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GRAMÁTICA E POLÍTICA Texto do Professor Doutor Sírio Possenti (UNICAMP) e-mail: [email protected] “Receio bem que jamais venhamos a desembaraçar-nos de Deus, pois cremos ainda na gramática." (Nietzsche). Este trabalho não pretende avançar nenhuma novidade sobre a relação entre política e gramática, mas apenas divulgar algumas reflexões correntes sobre o tema em certos círculos. 0 tom do trabalho será, é evidente, político. Para tratar, mesmo que sumariamente, do tema, é necessário antes de tudo conceituar gramática. Ver-se-á que, qualquer que seja a acepção em que se tome este termo, a questão da política lhe está inexoravelmente ligada. Distinguir-se-ão três conceitos correntes, que equivalem a três maneiras de se entender a expressão "conjunto de regras lingüísticas". 1) No sentido mais comum, o termo gramática designa um conjunto de regras que devem ser seguidas por aqueles que querem "falar e escrever corretamente". Neste sentido, pois, gramática é um conjunto de regras a serem seguidas. Usualmente, tais regras prescritivas são expostas, nos compêndios, misturadas com descrições de dados, em relação aos quais, no entanto, em vários capítulos das gramáticas, fica mais do que evidente que o que é descrito é,ao mesmo tempo, prescrito. Citemse como exemplos mais evidentes os capítulos sobre concordância, regência e colocação dos pronomes átonos. 2) Num segundo sentido, gramática é um conjunto de regras que um cientista dedicado ao estudo de fatos da 1 íngua encontra nos dados que analisa a partir de uma certa teoria e de um certo método. Neste caso, por gramática se entende um conjunto de leis que regem a estruturação real de enunciados realmente produzidos por falantes, regras que são utilizadas. Neste caso, não importa se o emprego de determinada regra implica numa avaliação positiva ou negativa da expressão lingüística por parte da comunidade, ou de qualquer segmento dela, que fala esta mesma língua. Gramáticas do primeiro tipo preocupamse mais com como deve ser dito, as do segundo ocupam-se exclusivamente de como se diz. Para que a diferença fique bem clara, imaginese um antropólogo que descreva determinado sistema de parentesco de um certo povo, e outro que o censure por desrespeitoso, por não distinguirse o papel do pai e do tio... 3) Num terceiro sentido, a palavra gramática designa o conjunto de regras que o falante de fato aprendeu e das quais lança mão ao falar. É preciso que fique claro que sempre que alguém fala o faz segundo regras de uma certa gramática, e o fato mesmo de que fala testemunha isto, porque usualmente não se "inventam" regras para construir expressões. Pelo conhecimento não consciente, em geral, de tais regras, o falante sabe sua língua, pelo menos uma ou algumas de suas variedades. 0 conjunto de regras lingüísticas que um falante conhece constitui a sua gramática, o seu repertório lingüístico. Uma gramática do tipo 2 será tanto melhor quanto mais coincidir com uma gramática do tipo 3, isto é, quanto maior conteúdo empírico explicar. É por esta razão que Chomsky diz que a tarefa do lingüista é semelhante à da criança que está aprendendo a língua de sua comunidade: ambos devem descobrir as regras da língua. Os lingüistas, sabese, são muito menos bem-sucedidos que as crianças. Talvez haja regras gerais válidas para todas as línguas. Talvez não. Não discutamos isto aqui. Aceitemos que uma gramática refere-se a uma língua. Ocorre que I íngua não é um conceito óbvio. Pelo menos, pode-se dizer que há um conceito de língua compatível

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Page 1: GRAMÁTICA E POLÍTICA · Web viewGRAMÁTICA E POLÍTICA Texto do Professor Doutor Sírio Possenti (UNICAMP) e-mail: possenti@correionet.com.br “Receio bem que jamais venhamos a

GRAMÁTICA E POLÍTICA Texto do Professor Doutor Sírio Possenti(UNICAMP) e-mail: [email protected]

“Receio bem que jamais venhamos a desembaraçar-nos de Deus, pois cremos ainda na gramática." (Nietzsche).

Este trabalho não pretende avançar nenhuma novidade sobre a relação entre política e gramática, mas apenas divulgar algumas reflexões correntes sobre o tema em certos círculos. 0 tom do trabalho será, é evidente, político.

Para tratar, mesmo que sumariamente, do tema, é necessário antes de tudo conceituar gramática. Ver-se-á que, qualquer que seja a acepção em que se tome este termo, a questão da política lhe está inexoravelmente ligada. Distinguir-se-ão três conceitos correntes, que equivalem a três maneiras de se entender a expressão "conjunto de regras lingüísticas".

1) No sentido mais comum, o termo gramática designa um conjunto de regras que devem ser seguidas por aqueles que querem "falar e escrever corretamente". Neste sentido, pois, gramática é um conjunto de regras a serem seguidas. Usualmente, tais regras prescritivas são expostas, nos compêndios, misturadas com descrições de dados, em relação aos quais, no entanto, em vários capítulos das gramáticas, fica mais do que evidente que o que é descrito é,ao mesmo tempo, prescrito. Citemse como exemplos mais evidentes os capítulos sobre concordância, regência e colocação dos pronomes átonos.

2) Num segundo sentido, gramática é um conjunto de regras que um cientista dedicado ao estudo de fatos da 1 íngua encontra nos dados que analisa a partir de uma certa teoria e de um certo método. Neste caso, por gramática se entende um conjunto de leis que regem a estruturação real de enunciados realmente produzidos por falantes, regras que são utilizadas. Neste caso, não importa se o emprego de determinada regra implica numa avaliação positiva ou negativa da expressão lingüística por parte da comunidade, ou de qualquer segmento dela, que fala esta mesma língua.

Gramáticas do primeiro tipo preocupamse mais com como deve ser dito, as do segundo ocupam-se exclusivamente de como se diz. Para que a diferença fique bem clara, imaginese um antropólogo que descreva determinado sistema de parentesco de um certo povo, e outro que o censure por desrespeitoso, por não distinguirse o papel do pai e do tio...

3) Num terceiro sentido, a palavra gramática designa o conjunto de regras que o falante de fato aprendeu e das quais lança mão ao falar. É preciso que fique claro que sempre que alguém fala o faz segundo regras de uma certa gramática, e o fato mesmo de que fala testemunha isto, porque usualmente não se "inventam" regras para construir expressões. Pelo conhecimento não consciente, em geral, de tais regras, o falante sabe sua língua, pelo menos uma ou algumas de suas variedades. 0 conjunto de regras lingüísticas que um falante conhece constitui a sua gramática, o seu repertório lingüístico.

Uma gramática do tipo 2 será tanto melhor quanto mais coincidir com uma gramática do tipo 3, isto é, quanto maior conteúdo empírico explicar. É por esta razão que Chomsky diz que a tarefa do lingüista é semelhante à da criança que está aprendendo a língua de sua comunidade: ambos devem descobrir as regras da língua. Os lingüistas, sabese, são muito menos bem-sucedidos que as crianças.

Talvez haja regras gerais válidas para todas as línguas. Talvez não. Não discutamos isto aqui. Aceitemos que uma gramática refere-se a uma língua. Ocorre que I íngua não é um conceito óbvio. Pelo menos, pode-se dizer que há um conceito de língua compatível com cada conceito de gramática. Isto é, vista a língua de uma certa forma, verseá a natureza e a função da gramática de uma forma compatível. Qualquer outra postura será incoerente em excesso para merecer atenção. Distingamos, pois, três conceitos de língua.

a) 0 primeiro conceito é o mais usual entre os membros de uma comunidade lingüística, pelo menos em comunidades como as nossas. Segundo tal forma de ver a questão, o termo língua recobre apenas uma dasvariedades lingüísticas utilizadas efetivamente pela comunidade, a variedade que é pretensamente utilizada pelas pessoas cultas. É a chamada 1 íngua padrão, ou norma culta. As outras formas de falar (ou escrever) são consideradas erradas, não pertencentes à 1 íngua . Definir 1 íngua desta forma é esconder vários fatos, alguns escandalosamente óbvios. Dentre eles está o fato de que todos ouvimos diariamente pessoas falando diversamente, isto é, segundo regras parcialmente diversas, conforme quem fala seja de uma ou de outra região, de uma ou de outra classe social, fale com um interlocutor de um certo perfil ou de outro, segundo queira vender uma imagem ou outra. Esta definição de língua peca, pois, pela exclusão da variedade, por preconceito cultural. Esta exclusão não é privilégio de tal

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concepção, mas o é de uma forma especial: a variação é vista como desvio, deturpação de um protótipo. Quem fala diferente fala errado. E a isso se associa que pensa errado, que não sabe o que quer, etc. Da í a não saber votar, o passo é pequeno. É um conceito de língua elitista.

b) 0 segundo conceito de língua, ligado a gramáticas do tipo 2, também é excludente, em relação aos fenômenos, não tanto por só incluir partes, mas por incluir de certo modo apenas. Aqui língua equivale a um construtor teórico, necessariamente abstrato. Como tal, é considerado homogêneo, não prevê variações no sistema. 0 que faz é prever sistemas coexistentes, mas não incorpora, embora trabalhe com base em enunciados da faia, as flutuações da fala. Não se quer pôr em dúvida a necessidade da construção do objeto teórico para a tarefa científica de descrever línguas. Tratase de colocar a dúvida: até que ponto, efetivamente, tais construtos representam o maior conteúdo empírico possível e até que ponto são restritivos em relação aos fenômenos, As teorias pagam seu preço às ideologias a que se ligam. Por exemplo: o estruturalismo exclui o papel do falante no sistema lingüístico, define a língua como meio de comunicação, o que implica que não há interlocutores, mas emissores e receptores, codificadores e decodificadores. A Gramática Gerativa só considera enunciados ideais produzidos por um falante ideal que pertença a uma comunidade lingüística ideal. Além disso, concebe a língua como espelho do pensamento, o que implica fazer uma semântica de base lógica privilegiando o valor de verdade dos enunciados. 0 que é uma exclusão de todas as outras funções da linguagem.

Estes tipos de concepção de língua, no entanto, não avalisam nenhum preconceito contra qualquer 1 íngua ou contra qualquer variedade lingüística. Mas, de fato, trabalham com dados higienizados. E as gramáticas que as estudam estabelecem prioridades, o que sempre significa, na prática, deixar para as calendas as tarefas consideradas posteriores e dependentes da principal.

c) Considerandose que os falantes não falam uma 1 íngua uniforme e não falam sempre da mesma maneira, a terceira concepção de gramática opera a partir de uma noção de I íngua mais difícil de explicitar. Digamos, em poucas palavras, que neste sentido 1 íngua é o conjunto das variedades utilizadas por uma determinada comunidade e reconhecidas como heterônimas de uma língua. Isto é, formas diversas entre, si, mas pertencentes à mesma 1 íngua. É interessante observar que a propriedade "pertencer a uma língua" é atribuída a uma determinada variedade bastante independentemente dos seus traços lingüísticos internos, isto é, de suas regras gramaticais, mas preponderantemente pelo sentimento dos próprios usuários de que falam a mesma 1 íngua, apesar das diferenças. Assim, não importa se uma determinada variedade A de uma 1 íngua é mais semelhante a uma variedade X de outra língua do que a uma variedade 13 da mesma I íngua. A e 13 serão consideradas variedades de um mesma 1 íngua, X será uma variedade de outra língua. Este tipo de fenômeno é comum em fronteiras políticas, que são muito comumente fronteiras também lingüísticas por causa das atitudes dos falantes mais do que por causa dos traços gramaticais das formas lingüísticas. Língua é , pois, neste sentido, um conjunto de variedades. Consideremos agora alguns fatos lingüísticos. Pouco se sabe sobre as línguas a despeito dos séculos de trabalho a elas dedicados, mas algumas coisas são evidentes. A mais evidente de todas é que as línguas estão estreitamente ligadas a seus usuários, isto é, aos outros fatos sociais. Não são sistemas que pairam acima dos que falam, e não estão isentas dos valores atribuídos pelos que falam.

Um outro fato evidente é que as línguas variam. Não se sabe de nenhuma língua que seja uniformemente falada por velhos e jovens, homens e mulheres, pessoas mais e menos influentes, em qualquer circunstância. Este fato faz das línguas um objeto extremamente complexo não só pela dificuldade, já de si enorme, de se descobrira totalidade das regras gramaticais encontráveis e a sua natureza (se categóricas ou variáveis), mas também por causa da extrema dificuldade em se fixar o limite entre o que é e o que não é lingüístico. Tomar uma decisão sobre este aspecto já é assumir concepções em geral não inocentes no campo ideológico. De uma certa maneira, é um problema análogo ao da separação entre a economia e a política.

Um terceiro fato evidente é que as línguas mudam. As gramáticas do tipo 1 fazem o possível para ser insensíveis a esta realidade, mas ela é tão forte que mesmo elas acabam por dobrarse, embora parcial, tardiamente e apenas segundo uma razão: por se pautarem nos "bons escritores", que sempre incorporam formas novas ou mesmo criam formas alternativas. 0 que tais gramáticas não fazem é associar o fato da mudança ao fato da variação, inerente às línguas naturais, por causa dos valores que os usuários atribuem a formas distintas.

Um outro fato que não pode ser esquecido é que a variedade lingüística estudada e aconselhada por gramáticas do tipo 1 é fruto de um longo e minucioso trabalho explícito voltado não sobre a 1 íngua, no sentido c, mas sobre uma de suas variedades, para "aperfeiçoála". Um dos resultados deste trabalho é a apresentação desta variedade como se ela não tivesse a mesma origem das outras. Em resumo, aquilo que se chama vulgarmente de linguagem correta não passa de uma variedade da língua que, em

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determinado momento da história, por ser a utilizada pelos cidadãos mais influentes da região mais influente do país, foi a escolhida para servir de expressão do poder, da cultura deste grupo, transformada em única expressão da única cultura. Seu domínio passou a ser necessário para ter acesso ao poder. 0 que precisa ficar claro é que esta variedade, a mais prestigiada de todas, tem a força que tem em função de dois fatores, ambos desligados de sua, digamos estrutura: pelo fato de ser utilizada pelas pessoas mais influentes, donde se deduz que seu valor advém não de si mesma, mas de seus falantes; e por ter merecido, ao longo dos tempos, a atenção dos gramáticos, dos dicionaristas e dos escribas em geral, que se esmeraram em uniformizá-la ao máximo, em adicionarlhe palavras e regras que acabaram por torná-la, efetivamente, a variedade capaz de expressar maior número de coisas. Não necessariamente de expressar melhor, mas de expressar mais. As outras variedades ou foram confinadas ao uso no diaadia ou para finalidades muito bem definidas pela sociedade.

Resumindo, há fatos básicos em relação às línguas que não podem ser esquecidos, a não ser por uma certa vontade política: a) que as línguas não existem em si; b) que elas variam, isto é, não são uniformes, num tempo dado; c) mudam, isto é, não são iguais em dois tempos diferentes, nas suas variedades; d) em certas sociedades, há uma variedade que merece tanta atenção, tanto trabalho de normalização e de criação e/ou incorporação, e em torno de cujas virtudes se faz tamanha pregação que todos acabam por concordar que esta variedade é a 1 íngua, sendo as outras formas imperfeitas e desviantes da língua (da significando aqui não pertença, mas ponto de partida).

Pode parecer que se trate de preciosismo verbal, mas é preciso acentuar que no interior das línguas não há variantes, termo que pode dar a idéia de que uma forma deriva, bem ou mal, de outra, que é superior, melhor, mas apenas variedades, isto é, formas coexistentes. Eventualmente, uma forma de uma variedade pode ter sido emprestada de outra, como há empréstimos de língua para língua e conseqüente adaptação. E é preciso dizer com todas as letras que todas as variedades são boas e corretas, e que funcionam segundo regras tão rígidas quanto se imagina que são as regras da "língua clássica dos melhores autores". As variedades não são, pois, erros, mas diferenças.

Não existe erro lingüístico. 0 que há são inadequações de linguagem, que consistem não no uso de uma variedade, ao invés de outra, mas no uso de uma variedade ao invés de outra numa situação em que as regras sociais não abonam aquela forma de fala. Assim, é tão inadequado (não errado) dizer-se "Vossa Senhoria quer fazer o obséquio de me passar o sal" numa refeição em família quanto dizerse "O, meu chapa, qué fazê o favor di demití o Ministro X que ninguém mais tem saco pra guentá ele?" ao Presidente da República numa reunião do Ministério. Mas não se diga que esta última frase está errada. Ela é uma frase do português, tem regras próprias. Nos exemplos, tratase apenas de gafes análogas a ir à praia de smoking ou a um jantar formal de bermudas. 0 "erro", portanto, se dá sempre em relação à avaliação do valor social das expressões, não em relação às expressões mesmas. Não fosse assim, seria como considerar mal acabado um colete por não ter mangas.

Digamos mais diretamente, então, o que há de político nas gramáticas. Em gramáticas do tipo 1, o que há de político é mais do que evidente. Elas são excludentes em alto grau. Em primeiro lugar, excluem a fala, considerando propriamente corretas apenas as manifestações escritas (ou as faladas que as repetem, que continuam, na verdade, sendo escritas ... ). Sabe-se que a escrita, como nós a conhecemos, é posterior à fala e foi construída sobre ela, embora esteja claro que as duas modalidades são diversas em numerosos aspectos que não cabe aqui tratar. Ao eleger a escrita, não elegem qualquer manifestação escrita. Adotam como modelo a escrita Iiterária. Ora, é evidente que a literária não é a única escrita, nem a melhor. É uma dentre elas, e só é melhor para a literatura. Mas isso não é tudo. Ao eleger a escrita literária, elegem alguns escritores, ou ainda uma seleção de suas obras inclusive para evitar imoralidades. Selecionam apenas os clássicos. Uma das características dos clássicos, na verdade a mais relevante para as gramáticas (e para representar bons usos da língua!) é serem antigos. De degrau em degrau, excluindo a oralidade, a escrita não literária, a escrita Iiterária moderna, o que tais gramáticas nos apresentam é antes de mais nada uma Iíngua arcaica em muitos de seus aspectos. Esquecem estas gramáticas que tais clássicos foram, em seu tempo,, freqüentemente apedrejados pelo "mau uso da linguagem", porque então também havia os clássicos a serem imitados.

Em segundo lugar, uma gramática assim pensada e construída exclui a variação, tanto a oral como a escrita. As variedades regionais são, para ela, regionalismos, e merecem tratamento tão desprezível quanto os estrangeirismos, elencados entre os vícios de linguagem. As variedades sociais eventualmente trazidas para os textos pelos escritores ou são folclore ou concessão incompreensível ao mau gosto. É pois política, absolutamente falta de senso histórico mas não ingênua, a atitude purista e arcaizante, por considerar sem valor, erradas, frutos da falta de cultura e do desleixo as manifestações não avalisadas por um estreito e freqüentemente mau "bom gosto". 0 preconceito contra qualquer manifestação lingüística popular é escandaloso nas gramáticas deste tipo. Maurizio Gnerre afirma que a língua é o único lugar em que a discriminação é aceita. Em nenhum documento está dito que não se tem o direito de

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discriminar alguém por causa de seu sotaque ou de qualquer outra peculiaridade lingüística, embora se condene claramente a discriminação quando baseada em fatores como religião, cor, ideário político etc. Diria que não só não se trabalha em favor do fim da discriminação lingüística, como, pelo contrário, cada vez mais se valoriza a língua da escola, que é na verdade a língua do Estado.

Gramáticas do tipo 2 são políticas em três sentidos, pelo menos: a) em primeiro lugar porque, embora se baseiem na oralidade, a construção dos modelos e, na verdade, o corpus utilizado levam sempre, imperceptível mente talvez, para a consagração da variedade padrão como representante ideal das regras da língua. A melhor demonstração desta atitude é que o estudo da variação Iingüística cabe a um ramo interdisciplinar, a sociolingüística, não à lingüística mesma; b) em segundo lugar, tais gramáticas são políticas na construção e delimitação do objeto: conforme o que excluem ou incluem no objeto da teoria, efetuam um recorte dos fenômenos que imediatamente denuncia as ligações ideológicas da teoria gramatical com certas concepções de outros fenômenos sociais. Casos evidentes são o estruturalismo americano, ligado diretamente ao behaviorismo, e a gramática gerativa, que apela fortemente para o inatismo. Compare-se, também, a concepção de signo em Saussure e em Voloshinov; c) pela exclusão que tais gramáticas promovem do aspecto histórico das I ínguas, das razões sociais das mudanças. A doutrina da precedência da sincronia vem de par com uma concepção de língua como sistema independente de fatores extralingüísticos, excluindo totalmente o papel da história e das reais relações entre os falantes.

As gramáticas do tipo 3 são evidentemente políticas. Neste caso, no entanto, não necessariamente a marca política é imposta por grupos de poder especializados. É a própria comunidade que fala a língua que trabalha politicamente, impingindo normas de linguagem, e excluindo os que não se submetem. Neste sentido, os próprios falantes promovem o máximo possível de normalização ou de especialização de variedades, atribuindo valores às formas lingüísticas. Em comunidades de maior escolaridade, é claro que gramáticas do tipo 1 interferem em gramáticas do tipo 3. Daí porque normas e concepções daquelas gramáticas podem encontrarse reproduzidas nestas, e a comunidade, embora. exercite a diversidade , considera explicitamente uma forma de falar melhor que outra. A forma mais valorizada coincide com a forma padronizada pelas gramáticas. E, no entanto, não existe nenhuma variedade e nenhuma língua que sejam boas ou ruins em si. 0 que há são. línguas e variedades que mereceram maior atenção que outras, segundo necessidades e eleições historicamente explicáveis. Necessidades e eleições claramente políticas. Fischman, em seu Sociology of language, menciona quatro atitudes básicas adotadas em relação a variedades privilegiadas, que as valorizaram sobremaneira. Padronização: consiste na codificação e aceitação, dentro de uma comunidade lingüística, de um conjunto de hábitos ou normas que definem o uso "correto" (Steward). Este é um assunto típico dos guardiães da língua: escritores, gramáticos, professores, etc., isto é, de certos grupos cujo uso da I íngua é profissional e consciente. Codificase a língua e ela é apresentada à comunidade como um bem desejável. Em seguida, promovese a variedade codificada, por meio de agentes e autoridades como o governo, sistemas de educação, meios de comunicação etc. 0 que é importante verificar, nesta tarefa, é que ela é efetuada sobre uma variedade que, antes de ser trabalhada, é (considerada) cheia de "defeitos e lacunas". A padronização não é, pois, uma propriedade da língua, mas um tratamento social. Consiste em fazer passar por natural o que é criado. Autonomia: é uma atitude que se preocupa com a unidade e a independência do sistema lingüístico, erigindo-o freqüentemente em condição “sine qua non” da unidade nacional. 0 principal instrumento da autonomia é a padronização, através de gramáticas e dicionários, meio seguro de representar a autonomia e de aumentála, fixando as regras e aumentando o léxico. "Os heróis não nascem, são feitos". 0 mesmo vale para a autonomia das línguas.

Historicidade: Fischman utiliza uma analogia interessante: buscar sua própria ascendência é uma das características dos novos ricos. Da mesma forma, as línguas, para aparecerem como autônomas, exigem um esforço de reconstrução de seu passado, para descobrir sua "honrosa estirpe". Nada melhor do que derivar do latim, desde que não se diga em voz muito alta que foi do latim dos soldados. . .

Vitalidade: atitude que se preocupa com a manutenção da língua e sua difusão de vez que, quanto mais numerosos e importantes os falantes, maior a autonomia, a historicidade e a vitalidade. Esta postura fica clara em muitos lugares, mas é interessante verificar que funcionou como justificativa para a confecção das primeiras gramáticas do espanhol e do português. Os autores alegavam coisas como "um grande império merece uma grande língua", "as gramáticas são necessárias para que a língua possa ser levada para as colônias, para que lá possa permanecer mesmo quando terminar a dominação política". Bastariam declarações como estas, aliás, para demonstrar claramente a relação da gramática com a política, principalmente no caso das gramáticas pedagógicas, relação que é extremamente bem manifesta nas quatro atitudes enumeradas por Fischman.

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A adoção de gramáticas do tipo 1 pelas escolas é bem um sintoma de que elas pouco se preocupam em analisar efetivamente uma língua mas, antes, em transmitir uma ideologia lingüística. Se considerarmos que aquelas gramáticas adotam uma definição de língua extremamente limitada, que expõem aos estudantes um modelo bastante arcaico e distante de experiência vivida, mais do que ensinar uma língua, o que elas conseguem é aprofundar a consciência da própria incompetência, por parte dos alunos. 0 resultado é o aumento do silêncio, pois na escola não se consegue aprender a variedade ensinada, e se consagra o preconceito que impede de falar segundo outras variedades. E isto é politicamente grave, porque, segundo Foucault ,e o discurso não é simplesmente o que traduz as lutas ou os sistemas de dominação mas o por que, aquilo pelo que se luta, o poder cuja posse se procura".29/06/2001 12:42:40De: Professora Ana Vellasco ([email protected])Assunto: Série Linguagem (3): As sete pragas do ensino do português"AS SETE PRAGAS DO ENSINO DE PORTUGUES" Texto do Professor Doutor Carlos Alberto Faracoe-mail: [email protected](Universidade Federal do Paraná)

0 título deste artigo é bastante generoso. Há bem mais que sete pragas, mas cremos que, com aquelas arroladas aqui, é possível demonstrar que muita coisa vai mal no ensino de 1 íngua portuguesa em nossas escolas de 19 e 29 graus, com graves conseqüências para a vida do indivíduo e da nação.

Chamamos de pragas certas atividades rotineiras que constituem a essência de um determinado tipo de ensino de português, qualificável de tradicional, cujos resultados têm sido os mais negativos possíveis, como procuraremos demonstrar abaixo. Opomonos a isso, tomando posição em favor de um ensino que resulte positivo, possível apenas se fundamentado na lingüística.

Tomando por base os alunos de nossas universidades (o exemplo é bem apropriado, porque são eles que constituem o topo da famosa pirâmide educacional brasileria e foram, portanto, submetidos a onze anos de ensino), verificamos, desolados, que a grande maioria tem acentuadas dificuldade de expressão oral e escrita, pouca ou nenhuma leitura, incapacidade de interpretação de textos, completo desprezo pela linguagem. Ainda há pouco, a revista VEJA, como acontece periodicamente na imprensa brasileira, dizia:

0 que antes parecia ser apenas incômoda suspeita, emerge agora como brutal realidade: os universitários brasileiros, ressalvadas as exceções, tem dificuldades de expressão oral e escrita, vivem num mundo quase sem palavras, esvaziado de idéias, e perdem aos poucos a capacidade de pensar. Mais: submetidos a provas em que lhes seja exigido um mínimo de reflexão e de esforço, revelam um completo despreparo intelectual, praticam grosseiros atentados contra o vernáculo e contra a própria cultura universa 1. Publicado originalmente na revista CONSTRUTORA, ano 111, nº 1, p. 512, 1975.

Ora, essa "brutal realidade" é alarmante, pesadas as conseqüências. 0 ensino de português tem se mostrado inútil (os resultados negativos nos autorizam tal classificação). Recursos humanos e materiais têm sido criminosamente desperdiçados numa atividade vazia de significado: onze anos de escola e o indivíduo está menos instrumentalizado lingüisticamente que ao entrar na escola.

É claro que, em termos gerais, a problemática do ensino de português se insere na crise global da Educação brasileira. Particularmente, contudo, há que se considerar o fato de os professores desconhecerem totalmente os resultados dos estudos lingüísticos e suas inevitáveis conseqüências para o magistério de língua materna. Imaginar, hoje, um ensino de 1 íngua materna sem adequálo ao que se conhece da linguagem, é estar atrasado no tempo, além de ser prejudicial aos interesses individuais e nacionais. Talvez, nenhum outro trabalho didático esteja potencialmente tão bem fundamentado como o ensino de 1 íngua. Infelizmente, porém, os progressos da lingüística e das duas ciências interdisciplinares (a psicolingüística e a sociolingüística) não chegaram ainda às salas de aula. Nos cursos de Formação, em nível de 2º grau, para o Magistério (antigos cursos normais), nem se sonhou ainda com um embasamento lingüístico das futuras professoras. Nos cursos de Letras, apesar de a lingüística constar, obrigatoriamente, dos currículos, pouco se tem feito em termos de lingüística aplicada. E, quando alguma coisa se faz, o trabalho se perde devido à desarticulação do ensino superior: os professores da área pedagógica (em especial os de Prática de Ensino), geralmente desinformados dos estudos lingüísticos (louvemse as exceções), pouco contribuem para uma combinação de esforços que leve a um preparo mais completo do professor de língua.

Neste trabalho, pretendemos analisar alguns dos males do ensino de português, com a intenção de despertar em todos os que estão direta ou indiretamente relacionados com este ensino, uma reflexão crítica que conduza à urgente tarefa de revolucionálo, por

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meio da extensão dos resultados da lingüística à Educação, assunto de que nos ocuparemos em trabalhos futuros.

Mas, vamos às pragas!!

1ª praga: LEITURA NÃO COMPREENSIVA Grande tem sido a preocupação dos professores (em especial no início do 1º grau) com o aprimoramento da mecânica da leitura. Indiscutível o valor desta mecânica, no sentido de desenvolver a leitura clara e fluente. Esta habilidade, porém, é mero passo em direção a objetivos qualitativamete superiores (que devem começar a ser atingidos desde os primeiros anos da escola), ou seja, a penetração na mensagem e a apreciação crítica desta, atividades relegadas, atualmente, a um plano secundário, quando não esquecidas de todo. 0 aluno brasileiro 1ê, como diz conhecido educador, como agulha de vitrola: vai passando pela trilha e produzindo som". Conseqüência: 0 resultado desta falta de hábito de leitura compreensiva e crítica é a incapacidade dos universitários (e do cidadão comum) de entender um texto e de analisálo criticamente (observese a situação dos próprios professores que se mostram, por exemplo, incapazes de uma análise crítica da gramática tradicional!).

2º praga: TEXTOS "CHATOS" Chato está aqui para representar todo aquele conjunto de textos desligados da realidade e da cultura nacionais, afastados dos interesses e das necessidades das crianças e adolescentes e que inundam as nossas escolas, via livros didáticos, Conseqüência: Ninguém toma gosto pela leitura (como cativar os alunos para a leitura se lhes oferecemos textos intragáveis?) e pouco de conteúdo se tira das aulas de português, justamente nessas faixas etárias em que mais queremos saber das coisas da vida e do mundo! (Como lhes ser úteis com textos que nada lhes dizem?).

3ª praga: REDAÇõES TORTURA Queremos que nossos alunos escrevam, mas não lhes criamos as condições para tal. 0 processo rotineiro de orientar a redação tem sido mais ou menos assim: damos um título (silencioso por excelência porque coisa alguma lhes sugere!) ou aumentamos o sofrimento deles, deixando o tema livre e esperamos tranqüilos o fim da aula para recolher o produto suado daqueles angustiados minutos. Todos sabemos o quanto nos custava atingir os limites mínimos de linhas (estes limites são indispensáveis neste processo, do contrário ninguém escreve nada!). Mas, assim mesmo, continuamos a submeter nossos alunos a essa tortura monstruosa que é escrever sem ter idéias.

Conseqüência: Os alunos deixam a escola sem saber redigir, sem ter desenvolvida a capacidade de escrever (escrever é muito mais que desenhar letras no papel . . . ), incapazes de preencher, de modo intelegível, algumas poucas linhas.

4ª praga: GRAMATICA: CONFUSÃO 0 ponto nevrálgico do ensino de protuguês tem sido o estudo da teoria gramatical. Vale dizer, o aluno é capaz de passar onze anos sem manter contacto direto com a língua em si. 0 que lhe oferecemos é apenas a metaI íngua (conceitos, regras, exceções ... ), na ilusória certeza de estarmos ensinando a língua. Ocupamos a maior parte do tempo com falatórios sobre a 1 íngua (em vez de ensinála) e com exercícios de aplicação dessa teoria toda (em vez de exercícios de dom ínio de língua). Estamos assumindo aqui (e voltaremos à carga em outras opor tunidades) uma posição contrária ao ensino da teoria gramatical (isto é, o domínio da teoria gramatical NÃO deve ser objetivo do ensino de português) por dois motivos. Primeiro, porque é possível dominar uma língua sem conhecer um pingo sequer da teoria gramatical. Segundo, porque a teoria que corre por aí, é incompleta (não dá conta da língua portuguesa como um todo); é absurda (os coitados de nossos alunos têm de aprender, por exemplo, que o sujeito é elemento essencial da oração; logo adiante, porém, essencial já não significa mais essencial, porque há orações sem sujeito . . . ); é confusa (os conceitos são inadequados). É um crime, portanto, encher a cabeça de nossos alunos com algo inútil (o conhecimento, da teoria não contribui significativamente para o domínio da língua), confuso, incompleto e absurdo. Conseqüência: Os alunos não aprendem nem a teoria, nem a língua, estabelecendose, em suas mentes, tremenda confusão a lhes inibir, para o resto da vida, a expressão e a comunicação.

SP praga: CONTEUDOS PROGRAMATICOS INUTEIS 1º fato: No ensino de português, a seleção do conteúdo tem sido feita, tomando por base as gramáticas tradicionais.

Problema 1: Os professores, incapazes de interpretar os programas (não compreendem que não é a nomenclatura nem a teoria que devem ser ensinadas; não compreendem que a nomenclatura está apenas a representar o fato da língua, este sim, verdadeiro objeto do ensino! ) passam a ensinar a codificação gramatical em lugar de ensinar a língua. Citemos, como exemplo, o caso das preposições. Os alunos são obrigados a decorálas (a,

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antes, após, até , ... ). Não há função nenhuma nisso; mas, por que ocorre? Porque os professores não sabem ensinar preposições sem falar em preposição! Portanto, o ensino da língua foi desviado para o ensino da teoria gramatical, donde surge novo problema:

Problema 2: Como o que tem sido ensinado é o conteúdo das referidas gramáticas e este não resiste a uma crítica, o conteúdo programático da disciplina está totalmente defasado.

29 fato: A distribuição do conteúdo pelas diversas séries é arbitrária. Problema 1: Não existe adequação do conteúdo à capacidade dos alunos. Chega-se ao cúmulo de se ensinar assuntos altamente especializados (próprios para o estudioso de Letras, mas completamente fora de propósito na escola de 1º e 29 graus). Exemplo típico disso é o estudo da classificação das vogais e consoantes.

Problema 2: Assuntos que deveriam constar de manuais apenas como ponto de referência para uma eventual consulta (eventual, em razão da raridade da ocorrência), passam para os programas escolares, para os livros didáticos e os alunos são obrigados a retêlos, num evidente desperdício de energia mental, sobrecarregando a memória com uma carga inútil de informações desnecessárias. Estão incluídas, aqui, coisas como as vozes dos animais (alguém poderia justificar a presença deste assunto nos livros didáticos e no ensino?), certos coletivos (atilho, cainçalha, coldra, chorrilho , . . . ), certos "femininos" (deão, felá, grou, landgrave, margrave, doge , ... ), a grande maioria dos "adjetivos pátrios" (Que o indivíduo que nasceu na Província do EntreDouroeMinho, Portugal, saiba que ele é um interamnense, vá lá; mas que um nascido em Pinhais, Paraná, deva necessariamente saber, tenha dó!) certos "numerais" (septingentésimo, nongentésimo, . . . ), "aumentativos e diminutivos" (naviarra, fogacho, homúnculo, diabrete, ... ),certos "adjetivos eruditos" (cinegético, belu íno, 1 ígneo, equóreo, porcino, . . . ).

Problema 3: Insiste-se no domínio ativo de formas arcaicas (Vós, algumas regências, "mesóclises" esdrúxulas, . . J. Conseqüência: Cria-se no indivíduo uma falsa idéia sobre a 1 ínqua (Quantas coisas realmente importantes ficam de fora!) e sobre o estudo da língua (pensase que estudar a língua é só aprender essa matalotagem de coisas inúteis!). Daí, decorre o desprezo pela língua e a incapacidade de aprimorar o domínio do instrumento lingüístico. Decorrem daí, também, essas monstruosidades que são as provas de português dos concursos para ingresso em organizações públicas e particulares, dos exames supletivos e dos vestibulares (sem esquecer, é claro, das provas nas escolas ... )!

6ª praga: ESTRATÉGIAS INADEQUADAS Parece-nos evidente que, dentro do tipo de ensino que vimos analisando, as estratégias só poderiam ser inadequadas. Afora as já comentadas (orientação da leitura e da redação), destacaremos apenas algumas para efeito de comprovação:

a) Correção de textos: É comum se ouvir dos professores a máxima que proíbe mostrar o erro ao aluno, atividade taxada de antipedagógica. Contudo, estes mesmos professores, inexplicavelmente, nas aulas de português, se deliciam em apresentar textos cheios de erro, para que seus alunos corrijam. Chegouse a inventar a famigerada aula do erro; as redações são devolvidas, pintadas de vermelho: a violência da cor a destacar o erro!

Reportemo-nos a Chaves de Melo: Não atinaram os incautos que ninguém pode aprender a manejar com firmeza a língua depois de se ter debruçado amorosamente sobre centenas de frases erradas ou monstruosas. Não reparam os desprevenidos que a obsessão do erro só pode gerar insegurança, inquietação e, pior do que isso, perda do senso estilístico.

b) Ortografia por regras ou por lacuna: 0 domínio da ortografia é tipicamente uma habilidade motora, impossível de ser adquirida pela memorização de regras (de que me adiante saber as palavras de origem ameríndia, africana ou popular se grafam com 'j'? Ou que o W inicial é obrigatório sempre que etimológico?), ou pelo simples preenchimento de lacunas em palavras soltas (quando escrevemos, não o fazemos por meio de preenchimento de espaços em branco ou por meio de palavras soltas, isoladas de contexto!).

c) Estudo através de listas: Há listas enormes de femininos, plurais, plurais de compostos (obrigase o aluno a decorar as regras desse tipo de pluralização, coisa totalmente destituída de significado, já que, no ato da fala, não temos tempo para classificar os elementos do composto, lembrar da regra e aplicála!), diminutivos, aumentativos, radicais, prefixos, sufixos, sinônimos e antônimos, conjugação verbal, conjunções, ... (vd. comentário na SP praga).

Será que nunca ninguém percebeu que não falamos reunindo listas? Que os elementos lingüísticos só funcionam em contexto (e, portanto, só aí é que podem ser adquiridos)??

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Esta estratégia é de tal modo viciada que os estudantes decoram as formas sem aprender seu respectivo significado (justamente, porque fora de contexto)!

Conseqüência: 0 ensino de português inibe o falante, confun,deo no uso das formas lingüísticas e dálhe insegurança no uso da língua (o medo de errar, causador freqüente da hipercorreção ou da inibição). Este tipo de ensino incentiva, pelo Brasil afora, aquelas ridículas e irritantes brigas por quest iúncu Ias de gramatiqu ice ou as famosas brigas ortográficas (destas a mais recente e amplamente divulgada pela imprensa nacional, envolveu a, forma "correta" de grafar ERE (x 1 ch) 1 M!!).

7a. praga: LITERATURA-BIOGRAFIA Há todo um sistema de se "ensinar" literatura que consiste em coletar dados biográficos dos autores e arrolar suas obras. Saíu de um desses professores a brilhante expressão literatura é decoreba"! Tornouse possível ensinar literatura em nossas escolas, sem que os alunos entrem em contacto com textos!!

CONCLUSÃO

Não houve propósito, neste artigo, de se oferecer alternativas para o ensino de português. Pretendeu-se apenas contribuir para uma análise crítica que nos conduza à necessidade de repensar e reorganizar este tipo de ensino. Como conclusão, ficam estas palavras:

Sabemos que grau de abnegação é necessário para que o professor, primário ou secundário, recoloque em causa aquilo que ensina, em certos casos depois de muitos anos. Mas sabemos que não hesitará se estiver convencido de que o futuro de seus alunos está em jogo.

Data: 29/06/2001 12:30:12De: Professora Ana Vellasco ([email protected])Assunto: Série Linguagem (2): O papel da lingüística no ensino de línguas"O papel da lingüística no ensino de línguas" Texto do Professor Doutor Luiz Antônio Marcuschi (UFPE - 2000) [email protected](Universidade Federal de Pernambuco)

1. Pano de fundo e perspectiva Esta não será uma exposição em Lingüística Aplicada. Será muito mais uma tentativa de identificar os papéis da lingüística no ensino de língua tendo por objetivo central compreender como se deu a correlação entre o desenvolvimento da pesquisa e sua aplicação ao ensino. Em geral, quando se tem um tema como este pensa-se na Lingüística Aplicada e, em particular, no Ensino de Língua Estrangeira, Segunda Língua ou Língua Materna. Mesmo que haja algo de consistente na visão restritiva do tema, minha perspectiva será nitidamente outra, mais ampla. Para tanto, primeiramente, faço uma breve incursão pela trajetória da Lingüística neste século, tentando relacioná-la ao desenvolvimento das bases teóricas do ensino. Mostro, ali, como as concepções de língua são fundamentais para direcionar práticas de ensino. Depois, reflito sobre alguns aspectos atuais da Lingüística e seu potencial, sobretudo na aplicação que dela vem sendo feita e analiso uma questão pontualizada, ou seja, os Parâmetros Curriculares Nacionais em Língua Portuguesa (PCNLP), observando como eles se situam no contexto dos estudos lingüísticos atuais. Dois breves exemplos de textos produzidos na escola são utilizados para detectar alguns aspectos trabalhados pela Lingüística hoje em dia. Antes de iniciar a exposição, lembro o que afirmou Magda Becker Soares (1998) em palestra na PUC-SP, ao discorrer sobre as "Concepções de linguagem e o ensino de Língua Portuguesa". Para a Autora, há diversas perspectivas das quais se pode fazer uma reflexão sobre o ensino: a perspectiva da própria ciência, ou então as perspectivas psicológica, política, social, cultural e histórica. No presente caso, vou tratar meu tema da perspectiva da própria ciência e da perspectiva sócio-histórica. Preocupa-me como o saber escolar, na sua relação com o saber científico, foi se constituindo ao longo do tempo. Mas isto não significa que ignore a relevância das demais perspectivas. A Lingüística vinha se desenvolvendo nos meados do século XIX e, com sucesso, já mapeava os falares e as diversas línguas em suas peculiaridades com descrições dialetológicas e históricas tendo como metodologia básica de trabalho o Comparativismo essencialmente histórico e descritivo. A perspectiva é ainda pré-estruturalista porque não distingue níveis de análise nem se dá ao trabalho do

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estudo sincrônico. Depois surge a perspectiva estruturalista que dominará durante o século XX até os anos 60 para dar lugar a uma visão multifacetada e pós-estruturalista, a partir dos anos 60, com o surgimento da pragmática, sociolingüística, psicolingüística, etnometodologia e, mais recentemente, o cognitivismo, que desembocam nas mais diversas correntes que hoje tanto influenciam o ensino.

2. Início do séculoSe observarmos a Lingüística tal como ela se autodefiniu no início do século XX, na Europa e nos EUA, vamos constatar que a ponte entre a teoria e a prática foi minada logo de saída. Pois, com Saussure, a lingüística se autodeterminava como o estudo das formas e das estruturas do sistema lingüístico, optando pelo caminho de uma ciência o mais abstrata possível, quase formal. Esta não foi seguramente uma decisão isolada, mas comum ao conjunto das Ciências Humanas num século marcado pelo positivismo. Isto acarretou uma visão objetivista da linguagem ao se privilegiar a análise da língua como um constructo formal. Era um ideal de ciência que tanto marcaria o século XX e lhe legaria uma metodologia científica hegemônica baseada num verificacionismo empírico-formal. Surgiu daí a noção de língua como sistema de regras e a noção de que o objeto da lingüística não era a produção concreta e histórica, embora essa fosse primordial. Saussure mandava analisar a fala não enquanto fenômeno empírico e situado, mas como constructo social, somatório das individualidades e acima das idiossincrasias. Não era a fala e sim um ideal de fala ou uma fala idealizada, que também não chegava a ser a escrita. Sugeria o recorte sincrônico em detrimento da diacronia, evitando a observação dos dados em sua variação empírica. Instaurou as mais diversas dicotomias que fariam fortuna por mais de meio século. Assim, em Lingüística, tudo iniciava com um freio na observação do uso e da variação. No meu entender, parece necessário refletir formas de superar particularmente a dicotomia entre teoria e prática e perceber a unidade que existe entre diacronia e sincronia, função e valor, forma e conteúdo, sujeito e objeto, objetivo e subjetivo, individual e social, racional e emocional, natural e cultural e assim por diante. Essa superação das dicotomias se dará na medida em que as tornarmos desnecessárias pela natural visão holística e globalizante dos fenômenos e não pela opção por um de seus pólos. Com a superação, teremos desenhado uma nova forma de fazer ciência, assim como se vem operando desde os anos 80 do século XX.

3. Língua como fator de identidadeAinda não foi feita, mas seria esclarecedora uma investigação sobre o desenvolvimento da Lingüística no século XX na sua relação direta ou indireta com os manuais e materiais de ensino de língua. Se formos observar o que ocorria no final do século XIX no ensino de língua e que perduraria até os anos 40 do século XX, particularmente no Brasil, veremos que inexistem manuais ou gramáticas pedagógicas tais como as que conhecemos hoje. Como bem nota Soares (1998:55), a denominação da disciplina "Português" ou "Língua Portuguesa" só passou a existir nas últimas décadas do século XIX, sendo que "até então, a língua era estudada na escola sob a forma das disciplinas Gramática, Retórica e Poética" (ênfase acrescida). O ensino de língua, no Brasil-Colônia "restringia-se à alfabetização" e quando se prolongava um pouco mais era para "o estudo da gramática da Língua Latina, da retórica e da poética" (Soares, 1998:54). Com a Reforma Pombalina, em 1759, deu-se início ao estudo da Língua Portuguesa no mesmo estilo da Língua Latina: Gramática, Retórica e Poética, imitando os bons escritores. Para tanto, existiam os Florilégios, Seletas e as famosas Antologias com seleção de textos clássicos da literatura. Seguiam-se os preceitos da Filologia que comandava então o estudo da língua. A idéia era a de que a língua formava um grande quadro da identidade nacional e era o depositário da cultura nacional. E esta se expressava na Literatura de um povo, que devia ser imitada. Era ainda o ideal greco-latino do ensino de língua. Na língua estaria o patrimônio e a pátria de um povo, e até mesmo a visão de mundo que o animava, tal como postulara Humboldt. Em certo sentido isto perdura ainda hoje nas Academias e nas visões mais conservadoras que não admitem outro ensino a não ser o da língua dita padrão e exemplar de nossos melhores e mais consagrados autores.

4. Língua como sistema de regrasA noção culturalista e antropológica (o classicismo culturalista) muda apenas nos anos 20 do século XX, mas sua repercussão no ensino se dará muito mais tarde, por volta dos anos 50, quando se unificam os livros de gramática com os textos literários. Surgem no mundo todo os livros didáticos com uma pedagogia da língua. Na teoria lingüística, com Saussure, Bloomfield e Bühler, deslocava-se a visão da cultura para o sistema. A filologia dá lugar, lentamente, ao estruturalismo lingüístico e os estudos diacrônicos vão cedendo lugar aos sincrônicos. A historicidade vai dando lugar à sistemicidade. Como exemplo,

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pode-se citar o caso da semântica histórica definida e desenvolvida tão bem por Michel Bréal no final do século XIX e que será até mesmo excluída dos estudos lingüísticos por Saussure. O ensino de língua capitaliza esta visão popularizando-a nas gramáticas pedagógicas com o predomínio do ensino da gramática, esquecendo até mesmo a Literatura em muitos casos. É o triunfo da idéia da língua como sistema de regras, que poderia ser estudada imanentemente já que teria um determinado grau de estabilidade interna, estruturação e imanência significativa. Neste período o estruturalismo chega ao máximo nas análises fonológicas, morfológicas e sintáticas da língua, esquecendo-se em boa medida os aspectos semânticos, pragmáticos, sociais, discursivos e cognitivos que iriam ser incorporados seqüencialmente, nos anos seguintes, aos estudos científicos da língua. Dos anos 1910 aos anos 1950 predominavam os estudos no plano descritivo e explicativo das formas, ligados à imanência e autonomia do sistema, sem a percepção dos atores e usuários da língua. Era o ensino de uma língua descarnada e que parecia agir por si só. No caso do ensino de línguas estrangeiras, a concepção de língua como sistema conduziu a muitos trabalhos de Lingüística Contrastiva, mostrando como as línguas variavam em suas relações sistemáticas, o que era de grande utilidade para o ensino na base dos contrastes (restritos ao plano da forma), seja do ponto de vista fonológico, morfossintático ou lexical. Mais do que uma disciplina, a análise contrastiva foi tida como um método de análise e sua tradição vem de longa data, desde o final do século XIX. Teve grande influência no ensino de língua e se estendeu para além da questão do sistema, tendo seus melhores frutos na análise comparativa do ponto de vista sociocultural que é o mais complexo na aprendizagem de línguas. Esta visão dos contrastes interculturais só ocorre no último quartel do século XX. Do ponto de vista da concepção de língua como sistema, não convém esquecer uma perspectiva de análise que foi praticada nos anos 60-70, denominada análise de erros. Tratava-se de uma investigação sistemática dos tipos de erros e suas causas, em especial no caso de falantes de segunda língua (falantes de línguas não nativas). Esse estudo ligava-se à análise contrastiva há pouco lembrada e postulava que os erros se deviam a pelo menos dois fatores básicos: (a) generalização excessiva e (b) transferência de propriedades de uma língua para outra. Contudo, tanto a análise contrastiva como a análise de erros se mostraram pouco produtivas tendo em vista que detectavam contrastes que explicavam as dificuldades na base do sistema (o que implica uma supersimplificação das questões de língua em geral) quando o problema residia em outros lugares, por exemplo, na questão interativa, nos contextos, nas intenções, enfim na produção de sentido situada. Hoje, a análise de erros e a análise contrastiva no ensino de L2 estão fora de cogitação.

5. Língua como fenômeno socialA visão estruturalista, embora tenha produzido notáveis resultados e conhecimentos nada desprezíveis, vai cedendo lugar a novas perspectivas e seu auge se dá no final dos anos 60, quando a idéia de variação lingüística obriga a que se volte o olhar para outros aspectos. Contudo, já bem antes disto, ainda nos meados do século XIX, frutificavam os estudos dialetológicos que mostravam como a língua variava geograficamente e os falantes não tinham uma unidade, seja do ponto de vista lexical ou fonético. Mudavam as pronúncias e outros aspectos da língua, mas isso não passava para o ensino e ficava no conhecimento dos filólogos que utilizavam estes elementos para seus estudos históricos. Com o aparecimento da idéia de que a variação lingüística era uma contraparte da variação social, como postulavam Weinreich, Labov, Waletzky, Fishman, Fisher, Gumperz, Dell Hymes, nos meados dos anos 60, surge uma perspectiva nova para o ensino. Assim se dá o lançamento oficial da Sociolingüística em suas várias vertentes, seja a variacionista ou culturalista. Surge daí uma perspectiva mais sistemática de considerar a língua como fato social e como engajada na realidade sócio-antropológica. A própria noção de competência comunicativa tal como definida por Dell Hymes nos anos 60 distancia-se muito da idéia chomskyana de competência. A partir dessas novas conquistas teóricas, o trabalho com a língua passa a encarar, debater e combater todo o tipo de preconceito lingüístico dando lugar às tentativas de valorização das variedades de língua não-padrão ou não-cultas. A escola passa a ter que operar com a variedade e com a questão da diferença como um fato normal na língua, já que as línguas não são monolíticas nem homogêneas. Elas têm uma relação direta com a sociedade. O próprio interculturalismo passa a ser considerado. De algum modo, temos aqui a influência inicial dos estudos etnometodológicos que irão ter um papel mais decisivo no ensino nos anos 90 quando a sala de aula se torna essencialmente um laboratório de análise dos processos de interação e comportamento lingüístico. Estes trabalhos tornam-se muito importantes para as novas cartilhas de alfabetização e inicia-se um estudo mais aprofundado das relações entre variação lingüística e processos de alfabetização. Ao lado desses, florescia também o

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estudo da Psicolingüística, que buscava compreender os processos de aquisição da linguagem. Estes estudos vão influenciar diretamente o ensino em especial acrescendo-lhe um componente processual e cognitivo. Novos materiais e mais adequados vão surgindo considerando as faixas etárias. É o passo mais decisivo para a superação do behaviorismo na educação, como lembrei antes.

6. Língua como forma de açãoÉ nos anos 60, também, que se chega à fantástica descoberta de que com a língua não apenas se diz, mas se age. É com John Austin que uma determinada pragmática (Teoria dos Atos de Fala) surge com força vital que vem mostrar a língua como uma forma de ação. Com a língua pode-se agir. É a visão da língua como fenômeno não apenas envolvido na situação social e reproduzindo em certo sentido a variação social em suas formas, mas é a visão da língua em funcionamento diretamente ligado a contextos situacionais e não apenas sociais e cognitivos. Linguagem como ação interativamente desenvolvida é uma idéia chave que surge no contexto da teoria dos atos de fala e numa perspectiva explicativa da ações intencionais com a língua. No uso da língua, não se tem apenas atos de dizer mas atos de fazer. A pragmática dos anos 60 desenvolve-se rapidamente, mas não entra no ensino num primeiro momento, tendo em vista sua origem complexa no seio da Filosofia Analítica da Linguagem. Além disso, a pragmática dos atos de fala se desenvolve num perspectiva formal e considera atos isolados de situações socialmente relevantes. Seu potencial não é traduzido para situações sociais do dia a dia. Muitas são, no entanto, as pragmáticas e não uma só. A mais importante e influente foi de início a desenvolvida por Austin e completada por Searle, mas em seguida sobrevém-lhe a pragmática conversacional de P. Grice, que assume importância muito grande e será em maior parte adotada pela Teoria Literária e também pelos pragmaticistas de linha cognitivista que lidam com processos de compreensão. É curioso que a teoria dos atos de fala irá frutificar de modo especial na teoria da ação lingüística, e a teoria das implicaturas griceanas vai influenciar particularmente na teoria da compreensão lingüística, embora ambas sejam propostas de análise pragmática da língua. Sob um ponto de vista prático, mesmo tendo em conta o alto potencial de ambas, elas ainda não se converteram em tecnologia adequada ao ensino. Permanece um desafio teórico transformar as pragmáticas em algo aplicável no ensino de língua. É curioso que a observação da variação sociolingüística e também estrutural das línguas conduziu, na área de ensino de língua estrangeira, a uma série de metodologias de investigações que redundaram, entre outras coisas, na análise contrastiva do ponto de vista sociocultural. As análises contrastivas dos diversos matizes, tal como desenvolvidas entre os anos 60-80, serviram muito aos estudos de tradução, ensino de segunda língua, aquisição de língua e bilingüismo. Na realidade, trata-se de uma investigação que tem em vista interesses teóricos e aplicativos. Os interesses aplicativos prevaleceram nos anos 70 preocupados com os contrastes essencialmente estruturais, mas também com o contraste categorial e funcional das línguas, os mais interessantes no ensino.

7. Língua como atividade e texto como eventoSorte muito maior do que a pragmática, terá a Lingüística de Texto, no que respeita à sua aceitação e aplicabilidade no ensino de línguas. Assim, podemos tomar como aspecto relevante o surgimento da Lingüística de Texto em meados dos anos 60, bem como da Análise da Conversação logo em seguida, no início dos anos 70 e uma boa parte dos estudos da Análise do Discurso, em especial na sua versão francesa que, no Brasil, teria grande repercussão em especial nos estudos literários. Se os anos iniciais do séc. XX até os anos 60, foram dominados pelo estudo da lingüística estrutural, predominando ali a análise de elementos isolados e, no máximo, admitindo como unidade maior a frase, a partir dos anos 60 dá-se uma guinada nesta posição. Desde então, a postura teórica em relação aos estudos lingüísticos é a identificação de uma nova unidade lingüística, isto é, o texto, ou seja, uma perspectiva supra-frasal que vem da Escola de Praga e se estende para a Alemanha onde se desenvolve com enorme rapidez e imensa influência sobre os manuais de ensino de língua. Trata-se de valorizar a língua em contextos de uso naturais e reais, privilegiando a atividade lingüística autêntica com textos produzidos em situações cotidianas orais ou escritas. Inicialmente, dá-se um estudo mais restrito aos textos escritos pela facilidade de sua coleta e pela ainda inexistente tradição de análise da língua falada que se inicia lentamente no final da década de 60. Hoje o panorama já e bem mais diversificado e se contempla com certa profundidade a língua falada no ensino. É curioso observar que se os estudos sociolingüísticos e pragmáticos, nessa época bem mais desenvolvidos e sólidos do ponto de vista científico, ao terem unidades de análise bem definidas, não conseguiram penetrar e transformar-se em tecnologia adequada nos manuais de ensino, a Lingüística de Texto, por sua vez,

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conseguia este feito com relativa rapidez. De certo modo, ela tem a vantagem de trazer um componente extremamente aplicável que é o aparato teórico adequado à análise do funcionamento do texto, seja sob o ponto de vista da produção ou da compreensão, os dois aspectos que passarão a dominar cada vez mais o ensino a partir dos anos 80. Isto se dá a tal ponto, como ainda observaremos adiante, que no final dos anos 90 a LT chega a substituir de forma drástica toda a análise gramatical que antes perfazia o núcleo do ensino de língua na escola. E com repercussão direta sobre todos os testes de língua que hoje são feitos para concursos públicos, vestibulares etc., no Brasil. Definindo o texto como evento e observando-o como processo e não como produto, a LT passou a incorporar domínios cada vez mais amplos, tendo que dar conta da integração de aspectos lingüísticos, sociais e cognitivos no funcionamento da língua. Novos estudos são desenvolvidos e uma enorme renovação dos materiais didáticos passa a acontecer com base nesses desenvolvimentos recentes.

8. Língua como interatividade e o papel das trocas comunicativas Enquanto a Análise do Discurso ficaria até hoje confinada predominantemente aos estudos acadêmicos, tendo em vista sua limitação explicativa dos fenômenos lingüísticos, a Análise da Conversação, embora não na mesma medida que a Lingüística de Texto, vem tendo um papel importante e crescente no ensino, em especial no momento atual, que, como veremos, descobre a oralidade como um fenômeno não apenas central na vida dos indivíduos e no uso da língua, mas na própria concepção de língua. Ressalto o potencial que a Etnometodologia, a Etnografia da Fala e a Antropologia Lingüística juntamente com a Análise da Conversação, em especial da denominada Sociolingüística Interativa vêm apresentando na questão relativa ao ensino. Não diretamente no ensino de língua em si, mas na metodologia educacional relativa ao ensino e preocupada com a análise das trocas comunicativas. São áreas da lingüística contemporânea de influência para além do âmbito da língua. Mas no próprio âmbito da língua elas vêm influenciando a questão do ensino já que permitem melhor analisar os processos interativos e se coadunam muito bem com as teorias sobre o funcionamento do texto, seja ele oral ou escrito. Particularmente relevante é a visão sócio-interativa da língua no que toca ao ensino de segunda língua ou de línguas estrangeiras. Pois ali a questão da inserção social da língua na sua relação com as atividade cotidianas nas interações verbais é ponto central de análise.

9. Língua como capacidade inata da espécie humanaNão mencionei até aqui um dos desenvolvimentos mais importantes da Lingüística no século XX, quiçá de todos os tempos. Trata-se do gerativismo. Há uma razão para isto. E de natureza um tanto contraditória e paradoxal. Se em certo sentido o gerativismo vem sendo uma corrente lingüística hegemônica, quase absoluta na sintaxe dos últimos 50 anos, ensinando-nos coisas extraordinárias e em especial um modo rigoroso de fazer lingüística, por outro lado, nunca foi assimilado de maneira frutífera pelo ensino de línguas. Com efeito, o gerativismo nunca teve em suas intenções o interesse de ser aplicável nem de explicar a língua do dia-a-dia. Não é uma teoria descritiva, mas explicativa. E aí está o seu paradoxo: o gerativismo é rigoroso e busca dar conta de forma ordenada, explicativa, econômica e teoricamente adequada de fenômenos abstratos e universais da língua. Mas não desenvolve uma semântica nem uma pragmática e muito menos trabalha aspectos da produção e compreensão de texto. Nada do que interessa à escola interessa aos gerativistas e vice-versa. As poucas tentativas de aplicação do gerativismo ao ensino falharam. Quando Chomsky distinguiu entre competência lingüística e desempenho não estava tratando de algum tipo de comportamento lingüístico de indivíduos reais, mas ideais. Não tinha em mente falantes, mas protótipos para análise. É evidente que ele jamais pensou em estar dando conta de alguma porção da realidade comunicativa ou interativa. Não tinha como não tem ainda hoje em mente uma noção de língua como fato social e sim como fato biológico. A aplicabilidade é um aspecto descartado do gerativismo. Não se pode negar, no entanto, que boa parte dos estímulos da lingüística contemporânea e grande parte de seus problemas têm origem em algum ponto do gerativismo. É inegável a sua importância para o estudo da sintaxe e dos problemas tipológicos da língua. Mesmo admitindo que a posição gerativista em relação à cognição não seja plausível para as línguas humanas (na medida em que adota a metáfora do computador e um modularismo isolacionista), ela levou a melhor compreender as línguas naturais. No entanto, não está nos seus interesses a preocupação com a linguagem enquanto fenômeno tipicamente humano e social, já que a noção de social ou situacional não é abarcável no gerativismo. Nem mesmo o aspecto histórico e o problema da variação são objeto de análise por parte dos gerativistas. Rigorosamente falando, a contribuição do gerativismo para o ensino de língua acha-se próxima de zero. Sua contribuição é e continuará sendo teórica e assim mesmo no limite da discussão com áreas que não são propriamente as das Ciências

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Humanas e não é por outra razão que o próprio patrono da teoria gerativista, Noam Chomsky, em seus estudos mais recentes situa a lingüística no contexto das ciências naturais, devendo-se tratar as propriedades lingüísticas como atributos neurofisiológicos. Tudo isto soa de maneira profundamente herética aos lingüistas e humanistas voltados para questões sócio-culturais e para os usos da língua.

10. Preocupação com a Fala e a EscritaDiferentemente das posições do início do século XX, com Saussure ou Bloomfield e, de meados do século XX para cá, com Chomsky, que de certo modo sufocaram os estudos da língua em uso, considerando-os dispersivos e próprios de outras disciplinas, hoje a lingüística volta-se com ênfase para a análise da língua em contextos situacionais autênticos. Daí sua preocupação com os problemas do texto tanto oral como escrito. Es isto numa perspectiva essencialmente processual, não-atomizada nem limitada ao interior do código. Como lembrado acima, dá-se hoje uma intensa investigação da língua em uso. Um uso que se manifesta em situações cotidianas seja na oralidade ou na escrita. Dos anos 60 para cá, são inúmeros os estudos sobre a oralidade e a escrita não apenas no contexto da Lingüística e sim em contextos interdisciplinares tais como a Antropologia e Etnografia (surgindo daí a Etnografia Lingüística e também a Antropologia Lingüística). Além dessas, também a Psicologia e a Sociologia dedicaram-se com ênfase ao estudo da fala, dando origem ao que se chamou de Análise da Conversação que, inicialmente, não tinha preocupações marcadamente lingüísticas. Todos estes trabalhos com a língua em uso resultaram numa melhor compreensão da língua como atividade interativa e hoje tanto influenciam os estudos lingüísticos passando com imensa rapidez para ao ensino tendo em vista seu enorme potencial aplicativo e explicativo. São perspectivas que permitem integrar de maneira significativa os aspectos pragmáticos, sociais, cognitivos e lingüísticos numa visão holística da língua enquanto atividade. Fala e escrita não são mais vistas como dicotômicas, sendo este um tema em franca ebulição nas investigações lingüísticas dos últimos 30 anos. Sua análise é feita na grade dos gêneros textuais, com grande relevância no ensino de língua. Além disso, tem-se como certa a posição de que a escrita não é uma representação da fala, não é superior à fala nem apresenta alguma vantagem imanente do ponto de vista cognitivo. Fala e escrita são modalidades de produção discursiva complementares e interativas, havendo momentos em que é até difícil distingui-las uma da outra ao se considerarem determinadas produções textuais. Estas novas conquistas teóricas estão passando com enorme rapidez para o ensino de língua tendo em vista seu potencial aplicativo quase imediato, já que são desenvolvidas na própria relação com essa prática. Em certo sentido, o que se observa é que a visão mais dinâmica e interativa da língua e a consideração de sua inserção em contextos sociais relevantes e de suas diversas formas de representação e manifestação tem trazido uma extraordinária renovação nas práticas de ensino. Isto vai se refletir na própria política de ensino de língua como se verá a seguir.

11. A presença das teorias lingüísticas nos PCNLP Hoje, no Brasil, podemos ver o reflexo direto das teorias lingüísticas no ensino de língua portuguesa ao analisarmos os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (PCNLP). Quanto a isso, chega a ser curiosa a constatação de uma situação inversa daquela que presenciávamos no início do século XX no Brasil saído do Império. O documento atual produzido por encomenda do Ministério da Educação (MEC) propõe um conjunto de orientações para o ensino de língua, particularmente no Ensino Fundamental (de 1ª a 8ª Séries) e oferece uma possibilidade de definir linhas gerais de ação. Tudo dependerá, no entanto, de como serão tais orientações tratadas pelos usuários em suas salas de aula; seria nefasto se as indicações ali feitas fossem tomadas como normas ou pílulas de uso e efeito indiscutíveis. Pior ainda, se com isso se pretendesse identificar conteúdos unificados para todo território nacional, ignorando a heterogeneidade lingüística e a variação social. Os PCNLP contém aspectos positivos que podem ser ressaltados sob o ponto de vista teórico, tais como: (a) adoção do texto como unidade básica de ensino; (b) produção lingüística tomada como produção de discursos contextualizados; (c) noção de que os textos distribuem-se num contínuo de gêneros estáveis, com características próprias e são socialmente organizados tanto na fala como na escrita; (d) atenção para a língua em uso, sem se fixar no estudo da gramática como um conjunto de regras, mas frisando a relevância da reflexão sobre a língua; (e) atenção especial para a produção e compreensão do texto escrito e oral; (f) explicitação da noção de linguagem adotada, com ênfase no aspecto social e histórico, (g) clareza quanto à variedade de usos da língua e variação lingüística. Esses pontos formam uma espécie de ideário e, no geral, inserem-se na perspectiva funcionalista, dedicando-se mais à exploração do uso que ao estudo

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formal da língua. Esta perspectiva resulta numa orientação do ensino de língua voltado essencialmente para a produção e a compreensão de textos em seus mais variados aspectos. O fato é de tal maneira saliente que as 12 sugestões finais de "critérios para a avaliação da aprendizagem" em cada série concentram-se num conjunto de ações verificadoras das habilidades de compreensão e produção de textos orais e escritos. Os dois eixos do ensino de língua frisados nos PCNLP concentram-se nas atividades de produção e compreensão de textos, visando a permitir "a expansão das possibilidades do uso da linguagem", relacionadas às "quatro habilidades básicas: falar, escutar, ler e escrever". Isso permitiu construir os "dois eixos básicos" do estudo de Língua Portuguesa:

a. EIXO 1: "o uso da língua oral e escrita" e

b. EIXO 2: "a reflexão sobre a língua e a linguagem".

Quanto ao primeiro eixo, a justificativa dada para o estudo da oralidade é formulada numa perspectiva finalística que não sugere a dimensão exata que o trabalho com a oralidade pode assumir. Veja-se isso no item 3.2 (p.35): "No trabalho com os conteúdos previstos nas diferentes práticas, a escola deverá organizar um conjunto de atividades que possibilitem ao aluno desenvolver o domínio da expressão oral e escrita em situações de uso público da linguagem (grifo original), levando em conta o contexto de produção dos discursos (sujeito enunciador, interlocutor, finalidade da interação; lugar e momento da produção) e as características dos gêneros e suportes, operando com a dimensão semântica e gramatical da língua." Por que se restringir apenas ao uso público da língua, quando se sabe que em usos privados a língua oral oferece muitos problemas e até em maior número do que em outras circunstâncias, já que o cidadão lida com seus semelhantes em situações muito complexas? Na linha do segundo eixo, aspecto relevante é a noção de linguagem, que aparece tratada em muitos momentos, mas com definições ou em assertivas sempre passageiras, não havendo uma reflexão explícita e tecnicamente fundamentada. De qualquer modo, observa-se que a linguagem é vista como atividade interlocutiva, ou seja é concebida como dialógica, social e histórica. Vejamos algumas dessas passagens:

- "Linguagem aqui se entende (…) como ação interindividual orientada por uma finalidade específica, um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes nos diversos grupos de uma sociedade nos distintos momentos da sua história." (p.6)

- "A linguagem, enquanto sistema de representação do mundo, está presente em todas as áreas de conhecimento." (p. 18)

- "…enquanto um trabalho" (p.21)

- "A linguagem é uma atividade humana, processo de interlocução no qual as pessoas se constituem e através do qual sentimentos, opiniões, valores e preconceitos são veiculados." (p. (p. 31)

- "Considerando que a linguagem é processo no qual as pessoas se constituem (…)" (p. 32)

Ainda sob o aspecto das práticas lingüísticas e sua ligação com "valores, normas e atitudes", relativamente a prestígio e preconceito, o documento oficial do MEC traz uma série de observações que podem ser vistas também na relação fala-escrita. Por exemplo:

- respeito às variedades lingüísticas;

- reconhecimento dos domínios da oralidade e da escrita como valiosos.

Mesmo que não concordemos com algumas linhas teóricas ali explicitadas, trata-se de um avanço e pode-se dizer que os PCNLP são uma evidência interessante de como a teoria lingüística pode influenciar de maneira decisiva o ensino de língua materna, uma área particularmente resistente a inovações. No caso brasileiro, trata-se de uma drástica inovação e em certos pontos com teorias que sequer foram ainda suficientemente desenvolvidas e quase não tiveram oportunidade de serem testadas.

12. Exemplificando o papel da Lingüística no ensino de língua É sempre ilustrativo analisar alguns exemplos a título de demonstração de como a teoria lingüística poderia frutificar no ensino, esclarecendo certas questões bastante

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complexidade e sugerindo formas de tratamento da própria variação lingüística na produção textual. Aliás, a perspectiva de tratamento da língua pela via textual tem a grande vantagem de permitir a análise e a compreensão de questões de outro modo não tratadas. Tal é o caso da progressão referencial, progressão temática, coesão, coerência, argumentação, processos metafóricos e muitos outros. O exemplo (1) reproduz a redação de uma aluna de 10 anos e me foi cedido pela mestranda em Educação, Mary Jane, da Universidade Federal de Sergipe. Observe-se que neste caso se trata de seqüências com uma referenciação tida como bastante lacunosa, mas que não oferece dificuldade de compreensão. Além disso, o texto apresenta uma série de outros aspectos, por exemplo, no caso de concordâncias, sem falar na introdução de personagens de modo abrupto e uma aparente desorganização dos fatos narrados. Contudo, não se pode dizer que não se trata de um texto compreensível. Vejamos o texto:

(1) 1 O outro lado da ilha2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 28 29

Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. Quando eles chegam eles vão logo explorando a ilha e explodem uma barreira que os impediam de passar para o outro lado da ilha. Quando eles foram dormir eles perceberam que os bezerros começaram a correr e que quando eles foram ver o que estava assustando os bezerros. Quando eles de repente, com uma patada só um caranguejo gigante os atacou. Debora que era sua ezposa começou a chorar dizendo que queria ir embora. Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que o barco não estava lá. Os homens saíram para explorar a ilha, e no meio do caminho encontraram um caranguejo que estava no penhasco. Eles não quizeram saber e atiraram no caranguejo que caio ribancera a baixo. Mais o marido de Debora, desmaiou e seu irmão não tinha como ajudá-lo, por isso foi chamar ajuda. Quando chegou em casa chamou logo seu sobrinho Ivan para ajudar ele a trazer seu irmão. Quando os dois chegaram lá ele não estava mais lá. Quando eles estavam voltando, Ivan teve a idéia de fazer um farol com a torre que havia na ilha. Ele foi com sua prima e com seu cachorro. E tudo deu certo, mas quando eles estavam indo embora da ilha, os caranguejos estavam na porta da torre fazendo com que eles não pudessem sair daquele labirinto. Eles dois tiveram várias idéias mais nenhuma dava certo. Em casa Debora havia avistado seu marido chegando com um homem. Na torre Ivan teve a idéia de jogar a lanterna a querozene nos caranguejos. Quando eles jogaram-na nos caranguejos eles sairam correndo em direção a mata e com isso a mata pegou fogo. Da casa dava pra ver o fogo, então todos saíram correndo para apagar o fogo. Eles apagaram o fogo e foram dormir e quando acordaram avistaram um barco e foram embora. Do ponto de vista da progressão referencial temos aqui uma série de anáforas indiretas, cujos referentes não estão explicitados no cotexto (âmbito do discurso explicitado verbalmente). A anáfora indireta, ao contrário da anáfora direta (correferencial) não é uma estratégia de reativação de referentes, tal

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como se imaginou que seriam todas as anáforas. Apesar de pouco tratada no ensino, ela é responsável por cerca de 60% das estratégias de referenciação textual. Só isto justifica seu tratamento detido. Mas há muito mais questões envolvidas, tais como processos de compreensão, relação fala-escrita e níveis de linguagem. Vejam-se alguns casos desses presentes no exemplo acima.

a. (linhas 2 e 3): Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. Quando eles chegam... Certamente, ninguém fica em dúvida quanto aos indivíduos potencialmente referidos pelo pronome eles [PAI, MÃE, FILHO, IRMÃO, MARIDO, ESPOSA...], embora não haja antecedente pontualizado, mas um modelo cognitivo adequado para que se dê a inferência construtiva ancorada em [UMA FAMÍLIA]. É interessante valorizar aqui o conhecimento que a menina tem das noções de parentesco como estruturadoras de texto. Basta olhar os casos das linhas (15, 16 e19). Há inclusive entidades [PRIMO, SOBRINHO, TIO] não necessariamente presentes na noção de família em sentido estrito, mas que podem ser ativadas por esse item na conjugação com conhecimentos de mundo ligados ao fato. A estratégia de uso pronominal sem antecedente é mais usual na fala, por isso a gramática a condena na escrita Em (b) temos outro caso que se dá por uma anáfora indireta ativada por sintagmas nominais e não pronomes:

b.(linhas 2-3 e 8-9): Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias...// Debora que era sua ezposa começou a chorar dizendo que queria ir embora. Um nome próprio usado na forma descritiva como anáfora, [DÉBORA QUE ERA SUA EZPOSA], pode ter caráter anafórico sem reativar nem retomar elementos mencionados. Novamente se dá a introdução de um referente novo como se fosse conhecido. É uma estratégia de organizar os referentes na relação dado-novo fora do padrão usual como em (c):

c. (linhas 2-3 e 10-11): Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. /.../ Quando amanheceu eles foram ver como estava o barco, para ir embora e perceberam que o barco não estava lá. A ninguém ocorre indagar de onde vem [O BARCO] aqui mencionado. A coerência e a conseqüente continuidade tópica é produzida por uma anáfora indireta inferencial ancorada no mundo textual [IR A UMA ILHA = VIAJAR DE BARCO PELO MAR]. Vejamos:

d. (linhas 2-3; 8-9; 11-17): Essa história começa com uma família que vai a uma ilha passar suas férias. /.../ Debora que era sua ezposa começou a chorar dizendo que queria ir embora. /.../ Os homens sairam para explorar a ilha, e no meio do caminho encontraram um caranguejo que estava no penhasco. Eles não quizeram saber e atiraram no caranguejo que caio ribancera a baixo. Mais o marido de Debora, desmaiou e seu irmão não tinha como ajudá-lo, por isso foi chamar ajuda. É fácil notar que em (d) o referente do SN descritivo, [O MARIDO DE DÉBORA], ancora em uma família que se compõe de [MARIDO, ESPOSA...] e na especificação prévia já introduzida, Debora que era sua ezposa, a partir de um frame de família. Sabemos inclusive que o SN os homens refere os dois homens da família [MARIDO; IRMÃO DO MARIDO].

e. (linhas 24-28): Na torre Ivan teve a idéia de jogar a lanterna a querozene nos caranguejos. Quando eles1 jogaram-na nos caranguejos eles2 sairam correndo em direção a mata e com isso a mata pegou fogo. Seguramente, a determinação da atribuição referencial de eles1 (=Ivan e seu sobrinho) e eles2 (=os caranguejos) com referentes diferentes se dá após a última parte do enunciado [E COM ISSO A MATA PEGOU FOGO], na medida em que entendemos que "a mata pegou fogo porque os caranguejos incendiados sairam correndo...". Trata-se de uma ancoragem catafórica num tópico frasal prospectivo e não em itens lexicais. Sabemos que a mata pegou fogo porque a lanterna a querozene foi jogada nos caranguejos que saíram correndo.

Vejamos aqui outro caso interessante que merece nossa atenção por algumas características que permitiram inferenciações complexas, diversificadas e desencontradas por parte dos indivíduos envolvidos no episódio narrado. De início, nos interessará o caso mais curioso do surgimento abrupto de um "pastor" a certa altura da narrativa. Observemos o texto: (2) A reunião no condomínio 1 2 3 4 5 6 7

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8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24

Outro dia teve uma reunião no condomínio que meu colega de trabalho Osvaldo mora, o condomínio fica no Jardim Garcia. Ele comentou que chegou um pessoal da Unicamp para participar dessa reunião que seria referente a uma ação contra a CEF (Caixa Econômica Federal) juntamente com os advogados que eles contrataram. Só que esse pessoal quando chegou no condomínio procuraram logo o apartamento 12, mas esqueceram de falar o bloco que pertencia, sendo assim o porteiro mandou eles para o primeiro bloco, porque sabia que lá estaria acontecendo uma reunião também. Chegando nesse apartamento 12, a porta já estava aberta e um monte de cadeiras em círculo. Acharam estranho, mas afinal a maioria das reuniões fazem um círculo justamente para facilitar a conversa. Bom, logo que chegaram o pessoal que já se encontrava no apartamento foram logo gentilmente chamando-os para entrarem, então sentaram no círculo e acharam mais estranho ainda porque afinal de contas não tinha nenhum conhecido, mas como era ainda um pouco cedo e a reunião iria começar somente às 22.00 hs, resolveram esperar, tão logo iniciou-se a reunião uma pessoa ficou em pé e disse: - O Senhor esteja convosco, logo em seguida todos ficaram em pé e responderam: - Ele está no meio de nós. Todos ficaram atrapalhados e não sabiam o que fazer, foi aí que viram a mancada que eles deram, entraram no apartamento 12, mas do bloco errado, sem graça e disfarçadamente saíram devagarinho para que ninguém notassem a ausência deles, mas foram infelizes nessa hora, porque o pastor logo que viu eles saindo lhes disse: - Deus acompanhem, mesmo que você não queiram ficar conosco. Abaixaram a cabeça e saíram todos pedindo desculpas e completamente desconsertados dessa reunião. Vejamos três momentos diversos que parecem sugerir três tipos de anáfora indireta e um caso de progressão referencial baseado em anáforas diretas, embora nem sempre com retomadas.

(i) o pastor logo que viu eles disse...

Aqui temos um caso típico de anáfora indireta que envolve aspectos textuais no processo inferencial. Trata-se do repentino surgimento do SN nominal definido "o pastor", dado como conhecido sem ter sido mencionado antes. É fácil observar o surgimento desse referente na parte final do texto: o pastor (linha 21) que se acha ligado ao contexto precedente que lhe serve de âncora. Ele é inferido com base no modelo do mundo textual produzido nos espaços mentais construídos em especial na linhas sublinhadas (linhas 15-17). Temos ali um enquadre sócio-cognitivo no modelo idealizado em relação ao papel e ao comportamento de um Ministro da Igreja [O PASTOR]. Só ele poderia ter iniciado a reunião daquela forma ("O senhor esteja convosco") e só um grupo de pessoas nessas circunstâncias responderia daquela forma ("Ele está no meio de nós"). (ii) o porteiro mandou ...

Já na (linha 7) temos um caso claro de anáfora indireta de natureza cognitiva (modelos cognitivos ou enquadres sócio-cognitivos); um condomínio pode ter um porteiro, mas ele não é parte do condomínio assim como um dedo é parte da mão. Um porteiro entra no nosso enquadre de condomínio, ou de prédio em geral. O certo é que a inferência a respeito do mencionado porteiro se dá mediante um modelo cognitivo idealizado no qual há papéis especiais exercidos por um indivíduo que se acha geralmente num prédio e com uma função muito específica. Ninguém pergunta de onde vem aquele [O PORTEIRO], pois é comum haver uma figura dessas num enquadre tal como o que aqui se achava em andamento. (iii) a porta estava aberta Diferentemente do que se observa em (ii), a porta é parte integrante do prédio e do apartamento; mantém uma relação de parte-todo com ambos como no caso da (linha 8) em que aparece uma "porta aberta" pela qual eles naturalmente entram. Esta é uma anáfora indireta de natureza mereológica, já que a porta é parte do

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apartamento em questão (qualquer apartamento tem porta). Essa possibilidade inferencial acha-se inscrita no léxico. A diferença entre os dois tipos de anáfora indireta presentes em (ii) e (iii) traz uma importante indagação sobre a organização lexical: o que está ou não no léxico? E também sobre as relações mereonímicas, hiper- e hiponímicas, bem como sobre a construção de modelos cognitivos que se dão pelo trabalho sócio-cognitivo e não pela via do léxico. Outro caso é o que se observa no conjunto (iv) com progressões referenciais ligadas a anáforas diretas/indiretas no contexto de um quadro mais amplo de referenciação.

(iv) reunião (a) e (b); apartamento 12 (a) e (b); bloco (a) e (b) e condomínio (a)

O problema que mereceu da narradora esse relato curioso não foi a presença do pastor nem do porteiro ou da porta aberta, mas sim a dificuldade em encontrar os referentes dos SN que permitiam duas possibilidades de identificação referencial (caso típico de subespecificação lexical quanto à saturação cognitiva). Isto significa que de certo modo é mais fácil estabelecer as relações referenciais indiretas que as diretas. O motivo da confusão foram as inferências indevidas sob o ponto de vista da identificação referencial. Aqui as funções (os itens lexicais em si) foram tratadas como valores. Observe-se que "o pessoal" foi a um condomínio (que tem mais de um apartamento, mais de um bloco etc.), em busca do apartamento 12 e acharam um apartamento 12 em que ocorreria uma reunião, mas essa não era a reunião procurada nem o apartamento se localizava no bloco certo. Vejamos mais uma vez o texto, sublinhando os diversos SN operadores: 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22 23 24

Outro dia teve uma reunião (1) no condomínio (2) que meu colega de trabalho Osvaldo mora, o condomínio (3) fica no Jardim Garcia. Ele comentou que chegou um pessoal da Unicamp para participar dessa reunião (4) que seria referente a uma ação contra a CEF (Caixa Econômica Federal) juntamente com os advogados que eles contrataram. Só que esse pessoal quando chegou no condomínio (5) procuraram logo o apartamento 12 (6), mas esqueceram de falar o bloco (7) que pertencia, sendo assim o porteiro mandou eles para o primeiro bloco (8), porque sabia que lá estaria acontecendo uma reunião (9) também. Chegando nesse apartamento 12 (10) , a porta já estava aberta e um monte de cadeiras em círculo. Acharam estranho, mas afinal a maioria das reuniões (11) fazem um círculo justamente para facilitar a conversa. Bom, logo que chegaram o pessoal que já se encontrava no apartamento (12) foram logo gentilmente chamando-os para entrarem, então sentaram no círculo e acharam mais estranho ainda porque afinal de contas não tinha nenhum conhecido, mas como era ainda um pouco cedo e a reunião (13) iria começar somente às 22.00 hs, resolveram esperar, tão logo iniciou-se a reunião (14) uma pessoa ficou em pé e disse: - O Senhor esteja convosco, logo em seguida todos ficaram em pé e responderam: - Ele está no meio de nós. Todos ficaram atrapalhados e não sabiam o que fazer, foi aí que viram a mancada que eles deram, entraram no apartamento 12 (15), mas do bloco (16) errado, sem graça e disfarçadamente saíram devagarinho para que ninguém notassem a ausência deles, mas foram infelizes nessa hora, porque o pastor logo que viu eles saindo lhes disse: - Deus acompanhem, mesmo que vocês não queiram ficar conosco. Abaixaram a cabeça e saíram todos pedindo desculpas e completamente desconsertados dessa reunião (17).

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Temos aqui 17 ocorrências de expressões referenciais seqüencialmente ordenadas que se relacionam, mas não têm os mesmos referentes em todos os casos, mesmo quando aparecem na forma de SN definido e identidade formal do item, o que para a Lingüística de Texto tradicional deveria designar o mesmo referente na cadeia referencial. Observem-se as seqüências aqui pareadas na linha das equivalências referenciais pretendidas pela narradora:

A. [[A REUNIÃO PROCURADA] º [uma reunião (1)] º [dessa reunião (4)] º [a reunião (13)]]

B. [[A REUNIÃO EQUIVOCADA] º [uma reunião (9)] º [a reunião (14)] º [dessa reunião (17)]]

C. [[REUNIÃO GENÉRICA] º [as reuniões]]

D. [[O CONDOMÍNIO PROCURADO] º [no condomínio (2) º o condomínio (3) º no condomínio (5)]]

E. [[O APARTAMENTO PROCURADO] º [o apartamento 12 (6)] ]

F. [[O APARTAMENTO EQUIVOCADO] º [nesse apartamento 12 (10) º [no apartamento 12 (12) º [no apartamento 12 (15)]]

G. [[O BLOCO BUSCADO] º [ o bloco (7)]]

H. [[O BLOCO EQUIVOCADO] º [ o primeiro bloco (8)] º [do bloco (16)]] Embora tenhamos apenas 4 itens lexicais (quatro tipos léxicos) constituindo o núcleo dos dezessete SNs, temos 8 cadeias referenciais (oito tipos referentes). É interessante como a narradora joga com repetições e, na maioria das vezes, com SN definidos, sem causar dificuldades aos seus leitores quanto à identificação das cadeias. Isto se dá pelo recurso a certos artifícios como os demonstrativos e a relação de contigüidade dos SN com outros elementos identificadores. O processo referencial é um trabalho inferencial no contexto sócio-cognitivo e nos enquadres estabelecidos e não só pela força dos conteúdos lexicais. Aspecto interessante a ser discutido seria a questão das concordâncias verbais que obedecem a um sistema cognitivo e não à morfologia como tal.

Vejam-se:

· o pessoal ... procuraram... (linha 6) · a maioria das reuniões fazem... (linha 11) · o pessoal... foram... (linha 13) · ninguém notassem... (linha 23)

A congruência não se acha no plano das formas e sim da cognição. A abordagem destes dois breves exemplos já permite mostrar como se poderia tratar a progressão referencial no ensino. Além disso, evidencia um aspecto importante pouco considerado, tal como é o caso da progressão referencial. Trata-se muito dos operadores argumentativos (os conectivos) e desleixam-se os elementos lexicais que fazem as conexões tópicas. Isto é suficiente para identificar aspectos em que a Lingüística enquanto ciência pode ser relevante e ter um papel importante no ensino de língua. Este papel é essencial, tanto no ensino de língua materna como de segunda língua.

13. A inegável influência da noção de línguaNesta breve revoada pela Lingüística (em vôo livre), vimos alguns dos momentos importantes da Lingüística no século XX e sua relevância no ensino de língua traduzidos em cinco noções de língua. Nessas observações, o papel da lingüística se afigura quase incontornável. A tese central era a de que a depender da noção de língua se dá uma diferente influência no ensino de língua. E assim é que se dão as diferentes influências no ensino a partir de: a. Língua como fator de identidade nacionalb. Língua como sistema de regrasc. Língua como fenômeno sociald. Língua como forma de açãoe. Língua como atividade sócio-interativa

Por outro lado, foi fácil perceber como as perspectivas teóricas mais produtivas e diretamente aplicáveis são aquelas que tratam a língua em uso e no seu formato mais comum, isto é, no formato textual. Daí as perspectivas textuais-discursivas que compreendem a língua como fenômeno sócio-interativo, histórico e cognitivo, serem as mais influentes no ensino. Parece forçoso concluir que, apesar de a ciência lingüística ser relativamente

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jovem e sua consolidação mal ter começado, seus efeitos fazem-se sentir cada vez mais e com maior intensidade no ensino de língua. Tudo indica que estamos melhor sabendo como superar o dilema e o paradoxo a que aludi logo no início desta exposição. Estamos conseguindo ir além da dicotomia entre teoria e prática. Seguramente, grande parcela dos conhecimentos lingüísticos hoje disponíveis foram desenvolvidos nos últimos 50 anos. Neste período, dentre os princípios mais importantes da Lingüística contemporânea, sem ater-nos a uma ou outra corrente, e indicando só o que é de maior relevância para o ensino de língua, resumidamente, encontramos os seguintes:

a. A língua apresenta uma organização interna sistemática que pode ser estudada cientificamente, mas ela não se reduz a um conjunto de regras de boa-formação que podem ser determinadas de uma vez por todas como se fosse possível fazer cálculos de previsão infalível. As línguas naturais são dificilmente formalizáveis.

b. A língua tem aspectos estáveis e instáveis, ou seja, ela é um sistema variável, indeterminado e não fixo. Portanto, a língua apresenta sistematicidade e variação a um só tempo.

c. A língua se determina por valores imanentes e transcendentes de modo que não pode ser estudada de forma autônoma, mas deve-se recorrer ao entorno e à situação nos mais variados contextos de uso. A língua é, pois, situada.

d. A língua constrói-se com símbolos convencionais, parcialmente motivados, não aleatórios mas arbitrários. A Língua não é um fenômeno natural nem pode ser reduzida à realidade neurofisiológica.

e. A língua não pode ser tida como um simples instrumento de representação do mundo como se dele fosse um espelho, pois ela é constitutiva da realidade. É muito mais um guia do que um espelho da realidade.

f. A língua é uma atividade de natureza sócio-cognitiva, histórica e situacionalmente desenvolvida para promover a interação humana.

g. A língua se dá e se manifesta em textos orais e escritos ordenados e estabilizados em gêneros textuais para uso em situações concretas.

h. A língua não é transparente, mas opaca, o que permite a variabilidade de interpretação nos textos e faz da compreensão um fenômeno especial na relação entre os seres humanos.

i. Linguagem, cultura, sociedade e experiência interagem de maneira intensa e variada não se podendo postular uma visão universal para as línguas particulares.

Concluindo, diria que, não obstante as muitas análises pessimistas que até hoje foram feitas a respeito da influência da Lingüística no ensino de línguas, alguns lamentando a excessiva influência e outros lamentando a pouca influência, pode-se dizer que a Lingüística passou a ter um papel progressivamente mais visível no ensino de língua a partir dos anos 70. Uma análise acurada dos manuais de ensino de língua em todas as suas modalidades mostrará que de algum modo a Lingüística esteve sempre presente, algumas vezes mais e outras vezes menos; algumas vezes bem outras vezes mal assimilada. No geral, houve e continua havendo uma certa defasagem na aplicação dos princípios lingüísticos ao ensino. Mas tudo leva a crer que nunca o papel da Lingüística no ensino de línguas se fez notar tanto como hoje em dia.

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