fundamentais do Processo Civil,
localizado no Livro I- Das Normas Processuais Civis, Título Único- Das Normas
Fundamentais e da Aplicação das Normas Processuais. É composto por 12 artigos, dos quais
insta mencionar litteris o art. 1º: “O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado
conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República
Federativa do Brasil, observando-se as disposições deste Código”. Indubitável é a
interdependência do direito processual civil em relação ao direito constitucional.
Isto posto, é indispensável a análise da relação processual à luz da hermenêutica
constitucional. Para tanto, é preciso compreender as mudanças e inovações trazidas pela nova
codificação referente às relações entre os sujeitos processuais.
2- PARTICIPAÇÃO DOS SUJEITOS PROCESSUAIS NA AÇÃO JUDICIAL
Inicialmente, convém abordar os pressupostos processuais, elementos essenciais
para a existência e validade da ação. No âmbito subjetivo, encontra-se o juiz competente,
órgão investido de jurisdição que exercerá sua função de forma imparcial, e as partes,
entendidas como autor e réu da ação, sendo imprescindível a capacidade processual e
postulatória para a validade de seu exercício.
Por muito tempo, a organização do processo era analisada através de uma
distribuição de funções específicas que deveriam ser exercidas por cada participante da
relação processual. Nesse sentido, a doutrina identifica modelos de estruturação do processo,
a saber, o modelo adversarial e o inquisitorial. (DIDIER, 2015, p. 120-121)
No modelo adversarial, regido pelo princípio dispositivo, o órgão jurisdicional
assume um papel relativamente passivo, observando a disputa entre as partes. Estas produzem
sua defesa e suas provas. O juiz possui a função precípua de proferir somente a decisão final
sobre a lide em questão, sendo mais comum em países que aplicam o sistema do common law.
O centro do processo está, portanto, nas partes litigantes.
Em contrapartida, no modelo inquisitorial, aplica-se o princípio inquisitivo, no
qual o órgão jurisdicional possui função mais ativa, ditando o que deve ser feito pelas partes
de acordo com os preceitos legais. Desse modo, o juiz é o protagonista e, por conseguinte, o
centro do processo.
No entanto, Fredie Didier Jr. afirma não haver no ordenamento jurídico brasileiro
sistema totalmente dispositivo ou inquisitivo. O que ocorre, segundo o autor, é a existência de
“procedimentos construídos a partir de várias combinações de elementos adversariais e
inquisitoriais” (DIDIER, 2015, p. 122-123).
Nesta perspectiva, tem se tornado crescente a aplicação de outro modelo
organizacional do processo, qual seja, o modelo cooperativo. Este consagra sua efetivação
pelo direito brasileiro com a promulgação do Novo Código de Processo Civil. Tal modelo
baseia-se no princípio da cooperação e aparece largamente na nova codificação processual.
No modelo cooperativo, também conhecido como comparticipativo processual, o
centro do processo não está limitado ao juiz ou às partes. Todos os envolvidos na relação
processual devem ser ouvidos e ter suas considerações analisadas e levadas em conta no
momento da decisão. A decisão final continua monopólio do órgão judicial, mas este não
pode proferi-la de forma arbitrária, deixando de considerar as ponderações expostas pelas
partes. O processo funciona, então, pela conjugação de esforços de todos os participantes para
que seja alcançada uma decisão tida como justa. Observa-se, assim, relação triangular entre
juiz, autor e réu, todos com direitos e obrigações perante os demais.
O princípio da cooperação é visto por muitos estudiosos como essencial para o
modelo democrático de Estado. Coadunam com esse pensamento os ensinamentos de Dierle
Nunes e Alexandre Bahia ao citarem Francisco José Borges Motta e Adalberto Narciso
Hommerding, afirmando que:
(...) nossa proposta de democratização do processo civil parte “dos
eixos da comparticipação e do policentrismo. A ideia defendida é a de
que, numa visão constitucional e democrática, não existe entre os
sujeitos processuais submissão (como no esquema da relação jurídica
bülowiana), mas sim, interdependência, na qual a procedimentalidade
é a balizadora das decisões.” (Grifo nosso) (NUNES; BAHIA, 2014)
Os mencionados estudiosos veem a comparticipação/cooperação como uma das
finalidades de um processo democrático. Assim, é aclamada no Novo Código de Processo
Civil mediante forte influência do contraditório (arts. 9º e 10), aplicação da boa-fé processual
(art. 5º), cooperação (art. 6º) e fundamentação estruturada da decisão (art. 11).
2.1- Princípio do Contraditório
O princípio do contraditório está precipuamente disciplinado pelos arts. 9º e 10 do
NCPC, cujos enunciados não possuem correspondência no CPC/73. O art. 9º aduz que não se
pode proferir decisão contra qualquer das partes sem que esta seja ouvida. Contudo, seu
parágrafo único apresenta exceções ao caput nos casos de tutela provisória liminar de
urgência, hipóteses de tutela de evidência trazidas pelo art. 3115 incisos II e III e a decisão que
determina a expedição do mandato monitório na ação monitória, conforme previsão do art.
7016. O art. 10 estabelece ser impossível o juiz decidir, em qualquer grau de jurisdição, com
base em fundamento que não tenha sido dado às partes oportunidade de se manifestar, mesmo
que se trate de matéria sobre a qual deva se decidir de ofício.
O contraditório é ainda assegurado expressamente pelo art. 7º do mesmo diploma
ao estabelecer como dever do juiz zelar pela aplicação deste princípio. Essa disposição
também não encontra equivalente na antiga codificação e está intimamente ligada à necessária
condição de igualdade e paridade de armas entre os litigantes. Através desse texto normativo,
é evidenciada a necessidade de que todos os envolvidos no processo, não apenas os polos
processuais ou o órgão judicial, resguardem o princípio do contraditório, tão caro para que se
alcance uma decisão justa.
Importante salientar ainda a expressa manifestação da Magna Carta em defesa do
contraditório em seu art. 5º, inciso LV, in verbis:
5 Art. 311. A tutela da evidência será concedida, independentemente da demonstração de perigo de dano ou de risco ao resultado útil do processo, quando:I - ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou o manifesto propósito protelatório da parte;II - as alegações de fato puderem ser comprovadas apenas documentalmente e houver tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em súmula vinculante;III - se tratar de pedido reipersecutório fundado em prova documental adequada do contrato de depósito, caso em que será decretada a ordem de entrega do objeto custodiado, sob cominação de multa;IV - a petição inicial for instruída com prova documental suficiente dos fatos constitutivos do direito do autor, a que o réu não oponha prova capaz de gerar dúvida razoável.Parágrafo único. Nas hipóteses dos incisos II e III, o juiz poderá decidir liminarmente.6 Art. 701. Sendo evidente o direito do autor, o juiz deferirá a expedição de mandado de pagamento, de entrega de coisa ou para execução de obrigação de fazer ou de não fazer, concedendo ao réu prazo de 15 (quinze) dias para o cumprimento e o pagamento de honorários advocatícios de cinco por cento do valor atribuído à causa.§ 1o O réu será isento do pagamento de custas processuais se cumprir o mandado no prazo.§ 2o Constituir-se-á de pleno direito o título executivo judicial, independentemente de qualquer formalidade, se não realizado o pagamento e não apresentados os embargos previstos no art. 702, observando-se, no que couber, o Título II do Livro I da Parte Especial.§ 3o É cabível ação rescisória da decisão prevista no caput quando ocorrer a hipótese do § 2o.§ 4o Sendo a ré Fazenda Pública, não apresentados os embargos previstos no art. 702, aplicar-se-á o disposto no art. 496, observando-se, a seguir, no que couber, o Título II do Livro I da Parte Especial.§ 5o Aplica-se à ação monitória, no que couber, o art. 916.
Art. 5º (...)
LV - Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos
acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa,
com os meios e recursos a ela inerentes.
A respeito do tema, o doutrinador Fredie Didier, valendo-se dos ensinamentos de
Luiz Guilherme Marinoni7, assevera:
O princípio do contraditório é reflexo do princípio democrático na
estruturação do processo. Democracia é participação, e a participação
no processo opera-se pela efetivação da garantia do contraditório. O
princípio do contraditório deve ser visto como exigência para o
exercício democrático de um poder. (DIDIER, 2015, p. 78)
Dessa maneira, aplicando-se efetivamente o contraditório, é observada a extensão
do princípio democrático sobre o exercício da jurisdição. Como Estado Democrático de
Direito, não é concebível no âmbito jurisdicional a imposição de uma decisão proferida de
forma coercitiva, sem garantir aos indivíduos envolvidos na lide o direito de serem ouvidos
em iguais condições e de terem suas considerações analisadas para a tomada da decisão final
(PIRES, 2014, p. 84).
Assim, o princípio do contraditório, juntamente com a ampla defesa, compõe
espécie de pretensão à tutela jurídica, entendida como a busca pela aplicação do direito
material. Envolve, para tanto, a conjugação do direito de informação das partes referente aos
atos praticados e elementos presentes no processo, além do consequente direito de
7 MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1999. P. 255-258.
manifestação sobre tudo que consta nos autos e do direito de ter seus argumentos
considerados pelo magistrado no momento do julgamento (PIRES, 2014, p.100).
Nesse sentido, pode-se decompor o princípio do contraditório em duas dimensões:
uma formal e outra substancial. A primeira expressa a garantia da participação das partes, que
se verifica nas audiências, na comunicação e na ciência dos sujeitos do processo sobre tudo o
que nele ocorre. A segunda diz respeito à influência da manifestação das partes na decisão do
Poder Judiciário. (DIDIER, 2015, p. 78-79).
Diante do exposto, é imperativo ao órgão judicial e assegurada aos litigantes a
fundamentação estruturada da decisão, mandamento positivado no art. 11 do NCPC, litteris:
Art. 11. Todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade.
Parágrafo único. Nos casos de segredo de justiça, pode ser autorizada
a presença somente das partes, de seus advogados, de defensores
públicos ou do Ministério Público.
Insta salientar, ademais, o direito garantido no citado artigo ao acesso às informações sobre
tudo o que consta nos autos processuais. Ambos os aspectos visam evitar a prolação de uma
decisão surpresa, exigindo do juiz fundamentação estruturada da decisão. A partir dessa
dimensão, observa-se também a cooperação das partes no processo como fundamental para
que seja proferida a sentença.
Tratando sobre o contraditório, Leonardo Carneiro da Cunha afirma que, com o
fortalecimento do Estado Democrático de Direito, exige-se a participação dos sujeitos na
tomada de decisões sobre situações que lhe digam respeito, gerando modificação no princípio
do contraditório:
Daí se reconstruiu o conteúdo do princípio do contraditório, exigindo-
se que o processo seja estruturado de forma dialética, com a marca de
ser participativo. E isso porque a participação, própria do
contraditório, é inerente ao regime democrático. O contraditório deve,
enfim, instaurar um diálogo no processo entre o juiz e as partes.
(CUNHA, 2014, p. 18)
2.2- Princípio da Cooperação
O art. 6º da nova codificação aduz que “todos os sujeitos do processo devem
cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”.
Essa disposição, em que pese não constar no CPC/73, é de fundamental importância para a
concretização do modelo cooperativo de estruturação do processo, o que norteia todo o
CPC/15.
De acordo com o princípio, nenhum dos sujeitos processuais, seja o juiz, sejam as
partes, prevalece sobre os demais. Todos devem atuar de forma a garantir um
desenvolvimento ideal do processo e uma solução adequada da lide. Pelo texto normativo, é
determinada a cooperação entre todos os participantes do processo, em todas as relações, quer
entre as partes, quer entre estas e o órgão jurisdicional, quer entre os sujeitos processuais e
outros que da relação participem, como o perito ou Ministério Público (DIDER, 2015, p.
125). Em suma, “o princípio da cooperação destina-se, enfim, a transformar o processo civil
numa ‘comunidade de trabalho’, potencializando o franco diálogo entre todos os sujeitos
processuais, a fim de se alcançar a solução mais adequada e justa ao caso concreto.”
(CUNHA, 2014, p. 18).
Entretanto, é importante frisar que a cooperação não é aplicada ao momento da
decisão. A prolação desta é ato exclusivo do juiz, que deve valer-se da atividade processual
cooperativa em seu julgamento. Assim entende Fredie Didier ao afirmar que “a atividade
cognitiva é compartilhada, mas a decisão é manifestação do poder, que é exclusivo do órgão
jurisdicional, e não pode ser minimizado” (DIDIER, 2015, p. 126). Nesse sentido, a
participação dos litigantes garantem o aprimoramento da decisão e sua legitimidade.
Na mesma linha de intelecção, estão os ensinamentos de Luiz Guilherme
Marinoni e Sérgio Cruz Arenhart ao apontarem a importância da cooperação das partes na
relação processual como legitimadora do poder jurisdicional:
Como o juiz não é eleito, a pergunta que deve surgir é no sentido de
como o exercício do poder jurisdicional é legitimado. O exercício do
poder jurisdicional somente é legítimo quando participam do
procedimento que terminará na edição da decisão aqueles que serão
por ela atingidos. Em outros termos, somente existirá procedimento
legítimo e, portanto, processo, quando dele participarem aqueles que
serão atingidos pela decisão do juiz. (MARINONI; ARENHART,
2006, p. 70-71. Apud. PIRES, 2014, p. 86).
Portanto, o princípio da cooperação atua imputando aos sujeitos da relação
processual deveres para garantir um processo leal e democrático. É importante frisar que não
é necessária a existência de normatização expressa para tanto. A imputação de um
comportamento cooperativo já traz a noção de ilicitude de qualquer conduta contrária. Como
afirma Didier, “ao integrar o sistema jurídico, o princípio da cooperação garante o meio
(imputação de uma situação jurídica passiva) necessário à obtenção do fim almejado (o
processo cooperativo) ” (DIDIER, 2015, p. 127).
O referido autor defende, então, a divisão dos deveres de cooperação em deveres
de esclarecimento, lealdade e proteção. O primeiro determina que a parte autora apresente sua
demanda de forma clara, coerente e precisa, inclusive no seu pedido, não deixando pairar
dúvidas sobre o objeto da lide e a pretensão do direito. O dever de lealdade refere-se à
aplicação da boa-fé em todas as etapas do processo, estando intimamente ligado ao dever de
proteção, que proíbe qualquer atitude que gere danos à parte contrária (DIDIER, 2015, p. 127-
128).
Ao órgão julgador também são imputados deveres. O primeiro deles equivale ao
dever de lealdade exigido dos demais participantes da relação processual. De acordo com ele,
todos devem agir conforme a boa-fé. É dever ainda do magistrado esclarecer as partes sobre
seus pronunciamentos, além de buscar a elucidação junto aos sujeitos processuais sobre as
alegações, pedidos ou posicionamentos por eles apresentados, a fim de evitar “percepções
equivocadas ou apressadas” (DIDIER, 2015, p. 128). Decorrente do dever de esclarecimento é
o dever de consulta e de informação, o qual ganha expressão ao ser positivado pelo art. 10 da
codificação, que prescreve a impossibilidade de decisão sobre fato não discutido pelas partes.
O art. 4º, ao garantir o direito à solução integral do mérito, em conjunto com o art.
10, impede que o órgão jurisdicional se abstenha de analisar o mérito do pedido sem antes
apresentar aos litigantes as questões possivelmente geradoras da inadmissibilidade da ação.
Nesses termos, é observado o dever de prevenção, consistente na obrigação do magistrado de
apontar deficiências formais que tornem inadequado o processo, como se verifica no art. 3218.
Em relação à boa-fé no processo, esta é tratada pelo art. 5º do CPC/2015, segundo
o qual: “Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo
com a boa-fé”. Esse artigo possui correspondência com o art. 14, II do Código de 19739, o
qual estabelece a todos que do processo participem o dever de proceder com lealdade e boa-
fé. O referido dispositivo legal segue, assim, a mesma linha do art. 6º, ao imputar um dever a
todos os que participam de algum modo do processo, não restringindo sua aplicação aos
sujeitos da relação processual.
8 Art. 321. O juiz, ao verificar que a petição inicial não preenche os requisitos dos arts. 319 e 320 ou que apresenta defeitos e irregularidades capazes de dificultar o julgamento de mérito, determinará que o autor, no prazo de 15 (quinze) dias, a emende ou a complete, indicando com precisão o que deve ser corrigido ou completado.Parágrafo único. Se o autor não cumprir a diligência, o juiz indeferirá a petição inicial.9 Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processoI - expor os fatos em juízo conforme a verdade;II - proceder com lealdade e boa-fé;III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento;IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito.V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final.(...)
A codificação processual buscou ainda reforçar a ideia de boa-fé e lealdade ao
proclamar os arts. 79 e 80. Esses dispositivos estabelecem, respectivamente, a punição
àqueles que procederem de má-fé (devem responder por perdas e danos) e a positivação de
um rol exemplificativo de situações de má-fé vedadas aos litigantes10.
Ao tratar do princípio da cooperação, não se pode olvidar de importante vertente
acautelada pelo Novo Código de Processo Civil, o autorregramento no processo. Este parte da
noção de “negócio jurídico processual”, possibilitando às partes da relação determinarem o
modo de execução de alguns atos processuais. O autorregramento do processo está
intimamente ligado ao direito fundamental à liberdade, consagrado no art. 5º, caput, da CF11, e
à nova perspectiva determinada pelo CPC/15 de maior participação no processo daqueles que
sofrerão diretamente as consequências da decisão proferida. Este conceito é assim definido
por Fredie Didier:
O princípio do respeito ao autorregramento da vontade no processo
visa, enfim, à obtenção de um ambiente processual em que o direito
fundamental de autorregular-se possa ser exercido pelas partes sem
restrições irrazoáveis ou injustificadas. (Grifo do autor) (DIDIER,
2015, p. 134)
Importante frisar que o autorregramento da vontade, entendido também como
autonomia privada, não é ilimitada no processo. O próprio Código traz em seu texto algumas
das hipóteses cabíveis de participação das partes nos atos processuais, os “negócios
10 Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso;II - alterar a verdade dos fatos;III - usar do processo para conseguir objetivo ilegal;IV - opuser resistência injustificada ao andamento do processo;V - proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo;VI - provocar incidente manifestamente infundado;VII - interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório.11 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (...).
processuais típicos”. Nesse aspecto, o NCPC trouxe grande inovação ao ampliar as hipóteses
desses negócios em relação ao CPC/73. Leonardo Carneiro da Cunha explica essa ampliação
em sua obra “Negócios Jurídicos Processuais no Processo Civil Brasileiro”, apontando
algumas das novas hipóteses previstas no CPC/15.
De acordo com o autor, o NCPC traz a possibilidade de o juiz, em concordância
com as partes, reduzir prazos peremptórios (art. 222, §1º); criar um calendário processual
fixando datas para a realização dos atos processuais (art. 191); das partes, em comum acordo,
escolherem o perito (art. 471); a necessidade do juiz designar audiência para saneamento e
organização de matéria complexa em cooperação com as partes (art. 357, §3º); a possibilidade
das partes apresentarem ao juiz, para homologação, acordo de saneamento delimitando
consensualmente questões jurídicas que merecem análise para solução do mérito (art. 364,
§2º) e a possibilidade de uma das partes, sem exigir a concordância da parte contrária, desistir
de documento anteriormente apresentado por ela como instrumento probatório (art.432)
(CUNHA, 2014, p. 22-27).
O NCPC permite, ainda, a solução de conflitos por autocomposição, disposição
entendida doutrinariamente como “negócio processual atípico”, previsto no art. 190 do
CPC/15. A prescrição normativa admite a possibilidade de as partes estipularem mudanças no
procedimento para ajustá-lo às especificidades da causa e convencionar sobre atos do
processo. É papel do juiz controlar a validade dessas convenções, recusando-lhes aplicação
somente nos casos de nulidade ou abusividade (parágrafo único do art. 190). Ademais, os
parágrafos do art. 3º12 da nova codificação apresentam exemplos de autocomposição, como a
arbitragem, a solução consensual dos conflitos pelo Estado, a conciliação e a mediação.
No que concerne à limitação do autorregramento, “os negócios jurídicos
processuais devem situar-se no espaço de disponibilidade outorgado pelo legislador, não
podendo autorregular situações alcançadas por normas cogentes”. Desse modo, é inconcebível
12 Art. 3o Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito.§ 1o É permitida a arbitragem, na forma da lei.§ 2o O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos.§ 3o A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por juízes, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.
que a autonomia das partes gere afastamento de regra que vise a proteção de direito
indisponível ou trate sobre tema cuja disciplina é reservada à lei (CUNHA, 2014, 30).
3- CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, é inegável a evolução do direito processual brasileiro ao
instituir no NCPC modificações nas relações entre os sujeitos processuais. Ao trazer como
elemento norteador da nova codificação uma participação mais ativa das partes litigantes, o
legislador busca garantir um processo leal e democrático, gerando, consequentemente, uma
decisão mais justa aos olhos dos sujeitos processuais.
Para tanto, não se pode desprezar o instituído pela Magna Carta, utilizada como
parâmetro normativo e interpretativo do processo. A colaboração das partes no processo,
entendido como meio para a concretização do direito material, garante ainda a democracia e a
legitimidade da jurisdição, além de assegurar direitos fundamentais.
Nesse sentido, é essencial para a concretização de um processo leal e democrático
a aplicação do princípio do contraditório e da cooperação. Desse modo, o processo deixa de
ser formado por atos isolados previamente delimitados para cada um dos sujeitos processuais
e passa a ser a conjugação dos esforços participativos daqueles a quem a decisão se destina e
do órgão estatal responsável por regular a relação processual e proferir a sentença. Os
princípios do contraditório e da cooperação são, assim, basilares para que seja alcançado um
processo comparticipativo.
O Novo Código de Processo Civil tenta, então, incutir na sociedade o fim da ideia
de confronto entre litigantes, pregando a realização de um processo fundamentado na
colaboração entre todos os envolvidos para que, juntos, cheguem a um desfecho que garanta
uma decisão mais justa frente às pretensões levadas ao Judiciário.
4- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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