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    INSTITUTO DE ESTUDOS ECONÔMICOS E INTERNACIONAIS

    IEEI-BR

    GOVERNANÇA GLOBAL: O PAPEL DAS

    INSTITUIÇÕES MULTILATERAIS NOS TEMASECONÔMICOS E SOCIAIS 

    BACKGROUND PAPER

    Dezembro 2005

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    BACKGROUND PAPER

    GOVERNANÇA GLOBAL: O PAPEL DAS INSTITUIÇÕES

    MULTILATERAIS NOS TEMAS ECONÔMICOS E SOCIAIS*

     

    SUMÁRIO

    1. Governança Global e Governabilidade ..........................................................................2

    2. Governabilidade e Interesses Hegemônicos na Globalização ......................................7

    3. A opção atual dos EUA de governança global ............................................................ 18

    4. Alternativas à Governança Global .............................................................................. 19

    5. Instituições multilaterais e Governança Global ......................................................... 23

    5.1. O caso da ONU ......................................................................................... 23 

    5.2. O caso do FMI e do Banco Mundial ....................................................... 25 

    5.3. O caso da OMC......................................................................................... 28 

    6. Cooperação Bilateral União Européia e América Latina: Perspectivas àGovernança Global ........................................................................................................... 31

    6. Bibliografia........ .............................................................................................................36

    *  Este  Background Paper   foi elaborado pela equipe do IEEI-BR (Instituto de Estudos Econômicos eInternacionais – Brasil), coordenada por seu Presidente Gilberto Dupas com a contribuição de MarceloFernandes de Oliveira (Cientista Político) e Adalton César da Luz Oliveira (Economista).

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    1. Governança Global e Governabilidade

    O adensamento da globalização nos anos 1990 passou a demandar o desenvolvimento

    de estruturas de governança multicêntrica global que sejam eficazes na construção de

    soluções para os problemas sistêmicos internacionais, tais como mudanças climáticas,

    AIDS, crises financeiras, comércio desleal, subsídios agrícolas, etc. A Comissão sobre

    Governança Global da ONU definiu essa governança multicêntrica global como a

    totalidade das maneiras pelas quais indivíduos e as instituições públicas e privadas

    administram seus problemas comuns, num “amplo, dinâmico e complexo processo

    interativo de tomada de decisão que está constantemente evoluindo e se ajustando a novas

    circunstâncias”.Para James Rosenau, governança refere-se a atividades apoiadas em objetivos comuns

    que podem ou não derivar de responsabilidades legais e formalmente prescritas e não

    dependem, necessariamente, do poder de polícia para que sejam aceitas e vençam

    resistências. Em outras palavras, governança é um fenômeno mais amplo do que governo;

    abrange as instituições governamentais, mas implica também mecanismos informais e

    formais, de caráter não-governamental, que façam com que as pessoas e as organizações

    dentro da sua área de atuação tenham uma conduta determinada, satisfaçam necessidades e

    respondam a demandas. Portanto, a governança é um sistema de ordenação que depende de

    sentidos intersubjetivos, mas também de constituições e estatutos formalmente instituídos.

    Assim, esse sistema de ordenação só funciona se for aceito pela maioria; ou, pelo menos,

     pelos atores mais poderosos do seu universo. Enfim, podemos interpretar a governança

    como a capacidade de se induzir atores estatais e não-estatais a seguirem comportamentos

     padronizados sem a existência da competência legal tradicional que ordene que isso ocorra

    de fato.

    Logo, a medida da evolução da governança global deve ser a eficácia. Por sua vez,

    essa eficácia depende da existência de estruturas institucionais que exerçam a capacidade

    de governo ao nível global, possuindo a virtude da governabilidade para fazer valer leis,

    normas e regras emanadas pelas instituições internacionais. Historicamente, o exercício da

    governabilidade necessita de instrumentos que, em última análise, são viabilizados pelo

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    monopólio legítimo da violência, o qual é prerrogativa dos Estados. A governança global

    inaugura uma esfera própria das instituições internacionais. Ou seja, a efetividade das

    normas, regras e resoluções emitidas pelas instituições responsáveis pela governança global

    na sociedade internacional depende de Estados que reconheçam sua legitimidade; estejam

    dispostos a obedecer e tenham capacidade efetiva de governabilidade para fazer com que os

    atores sob sua jurisdição as cumpram.

    Essa definição avança pouco no que se refere à natureza das regras e das obrigações

    entre as partes, na precedência dos direitos gerais sobre os individuais, na necessidade de

    cumprimento dos acordos e nas sanções decorrentes. Tullo Vigevani propõe uma definição

    mais precisa e delimitada sobre a governança global: “A idéia de governabilidade tem a ver

    com a de comunidade mundial, ao introduzir a possibilidade de princípios visando o bem

    comum: se há comunidade, há obrigações e, conseqüentemente, há regras que a todosobrigam. Quem as viola está sujeito a que a comunidade o censure”. Por outro lado, a maior

    dificuldade para alcançar-se um padrão de coerência que viabilize o bem comum é a falta

    de dois princípios: o da igualdade entre os membros da comunidade; e o de que o bem do

    todo tem precedência sobre o bem da parte.

     No pós-Segunda Guerra Mundial esse problema parece razoavelmente equacionado

    no eixo capitalista. O ciclo virtuoso de crescimento econômico, que perdurou até os anos

    1970, esteve vinculado à existência de mecanismos de governança global que

     possibilitaram a manutenção dos equilíbrios macroeconômico internacional, das regras de

    comércio e de relações econômicas internacionais, as quais possibilitaram aos Estados

    nacionais ampla capacidade de governabilidade. Os Acordos de Bretton Woods, de julho de

    1944, previram a necessidade de um incremento de cooperação entre os países capitalistas,

    visando tanto a ampliação do comércio internacional quanto a criação dos instrumentos

    institucionais para um modelo de desenvolvimento que evitasse a desordem econômica, o

     protecionismo, a não conversibilidade e as restrições ao comércio. Sob patrocínio dos

    Estados Unidos três grandes instituições internacionais foram criadas para incrementar a

    governança global: o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial (BIRD) e a

    Organização Internacional do Comércio (OIC). No Acordo estabeleceram-se os princípios

    de funcionamento do FMI. Seu papel seria manter a estabilidade das taxas de câmbio e

    auxiliar, através de empréstimos financeiros especiais, os países com dificuldades em seu

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     balanço de pagamentos. O objetivo seria evitar que esses países, ao entrarem em situação

    de crise financeira devido a desequilíbrios em suas contas internas ou externas,

    restringissem o comércio lançando mão de desvalorizações cambiais na tentativa de

    equilibrar suas contas. O BIRD teria como funções tanto garantir recursos suficientes para a

    reconstrução das nações atingidas pela guerra quanto promover e apoiar projetos de

    desenvolvimento dos países que a ele recorressem. Nos dois casos, é importante notar que o

    regime decisório instituído vinculava-se diretamente às cotas de capital que cada país

    detinha e detém na instituição. Desse modo, o papel dos Estados Unidos ganhou relevância,

    condicionando o próprio funcionamento dessas instituições, cujas sedes se estabelecem em

    Washington. Entretanto, essas instituições de governança global, para além da projeção do

     poder norte-americano, efetivamente, possibilitaram aos Estados devassados pela Segunda

    Guerra Mundial reconstruírem suas economias e, principalmente, sua capacidade degovernabilidade. Em outras palavras, a liderança e o exercício benigno da hegemonia pelos

    Estados Unidos e sua influência na consolidação de mecanismos de governança global

    trouxe benefícios difundidos para o sistema internacional.

    A última instituição de governança global estabelecida foi a Organização

    Internacional do Comércio, com a intenção de estabelecer e fazer funcionar um novo

    regime para o comércio internacional baseado nos princípios da democracia, do liberalismo

    e do multilateralismo. A conferência internacional para a sua criação realizou-se em Cuba,

    de novembro de 1947 a março de 1948, quando foram negociados os termos para sua

    implantação e funcionamento, e que resultaram na Carta de Havana. Este documento nunca

    foi ratificado pelo Congresso dos Estados Unidos visto que a grande maioria dos

    congressistas receava que ele restringisse a soberania do país no tocante ao comércio

    internacional. Acrescente-se o fato de que o Congresso é constitucionalmente detentor dos

     poderes em relação ao comércio internacional e não parecia disposto a delegá-los à

    Administração e ao Presidente. A não abdicação de qualquer espécie de poder de soberania

    era questão essencial para o Congresso, tendo sido objeto de discussão no final de 1944 no

    tocante às Nações Unidas. O sistema de veto no Conselho de Segurança, que assegura aos

    membros detentores deste poder a proteção a qualquer risco para a própria soberania

    nacional, acabou por permitir a superação das dificuldades de ratificação pelo Congresso

    norte-americano do acordo da Conferência de São Francisco que aprovou a carta das

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     Nações Unidas, em junho de 1945. O voto por cotas no FMI e no BIRD também garantiu a

    segurança considerada necessária pelos Estados Unidos.

    Um Acordo Provisório entre 23 países, inclusive os EUA, definiu a adoção do

    trecho relativo a Carta de Havana para as negociações de tarifas e regras sobre o comércio

    internacional; mais tarde, ele passou a ser denominado Acordo Geral sobre Tarifas e

    Comércio (General Agreement on Tariffs and Trade - GATT ). Depois de 1947, o GATT

    tornou-se efetivamente, pelo direito consuetudinário um órgão internacional. Com sede em

    Genebra, forneceu sistematicamente a base institucional para a consolidação de diversas

    rodadas de negociações multilaterais sobre comércio internacional, zelando por seu efetivo

    cumprimento até o final da Rodada Uruguai, concluída com a criação da Organização

    Mundial do Comércio (OMC), em 1995. Tanto o GATT quanto a OMC tiveram e têm o

    objetivo de liberalizar o comércio entre os países-membros. As prescrições básicas doGATT incluíam a abolição do uso de quotas, assim como de restrições quantitativas ou

    quaisquer outras barreiras ao comércio internacional, sendo as tarifas aduaneiras o único

    instrumento permitido, com a condição de serem paulatinamente reduzidas.

    O resultado do conjunto das normas e regras formuladas por essas instituições de

    governança global no pós-45, patrocinadas pelos EUA, foi a consolidação de um ciclo

    virtuoso de crescimento econômico baseado no fordismo como modo de produção e na

    intervenção do Estado na economia, tanto como gerador de infra-estrutura básica, quanto de

     provedor direto e indireto de capitais a baixos custos. O Estado seria também responsável

     pela criação e sustentação de uma ampla rede de benefícios sociais à sua população, que

    viabilizaria aquele círculo virtuoso, tendo como pressuposto a continuidade do consumo.

    O objetivo desta estratégia foi gerar desenvolvimento tendo como base a

    manutenção constante de demanda, ou seja, a procura por novos produtos incentivaria as

    empresas a investirem crescentemente na produção, seja para o aumento de escala, seja

     para a renovação tecnológica. A inventividade associada à produção de novos produtos

     para o mercado traria retorno em termos de remuneração do capital através da ampliação do

    mercado associado à emergência de consumidores, os quais viveriam num contexto de

     pleno emprego e com benefícios sociais relativamente garantidos pelo Estado.

    Pelo menos até a metade dos anos 60 foi possível a retroalimentação desse ciclo, o

    que levou Hobsbawm (1995) a considerar esta fase como a “Era de Ouro do Capitalismo”.

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    É verdade que, no mesmo período, a prevalência dos Estados Unidos no plano político foi

    contestada em diferentes terrenos, mas a força econômica do sistema revelou-se efetiva e

    não pareceu ameaçada pela diminuição relativa do peso do país. O ressurgimento europeu

    ocidental e japonês, ainda nos anos 50, apenas serviu para mostrar o vigor da economia

    mista, ou do embedded capitalism.

    Como sabemos, o adensamento da globalização, que passou a demandar novas

    estruturas de governança global no final do século XX, contribuiu para desarticular esse

    modelo de desenvolvimento e, com ele, a capacidade de governabilidade da maioria dos

    Estados nacionais, minando-lhes o papel de gestor da coisa pública. Os mecanismos de

    governança global que sustentaram a reconstrução no pós-Segunda Guerra Mundial,

    sobretudo por meio da promoção da retomada da capacidade de governabilidade dos

    Estados nacionais, passaram a demonstrar seus limites a partir da crise dos anos 1970,aprofundando-se nos anos 1980. O Estado soberano, tal como era conhecido até então,

     passou a sofrer mudanças significativas, que tinham o fim último de adequar o

    comportamento estatal ao novo contexto internacional permeado por uma agenda

    “neoliberal”. O cerne dessa agenda encontra-se condensado no slogan “menos estado e

    mais mercado”. O Estado passou a limitar-se a exercer funções fundamentais na lógica

    liberal. Com isso ele foi perdendo parcelas significativas da sua soberania vis-à-vis 

    instituições de governança global, as quais passaram a propor novas normas e regras

    internacionais que, na prática, levaram à redução da capacidade de governabilidade dos

    Estados nacionais. As estruturas de governança global no final do século XX produziram

    normas e regras a serem seguidas pelos Estados soberanos. Logo, fragilizando-os diante da

    lógica da globalização.

     No entanto, se governança significa conceitos e práticas internacionais que atendem

    apenas aos interesses de um número restrito de nações, ela terá poucas possibilidades de se

    consolidar em longo prazo. Daí a importância de analisar como o FMI, o BM, a OMC e a

    ONU têm influído e colaborado na governança global contemporânea; basta verificar se

    essas instituições procuram atender apenas aos interesses sistêmicos de governança dos

    maiores atores envolvidos ou, mais ainda, do atual país hegemônico, os Estados Unidos, em

    contraposição ao que ocorreu no pós-Segunda Guerra Mundial quando as instituições de

    governança global serviram exatamente para reforçar a capacidade de governabilidade do

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    Estado soberano em prol do desenvolvimento econômico. Na próxima seção, discutiremos

    essa questão à luz da realidade contemporânea.

    2. Governabilidade e Interesses Hegemônicos na Globalização

    Antes de tudo, vamos definir o que entendemos aqui por hegemonia. Utilizando

    conceitos de Giovanni Arrighi e Antonio Gramsci, designamos hegemonia como a

    liderança associada à capacidade de um Estado de se apresentar como portador de um

    interesse geral, e ser assim percebido pelos outros, ainda que as teses que defenda e as

    ações que pratique beneficiam mais a si mesmo. Portanto, a nação hegemônica é aquela que

    conduz o sistema de nações a uma direção desejada por ela; mas, ao fazê-lo, consegue ser

     percebida como buscando o interesse geral. Para tanto, as soluções oferecidas pela naçãohegemônica devem criar contínuas condições de governabilidade dos Estados nacionais,

    respondendo à demanda das outras nações pressionadas por suas próprias tensões. Se isso

    não ocorrer, e os interesses perseguidos visarem unicamente objetivos do próprio

    hegêmona, esse sistema de poder transforma-se em tirania imperial; e ela só poderá ser

    mantida com graus variáveis de coerção.

    De fato, a partir das duas décadas finais do século XX, como indicamos, passou a

    imperar uma nova lógica global. A intensa aceleração da globalização dos mercados e a

    abertura dos grandes países da periferia a produtos e capitais internacionais, a partir dos

    anos 1980, coincidiram com a necessidade das corporações transnacionais de ampliarem

    seus mercados e sua produção de modo a operar com as maiores escalas e os menores

    custos possíveis. A manutenção da liderança tecnológica exigia geração de caixa cada vez

    maior para investimento em tecnologia de ponta. E as tecnologias da informação

     possibilitavam um fracionamento intenso da lógica de fabricação, em busca de facilidades

    de produção onde quer que estivessem, fossem elas proximidade dos mercados, mão-de-

    obra barata, flexibilidade das normas ambientais, economias fiscais ou clusters 

    tecnológicos. O capitalismo global apossou-se por completo dos destinos da tecnologia,

    orientando-a exclusivamente para a criação de valor econômico. A liderança tecnológica

     passou basicamente a determinar os padrões gerais de acumulação. As conseqüências dessa

    autonomização da técnica com relação a valores éticos e normas morais definidos pela

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    sociedade é um dos mais graves problemas de governabilidade com que tem de se

    confrontar este novo século. Precisa-se urgentemente definir esferas de governabilidade

    sobre essa questão, a qual, na atualidade encontra-se na órbita privada.

    A globalização contemporânea, regida pela lógica econômica e apoiada pelas

    instituições internacionais, é uma força normativa e política decisiva. Com isso, os

    conceitos de soberania e nacionalismo que prevaleceram durante o século XX tem sido

    confrontados com a progressiva tensão entre protecionismo e abertura. No novo padrão o

    regime neoliberal decide, através de instrumentos como o investiment-grade – que

    considera basicamente a avaliação final quanto à competência de um país de pagar as suas

    dívidas internacionais – quem se comportou conforme as expectativas e, assim, quem estará

    incluído ou excluído do jogo global; esses últimos sofrerão as duras sanções do fluxo de

    investimentos internacionais. São condições indispensáveis para uma boa pontuação: gestãomonetária de acordo com as regras do FMI, reformas políticas ditadas por objetivos

    econômicos, metas rígidas de inflação, orçamento superavitário, liberação do comércio,

    liberdade de capitais, Estado social reduzido ao mínimo. Se essas políticas conduzem a

    crises – a Argentina recente foi um exemplo paradigmático – o país que assuma sozinho o

    risco de ter se comportado como lhe foi sugerido. O sistema internacional lava suas mãos.

    Ou seja, as mesmas instituições de governança global no pós-Segunda Guerra Mundial que

    foram, em grande medida, responsáveis pela retomada da capacidade de governabilidade

    dos Estados nacionais, na atualidade, pregam exatamente o oposto.

    Por outro lado, os Estados nacionais vêem-se pressionados em duas frentes: pelas

    exigências de um Estado mínimo, onde sua autonomia se reduz a opções restritas à

    aplicação das normas neoliberais; e pela desregulação dos mercados, privatização dos

    serviços e deterioração progressiva do quadro social, que – ao contrário - exigem um

    Estado forte e um aparato regulador muito eficiente, até para ter o poder de impor à

    sociedade civil condições desvantajosas. Por outro, os Estados são obrigados a buscar cada

    vez mais intensamente baixar os custos dos seus fatores de produção para atrair partes das

    cadeias produtivas globais a seus territórios, numa estratégia de especialização fortemente

    competitiva que estimula um rebaixamento geral dos preços daqueles fatores entre Estados

    concorrentes, especialmente dos custos gerais da mão-de-obra e dos tributos. É dessa

    maneira que a China está ocupando o lugar do México com sua capacidade de oferecer

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    grandes bases de produção industrial com mão-de-obra extremamente barata e bem

    qualificada aos Estados Unidos. Para competir, o México terá que reduzir ainda mais seus

    custos, provocando novas quedas em outros países, e assim sucessivamente. Esse spillover

    negativo se traduz em médio e longo prazos em menor capacidade de governabilidade.

    A diversidade do mercado de trabalho internacional está se convertendo em novo

    elemento para a superioridade do capital, através da utilização de novas tecnologias

    flexíveis e abertas. Para tanto, dadas as possibilidades de ampla fragmentação geográfica

    das cadeias produtivas permitidas pelas tecnologias da informação, é possível utilizar as

    grandes reservas de mão-de-obra barata existentes nos países da periferia sem ter de arcar

    com suas infinitas demandas de welfare e sua capacidade de gerar tensões sociais nos

     países centrais se esses tivessem que absorvê-las. A tecnologia acabou transformando-se

     basicamente em expressão das relações de poder, já que a necessidade de inovação – querealimenta o ciclo da acumulação – exige a contínua ampliação da participação das grandes

    corporações nos mercados globais. É por ela que se obtém o controle dos processos e dos

    fatores de produção e que se apropria e se concentra a riqueza mundial.

    Essa nova lógica global implica num novo tipo de jogo de poder que introduz imensos

    desafios na prática da política mundial e tem características bem mais complexas que as

    que vigoravam durante a época da guerra-fria. Numa metáfora muito competente, Ulrich

    Beck chama essa nova realidade de metajogo. No antigo esquema, o exercício da política

    era feito basicamente com a aplicação das regras em curso; o metajogo  introduz novos e

    múltiplos paradoxos: as regras não são mais relativamente estáveis, modificam-se no curso

    da partida, confundindo categorias, cenários, dramas e atores.

    O antigo jogo nacional-global era dominado por regras de direito internacional que

     partiam do pressuposto histórico de que os Estados poderiam fazer o que quisessem com os

    seus cidadãos dentro de suas fronteiras. Essas regras tendem a ser progressivamente

    contestadas. O conceito-fetiche de soberania é posto em xeque. Mas quem decide hoje as

    regras a aplicar? Nesse novo contexto, o nacionalismo como conceito metodológico torna-

    se extremamente custoso e oblitera a visão prospectiva, impedindo que se descubram novas

    estratégias e recursos de poder. A primeira condição para desobstruir essa visão e ampliar

    os espaços do olhar é aceitar a realidade de que estamos definitivamente inseridos numa

    nova – e muitas vezes perversa – realidade global. Ela implica na assunção de uma visão

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    cosmopolita do cidadão e das instituições públicas e privadas, que passam a integrar

    inevitavelmente – ainda que com ceticismo e realismo – a lógica global. É essa atitude

    realista que maximiza as possibilidades de ação dos jogadores do metajogo  mundial.

    Revertendo o princípio marxista, é essa nova essência que determinará a consciência do

    futuro espaço de ação.

     Nas alianças de geometria variável – intensamente cambiantes – vigorantes no

    metajogo global, o aliado de hoje pode ser o inimigo de amanhã. Ainda assim, há blocos de

    interesse definindo conflitos de fundo. Um desses conflitos opõe corporações

    multinacionais a movimentos sociais. As grandes corporações – com seu imenso poder –

    definem a direção dos vetores tecnológicos – e, portanto, o grau de empregabilidade da

    economia –, a distribuição mundial da produção e os produtos a serem fabricados ou

    considerados objetos de desejo. Com isso, elas ficam continuamente expostas àsconseqüências negativas que se podem atribuir a esse enorme poder, a saber: a degradação

    ambiental, os efeitos da utilização de transgênicos e produtos químicos na alimentação, o

    desemprego e o crescimento da informalidade, a propaganda enganosa, etc. Por

    decorrência, quanto mais crescerem e se concentrarem, mais essas empresas gigantes

    dependerão da legitimação dos atores públicos (agências reguladoras, atores da sociedade

    civil, serviços de proteção ao consumidor etc.) para manterem seu espaço mercadológico e

    sua margem de lucro. Podemos afirmar que a governança prevalecente hoje na esfera

    internacional é muito fluída e atende aos interesses de legitimação da ação dessas grandes

    corporações. Ela não gera governabilidade democrática efetiva. Dessa maneira, se faz

    necessário elaborar instrumentos e mecanismos mais impositivos para garantir

    governabilidade sistêmica efetiva, que limitem a liberdade ampla que as corporações

    transnacionais possuem hoje para agir em detrimento da esfera pública seja local, nacional

    ou global.

    Outro conflito de fundo é o da economia global contra os Estados nacionais. O campo

    do capital é muito forte e não tem necessidade de se organizar num ator capitalista global

     para fazer jogar seu poder contra os Estados. O capital é aqui entendido como um conjunto

    de atores heterogêneos, não necessariamente coordenados (empresas isoladas, fluxos

    financeiros, organizações supranacionais – FMI, OMC, Banco Mundial) que, garantindo

    seu lugar dominante, fazem pressão explícita ou sutil sobre os Estados, acelerando assim a

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    dissolução do velho jogo referenciado no Estado-nacional. Por outro lado, o capital alia-se

    freqüentemente com seus Estados nacionais de origem buscando seu apoio para estender

    sua influência mundo afora. Contemporaneamente, essa aliança está mais forte do que

    nunca nos países centrais em seus acordos comerciais e nas suas diretivas ou pressões sobre

    as instituições internacionais. Isso não impede que até uma nação hegemônica como a

    norte-americana encontre-se, de repente, com um imenso déficit comercial presenteado ao

     país pela estratégia autônoma de fragmentação global da produção que suas grandes

    corporações adotaram para minimizar seus custos e melhorar seus lucros.

    O principal instrumento de poder das corporações transnacionais e do capital global é

    a capacidade de dizer não: saio, não entro, não fico mais. Essa decisão constitui-se num ato

     político por excelência e basta para originar imensos traumas. O critério de dizer sim segue

    um padrão: orientação neoliberal do governo, tamanho relativo e ritmo de crescimento dasdívidas interna e externa, ortodoxia monetária e fiscal etc. O metapoder da economia

    mundial face aos Estados nacionais consiste, pois, na opção-saída.

    Os atores da economia global são extremamente eficazes e flexíveis no exercício

    desse poder, operando com sanções e recompensas. O poder de não investir é brandido

    como uma imensa ameaça. O que sanciona esse poder é o  princípio da não alternativa. A

    economia neoliberal é o que há disponível para aqueles que quiserem fazer parte do mundo

    global. No entanto, a vulnerabilidade desse imenso poder reside na sua legitimação social,

     já que o metapoder da economia global é extensivo, difuso e não autorizado, não dispondo

    de legitimidade própria. A utilização continuada das formas de ameaça e sanção por parte

    dos capitais e investimentos globais abre espaço para crises de legitimidade do próprio

    capital. O poder no longo prazo não pode prescindir dessa legitimidade; sua estabilidade

    repousa em grande parte sobre a evidência da aprovação social, caso contrário ela gera

    violência e anarquia. Daí decorre o papel essencial das instituições democráticas, que não

     pode se constituir na legitimação geral do poder e da dominação dos mais fortes, mas na

    obtenção de um consenso que sancione o exercício do poder e da dominação em benefício

    de uma governabilidade que seja entendida como socialmente benéfica.

    Outro grave problema é o aumento contínuo de pobreza e concentração de riqueza

    mundo afora.  Os neoliberais insistem em afirmar que, graças à liberalização econômica,

     pela primeira vez em mais de um século a pobreza mundial e a desigualdade de renda

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    teriam caído durante as duas últimas décadas, provando a tese de que quanto mais abertas

    as economias, mais prósperos seus países. Assim, os agentes econômicos, impulsionados

     pela OMC (Organização Mundial do Comércio), estariam fazendo crescer a riqueza e

    distribuindo-a melhor. Para provar essa tese eles tentam se apoiar no jogo complexo das

    estatísticas internacionais, marcadas por alterações metodológicas e incompatibilidades de

    comparação. Quanto à desigualdade, a questão é ainda mais complicada. Em primeiro

    lugar, os números disponíveis são sempre sobre renda (fluxo) e não incluem a riqueza

    (estoque). As distorções aí são muito agravadas, dado que a classe social com maior

    estoque de bens (ativos fixos ou recursos monetários) tem a oportunidade de concentrar

    muito mais que proporcionalmente seu patrimônio mediante utilização de instrumentos

    operacionais (serviços bancários especiais, liberdade de circulação mundial dos recursos,

    hedges, etc.) que os mais pobres não têm. Em regimes de turbulência cambial ou altas taxasde juros é justamente essa categoria social que consegue efeitos expressivos de

    multiplicação patrimonial; ou, na pior hipótese, de melhor proteção contra perdas relativas.

    Tais atores clamam por governança global, mas nem sequer pensam em governabilidade.

    Estudos do Banco Mundial defendem que quanto mais aberto o país ao comércio, e

    mais globalizado, mais riqueza ele tende a gerar. Curioso que, agora, os exemplos citados

    são a China e a Índia, a primeira tão avessa a medidas e recomendações neoliberais

    clássicas. Mas o argumento do Banco Mundial sobre os efeitos benignos da globalização no

    crescimento, na pobreza e na distribuição de renda não sobrevive a um exame mais

     profundo. Ele foi questionado por um estudo recente de Robert Hunter Wade sobre a

    relação entre abertura econômica e igualdade da renda. Este estudo demonstra que entre os

    subconjuntos dos países com níveis baixos e médios de renda, os níveis mais elevados de

    abertura de comércio são associados com mais desigualdade; e que só nos países de renda

    mais elevada a abertura está ligada à igualdade. Ou seja, quanto mais alta for a renda média

    do país, mais ele se beneficia com a globalização; e não o contrário.

    Os números relativamente otimistas do Bird sobre a evolução da pobreza no mundo

     precisam sempre ser lidos com extremo cuidado. Tentando justificar alguns dos fracassos

    resultantes da aplicação de suas políticas, as instituições internacionais fazem manobras

     para provarem que a miséria diminuiu por conta dos processos de liberalização por eles

    defendidos. Para padronizar um critério, em meio ao caos metodológico, criou-se um novo

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     padrão de pobreza: pessoas vivendo com menos de 1 dólar por dia são ditas miseráveis e

    com menos de 2 dólares por dia são classificadas como pobres. As conclusões do

    dogmático Banco Mundial são taxativas: a pobreza reduziu-se no mundo de 1987 a 2001,

    coincidentemente o período em que a abertura global fez-se regra. O número de pobres caiu

    de 60% para 53% da população; quanto ao percentual de miseráveis, reduziu-se de 28%

     para 21%. Para além da discussão sobre se essa redução é verdadeira, os percentuais são

     por si só brutais e absolutamente incompatíveis com os padrões civilizacionais e avanços

    tecnológicos disponíveis, especialmente quando encontramos regiões imensas como o sul

    da Ásia e a África subsahariana com mais de 76% de pobres, tendo essa última 47% de

    miseráveis. No entanto, examinando com o mínimo de cuidado a versão otimista dos dados

    consolidados divulgados, encontramos um revelador disparate: é o caso excepcional da

    China, responsável por 20% da população mundial. Sem ela e sem a Índia, os númerosmostram tendências diferentes. Claro está que este país passa por uma fase notável,

    crescendo a altas taxas há mais de dez anos; mas também é óbvio que isso pouco tem a ver

    com a modelagem padrão sugerida pelo FMI e pelo Banco Mundial. Muito pelo contrário.

    A China evita aderir a esquemas de governança que possam limitar sua capacidade de

    governabilidade.

     Na verdade, desde a Inglaterra do século XIV até os NICs (New Industrialized

    Countries) asiáticos do fim do século XX, os países em saltos de desenvolvimento  

    utilizaram insistentemente políticas industrial, comercial e tecnológica ativas – muito além

    da mera proteção tarifária – para promover o crescimento de suas atividades econômicas

     públicas e privadas. Ha-Joon Chang, após fazer uma minuciosa análise das políticas e

    resultados alcançados nas últimas décadas por países que “deram certo”, lembra que “o

     problema comum enfrentado por todas as economias em catch-up é que a passagem para

    atividades de maior valor agregado, que constitui a chave do processo de desenvolvimento,

    não se dá espontaneamente”. A razão é que há discrepâncias entre o retorno social e

    individual de investimentos nas atividades de alto valor agregado – ou indústrias nascentes

     – nessa fase, tornam-se necessários mecanismos para socializar o risco envolvido desses

    investimentos. Uma grande multiplicidade de instrumentos de política pública foi e pode

    ser usada. Os países bem-sucedidos são, tipicamente, os que se mostraram capazes de

    adaptar o foco de suas políticas às diferentes situações.

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    É importante salientar que todos os atuais países centrais recorreram – e ainda

    recorrem - ativamente a políticas industrial, comercial e tecnológica intervencionistas a fim

    de promover as indústrias nascentes, muitos deles com mais vigor do que os atuais países

    em desenvolvimento. Assim, o pacote de “boas políticas” atualmente recomendado pelas

    instituições que exercem o papel de realizar uma governança global, enfatizando os

     benefícios do livre-comércio e de outras políticas do laissez-faire, conflita com a

    experiência histórica, como já vimos aqui. Os acordos da OMC – que restringem a

    capacidade dos países em desenvolvimento de pôr em práticas políticas industriais ativas –

    não passam de uma versão contemporânea e multilateral dos “tratados desiguais” que a

    Inglaterra e outros países centrais costumavam impor aos países dependentes da época.

    Seus dados mostram claramente o ínfimo crescimento econômico verificado nos países em

    desenvolvimento, nas últimas duas décadas, justamente quando a maioria deles passou por“reformas políticas” neoliberais que se mostraram incapazes de cumprir a sua grande

     promessa de crescimento econômico. A desigualdade da renda aumentou e a prometida

    aceleração do crescimento não se verificou, ao contrário do período entre 1960 e 1980, no

    qual predominaram as políticas “ruins” e o crescimento desses países ocorreu. Assim, no

     período mencionado, o PIB  per capita de 116 países de seu universo cresceu num ritmo de

    3,1% anuais, ao passo que, entre 1980 e 2000, a taxa de crescimento reduziu-se para apenas

    1,4% ao ano. Os países em desenvolvimento cresceram muito mais rapidamente no período

    em que aplicaram políticas chamadas “ruins” do que nas duas décadas seguintes, quando

     passaram a adotar as “boas” sugeridas pelas atuais instituições de governança global. O

    mais interessante é que essas políticas “ruins” são basicamente as que os hoje países ricos

    aplicaram quando estavam em desenvolvimento, o que é mais um argumento a favor da

    idéia de que os países centrais estariam, ainda que não necessariamente de forma

    intencional, impedindo a ascensão da periferia.

    Outra constatação importante é que a maioria das medidas institucionais atualmente

    recomendadas aos países em desenvolvimento como parte do pacote de “boa governança”

    foi, na verdade, resultado – e não causa – do desenvolvimento econômico dos países

    centrais. As regras consideradas “boas” para o desenvolvimento, incluindo regimes de

    direitos de propriedade, banco central independente e outras recomendações “da melhor

     prática” (o que geralmente significam padrões das instituições anglo-americanas) são de

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    fato úteis? Na verdade, a conclusão é que as instituições “boas” só produzem crescimento

    quando associadas a políticas igualmente “boas”. Assim, ao exigir dos países em

    desenvolvimento padrões institucionais que eles mesmos não tinham quando estavam em

    estágios comparáveis de desenvolvimento, os países ricos estão usando, efetivamente, dois

     pesos e duas medidas. Por exemplo, “para manter um  padrão global  de direitos de

     prioridade e instituições de governança empresarial, os países em desenvolvimento são

    obrigados a formar um gigantesco exército de advogados e contadores de nível

    internacional. Isso significa que terão, inevitavelmente, menos dinheiro para gastar em

    coisas como a formação de professores ou engenheiros industriais, que podem ser muito

    mais necessários em seu estágio de desenvolvimento”.

    Seria necessária, pois, uma mudança significativa nas condicionantes que vinculam a

    ajuda financeira do FMI, do Banco Mundial e dos governos dos países centrais; reescreveras regras da OMC e de outros acordos multilaterais de comércio de modo a permitir um uso

    mais ativo dos instrumentos de produção da indústria nascente como as hoje amaldiçoadas

    tarifas e os subsídios. Exigir apenas que se proíba uniformemente a todos o uso desses

    instrumentos pode prejudicar ainda mais os países da periferia, incapazes de competir na

    maioria dos produtos que agregam valor.

    Precisamos permitir que os países em desenvolvimento adotem políticas e instituições

    mais apropriadas ao seu estágio de desenvolvimento e permitir que cresçam mais

    rapidamente, como deveras aconteceu nas décadas de 1960 e 1970. Isso há de beneficiar

    não só os países em desenvolvimento mas, em longo prazo, também os desenvolvidos, à

    medida que aumentar o comércio e as oportunidades de investimento.

    Questão de fundo muito importante, aliás, sobre as chamadas teses hegemônicas é a

    da abertura geral para o comércio, da qual a OMC é o agente principal. Muito se fala – e se

     batalha – sobre a necessidade de que os países abram seus mercados irrestritamente. As

    nações periféricas centram suas lutas nas ações para que EUA e União Européia retirem

    seus subsídios agrícolas. Com isso, elas abrem espaço para que aqueles países ou blocos

    exijam abertura geral dos mercados mais pobres para produtos industriais e serviços,

    inclusive financeiros. Trata-se de uma armadilha perigosa. No curto prazo, é claro que os

     países mais pobres podem ganhar com alguns acessos a mercados agrícolas restritos,

    embora nessa matéria as concessões sejam mínimas. Mas, no longo prazo, uma abertura

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    geral dos mercados mundiais evidentemente propiciará muito mais ganhos aos países

    grandes que aos pobres, já que os primeiros serão sempre muito mais competitivos

     justamente nos produtos mais sofisticados e de maior valor adicionado. A governança que

     pode parecer útil também aos interesses dos menos desenvolvidos, no momento seguinte

    apresentará a conta impondo custos enormes às suas economias, rebaixando ainda mais a já

    debilitada capacidade de governabilidade do Estado nacional dos países periféricos.

    Uma tese que avançaria na linha contrária, ou seja, desmascararia a hipocrisia que

    encobre as verdadeiras intenções hegemônicas, seria os Estados da periferia se articularem

     para exigir mobilidade total da mão-de-obra internacional de qualquer origem em

    contrapartida a uma eventual liberalização geral dos mercados, ou seja, uma política de

    igualdade em matéria de mobilidade entre o capital e o trabalho. Se, por exemplo, todos os

     países do mundo abrissem seus mercados para especialistas em informática de qualquer parte, o jogo começaria a ficar mais equilibrado. Claro está que os primeiros a reagirem

    violentamente serão os sindicatos dos países ricos.

    David Held lembra que, em matéria de tributos, direitos e normas do trabalho, não é a

    igualdade – mas sim a desigualdade – entre os Estados que otimiza as estratégias

    competitivas de substituição na economia mundial. Com isso pode-se jogar os Estados uns

    contra os outros, substituí-los e maximizar a estratégia opção-saída. Quanto mais

    desregulada a economia de um país, mais fácil utilizá-la. Seria necessário, pois, reformar

    drasticamente a governança econômica global; o desenvolvimento econômico deveria ser

    considerado apenas como um meio para a melhora das condições sociais globais, e não um

    fim em si mesmo. E a democracia social deveria buscar um equilíbrio entre mercados

    abertos, governos fortes, proteção social e justiça distributiva em nível global, incluindo

     planos de redução de pobreza e proteção aos vulneráveis, que sofrem depreciação das

    condições básicas de vida tanto no norte como no sul.

    A América Latina, mais do que qualquer outra região do mundo, com exceção da

    África subsahariana, tem sofrido as graves conseqüências da globalização dos mercados e

    das finanças. O discurso hegemônico neoliberal do pós-guerra fria gerou a aplicação de um

    receituário de políticas públicas e econômicas cujos resultados na região – para além da

    ajuda no controle das situações hiperinflacionárias no Brasil, na Argentina e no Peru –

    foram decepcionantes. A conseqüência dessas políticas foi um aumento significativo da

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    exclusão social, em meio a uma sucessão de crises que afetou boa parte dos grandes países

    da periferia. Enquanto isso, a marcha acelerada da globalização constrangia

     progressivamente o poder dos Estados nacionais, subordinando-os a metas monetárias

    rígidas que os impediram de praticar os princípios keynesianos que vigoraram na maior

     parte da segunda metade do século que findou.

    O fato é que – como já vimos – participar das cadeias produtivas não é mais uma

    opção para os grandes países da periferia, tais como México, Brasil e Argentina; tal

     participação passa a ser uma obrigação imposta pela lógica global, já que ficar fora delas é

    ainda pior. Esses países, na intensa disputa por capital e investimento internacionais, são

    obrigados a baixar cada vez mais os custos dos seus fatores de produção para atrair partes

    das cadeias produtivas das grandes corporações transnacionais; a competição predatória

    decorrente paga um alto preço com a redução progressiva de margens de ação, erosão dasoberania nacional e das condições de governabilidade. Governos e opinião pública vão se

    transformando em espectadores e a legitimação democrática vai se enfraquecendo. Esse é

    um campo aberto para o populismo e para arremedos de democracia, tão recorrentes na

    América Latina.

     Na verdade, os países centrais insistem em proibir os grandes países periféricos de

    usarem precisamente as mesmas políticas que funcionaram com eles no passado, quando

    elas os ajudaram a transformarem-se em países ricos. Fazem isso não mais pela força, mas

     pelos mecanismos de governança global que escondem a lógica hegemônica.

    A alteração desse quadro passa pelo reconhecimento de que as instituições

     promotoras de governança global são espaços nos quais as lutas contemporâneas por

     prosperidade e poder são travadas. Diversos atores procuram moldá-la de acordo com seus

    interesses, visando a maximização de seus objetivos. Hoje os atores privados estão dando o

    tom das políticas a serem implementadas pelos atores públicos. Isso tem gerado um tipo de

    governança global favorável aos interesses dos mais fortes e que debilita a capacidade de

    governabilidade dos Estados periféricos em prol das corporações transnacionais globais.

    Estas vêm tendo a capacidade de ocupar os vários espaços de governança global

    multicêntrica, tais como a  Multilayered   (níveis: supraestatal, transnacional, nacional e

    subnacional); a Multidimensional (governos, diversas agências estatais ou não, empresas,

    associações civis, etc.); e a Multi-actor (ONGs em geral). De modo que a partir deles essas

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    grandes corporações procuram criar políticas para multiplicar seus ganhos

    independentemente dos problemas que geram. Nesse sentido, na próxima seção,

     buscaremos sintetizar o modelo de governança global que vem sendo promovido pelos

    Estados Unidos desde o pós-Guerra Fria, acentuado no pós-11 de setembro.

    3. A opção atual dos EUA de governança global

    Como vimos, os EUA organizaram sua hegemonia no pós-Segunda Guerra Mundial

    com base numa arquitetura institucional que lhe permitiu exercê-la de forma benevolente,

    sustentada num conjunto de regimes e instituições multilaterais de governança global.

    Entretanto, após a crise econômica e militar de 1973, o primeiro movimento dos EUA foi

    abandonar esse  framework institucional de governança global. Obviamente, o sistema nãose sustentou sem o seu apoio e abriu espaço a um novo modelo de governança que não se

     baseia mais num “regime internacional”, mas basicamente no poder discricionário

    unilateral dos EUA.

    Depois dos anos 1980, e ainda hoje, os EUA procuraram arbitrar isoladamente o

    sistema econômico internacional, promovendo a abertura e a desregulação das economias

    nacionais, o livre-comércio e a convergência das políticas macroeconômicas de quase todos

    os países capitalistas relevantes. Mantiveram e aumentaram ainda sua capacidade industrial,

    tecnológica, militar, financeira e cultural. Entretanto, diferentemente de exercer a

    hegemonia benevolente, essa ação norte-americana vem provocando um período de grande

    instabilidade econômica e financeira, e a maior parte da economia internacional entrou num

     período de baixo crescimento prolongado, com a notável exceção dos próprios Estados

    Unidos e da China e mais alguns poucos países asiáticos.

     No tocante a questão político-militar, depois do fim da Guerra Fria, os EUA se

    tornaram uma liderança incontrastável e uma espécie de super-Estado. As teses que

    sustentam a hipótese do império afirmam que essa situação poderia criar condições de paz

     perpétua no sistema internacional. Mas, o que vem ocorrendo é o aumento do número das

    guerras e uma acelerada regressão no campo da legislação internacional. Depois de 2001,

    essa tendência se acentuou. Estamos presenciando uma reversão da utopia liberal dos 1990

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    e, cada vez mais, um distanciamento do mundo de qualquer espécie de hegemonia

     benevolente ou de governança global.

    Para José Luís Fiori, os EUA vêm defendendo, há duas décadas, a desregulação de

    todos os mercados e sistemas de comunicação, energia e transportes. E vem abandonando,

    sucessivamente, todos os acordos, compromissos e regimes internacionais que afetem sua

    capacidade de ação unilateral. “Sua moeda, agora, é rigorosamente universal e não obedece

    nenhum regime, apenas às decisões soberanas do FED. Sua economia nacional conquistou

    espaços fundamentais na direção da globalização da sua moeda, dívida e sistema de

    tributação”. Resta às outras Grandes Potências redefinirem seus interesses e espaços de

    influência à sombra do hiperpoder norte-americano.

    Entretanto, para construir seu conceito de governança global, os EUA desenvolvem

    relações bilaterais e multilaterais, mas não deixam de agir unilateralmente se aoportunidade assim exigir. A liderança internacional é exercida, sobretudo no sentido de

    induzir as organizações internacionais a estabelecerem metas rígidas para os países

    cumprirem rigorosamente suas funções na perspectiva da reafirmação do papel global dos

    EUA. Para tanto, é preciso que esses países também assumam responsabilidades. No

    campo político-militar, a ação preventiva está totalmente integrada com essa opção de

    governança global.

    Diante desse quadro internacional, urge ainda mais a necessidade da cooperação

     bilateral entre União Européia e América Latina para buscar equilibrar o poder unilateral

    dos EUA e induzi-los a construir novos esquemas de governança global, nos quais eles

    exerçam uma hegemonia benevolente que passa ser afirmada em consonância com a

    necessidade de solução dos problemas globais.

    4. Alternativas à Governança Global

    Segundo Held (2004), para a solução do déficit de governabilidade se faz necessário

    enfrentar quatro grandes desafios para estabecer uma efetiva governança global, a qual

    deve se opor a opção atual dos EUA. O primeiro deles refere-se à questão do

    accountability. Esse desafio coloca-se devido ao emaranhado de instituições de governança

    em vários níveis, áreas e com diversos atores, estatais e/ou não-estatais, frente ao princípio

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    da soberania territorial. Uma vez que essas instituições visam lidar com problemas que

    extrapolam limites fronteiriços, interessando a comunidades de destino, a

    representatividade baseada na soberania territorial dos Estados fica deslocada. De fato, a

    cooperação internacional é cada vez mais necessária, mesmo para os Estados mais

     poderosos. Em muitos casos, as demandas das comunidades que necessitam de cooperação

    internacional não podem ser adequadamente tratadas de acordo com o princípio da

    soberania.

    O segundo desafio à governança global consiste em preencher dois gaps  para o

    fortalecimento das instituições políticas internacionais, portanto, da cooperação:

    institucionalização e incentivos. No primeiro, é preciso desenvolver maneiras melhores e

    mais justas de se definir quem é o responsável pelo quê, no tocante aos problemas

    internacionais, e a quem devem os responsáveis prestar contas. No outro, é necessárioencontrar modos de incentivar atores estatais e não estatais a criarem e manterem bens

     públicos globais, tendo em vista a possibilidade de free riders, da falta de compromisso dos

    atores, etc.

    O terceiro desafio é ético-moral. Embora a governança global seja multicêntrica, com

    a participação de diversos atores, o sistema funciona de maneira mais eficiente para os

    Estados mais poderosos. Ao privilegiá-los, a capacidade do sistema de lidar com situações

    globais que afetem os países da periferia (erradicar pobreza, epidemias) é drasticamente

    reduzida. A “passiva indiferença” das sociedades prósperas precisa ser revertida.

    A identidade é o quarto grande desafio. Embora a criação e o desenvolvimento de

    instituições regionais e globais avance, com exceção de algumas elites, a maioria da

     população tem sua identidade e fidelidade ligadas às comunidades territoriais, étnicas e

    nacionais. A idéia de comunidade de destino precisa ser difundida para que as pessoas

    tenham uma referência mais cosmopolita. Caso contrário, os desafios à governança global

     podem tornar-se críticos a ponto de haver uma reversão no próprio processo político

    globalizante. Então, o nacionalismo extremado poderia ressurgir como principal valor das

    sociedades. O problema é que, embora o nacionalismo possa e deva continuar como

    elemento cultural, somente uma orientação cosmopolita é adequada para solucionar os

    desafios da governança global.

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    Como notamos, a agenda internacional passa a ter um forte foco na solução de

     problemas que transcendem fronteiras e ligam comunidades de destino para o bem ou para

    o mal. No entanto, não é possível afirmar que a agenda esteja isenta de relações de poder e

    de interesse. Certamente, o espaço para o predomínio político na atualidade é o da

    governança global, e esta é multicêntrica, ou seja, é uma estrutura complexa formada por

    instituições e regimes específicos para determinadas issue-areas. O problema está em fazer

    essas instituições promotoras da governança global voltarem a prescrevem pacotes de

    medidas políticas e econômicas para os países em desenvolvimento que sejam eficazes na

    geração de governabilidade, recolocando-os na trajetória do desenvolvimento.

    Para tanto, é necessário reinventar instrumentos e mecanismos de governança

    democrática na esfera global. Por exemplo, os acordos TRIPs (Trade-Related Aspects of

    Intellectual Property Rights) deveriam ser reformulados, permitindo que países emdesenvolvimento tenham sistemas flexíveis e de curto prazo de propriedade intelectual. A

     prioridade deveria ser a saúde pública e não a proteção aos donos de patentes. Quanto à

    OMC, cláusulas sociais poderiam ser estabelecidas em seu âmbito com o intuito de

    erradicar o trabalho forçado e o infantil, garantir o direito à greve e fortalecer a liberdade de

    criação e atuação de sindicatos. Tais medidas não teriam a intenção de prejudicar as

    vantagens comparativas dos países pobres e em transição em questões de custo de

     produção, mas sim de garantir condições básicas de trabalho; além disso, deveria ser

    aumentada a capacidade dos países em desenvolvimento em participar de maneira mais

    efetiva das negociações comerciais. 

    Seria ainda necessária uma instituição financeira internacional – mantida pelos países

    ricos – que garantisse recursos de longo prazo aos países pobres como suplemento aos

     programas de ajuda internacional para o desenvolvimento. Outro mecanismo seria a

    taxação em níveis regionais e globais, baseada em consumo de energia e emissão de gás

    carbônico. O mercado de capitais deveria ter sua abertura feita de forma gradual e

    controlada, como peça-chave na estratégia econômica. A transparência, o controle da

    corrupção, o cumprimento da lei e o desenvolvimento de capacidade de monitoramento

    seriam essenciais, bem como ampla reforma das instituições internacionais existentes,

    incluindo mudanças no sistema de votação do FMI.

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     No tocante à ONU é de máxima urgência uma ampla reforma que revigore sua força

    normativa, seu alcance global e seu poder de agregação. Nessa direção, é necessário

    consenso no Conselho de Segurança sobre a definição do que é terrorismo, do

    fortalecimento da capacidade dos Estados em combatê-lo e, principalmente, de um acordo

    de como pode e como será usada a força contra os terroristas e/ou Estados que lhes dão

    guarida. Deve-se também reforçar as estruturas multilaterais de governança global para o

    controle de armas biológicas, químicas e nucleares para impedir a escalada de sua

     proliferação. Outro fator importante é assegurar o êxito da tarefa de construção de paz

    duradoura em países devastados por guerras, bem como durante a reconstrução tratar de

    auxiliar na construção de instituições que integrem a proteção aos Direitos Humanos a um

    Estado de Direito Democrático, pois os povos devem ter direito de se autogovernar por

    meio de instituições democráticas.Mais importante é a dimensão econômico-social. A ONU deve ser indutora de

    aperfeiçoamentos das instituições governamentais que sejam elementares para a promoção

    e geração de desenvolvimento. Deve trabalhar em cooperação com os países desenvolvidos

    e outras instituições internacionais para garantir o cumprimento das Metas do Milênio

    (erradicar a extrema pobreza e a fome; atingir o ensino básico universal; promover a

    igualdade entre os sexos e a autonomia da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar

    a saúde materna; combater o HIV/AIDS, malária e outras doenças; garantir a

    sustentabilidade ambiental; e estabelecer uma parceria mundial para o desenvolvimento).

     Nesta perspectiva, deve trabalhar para que suas aspirações se traduzam em operações, as

    quais devem ocorrer de modo multifacetado, passando da garantia de maior acesso a

    mercados para países em desenvolvimento e Países de Menor Desenvolvimento Relativo

    (PMDR), ao alívio da dívida externa de países pobres e, sobretudo, ao aumento da

    assistência oficial ao desenvolvimento. Em suma, isso significa dar condições para que as

    nações em desenvolvimento e pobres ampliem sua capacidade de governabilidade com

    apoio da ONU articulada a políticas de desenvolvimento econômico-social com

    democracia. Permitindo a população mundial melhorar seus padrões de vida com maior

    liberdade política.

    Vamos, em seguida, sintetizar os papéis que têm sido desempenhados por algumas

    das instituições multilaterais e suas conseqüências à governança global.

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    5. Instituições multilaterais e Governança Global

    5.1. O caso da ONU†

     

    O texto de Ricupero argumenta que a melhoria de condições básicas de

    desenvolvimento internacional é capaz de produzir melhor governança global.

    Concentrando-se no caso latino-americano, argumenta que a UNCTAD, a CEPAL e o

    PNUD advogam há muito tempo, junto à União Européia, a liberalização agrícola

    fundamental para a promoção do desenvolvimento e ajudar numa governança global que

    amplie a capacidade de governabilidade dos países na América Latina.

    O autor difere duas formas por meio das quais a ONU influencia a governança

    global: assessoria em política macroeconômica ou em áreas específicas como políticacomercial, industrial e regionalização, geralmente concentrada na UNCTAD, por um lado,

    e projetos de cooperação técnica, viabilizados pelo PNUD, por outro. A partir disso, traça

     breve abordagem histórica da influência das instituições econômico-sociais da ONU na

    América Latina em três fases. Na primeira, que vai dos anos 1940 aos 1980, é o período de

    hegemonia da CEPAL, a qual advogava a substituição de importações, proteção doméstica

    contra importações e um mercado dirigido. A CEPAL, que pode ser entendida como

     precursora da UNCTAD, também incentivou o regionalismo como maneira de promoção de

    desenvolvimento, inspirada basicamente no modelo europeu. As sugestões da UNCTAD

    contribuíram para o desenvolvimento dos países latino-americanos, com particular destaque

     para a captação de investimentos estrangeiros, sobretudo europeus.

    A UNCTAD conseguiu benefícios, direta ou indiretamente, em termos de

    governança global para os países em desenvolvimento até, pelo menos, os anos 1980. Os

     principais exemplos são a exceção aos princípios da não-discriminação e da nação mais

    favorecida, o tratamento especial e diferenciado, e o Sistema Geral de Preferências. Esses

     princípios foram consagrados no GATT, mas a participação da UNCTAD foi fundamental.

    Com relação à América Latina, a UNCTAD negocia acordos específicos para a

    estabilização do preço de commodities. 

    †Síntese das conclusões do  paper   do Embaixador Rubens Ricupero, preparado para o IEEI. Ricupero foisecretário geral da UNCTAD e Ministro da Fazenda do Brasil.

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     Na segunda fase, a influência das instituições econômico-sociais da ONU sobre os

     países em desenvolvimento, especificamente os da América Latina, entrou em declínio

    entre 1982 e 1990, como um claro reflexo da crise da dívida dessa década, bem como das

    mudanças no modelo de governança global promovido pelos Estados Unidos desde então.

    O FMI e o Banco Mundial passaram a exercer maior influência sobre esses países seguindo

    a reação neoconservadora na Grã-Bretanha e Estados Unidos. Adicionalmente, a queda do

    muro de Berlim e as modificações tecnológicas e nas estruturas produtivas potencializaram

    a influência dos neoconservadores.

    A terceira fase tem início em meados de 1995, com crítica das instituições da ONU

    ao Consenso de Washington. Nesse período há a retomada de sua influência. As crises

    financeiras dessa década, especialmente a da Argentina, fortaleceram a UNCTAD, que

    desde 1990 vinha apontando a inconsistência de vários traços da liberalização econômicados países em desenvolvimento. Paralelamente, o PNUD desenvolveu novos conceitos de

    desenvolvimento, como o de “desenvolvimento humano”. Esses conceitos tiveram

    impactos nas instituições de Bretton Woods e ganharam o apoio internacional para a causa

    da erradicação da pobreza como meta da cooperação econômica internacional. A

    Declaração do Milênio, as Metas de Desenvolvimento do Milênio e a Rodada Doha são

    exemplos disso.

    Outros dois exemplos de destaque que mostram a influência da ONU na governança

    global, especificamente na América Latina são: primeiro, o desenvolvimento sustentável.

     Na América Latina, apesar de problemas ambientais persistirem, as ações e conferências

    das Nações Unidas impulsionaram movimentos de ONGs, associações e partidos verdes

    que pressionam pela proteção ambiental e desenvolvimento sustentável, e os governos

    nacionais se mostram receptivos a essas idéias. O segundo tema é o de direitos básicos,

    como democracia, igualdade de sexos, direitos da criança e luta contra o racismo, os quais

    se tornaram parte de políticas públicas na região graças a atuação da ONU. Evidentemente

    esses direitos ainda encontram problemas, mas a atuação das Nações Unidas foi

    fundamental para trazê-los à agenda global e regional.

    Retomando a questão econômica, a CEPAL e a UNCTAD têm diagnósticos e

    soluções parecidas para os países latino-americanos: crescimento econômico com mais

    investimentos e taxas de câmbio e de juros menos voláteis e mais favoráveis, assim como

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     políticas de competitividade, tecnologia e comercial melhores. O crescimento econômico,

    no entanto, deve ser acompanhado de distribuição de renda e combate à pobreza, com

     priorização de investimentos em educação, saúde pública e saneamento, devidamente

    avaliados em termos de qualidade e eficiência. Na opinião de Ricupero, essas políticas

    fariam parte de uma boa governança global. O sucesso delas é de responsabilidade primária

    dos governos nacionais, os quais devem ter a capacidade de governabilidade para

    implementá-las, mas a orientação multilateral proporcionada pela ONU é de grande valia.

    5.2. O caso do FMI e do Banco Mundial‡

     

     No caso das instituições multilaterais financeiras responsáveis pela governança

    global dessa área, vamos destacar o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o BancoMundial (BM). Estas instituições alimentaram o mito de que suas orientações seriam

    “neutras”, isentas das opções políticas dos Estados, porque se baseariam na racionalidade

    de análises puramente técnicas. Entretanto, as condicionalidades impostas em suas

    operações financeiras e o poder de mobilização política e ideológica derivada da incessante

    atividade de seu corpo técnico acaba gerando interferências claras nas políticas de países da

     periferia, tornando-as alinhadas aos interesses hegemônicos, especialmente dos Estados

    Unidos que possui as maiores cotas e amplo controle sobre o corpo de funcionários do

     banco.

    Ao contrário do que ocorre, uma definição de governança global implica que o

    sistema leve em consideração o interesse de todos. As instituições cujo processo decisório é

    o consenso, como a OMC, têm nessa preocupação uma razão de ser, pois assim espera-se

    obter legitimidade por meio do multilateralismo democrático. Mas essa preocupação não

     permeia o FMI e o BM. Nesse sentido, a cooperação com países da União Européia, que

     possuem acesso e poder nas instâncias decisórias dessas organizações, seria fundamental

     para modificar os processos de tomada de decisão e garantir legitimidade a essas

    organizações intergovernamentais centrais do sistema internacional.

    ‡  Síntese das conclusões do  paper   do Professor Carlos Eduardo Carvalho, preparado para o IEEI-BR.Carvalho é professor da PUC- São Paulo e coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados emEconomia Política dessa mesma instituição.

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    O quadro de desregulamentação e flexibilização financeira e cambial

    contemporâneo acentuou a capacidade norte-americana em conduzir essas instituições

    internacionais a proporem mecanismos de governança global que induzam políticas nos

     países periféricos que sejam convergentes com os interesses dos Estados Unidos. A partir

    de então, alinhado às idéias neoliberais, o FMI - em parceria com o FED - passou a

    desempenhar o papel de disciplinador de um conjunto de “países rebeldes” e instituições

    financeiras em dificuldade que atuam sem regras claras, em mercados desregulamentados

    sem instrumentos de controle e de garantias. Nesse contexto, a sugestão de políticas de

    ajuste monetaristas, bastante restritivas e pró-ciclicas, agravam os efeitos sistêmicos

    desestabilizadores globais, aumentando a fragilidade financeira e cambial dos países

     periféricos. Essas políticas de ajustes se tornam um remédio amargo com resultados

    duvidosos, elevados custos econômicos e sociais, ao mesmo tempo em que preservavam osinteresses dos credores internacionais e dos rentistas locais. Além disso, transferiram para

    os países periféricos os ônus e os custos da crise gerada pela adoção do receituário

     prescrito, bem como as responsabilidades e obrigações tanto de recuperação das respectivas

    economias quanto da criação de mecanismos que evitem uma repetição das crises; ou seja,

    que protejam suas economias contra a instabilidade financeira e cambial internacional. Em

    resumo, essas instituições de governança global atualmente promovem a

    desgovernabilidade dos Estados mais frágeis na cena internacional.

    Paralelamente, o BM foi um dos principais promotores das políticas de abertura,

    desregulamentação e privatização, recomendadas de modo uniforme e padronizado para

    todos os países, que - ao serem aplicadas - aumentam a exposição à instabilidade financeira

    e cambial. Em troca da adoção dessas políticas, os países periféricos receberam escassos

    recursos a serem aplicados em políticas públicas de baixo impacto em contextos de extrema

    miséria; ou vieram como cooperação técnica internacional voltada ao aparelhamento da

    administração pública para ampliar sua capacidade de arrecadação de impostos que

    acabaram garantindo, no momento de crises, a ampliação de recursos para o pagamento aos

    credores.

    O caso que melhor exemplifica esse modus operandis das instituições internacionais

    no estabelecimento de governança global favorável aos interesses hegemônicos,

    especialmente dos Estados Unidos, é o da Argentina. Durante uma década, as elites

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    governamentais argentinas aplicaram o receituário do FMI e do Banco Mundial por meio

    do Plano de Conversibilidade. Em inúmeras ocasiões o país foi elogiado e citado

    entusiasticamente por esses organismos como exemplo a ser seguido. Aos primeiros sinais

    da gravidade da crise decorrente, nem FMI nem Banco Mundial buscaram auxiliar o país.

    Colocaram-se como impotentes, assistindo a agonia que se traduziu na catástrofe

    econômica e social de 2001-2002. O governo argentino acabou sendo apontado, após o

    colapso do regime de conversibilidade tão aplaudido no passado, como único responsável

     pela crise. A inadequação das políticas de governança global e das condutas derivadas do

    FMI e do Banco Mundial jamais foi ventilada. Mas, logo depois, durante o contencioso que

    se seguiu graças à operada pela Argentina – e a proposta de renegociação da dívida externa

    - o Banco Mundial calou-se, enquanto o FMI pressionou o governo argentino para que ele

    atendesse aos interesses dos credores privados. Mas, antes, tratou de garantir que seusempréstimos fossem honrados. Habilmente, o governo argentino responsabilizou a

    moratória pelos erros e fatos passados induzidos pelos mecanismos de governança global

    da comunidade financeira internacional, em especial do FMI e Banco Mundial. Isso lhe

     permitiu, ainda que isolado e pressionado por várias frentes, renegociar a dívida externa

    com os credores privados de modo exitoso.

    Esse processo demonstra claramente as conseqüências dos frágeis mecanismos de

    governança global quando eclodem conflitos sérios em torno dos principais temas

    financeiros característicos de nossa época. E indicando a necessidade do estabelecimento de

    mecanismos efetivos de governança global que imponham limites e normas às ações das

    instituições e dos credores financeiros nos países periféricos.

    Além do mais, fragilidade financeira e cambial dos países da periferia é agravada

     pelos efeitos desestabilizadores dos fluxos de capitais, dos efeitos pró-cíclicos das políticas

    de ajuste do FMI e das "reformas estruturais" propostas pelo BM. A insistência do FMI em

    exigir ajustes recessivos e pró-cíclicos nos momentos de crise dos países da periferia tende

    a aprofundá-la, com efeitos desagregadores de natureza social e política. Em primeiro

    lugar, porque as contas públicas são obrigadas a fortes ajustes nos momentos em que

     precisariam ser flexibilizadas para facilitar a ação do setor público e a redução dos

    constrangimentos financeiros do setor privado. Em segundo, porque as medidas recessivas

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    aprofundam as dificuldades financeiras das empresas e dos indivíduos, agravando a

    solvência das carteiras de crédito das instituições bancárias locais.

    5.3. O caso da OMC§

     

    Uma das razões importantes para o atual déficit sistêmico de governança é a

    expansão acelerada dos mercados, em virtude da globalização, sem que houvesse

    correspondência na capacidade de construção de instituições políticas eficazes na

    regulamentação e na coordenação de atividades e comportamentos de novos atores na arena

    internacional. Em muitas ocasiões, a falta de definição do papel de cada instituição conduz

    à produção de resultados insatisfatórios de governança global. A OMC, originalmente

    criada para cumprir o papel de governança global na esfera comercial, é um bom exemplodessa situação. Sua agenda de negociações veio incorporando, desde 1995, uma série de

    outros assuntos que extrapolam sua competência original: investimento externo direto,

    serviços, direitos de propriedade intelectual, compras governamentais, meio ambiente,

    questões trabalhistas, etc. Como conseqüência, desde o início da Rodada Doha - chamada

    como a rodada do desenvolvimento -, vem enfrentando impasses quase insolúveis em

    virtude de posições negociadoras radicalmente opostas de seus membros - países

    desenvolvidos e em desenvolvimento - em diversas matérias. No que se refere ao comércio

    agrícola internacional, os países desenvolvidos não querem abrir mão da prerrogativa de

    garantir apoio doméstico à produção de alimentos. Essa prática traduz-se em intensos

    subsídios indiretos à exportação, prejudicando os países mais pobres que dependem – em

    grande parte - da produção agrícola para o seu crescimento. Como contrapartida, os países

     periféricos se recusam a negociar temas de interesse dos países desenvolvidos; entre outros,

    investimentos externos, competição, questões trabalhistas, meio ambiente, serviços,

    compras governamentais, etc. O resultado é o impasse e a paralisação da instituição.

    Essa dinâmica tende, por um lado, a limitar a capacidade de exercício de

    governança global da OMC na questão do comércio; por outro, a induzir os países,

     principalmente os mais desenvolvidos, a buscarem outras opções, outros fóruns de

    §  Síntese das conclusões do  paper   da Professora Vera Thorstensen, preparado para o IEEI. Thorstensen éconsultora da Missão Brasileira em Genebra na OMC desde 1995.

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    negociações e negociações bilaterais para a solução desses impasses, os quais podem

     produzir regras que contrariam muitas vezes a primazia do multilateralismo na geração de

    governança global. Essa governança, como um bem público internacional, seria a condição

     para o enfrentamento comum dos problemas mundiais, a requerem crescentemente

    cooperação, coordenação supranacionais para serem resolvidos.

    Um bom exemplo é a questão dos investimentos externos. Os países desenvolvidos

     buscam criar regras em várias organizações internacionais concomitantemente, gerando

    sobre o tema um  framework institucional confuso, contraditório e pouco coordenado que

    não leva a nenhum avanço nas negociações internacionais, especialmente em benefício dos

     países que sofrem os impactos negativos da instabilidade global derivada da ampla

    desregulamentação financeira. O objetivo estratégico dos países mais ricos parece ser fazer

     prevalecer o status quo, permitindo um avanço adicional do processo de desregulamentaçãoque favorece os mais fortes. Acabam entrando nesse jogo o FMI, o Banco Mundial, e a

    OCDE, em oposição aberta à necessidade de controle de capitais proposta por outras

    agências da ONU e pelos países mais pobres na Rodada Doha da OMC.

     No que toca à competição, o objetivo é desenvolver uma estrutura multilateral

    voltada para assegurar que os ganhos produzidos pela liberalização não sejam erodidos por

    comportamento anticompetitivo dos atores privados. Porém, o tema foi excluído da atual

    rodada por não ser considerado prioridade entre os países em desenvolvimento. O tema de

     padrões trabalhistas não contabiliza sucessos no âmbito da OMC. As propostas de inclusão

    desses padrões, desde a fundação do GATT, falharam por diversos motivos, mas um

    constante é a preocupação de se tornarem barreiras não-tarifárias.

     Na relação entre comércio e meio ambiente existem opiniões polêmicas e

    contrastantes. Alguns temem que normas ambientais restrinjam exportações, enquanto

    outros são favoráveis a critérios mais rígidos de proteção ambiental. Embora a OMC não

    tenha um acordo específico para o tema, existem várias regras dispersas sobre ele pelos

    acordos. Os países desenvolvidos exigem respeito às normas de proteção ao meio ambiente

    no processo de produção como condição para a entrada de produtos dos países menos

    desenvolvimentos em seus mercados. Para tanto, utilizam-se de jurisdição do CDB

    (Convention on Biological Diversity). Entretanto, empresas transnacionais constantemente

    apropriam-se ilegalmente de riquezas biológicas e naturais dos países mais pobres,

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     patenteando-as internacionalmente e exigindo seu cumprimento baseado nas normas das

    TRIPS, com apoio irrestrito dos seus países de origem A mesma dinâmica também se

    reproduz na questão do comércio e trabalho.

    A questão TRIPS só fugiu desse padrão no caso da AIDS. Nesse caso, sob forte

     pressão de países mais pobres interessados e apoio de ONGs, houve coordenação inter e

    intra-organizações internacionais - OMC, OMS e OMPI - para a solução do impasse entre

    respeitar-se os acordos de direito de propriedade intelectual ou flexibilizá-los. Isso permitiu

    aos países com risco epidêmico definirem situações de emergência nacional nas quais

    tornou-se permitido quebrar patentes de medicamentos em prol do interesse público. Essa

     posição sagrou-se vitoriosa quando, em 2001, assinou-se um acordo entre as três

    instituições permitindo a quebra de patentes em casos específicos, desde que haja

    comunicação prévia aos detentores dos direitos de propriedade intelectual. Tratou-se, pois,de experiência bem sucedida em favor da geração de bens públicos globais, que poderia ser

    ampliado em outros casos.

    Por fim, a questão de comércio e padrões de produtos - isto é, as características de

    um produto como critério para sua comercialização - é tema conectado à globalização da

     produção. Argumenta-se que padrões técnicos e de qualidade são necessários por diversos

    motivos, da proteção à saúde dos consumidores até a uniformização de especificações para

    consumo global, mas há a preocupação de tais padrões se tornarem barreiras ao comércio.

    O tema conta com acordo no âmbito da OMC, mas seu debate não está concluído.

    A governança do comércio internacional e de temas relacionados a ele é desafio que

    não pode ser superado exclusivamente pela OMC. É preciso coordenação com outras

    organizações internacionais. Particularmente, a OMC precisa lidar com desafios peculiares

     para melhorar seu desempenho, como o processo decisório, o Mecanismo de Solução de

    Controvérsias e a participação da sociedade civil. No que toca especificamente à

    coordenação internacional, Thorstensen argumenta que há avanços, mas grandes

    dificuldades. Dentre as dificuldades estão a escolha das organizações globais e regionais a

     participarem como observadoras, muitas vezes bloqueadas por motivos políticos; a

     participação efetiva dessas organizações nos processos da OMC, as quais não são

    convidadas para as reuniões informais, que são onde as decisões importantes ocorrem; e os

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    impactos das decisões de outras organizações internacionais sobre a OMC que, por não

     poderem ser impostas à essa organização, demandam cooperação.

    O sistema comercial não se limita ao âmbito multilateral, entendido como algo

    mundial. Conta com a participação paralela, algumas vezes integrada e outras

    contraditórias, de sistemas regionais, os quais também definem regras e buscam governar

    fenômenos e relações no plano regional. Estima-se que são cerca de 300 os acordos

    comerciais regionais. Analistas dividem-se quanto à influência dos blocos regionais para o

    sistema multilateral. Uns entendem que são contrários à globalização, outros que vão ao

    encontro dela. Uma interpretação corrente é que os acordos regionais são impulsionados

     pela insuficiência das regras da OMC e outras organizações em alguns temas.

    Para a autora, a prevalência dos impasses já citados está conduzindo os países

    desenvolvidos a apostarem em estratégias bilaterais e regionais de negociações. Proliferam-se acordos regionais e bilaterais que tendem a comprometer as vantagens já alcançadas pela

    agenda multilateral da OMC, minando seu papel de governança global. Os EUA vêm

    apostando intensamente nessa direção, utilizando seu poder e o tamanho de seu mercado

     para concluir inúmeras negociações isoladas para evitar os constrangimentos do

    multilateralismo: é o caso dos acordos recentes com Israel, Chile e países andinos latino-

    americanos. O mesmo vem ocorrendo com a União Européia na sua expansão para o Leste

    e com México e outros países.

    Diante desse cenário, “the commitment of nations to multilateralism, universal

    values and common goals are vitally conditioning the quality of global governance”.

    Portanto, somente a retomada de intensas negociações “among representatives of members

    of all related organisations and a constant dialogue among them can” tentar superar o

    impasse atual e “create the conditions for global agreements” .

    6. Cooperação Bilateral União Européia-América Latina: Perspectivas à Governança

    É sabido que União Européia e América Latina compartilham valores como

    democracia, direitos humanos, meio ambiente, Welfare State e multilateralismo. Mas essa

    condição não tem sido suficiente para compatibilizar interesses dos Estados e das

    sociedades dos blocos, já que em inúmeras ocasiões essas regiões encontraram-se em

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     posições opostas. Apesar disso, a parceria com a UE com vistas à harmonização de

     posições e ações nos foros internacionais poderá significar um incremento no poder dos

     países da América Latina e uma oportunidade para a ampliação do espaço estratégico da

    UE. Um eixo euro-latino-americano em torno daqueles valores teria um razoáve