gourmet internacional

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internacional A cozinha dos imigrantes no Brasil anuário 2012 Gourmet Cozinha une oceanos e exalta diferenças. Negócio da gastronomia. Porque comer é central. Yes, nós não tínhamos banana. Imigrantes formam o paladar brasileiro. À mesa com italianos, libaneses, japoneses, portugueses, armênios, alemães, espanhóis e franceses. A paixão pelo churrasco. Marcas da moderna gastronomia brasileira. Albino Castro. Dácio Nitrini. Fouad Naime. J. A. Dias Lopes. Mario de Almeida. Pola Galé. ANO 1 | Nº 1 | R$ 14,90

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Gourmet Internacional aborda as influências dos povos que emigraram para o Brasil ao longo dos séculos e, ainda que mal sucedidos no intento de permanecer, deixaram como marca indelével de sua presença o modo como lidam com a alimentação.

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Page 1: Gourmet Internacional

internacional

A cozinha dos

imigrantes no Brasil

anuário 2012

Gourmet

Cozinha une oceanos e exalta diferenças. Negócio da gastronomia.

Porque comer é central. Yes, nós não tínhamos banana. Imigrantes

formam o paladar brasileiro. À mesa com italianos, libaneses, japoneses,

portugueses, armênios, alemães, espanhóis e franceses. A paixão

pelo churrasco. Marcas da moderna gastronomia brasileira.

Albino Castro. Dácio Nitrini. Fouad Naime. J. A. Dias Lopes.Mario de Almeida. Pola Galé.

Ano 1 | nº 1 | R$ 14,90

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Page 4: Gourmet Internacional

2

Cozinha une oceanos e exalta diferençasEclético cardápio nacional não renega a origem

por Albino Castro

o pintor holAndês AlBert eckhout (1610-1665) retrAtou, entre 1637

e 1644, no recife de MAurício de nAssAu, os cocos originAlMente

trAzidos dA índiA pelos portugueses. o quAdro está eM copenhAgue

e integrA A coleção do Museu nAcionAl dA dinAMArcA.

ApresentAção

Ingredientes do Novo Mundo transformaram o

paladar europeu, no século XVI, com a introdu-

ção nas cozinhas do Velho Mundo, por exemplo,

de batata, milho e tomate. Muitos são os ale-

mães que acreditam que a kartoffel, a batata, é o mais

antigo dos alimentos dos povos germânicos. Inúme-

ros ainda são os italianos capazes de jurar que o pomo-

doro, o tomate, base do sugo que dá sabor às massas

e pizzas, seja genuinamente napolitano — e que tipi-

camente veneziana é a matéria-prima da tradicional

polenta, o milho, popularíssimo também há séculos

na Península Ibérica. O pão de milho está mais pre-

sente no Norte de Portugal e na região espanhola da

Galícia do que mesmo no Brasil. Mas já nos primeiros

anos da presença da Espanha e de

Portugal nas Américas muitos itens

da cozinha européia foram trazidos

para cá — bem como frutas de ori-

gem asiática e africana. Como ba-

nana, coco, manga, cana-de-açúcar

e carambola. É provável que muitos

de nossos compatriotas também

acreditem, erradamente, que os co-

queiros dominassem a paisagem

das praias do sul da Bahia quando

lá aportou Pedro Álvares Cabral. Os

coqueiros só chegariam às praias do

Brasil décadas depois, trazidos da Índia.

A influência da gastronomia da Europa no Brasil

se intensificou a partir de 1808, com a transferên-

cia de Lisboa para o Rio de Janeiro da Corte Imperial

portuguesa de Dª– Maria I (1734-1816) e do filho, então

príncipe regente D. João VI (1767-1826). Única metró-

pole de todas as Américas a ser capital de um Império

europeu, onde o sol, à época, nunca se punha, o Rio de

Janeiro ainda hoje é profundamente lusitano à mesa. A

europeização aumentaria mais ainda nas Américas, do

Canadá ao Uruguai, com o desembarque no continente

de milhões e milhões de imigrantes entre meados dos

séculos XIX e XX. Principalmente em metrópoles como

Nova York, São Paulo e Buenos Aires — e, por isso, as

três cidades, das quais apenas uma é capital nacional,

são à mesa uma síntese da própria história da emigra-

ção dos povos europeus, bem como do Oriente Médio

e do Extremo Oriente. As massas, do

spaghetti à lasanha, desde os anos

1930 se tornaram a pièce de résistan-

ce dos almoços de domingo dos pau-

listas. São Paulo é a mais italiana das

capitais do País — e também a mais

libanesa e japonesa. Onde o quibe e o

Sushi há décadas freqüentam, lado a

lado, as mesas de buffet da cidade.

Esta edição de GOURMET Inter-

nacional é consagrada ao eclético

Page 5: Gourmet Internacional

3GOURMET

As vendedorAs BAiAnAs de AcArAjé

são personAgens seMpre presentes nA

extensA oBrA do MAis BAiAno de todos os

Argentinos, cAryBé, Apelido que o ArtistA

portenho hector BernABó (1911-1997)

gAnhou nA infânciA no rio de jAneiro.

cAryBé nAsceu eM lAnús, nA grAnde

Buenos Aires, e se trAnsferiu eM 1950 pArA

sAlvAdor. tinhA o título de oBá de xAngô

— posto honorífico do cAndoMBlé.

cardápio nacional que, sobretudo

em São Paulo, foi influenciado

pelo paladar de povos de todo o

mundo, porém, jamais renegou

os primeiros séculos de sua cozi-

nha, nas quais fortes são as influ-

ências dos portugueses, índios e

africanos — que originaram o que

conhecemos como cozinha dos

Bandeirantes. As Entradas e Bandeiras avançaram

a oeste, entre os séculos XVI e XVIII, nos territórios

vizinhos à área delimitada para o Brasil no Tratado

de Tordesilhas. Chegaram até a Cordilheira dos An-

des, no início do século XVII, e há quem acredite que

estiveram no Pacífico. Mas, por ordem dos espanhóis,

que na ocasião eram soberanos do Brasil, retornaram

à margem esquerda do Rio Paraná e se embrenharam

na Amazônia. Portugal fez parte da coroa de Espanha

de 1580 a 1640. Bandeirantes conquistaram cinco

dos 8,5 milhões de metros quadrados do atual terri-

tório brasileiro. Foram eles os primeiros a misturar

elementos da cozinha portuguesa aos ingredientes

nativos, difundindo o hábito dos índios de comer nas

refeições a fari-

nha de mandio-

ca — origem da

brasileiríssima

farofa.

P r i m o rd i a l

também nos

fundamentos da

cozinha do Brasil dos primeiros séculos é o tempero

africano — dominante nas casas das famílias vindas

da metrópole. Foi na Bahia que povos trazidos como

escravos da África criaram, sob várias influências,

uma requintada culinária, mesclando ingredientes

indígenas, africanos, portugueses e indianos. As ca-

ravelas portuguesas que deixavam os portos da Índia,

com destino a Lisboa, atracavam em Salvador, o que

aconteceu até os anos 1960, quando Portugal perdeu

os três últimos territórios indianos — Goa, Damão e

Diu. Muitos elementos da apimentada cozinha baiana

são diretamente inspirados nas milenares tradições

dos povos do Oceano Índico. Deixaram ainda marcas

na cozinha baiana alguns itens das regiões africanas

de hegemonia islâmica, como a Nigéria e o Daomé,

atual Benin — influenciados, talvez, pelos poucos es-

cravos de origem muçulmana. Um dos exemplos é o

cuzcuz, na versão salgada paulista, atribuída nor-

malmente aos Bandeirantes como seus criadores,

ou à maneira nordestina adocicada. Ambas são asse-

melhadas ao cuscuz das regiões do Magreb, no norte

da África, e ao da ilha italiana da Sicília — herança,

provavelmente, do período de mais de dois séculos, de

827 a 1060, em que esteve sob controle dos muçulma-

nos da dinastia persa dos Abassides. Outro exemplo

é o acarajé, que tudo indica tem origem no falafel,

massa frita à base de fava, muito comum no Oriente

Médio e em quase toda a África.

Bom proveito!

Primordial na cozinha do Brasil é também o tempero africano

Page 6: Gourmet Internacional

4

Sumário

Apresentação2 Cozinha une oceanos e exalta diferenças

Negócio 6 porque comer é central

72 Grandes redes de um cardápio universal

73 Almanara

74 America

75 Gendai

76 Graal

77 ráscal

História12 Yes, nós não tínhamos banana

18 É de churrasco que o gaúcho gosta

Imigrantes22 Imigrantes formam paladar brasileiro

26 Itália — Una cucina brasiliana cem por cento italiana

34 Japão — A comida do Japão desafia os tempos

40 Líbano — A montanha que inspirou a cozinha dos cedros

44 Fouad naime — segredos são mantidos em família

MAior dos ícones dA cozinhA

itAliAnA, o spaghetti, plurAl de

spaghetto, que significA cordão,

conquistou há quAse ceM Anos

o pAlAdAr BrAsileiro.

Muitos duvidAM, eM toM de AnedotA, que BAcAlhAu tenhA cABeçA,

MAs Aqui ApresentAMos de corpo inteiro A pAixão dos portugueses.

Page 7: Gourmet Internacional

5GOURMET

drAMáticA iMAgeM dA

eMigrAção pArA As AMéricAs, no

porto de lA coruñA, nA região

espAnholA dA gAlíciA, quAndo

Mulheres eMpurrAM os próprios

BAús, nos Anos 1930, eM BuscA

de uM sonho que fez MilhAres

de gAlegos vireM pArA o BrAsil

— onde deixAriAM MArcAs

no pAlAdAr do pAís. espAnhóis

fundArAM eM sAlvAdor uM

dos cluBes MAis populAres dA

BAhiA, o gAlíciA e. c. (flâMulA Ao

lAdo), lendário deMolidor de

cAMpeões.

quAdro A FeiRA i, de tArsilA do AMArAl (1886-1973),

MostrA coM cores fortes e trAços ModernistAs o

Mundo encAntAdo de nossos MercAdos Ao Ar livre.

heróis nacionais de alguns dos países que mais influenciaram o paladar brasileiro através dos seus imigrantes nos séculos xix e xx.giuseppe

gAriBAldiisABel

lA cAtólicAd. Afonso henriques

Béchir ii chehAB

otto vonBisMArck

nApoleãoBonApArte

iMperAdorMutsuhito

48 portugal — À mesa em portugal como no Brasil

51 Leite — É portugal falando para o mundo

54 Alemanha — Muito além da salsicha e da salada de batatas

60 espanha — Caballeros, paella para todos!

66 França — Le BrÉsIL uma obsessão francesa

Turismo 78 Glamour volta aos hotéis pelo talento dos chefs

Colunas32 J. A. Dias Lopes — Bom trabalho dos nossos rapazes

46 Dácio nitrini — o forno e os sabores das esfihas da Luz

70 Mario de Almeida — As ostras quentes do chef peyrot

Última Página80 o homem é o que come

Page 8: Gourmet Internacional

6

Analisar a população de uma cidade, de um

país ao longo do tempo, é uma perspecti-

va promissora para identificar como são

saciadas as necessidades alimentares em

diferentes locais e épocas. Mais do que o paladar, fo-

ram a geografia, a economia e a religião a nos compe-

lir dietas, induzir à formulação de receitas e a deter-

minar as culturas e animais a serem domesticados.

Durante a maior parte da história, esses e outros fa-

tores fizeram a moldagem constante das preferências

ao meio, não o contrário.

Está à mesa boa parte do registro do passado. Em

nossa vida nutricional alguns aspectos foram de tal

maneira determinantes que, ao constatá-los, revisita-

mos milhares de anos. A conservação dos alimentos

tem início no uso do fogo, e a vanguarda na liofiliza-

ção passa pelo uso das especiarias e pela pasteuriza-

ção, do homem das cavernas ao astronauta, da Pré-

-História à Modernidade.

E se a mesa diz tanto sobre as contingências e pos-

sibilidades do passado, o que dirá sobre o Brasil con-

temporâneo? Ou mantida a ordem: o que diz a respeito

da mesa o sétimo Produto Interno Bruto do mundo,

dono de uma moeda forte, economia estável, às mar-

Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro

neGóCIo

por Fábio Caldeira Ferraz

Page 9: Gourmet Internacional

7GOURMET

Porque comer é centralEconomia saudável altera cardápio do brasileiro

ABrigAdos eM uM BAr de uMA cidAde toMAdA pelo

silêncio e pelo sono, os notívAgos de nighthAWks têM

nA BeBidA dAs xícArAs nAdA MAis do que o pretexto

pArA uMA interAção distAnte. já, Ao lAdo, eM AutoMAt

é A xícArA queM fAz As vezes de AcoMpAnhAnte eM uM

BAr vAzio. novAMente, o consuMo do AliMento pArece

existir Ali pArA Atender A outrA finAlidAde, eM nAdA

ligAdA À refrescânciA proporcionAdA por uM chá frio

ou conforto de uMA xícArA de cAfé quente. AMBos

os quAdros, o priMeiro feito eM 1942 e o segundo eM

1927, são de AutoriA do pintor reAlistA AMericAno

edWArd hooper (1882-1967).

Page 10: Gourmet Internacional

8

neGóCIo

gens do pleno emprego e terceiro maior exportador

agrícola — em verdade, segundo, uma vez que os euro-

peus são contabilizados em conjunto? Especialmente

porque o cenário é de rápida transição.

Mantida a tendência, em poucos anos nossos

hábitos serão compatíveis com os verificados em

países mais desenvolvidos, sobretudo nos Estados

Unidos. A exemplo dos americanos, estamos comen-

do mais fora de casa. No

ano passado, de cada R$

100 gastos com alimen-

tação — “investidos”, dirá

o gourmand —, R$ 31 re-

ferem-se à aquisição de

refeições preparadas fora

do lar ou no mercado de

food service, como prefere a Associação Brasileira

das Indústrias de Alimentação (ABIA). Nas contas da

entidade, o faturamento praticamente dobrou nos

últimos anos.

Na América de 2010, o food service chegou a 48%

dos dispêndios feitos pela população — um total de

vendas de US$ 529 bilhões. Para aquinhoar uma fra-

ção dos R$ 75 bilhões vendidos no Brasil de 2010, 1,4

milhão de estabelecimentos — entre hotéis, restau-

rantes, bares, lanchonetes, padarias, deliveries, ca-

fés, sorveterias e outros pontos de refeições rápidas —

mantiveram 6 milhões

de postos de trabalho e

investiram em produtos

e serviços condizentes

com as necessidades do

brasileiro de hoje. Que é

majoritariamente urba-

no, com renda crescen-

te, acossado pela falta

de tempo, com muitas

dificuldades logísticas

e de hábitos alimenta-

res amplos: apreciador

do junk food e da comi-

da saudável, do tradi-

cional arroz com feijão

e da culinária étnica, da simplicidade e da alta gas-

tronomia.

Parte disso foi possível pela incorporação de equi-

pamentos e processos que reduziram o tempo de fei-

tura dos pratos. O Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística (IBGE) observou em estudo o que mui-

tos já perceberam — mesmo estabelecimentos mais

sofisticados minimizaram sensivelmente o tempo

de espera. Nos 1970, a de-

pender da escolha no res-

taurante, o cliente pode-

ria aguardar por até duas

horas a iguaria. Duas dé-

cadas depois, o “bon appé-

tit” do garçom era pronun-

ciado 15 minutos após a

escolha — desempenho relativamente próximo ao de

uma lanchonete ou restaurante por quilo.

A boa performance econômica do food service en-

contra causa e efeito também no barateamento relativo

dos ingredientes e na expansão das redes de atendi-

mento. Outro elemento externo com aparente influên-

cia sobre o tema é o aumento da participação das mu-

lheres na População Economicamente Ativa (PEA). A

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD),

de 1971, reconhece apenas 23% da PEA como do gênero

feminino. Em 2008, o percentual era de 43,6%.

Motivada por ques-

tões materiais e cultu-

rais, a ida das mulheres

ao mercado de trabalho

parece ter sepultado a

ordem anterior, calcada

na pontualidade da reu-

nião familiar à mesa,

no preparo da refeição

pelas mãos da principal

figura feminina da casa

e na qual a opção “co-

mer fora” era entendida

como luxo ao qual só

eventualmente se podia

recorrer. Na ordem atu-

Duas décadas depois, o “bon appétit” do garçom era dito 15 minutos após a escolha

MercAdo de AliMentAção no BrAsil (eM r$ Bilhões)*

* Vendas da indústria de alimentação por canal. Fonte: ABIA.

Varejo Food Service

200

140

180

120

80

60

40

20

02005 2006 2007 2008 2009 2010

160

100

Page 11: Gourmet Internacional

9GOURMET

al, o mercado de alimenta-

ção fora do lar persegue a

massificação da oferta, o

rápido acesso e satisfação

do desejo, a celebrização

de personagens do seg-

mento, como empresários

e chefs, e o enaltecimento

acrítico de marcas.

Mesmo com todos

os estímulos ao barate-

amento, a coluna direi-

ta do cardápio continua

desagradando a muitos.

Safras recordes no cam-

po, demanda aquecida e

ampliação da oferta têm

se mostrado incapazes

de estabilizar os preços.

Capitais como São Paulo

e Rio de Janeiro já osten-

tam estabelecimentos com

valores acima dos pratica-

dos em países de renda per

capita bem superior à bra-

sileira — e isso vale tanto

para restaurantes de pri-

meira linha quanto para

lanchonetes.

Publicado todos os

anos pela revista semanal

inglesa The Economist, o

Índice Big Mac, ao lado,

compara entre os países

o valor do famoso sanduíche da rede americana

McDonald’s, considerando o postulado pela teoria

da paridade do poder de compra, que busca auferir

quanto uma determinada moeda pode comprar glo-

balmente. Em valores absolutos, o lanche por cá só

não é mais caro que na Suécia, Suíça e Dinamarca,

respectivamente, US$ 7,64, US$ 8,01 e US$ 8,31, con-

tra US$ 6,16. O indicador de 2011 aponta ainda o real

como a moeda mais valorizada entre os países do

mundo em relação ao dólar

— 149%.

Longe de minimizar os

problemas cambiais ou os

preços no mercado mundial

de commodities, em alta re-

nitente desde 2008, comer

fora de casa por aqui impli-

ca obrigatoriamente lidar

com questões locais que en-

gordam a conta — e a lista

de inflacionantes é enorme,

a despeito de quem a faça.

Acadêmicos, empresários e

representantes de entidades

do segmento responsabili-

zam, no front externo, três

grandes grupos pelo cerne

do problema. Carga tribu-

tária, legislação e infra-es-

trutura têm pressionado a

subida dos preços, ainda não

ao ponto de fazer recuar as

taxas de crescimento do food

service, mas de impedir uma

expansão mais rápida, na

opinião da Associação Brasi-

leira de Bares e Restaurantes

(Abrasel). Para a entidade, o

ritmo médio de ampliação

de 18% ao ano, verificado en-

tre 2005 e 2010, poderia ser

maior não fosse o trio.

É dificílimo sustentar a

viabilidade financeira de um food service em grandes

centros urbanos do País. O empreendedor precisa li-

dar com uma carga tributária que sorve anualmente

de 35% a 40% de toda a riqueza produzida pelo setor

privado, um Estado sempre disposto a legislar. Dos lo-

cais nos quais as pessoas devem ou não fumar à forma

como é oferecido o couvert. Somado ao encarecimen-

to dos imóveis, aos imprescindíveis gastos com segu-

rança, a uma logística que, para se viabilizar, se vale

DINAMArCA

SuíçA

SuéCIA

BrASIL

EStADoS uNIDoS

HoNG KoNG

Us$ 8,31

Us$ 8,01

Us$ 7,64

Us$ 6,16

Us$ 4,07

Us$ 1,94

Índice Big Mac

o índice Big MAc the econoMist, A pArtir de 2011, pAssou

A AnAlisAr tAMBéM A relAção de vAlor entre As MoedAs

dos MAis de ceM pAíses pesquisAdos, tendo o dólAr coMo

divisA de referênciA, e não ApenAs o preço do lAnche eM

vAlores ABsolutos nestA MoedA. o reAl é A MoedA MAis

soBrevAlorizAdA do Mundo Ante o dólAr — 149% —, enquAnto

o sAnduíche BrAsileiro, nos cálculos dA revistA BritânicA, é o

quArto MAis cAro do Mundo, e o de hong kong, o MAis BArAto.

o topo do ranking é ocupAdo pelA dinAMArcA.

Page 12: Gourmet Internacional

10

neGóCIo

dos fretes mais caros do

mundo e às dificuldades

de manter um ponto co-

mercial em endereços

com escassez de vagas

para carros. De cem esta-

belecimentos abertos, na

capital paulista, apenas

três completam dez anos.

Trinta e cinco fecham em

12 meses, uma tragédia

para um dos ramos que,

atualmente, mais atrai

novos empreendedores.

Outra lista de ingre-

dientes ajuda, no front

interno, a salgar os pre-

ços. “Falta de planejamento, falta de profissionalismo

e, principalmente, muitos empresários acham que

abrir um restaurante é ter alguém que cozinhe bem, o

que tem se comprovado bastante errado”, afirma Mar-

celo Traldi, professor de Gastronomia

do Centro Universitário Senac e autor

do livro Tecnologias Gerenciais de Res-

taurantes. Ele defende a melhora do

quadro a partir da experiência da maio-

ria dos bons chefs, que tem se associa-

do a pessoas com visão de gestão, divi-

dindo assim as tarefas de acordo com a

especialização de cada um.

Não obstante o inadiável ganho de

eficiência, os agentes do mercado de

food service sabem que ainda há muito

espaço para expansão. A experiência

americana ensina que o crescimento

da renda da população tende a ser re-

vertido em maior consumo no segmen-

to — exatamente o que ocorre por aqui.

A própria crise pela qual passam Euro-

pa e Estados Unidos tem sido bastante

didática. A readequação dos hábitos

alimentares não está acompanhando o

agravamento do cenário econômico. Ou

seja, menos empregos e menor renda não têm feito as

pessoas voltarem, necessariamente, a comer em casa.

Nos últimos três anos, houve um recuo de apenas 2%

nos gastos dos americanos com a alimentação fora do

lar, o que sugere uma certa consolidação

dos hábitos atuais.

Talvez estejamos diante de uma ir-

reversível mudança — a exemplo da in-

corporação ao cotidiano de celulares

e computadores domésticos. Como no

passado, fatores externos hegemônicos

moldaram as “necessidades” alimenta-

res — a novidade agora está no alcance

global do modelo, que se mostra a ex-

pressão maior de uma conquista. Enri-

quecemos de subjetividade algo objeti-

vo e primário como o ato de comer. Hoje

ele se mantém central não somente por

que desejamos ingerir um conjunto de

nutrientes que satisfaçam as demandas

do organismo, mas, sobretudo, porque

perseguimos o prazer dos sabores, as

experiências dos locais onde fazemos

refeições e as relações com quem divi-

dimos a mesa. Comíamos, no passado,

movidos pela fome; agora, por desejo.

trintA e dois quAdros coM uMA

pinturA de lAtA de sopA cAMpBell’s

forAM suficientes pArA suscitAr, eM

1962, o deBAte soBre enAlteciMento

Acrítico dAs MArcAs pelA

puBlicidAde e pelAs Artes. A fAMosA

oBrA do ArtistA Andy WArhol (1928-

1987) foi ApoiAdA forMAlMente

pelA fABricAnte do enlAtAdo,

contriBuindo pArA consolidAr

A pop Art nos estAdos unidos dA

contrAculturA.

Almoço e jantar

refrigerantes, cervejas e outros

Sanduíches e salgados

Agregadas e outras

Café da manhã

distriBuição dos gAstos coM food service

Fonte: IBGE/POF 2003 e ABIA.

2%7%

26%

23%

42%

Page 13: Gourmet Internacional
Page 14: Gourmet Internacional

12

hIstórIA

Yes, nós não tínhamos bananaCozinha brasileira se beneficiou das rotas lusitanas

Os relatos são inúmeros e as fontes as mais

diversas. De cronistas, padres, senhores

de engenho, humanistas a viajantes e até

corsários. As nacionalidades dos autores

formam outro mosaico. São franceses, ingleses, ale-

mães, italianos, espanhóis e portugueses. Com base

no testemunho dos viajantes que estiveram no Brasil

entre os séculos XVI e XIX, é possível determinar a

trajetória da cozinha brasileira. Todos reportam, em

detalhes, os hábitos alimentares, a culinária e os in-

gredientes utilizados no decorrer dos séculos. Assim,

o encontro do Velho com o Novo Mundo expõe suas di-

ferenças através dos primeiros contatos e, a partir daí

vão trocar experiências em técnicas de preparo, sabo-

res e misturas. Um exemplo, bem sucedido, é a “mesti-

çagem” da cozinha indígena com a portuguesa. Na fal-

ta de azeite de oliva, temperavam-se pratos com óleo

de peixe-boi; na ausência de farinha de trigo, faziam-

-se bolos à moda portuguesa, com a fina farinha de

mandioca — chamada de carimã. Quando vinho de uva

era um artigo raro, colonos e viajantes apreciavam as

bebidas indígenas, fermentados feitos de mandioca,

milho e de variados frutos nativos. Cada povo extraiu

o melhor da troca. Os europeus ampliaram o paladar

com as iguarias indígenas como a tanajura frita, as

rãs, os cágados, as cobras e o bicho-de-taquara. Já os

quArto AliMento MAis consuMido no

Mundo, cultivAdA eM cercA de 130 pAíses,

A BAnAnA teM origeM no sudeste Asiático,

nAs regiões que coMpreendeM hoje MAlásiA,

indonésiA e filipinAs. cientes dAs fAcilidAdes

de cultivo nos trópicos, os portugueses

iniciArAM o plAntio sisteMático no pAís já

no século xvi. o Alto retorno oBtido pelos

Agricultores consolidou A culturA, fAzendo

do BrAsil o segundo MAior produtor

MundiAl dA AtuAlidAde. tAMAnhA foi A

ABundânciA dAs colheitAs, eM certAs épocAs,

que os preços despencAvAM drAsticAMente,

dAí A expressão BrAsileiríssiMA “preço de

BAnAnA”. A crônicA políticA tAMBéM se

vAleu do fruto pArA clAssificAr Alguns

regiMes políticos dA AMéricA lAtinA pouco

institucionAlizAdos, dAí “repúBlicA dAs

BAnAnAs”. Ao lAdo, A versão pop dA BAnAnA

bY Andy WArhol (1928-1987). A ilustrAção

foi usAdA coMo cApA do lp THe VeLVeT

UNDeRGROUND & NiCO, de 1967.

por Camila taquari

Page 15: Gourmet Internacional

13GOURMET

Yes, nós não tínhamos bananaCozinha brasileira se beneficiou das rotas lusitanas

Page 16: Gourmet Internacional

14

hIstórIA

índios não gostaram muito das plantas e animais tra-

zidos pelos portugueses. Criavam galinhas para ven-

dê-las, mas não as comiam.

A formação da cozinha brasileira também se bene-

ficiou das rotas marítimas lusitanas entre o Oriente,

a América, a Europa e as Ilhas Atlânticas, nas quais

se transportavam plantas

e animais. Os portugue-

ses foram responsáveis,

no século XVI, por uma

forma de “intercâmbio”

botânico, com ampla di-

fusão de espécies nati-

vas, ao redor do globo.

Para o Brasil, foram tra-

zidas espécies asiáticas,

européias e africanas, e

daqui seguiram para os

quatro cantos do globo,

pelas viagens comerciais,

provocando permanentes

transformações na ali-

mentação, agricultura e

economia do mundo.

A paisagem litorânea

nordestina, no início do

século XVI, não ostentava os esplêndidos coqueirais,

já que a planta asiática ainda não havia sido trazida

pelos portugueses. Assim como as mangas e jacas,

frutas da Índia que só chegariam dois séculos depois.

Uma das primeiras a serem plantadas aqui, a banana,

nativa do sudeste asiático, provavelmente percorreu

um caminho mais rebuscado, veio da Ilha de São Tomé,

na África, também colonizada pelos portugueses. A

cana-de-açúcar, mais um exemplar da Ásia, chegou

ainda no século XVI e gerou todo um ciclo econômico,

além de impulsionar o transporte em larga escala dos

africanos, que também deram um toque especial na

culinária brasileira, com seu paladar mais apimenta-

do. Com as especiarias oriundas da Índia, como gen-

gibre e pimenta-do-reino, criaram alguns dos pratos

baianos mais famosos, cujos sonoros nomes, apesar

dos ingredientes asiáticos, denotam imediatamente

as raízes africanas. Como a moqueca, acarajé, bobó,

caruru e vatapá.

De Portugal vieram, laranjas, limões, marmelos,

figos e melões, assim como couves, alfaces, salsi-

nha, coentro e diversos legumes e verduras. Além

dos animais nativos, empregados na alimentação

Especiarias vindas da índia, como o gengibre e a pimenta-do-reino,

criaram pratos baianos

jeAn-BAptiste deBret (1768-1848)

MontA uM flAgrAnte-síntese

dA interAção entre senhores e

escrAvos, de cAsA-grAnde e senzAlA,

do BrAsil iMperiAl, nA AquArelA

UN DÎNeR BRÉSiLieN, produzidA eM

1827. exlorAção, Afeto, indiferençA,

funcionAlidAde, pertenciMento. A

relAção entre os personAgens não

perMite siMplificAções, é nuAnçAdA,

coMplexA e contrAditóriA

eM seu âMAgo.

indígena, os portugueses

introduziram as vacas,

porcos, cabras, carneiros

e galinhas. Tudo isso di-

versificou o cardápio bra-

sileiro. A troca de culturas

gastronômicas acontecia

predominantemente nas

costas brasileiras, já que o interior, carente de atrati-

vos imediatos, permaneceu quase inexplorado até as

expedições dos Bandeirantes. Os desbravadores pau-

listas partiram do Campo de Piratininga, atual Pateo

do Collegio, em São Paulo, somente no final do século

XVII e avançaram em direção ao sertão. Alargaram o

espaço geográfico e, segundo Gilberto Freyre (1900-

1987), construíram um país: “É uma civilização, a bra-

sileira, saída dos grandes arrojos Bandeirantes, sem

os quais não teria o Brasil adquirido sua vastidão em

espaço físico”, afirma o célebre sociólogo pernambu-

cano na obra Brasil Açucareiro.

A ausência de mulheres européias nas expedições

levou à miscigenação de portugueses com índias, que

acabou se mostrando essencial para a sobrevivência

deles e decisivo para a adaptação dos colonizadores à

alimentação nativa. Ao redor das casas, cultivavam vi-

Page 17: Gourmet Internacional
Page 18: Gourmet Internacional

16

nhedos, trigais, marmeleiros, goiabeiras, pessegueiros,

bem como desenvolviam a criação de animais domésti-

cos e as pastagens de engorda de gado. Os índios eram

seus guias nas incursões pelo sertão e, em suas costas,

carregavam farinha de milho, feijão, utensílios de cozi-

nha e munições para se defender. Mas o principal ele-

mento dessa longa lista era a farinha de mandioca, tão

apreciada pelos índios e uma espécie de personagem

épica da alimentação brasileira. Nativa do sudoeste

da Amazônia, já era utilizada pelos índios tupis. O uso

foi difundido sob diversas

formas na época dos bandei-

rantes. Além da farinha e do

beiju, era utilizada nos bolos

de carimã, polvilhos, gomas

e bebidas fermentadas. Até

hoje, a mandioca é um ali-

mento dos mais importan-

tes, sustentando pessoas não

só na América Latina, mas

também na África e Ásia. A farinha, não sem motivo,

recebeu do historiador potiguar Luís da Câmara Cascu-

do (1898-1986), a qualificação de “rainha do Brasil”, no

livro História da Alimentação no Brasil.

Os bandeirantes aprenderam, pelos caminhos, a

consumir todo tipo de alimentos silvestres: o coração

do palmito, cará, pinhão, amendoim, pacova, jenipa-

po, sapoti, cambuci, jabuticaba, jabuti e maracujá.

Também usavam o mel como um excelente néctar. Já

em épocas de escassez, devoravam pequenas larvas

retiradas da taquara ou do pau-podre, ovos de pássa-

ros, larvas de borboletas e gafanhotos. Para evitar que

a situação se repetisse, plantavam roças de subsistên-

cia no percurso. Colhiam, no caminho de volta, milho,

feijão, abóbora, cará e batata-doce, entre outros legu-

mes. A variedade de carnes, provenientes das caçadas

dos índios, incluía veado, caititu, preguiça, taman-

duá, queixada, capivara, tatu, anta, paca, cutia, gam-

bá, macaco e, literalmente, cobras e lagartos. Com os

índios também aprenderam a comer o peixe fresco

enrolado em folhas de bananeira, assado ou cozido.

O milho e derivados ocupavam papel fundamental na

dieta, dando origem ao angu, canjica, curau, pipoca

e, entre outras delícias, a festejada pamonha. Nascia,

assim, durante as Entradas e Bandeiras, a culinária

paulista.

José de Alcântara Machado (1875-1941) escreveu

em Vida e Morte do Bandeirante: “Ao contrário do

que acontecia no Nordeste, os portugueses e mame-

lucos, moradores da Vila de Piratininga, de vida mais

simples, adotaram a cozinha indígena: consumiam

feijão, palmito, angu de fubá, canjica.” A primeira

refeição do Bandeirante era a jacuba, mistura de fa-

rinha de milho diluída em

água ou cachaça, adoçada

com rapadura. A integração

entre índios e portugueses

deu origem também à cozi-

nha caipira de São Paulo, pro-

duzindo um cardápio exten-

so que contempla salgados

e doces, característicos da

cozinha paulista. Exemplo é

o trivial das segundas-feiras nos bares da capital — o

consagrado virado à paulista. Outros clássicos são o

cuscuz paulista, o pastel, que tem origem remota na

China, a galinhada, o angu, a paçoca de carne-seca ou

de amendoim, o frango caipira ou recheado com faro-

fa, o pernil com farofa, a canjica, o curau, a pamonha,

a marmelada, a goiabada — e muito mais.

Na suas buscas por terra, ouro e índios, os Bandei-

rantes chegaram às Minas Gerais, no final do século

XVII. Levaram os hábitos alimentares para a província

e deram contribuição fundamental na formação da co-

zinha mineira. Procuravam, sempre, carregar alimen-

tos secos e duráveis. Quando pousavam, logo fixavam

o caldeirão em uma corrente, sobre um couro inteiro

de boi em chão batido e começavam a cozinhar o fei-

jão com toucinho, que daria origem ao feijão tropeiro

— prato representativo dessas jornadas. A maneira de

preparar consistia em feijão cozido que, depois de se

retirar o caldo, era refogado em gordura de porco, à

moda portuguesa, e misturado com farinha de man-

dioca. Um prato autenticamente bandeirante, que

muitas vezes se faz acompanhar de frango em suas

inúmeras versões — ao molho pardo, com ora-pro-nó-

Bandeirantes aprenderam a consumir todos os tipos

de alimentos silvestres

hIstórIA

Page 19: Gourmet Internacional

17GOURMET

bis, com quiabo, ao lado do angu e da couve refogada.

Assim como o leitãozinho assado, o milho canjiquinha

com costelinha, a lingüiça e o lombo, sempre prepara-

dos, em Minas Gerais, em panelas de pedra-sabão. Já

no café da tarde não podem faltar broas de fubá ou de

milho, pão de queijo, bolo de fubá, biscoito de polvilho

e sequilhos. Até hoje, quem visita qualquer fazenda

mineira, pode degustar o trivial variado, composto de

feijão refogado na banha de porco, lingüiça, torresmo

e angu. Aos domingos se deliciar com lombo de porco

cApA produzidA pelo pintor

holAndês AlBert eckhout

(1610-1665) pArA A céleBre edição

de 1648 dA HiSTORiA NATURALiS

BRASiLiAe, de AutoriA de georg

MArcgrAve (1610-1644) — que erA

Médico, nAturAlistA, AstrônoMo,

cArtógrAfo e MAteMático. foi o

priMeiro trAtAdo de etnogrAfiA,

lingüísticA indígenA, zoologiA e

BotânicA BrAsileirAs — puBlicAdo

conjuntAMente coM o trABAlho

soBre ervAs MedicinAis do Médico

WilleM piso (1611-1678). A oBrA de

MArcgrAve docuMentA A florA e

os espéciMes vivos encontrAdos

no jArdiM zooBotânico do

pAlácio de friBurgo, construído

por MAurício de nAssAu (1604-

1679) — e AtuAl pAlácio dAs

princesAs, sede do governo

de pernAMBuco.

ou galinha assada, acompanha-

da de couve e farinha de milho.

De sobremesa, algumas colhe-

res de compota de cidra ou de

goiaba. Também o doce de leite,

acrescido de uma fatia de queijo-

-de-minas — fresco ou curado.

Se o típico cardápio mineiro

se manteve praticamente inalte-

rado ao longo dos séculos, o mes-

mo não se pode dizer da culinária

paulista, à qual os imigrantes do

final do século XIX tentaram se

acostumar — não sem grande es-

tranheza. Desembarcados aqui

para trabalhar na lavoura cafeeira, no final do século

XIX, europeus e asiáticos se depararam com o impres-

cindível arroz com feijão, ingredientes trazidos pelos

colonizadores, mas casados no mesmo prato nas Améri-

cas. Encontraram também outras variedades de origem

européia preparadas com ingredientes locais. Mas, ao

longo do século passado, europeus e asiáticos acaba-

riam por influenciar decisivamente o paladar nacional

— sem que se perdesse a contribuição das etnias forma-

doras da nacionalidade brasileira e de nossa mesa.

Page 20: Gourmet Internacional

18

É de churrasco que o gaúcho gostaE todo o Brasil também aprendeu a apreciar

hIstórIA

por evanildo silveira

Page 21: Gourmet Internacional

19GOURMET

Caminhoneiros gaúchos popularizaram em todo

País o churrasco

eM ciMA do pingo, cAvAlo, o gAúcho AtrAvessA os

pAMpAs e As coxiAs, enfrentA frio, vento MinuAno e

chuvA. nuncA ABAndonA o pAgo nAtAl e, coMo nA

oBrA do escritor érico veríssiMo (1905-1975), jAMAis

rejeitA uMA BoA pelejA. A ilustrAção À esquerdA é do

ArtistA cAriocA getulio delphiM.

De um buraco no chão na imensidão dos

pampas gaúchos às mesas de sofistica-

dos restaurantes nas maiores cidades do

mundo. Não há como negar a trajetória

de sucesso do churrasco. Durante muito tempo, foi

um símbolo da comida de gaúcho, tão típico quanto

o chimarrão, a bombacha e as boleadeiras. A carne

assada no espeto é tradição há mais de três séculos

no Rio Grande do Sul. Com o tempo, no entanto, mais

precisamente a partir de meados do século passado, o

churrasco começou a se a espalhar pelo Brasil afora,

virou sinônimo de confrater-

nização dos amigos no final

de semana e hoje é uma pai-

xão nos quatro cantos do país.

E muito além. Também pode

ser saboreado em diversas

partes do planeta, em países

tão diferentes quanto os Esta-

dos Unidos e a China.

O sucesso começou pelas mãos dos caminhoneiros

gaúchos, que transportavam mercadorias por todo o

país e estimularam o surgimento de churrascarias à

beira das estradas. Eram estabelecimentos que ser-

viam rodízio, ou espeto corrido, como se diz no Rio

Grande do Sul, sistema criado para que não faltasse

nenhum tipo de carne aos clientes. A exportação des-

se modo de preparar a carne também se deve aos gaú-

chos, principalmente empresários, donos de churras-

carias que, em busca da ampliação de seus negócios,

abriram filiais em outros Estados e em outros países.

É o caso, por exemplo, da rede Fogo de Chão, nas-

cida no Rio Grande do Sul em 1979, quando os irmãos

Jair e Arri Coser abriram o primeiro restaurante em

Porto Alegre. Sete anos depois, inauguravam a pri-

meira casa em São Paulo, em Moema, na zona sul da

capital, e em 1997, a marca chegava aos Estados Uni-

dos. Hoje, a rede tem mais estabelecimentos fora do

que dentro do Brasil. São sete unidades em território

nacional. Três em São Paulo e mais uma em Brasília,

Belo Horizonte, Salvador e Rio de Janeiro. Dezesseis

nos Estados Unidos, com previsão de abrir uma nova,

ainda em 2011, em Las Vegas, e outra no ano seguin-

te em Orlando, na Flórida. Com faturamento anual

de cerca US$ 170 milhões, o controle da rede Fogo de

Chão não pertence mais aos irmãos Coser. Foi adqui-

rido, em agosto de 2011, pela gestora de fundos de pri-

vate equity GP Investments.

Os apreciadores da rede, no entanto, podem ficar

tranqüilos, pois a mudança de

dono não vai implicar em alte-

ração na maneira de servir e

na qualidade do churrasco ofe-

recido aos clientes. É o que ga-

rante Jandir Dalberto, dirigen-

te da Fogo de Chão, no Brasil.

E ele fala com a propriedade de

quem ingressou na casa há 20 anos, como garçom, e

conhece todos os detalhes da operação. Dalberto afir-

ma que, diferentemente de outras churrascarias, com

buffets repletos de peixes e frutos do mar, Fogo de

Chão concentra-se no principal: a carne. “Nossa força

reside justamente nos cortes de primeira, dos quais se

destacam a picanha, o bife ancho, a costela premium,

a fraldinha, a costeleta de cordeiro e o exclusivo shoul-

der steak — primeiro corte nobre da parte dianteira do

boi”, orgulha-se Dalberto.

Qualidade também é a preocupação número um

da rede Rubaiyat, com cinco restaurantes, três em

São Paulo, um em Madri e um em Buenos Aires, este

com o nome de Cabaña Las Lilas. A história começou

em 1951, quando o jovem Belarmino Iglesias desem-

barcou em Santos, vindo de uma pequena aldeia da

Galícia, região espanhola ao norte de Portugal. Em

São Paulo, Iglesias lavou pratos, trabalhou como aju-

dante de garçom e maître na churrascaria A Caba-

na, uma das melhores da cidade, localizada na época

na Avenida Rio Branco. Foi convidado por seus pa-

trões, em 1957, para ser sócio de uma nova casa, o

Rubaiyat, inaugurado naquele ano na Avenida Vieira

de Carvalho, no centro da capital paulista.

Page 22: Gourmet Internacional

20

hIstórIA

teve vertiginosA Ascensão eMpresAriAl eM são pAulo o espAnhol gAlego BelArMino iglesiAs,

proprietário dos restAurAntes ruBAiyAt, verdAdeiros teMplos dAs cArnes. ele chegou Ao

BrAsil eM 1951 e foi trABAlhAr lAvAndo prAtos nA churrAscAriA pAulistAnA A cABAnA. seis Anos

depois, já erA proprietário do RUBAiYAT — que então tinhA uM só endereço, À AvenidA vieirA de

cArvAlho. As cAsAs de iglesiAs serveM cArnes vindAs diretAMente dA FAZeNDA RUBAiYAT.

Cinco anos depois, Iglesias já era o único dono da

churrascaria. O Rubaiyat da Vieira de Carvalho fe-

chou as portas em 1998. Mas as outras três casas do

grupo em São Paulo mantêm a marca da família Igle-

sias — alta qualidade no prato, oferecendo ao cliente o

melhor produto e um atendimento cordial e caloroso.

Belarmino Iglesias Filho está atualmente à frente

dos negócios da rede. Os Iglesias, além dos restau-

rantes, são proprietários da Fazenda Rubaiyat, em

Dourados, no Mato Grosso do Sul. “Há um trabalho

na fazenda, inclusive genético, que resulta numa se-

leção de bovinos, suínos, frangos, javalis de ótima

qualidade para o corte”, explica Iglesias Filho.

Nas vastidões desabitadas, o gado pastava solto e o

pampeano aprendeu a aproveitar ao máximo tudo o que

o boi tinha a oferecer como alimento. O sangue conser-

vado, por exemplo, servia de tempero, e a gordura garan-

tia a maciez. A receita era simples, como a forma de vida

dos gaúchos campeiros. Primeiro, era feito um grande

buraco na terra e acendia-se um fogo com o que houves-

se disponível. Depois, a carne era transpassada por um

pedaço de pau, o espeto, colocada inclinada sobre o fogo

e virada lentamente até ficar no ponto desejado.

Essa maneira de assar a carne era comum — e ain-

da é — na região do campo. Mas há outras pequenas

variações, dependendo da região do Rio Grande do

Sul. Na fronteira, por exemplo, usa-se mais a grelha

do que o espeto, influência de argentinos e uruguaios.

Na Serra Gaúcha, quase sempre, a carne é assada em

espetos deitados sobre duas varas horizontais, apoia-

das em forquilhas, que correm junto às bordas de uma

vala, a uma altura média de 60 centímetros. A carne é

movimentada, permitindo um assado uniforme.

Há ainda outra forma de fazer churrasco, pouco

comum, que é adotada em al-

gumas regiões quando se tem

pressa e não há espetos. A carne

é jogada diretamente nas bra-

sas, e depois de pronta, é só tirar

algum carvão que tenha gruda-

do e saborear o assado. Posso

assegurar que fica bom, pois

na minha infância, passada na

zona rural do Rio Grande do Sul,

provei a carne preparada dessa

forma. E, mesmo atualmente,

depois de tantos anos distante

das terras gaúchas, sempre que

saboreio um churrasco, me volta

à memória a imagem do hori-

zonte amplo dos pampas, alguns

cavaleiros ao redor do fogo e a

indescritível sensação de liber-

dade, que só um menino conse-

gue sentir.

usa-se muito mais a grelha do que o espeto nas regiões de fronteira devido à influência de nossos vizinhos argentinos e uruguaios

Page 23: Gourmet Internacional
Page 24: Gourmet Internacional

22

Imigrantes formam paladar brasileiroVilas operárias italianas consagraram a macarronada

por Albino Castro

luMinoso sAlão dA

confeitAriA glóriA, no

centro histórico de

recife, propriedAde do

liBAnês Aziz rABAy, que

tAMBéM erA dono, nA

cApitAl pernAMBucAnA,

do HOTeL GLóRiA e

dAs LOjAS ReUNiDAS

GLóRiA. locAlizAdA no

núMero 200 dA ruA

novA, esquinA coM

A ruA pAlMA, onde,

AtuAlMente, existe

uMA dAs lojAs dA rede

exóTiCA CALçADOS. foi

nA CONFeiTARiA GLóRiA

que seriA AssAssinAdo,

eM 26 de julho de 1930,

o então presidente dA

provínciA dA pArAíBA,

joão pessoA, que hoje

dá noMe À cApitAl

do estAdo. ele erA

cAndidAto A vice-

presidente dA repúBlicA

nA chApA de getúlio

vArgAs e foi Morto pelo

desAfeto político

joão dAntAs.

IMIGrAntes

Apadrinhados pelo casal imperial, D. Pe-

dro I (1798-1834) de Bragança e Dª– Maria

Leopoldina (1797-1826), da Corte austrí-

aca de Habsburgo, os alemães foram os

primeiros imigrantes que desembarcaram no Brasil,

em 1824, dois anos depois de nossa Independência.

Um outro alemão se tornara uma figura lendária

quando aqui esteve por duas vezes, Hans Staden, em

1548 e 1549, o aventureiro que quase virou o jantar

de índios canibais que habitavam o litoral paulista,

após ter caído prisioneiro em São Vicente e sido leva-

do para Ubatuba pela tribo dos tupinambás. Staden

escapou milagrosamente de ir para o caldeirão dos

canibais e escreveu o célebre livro Duas Viagens, pu-

blicado, em 1557, na Alemanha, narrando a odisséia

que viveu no País. Quase três séculos depois, quando

chegaram os primeiros imigrantes compatriotas de

Staden, já não havia canibalismo no Brasil. Os ale-

mães se fixaram em São Leopoldo, no Vale do Sino,

próximo a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O Bra-

sil, desde então, nunca mais parou de receber imi-

grantes de todos os pontos do mundo. Temos hoje

uma nova leva de imigrantes provenientes de países

da América Latina, mas também da Ásia, Oriente

Médio e da Europa — estes, principalmente, depois

da crise econômica que sacode o continente.

Os imigrantes encontraram um país independen-

te e uma nacionalidade forte. Mas, integrando-se à

nova nação, também deixaram marcas definitivas no

nosso caráter e na nossa cultura. Sobretudo à mesa.

Page 25: Gourmet Internacional

23GOURMET

hAviA nA ensolArAdA e tropicAl sAlvAdor, durAnte quAse todo o século pAssAdo,

almacenes e pastelarías por todA A cidAde, cujos proprietários e eMpregAdos

erAM, invAriAvelMente, iMigrAntes espAnhóis dA região dA gAlíciA — coMo

eM Buenos Aires, Montevidéu e hAvAnA. tAMBéM todAs As pAdAriAs dA cApitAl

BAiAnA erAM de gAlegos. nA MArAvilhosA foto AciMA, ApArece, eM 1917, Atrás do

BAlcão, o joveM rAMiro cAstro losón, de suspensórios, nuM almacén dA prAçA

flor dos veterAnos, Ao lAdo dA celeBrAdA BAixA dos sApAteiros, inspirAdorA do

coMpositor Ari BArroso (1903-1964). don rAMiro, coMo seriA reverenciAdo MAis

tArde, erA nAturAl de xunqueirAs, AldeiA próxiMA de vigo. os presuntos que

ApAreceM expostos vinhAM diretAMente dAs AldeiAs dA gAlíciA.

Os italianos, brava gente, começaram a chegar quase

no final do século XIX, para, em grande parte, substi-

tuir, nas plantações de café, a mão-de-obra escrava. A

abolição da escravatura levou para as cidades quase

todas as famílias de origem africana e o campo ficara

vazio. Os italianos praticamente passaram a ocupar as

antigas senzalas. Mas só por poucos anos. Eles acaba-

riam sendo os grandes protagonistas da Revolução In-

dustrial do Brasil — através de empreendedores como

Francesco Matarazzo e de milhares de operários. Popu-

larizam-se rapidamente os salões de festas dos novos

endinheirados italianos na região da atual Avenida

Paulista. Também se multiplicaram em poucos anos as

peninsulares vilas operárias espalhadas por toda cida-

de, semelhantes às de Turim, Genova e Milão, ocupan-

do os bairros do Bixiga, Lapa, Luz,

Bom Retiro, Moóca, Brás, Belém e

Vila Prudente. Nasceu assim, nos al-

moços de domingo, a macarronada

da mamma, feita com massa casa-

reggia, produzida em casa, acompa-

nhada muitas vezes por vinho de garrafão, com gosto

de uva, como se dizia na Serra Gaúcha — e que servia

para matar a saudade do Bel Paese.

Das vilas operárias italianas, com a ajuda dos ca-

pitães da indústria, surgiram dois dos mais amados

clubes brasileiros, o Corinthians, criado em 1910,

e o Palestra Itália, em 1914, atual Palmeiras, ambos

fundados no Bom Retiro, bairro que, a partir do final

dos anos 1930, passou a ser o endereço de milhares

de judeus que fugiam às perseguições na Europa. O

Palestra Itália é dissidência do Corinthians. Há tam-

bém o querido Juventus, da Moóca, fundado, em 1924,

pelo Conde Rodolfo Crespi (1874-1939), natural do Pie-

monte, que homenageou os dois tradicionais clubes

de Turim, capital da sua região — no nome, o Juventus,

Page 26: Gourmet Internacional

24

vendidAs já esMAgAdAs

e prepArAdAs coM

especiAriAs, pArA AléM

de BAnhAdAs nos

deliciosos Azeites de

olivA liBAneses, As

AzeitonAs do pAís dos

cedros são ApreciAdAs

eM todo o Mundo pelo

seu sABor ligeirAMente

AMArgo e próprio

pArA ser degustAdo

nA coMpAnhiA dA

coAlhAdA secA. os

BrAsileiros cAdA vez

MAis ApreciAM As

AzeitonAs do líBAno.

Libaneses e japoneses encontraram a barreira da língua, alfabeto e dos

ingredientes para a cozinha

IMIGrAntes

preto e branco, e, na cor, o Torino, que é grená. O Cru-

zeiro, de Belo Horizonte, também foi Palestra Itália —

o clube mineiro e o paulista foram obrigados a trocar

o nome durante a Segunda Guerra Mundial, quando

o Brasil, aliado aos Estados Unidos, se bateu em solo

italiano contra os exércitos da Itália e da Alemanha.

Ergueu a Copa Jules Rimet, em 1958, em Estocolmo,

na Suécia, nossa primeira conquista mundial, um fi-

lho de italianos, o capitão Bellini, nascido em Itapira,

no interior de São Paulo. Bellini tem hoje 82 anos e é

meu vizinho no bairro paulistano de Higienópolis. Fi-

guravam entre os 22 jogadores que foram ao Mundial

de 1958 mais cinco oriundi: De Sordi, Dino Sani, Ma-

zola, apelido de José Altafini, Dida, cujo sobrenome

era Santa Rosa, e o laureadíssimo Zagallo.

Nenhum outro país contribuiu tanto para a mesa

brasileira como a Itália. Até mesmo a expressão “ter-

minar em pizza”, hoje muito malvista, por significar

impunidade aos crimes de corrupção, tem origem, nos

anos 1950 e 1960, nas in-

termináveis brigas entre

torcedores, associados,

conselheiros e dirigentes

do Palmeiras, que, por fim,

se abraçavam e iam todos

comer pizza. Mas, se os

italianos foram os pri-

meiros a impor a cozinha,

também conquistaram o

paladar brasileiro os imi-

grantes libaneses e japo-

neses — que encontraram,

nos primeiros anos, mais

dificuldades de adaptação

por causa da barreira da

língua e do alfabeto, bem

como para encontrar os

ingredientes de seus pra-

tos. O quibe está em todo

o País. Também o Sushi.

E o que dizer da contri-

buição dos alemães? Sal-

sichas, saladas de batatas

e cerveja são uma paixão

nacional. Impossível imaginar a Semana Santa sem

o bacalhau à mesa — o mais português dos pratos por-

tugueses. Espanhóis trouxeram a Paella — e não só.

Forte também a presença da cozinha chinesa, difun-

dida no Brasil, porém, na versão mais simplificada.

Armênios estão presentes em São Paulo na Luz e em

Santana — cozinha próxima à libanesa e à síria. Num

só bairro de São Paulo, o Bom Retiro, encontra-se um

típico e barulhento restaurante grego, o Acrópoles, e

vários locais onde é possível comer especialidades ju-

daicas da Europa Central.

Tenho um carinho muito especial pelos imigran-

tes e pela cozinha que trouxeram de memória nas su-

focantes terceiras classes dos navios provenientes da

Europa e da Ásia. Eu mesmo sou neto e filho de imi-

grantes — de pai espanhol e mãe libanesa. O meu avô

paterno, Ramiro Castro Losón, foi dono de almacenes

em Salvador e o meu avô materno, Aziz Rabay, pro-

prietário da Confeitaria Glória, no Recife.

Page 27: Gourmet Internacional
Page 28: Gourmet Internacional

26

Una cucina brasiliana cem por cento italiana Cardápio peninsular no Brasil é cosa nostra

O processo de imigração italiana, princi-

palmente para São Paulo, influenciou de

forma definitiva aspectos culturais e há-

bitos dos brasileiros, destacadamente na

culinária. O cheiro do molho da macarronada aos

domingos, o aroma da pizza saindo do forno a lenha,

o perfume do panettone, que traz as lembranças do

Natal, cada prato típico italiano penetrou na vida de

milhões de brasileiros e tornou-se parte do país que

os acolheu.

As festas celebradas todos os anos pela comunida-

de ítalo-brasileira — entre elas San Gennaro, que em

português é chamado de São Januário, San Vito, Nos-

sa Senhora Achiropita e Nossa Senhora Casaluce — fi-

zeram fama pela fartura de comidas típicas e atraem

descendentes de todas as nacionalidades, refletindo

a unanimidade do gosto pela culinária trazida do Bel

Paese e popularizada pelos oriundi.

A cozinha italiana no Brasil começou a difundir-

-se entre os anos de 1890 e 1930, com a chegada do

segundo grande grupo de imigrantes italianos, com

perfil de mão-de-obra mais capacitada e trazendo re-

cursos próprios. Presidente da Federazione Italiana

Cuochi (FIC) para o Brasil e América Latina, Bruno

Stippe, afirma que os italianos naquela época não en-

contraram grandes obstáculos para adaptar a cozinha

peninsular aos ingredientes encontrados no Brasil.

por Amarilis Bertachini

ItáLIA

Page 29: Gourmet Internacional

uM dos pAis do RiSORGimeNTO, A reunificAção dA itáliA

nA segundA MetAde do século xix, GiUSeppe GARiBALDi

(1807-1882), foto Ao lAdo, não conseguiu incluir A suA nice

nAtAl no reino de sAvoiA. nice continuA Até hoje frAncesA.

gAriBAldi é considerAdo herói de dois Mundos por ter se

BAtido pelos repuBlicAnos, não só nA europA, MAs tAMBéM

no BrAsil, quAndo, Ao lAdo do gAúcho Bento gonçAlves,

lutou pelA independênciA do rio grAnde so sul. foi cAsAdo

coM A BrAsileirA AnitA, nAscidA nA locAlidAde cAtArinense

de lAgunA, e Aprendeu, nos pAMpAs, A sABoreAr A cArne

AssAdA Ao Ar livre. fiel À origeM fAMiliAr genovesA, tinhA,

poréM, coMo prAto preferido o SpAGHeTTi AL peSTO —

espAguete que Até MeAdos do século xx erA seco Ao sol,

coMo nA foto ABAixo, nA MeMorável nápoles, porto de

pArtidA de MilhAres de itAliAnos que pArA cá vierAM.

Page 30: Gourmet Internacional

28

A maior parte dos imigrantes foi atraída para São

Paulo pelas oportunidades de trabalho, e muitas famí-

lias italianas tiveram influência marcante no desen-

volvimento cultural, comercial e industrial do Estado,

como os Papaiz, Bauducco, Comolatti, Fasano e Ma-

tarazzo. O avô de Bruno Stippe, o siciliano Francesco

Stippe, trabalhou como cozinheiro do Conde Matara-

com a abertura das importações no Brasil. “Antes,

mesmo os restaurantes italianos tinham que fazer

uma cozinha mista, porque só podiam usar os ingre-

dientes disponíveis no mercado interno. O Terraço

Itália, o Fasano, o Ca’d’Oro, todos faziam cozinha hí-

brida”, diz Bruno Stippe. Com o acesso a ingredientes

genuinamente italianos foi possível desenvolver uma

cozinha mais próxima da peninsular.

Calcula-se que vivam hoje no Brasil

aproximadamente cerca de 30 milhões de

italianos e descendentes. Há quem afirme

que só no Estado de São Paulo, exista algo

em torno de 35 mil de estabelecimentos

que oferecem algum tipo de prato italiano

no cardápio. Incluem-se, aí, até lanchone-

tes que às quintas-feiras servem uma la-

sanha da mamma.

Preocupado em conservar a originali-

dade da culinária dos ancestrais, Bruno

Stippe trouxe para o Brasil, em 2006, a

FIC, em que estão cadastrados cerca de

cem chefs que tiveram comprovadas as

contribuições à gastronomia italiana e

que se enquadraram em determinados cri-

térios, entre eles, o de serem profissionais

que praticam cardápios com pelo menos

30% da autêntica cozinha do Bel Paese.

Foi também o cuidado em preservar as raízes da

cozinha italiana que fez de São Paulo, em 2010, a

primeira cidade do mundo, fora da Itália, a receber o

selo de autenticidade e qualidade chamado Ospitali-

tà, por meio da Câmara Ítalo-Brasileira de Comércio,

Indústria e Agricultura de São Paulo. O certificado foi

entregue a 30 restaurantes paulistas reconhecidos

como autenticamente italianos.

Para ter direito ao selo, Erica Bernardini, diretora

de marketing da Câmara, diz que o restaurante preci-

sa atender a pelo menos dez requisitos básicos. Entre

eles, é preciso que o cardápio, além de escrito em por-

tuguês, também esteja em italiano — e sem erros gra-

maticais. Outro item importante é que o restaurante

deva ter pelo menos uma pessoa que saiba falar ita-

liano. A carta de vinhos deve oferecer um mínimo de

30% de rótulos italianos e, pelo menos, 5% têm que ser

zzo e morava na casa do patrão. Ao casar-se, em 1931,

alugou um imóvel no Bixiga, com duas canchas de

bocha, onde, junto com sua moradia, acabou montan-

do uma pensão para servir refeições e proporcionar

diversão para os italianos. “A culinária era a única

rota de fuga que o italiano tinha, no Brasil, para se

lembrar da casa dele”, conta Bruno Stippe. O negócio

prosperou e, em 1940, Stippe transferiu sua residên-

cia e deixou o imóvel exclusivamente para o restau-

rante. O endereço é o mesmo onde está até hoje a can-

tina C... Que Sabe!, agora administrada pela terceira

geração da família Stippe, servindo pratos típicos da

Itália meridional.

A culinária italiana passou por mudanças mais ex-

pressivas nos últimos 15 anos, explica Bruno Stippe,

itAliAníssiMo spAghetti Al sugo, Molho À BAse de toMAte, coM folhAs de

basilico, o MAnjericão, é uM clássico dA dietA MediterrâneA. vAi BeM nos

diAs de priMAverA e verão. e por que não tAMBéM no outono e no inverno?

ItáLIA

Page 31: Gourmet Internacional
Page 32: Gourmet Internacional

30

DOC (Denominazione di Origine Controllata). O azeite

deve ser o extra-virgem italiano e o cardápio deve con-

ter 50% ou mais de pratos originais da Itália, ou seja,

a receita tradicional não

pode ser modificada e deve

manter o nome. “Esse é um

dos pontos fortes do cer-

tificado, porque se perdeu

muito da tradição devido à

imigração que precisou fa-

zer adaptações na culinária

italiana no Brasil”, explica

Erica Bernardini. A cada ano serão concedidos novos

selos e será reavaliada a manutenção dos já premia-

dos. A cantina C... Que Sabe! foi um dos 30 estabeleci-

mentos certificados em 2010.

Para o gourmand Silvio Lancellotti, filho de sicilia-

nos e também jornalista, a influência italiana na mesa

brasileira começa antes dos grandes movimentos da

imigração. Tem início na metade do século XIX, quan-

do vieram imigrantes hoteleiros a convite de gente im-

portante do Brasil, principal-

mente para São Paulo e Rio de

Janeiro. Foram eles, segundo

Lancellotti, que trouxeram o

sorvete e começaram a impor-

tar alguns produtos da Itália.

O gourmand também faz

questão de registrar outro

momento histórico, que foi a

sofisticação dos estabelecimentos italianos a partir

dos anos 1950. Ele credita a mudança principalmen-

te à chegada da família Tatini, vinda da Toscana em

1954, cujo restaurante, em São Paulo, é administrado

atualmente pela terceira geração. “Eles trouxeram

conceitos novos como, por exemplo, o uso de frutos

do mar, que antes eram quase desprezados. Ninguém

comia vongole, os pescadores jogavam fora, assim

como o linguado, que era um peixe considerado muito

feio. Também não se usava creme na cozinha e pou-

cos restaurantes faziam sua própria massa”, conta

Lancellotti, acrescentando: “O conceito de finalizar

alguns pratos à mesa também veio com os Tatini.”

Em associação à ideia de uma nova cozinha fran-

cesa no Brasil, teve início também aqui a nova cozi-

nha italiana, mais bonita na apresentação dos pratos,

buscando a estética além do sabor. Lancellotti lembra

que não há uma única culinária italiana, mas, sim, di-

ferentes cozinhas regionais, que totalizam cerca de 40

estilos diferentes, cada um com sua peculiaridade, in-

gredientes, receitas e até modos de preparo distintos.

“O Ca’d’Oro era uma cozinha lombarda, com caracte-

rísticas da cidade de Bergamo” — afirma Lancellotti.

“Giancarlo Bolla, do restaurante LaTambouille, veio

da Liguria, cuja capital é Genova, e trouxe elementos

daquela região. Massimo Ferrari, ex-dono do Mas-

simo, atualmente no comando da rotisseria Felice e

Maria, é uma mistura das regiões do Piemonte, no

extremo norte da Itália, onde se encontra Turim, com

a Calábria, ao sul, em frente à Sicília. É uma combina-

ção sofisticada, mas de duas gastronomias completa-

mente diferentes”, conclui Lancellotti.

“Ninguém comia vongole, e linguado era um peixe considerado muito feio”

típicA cAntinA dA itáliA MeridionAl, C... QUe SABe! segue no BixigA

pAulistAno soB o coMAndo dA quArtA gerAção dA fAMilíA siciliAnA

stippe — deseMBArcAdA eM são pAulo eM 1932, Ano dA revolução

constitucionAlistA pAulistA. tAMBéM no cArdápio está estAMpAdA A

fidelidAde Às origens verificAdA no visuAl do sAlão. A cAntinA ostentA

o selo ospitAlitÀ, honrAriA concedidA pelA câMArA ítAlo-BrAsileirA de

coMércio, indústriA e AgriculturA de são pAulo, Aos estABeleciMentos

coMproMetidos coM indicAdores de quAlidAde e procedênciA de

produtos. cArdápio eM itAliAno e uM maître que fAle o idioMA de dAnte

Alighieri (1265-1321) são dois itens fundAMentAis pArA oBter o selo.

ItáLIA

Page 33: Gourmet Internacional

31GOURMET

Já é tradição enfrentar fila domingo em São Paulo

em todos os restaurantes

Antonio BuonerBA, o toninho, proprietário do jArdiM de nApoli,

de são pAulo, fez históriA nA trAdicionAl cozinhA itAliAnA Ao criAr, Aqui, A

receitA de polpettone, nA versão alla parmigiana, coM Molho de toMAte e

queijo. toninho pAtenteou o prAto, MAs não iMpediu que dezenAs

de concorrentes copiAsseM o delicioso invento.

A transformação da culinária originalmente pra-

ticada pelos imigrantes incluiu a fusão com ingre-

dientes tipicamente brasileiros, resultando em uma

versão abrasileirada de pratos italianos. Como cappel-

letti recheado com carne-seca — embora exista uma

deliciosa carne-seca na Sicília. Também a lasanha de

alho-poró e nhoque de mandioquinha. Muitos restau-

rantes italianos no Brasil também seguem a moda da

cozinha mediterrânea, reconhecida como uma comi-

da saudável, rica em carboidratos e farta em peixes,

frutas e muito azeite de oliva.

“A cozinha italiana começou a se modernizar a

partir de 1970. Tornou-se mais leve, as massas pas-

saram a ser feitas com menos farinha, os molhos

ficaram mais elaborados e menos pesados”, conta

Joaquim Saraiva de Almeida, Presidente da Associa-

ção Brasileira de Bares e Restaurantes de São Paulo

(Abrasel-SP). Ele ressalta que hoje a culinária italiana

está tão disseminada no Brasil que é comum encon-

trar no cardápio de qualquer restaurante uma varie-

dade de pelo menos meia dúzia de massas.

Apesar da grande concorrência e de tantas evolu-

ções, há sempre aqueles que se destacam e cujos pra-

tos não se alteram ao longo do tempo. Um dos ícones

da tradição italiana em São Paulo é o restaurante Jar-

dim de Napoli, que ficou famoso pelo Polpettone alla

Parmigiana, um prato criado ao acaso pelo proprie-

tário, Antonio Buonerba, o Toninho. Apesar de ter o

título registrado e patenteado, o prato — uma grande

almôndega recheada com

mozzarella e coberta com

molho de tomate e parme-

são ralado — é imitado em

dezenas de restaurantes

paulistanos que tentam re-

produzir a receita.

A fórmula desse prato

que virou um sucesso co-

meçou quando Toninho, filho do casal de imigrantes

italianos que fundou o restaurante, tentava descobrir

um aproveitamento para as sobras de filé mignon usa-

do no preparo de outros pratos. “Fui criado na cozinha

com a minha mãe. Trabalhei anos nessa receita até

chegar ao ponto ideal. O polpettone na Itália é diferen-

te, é um bolo de carne recheado com legumes e vai ao

forno. O meu é alla parmigiana, com molho e queijo”,

conta Toninho. O Jardim de Napoli chega a vender

até 400 polpettones por dia nos finais de semana. E

é preciso chegar cedo para conseguir um lugar. Caso

contrário, será necessário aguardar um bom tempo

na fila, quase sempre cercado

de grandes, famintas e baru-

lhentas famílias de origem

italiana, que tomam vinho,

conversam e se confraterni-

zam enquanto esperam uma

mesa livre.

Aliás, fazer fila aos domin-

gos nos restaurantes italianos

já se tornou uma tradição na capital paulista. Seja uma

simples cantina, seja um estabelecimento requintado,

moderno ou conservador, tenha um chef ou simples-

mente um cozinheiro, todos estão à espera de um bel

piatto di pasta, para acompanhar a alegria do fim de

semana na maior cidade italiana fora da Itália.

Page 34: Gourmet Internacional

32

proprietário e diretor de redAção

dA revistA GOSTO, o jornAlistA

j. A. diAs lopes, fundAdor tAMBéM

de GULA, é colunistA do jornAl

O eSTADO De S.pAULO. foi editor

de VejA e correspondente dA

revistA eM roMA. visitou coMo

enviAdo especiAl vários pAíses.

é historiAdor dA gAstronoMiA,

conhecedor de vinhos e Mestre

nA cozinhA e À MesA.

os romanos se divertem ao contar uma piada sobre

a suposta fragilidade cultural do povo americano.

dizem que na primeira semana de junho de 1944,

após invadir a capital da itália e libertá-la da dominação na-

zista, o general Mark clark (1896-1984), comandante do 5º

exército dos estados unidos e das tropas aliadas na segunda

guerra Mundial, quis conhecer os monumentos da cidade.

chamou um dos seus oficiais, que havia morado em roma,

e pediu para acompanhá-lo. quando o jeep em que estavam

parou diante das ruínas do coliseu, clark exclamou: “Mas

que belo trabalho fizeram aqui os nossos rapazes!”

eles também criticam o gosto dos americanos à mesa,

sobretudo o hábito de colocar creme de amendoim no pão

e ketchup na pizza. em compensação, os rapazes do general

podem ter contribuído para enriquecer a mesa da capital

italiana, ajudando a criar o clássico molho alla carbonara,

usado em certas massas: penne, espaguete, bucatini e ver-

micelli. leva guanciale (bochecha de porco defumada) frito

na banha ou azeite, misturado com ovos batidos, creme de

leite (opcional), pecorino (queijo de ovelha), parmesão rala-

dos e pimenta-do-reino.

A versão mais aceita sustenta que a receita surgiu ca-

sualmente no final da segunda guerra Mundial. quando

os americanos entraram em roma, a cidade estava na pe-

núria, só a tropa de clark dispunha de alimentos. combi-

nando dois ingredientes da ração militar — ovo e bacon —,

acrescentando-os à massa cozida al dente, um cozinheiro

local teria criado o prato.

uma variação dessa teoria localiza o nascimento da re-

ceita em uma trattoria romana. soldados aliados entraram

ali levando ovo, bacon e noodles. o cozinheiro os preparou

separadamente. fartos daqueles sabores invariáveis, os es-

trangeiros misturaram tudo.

um punhado de autores discorda da versão. Afirma que

os rapazes do general não inventaram nada. A receita se-

ItáLIA

ria “evolução” de uma mais antiga, chamada caccia (quei-

jo de cabra ou ovelha) e uova (ovo), originária da região do

lazio, onde se encontra roma, ou da vizinha Abruzzo, que

os carbinai (produtores do carvão vegetal, daí o nome do

prato) levavam na marmita. preparavam-na na véspera e a

comiam fria. durante a ocupação de roma pelos alemães,

muitas famílias da cidade foram para as montanhas de

Abruzzo, nas quais teriam conhecido a receita de caccia e

uova. outra explicação para o nome alla carbonara: o há-

Page 35: Gourmet Internacional

33GOURMET

por J. a. dias lopes

Bom trabalho dos nossos rapazes A gafe do general americano e a criação do prato romano

versão exuBerAnte do SpAGHeTTi ALLA

CARBONARA, coM dois ovos fritos

soBre o queijo pecorino rAlAdo e

MuitA piMentA do reino. A receitA

teriA surgido cAsuAlMente no finAl

dA segundA guerrA MundiAl. hAviA

escAssez de AliMentos eM roMA. MAs

os soldAdos AMericAnos tinhAM

ovos e BAcon. foi o suficiente. os

roMAnos entrArAM coM o spaghetti.

AssiM teriA nAscido o picAnte Molho

dA cozinhA dA cApitAl itAliAnA.

bito de acrescentar pimenta-do-reino moída, que lembra o

carvão em pó.

segundo a Grande enciclopedia illustrata Della Gas-

tronomia (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000), “os

traços deste prato na cozinha romana, antes do final da

segunda guerra Mundial, são vagos ou inexistentes e se

limitam a alguns testemunhos orais, recolhidos porém em

tempos recentes”. Mesmo assim, alguns autores insistem

na sua antigüidade, atribuindo a invenção a ippolito ca-

valcanti (1787-1859), cozinheiro e literato napolitano. ele

teria publicado uma receita semelhante no tratado Cucina

Teorico-pratica, editado pela primeira vez em 1837 e acres-

cido, na edição de 1839, do apêndice Cucina Casarinola

co la Lengua Napolitana.

há também autores que a associam à carboneria, so-

ciedade secreta e política da itália no século xix, com um

complicado simbolis-

mo ritual, difundida

em numerosos países

europeus. entre seus

iniciados figuraram

líderes do movimento

reunificador da itália.

não há provas, porém,

de que preparassem a

receita. o diretor de cinema luigi Magni aumentou a con-

fusão no filme La Carbonara. Ambientou-o na velha roma

papal, colocando em cena a carboneria e uma mulher que

administra uma trattoria renomada pelo prato. Até agora, a

explicação vencedora envolve os rapazes do general.

Molho seria apropriação de nome da sociedade secreta Carboneria

Page 36: Gourmet Internacional

34

A comida do Japão desafia os temposTempurá é herança da presença portuguesa

Restaurantes japoneses se multiplicam em

todo o País e, sobretudo em São Paulo,

onde o tradicional Sushi se tornou, jun-

tamente com o hambúrguer, um dos itens

da preferência de grande maioria de adolescentes e

jovens — exemplo do que acontece nos Estados Unidos

e em vários países da Europa ocidental. O Brasil é um

dos dois países das Américas — o outro é o Peru — que

recebeu imigrantes nipônicos, em 1908, graças a um

acordo firmado com o Imperador do Japão, para a vin-

da de trabalhadores à lavoura cafeeira. A comunidade

japonesa no Brasil conta com aproximadamente 1,5

milhão de pessoas. Só em São Paulo chega a cerca de

800 mil.

Surgiram, assim, os primeiros estabelecimentos

de comida japonesa no bairro paulistano da Liber-

dade. E quando, hoje, os estrangeiros em visita a São

Paulo, perguntam sobre as comidas que não devem

deixar de provar, a resposta, além de churrasco e fei-

joada, costuma ser culinária japonesa. Mas o que leva

a comida do Império do Sol a ser tão apreciada a ponto

de estar incluída entre os pratos típicos nacionais?

iMperAdor do jApão, Aos 14 Anos, Mutsuhito, o

lendário iMperAdor Meiji, foto AciMA, coMAndou

o pAís por 45 Anos (1867-1912) — período eM que

ABoliu o feudAlisMo, BeM coMo o poder dos

sAMurAis, trAnsferiu A cApitAl de kioto, onde

nAscerA, pArA tóquio e foi responsável pelA

grAnde revolução industriAl que levAriA o pAís,

no século pAssAdo, A ser A MAior potênciA de

todA A ásiA. tAMBéM durAnte A erA de Mutsuhito

o jApão consolidou o poder MilitAr no pAcífico.

o soBerAno derrotou dois gigAntes, A chinA, eM

1895, e A rússiA, eM 1905 — AnexAndo, eM 1910, A

coréiA. deve-se A ele A ABerturA do jApão pArA A

europA, principAlMente pArA A AleMAnhA, cujA

constituição AdotAriA eM 1890. A revolução

industriAl jAponesA desAlojou do cAMpo grAndes

populAções. Muitos jAponeses, AindA no período

iluMinAdo de Mutsuhito, eMigrAriAM pArA o

hAvAí, peru e BrAsil. coM o iMperAdor Meiji, o jApão

coMeçou A se ABrir novAMente pArA o Mundo. o

pAís ficArA fechAdo pArA os estrAngeiros desde A

expulsão, eM 1633, dos portugueses e A proiBição

do cristiAnisMo. grAçAs Às revoluções dA erA

Mutsuhito, A sofisticAdA gAstronoMiA jAponesA

pôde ser ApreciAdA universAlMente.

JApão

• Colaborou neste trabalho a jornalista e chef de cozinha Camila Taquari.

Page 37: Gourmet Internacional

35GOURMET

oBrA, AciMA, o RiACHO DA pRimAVeRA, do pintor jAponês tAizi hArAdA, é título de uMA

cAnção infAntil, HARU NO OGAwA, e fAlA do Brilho dA corrente de uM riAcho que flui

MAnsAMente durAnte A priMAverA — nuMA épocA eM que erA possível ver cAMArões,

cArAnguejos e BArrigudinhos se MoviMentAndo. considerAdo uM dos MAis sensíveis

pintores conteMporâneos, hArAdA, de 71 Anos, retrAtA uM jApão AindA forteMente rurAl,

MAs que foi se ModificAndo coM A industriAlizAção desde A erA Mutsuhito, poréM, seM

jAMAis perder o requinte dA cozinhA.

Page 38: Gourmet Internacional

36

Cada família japonesa

tem uma história, como a do

pai da cineasta Tizuka Ya-

masaki, Tosio Yamasaki, que

veio ao Brasil com um pro-

pósito diferente. “Ele chegou

um pouco antes da Segun-

da Guerra Mundial. Nasceu

em Tiba, província vizinha a

Tokio. Tinha cerca de 20 anos,

acabara de fazer um curso

técnico de agronomia e não

veio como imigrante, mas na

aventura de fazer fortuna no

Brasil”, lembra Tizuka.

A artista Tomie Ohtake,

nascida na família Nakaku-

bo há quase um século, em

Kyoto, no Japão, em 1913,

se tornou uma espécie de

embaixadora das artes e da

cultura de seu país no Bra-

sil. Ela chegou ao País em 1936 para visitar um dos

cinco irmãos. Impedida de voltar, no início da Segun-

da Guerra, Tomie optou por ficar no Brasil. Casou-se

e teve dois filhos, Ricardo e Ruy Ohtake, que conquis-

taram um espaço importante na arquitetura brasilei-

ra. Conviveu aqui com outras comunidades, inclusive

morou muitos anos na então italianíssima Moóca. E

até hoje tem como prato favorito o bife guarnecido

com dois ovos fritos. “Nunca me esqueço do Bife a Ca-

valo que comi quando desembarquei no Brasil.”

A bordo do Kasato Maru, primeiro navio de imi-

gração japonesa a aportar no País, vieram 781 cam-

poneses. Ao desembarcarem no Porto de Santos, eram

encaminhados para a Hospedaria dos Imigrantes, em

São Paulo, e depois levados de trem para as fazendas

de café no interior do Estado. Lá, a vida árdua ia desfa-

zendo a expectativa de acumular dinheiro rapidamen-

te, à medida que recebiam os primeiros pagamentos,

com os descontos da parcela da viagem, gastos com

alimentos e remédios.

A dificuldade da maioria dos imigrantes, formada

por agricultores, de se adaptar ao paladar brasileiro

acabou por levar a uma

inestimável contribuição à

cozinha do País. Os japone-

ses introduziram no cardá-

pio nacional mais de 50 ti-

pos de prato. Dando ênfase

às verduras e aos legumes.

Um povo que tinha, segundo Tizuka Yamasaki,

como alimentação diária o arroz branco sem sal e

sem gordura, um pedaço de peixe e algumas verdu-

ras, não conseguia se adaptar ao feijão com arroz e

às carnes muito temperadas. “A maior dificuldade de

minha família, assim como dos imigrantes japoneses

em geral, era a falta de verduras e pescados, já que

eles eram deslocados para o interior, onde o acesso

aos frutos do mar era difícil. Achavam estranho ter

de usar a banha de porco, tão comum na alimentação

do brasileiro da época. Como também era estranho o

excesso de gordura, presente na carne-seca e morta-

dela. Sem contar a farinha de milho, que eles diziam

raspar a garganta”, recorda Tizuka.

A única saída era começar a plantar as próprias

verduras. A cineasta narra que, nos raros momentos

de folga do trabalho no cafezal, os japoneses passa-

ram a cultivar a horta, e alguns anos mais tarde, se

tornaram responsáveis pelo chamado Cinturão Verde

em torno de São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, plan-

tando verduras e legumes para serem consumidos pe-

los habitantes das grandes cidades.

JApão

Japoneses chegaram no Kasato Maru e foram

para as fazendas de café

tizukA yAMAsAki, nAscidA eM

porto Alegre, é AutorA do

MeMorável filMe GAijiN — OS

CAmiNHOS DA LiBeRDADe, de 1980,

que nArrA A chegAdA Ao BrAsil de

uM grupo de jAponeses no início

do século xx pArA trABAlhAr

nAs fAzendAs de cAfé de são

pAulo. A cineAstA de 62 Anos foi

forteMente influenciAdA nA suA

oBrA pelos drAMAs vividos pelAs

fAMíliAs de iMigrAntes jAponeses

— coMo Aconteceu coM os

próprios AntepAssAdos.

Page 39: Gourmet Internacional

37GOURMET

toMie ohtAke iMigrou do jApão

pArA o BrAsil já coM 21 Anos e

principiou A cArreirA nAs Artes

plásticAs ApenAs Aos 40 Anos

coM trABAlhos eM pinturA,

grAvurA e esculturA. ser uMA

ArtistA tArdiA não A iMpediu de se

tornAr reconhecidA coMo uMA

dAs principAis representAntes

do ABstrAcionisMo no pAís.

recorrenteMente optA por não

noMeAr As telAs, trAnsferindo

Ao ApreciAdor A incuMBênciA do

BAtisMo, cAso do quAdro ABAixo.

Com os portugueses, o ato de fritar se estendeu às receitas salgadas e caiu no gosto japonês, nascendo assim o saboroso tempurá

Os japoneses, assim que conseguiram, passaram

a comprar ou arrendar lotes de terras das fazendas

cafeeiras falidas, após a crise, de outubro de 1929, da

Bolsa de Nova York. Plantaram variedades de cultu-

ras que não eram populares no Brasil, entre as quais

muitas frutas, legumes e verduras. Foi o caso do mo-

rango e até mesmo da uva itália, que apesar do nome

foi introduzida no País, na década de 1940, pelos ja-

nam a cena. Mas logo se entregaram à arte criada por

uma sabedoria milenar. Antiga e contemporânea ao

mesmo tempo. Torna a experiência, para muitos, irre-

sistível a qualidade e o frescor dos ingredientes soma-

dos à pouquíssima gordura nos modos de preparo e à

troca dos molhos espessos por temperos leves e sutis.

O sucesso do Sushi e da culinária japonesa, segundo

Tizuka Yamasaki, veio a calhar com o culto à comida

poneses. Muitos imigrantes traziam nos

navios mudas na bagagem.

Acabaram por se adaptarem os japo-

neses ao novo País e se integraram à so-

ciedade que os acolheu. Mas o ingresso

de Sushis, Yakisobas e Tempurás no car-

dápio nacional levaria muito mais tem-

po. Mais de 70 anos após a chegada dos

primeiros imigrantes do Japão, o Brasil

contava apenas com 20 restaurantes tí-

picos. Todos concentrados na região da

Liberdade. Antes só era possível expe-

rimentar comida japonesa em pensões

instaladas no mesmo Bairro da Liberda-

de, nas quais jovens vindos do interior

de São Paulo se hospedavam. Lá, eles ti-

nham todas as refeições servidas à moda

japonesa, com algumas adaptações à co-

zinha brasileira.

Seriam inaugurados no final da déca-

da de 1980 os primeiros estabelecimentos

de cozinha japonesa fora da Liberdade.

Porém, o grande avanço aconteceu na dé-

cada seguinte, quando se multiplicaram

rapidamente por toda cidade. Atraiu um

número crescente de adeptos a percepção

de que se trata de uma culinária de sabor

marcante e saudável, quando comparada

a outras cozinhas. A maior concentração

de restaurantes japoneses do País já não

está na Liberdade, mas, sim, na região

paulistana dos Jardins.

Os brasileiros em geral, desacostu-

mados à culinária japonesa, desconfia-

ram dos pratos de porções delicadas, nos

quais, quase sempre, os peixes crus domi-

Page 40: Gourmet Internacional

38

JApão

saudável. “Acho que foi uma oportunida-

de ímpar”, avalia a cineasta. E tem toda

razão. Uma oportunidade ímpar para os

brasileiros, que podem apreciar, cotidia-

namente, as delícias de uma das cozi-

nhas mais sofisticadas do mundo.

Considerado por muitos um dos

pratos mais representativos da gastro-

nomia japonesa, o Tempurá tem uma

longa história, conhecida por poucos, e

que começa em 1543, quando os navega-

dores portugueses desembarcaram em

Tanegashima, ao sul do Japão. O relato

do grupo, ao voltar para casa, atrairia

para o arquipélago outros portugueses,

como o escritor Fernão Mendes Pinto e

o jesuíta São Francisco Xavier, que aportaram em ter-

ritório japonês, em 1549, com a missão de converter

os japoneses à fé cristã. Os religiosos jesuítas cultiva-

vam o hábito de não consumir carne vermelha durante

a Quaresma, que, em latim, denomina-se ad tempora

quadragesimae. Os portugueses comiam, no período,

um prato composto de verduras, legumes e frutos do

mar fritos. Os japoneses já

conheciam a fritura, intro-

duzida pelos chineses nos

séculos VII e VIII, mas a téc-

nica só se popularizou com a

chegada dos missionários. O

ato de fritar, com a chegada

dos portugueses, se esten-

deu a outras receitas salga-

das, caiu em domínio público, logo, o nome Tempurá

foi adotado pelos japoneses. A união dos dois povos,

mesmo tendo durado menos de um século, foi intensa

e deixou raízes profundas até na culinária.

O bolinho de arroz temperado com vinagre, sal e

açúcar, e combinado com peixes ou verdura, é o prato

do cardápio japonês mais popular em todo mundo. Re-

ceita chinesa que era, na verdade, um método de con-

servação de peixes por meio da fermentação, ganhou

especial importância no Japão, por volta do ano de 676,

quando o consumo de carne e leite foi proibido pelos

preceitos budistas. Feito, inicialmente, em camadas

alternadas de peixe, sal e arroz, o Sushi só mudou a

aparência por volta de 1700, quando passou a ser pre-

parado em molde de madeira.

O cozinheiro Hanaya Yohei experimentou, por volta

do século XVIII, usar peixe fresco em vez da versão em

conserva, dando origem a um parente mais próximo do

atual Sushi. Dois estilos básicos do prato surgiram com

a mudança. O tipo Kansai, da

cidade de Osaka, e o Edo, anti-

go nome de Tóquio. Osaka era

a capital do arroz e ali criou-

-se um Sushi enrolado que

acrescentava ao arroz outros

ingredientes. Já em Tóquio, a

localização da baía favorecia

o uso de peixe fresco, nascen-

do o Nigirizushi — pedaços de peixe servidos sobre bo-

linhos de arroz temperados e moldados com as mãos.

A presença no cardápio brasileiro da culinária

japonesa é tão forte como no resto da vida nacional

do País. Personagens como a artista plástica Tomie

Ohtake e a cineasta Tizuka Yamasaki são referências

brasileiras em todo o mundo. Da mesma maneira que

no Japão, a passagem dos portugueses deixaram in-

deléveis marcas no idioma do país, no qual palavras

usuais de nosso idioma são utilizadas com o mesmo

sentido — como biscoito, botão, capa, copo, órgão, pão,

sabão, tabaco e obrigado.

o sAshiMi, uMA dAs

delíciAs jAponesAs,

conquistA eM todo o

Mundo, inclusive no

BrAsil, o pAlAdAr dos que

ApreciAM A cozinhA do

pAís do iMpério do sol.

A diferençA do sAshiMi,

peixe cru fAtiAdo, pArA

o trAdicionAl sushi,

MAis populAr dAs

especiAlidAdes nipônicAs,

está no Bolinho de Arroz.

o sushi levA o cereAl e o

sAshiMi, não.

Cozinheiro inovou ao trocar no Sushi o peixe

em conserva pelo fresco

Page 41: Gourmet Internacional
Page 42: Gourmet Internacional

40

A montanha que inspirou a cozinha dos cedrosD. Pedro II abriu as fronteiras do Brasil para os libaneses

quAse isolAdA, no Alto do Monte

líBAno, síMBolo dA nAcionAlidAde

liBAnesA, está A cAtedrAl cAtólicA

MAronitA, dA cidAde de BechArré,

Ao norte do pAís. os cristãos dA

MontAnhA liBAnesA enfrentArAM

por cercA de Mil Anos restrições

pArA circulAr livreMente pelA

costA MediterrâneA e, AssiM,

nAsceu A esplêndidA cozinhA À

BAse do que erA possível criAr

e cultivAr nAs cidAdes e AldeiAs

situAdAs próxiMAs Aos picos

nevAdos. uMA culináriA que é

festejAdA hoje eM todo o Mundo

e cujos fundAMentos são A cArne

de cArneiro, trigo e As hortAliçAs.

erA de BechArré o extrAordinário

poetA giBrAn khAlil giBrAn (1883-

1931), de fAMíliA cAtólicA MAronitA,

Autor, eM 1924, de O pROFeTA. viveu

eM Boston e novA york. escreveu

eM árABe e inglês e foi Autor

de poeMAs definitivos soBre o

sAgrAdo Monte líBAno.

LíBAno

por Albino Castro

Page 43: Gourmet Internacional

41GOURMET

iluMinAdo príncipe dA MontAnhA liBAnesA, o cAtólico

MAronitA Béchir ii chehAB (1767-1850) é considerAdo o

grAnde ideAlizAdor dA ModernA nAcionAlidAde do pAís dos

cedros, herdeirA dA AntigA feníciA. ele se BAteu coM todAs

As forçAs pelA independênciA dA nAção — então soB o jugo

dA dinAstiA otoMAnA islâMicA dA turquiA. Béchir ii chehAB

governou o Monte líBAno por 52 Anos — de 1788 A 1840.

do pAlácio de Beit ed-din, A cAsA dA fé, construído por ele,

nA região do chouf, A 17 quilôMetros Ao sul de Beirute,

enfrentou os turcos e AcABou derrotAdo. pAgou cAro

pelo pAtriotisMo, sendo Morto, eM 1850, nAs MAsMorrAs de

istAMBul. forAM iMplAcáveis, depois de enforcAdo o príncipe

Béchir ii chehAB, As perseguições dos turcos nos Anos

seguintes contrA os cristãos do líBAno, síriA e ArMêniA — e

deterMinArAM A eMigrAção destes pArA o BrAsil. e, coM os

cristãos perseguidos, deseMBArcou Aqui A requintAdA

gAstronoMiA liBAnesA.

Herdeiros da gloriosa Fenícia, nação que há 4 mil

anos, superando os hieróglifos egípcios e os

cuneiformes dos povos semitas, assírios e da Ba-

bilônia, legou ao mundo o primeiro alfabeto no

qual cada letra correspondia a um som, que usamos até hoje,

os primeiros imigrantes do Líbano que aqui chegaram, por

volta de 1880, se tornaram mascates e acabariam, na prática,

por criar em poucos anos o mercado interno nacional, trans-

portando em lombo de burros e vendendo mercadorias de um

ponto a outro do Brasil. Os primeiros imigrantes libaneses,

quase todos cristãos, desembarcaram no Brasil, fugindo das

perseguições muçulmanas movidas e incentivadas pela “Su-

blime Porta”, então sede em Istambul dos sultões da dinastia

otomana que controlava todo o Oriente Médio. O Imperador D.

Pedro II (1825-1891), ao visitar o país, em 1877, ficou penaliza-

do com a triste situação dos cristãos e autorizou a vinda de-

les para o Brasil. O bíblico Líbano é a única nação de maioria

cristã entre os países de língua árabe — idioma originário das

tribos da Península Arábica e no qual foi revelado ao Profeta

Mohamed o livro sagrado do Alcorão. A requintadíssima culi-

nária libanesa, chamada cá, erradamente, de “árabe”, chegou

com os imigrantes e hoje está integrada ao cardápio brasileiro.

Principalmente o quibe, maior estrela da cozinha do Líbano,

facilmente encontrado em qualquer esquina do País.

Popularíssimos são também o tabule, originário, assim

como quibe, da cidade libanesa de Zahlè, a esfiha, os charuti-

nhos de repolho e de folha de uva, a kafta e os deliciosos patês

de berinjela, coalhada seca, pimentão e grão-de-bico — encontra-

dos facilmente em pontos simples e sofisticados. Sobretudo em

Page 44: Gourmet Internacional

42

uMA refeição

liBAnesA coMeçA

coM o mezzè, As

entrAdAs, reunindo,

quAse seMpre eM

pequenAs porções,

As diferentes pAstAs

— não podendo

fAltAr o BABAgAnuch

À BAse de BerinjelA,

o hoMus coM

grão-de-Bico, e A

coAlhAdA secA.

lugAr de honrA

ocupAM tAMBéM

o quiBe cru e o

tABule — coMo no

trAdicionAl mezzè,

Ao lAdo, do AráBiA,

de são pAulo. Alguns

restAurAntes de

Beirute e de zAhlè

chegAM A oferecer

mezzès coM MAis de

70 especiAlidAdes.

LíBAno

São Paulo. A gastronomia do País dos Cedros possui

na capital paulista endereços que podem rivalizar com

restaurantes de Beirute, capital do Líbano, bem como

de Paris, Londres e Nova York. É paulistano o Arábia.

E também a Brasserie Victoria, que mantém uma cozi-

nha mais próxima da original libanesa, assando, por

exemplo, o melhor quibe da cidade, e o Hotel Maksoud

Plaza, onde se come quibe cru e tabule à zahliota. Des-

taques ainda para o Miski, o Folha de Uva e a rede Al-

manara [ver também página 73], sucessora, nos anos

1950 e 60, do antigo Tarbouche, da região da Rua 25 de

Março, tradicional reduto de comerciantes libaneses e

seus descendentes. O Tarbouche inovou nos anos 1950

ao introduzir o sistema de rodízio, que, ao contrário do

que se possa imaginar, não foi copiado das churrasca-

rias. O rodízio é uma das características libanesas, pri-

vilegiando o mezzè libanais, a vinda à mesa de vários

pratos, frios e quentes,

em pequenas porções.

O mezzè teria origem

na antiga Fenícia — na

era dos primeiros nave-

gadores e comerciantes

da História. A mitologia

atribui à filha de Hiram,

Rei de Tiro, capital fení-

cia, ao se casar com um

habitante da outra mar-

gem do Mediterrâneo, o

nome dado ao continen-

te europeu. A filha de Hi-

ram se chamava Europa.

Curiosa é a origem

da culinária libanesa,

sendo um país banha-

do, de norte a sul, pelo

Mediterrâneo, mas no

qual é quase nenhuma

a influência dos fru-

tos do mar nos pratos

tradicionais — embora

exista em alguns car-

dápios de São Paulo, ci-

dade sempre em busca de inovações gastronômicas,

e mesmo em Beirute, um bizarro quibe cru à base de

salmão, que substitui a carne de carneiro ou de vaca.

O que conhecemos como gastronomia libanesa tem

origem nas comunidades cristãs do Monte Líbano e

lá não chegavam os frutos do mar. Cristãos viveram

isolados por mais de mil anos nas montanhas desde

o início, no século VII, da conquista dos territórios do

Oriente Médio pelos exércitos islâmicos — e, por isso,

a sua cozinha se baseia ainda hoje no que era possí-

vel encontrar longe da costa que era controlada pelos

muçulmanos. Lá nos altos do Monte Líbano era possí-

vel a criação de carneiros, plantar o trigo, bem como

verduras e legumes. O trigo, especialmente amas-

sado, conhecido em francês como blé concassé, está

presente no cotidiano da cozinha dos cristãos. Seja no

quibe e na salada de tabule, mas também, claro, nas

Page 45: Gourmet Internacional
Page 46: Gourmet Internacional

44

estrelA de priMeirA grAndezA dA cozinhA do

líBAno, o quiBe está seMpre presente no diA-A-

diA do pAís — nAs versões cruA, fritA (Ao lAdo),

Ao forno, cozido nA coAlhAdA À ModA ArMêniA

ou grelhAdo, conhecido coMo quiBe Michuí.

Segredos são mantidos em famíliapor fouad naime*

LíBAno

saborosas sopas que esquentam as noites geladas nas

regiões dos milenares cedros, que remontam os tem-

pos da mítica Fenícia.

A ausência de frutos do mar no menu libanês tem

origem também nas restrições de caráter religiosas

dos muçulmanos que, como os judeus, consideram

“impuros” esses alimentos. O que explica o fato de

que, mesmo dominando por mais de mil anos a costa

libanesa, os muçulmanos de três diferentes dinastias

— omeyades, de Damasco, abassides, de Bagdá, e oto-

manos, de Istambul — jamais introduziram à mesa,

ao contrário dos povos cristãos da outra margem

do Mediterrâneo, camarões, lulas, ostras, lagostas e

polvos. O peixe é permitido, porém, comido com bas-

tante parcimônia. Os muçulmanos gostam mesmo é

de carneiro, geralmente, cozido e misturado com ar-

roz, prato principal, nas mesquitas, em todas as datas

festivas, inclusive, antes e depois do santo ramadã. O

costume de comer arroz com carneiro, com as mãos,

também é observado por todas as etnias religiosas do

mosaico libanês. Tradição praticamente desconheci-

da no Brasil. Mesmo entre as comunidades de origem

síria, egípcia, armênia e palestina — que, como a li-

banesa, são de maioria cristã. Ironicamente, para os

muçulmanos, que desde o ressurgimento, em 1948, do

moderno Estado de Israel, transformaram os judeus

em principal alvo inimigo, é mais fácil encontrar um

banquete à base de arroz com carneiro em comemo-

rações das famílias hebraicas, de origem sefaradita,

que para cá fugiram, entre os anos 1950 e 1970, para

escapar das implacáveis perseguições religiosas na

Síria, Egito e mesmo no Líbano.

A hora da refeição é sagrada para os libaneses. todos

os acontecimentos da vida, alegres ou tristes, são

compartilhados em torno de uma mesa. A amizade

e o amor se medem, freqüentemente, pelo prato, reforçan-

do o provérbio que diz que “quanto mais comeres na casa

de alguém, mais o aprecia-

rás”. vem daí a insistência,

muitas vezes constrangedo-

ra, dos convites.

os segredos das receitas

de família passam de gera-

ção para geração. Ainda hoje,

toda jovem esposa, de qual-

quer classe social, deve pre-

parar, diariamente, dois ou

três pratos típicos libaneses

para o exigente marido — provavelmente “mal-acostuma-

do” às delícias feitas pela mãe. As receitas variam ligeira-

mente entre uma região e outra. os produtos básicos são

a carne de carneiro, o berghoul, o trigo seco ao sol, o arroz,

as lentilhas, o tomate, a berinjela e o grão-de-bico. quase

todas as casas, no campo, têm à porta o

jurn — o pilão de pedra que serve para

preparar os pratos de carne. geralmente

quibe ou kafta. A carne é misturada aos

Page 47: Gourmet Internacional

45GOURMET

* o jornAlistA liBAnês fouAd nAiMe é proprietário e

diretor de redAção dA revistA MensAl CARTA DO LíBANO,

editAdA eM são pAulo, coM circulAção nAcionAl.

esplêndido instAntâneo do céleBre studio zAhliotA fAkhoury, de 1929, MostrA As duAs MArgens

do rio BArdAuni, que cortA A MíticA cidAde liBAnesA de zAhlè, coM os centenários restAurAntes e

cAfés, provAvelMente no finAl dA MAnhã de uM doMingo, depois dA MissA, MoMento de degustAr

o quiBe cru, que será AssAdo, depois, pArA o AlMoço, AcoMpAnhAdo do inconfundível sABor

AdocicAdo do arak, A AguArdente de uvA AroMAtizAdA coM Anis. Ao longo dAs MArgens plácidAs

do rio de zAhlè, nAscerAM Alguns dos prAtos MAis sABorosos dA cozinhA liBAnesA, coMo o quiBe,

nAs diferentes forMAs, e o tABule, AMBos À BAse de trigo Moído.

demais ingredientes e batida com uma pá de madeira — a

mdaqqa. cada família fazia, no passado, o próprio pão que

era consumido na casa. os talheres só apareceram em me-

ados do século xix.

sentavam-se, à noitinha, ao redor de uma grande

bandeja de cobre ou madeira onde estavam dispostos os

pratos, cuja preparação, feita pela mãe da família, levava,

quase sempre, o dia todo. depois das preces usuais, ritu-

al seguido por todas as confissões religiosas, os dedos se

juntavam, apertando um pedaço de pão, e, em seguida,

era molhado nas comidas colocadas sobre pratos de cerâ-

mica. faziam-se as refeições habitualmente em silêncio. o

momento era solene. e o alimento representava o fruto de

um elaborado trabalho. estavam sempre presentes à mesa,

principalmente nas casas camponesas, as azeitonas, a la-

bne, a coalhada, os queijos, os pires contendo os patês de

grão-de-bico e de berinjela, a yakhne, a mjaddara, o arroz

com lentilha e tabule. As frutas secas apareciam para ado-

cicar o paladar. As favas ou manúche, servidas pela manhã,

calavam o estômago muitas vezes por todo o dia.

os doces no líbano são geralmente à base de massa fo-

lheada e mel — uma herança dos séculos de ocupação do

país pelos turco-otomanos. Atraem legiões de apreciadores

os enormes pratos de cobre guarnecidos de losangos afo-

gados no mel. o nascimento de um bebê é festejado com

o meghlé, espécie de pó-de-arroz que, supostamente, trará

à criança sorte e prosperidade. para preparar o tradicional

maamoul, um doce com tâmaras, pistaches ou amêndoas,

consumido durante a páscoa, as mulheres se reúnem numa

das casas vizinhas e cada uma leva a receita da avó —

a rainha do maamoul.

Page 48: Gourmet Internacional

46

o forno armênio da rua são lázaro não existe desde

meados dos anos 1970. fez parte de minha vida.

levei muitas vezes esfihas para assar. Antes, as-

sistia em casa a um ritual de pura gastronomia afetiva. o

bom naco de capa de filé fresco era lentamente passado no

moedor a manivela por duas vezes para depois ser tempe-

rado por minha mãe. tomate

fresco picado sem sementes

e sem pele, filetes de cebola

branca, algum alho amassado,

sal, pimenta síria e, às vezes,

um toque de canela só para dar

aroma. todo o recheio era colo-

cado numa forma de alumínio,

coberto por um pano branco,

amarrado nas pontas e imediatamente levado por mim à

padaria armênia. era só dobrar a esquina e andar uns 50

metros pela mesma calçada.

Morávamos numa travessa da são lázaro, na estreita e

curta rua francisco sá Barbosa, que dava para a rua can-

tareira, aquela do Mercadão. era uma vila de casas térreas

geminadas, corredor de entrada lateral, portão de ferro. tí-

picas residências operárias dos anos 1920. Algumas estão

o forno e os sabores das esfihas da Luzos armênios eram os mestres no bairro paulistano

diretor de jornAlisMo dA

ReDe GAZeTA de televisão,

coM sede eM são pAulo,

dácio nitrini foi diretor do

SBT e dA ReDe ReCORD. Atuou

tAMBéM nA TV CULTURA,

O eSTADO De S.pAULO e nA

FOLHA De S.pAULO.

lá até hoje. nossos vizinhos eram na maioria armênios. em

segundo lugar vinham japoneses que vendiam verduras e

frutas no Mercadão e alguns libaneses e italianos. todos

nos dávamos muito bem. uma solidariedade emocionante.

naquela época nem sabia ser um “turcaliano” genuíno.

Agora o sou assumido. Meus avós paternos, nasceram na

velha bota. os nitrini são toscanos de vagli sotto, paese

perto de lucca. Meu lado “turco” ficou escondido no regis-

tro oficial. falta nele o sobrenome materno, infelizmente.

Minha mãe, era uma caram, filha do ourives libanês ga-

briel, nascido em Beirute. Meus bisavós se chamavam nur

e Abdulah. impossível não amar esfihas, quibes, folhas de

uva, zátar, azeite e coalhadas. fazem parte do meu cardápio

desde que nasci. Assim como os deliciosos pratos italianos

que via sendo meticulosamente preparados por minhas

tias. A massa caseira enrolada

no ferrinho, o fusilli, longo ma-

carrão furado, a pastiera di gra-

no na sobremesa. o cálice de

licor perfumado strega...

A padaria armênia nem placa

tinha. não era conhecida por um

nome. produzia pão pita, rosca de

gergelim, pão folha e esfihas, au-

tênticas esfihas de carne, abertas e fechadas. funcionava to-

dos os dias. Mas o sábado era especial. nos anos 1950, armê-

nios da luz se encontravam ali para falar da vida e de negócios.

Alguns tinham fabriqueta familiar de sapatos nos po-

rões das casas em que moravam. eu mesmo, aos 12 anos,

fui aprendiz na calçados infantis tio, do boníssimo seu le-

von Akralian, que mal falava português e tratava sua meia

dúzia de operários como filhos.

por dÁcio nitrini

ArMênIA

A padaria dos armênios nem placa tinha. Produzia esfiha, pão pita e rosca de gergelim

Page 49: Gourmet Internacional

47GOURMET

outros tinham que batalhar duro.

vendiam especiarias nas feiras. poucos

eram ricos. vinham de carro. lembro

bem que os simca chambord jangada

estavam na onda, chamavam a atenção

pelos desenhos dos arcos do palácio da

Alvorada nas portas. era juscelino, claro.

geralmente traziam mulheres e fllhos. carregavam

enormes tigelas, cobertas por panos brancos, transbordan-

do de recheio preparado em casa. entregavam a tigela para

o dono da padaria, um egípcio de

origem armênia, casado com uma

negra de olhos verdes. ela falava

muito pouco, sempre em árabe.

ou seria armênio? ele escrevia

o nome da família num papel e

o colava com fita durex na vasi-

lha. o recheio era levado para os

fundos da padaria. tudo ficava

à vista. A massa era aberta, cortada em pequenas rodelas.

os auxiliares numa rapidez de artista circense preenchiam

os bocados com a carne, dispondo-os em uma longa e larga

pá de madeira coberta de farinha. As esfihas escorregavam

para dentro do forno a lenha. Assavam em minutos. saíam

fumegantes, crocantes e macias. sabor de mãe. o chei-

ro bom invadia a rua. niguém resistia. rapidamente eram

retiradas, dispostas em bandejas de papelão grosso, prote-

gidas por folhas de um resistente papel rosa. o pacote era

amarrado com barbante branco. na saída, compravam pão

pita e roscas cobertas por sementes de gergelim. Minassian,

Baghdassarian, paloulian, Messegian, krikorian, Bougikian,

Agop, Manucha, george, Archaluz, stepan, Avediz e farid.

Mas também havia fujiwara, sakamoto, Miura e nagamine.

Bem com nitrini, pisaneschi, zechinatti, panella e roma.

naqueles anos 1950, a luz tinha um refinado risto-

rante na rua são caetano, hoje conhecida como rua das

noivas. era o Ao jardim Toscano, dirigido com mão forte

pela proprietária, dona nella.

não havia como comer melhor

na região. era o ponto alto da

elite do bairro. Aniversários, ca-

samentos, vitória do time do

clube Araguaia... tudo era co-

memorado lá na prestimosa

dona nella, que havia trazido

uma raridade à cidade, difí-

cil de encontrar em toda a são paulo. um cremoso café

expresso extraído de uma máquina a vapor, reluzente,

com a marca em neon verde, gaggia. pessoas atraves-

savam a cidade para degustar apenas um cafezinho ali.

havia fila no caixa e no balcão. tudo isso também se es-

fumaçou. exatamente no mesmo local está um acanhado

il Giardino. não me atrevi a entrar.

Mas ainda resiste bem no coração da luz um oásis que

pode matar nossa sede por boas e originais esfihas armê-

nias. um forno com mais de 40 anos. sente-se a uma das

mesas do effendi, na rua dom Antonio de Mello, 77. viva

o que resta de uma cidade ingênua, sem pressa, com vozes

em árabe, armênio, japonês, italiano. faça isso enquanto

espera a sua esfiha ser assada. é lá onde ainda levo as mi-

nhas, mantendo a receita dos caram.

Esfihas escorregavam para dentro do forno a lenha e

assavam em minutos

o forno de esfihAs e de pães tipo pitA erA uM

sucesso nos Anos 1950 e 1960, no BAirro dA

luz, e reuniA ArMênios, liBAneses e itAliAnos.

As esfihAs, Ao contrário dos quiBes, são

BAstAnte coMuns eM todo o oriente Médio.

são prepArAdAs de diferentes MAneirAs.

especiAlMente nA ArMêniA e nos Antigos

territórios do pAís BíBlico do Monte ArArAt,

ocupAdos hoje pelA turquiA.

Page 50: Gourmet Internacional

48

À mesa em Portugal como no BrasilA aventura da pesca do bacalhau nas águas geladas

o pAinel de Azulejos dA pescA do BAcAlhAu,

Ao lAdo, locAlizAdo nA vilA portuguesA do

tochA, freguesiA de cAntAnhede, próxiMA

A coiMBrA, siMBolizA A AventurA lusitAnA,

desde o século xv, de pescAr eM águAs

A Muitos quilôMetros Ao norte de seu

território o ingrediente do prAto nAcionAl

— A BACALHOADA à pORTUGUeSA. desde A

erA dos descoBriMentos o BAcAlhAu não

pode fAltAr nA MesA dos portugueses. o

noMe do pescAdo esteve durAnte Muitos

Anos entre As priMeirAs denoMinAções

AtriBuídAs Ao continente AMericAno. é fArtA

A docuMentAção do estAdo português

eM que, referindo-se À AMéricA do norte,

ApArece coMo terrA do BAcAlhAu o AtuAl

cAnAdá. os portugueses, nA rotA do

BAcAlhAu, chegArAM eM 1472 À iMensA ilhA

cAnAdense dA terrA novA — 20 Anos Antes,

portAnto, de cristóvão coloMBo descoBrir

oficiAlMente A AMéricA. portugueses

enfrentAM Até hoje As águAs gelAdAs do

cAnAdá, groenlândiA e noruegA pArA pescAr

o BAcAlhAu.

por Fábio Caldeira Ferraz

portUGAL

Portugal é o único país cujo ingrediente prin-

cipal do prato nacional, a célebre Bacalhoa-

da à Portuguesa, precisa ser pescado e sal-

gado a muitas milhas ao norte da sua costa

atlântica. Contraria assim Portugal a lógica segundo

a qual os pratos nacionais são sempre baseados —

como na cozinha libanesa — em produtos facilmente

encontrados dentro das fronteiras do país. E torna

evidente a vocação marítima da nação que embarcou

nas caravelas, no final da Idade Média, e deu mundos

ao mundo. Também na Espanha o bacalhau tem lugar

de honra na gastronomia, como o clássico Bacalao a

Vizcaína ou a Bilbaína, tipicamente de Bilbao, capital

do País Basco, ou na Itália, onde, em Roma, às sextas-

-feiras, é dia de saborear, no almoço, o Baccalà ai Ceci,

o bacalhau com grãos-de-bico. O primeiro é acompa-

nhado de fatias de pimentão. O outro tem o tomate

como principal elemento do molho, semelhante ao

usado nas massas. Mas em nenhum dos dois países o

bacalhau é o prato nacional.

Identificar entre nós os traços da cultura portu-

guesa, mais de 500 anos após o épico desembarque

de Pedro Álvares Cabral, em Porto Seguro, na Bahia,

é um empreendimento arriscado, notadamente se o

autor os persegue no campo da gastronomia. Talvez

Page 51: Gourmet Internacional

d. Afonso henriques (1108-1185), o conquistAdor, foi o fundAdor e o

priMeiro rei de portugAl — MAis Antigo pAís dA europA coM fronteirAs

consolidAdAs. o MonArcA enfrentou os exércitos dA própriA Mãe,

dª teresA, filhA do iMperAdor Alfonso vi de cAstelA e león, nA MeMorável

BAtAlhA de são MAMede, A 24 de junho de 1128, junto Ao cAstelo de

guiMArães, pArA tornAr independente dA gAlíciA o então condAdo

portucAlense. e, por isso, guiMArães, região do Minho, é considerAdA

o Berço de portugAl. fundAdor dA pátriA lusitAnA há quAse 900 Anos,

d. Afonso henriques, que nAsceu e Morreu eM coiMBrA, estendeu

os doMínios portugueses Até o sul do pAís e inspirAriA, AtrAvés dAs

conquistAs, As dinAstiAs que o sucederAM A lAnçAr portugAl eM BuscA

de novos Mundos. uM dos MAiores síMBolos do espírito desBrAvAdor

lusitAno é A BACALHOADA à pORTUGUeSA, cujo ingrediente principAl só

é encontrAdo nAs águAs gelAdAs do Atlântico norte.

Page 52: Gourmet Internacional

50

Produtos vindos de todo o Império enriqueceram a

cozinha portuguesa

o BAcAlhAu é sAlgAdo e vendido seM cABeçA. e, por isso,

eM toM de BrincAdeirA, Aqui e eM portugAl, Muitos duvidAM

que o peixe tenhA uMA.

portUGAL

estabelecer o exato limite no que se refere às coisas de

comer e beber seja apenas isso, traçar uma fronteira

— uma linha imaginária a separar Estados, como nos

ensina a Geografia Política. Obviamente estão a His-

tória e os indicadores atuais sobre a alimentação em

ambos os países a nos evidenciar elementos próprios

de parte a parte. Não ao

ponto de negar os eviden-

tes elos dos dois povos.

Pelo contrário. Embora

aparentemente distintos,

nesses elementos tam-

bém estamos todos.

De ambos os países

pode se dizer, de pronto,

serem diametralmente

opostas algumas preferências. Portugal mantém-se

há séculos um voraz consumidor de frutos do mar. São

predominantes no cotidiano do país Ibérico os mo-

luscos e os peixes — com destaques para o bacalhau e

outros pescados salgados. Longe da costa, e em menor

escala, suínos e aves são relevantes na rotina gastro-

nômica, assim como novilhos, cordeiros, cabritos e a

caça de faisão, lebre, perdiz e javali. O Brasil, por sua

vez, paulatinamente foi cedendo à mesa maior espaço

à carne bovina.

Não foi o peixe a prosperar juntos aos paladares no

Novo Mundo português, a partir de 1530, quando aqui

chegaram os primeiros rebanhos de gado. As levas ini-

ciais de bovinos, trazidas de

Cabo de Verde, arquipélago a

oeste do continente africano,

tinham a função de meio de

transporte e força de tração

ou motriz para apoiar os tra-

balhos agrícolas nas recém-

-criadas vilas coloniais. Os dois pólos de receptação

dos animais, São Vicente, em São Paulo, e Salvador,

na Bahia, com o crescimento do rebanho e, principal-

mente, com a expansão da cultura de cana-de-açúcar,

no entanto, passaram a irradiar sertão adentro, nos

anos seguintes, o gado e os vaqueiros. Os territórios

que viriam a se tornar as regiões Nordeste e Centro-

-Oeste já abrigavam, no início do século XVII, as pe-

cuárias de corte e de leite. Distantes do litoral e sem

a estrutura necessária para praticar a pesca com uma

escala considerável nos rios, mestiços e portugueses

passaram a recorrer cada vez mais à carne bovina e de

outros animais criados pelas famílias sertanejas para

fins de subsistência — como porcos e aves.

Enquanto Portugal figu-

ra hoje como o maior consu-

midor de bacalhau do mun-

do, com uma importação

anual de cerca de 60 mil to-

neladas, a pecuária fez do

Brasil o detentor do maior

rebanho mundial, princi-

pal exportador e o terceiro

maior consumidor. Entre

as carnes, a bovina responde por, aproximadamente,

40% do mercado interno. Os peixes equivalem a ape-

nas 5%, mesmo sendo nossa uma das mais extensas

faixas litorâneas do mundo e nossa a maior reserva

de água doce. Esse percentual seria ainda menor não

fosse a influência católica que tem no pescado o ali-

mento adequado das sextas-feiras e dias santos. São

evidentes também as divergências quanto aos pendo-

res para bebidas alcoólicas entre as nacionalidades. O

vinho segue mais apreciado lá, e a cerveja uma paixão

nacional por aqui.

Há certamente os pontos de convergências entre

os paladares. Têm origem portuguesa os doces à base

de ovos, como os deliciosos

Fios de Ovos e Chuviscos, bas-

tante apreciados na região de

Campos, no norte fluminense.

Também é lusitano o Toucinho

do Céu, que mistura magistral-

mente ovos e amêndoas, e as

mais variadas compotas. É português, sim, senhor, o

mais antigo restaurante brasileiro, o tradicionalíssi-

mo Leite [página ao lado], símbolo da boa gastrono-

mia de Pernambuco, com endereço na Praça Joaquim

Nabuco, quase às margens do Rio Capibaribe. O Leite,

às vésperas de completar 130 anos, continua sendo o

orgulho da grande comunidade portuguesa de Recife

e uma referência gastronômica no País.

Page 53: Gourmet Internacional

51GOURMET

é Portugal falando para o mundo o leite é o mais antigo restaurante do Brasil

ReCiFe

Azulejos dA fAchAdA do LeiTe, nA prAçA joAquiM

nABuco, no recife, forAM restAurAdos durAnte A

últiMA reforMA do restAurAnte. tAMBéM A cAlçAdA

receBeu As pedrAs portuguesAs.

diz muito sobre portugueses e brasileiros ser lusitano

o mais antigo dos restaurantes do país, o Leite, no

coração do recife histórico, às vésperas de completar

130 anos. Austero e imponente como um solar português,

com azulejaria lusitana à meia parede na vasta fachada que

ocupa o quarteirão mais nobre da praça joaquim nabuco,

célebre abolicionista pernambucano, freqüentador assíduo

do restaurante, o tradicionalíssimo Leite, fundado em 1882,

testemunhou a ascensão e queda de modismos da alta socie-

dade pernambucana — e de suas intrigas políticas e sociais.

foi após almoçar no leite, em 26 de julho de 1930, que seria

assassinado pelo desafeto joão dantas o então governador

paraibano joão pessoa, ao chegar, uma quadra adiante, à

confeitaria glória, na esquina das ruas nova e palma. o Lei-

te, instituição secular dos gourmands da metrópole fundada

por Maurício de nassau, pratica uma cozinha lusitana com

naturais concessões afrancesadas na ementa, bem como às

influências dos ingredientes e temperos nordestinos. um sin-

cretismo que se tornou fórmula de sucesso.

A gloriosa história do decano dos restaurantes brasilei-

ros mereceu um livro da jornalista pernambucana goretti

soares, O Leite ao Sabor do Tempo, publicado em 2002 por

ocasião do aniversário de 120 anos do estabelecimento

— e ganhará agora uma segunda edição, organizada pela

própria autora, atendendo encomenda do proprietário do

estabelecimento, o beirão Arménio ferreira diogo, de 78

anos, nascido na localidade de pinheiro de lafões, freguesia

do distrito de viseu, Beira interior, ao norte de portugal. ele

está à frente do Leite desde 1953. “A alma do restaurante é

o seu Armênio”, afirma goretti soares, acrescentando: “ele

mantém o Leite por amor e devoção.” A casa foi fundada

por outro português originário das Beiras, Armando Manoel

leite de frança, a quem se deve o nome do restaurante. Ar-

ménio ferreira diogo prepara as filhas para assumir o Leite,

e, certa vez, disse a uma delas: “o Leite não está aqui para

fazer dinheiro, e, sim, para fazer história”. Bem haja!

Page 54: Gourmet Internacional

52

portUGAL

notável sAlão do seculAr tAvAres, uM dos restAurAntes MAis Antigos e noBres de

todA A europA. fundAdo eM 1784, À ruA dA MisericórdiA, Ao chiAdo, BAirro centrAl

de lisBoA, o tAvAres está presente eM vários MoMentos dA oBrA do escritor

português eçA de queiroz (1845-1900). o restAurAnte do chiAdo é conhecido, eM

lisBoA, coMo o tAvAres rico. e o tAvAres poBre é o fArtA Brutos, À ruA dA esperA, no

BAirro Alto, trAdicionAl reduto coMunistA. o escritor josé sArAMAgo foi uM de

seus ilustres clientes.

Se pelos caminhos dos ingredientes mais popula-

res portugueses e brasileiros, em alguns pontos, se

distanciaram, foram reservadas às técnicas de prepa-

ro dos pratos, à capacidade de incorporação dos ele-

mentos naturais de outros povos e, sobretudo, à for-

mação cultural semelhante a condição de elementos

de coesão luso-brasileira.

Do modo lusitano de trabalhar os ingredientes

surgiu a feijoada, “o primeiro prato brasileiro”, como

classifica Luís da Câmara

Cascudo (1898-1986), em

História da Alimentação no

Brasil. “O cozido português

que originou a feijoada”,

acrescenta o antropólogo po-

tiguar, reúne “carne de vaca,

fresca e seca, paio, salsicha, presunto, toucinho, lom-

bo de porco, couve, repolho, rábanos, cenouras, bata-

tas, nabos, vagens, abóbora, feijão-branco.” Cascudo

observa que a reprodução do prato no Brasil ao longo

do tempo foi sendo modificada — caso da substituição

do feijão-branco pelo preto ou fradinho, mais “popu-

lares por aqui”, e da elimina-

ção de alguns legumes e car-

nes — contudo, sem nunca

perder de vista a “tentativa

de obter refeição única” do

cozido.

Antes do Novo Mundo,

portugueses já conheciam a

experiência da interação, ain-

da que forçada, com outros

povos. Os registros sobre a

formação do país identificam

a presença de fenícios, gre-

gos, cartagineses, romanos,

mouros, judeus e nórdicos.

Aclimatar-se aos rigores de

trópicos dominados por índios exigia flexibilidade. In-

corporar ao cotidiano, simultaneamente, índios e negros

escravizados, bania de vez qualquer desejo de ortodoxia

gastronômica. “Dentro da extrema especialização de

escravos no serviço doméstico das casas-grandes, re-

servavam-se sempre dois, às vezes três, indivíduos aos

trabalhos de cozinha”, conta-nos Gilberto Freyre (1900-

1987), na monumental obra Casa Grande & Senzala,

para logo a seguir apontar que “várias comidas portu-

guesas ou indígenas foram no Brasil modificadas pela

condimentação ou pela técnica culinária do negro.”

Vale citar também que o europeu não manifestou

quaisquer pudores ao trazer espécies de plantas e

animais de outros continentes para cá ou exportá-los

para o seu, enriquecendo a cozinha da Metrópole com

a diversidade presente no Impé-

rio. Os fatos sugerem, portanto,

uma integração gastronômica,

não apenas por conveniência,

mas por vontade própria.

Algo certamente faz um bra-

sileiro sentir como experiência

única estar em um tradicional restaurante lisboeta,

como o Tavares, a escolher um prato entre os muitos de

uma ementa secular. Não será nunca experiência inu-

sitada. Os ingredientes, o modo de preparo, os aromas,

o sabor sempre vão trazer a impressão de estar diante

de algo próximo, familiar, quase brasileiro.

Fronteiras das cozinhas de Portugal e do Brasil são

praticamente inexistentes

Page 55: Gourmet Internacional
Page 56: Gourmet Internacional

54

Muito além da salsicha e da salada de batatasGastronomia alemã acima de tudo — como no hino

prussiAno, coMo frederico,

o grAnde, e o pAi dA ModernA

filosofiA, iMMAnuel kAnt, o

chAnceler otto von BisMArck (1815-

1898), reunificou, eM 1871, grAnde

pArte dos territórios dA AleMAnhA

de nossos diAs. priMeiro Ministro do

iMpério AleMão, de 1862 A 1890, ele dá

noMe Ao sABoroso BiFe A BiSmARCk

coM dois ovos fritos servidos

eM ciMA dA cArne, que tAMBéM

conheceMos, no BrAsil, coMo filé A

cAvAlo. A prússiA de BisMArck, por

ironiA ou trAgédiA, hoje não fAz MAis

pArte dA AleMAnhA. é uM enclAve

russo nos Bálticos desde o finAl dA

segundA guerrA MundiAl.

ALeMAnhA

Natural de um distrito rural de um peque-

no município do interior do Rio Grande

do Sul, tenho entre as mais agradáveis

lembranças de minha infância e adoles-

cência os churrascos em família ou a campo aberto,

nos torneios de futebol do nosso time ou nas quer-

messes da escola onde aprendi as primeiras letras.

O espeto de carne assada no braseiro vinha sempre

acompanhado de uma salada de batatas — o tubérculo

cozido misturado com uma maionese caseira e ovos,

também cozidos. Por muito tempo, para mim essa re-

feição era sinônimo de comida gaúcha. Só bem mais

tarde aprendi que a salada de batatas é, na verdade,

uma contribuição dos imigrantes alemães para a

nossa gastronomia. Assim como as cucas que minha

mãe fazia nos aniversários e festas de família — ou a

qualquer pretexto ou sem razão nenhuma — e que eu

também jurava que eram coisas de gaúcho. Hoje, sei

que é de gaúcho, sim, porque foi incorporada ao cardá-

pio dos pampas, mas que a origem está do outro lado

do Atlântico. Há outros pratos, no entanto, sobre os

quais poucos têm dúvida de que são tipicamente ale-

mães, como joelho de porco, chucrute e salsicha, sem

esquecer as bebidas, como por exemplo, a cerveja.

O hino alemão tem uma estrofe que conclama o

povo germânico com o brado “Deutschland übber

alles”. Alemanha acima de tudo. O mesmo brado

poderia ser adotado na gastronomia, Deutschküch

übber alles. Cozinha alemã acima de tudo. Um pou-

co de história ajuda a entender a popularização da

por evanildo silveira

Page 57: Gourmet Internacional

55GOURMET

os iMigrAntes AleMães forAM os priMeiros A chegAr Ao BrAsil, eM 1824, ApenAs dois Anos depois dA independênciA. eles tiverAM coMo

MAdrinhA A dª MAriA leopoldinA de áustriA, nossA iMperAtriz dª leopoldinA (1797-1826), esposA de d. pedro i, que pertenciA À corte

vienense e erA protetorA dos povos de línguA AleMã. As guerrAs nApoleônicAs, concluídAs eM 1808, destruírAM o que restAvA do

sAcro iMpério roMAno gerMânico e levArAM À ruínA Milhões de AleMães. Alguns deles vierAM pArA As colôniAs no rio grAnde do sul

— enfrentAndo uMA longA viAgeM, coMo se vê, AciMA, nA tocAnte AquArelA de ritA BroMBerg Brugger. descendente dos priMeiros

viAjAntes, elA é AutorA de DiáRiO De Um imiGRANTe, uM relAto dA AventurA dos pioneiros, puBlicAdo eM 2000. os AleMães AcABAriAM por

trAnsforMAr eM pAixão nAcionAl A cervejA e A iMprescindível sAlAdA de BAtAtAs que AcoMpAnhA o churrAsco.

Page 58: Gourmet Internacional

56

frAncisco krieger, uM

dos proprietários do

trAdicionAl restAurAnte

AleMão wiNDHUk, de são

pAulo, é descendente

de uMA fAMíliA AleMã

rAdicAdA há MAis de ceM

Anos eM sAntA cAtArinA.

o wiNDHUk é uMA dAs

Melhores opções dA

cozinhA gerMânicA eM

todo o BrAsil.

ALeMAnhA

gastronomia alemã no

Brasil, por onde se es-

palhou principalmente

a partir da região Sul.

Em 2014, ano da Copa

do Mundo no País, se-

rão comemorados os

190 anos da chegada dos

primeiros imigrantes da

Alemanha ao território

nacional. Desconside-

rando desembarques

isolados anteriores,

como o do astrônomo e

cosmógrafo Meister Jo-

hann, conhecido como Mestre João, da frota de Pe-

dro Álvares Cabral, e a do escritor Hans Staden, no

século XVI, que foi aprisionado por índios no litoral

paulis ta, os alemães começaram a chegar ao Brasil

em maior número a partir de meados do século XIX.

Estima-se que até a Segunda Guerra Mundial vieram

aproximadamente 300 mil. Dirigiram-se em maior

número para o Rio Grande

do Sul, Santa Catarina, Para-

ná, São Paulo, Rio de Janeiro

e Espírito Santo, em regiões

de clima mais próximo ao que

estavam acostumados na Eu-

ropa. Hoje, os alemães no País

somam cerca de 5 milhões,

entre imigrantes e descendentes. A expansão das úl-

timas décadas deve-se principalmente à vinda de inú-

meras indústrias alemãs. E a acordos firmados entre

os dois países, que fizeram do Brasil um dos maiores

parceiros comerciais da Alemanha.

A gastronomia germânica no País é apreciada em

toda parte, porque muitos dos ingredientes são co-

muns às duas culturas. É o caso do porco e da batata —

campeões do consumo. Também o pão, a couve, a mos-

tarda e o repolho, do qual se faz o famoso chucrute,

o sauerkraut, uma conserva fermentada da verdura.

De típico, eles ainda contribuíram para introduzir no

Brasil o gosto pelos embutidos, como as salsichas, as

mortadelas e os salsichões. Entre os pratos alemães

mais conhecidos e apre-

ciados, que podem ser

degustados nos bons

restaurantes de cozinha germânica no Brasil, estão a

weisswurst (salsicha branca), o kassler (costeleta de

porco), o eisben (joelho de porco), o mit rotkohl (mar-

reco assado) e a bockwurst (salsicha feita de vitela e

de porco, servida com mostarda quente). Não faltam

doces e geléias. Dá água na boca só de imaginar so-

bremesas como o apfelstrudel, uma tradicional torta

folhada de maçã e que hoje

incorporou outras frutas. Há

ainda as cucas ou kuchen,

uma espécie de bolo-pão com

cobertura doce, que na minha

memória funciona como as

madeleines do escritor fran-

cês Marcel Proust (1871-1922)

— sem a pretensão de ter o mesmo talento, é claro, e a

käsetorte, uma torta de ricota.

O catarinense Francisco Krieger, filho de imigran-

tes, e proprietário, juntamente com o irmão Valfrido,

do restaurante de comida alemã Windhuk, um dos

mais tradicionais de São Paulo, fala um pouco sobre

a origem histórica da gastronomia da terra dos pais

e avós. “Muitos dos pratos alemães nasceram da ne-

cessidade de armazenamento de alimentos, principal-

mente por conta de épocas de baixa temperatura e de

guerras”, ensina Krieger. “Daí é que vem a variedade

de molhos, queijos, manteiga, pães, embutidos, con-

servas, patês e geléias, chegando a centenas de tipos

diferentes.” Para acompanhar as refeições, a cerveja

São cinco milhões no Brasil de alemães e seus descendentes

Page 59: Gourmet Internacional
Page 60: Gourmet Internacional

58

oBrA kONSeRVeNmACHeRiNNeN retrAtA, eM 1879, AleMãs

durAnte o exAustivo trABAlho eM uMA fáBricA de conservAs

— uM trAço dA industriAlizAção AcelerAdA dA AleMAnhA

Após A unificAção. o quAdro é do pintor iMpressionistA MAx

lieBerMAnn (1847-1935). está eM leipzig, nA AntigA AleMAnhA

orientAl, no MuseuM der Bildenden künste.

ALeMAnhA

ainda é insubstituível. Considerada inicialmente um

verdadeiro alimento, a cerveja é parte da cultura ale-

mã, integrando a própria refeição, e, ao contrário do

que muita gente acredita, é servida quase sempre ge-

lada na Alemanha. Mas, como as garrafas são grandes

e existem copos de até um litro, a bebida esquenta ra-

pidamente e assim deixa a impressão de que é servida

em temperatura ambiente.

Foram os alemães que ele-

varam a cerveja à condição

de paixão nacional no Brasil.

Que o digam os promotores da

Oktoberfest, em Blumenau,

Santa Catarina, que todos os

anos, desde 1976, abrem um

largo sorriso com a visita de

milhares de turistas. Estiveram na cidade catarinense,

em 2011, nada menos do que 560 mil turistas. A culi-

nária alemã, como não podia deixar de ser, tem uma

história ligada à do país e do povo.

O ambiente e os sabores alemães podem ser apre-

ciados no restaurante dos irmãos Krieger, nascido

como bar em 1948, no Bairro de Moema, na Zona Sul

da capital paulista. O estabelecimento foi fundado por

Rolff Stephan, um dos tripulantes do navio alemão

Windhuk, que dá nome à casa. A história conta que

a embarcação de passageiros fazia a rota Alemanha-

-África do Sul, quando não pôde retornar à Europa,

devido ao início da Segunda Guerra Mundial. Depois

de inúmeras tentativas de voltar para casa, a tripula-

ção decidiu atracar, em 1939, no porto brasileiro de

Santos, em São Paulo. O Brasil até então se mantinha

neutro no conflito. Com a de-

claração de guerra de Getúlio

Vargas à Alemanha e à Itália,

em 1942, imigrantes dos dois

países passaram a ter restri-

ções no Brasil. Foram proibi-

dos jornais e escolas alemãs, e

clubes típicos tiveram de mu-

dar de nome, como, por exemplo, o Germânia, que se

tornou Pinheiros, em São Paulo. O mesmo aconteceu

aos italianos. A tripulação de cerca de 250 pessoas

do Windhuk, presa no porto de Santos, seria enviada

para um campo de concentração construído em Pin-

damonhangaba, no Vale do Paraíba, e lá ficou até o

final da guerra, em 1945.

Os alemães do Windhuk não chegaram a sofrer

maus tratos no campo de concentração brasileiro e,

quase todos, ao final do conflito, preferiram perma-

necer no País. “Somente um tripulante voltou para

a Alemanha. Os demais ficaram e refizeram a vida

por aqui”, recorda Krieger, concluindo: “Era muito

difícil, naqueles primeiros anos do pós-guerra, com

a Alemanha arrasada e com a dramática falta de em-

prego, alguém voltar para casa”. O restaurante que os

tripulantes do Windhuk criaram no Bairro de Moema

é, hoje, uma referência obrigatória da gastronomia

alemã em todo o País. O Windhuk está quase sempre

com a lotação esgotada. O restaurante, nos fins de se-

mana, é frequentado por muitas famílias de origem

germânica da capital paulista. E o atendimento, nes-

ses momentos, é em língua alemã. Idioma que ainda

hoje os descendentes dos primeiros imigrantes que

aqui chegaram, em 1824, preservam em várias cida-

des do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina. Como os

Krieger, do Windhuk, e os Wolffenbüttel, da família

do escritor gaúcho Fausto Wolff (1940-2008).

tripulação do navio Windhuk ficou presa em

Pindamonhangaba

Page 61: Gourmet Internacional
Page 62: Gourmet Internacional

60

o MurAl, ABAixo, elABorAdo pelo ArtistA rAMón sArABiA,

eM 1968, pArA o trAdicionAlíssiMo restAurAnte LOS

CARACOLeS, uM dos MAis Antigos dA europA, especiAlizAdo

eM frutos do MAr e locAlizAdo no centro histórico de

BArcelonA. fundAdo eM 1835, no solAr de núMero 14

dA cArrer d’escudellers, onde se encontrA Até hoje, eM

pleno corAção do MedievAl BAirro gótico dA cApitAl dA

cAtAlunhA, é, possivelMente, uM dos Melhores endereços

eM todA A espAnhA pArA degustAr A pAellA — especiAlidAde

originAdA nA vizinhA vAlenciA, cidAde dos BorgiA, fAMíliA

de pApAs, e pArte históricA dos paisos catalans. iMperdível A

pAeLLA LOS CARACOLeS. o restAurAnte tAMBéM é conhecido

coMo cAsA BofArull, porque há cinco gerAções A fAMíliA

BofArull, retrAtAdA no MurAl de sArABiA, é proprietáriA

de LOS CARACOLeS.

espAnhA

Page 63: Gourmet Internacional

61GOURMET

Caballeros, Paella para todos!Prato que une as Espanhas mesmo nas guerras civis

por pola Galé *

* O jornalista Pola Galé foi Diretor de Jornalismo da TV Cultura, de São Paulo.

rAinhA dA espAnhA que, no MesMo Ano de

1492, expulsou os MuçulMAnos de grAnAdA,

últiMo cAlifAdo islâMico dA penínsulA

iBéricA, e descoBriu As AMéricAs, isABel I, lA

cAtólicA, (1451-1504), AciMA, retrAtAdA nuMA

oBrA de 1500 do pintor juAn de flAndes,

AMAvA As frutAs. AusterA e severA, cAsAdA

coM fernAndo de ArAgón, se AliMentAvA

quAse seMpre À BAse de frutAs e, segundo os

BiógrAfos, MArAvilhAvA-se, A cAdA regresso

Ao porto de sevilhA dos gAleões de cristóvão

coloMBo, que trAziAM espécies tropicAis do

novo Mundo — coMo A goiABA, ABAcAxi,

pinhA e MAMão. forAM os reis cAtólicos, isABel

i e fernAndo, que recuperArAM A hegeMoniA

dA europA cristã soBre os MuçulMAnos Após

A quedA, eM 1453, de constAntinoplA, A AtuAl

istAMBul, eM poder islâMico.

Page 64: Gourmet Internacional

62

Ao perfumar a cozinha com o cheiro de

alho em azeite de oliva bem quente, pode

ter certeza: você está diante de uma bela

tradição herdada dos países do Mediter-

râneo. Se o hábito é comum nos países europeus, na

Espanha ele se transforma em ato obrigatório em to-

das as cozinhas da terra de Cervantes, Goya e Picasso.

A crise econômica na Península Ibérica no final do

século XIX fez com que muitas famílias espanholas vies-

sem para a América na esperança de vida melhor. De-

sembarcaram no Brasil trazendo suas tradições na mala

e na alma. Os primeiros registros da chegada dos imi-

grantes espanhóis no porto de Santos são de 1884. Esta-

beleceram-se em cidades como Rio

de Janeiro, Salvador e São Paulo,

mas vieram principalmente para

o interior paulista na busca de tra-

balho nas lavouras de café. Levan-

tamento de 1920 mostra que, dos

220 mil espanhóis no Brasil, 80%

viviam em terras paulistas.

A presença espanhola nestas

terras é mais antiga. Padre Anchie-

ta — o apóstolo do Brasil, fundador

da cidade de São Paulo, por exem-

plo, era espanhol das Ilhas Caná-

rias. E nosso país foi também co-

lônia espanhola entre 1580 e 1640,

durante a União Ibérica, quando

a Coroa portuguesa esteve em po-

der dos reis de Castela — Filipe II,

III e IV. Foi nesse período que os

espanhóis fundaram, na Paraíba,

a cidade da Filipéia de Nossa Se-

nhora das Neves, em homenagem

ao Rei Filipe II. A Filipéia passaria

a se chamar Fredericstadt, Cidade

Frederica, durante a ocupação ho-

landesa, depois Cidade da Paraíba

e, por fim, João Pessoa.

No fluxo migratório do final do século XIX para o

XX, a maioria dos espanhóis vinha do sul, da Andalu-

zia, e do extremo noroeste, da Galícia. Os primeiros

se adaptavam melhor ao campo, enquanto os outros

preferiam a cidade. A atividade urbana principal era o

comércio de alimentos como chorizos caseiros, azeite,

azeitonas e queijos. Em Salvador, nessa época, os ar-

mazéns de secos e molhados, padarias, confeitarias e

bares ostentavam nomes como Pérez, Fernández, Gon-

zález. Em São Paulo e no Rio de Janeiro também era

freqüente a presença de um espanhol atrás do balcão

da mercearia. Entre a Primeira e a Segunda Guerra

Mundial, a imigração para cá ficou paralisada, porém

foi retomada no pós-guerra e até o final dos anos 1950.

As famílias que aqui chegavam traziam a devoção

à boa comida e ao futebol. Sim, ao futebol, esporte que

por ali sempre foi paixão nacional — juntamente com

AlMoço de despedidA de eMigrAnte, eM 1956, nuM fogar de gAlegos, uM

lAr, nA provínciA de pontevedrA, retrAtAdo por virxilio vieitez (1930-2008).

renoMAdo fótogrAfo gAlego, nAscido nA MesMA pontevedrA, eM soutelo

de Montes, AldeiA próxiMA À provínciA de orense, vieitez docuMentou,

coM rArA sensiBilidAde, de 1955 A 1965, A trágicA divisão dAs fAMíliAs

gAlegAs cAusAdA pelA eMigrAção. veio de pontevedrA grAnde pArte dos

mozos dA gAlíciA que eMBArcArAM pArA sAlvAdor, nA BAhiA, Montevidéu,

Buenos Aires e hAvAnA.

espAnhA

Page 65: Gourmet Internacional
Page 66: Gourmet Internacional

64

as touradas. O Corinthians atraiu, em São Paulo, a

simpatia da comunidade. Os imigrantes formaram em

Santos o Espanha — atual Jabaquara. Os galegos, na

Bahia, não deixaram por menos e fundaram o Galícia

Esporte Clube, que chegou a ser chamado de Demo-

lidor de Campeões. Não há outra explicação, senão a

influência espanhola, para o grito que até hoje toma

conta dos estádios quando um jogador dribla outro e a

torcida se manifesta com um sonoro “Ooolééé”.

Mas é o gosto pela comida que mais mostra a alma

espanhola. Não é à toa que o país tem a mania nacional

do tapeo, hábito unânime de beliscar tapas antes das

refeições, ou seja, um tira-gosto para acompanhar a

bebida, de preferência vinho. Visitar um amigo ou ami-

ga, na Espanha, e recusar a comida oferecida é falta de

educação. Comida, enfim, chega a ser o sentido da vida

de muitos espanhóis. O movimento dos bares e restau-

rantes de Madri é prova incontestável. Como dizem por

lá: de cada três euros que o madrilenho ganha, dois são

para bares e restaurantes, e um para manter a casa.

Vieram ao Brasil, na leva de imigrantes do pós-

-guerra, dois nomes que se transformaram em ilustres

representantes da gastronomia espanhola — o andaluz

Francisco Ríos Domínguez, toureiro fundador do res-

taurante Don Curro em 1958, e o galego Belarmino Igle-

sias, fundador do Rubaiyat há 52 anos, ambos em São

Paulo. Belarmino especializou o restaurante para as

carnes e já por muitos anos é considerado pelas revis-

tas de gastronomia como a melhor churrascaria de São

Paulo. Mesmo assim, os Iglesias não conseguem esque-

cer o paladar espanhol e gradualmente foram incluin-

do embutidos, Paella e pescados na ementa de seus res-

taurantes. O maior e mais requintado deles, o Figueira,

se transformou em um cartão-postal culinário de São

Paulo. O estabelecimento, montado embaixo de uma

grande figueira, tem o DNA da Espanha. Peixes e frutos

do mar são preparados na brasa, fornos especiais e a

la plancha — na chapa. O pescado é hábito diário espa-

nhol. Na Catalunha, País Basco, Andaluzia, Astúrias e

Galícia, principalmente, fazem parte de receitas tradi-

cionais como Pulpo a la Gallega, fritada de mexilhões,

merluza ao molho verde, salmão a la ribereña, atum à

moda basca, peixes grelhados, gambas y lagostines en

la plancha, e, entre tantos outros, o célebre Bacalao Al

Pil Pil — tradicional prato basco de Bilbao. Mesmo as

cidades interioranas recebem diariamente o pescado

do mar, uma frota de caminhões-frigorífico que tem

prioridade nas estradas que cortam a Espanha.

Mas nenhuma outra casa é tão entrañablemente

espanhola como o Don Curro, que se tornou sinônimo

de Paella na capital paulista. Quem administra hoje o

restaurante são os filhos do fundador, Rafael e José Ma-

ria Domínguez. A Paella foi criada pelos camponeses de

Valencia. O tacho largo, baixo e com alças, empresta o

nome ao prato. A Paella, juntamente com o jamón, é a

marca culinária espanhola mais difundida pelo mundo.

E nasceu da necessidade. Os valencianos saíam para

o trabalho no campo e levavam de casa azeite, arroz

e sal. No campo, caçavam algo, como lebre ou perdiz,

colhiam legumes e faziam uma fogueira. Misturavam

tudo na paella e comiam ao redor da panela coletiva.

Paella transformou-se de coletivo num prato festivo. E

notável foto de uM grupo folclórico de

cAntAres e dAnçAs gAlegAs nA BAhiA de

1953. ApresentAvAM-se eM sAlvAdor, Aos

doMingos À tArde, nA AntigA sede do centro

espAnhol dA BAhiA, no corredor dA vitóriA,

Após interMináveis AlMoços, nos quAis não

fAltAvAM o vinho de jerez, As empanadas e

o cocido. tocAvAM As trAdicionAis gAitAs,

herAnçA celtA, e BAilAvAM muñeiras, priMA-

irMã do vira português, e A dAnçA dos

Arcos. ApAreceM, Ao centro, À direitA, o

cAsAl MAriA helenA e rAMiro cAstro freAzA,

vindos de pontevedrA, e hoje BisAvôs de

vários BAiAnos.

espAnhA

Page 67: Gourmet Internacional

65GOURMET

é sempre o homem quem a prepara nas festas e reuni-

ões familiares. Surgiu daí a versão romântica da origem

do nome Paella, que seria a corruptela de para ella — o

homem apaixonado cozinha para ela, a mulher amada.

Embora nascida da rusticidade da vida no campo,

a Paella se sofisticou. Passou a ter ingredientes do

mar, outras carnes e verduras, ultrapassou os limites

de Valencia para se transformar num prato nacional

e extrapolar as fronteiras do país. Dizem os cozinhei-

ros espanhóis que, em cada região do país, se faz uma

Paella diferente. E cada cida-

de tem uma à sua maneira. E

cada casa tem seu jeito parti-

cular de fazer o prato ao gos-

to da família. Os restaurantes

espanhóis, no Brasil, também

preparam o prato cada um à

sua moda, seja no Shirley, no

bairro carioca do Leme, na Taberna, do Centro Espa-

nhol da Bahia, em Salvador, ou no paulistano Don

Curro. O certo é que a Paella é uma unanimidade na

Espanha, e mesmo quando o país esteve em guerra ci-

vil, nos anos 1930, o prato continuou sendo o símbolo

da gastronomia nacional de todos os espanhóis.

Mas de um modo geral, os espanhóis e seus des-

cendentes brasileiros tiveram motivos para comemo-

rar a boa comida nos últimos anos. Alimentos mais

sofisticados começaram a chegar com a abertura das

importações no início dos anos 1990. Teve-se, assim,

acesso mais fácil a ícones da culinária espanhola

A pAellA é o único

prAto que uniu

por séculos

As diferentes

preferênciAs dA

espAnhA — MuitAs

vezes divididA

eM frAtricidAs

guerrAs civis.

o prAto nA

versão originAl

vAlenciAnA é A

fusão de vários

ingredientes.

Arroz, AçAfrão,

ervilhA, porco,

frAngo, cAMArão

e outros frutos

do MAr.

Em todas as regiões da Espanha se faz um tipo

diferente de Paella

como o jamón Ibérico alimentado com bellota, o Pata

Negra, o melhor presunto cru do país. A abertura tam-

bém aumentou a oferta de vinhos da Rioja e da Ribera

del Duero, embora os preços ainda assustem um pou-

co se comparados aos dos portugueses. Outro fato im-

portante é que a cozinha espanhola ganhou destaque

internacional nos últimos anos. Ferran Adrià revolu-

cionou a gastronomia com suas espumas e esferas

no El Bulli, ganhou todos os prêmios importantes do

mundo e transformou os chefs espanhóis em grandes

celebridades. Vieram, em con-

seqüência, restaurantes com

novidades, modernidades e

adaptações a nossas matérias-

-primas como o Eñe, do Rio de

Janeiro e de São Paulo.

Esperamos que o modismo

estimule também a abertura de

novos restaurantes no Brasil com comida clássica es-

panhola, diversificada e, por que não?, simples e a pre-

ços mais em conta. Que venham os cocidos madrileños

(com grão-de-bico), os gazpachos (sopa fria à base de

tomate), os cochinillos (leitõezinhos de leite), as migas

de Aragón (pão duro em lascas umedecido, temperado

com azeite e alho) e Lacón con Grelos (pernil de porco

com um tipo de couve). Tudo isso seguindo ao pé da le-

tra o que se entende por gastronomia. A arte de trans-

formar o ato de comer num momento de grande prazer.

É o que todas as mães e abuelas espanholas já fazem

em suas casas em qualquer parte do mundo.

Page 68: Gourmet Internacional

66

uMA dAs MAis fAMosAs

oBrAs do irrequieto pós-

ModernistA holAndês,

vincent vAn gogh (1853 –

1890), teM título coMprido

e coMpleto. chAMA-se

o terrAço do cAfé, nA

prAçA do fóruM, Arles,

À noite — reprodução

Ao lAdo. A telA foi

concluídA eM seteMBro

de 1888. sete Meses depois

que vAn gogh trocou

pAris por Arles, no sul

dA frAnçA, onde se

desluMBrou coM As cores

do cAMpo dA provence.

o pintor holAndês

cAptou MAgicAMente

o espírito dos cAfés

frAnceses – MArcA de uMA

gAstronoMiA requintAdA

e que, Após séculos de

supreMAciA, continuA A

ser referênciA pArA A AltA

cozinhA. de BerliM e novA

york A londres e Milão.

o cAfé que inspirou o

ArtistA continuA coM As

portAs ABertAs e roteiro

oBrigAtório pArA queM

visitA Arles. chAMA-se

AgorA, coM justiçA, cAfé

vAn gogh. desde os Anos

1990 A fAchAdA possui

tons verdes e AMArelos.

próxiMos Às cores

originAis escolhidAs por

vAn gogh.

FrAnçA

Page 69: Gourmet Internacional

67GOURMET

LE BrÉsIL uma obsessão francesaPaixão de Villegagnon aos chefs da nouvelle cuisine

nAscido nA ilhA frAncesA dA córsegA, vizinhA À itAliAnA

sArdenhA, NApOLeãO BONApARTe (1769-1821), filho de pAis

coM AscendênciA dA noBrezA itAliAnA, é considerAdo

por Muitos o MAior personAgeM dA históriA dA frAnçA.

ele detestAvA o requinte dA cozinhA frAncesA e preferiA

A siMplicidAde dA culináriA peninsulAr — eMBorA

durAnte o período eM que ocupou o bel paese os

lAticínios, coMo MAnteigA e creMe de leite, pAssArAM A

ser usAdos coMo Molho de MAssAs, principAlMente, Ao

norte de roMA. deve-se A nApoleão BonApArte A criAção

dA coMidA enlAtAdA — invenção do frAncês nicolAs

Appert, eM 1808, pArA Melhor trAnsportAr AliMento

pArA os soldAdos nos MAis diferentes fronts. A

invenção dA coMidA eM lAtA foi uM sucesso, poréM, não

iMpediu A débâcle nApoleônicA nA rússiA, eM 1812, e, eM

1815, eM WAterloo, AtuAl BélgicA, diAnte de ingleses e

prussiAnos. e AindA por ciMA, por ironiA, A inovAção

AcABou por ser pAtenteAdA pelA inglAterrA.

A França foi o primeiro país a ter sua gas-

tronomia declarada Patrimônio Imaterial

da Humanidade pela Organização das Na-

ções Unidas para a Educação, a Ciência e

a Cultura (Unesco). Apesar de o reconhecimento ser

recente, essa arte pioneira é muito antiga, e começou

a ser desenvolvida na Idade Média. Primeiro, veio a

descoberta dos ingredientes e, depois, a sabedoria

dos primeiros gourmands que identificaram as me-

lhores maneiras de elaborar os pratos. Nos banque-

tes oferecidos a reis e rainhas, através dos séculos,

muitos desses pratos passavam por testes decisivos,

antes de chegar à mesa dos nobres. Depois, caíam no

gosto popular. Uma das principais determinantes

para a evolução sempre foi a natureza. As diversas

regiões do território da França, das montanhas aos

campos e ao litoral, reúnem tudo que é necessário

para uma gastronomia extremamente rica, e até hoje

qualquer uma das cozinhas francesas, seja a clássi-

ca, a regional, seja a nouvelle cuisine, encanta o mun-

do com a art de vivre.

Inclui-se a admiração pela cultura francesa como

uma das muitas marcas deixadas no Brasil pelos por-

tugueses. Pode-se perceber em todas as áreas a influ-

ência dos franceses. Desde a chegada ao Rio de Janeiro

da esquadra do Almirante Nicolas Durand de Villegag-

non, que se estabeleceu em duas ilhas da Baía de Gua-

nabara e na região da atual Praia do Flamengo. Uma

• Colaborou neste trabalho a jornalista e chef de cozinha Camila Taquari.

Page 70: Gourmet Internacional

68

FrAnçA

céleBre froide d’Agneu, cordeiro frio, dA glAMurosA BrAsserie lipp, que

ocupA o núMero 151 do BoulevArd sAint-gerMAin dês prés, nA MArgeM

esquerdA do rio senA, defronte Ao lendário cAfé deux MAgots. fundAdA

pelo AlsAciAno leonArd lipp, eM 1880, freqüentArAM A BrAsserie lipp

escritores coMo MArcel proust, André gide, Antoine de sAint-exupéry,

AlBert cAMus, jeAn-pAul sArtre e André MAlrAux.

troisgros e Suaudeau trouxeram na bagagem

ensinamentos de mestres

das ilhas tem hoje o nome

de Villegagnon e a outra é

a Ilha do Governador, onde

se encontra o Aeroporto do

Galeão. Fundaram uma co-

lônia, dedicada ao comércio

e ao abrigo de protestantes,

que ficou conhecida como

França Antártica e durou de

1555 a 1560, quando foram

expulsos pelos portugueses.

Muitos viajantes gostaram

da experiência de se deliciar

com as novidades dos trópi-

cos. Foi assim que começou

o cruzamento de culturas

que se pode saborear até

hoje. Frutas como o abacaxi

surpreendiam os recém-chegados. André Thevét (1516-

1590), no Singularidades da França Antártica, cita a

fruta como “excepcionalmente boa de se comer, tan-

to por sua doçura quanto por

seu sabor”. O caju, a fruta e a

castanha, também agradava,

assim como a goiaba ou araçá

brasileiro, o mamão, manga-

ba, umbu, a mandioca, batata-

-doce, cará, taioba, as favas,

amendoim, abóbora, milho,

palmito, pimentas nativas, entre carnes de caça e pei-

xes de água doce e salgada.

Alguns desses ingredientes até hoje são os favo-

ritos dos chefs franceses que chegaram ao Brasil nos

últimos 30 anos e deram nova vida à gastronomia no

País. Claude Troisgros e Laurent Suaudeau, por exem-

plo, trouxeram na bagagem, sólida formação técnica

clássica e ensinamentos de seus mestres. A paixão

por mandioquinha, mandioca, jabuticaba, maracujá,

cajá, banana e palmito é um traço comum entre esses

profissionais, que aqui lançaram um novo conceito de

cozinhar, preferindo os produtos frescos e da estação.

Pode-se dizer que foram os precursores da valorização

da cozinha nacional. O pâtissier Fabrice Le Nud, fun-

dador da pâtisserie Douce

France, ao chegar, ficou

muito impressionado com

o tamanho e o sabor dos

maracujás. Com o cupua-

çu, recheia tortas, trufas e

faz um magnífico sorvete.

O encanto é semelhante

ao registrado, nos idos de

1550, por Jean de Léry, que

elogiava inúmeros ingre-

dientes, entre eles a taio-

ba, espécie de couve, com

folhas largas, um dos atra-

tivos da época, que teve a

chance de provar, como

sopa, na Ilha de Villegag-

non, então reduto francês.

Quando, em 1815, o Rio de Janeiro foi elevado a ca-

pital do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,

já eram observadas na sociedade carioca os hábitos

inspirados na elegância e bom

gosto franceses — cultivados

pela Rainha da França Catarina

de Medici, italiana de Florença,

responsável pela introdução

de boas maneiras e etiquetas à

mesa, além do uso do garfo. Fo-

ram então, sob inspiração fran-

cesa, inaugurados novos estabelecimentos comerciais

de todos os gêneros: mercearias de secos e molhados,

as primeiras padarias, confeitarias e restaurantes. As

confeitarias francesas e italianas serviam empadas re-

cheadas de camarão, frango ou carne de porco, tortas,

frango assado, doces e sorvetes. Também dispunham

de serviço de buffet para festas e reuniões em casa.

Fundou-se a primeira Escola Real de Ciências,

Artes e Ofícios do Brasil. Destacava-se a presença

de um grande artista francês, o pintor Jean-Baptiste

Debret (1768-1848), que registrou algumas das mais

importantes imagens do cotidiano no Brasil colonial.

Inspirado nos losangos dos regimentos bonapartis-

tas, Debret desenhou a primeira bandeira brasileira e

Page 71: Gourmet Internacional

69GOURMET

Pereira Passos espelhou-se em Haussmann para criar

a Belle Époque carioca

desde os Anos 1980 trABAlhAndo no BrAsil, o chef frAncês

eMMAnuel BAssoleil, incorporou Às criAções vários ingredientes

dA cozinhA do pAís. MAs AchA que A culináriA frAncesA não

precisA AcoMpAnhAr A ModernidAde.

a coloriu com o verde

da Casa de Bragança,

uma homenagem ao

Imperador D. Pedro I

(1798-1834), e, o ama-

relo dos Habsburgo,

em reverência à aus-

tríaca Imperatriz D.

Leopoldina. Ao con-

trário do que muitas

escolas ensinam hoje

às crianças, o verde

empregado por De-

bret não represen-

taria as riquezas de

nossas matas, e nem o

amarelo, os tesouros

minerais do Brasil.

Mas essa não foi a única influência francesa sobre

o pendão nacional. Com a Proclamação da Repúbli-

ca, foi a vez do positivismo de Augusto Comte (1798-

1857) acrescentar à nossa bandeira a frase “Ordem e

Progresso”.

Com a ascensão de uma classe média, a partir do

Segundo Reinado, o Rio de Janeiro viu seus comer-

ciantes aderirem à cultura da França, vestindo-se e

degustando cardápios à moda francesa. Nos menus os

restaurantes apresentavam

os pratos em língua france-

sa: Badejo à la Brezilienne,

Asperges Sauce Mousseline

e Dinde Farci, além dos pa-

tês e sortidas sobremesas,

dessert assorti. Eram mui-

to consumidos os vinhos

franceses como Sauterne,

Bordeaux e o próprio Champagne. Entre 1880 e 1920,

o Rio de Janeiro conheceu o ápice da cultura france-

sa com a Belle Époque. O prefeito Francisco Pereira

Passos (1836-1913) espelhou-se no seu colega francês

Barão Georges-Eugène Haussmann (1809-1891), o ar-

quiteto que revolucionou Paris, quando prefeito, na

segunda metade do século XIX, abrindo grandes bou-

levards, na margem direita do Sena, e construindo a

célebre L’Opéra da capital francesa. Nesse cenário de

desenvolvimento, as elites carioca e paulista, enri-

quecidas pelo café, promoveram a publicação de uma

literatura culinária, que privilegiava receitas com

maionese, suflês, molho béchamel, filet mignon, cas-

soulets, potages (sopas), e,

entre os doces, bavaroises

de frutas e savarin.

Misturando ingredien-

tes locais, os chefs inova-

ram com purês e gratins de

mandioquinha, jabuticaba

com foie gras, peixes ao

molho de maracujá ou com

banana grelhada. Maravilhas da cozinha contempo-

rânea. O festejado chef Emmanuel Bassoleil, instala-

do no Brasil desde a década de 1980, defende que a

cozinha francesa não precisa acompanhar a moder-

nidade, pois foi sempre a base para outras vanguar-

das gastronômicas. Impossível não se perfilar diante

da mesa francesa.

Page 72: Gourmet Internacional

70

no outono de 1981, Le Vivarois resplandecia de novo.

esse restaurante parisiense, indecifrável na forma,

decorado em metal, mármore e essências de ma-

deira clara, tinha como dono e chef uma figura muito espe-

cial: claude peyrot, que vagava

entre seus fogões e clínicas de

repouso psiquiátrico, mas era o

favorito dentre todos os demais

chefs de cozinha estrelados de

paris. seu talento criador e uma

capacidade de execução sem

par fizeram-no um dos grandes

do século passado — desde que

estivesse de bem com a vida.

era o caso naquela tarde ainda cálida, quando este jorna-

lista levou dois colegas, especialistas mais consagrados e

exigentes, para o que deveria ser uma seção de taxonomia

culinária e acabou em uma experiência memorável.

naquela beirada do Bois de Boulogne, quando a Avenida

victor hugo se desvencilha das grandes fachadas coloridas

As ostras quentes do chef Peyrot uma refeição inesquecível no parisiense le vivarois

A carta do Vivarois era curta, incompleta, e as sugestões

vinham do maître

coMentAristA dA

ReDe GAZeTA de

televisão, o jornAlistA

MArio de AlMeidA

foi vice-presidente,

diretor de redAção

e correspondente

eM pAris dA GAZeTA

meRCANTiL. tAMBéM

dirigiu As revistAs iSTOÉ

e GOURmeT. foi editor

de VejA.

das grifes e vira um canto residencial — muito caro e meio

chato —, podia-se comer algo que estava bem acima da

cuisine bourgeoise, como os franceses batizam o trivial fino

criado no século xix por suas tataravós, mas que também

não pode ser classificado hoje como nouvelle cuisine. cha-

ma-se isso fusion. fala-se que foi inventada na califórnia,

mas claude peyrot é o seu verdadeiro criador — e, por isso,

tantos cozinheiros estrelados iam ao Vivarois, madrugada

adentro, para festejar peyrot depois de fecharem suas casas.

o salão claro e envidraçado da victor hugo era defen-

dido por jacqueline, mulher do patrão, muito simpática e

competente a receber a clientela, entre meias explicações

sobre o humor do chef, que raramente subia de sua cozi-

nha no subsolo. Mas na visita inesquecível foi claude que

oficiava soberano. estava no auge, tinha notas altíssimas e

recendia confiança. dava-se a provas cada vez que um gar-

fo subia do prato à boca. tinha

gênio, inclusive na instabilida-

de. o restaurante, por exemplo,

nunca trabalhou aos sábados

e domingos porque o homem

gostava de passar o fim de se-

mana com a família.

A carta do Vivarois era cur-

ta e incompleta. As sugestões

eram recitadas pelo maître

d’hôtel. Mas o melhor era só para iniciados. o que era o nos-

so caso, pois o franco francês andava fraquíssimo e o menu

do almoço, a 185 francos sem vinho, equivalia a 25 dólares.

tratava-se, portanto, de ir direto ao ponto. claude peyrot é

o inventor das ostras mornas sobre um leito de espinafre,

servidas individualmente sobre a concha, sob um lençol

por mario de almeida

FrAnçA

Page 73: Gourmet Internacional

71GOURMET

de especiarias e curry. isso figura nesses tem-

pos em milhares de cardápios e pode ser enco-

mendado em quase todas as línguas. essa era,

pois, a entrada obrigatória dos conhecedores e

freqüentadores habituais. ostras da Bretanha,

gordas pela estação, de preferência belons nú-

mero 2. o vinho: Mersault les genevrires-des-

sus 1970.

Aguardávamos aquelas ostras discutindo exatamente

sobre a clarividência de pedir Mersault, quando a pequena

procissão de garçons e de comis surgiu com os pratos de-

baixo daquelas tampas prateadas, os cloches. foi quando

se descobriu que nosso chef dos fogões gauleses estava

em dia de gala. para começar,

eram nove em cada porção.

ora, pratos com nove ostras,

em paris, sabe-se há gerações,

só no prunier, e frescas. Além

disso, havia naquele reluzen-

te disco de faiança branca até

mais execução do que criação.

Bichos supimpas, perfumados

ao cardamomo, noz-moscada e

um fio de curry para acender papilas gustativas sem der-

rubar a percepção do vinho. os espinafres, como se cada

folha tivesse merecido andar sozinha à caçarola, presa a

uma pinça, para 15 segundos de imersão, tinham gosto e

aroma intactos.

serviço de restaurante em paris é coisa séria. obcecado

pelos detalhes, chef peyrot fez da sua brigada um modelo

de precisão. executada a entrada, comis precisos recolhiam

despojos e detritos enquanto a procissão reaparecia, desta

vez com a segunda pedida, também ausente do cardápio:

coq au vin de pommard. pode parecer exagero, e é mesmo:

o galo de monsieur peyrot é diferente de tudo. para come-

çar, os vinhos de pommard têm aquela cor profunda de ter-

ra, e, no entanto, aquele galo tinha carnes visíveis e consis-

tentes — da cor que devem ser as carnes de aves. nada de

tonalidades escuras.

coq au vin é prato caipira,

legítimo plat canaille, como os

franceses chamam carinhosa-

mente a mesa popular, com

suas receitas de miúdos, con-

servas e cozidos. pois a bela

arte de claude peyrot transfor-

mou a mesa do povo numa fes-

ta de modernidade. desossada,

bem apresentada, a ave estava acompanhada de minúscu-

la e perfumada mousse de azedinha. o conjunto, por reco-

mendação do sommelier, ficou ainda melhor na presença

de um tinto potente, que então apenas desbravava alguns

endereços parisienses e custava, na mesa, menos de 200

francos (30 dólares): côte-rôtie, exemplar capitoso e par-

ticularíssimo da vizinhança do châteauneuf-du-pape, mis-

tura de uvas syrah com 20% de brancas viognier no começo

da fermentação para quebrar o teor alcoólico.

Coq au Vin é prato caipira, legítimo plat canaille, como

os franceses chamam

A frAnçA é uM dos MAiores produtores e

consuMidores de ostrAs. tAMBéM outros pAíses

dA europA, coMo portugAl, espAnhA, BélgicA e

holAndA, cultivAM os cAprichosos Moluscos.

cAnAnéiA, no litorAl sul de são pAulo, e

floriAnópolis, cApitAl de sAntA cAtArinA, são

produtores de ostrAs no BrAsil. existe Até uM

roteiro turístico eM floriAnópolis, cAMinho

dAs ostrAs, nA freguesiA de riBeirão dA ilhA.

Page 74: Gourmet Internacional

72

neGóCIo

Grandes redes de um cardápio universalMarcas mostram diversidade da gastronomia no País

Falkenburg inovou, em 1951, a produção de

sorvete no rio de Janeiro

por Luiz Voltolini

Algumas conquistas do século XX fo-

ram determinantes para chegarmos

ao perfil atual do mercado de alimen-

tação fora do lar. Destaque para a melhora

dos padrões de higiene na manipulação dos

ingredientes e preparação dos pratos, a frag-

mentação e automatização dos processos

produtivos, a segmentação dos mercados e,

claro, o surgimento das

grandes redes de varejo.

o início da história das

redes, no Brasil, coube a

um americano – robert

Falkenburg, hoje com 85

anos, tenista vencedor do torneio Wimble-

don dos anos de 1948 e 1949. A Falkenburg

Sorvetes inovava, em 1951, ao produzir com

máquinas as massas geladas feitas a partir

de receitas importadas dos estados Unidos.

o empreendedor, em 1952, muda o nome

do estabelecimento para Bob’s e abre uma

unidade na mítica Copacabana, àquele ins-

tante cenário preferido da juventude carioca

seduzida por bossa nova e rock’n roll. o Bob’s

populariza o cachorro-quente, o hambúrguer,

o milk-shake e o sundae. A mesma Copacaba-

na recebe, em 1979, a primeira unidade do

mcDonald’s do país. A rede chegou, em al-

guns anos da década passada, a ser o maior

empregador privado no Brasil, superando a

Volkswagen.

A entrada maciça de

empresários brasilei-

ros no segmento se dá

nos anos 1980 e 1990,

dando origem a marcas

célebres, como Ameri-

ca, Gendai e Ráscal. outro fenômeno, nesse

período, se sucede no mercado interno. res-

taurantes já consagrados iniciam ousados

projetos de expansão, que, mais tarde, os

alçariam à condição de rede — caminho per-

corrido com sucesso pelo Almanara e Graal.

os muitos elementos que constituíram as

redes nacionais estão nas histórias desses

cinco campeões.

Page 75: Gourmet Internacional

73GOURMET

Almanara

restaurante apresentou o Quibe Cru ao grande público de São Paulo

A decisão de manter em atividade o esta-

belecimento da Rua Basílio da Gama, no

centro de São Paulo, certamente foi re-

compensadora

para a família Coury, funda-

dora da rede Almanara. Os

duros primeiros anos pau-

listanos, semelhantes aos

de tantos outros imigrantes

vindos do Líbano, a partir do

final do século XIX, foram

coroados pela transferência, em 1952, do restaurante

para o novo endereço, àquela época um ponto nobre

da cidade, a poucos metros da Praça da República e

da Avenida São Luís, a poucos outros de onde come-

çaria a ser erguido, nos anos seguintes, o que viria a

ser dois dos símbolos da maior metrópole ao sul das

Américas — os edifícios Itália e Copan.

Foi um sucesso e deu fôlego à empresa. Novas uni-

dades foram abertas, anos mais tarde, em shoppings

e bairros ascendentes da

Capital e da Grande São

Paulo, além de uma ou-

tra loja em Campinas, no

interior do Estado. O con-

sumo médio do cliente do

Almanara hoje é em torno

de R$ 40 numa rede for-

mada por dez restauran-

tes que oferece a tradicional comida libanesa — com

algumas concessões ao paladar local. O Almanara foi

eleito, em 2011, pelos próprios clientes, pela terceira

vez consecutiva, o melhor restaurante do que se con-

vencionou chamar de comida “árabe”, de acordo com

o Instituto Datafolha. Há ainda o Almanara Delivery

que já responde por, aproximadamente, 30% do fatu-

ramento da rede.

A prosperidade nos negócios não fez os Coury

mudarem a gestão familiar. Nem centralizarem a co-

zinha, garantindo, assim, ao cliente pratos prepara-

dos na hora e com ingredientes sempre frescos. Cada

unidade da rede tem relativa autonomia operacional

e mantém, como elemento de coesão, um ligeiro inti-

mismo presente no design interior.

Os quatro filhos de Zuhair Coury comandam atu-

almente o negócio iniciado pelo pai. Ele se lançou no

empreendimento, em 1950, em um ponto comercial da

Rua 25 de Março, originalmente movido pela idéia de

atender com as preciosas receitas trazidas do Líbano

pela mãe os imigrantes do País dos Cedros, além de

sírios, armênios e povos de outras nacionalidades do

Oriente Médio.

As iguarias da família Coury fizeram, de fato, mui-

to sucesso junto às comu-

nidades de imigrantes, no

entanto, foi a procura de

brasileiros por aqueles

sabores, então ainda pou-

co conhecidos, que levou

o restaurante a um novo

patamar no cenário gas-

tronômico paulistano. É

atribuída ao Almanara a popularização entre eles de

um dos pratos símbolos da culinária libanesa — o Qui-

be Cru. Claro, para viabilizar o prato, os cozinheiros

do restaurante substituíram a carne do carneiro, mais

cara e difícil de encontrar, pela bovina, há séculos po-

pularíssima por aqui.

Do restaurante original da Basílio da Gama muito

ficou. Lá estão, recém-restaurados, o espelho jateado

do modernista italiano Vitorio Gobbis, o painel a óleo

do também italiano Tulio Costa Giovaneieli, além do

salão principal art déco. À cidade só coube recompen-

sar tamanho cuidado. As instalações do restaurante

inaugural do Almanara são hoje oficialmente patri-

mônio histórico de São Paulo.

Page 76: Gourmet Internacional

74

Outro bom exemplo do empreendedorismo

é a rede Restaurante America, que conti-

nua 100% paulistana. Os fundadores Helio

Mattar, Artur Guimarães e sua esposa Ma-

ria Helena, Luis Guelpi e Paulo Maluhy são paulistas

e a rede não existe fora da Grande São Paulo. Quando

abriu suas portas pela primeira vez em dezembro de

1985, o America alterou definitivamente os hábitos

da gastronomia paulistana. A empresa nasceu e foi

planejada para ser uma rede de restaurantes. A inspi-

ração para a criação do America veio dos diners ame-

ricanos, trazendo à cena um novo conceito em restau-

rantes, o casual dinner.

A inovação completou 26 anos no ano passado, ofe-

recendo qualidade nas re-

ceitas e produtos, servidos

com uma decoração descon-

traída, aconchegante e mo-

derna. Atendimento cordial

e rápido num ambiente com

muita higiene. Esses ingre-

dientes compõem a receita

de sucesso do America e re-

presentam os elementos de uma filosofia única, que

norteia o funcionamento da rede desde a fundação, de-

monstrando preocupação com a satisfação do freguês.

A missão da rede é oferecer um serviço com excelência

de qualidade em refeições fora de casa, satisfazendo e

encantando clientes e funcionários.

O America tem, hoje, 14 lojas na Grande São Pau-

lo, localizadas na Alameda Santos, Alphaville, Moema,

Nove de Julho, Avenida Paulista e nos shoppings Anália

Franco, Bourboun, Center Norte, Eldorado, Higienópo-

lis, Iguatemi, Jardim Sul, Morumbi e Villa-Lobos. Aten-

dem mais de 250 mil pessoas por mês. O America conta

com um quadro de mil funcionários.

A rede oferece ampla variedade de opções: burgers,

sanduíches, massas, grelhados, acompanhamentos,

saladas, sobremesas, sorvetes, frozen yogurt, além

de um vasto buffet de saladas, servido diariamente

na hora do almoço. Sempre atento às tendências e no-

vidades do setor, o cardápio do America está sempre

em renovação. A maioria das receitas é desenvolvida

pelo chef Marcelo Favaro em parceria com

a equipe de desenvolvimento de produtos.

Nem todas são genuinamente brasileiras.

Algumas são tradicionais americanas,

como a receita do Devil’s Food Cake. Mes-

mo a do Frozen Yogurt America, que, em-

bora seja exclusiva, é baseada na clássica

receita original do produto.

As crianças também recebem atenção especial no

America. A garotada encontra cardápio kids, toalhas

de papel com jogos e histórias em quadrinhos, giz de

cera, brindes exclusivos do Fogofino, além do canti-

nho da leitura — uma estante recheada de livros para

que se entretenham lendo enquanto os adultos termi-

nam sua refeição.

Além de fornecer refei-

ção de qualidade, o America

acredita que pode contri-

buir para a melhora do bem-

-estar da população. Desde

novembro de 2001, partici-

pa do Projeto Mesa Brasil,

doando o excedente de ali-

mentos não processados para o projeto do Sesc, que

distribui os alimentos para instituições que auxiliam

pessoas carentes.

o frozen yogurt servido pela rede é baseado na

clássica receita americana

America

neGóCIo

Page 77: Gourmet Internacional

75GOURMET

Gendai

o japonês que conquistou com qualidade as praças de alimentação do País

O surgimento do Gendai marcou uma infle-

xão no mercado paulistano de restaurantes

de comida japonesa, marcadamente con-

centrado, no início dos anos 1990, no nipô-

nico Bairro da Liberdade, em São Paulo, e

detentor de um perfil de atendimento que

exigia dos clientes mais tempo para reali-

zar a refeição, quando comparado à média

dos dias atuais, e que emulava nos modos,

trajes e estética o Japão tradicional.

A idéia inicial era simples — criar uma loja para o

público leigo de produtos e utensílios típicos da culi-

nária japonesa em um ponto comercial fora do conhe-

cido núcleo da comunidade na região central. Meta

realizada com sucesso. A unidade de estréia no Shop-

-ping Morumbi rapidamente mostrou viabilidade fi-

nanceira, o que estimulou o quarteto de empresários,

liderados por Carlos Sadaki e Robinson Shiba, funda-

dor da rede China in Box, a

lançar, apenas dois anos de-

pois, em 1994, desta vez um

restaurante, sob a mesma

marca, no mesmo shopping.

Novamente o negócio

mostrava-se um contrapon-

to ao que existia no merca-

do de então. As premissas

do restaurante reuniam a praticidade da cozinha in-

dustrial, preços mais baixos e rápido atendimento.

Seguiram-se novas inaugurações, nos dois anos se-

guintes, em outros shoppings paulistanos da agora

rede Gendai. A empresa adotou como estratégia de ex-

pansão, ainda em 1996, o sistema de franquia e, nos

dez anos que se seguiram, alcançou outros Estados.

Chegou a enfrentar, em dado momento, problemas

para contratar mão-de-obra especializada. A alterna-

tiva foi treinar por conta própria sushismen. O expe-

diente gerou uma situação incomum. Os clientes da

marca passaram a ver, por trás dos balcões, rostos das

mais variadas etnias produzindo as especialidades

criadas pelo Império do Sol.

O sucesso estimulou a concorrência, que procu-

rou reproduzir o modelo, mas a essa altura o Gendai

já estava um passo a frente. Os sócios Sadaki e Shiba

costuraram um acordo e, em 2007, efetuaram a fusão

das duas empresas, a primeira do tipo entre redes de

franchising do País. O faturamento conjunto de R$ 80

milhões garantiu o ganho de escala, e a conseqüente

redução de custo, para ambas as companhias enfrenta-

rem os concorrentes, que esta altura também inovavam

ao lançar as temakerias e restaurantes que fundiam

no cardápio a gastronomia

nipônica e chinesa.

Preservada a marca no

acordo de fusão, dada a boa

receptividade junto aos em-

preendedores no segmen-

to de franquias, o Gendai

alcançou o número de 44

unidades, no ano de 2011,

divididas em seis Estados, mais o Distrito Federal,

tornando-se a maior rede do segmento no Brasil. Per-

tencem ainda ao grupo as marcas Domburi, também

especializada em comida japonesa, e Owan, cuja pro-

posta reúne em um único cardápio opções diversas

das gastronomias tailandesa e chinesa, além da nipô-

nica. Ambos os restaurantes atuam no segmento de

fast-food.

A fórmula empresarial de sucesso da dupla de des-

cendentes de japoneses e outros sócios, literalmente,

estava escrita. O nome Gendai, sugestão dos pais de

Sadaki, vertido para o português, corresponde a “tem-

pos modernos” — tempos nossos também carentes da

milenar cozinha japonesa compatível com a pressa

dos ponteiros do relógio.

Page 78: Gourmet Internacional

76

A rede Graal surgiu em 1974, tendo como

foco o público das estradas. Os empresá-

rios Manuel Alves e Antonio Eduardo Ro-

cha Alves, irmãos e fundadores da rede,

começaram a investir no setor de combustíveis na

cidade de Registro, no Vale do Ribeira, São Paulo, ao

comprarem o primeiro posto de serviços.

Durante homenagem

prestada pela Câmara de

Santa Cruz do Rio Pardo,

realizada no Icaiçara Clube,

quando receberam o título

de cidadania, em maio de

2009, Manuel Alves expli-

cou que o nome Graal não

foi escolhido apenas por

inspiração religiosa. Graal é o nome dado ao cálice

usado por Jesus Cristo. Manuel Alves conta que, se-

gundo a lenda, o graal era um cálice cravejado com

pedras preciosas. E como tudo aquilo que ele e seu ir-

mão conquistaram é sempre muito precioso, seja pelo

trabalho ou pela vontade, então, decidiram batizar a

rede com o nome de Graal.

Os irmãos Alves, naturais de Portugal, estão no

Brasil há cerca de 50 anos. Eles administram, por

meio da rede Graal, mais de 40 postos de serviços

localizados nas estradas dos principais Estados bra-

sileiros, onde mantêm o restaurante Via Grill, a lan-

chonete Graato Sanduíches, o Route Café, o NYC, que

oferece sanduíches com receitas de Nova York e a pa-

daria Bella Farinha.

O NYC — New York Company, presente em toda a

rede Graal, oferece aos viajantes o sabor especial ins-

pirado nos melhores sanduíches de Nova York.

A Graato Sanduíches é a marca da Graal para a

lanchonete especializada em sanduí-

ches tradicionais. Exemplos: americano

com carne ou presunto, bauru, calabre-

sa, churrasquinho com ou sem queijo,

queijo quente, pão com manteiga na cha-

pa, misto-quente ou frio, mortadela no

pão francês.

A Route Café é a marca própria da ca-

feteria da Graal. Uma verdadeira griffe em café. Grãos

selecionados produzindo um café de ótima qualidade,

que pode ser acompanhado por uma linha própria de

produtos: bolos, tortas, doces e salgados, frappés, chás

diversos e cappuccino. A Graal oferece alto padrão em

café, num ambiente agradável e aconchegante.

No restaurante Via Grill, além de todas as opções

de alimentação nos postos

da rede Graal, não poderia

faltar a churrascaria. O que

seria da estrada sem chur-

rasco? No Via Grill o clien-

te encontra o requinte dos

melhores restaurantes com

a qualidade das carnes no-

bres e cortes especiais das

mais renomadas churrascarias. Um cardápio especí-

fico e diferenciado: carnes grelhadas, rodízio ou à la

carte, além do buffet self-service por quilo com grande

variedade de saladas e sobremesas.

A Graal faz questão de ressaltar que na Bella Fari-

nha, marca das padarias da rede, a farinha faz a dife-

rença. De qualidade incomparável, é a base de todos

os produtos: baguettes, croissants, pães e frios, pão

sovado, doces, bolos caseiros e outras delícias sempre

quentinhas e fresquinhas. Preparados por padeiros

altamente qualificados.

graal

Portugueses criaram nas estradas uma paradinha obrigatória para comer

neGóCIo

Page 79: Gourmet Internacional

77GOURMET

A inspiração da rede Ráscal vem de um gran-

de espaço para alimentação que Roberto

Bielawski e Liane Ralston conheceram na

Alemanha e no Canadá. Em uma viagem

a Berlim, Liane conheceu o restaurante Marché, que

era uma enorme praça abrigada com várias ilhas que

serviam diferentes opções de comidas. Alguns meses

depois, viajando juntos a Toronto, Roberto e Liane co-

nheceram a versão canadense do Marché, bem mais

sofisticada que a de Berlim. Foi em Toronto que decidi-

ram adaptar o projeto para o Brasil, num formato dife-

rente do canadense.

Quando o Ráscal foi inaugurado, em 1994, a in-

tenção do casal Roberto e Liane, era servir opções de

massas, saladas e pizzas em um ambiente que propor-

cionasse interação entre clientes e cozinheiros, onde

comer fosse uma experiência agradável e aconchegan-

te. Até hoje essa é a base do Ráscal. Quem conhece uma

das nove unidades percebe a inspiração. As mesas es-

tão espalhadas entre a ilha de massas, o forno a lenha

e a cozinha aparente. No Ráscal Itaim, Market Place,

Higienópolis, Casa Shopping, Rio Sul e Leblon, é possí-

vel ainda ver os cozinheiros preparando as massas e as

sobremesas. Passados 16 anos, a rede atende por mês

em torno de 180 mil clientes servindo 160 mil buffets.

Só para citar um exemplo da grandiosidade, o Rás-

cal compra mensalmente aproximadamente 21,7 mil

quilos de laranja, 40,5 mil cubos de gelo e 29 mil quilos

de tomate. As receitas da rede são inspiradas no sa-

bor mediterrâneo. Elas são

elaboradas por uma con-

sultora gastronômica que,

diariamente, testa novas

receitas ou busca formas

de melhorar as já existen-

tes. Um dos principais obje-

tivos é surpreender a clien-

tela com novos pratos e garantir sempre o que há de

melhor num mercado em constante mudança.

Os chefs supervisores são todos formados no Ráscal

e têm em média dez anos de casa. Eles são responsáveis

por inserir as receitas nas unidades e atuam juntamen-

te com os cozinheiros para garantir que os clientes en-

contrem a cada visita o mais alto padrão de qualidade.

A gestão do Ráscal é centralizada e há uma equi-

pe de dez sócios — também funcionários da empresa.

Tanto as unidades de São Paulo, como as do Rio de

Janeiro, possuem as mesmas receitas, o que muda é

a freqüência com que aparecem no cardápio rotativo.

Cada loja tem gerente geral e gerente sênior, que são

supervisionados pelo Departamento de Operações, o

qual se reporta diretamente à Diretoria.

Os pratos mais tradicionais do Ráscal são o Polpet-

tone, Ravioli Ráscal, Fettuccine all’Alfredo e Atum com

Gergelim, além da famosa Torta de Maçã. Os clientes

desfrutam, no buffet, de uma coleção de azeites de oliva

de diferentes procedências — Portugal, Espanha, Itália,

Chile, Argentina e Grécia.

Uma das preocupações da rede está em adquirir azei-

tes de marcas confiáveis e das melhores que existem no

mercado. Manter a diversidade tem uma razão especial:

proporcionar aos clientes a oportunidade de degustar

azeites de diversas regiões, com a possibilidade de com-

pará-los entre si. A sugestão da rede é que o cliente sele-

cione mais de um tipo de azeite, coloque no prato e prove,

como entrada, com um pão quentinho. Uma dica é provar

o azeite feito da azeitona arbe-

quina espanhola e, depois, o

azeite italiano: uma verdadei-

ra viagem pelos sabores.

O Ráscal consegue ofe-

recer, no buffet de saladas,

sem perder nunca o precio-

sismo das receitas origi-

nais, um refinado Cuscuz Sírio e um autêntico Risotto

ai Funghi. Ou um Quibe Cru bovino e um Ceviche de

peixe, inspirado na versão peruana. Imperdíveis são

o magnífico grão-de-bico com coalhada seca e os ovos

cozidos de gemas moles e aromatizados com truffa. É

para tirar qualquer um do sério.

Ráscal

Quando o melhor de tudo está nos buffets de saladas

e nos pratos quentes

Page 80: Gourmet Internacional

78

tUrIsMo

Glamour volta aos hotéis pelo talento dos chefsrestaurantes tornam-se referência de requinte nas grandes redes como nos anos dourados

por Fábio Caldeira Ferraz

A espanha de hoje

O Tivoli São Paulo — Mofarrej cedeu à

gastronomia sua parte mais nobre —

a cobertura. Do arranha-céu da Alameda

Santos, no 23º andar, o restaurante Aro-

la Vintetres é um observatório equipa-

do com cozinha. Daqui, as estrelas e os

prédios da capital paulista são uma só

constelação. Já à mesa são as duas estre-

las Guide Michelin do chef Sergi Arola a

iluminar o paladar dos clientes.

Nesse espaço reservado à contemplação e

à leitura atual da típica cozinha espanho-

la, beleza e sofisticação arquitetônicas,

cedem lugar à simplicidade dos modos.

Nada de cotas individuais em pratos. As

iguarias são dispostas em travessas no centro das me-

sas. Ao servir-se, o gourmand é convidado à interação

mais informal com os comensais, algo mais à brasileira.

O próprio cardápio incorpora às receitas do premiado

chef espanhol os elementos nacionais, uma maneira,

segundo Arola, de evitar custos com importações e de

garantir a Fábio Andrade a margem necessária para

AROLA ViNTeTReS proporcionA eM são pAulo AMBiente reservAdo e desluMBrA os olhos e o pAlAdAr .

Tivoli

tropicalizar platillos, pasteles e cocas. Após quase

dois anos de convívio com Sergi, em Madri, o paulis-

tano foi escolhido como o representante do Arola Gas-

tro, em São Paulo.

Hóspedes ou não do Tivoli têm, no Arola Vintetres, um

ambiente reservado e tranqüilo, até mesmo distante da

cidade vertiginosa que assistem se acalmar noite aden-

tro, em meio a vinos e tapas. Não se vive uma noite co-

mum aqui.

Page 81: Gourmet Internacional

Um clássico italiano

Com o restaurante Fasano ocorreu o exato oposto

dos hotéis de luxo de São Paulo. Em vez de investir

em um espaço gastronômico interno à altura do esta-

belecimento, a empresa fundada, em 1902, pelo patriar-

ca milanês Vittorio Fasano construiu a partir da con-

sagrada gastronomia um hotel à sua altura. A aposta

deu certo. Hoje, o Grupo Fasano compreende os hotéis

Fasano e Fasano Boa Vista, ambos em São Paulo, Fasa-

no Rio de Janeiro e, o mais recente, o Fasano Punta del

Este, no Uruguai.

O restaurante liderado pelo chef Salvatore Loi executa,

no térreo do Fasano São Paulo, com toque contempo-

râneo, a cozinha italiana ou, como ensina, as cozinhas

italianas. O menu da casa está dividido em quatro gru-

pos — Capri, Piemonte, Sicília, Al Mare e Umbria —, cada

qual subdividido em aperitivo e quatro pratos. O Fasano

é a prova de que o clássico realizado com maestria per-

manece como umas das melhores receitas de sucesso.

eternamente francês

Único hotel do mundo a ter à frente do restaurante

um chef com três estrelas do Michelin, o Hotel

Le Bristol Paris desenvolveu um perfil tão singular

que é impossível compará-lo aos demais.

A obsessão pela excelência faz o hotel manter dois

salões para o celebrado restaurante — um de inverno,

outro de verão. O primeiro funciona de maio a setem-

bro, o outro de outubro a abril. No menu, o tradicional

da cozinha francesa, com o resgate de pratos e ingre-

dientes que sucumbiram aos modismos.

Ao citar as honrarias do “guia vermelho” do Michelin,

é sempre bom esclarecer que as estrelas pertencem

ao chef, não ao restaurante. O profissional estrelado

carrega-as consigo ao se mudar de estabelecimento.

Contudo, no caso de Le Bristol, as três estrelas con-

cedidas ao francês Eric Frechon, aconteceram exata-

mente quando o chef se transferiu para o hotel — um

delicioso paradoxo.

AtMosferA sóBriA e trAço siMétrico dA decorAção inspirAM convivAs.

jArdiM de MAgnóliAs, o MAior dos hotéis de pAris, visto do restAurAnte de verão.

FasanoLe Bristol

Page 82: Gourmet Internacional

80

úLtIMA páGInA

COnsElhO EdiTORial

Luiz Fernando LevyAlbino CastroAndrea Wolffenbüttel

EdiTOR

Albino Castro

sECRETáRiO dE REdaçãO

Fábio Caldeira Ferraz

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Acervo Albino CastroAgência estadoedson Kumazakaevanildo da silveiraFernando Dantas — Gazeta pressGetulio DelphimLaílson santosDivulgação

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uMA oBrA do ArtistA

faBio MaRiano,

inspirAdo nos nAvios

que trouxerAM

dA europA e dA ásiA

Milhões de iMigrAntes

que revolucionArAM

A gAstronoMiA

no BrAsil.

rua Acruás, 220 são paulo, sp, 04612-090tel. (55 11) [email protected]@plugeditora.com.br

A BizArrA oBrA VeRãO, AciMA, foi

pintAdA eM 1572, eM BérgAMo, pelo

itAliAno giuseppe ArciMBoldo (1527-

1593), dA escolA de pinturA MAneiristA

e influenciAdo por seitAs ocultistAs.

de fAMíliA origináriA do sul dA

AleMAnhA, viveu Muitos Anos eM

prAgA, MAs nAsceu e Morreu eM Milão.

Churrascarias apresentam no cardá-pio, especialmente nos buffets de salada, o melhor resumo do que se

transformou a cozinha do Brasil depois de quase dois séculos de influência de gas-tronomia de todos os continentes. Inclu-sive dos estados Unidos, de onde vieram dois dos itens dos fast-foods, o hambúrger, nas diferentes combinações, e o cachorro--quente, ambos, porém, de origem alemã. Come-se cada vez mais carnes saborosas. Mas muitas vezes a carne é só um grande detalhe. Churrascarias se transformaram quase em casas de frutos do mar e local onde convivem em harmonia a culinária de vários países do mundo. Do Quibe Cru ao sushi. Influência que chegou até aos restaurantes a quilo freqüentados no al-moço das metrópoles.

A variedade de alimentos, claro, faz parte do ambiente que, mesmo requin-tado, mantém um certo ar delicioso dos tempos em que churrascaria era apenas o templo das carnes na brasa cobertas com uma capa de sal — servidas somente com molho à campanha, arroz branco, farofa, feijão e batatas fritas. somos, enfim, o que comemos. A desregulamentação de hoje das churrascarias parece inspirada nos antigos restaurantes, que manti-nham longos cardápios como listas tele-fônicas e ofereciam do Camarão à Baiana ao pato com Laranja. Mas os tempos são outros. o negócio da gastronomia nunca esteve tão em alta e, por isso, com perdão do trocadilho, comer é capital.

LUiZ FeRNANDO LeVY

O homem é o que come

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