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7/16/2019 GOTTDIENER, Mark.A produção social do espaço urbano http://slidepdf.com/reader/full/gottdiener-marka-producao-social-do-espaco-urbano 1/42 Ponla 5 UFRQ3/8C/BSCSH '"•' "" *>• "" ' Mfl?i Gottdiener A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO QJSP Reitor FISvio Fava de Moraes Vict-reitiira Myriam Krasilchik |ed us P EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Presidente Sérgio Miceli Pessoa de Barros Direttir Editaria! Plínio Martins Filho Editor-assistente Heitor Ferraz Comissão Editorial Sérgio Miceli Pessoa de Barros (Presidente) Davi Arrígucci Jr. José Augusto Penteado Aranha Oswaldo Pauto Foraltini TupS Gomes Corrêa |ed us P Tradução de Geraldo Gerson <"< Souza Q

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Ponla 5

UFRQ3/8C/BSCSH' " • ' " "

* > • " " ' • M f l ? i G o t t d i e n e r

A P R O D U Ç Ã O S O C I A L D O E S P A Ç O U R B A N O

QJSPReitor FISvio Fava de Moraes

Vict-reitiira Myr iam Krasi lchik

|edusPEDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

Presidente Sérgio Miceli Pessoa de Barros

Direttir Editaria! Plínio Mar t in s Filho

Editor-assistente Heitor Ferraz

Comissão Editorial Sérgio Miceli Pessoa de Barros (Presidente)

Davi Arrígucci Jr.

José Augusto Penteado Aranha

Oswaldo Pauto Foraltini

TupS Gomes Corrêa|edusP

T r a d u ç ã o d e G e r a l d o G e r s o n < " < S o u z a Q

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E C O L O G I A , E C O N O M I A E G E O G R A F I A U R B A N A S

A N Á L I S E E S P A C I A L D E T R A N S I Ç Ã O

O conhec imento a t u a l do s ambientes espaciais na sociedade m odern aestá dividido entre as várias especialidades da ciência urbana, inclusive a so-

ciologia , a economia c a geografia . D enomino-as abordagens mainstream ou

convencionais porque, sendo modos institucionalizados de investigação, va -

lem-se de um pa rad igma que considero ultrapassado. Existem duas fontes

distintas de críticas a esses campos. A primeira é i n t erna ao próprio pensa-

m e n t o convencional ou mainstream c representa o processo pelo qua l estes

campos se desenvolveram enquanto disciplinas académicas. A segunda é a

investida contra a teoria convenc iona l por parte da tradição marxista ou, an-

t e s , por parte de várias perspectivas dist intas que derivam do marxismo. Na

discussão adiante focalizarei o pensamento convencional , deixando aos capí-

tulos seguintes um exame extensivo do desafio marxista .

ECOLOGIA URBANA

A part i r de suas concepções mais antigas, o pensam ento social, em ge-

r a l , t en tou vincular as fo rmas de comunidade ao s processos de organização

social. Even tua lmente , nesses argumentos pioneiros , dizia-se que a dispo-

sição espacial da cidade ilustrava um aspecto dessa relação, especialmente a

sua manifestação mater ia l . A ssim, para C omle, as cidades são os "órgãos

reais" do organismo social, num a analogia biológica complcxa.na qua l outros

aspectos da vida social eram comparados a células, tecidos ctc. (1875). Con-

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36 MARK GOTTDIENER

tudo , fo i Spencer o primeiro a art icular a relação direta entre forma social e

função social através de seu conceito de competição das espécies. Para tan to ,utilizou a teoria da evolução de Darwin, a fim de explicar o papel funcional

desempenhado pela competição das espécies na produção de organizaçõessociais dotadas de crescente complexidade (1909). Em particular, Spencer

afirmava que, tanto no caso biológico como no da sociedade, o t aman ho físi-

co levou à diferenciação funcional, entendida socialmente como a divisão de

trabalho (Turner, 1978:21).Tal concepção tornou-se a pedra angular do pen-samento urbano dominan te no século XX e suas primeiras formulações teó-ricas na abordagem conhecida como "ecologia urbana''.

Os primeiros d efensores da perspectiva sociológica (Spencer, C omte e

Durkheim) abeberaram-se bastante em sua teorização sobre a analog iabiológica entre a est ru tura da sociedade e a das formas de vida. Como indi-

co u Giddens, isso promoveu um a versão inicial da perspectiva po r sistemas,pois as coletividades não eram apenas agregados de indivíduos, mas uni da desindependentes e do tadas de propriedades emergentes que, ao seu ver, busca-vam um equilíbrio na natureza (1979:237). Nessa concepção, a forma assu-

mida pelo meio ambiente social poderia se r t ratada como uma manifestação

física dos processos de organização social, um modo de pensamento comum,

atualmente, a todas as ciências urbanas. Além disso, & analogia biológica, qu ese tornou a base da teorização ecológica, também foi transposta para a socio-

logia, a economia e a geografia urbanas. Ou seja, essas três áreas possuemum a base comum num a dependência teórica, embora não-exclusiva, da eco-logia hum ana. Segundo a abordagem ecológica, as disposições espaciais dosassentamentos urbanos representam a acomodação da organização social a

seu meio ambiente físico (Park, 1925). Por exemplo, para McKenzie, umpioneiro da perspectiva sociológica urbana:

Na ausência de qualqu er precedente, tentemo s definir a ecologia humana como um es-t udo das relações espaciais e temporais dos seres humanos quando são afelados pelas forças

selclivas, distributivas e acomodativas do meio ambiente (1925:64).

Essa importante correlação entre padrões ecológicos e processos so-

ciais constitui também uma pedra fu ndam ental da geografia urbana. C omoindica Herbert, "uma hipótese básica numa perspectiva geográfica é que a

organização espacial tem em si mesma alguma importância na compreensão

dos padrões de atividade hu mana" (1972:19). Assim, um enfoque da aborda-

gem ecológica do espaço abarca o suporte teórico da sociologia, economia egeografia urbanas. Na realidade, a ecologia inicial da Escola de Chicago era,nu m sentido real, uma fusão dessas áreas.

O primeiro problema teórico suscitado pela perspectiva ecológica já éamplamente evidente, ou seja, a utilidade da analogia biológica. O organi-

cismo na base do pensamento ecológico constitui uma séria limitação que

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ES PAÇ O U RBANO i7

predomina atualmente (Hawley, 1950), mesmo qu e seus pioneiros mais pre -coces tenham t ratado ta l analogia co m considerável cuidado (McKenzie,

1925). Veio à tona também, relat ivamente cedo, um segundo problema, refe-

rente à obra dos ecologistas urb ano s nas década s de 1920 e 1930, islo é, a

obra associada à primeira Escola de Chicago. Na época, art icularam-se duastradições distintas como parte da abordagem ecológica. De um lado, a ênfase

comportamental, predominan te de início, focalizava as características ina tas

da espécie humana que compelem a interação a assumir formas específicasde organização, como a distribuição demográfica do povo d?n tro da cidade .De outro, a ênfase da ciência social recaía em objetos de análise consid era-do s reificações su i generís de grupo ou atributos da vida formal típicos do sis-

tema social, como a divisão funcional do t rabalho na cidade. Na prática, 6

difícil compreender essa distinção, e muita s vezes esse fato leva à interpre-

tação errónea da teoria social ou à crítica mal formulada da teoria, como se

carecesse de uma ênfase qu e fal tou po r opção (por exemplo, como na crítica

do voluntarismo ao estruturalismo po r este ignorar o comportamento indivi-

dual). Contudo, está claro que a ecologia urbana pode se r separada em d u a s

fases po r essa distinção. A primeira constitui o mo d o come a Escola de Chi-cago anterior à Segunda Guerra Mundial aborda a teoria, o qual se concen-

trou em fatores behavioristas ou sociobiogênicos para explkvv os padrões es-paciais; a segunda , a perspectiva do pós-guerra, localizada em vários lugares,qu e enfatiza um a visão sistémica daqueles ajustamentos da sociedade aomeio ambiente que são uma consequência de forças sociais básicas, como acompetição económica. Portanto, nossa discussão da ecologia urbana será

organizada em torno dessas duas fases.

A Escola de Chicago

Os principais defensores da abordagem ecológica da primeira Escola

de Chicago foram Robert E. Park, Ernest W. Burgess e Roderick D. Mc-

Kenzie. Embora os três compartilhassem a mes ma sensibilidade teórica, aca-baram por se especializar em enfatizar aplicações diferentes da abordagem

ecológica da sociologia urbana. No início da investigação na década de 20,por exemplo, havia um claro entendim ento d e que a pesquisa concreta da ci-

dade revelaria a ação organizada de princípios formais de comportamento

humano. Isso significava que os padrões urbanos deveriam ser explicados pe-lo qu e Park denominou natureza humana. Em essência, se isso tivesse sidoconcebido como um a influência constante, não teria sido capaz de explicar avariação espacial observada nas diferentes áreas da cidade. Em vez disso,

contudo, a natureza hum ana era concebida como o entrelaçamento de dois

anseios d istintos, específicos da espécie: o biótico e o cultural .O anseio bióti-co deu origem a formas de organização espacial, produzidas pela força dar-

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winista social de competição.Segundo Park, sob um sistema económico tipo

laissez-faire, a luta pela sobrevivência n um espaço confinado suscitou um a

divisão funcional do trabalho: "A cidade oferece um mercado para os talen-

tos especiais do indivíduo. A competição pessoal tende a escolher para cada

tarefa especial o indivíduo mais adequado a cumpri-la" (Park, Burgess e

McKenzie, 1925:2). Desse modo, Park explica a ordem espacial da cidade,

enquanto oposta a ambientes rurais, como uma propriedade emergente de

competição económica e de sua consequente divisão do trabalho. Assim:

A multiplicação de ocupações e profissões dentrodos limites da populaçãourbana é um

dos aspectos mais notáveis e menos entendidosda vida moderna. Desse ponto de vista, pode-

mos, se quisermos, imaginar que a cidade, isto é, o local e o povo, com toda a maquinar ia e

aparelhos administrativos que vêm com eles, são organicamente relacionados; um tipo de me-canismo psicofísico no qual e através do qual interesses privados e políticos encontram não só

uma expressão coletiva, ma s também corporativa (1936:2).

Em contraste, a dimensão cultural , que para muitos também era um

espaço diferenciador, decorria da presunção de que os seres humanos são

animais comunicadores. Segundo a Escola de Chicago, a interação social se

realizava através de trocas simbólicas, de entendimentos mútuos e do exercí-

cio da liberdade de escolha - que compeliu cc indivíduos tanto a cooperar

quanto a competir entre si. Isso tornou as coletividades capazes de chegar a

um consenso sobre conduta pessoal, chamado ordem moral. A ordem moral

se constituía de sentimentos comuns que evoluíam no correr do tempo, mas

que eram específicos do local. Assim, a superposição de ordens morais

através de cooperação competitiva produziu variação nos setores da cidade

qu e estavam ligados por uma divisão económica do trabalho.No entender de

Park:

No curso do tempo, cada setor e cada bairro da cidade assume algo do caráter e das

qualidades de seus habitantes. Cada parte separada da cidade é afetada, inevitavelmente, pelos

sentimentos peculiaresde sua população. O efeito disso foi converter numa vizinhança, isto é,numa localidade com sentimentos, tradições e uma história próprias, aquilo que a princípio era

uma simples expressão geográfica (Parfc, Burgess e McKenzie, 1925:95).

Na sociologia urbana de Park, portanto, a dimensão cul tural se amal-

gamava a uma base biótica. Na prática, contudo, a ecologia urbana passou a

depender cada vez mais dos aspectos sociobiogênicos da interação humana

enquanto modo de explicação e teoria. Assim, a ecologia urbana colocou os

fatores económicos na base da organização espacial. Isso ocorreu por escolha

consciente. Como observaram Berry e Kasarda:

Park teve cuidado em mostrar que toda comunidade humana era realmente organizada

ao mesmo tempo no nível biótico e no cultural. Ele af i rmou, no entanto , que o foco adequado

para a ecologia humana era o nível biótico. Uma análise da decisão de excluir fatores ideativos

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 39

do escopo da ecologia humana levou, eventualmente , a uma dose substancialde polémica, c a

uma divisão ent re os sociólogos qu e investigam problemas ecológicos (1977:4).

Na decisão de Park, todavia, estava implícita a crença de que, sepa-

rando os valores culturais ou "não-racionais" que, segundo se sabe, variam

amplamente através das comunidades do mundo, bem como dentro de cada

cidade, poder-se-ia isolar os aspectos mais universais do comportamento

humano que atuam na competição económica e na seleção natural. Em

resumo, poder-se-ia dizer que a obra pioneira da Escola de Chicago constitui

um a versão da política económica, no sentido não-marxista, devido a sua ên-

fase nos efeitos da organização económica e dos processos competitivos na

explicação dos padrões agregados de comportamento social. Essa a f in idade

entre uma teorização social sobre a natureza do espaço urbano e teorias

económicas neoclássicas da localização converteu-se no impulso unificador

por trás das diversas esferas urbanas.

Ao vincular o comportamento humano à competição económica e a or-

dem social ao desdobramento espacial da divisão do trabalho, a primeira Es-

cola de Chicago defendia uma perspectiva comportarnental. Além disso, seus

membros desdenharam a importância dos valores ciílíurais na interação so-

cial, a fim de se empenharem no isolamento de impuros sociobiogênicos es-

pecíficos que poderiam ser generalizados a todas as cidades, por ajudarem a

estruturar o espaço. A última opção provocou as primeiras críticas da Escola

de Chicago, como veremos a seguir. Essa perspectiva evoluiu dentro de um

quadro que, virtualmente, equiparava a sociologia urbana à ecologia. Em

suma, a primeira Escola de Chicago colocou três asserções teóricas: a eficá-

cia da analogia biológica, o emprego de princípios darwinianos sociais para

explicar o comportamento humano e a relegação de valores simbólicos ao

campo da psicologia social por serem secundários para o primado da compe-

tição económica.

McKenzie e Burgess reuniram esses elementos para explicar a forma

urbana, especialmente seus padrões de uso da terra. Para McKenzie, a quali-

dade fundamental na luta pela existência era a "posição" ou o aspecto especí-

fico de um indivíduo, instituição ou coletividade em termos de localização.

Segundo McKenzie, as relações espaciais eram dependentes das forças de

competição económica e seleção funcional . Estas afetavam a posição espacial

e, quando as localizações físicas se alteravam sob o efeito dessas forcas, di-

zia-se que as relações sociais também mudavam. A esse quadro económico

essencialmente laissez-faire McKenzie acrescentava processos biológicos,

como o "ciclo de estrutura interna", composto de invasão, competição, su-

cessão e acomodação - isto é, um ciclo de competição, entre populações de

organismos vivos, por localização espacial. Isso foi usado para explicar a ma-

neira pela qual grupos étnicos diferentes ou funções económicas diversas se

movimentavam espacialmente através das variais áreas da cidade. Desse mo-

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do , McKenzie explicava os padrões de uso da terra como se fossem o produ-

to de processos ecológicos generalizados e uma divisão económica do traba-

lho, qu e distribuía objetos e atividades no espaço de acordo com seus papéis

funcionais. Como ele mesmo afirma:

O efeito geral dos processos contínuos de invasões e acomodações í dar à comunidade

desenvolvida áreas bem definidas, tendo cada uma delas sua própria e peculiar característica

cultural e seletiva. Tais unidades de vida comunal podem ser chamadas "áreas naturais", ou

formações, para usar o termo do ecologista de planta . De qualquer modo, as áreas de seleção efunção podem conter muitas subformações ou associações, que se tornam parte da estrutura

orgânica do distrito ou da comunidade como um todo. Sugeriu-se que essas áreas naturais, ou

formações, podem ser definidas em termos de valores da terra, onde o ponto de valor mais altorepresenta o centro ou cabeça da formação (não necessariamente o centro geográfico, mas o

centro económico ou cultural), enquanto os pontos de valor da terra mais baixo representam a

periferia da formação ou linha fronteiriça entre dua s formaçõesadjacentes (1925:7-8).

Assim, McKenzie, como Park, explicava a distribuição espacial da cida-

de numa formulação ecológica mais desenvolvida. Convertia as forças ecoló-

gicas, que eram funções da "posição", n u ma teoria da localização espacial

derivada da competição biogênica pela terra. A Burgess fo i deixada a tarefade pintar o quadro da teoria do espaço defendida pela Escola de Chicago.

Nessa obra, ao desenvolver sen modelo clássico da forma urbana, o da

zona concêntrica, Burgess seguiu as abordagens mais antigas de Von Thunen

(1966) e de Weber (1899). Em essência, Burgess (juntamente comMcKen-

zie) estava preocupado em articular um a explicação da mudançados padrões

de uso da terra, relacionando especialmente essa mudança na diferenciação

interna da cidade ao processo de crescimento urbano. No decorrer do s anos,

essa teoria da expansão metropolitana tornou-se o tópico organizador fun-

damental das teorias ortodoxas do espaço, como veremos quando discutir-

mos, adiante, a escola do pós-guerra. Para o quadro de Burgess, era essencial

a noção de centralidade - isto é, o centro da cidade, por força dessa posição

e como resultado de um processo histórico de aglomeração, dominava a

competição espacial em torno dele. À medida que a população da cidade

aumentava, a competição e a divisão do trabalho cada vezmais especializada

disparariam dois processos ecológicos adicionais, chamados centralização e

descentralização, qu e eram um a versão funcional do ciclo invasão-sucessão.

'; Segundo Burgess, a cidade crescia por um processo dual de aglome-

ração central e descentralização comercial, à medida que surgiam novos

negócios tanto em áreas marginais quanto no distrito comercial central, a fimde satisfazer as necessidades das atividades funcionalmente diferenciadas em

toda a região em expansão. Assim, a cidade crescia para fora, pois as funçõesque perdiam na competição da cidade central eram relocalizadasem áreas

periféricas. Isso, por sua vez, levou a mais diferenciação espacial, à medidaque as atividades eram distribuídas segundo vantagens competitivas. Burgess

lançou a hipótese de que, com o tempo, a cidade assumiria a forma de um

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 41

distrito comercial central onde a terra alcançaria os preços mais competit i-vos, & estaria circundado por quatro anéis concêntricos (1925:51).

Os especialistas da primeira Escola de Chicago tinham uma simpatia

cultivada pelas ações dos especuladores da terra menos prevalente hoje entre

os ecologistas urbanos (ver, p. ex., Hughes, 1928). Burgess acreditava que as

propriedades pouco desenvolvidas de tais agentes em torno do distrito co-

mercial central, junto com o fato desfavorável de as estruturas residenciais

estarem próximas das empresas industriais, criaram um slum negligenciado,adjacente ao centro, que ele chamou de zona de transição. Casas em ruínas,divididas em cómodos por proprietários especuladores, à espera de uma

reurbanização e posterior expansão do distrito comercial central, atraíramos

elementos "mais surrados" da população. Esses moradores compreendiam

pessoas de passagem, vagabundos, o pobre urbano, imigrantes recém-chega-

dos e "radicais". Isso serviu para induzir ainda mais os elementos prósperos

da população a abandonar o distrito comercial central e, no final, deu má

fama à cidade.

Em capítulos subsequentes, mostrarei que a zona de transição é, na

verdade, um caso de um fenómeno qu e Hírvey (1976) chama de desvalori-

zação do ambiente construído, considerada parte necessária do processo ca-

pitalista de crescimento urbano. Isto é, junto com o crescimemo emerge umaprodução interna de desenvolvimento desigual nos padrões espaciais do am-

biente construído. Em vez de ser uma aberração num processo de mudança

sob outros aspectos equilibrador, a deterioração se estabelece da mesma

maneira pela qual ocorre o desenvolvimento urbano nessa sociedade (Scott,

1980). Para Burgess, o slwn não era uma concha residencial produzida por

um grupo desinteressado de arrendatários, mas o produto direto da especu-

lação imobiliária e da competição económica. Desse modo, reconhecemos

também um processo de desenvolvimento desigual qu e somente mais tarde

se tornou importante para a análise marxista, m as cujo conteúdo teórico fo iignorado pelos analistas convencionais.

Por trás da zona de transição do modelo de Burgess estavam localiza-

dos os anéis residenciais da cidade - determinados pela capacidade relativa

dos habitantes de suportar os custos de transporte, pois acreditava-se que a

maioria dos empregos continuavam ligados, em termos de localização, às

áreas centrais. Como ele indica:

Um a terceira área é habitada pelos trabalhadores da indústria que fugiram da área de

deterioração, mas que desejam viver dentro de um domínio qu e proporcione um acesso cómo-

do ao trabalho. Além dessa zona fica a área "residencial" dos edifícios de apartamento de alta

classe ou distritos "restritos" exclusivos de residências pequenas. Além dos limites da cidade,

localiza-se a zona de commutcr - áreas suburbanas, ou cidades-salélile -,dentro de um traje-

to de trinta a sessenta minutos do distrito comercial central (1925:50).

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MARK GOTTD1ENER

A obra da primeira Escola de Chicago sobre a relação entre organi-

zação social e espaço culmina, portanto, no modelo da zona concêntrica cria-

do por Burgess. Ele é ao mesmo tempo um quadro do uso da terra urbana e

um modelo de expansão metropolitana e diferenciação interna; representa,

além das ideias de Burgess, as de Park, de McKenzie e de outros. Em resu-

mo, significa a teoria ecológica do espaço urbano defendida pela Escola de

Chicago do pré-guerra; e sua contribuição para esse esforço é tríplice.

Primeiro, o modelo de Burgess explica o arranjo residencial, industr ial

e comercial urbano em termos da teoria ecológica da competição por "po-

sição" ou localização. Essa abordagem sócio-espacial foi ampliada pelo pró-

prio Burgess mediante o- conceito de centralidade. Assim, todas as posições

não são iguais em competição'espacial - existe uma hierarquiade locali-

zações, e a posição central domina essa hierarquia por força de sua locali-

zação central. Claramente,um tal modelo implica que forças económicas e

políticas necessitam de centralidade para organizar as atividades sociais. Tal

implicação tornou-se o principal ponto de discussão entre a abordagem de

Burgess e a de outros. Segundo, o modelo explica a expansão e diferenciação

interna da região metropolitana ampliada, pela própria teoria de McKenzie

organizada em torno drt -"ciclo de estrutura interna", especialmente seus pro-

cessos de invasão e sucessão, junto com dois processos regionais: centrali-

zação e descentralização. Finalmente, Burgess revelava que a diferenciação

interna da área de terra urbana representava um gradiente de patologia so-

cial do centro para a periferia. Isto é, lançou-se a hipótese de que atributos

pessoais que não tinham qualquer relação lógica entre si - como doença

mental, statiis de marido, background racial ou étnico, e índices de criminali-

dade - se aglomeravam em zonas situadas ao longo da dimensão radial da

cidade. Atravessando a forma urbana do distrito comercial central para a pe-

riferia, os pesquisadores da Escola de Chicago, usando dados oficiais da ci-

dade e do censo, descobriram que a incidência de patologia social diminuía à

medida que aumentavam o número de proprietários de casa própria e o sta-

tu s de família nuclear. Constatava-se, portanto, que as zonas internas eram as

áreas onde ocorriam mais crimes, doenças, guerra entre gangues, lares des-

feitos e, virtualmente, qualquer outro indicador social de desorganização. O

grosso dessa obra se transformou numa parte distintiva do que se considera

alualmente a sociologia urbana.

Em suma, o modelo de forma urbana criado por Burgess documentava

espacialmente o modo pelo qual a cidade se constituía no cenário de compe-

tição entre grupos sociais e forças económicas, que a primeira Escola de Chi-

cago acreditava ser impelida por impulsos biogênicos. Esse modelo fornecia

a evidência de um desvio antiurbano que vinculavaaspectos aparentemente

não-relacionados da patologia social ao desdobramento do ambiente cons-

truído; assim, a sociologia urbana era personificada pelo estudo de proble-

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 43

ma s sociais. A contribuição coletiva da primeira Escola de Chicago foi resu-

mida sucintamente po r Martindale no s seguintes termos:

Podemos resumir numa frase a concepção que Park leni da cidade: ela representa um aunidade organizada externamente no espaço, produzida por leis próprias. Foi Ernesi W. Bur-

gess quem fez a demonstração precisa desta organização externa da cidade no espaço - a mar-

ca pela qual a teoria ecológica é identificada o mais rapidamente possível. A demonstração sis-

temática de suas "leis" internas fo i obra de Roderick McKenzie (1962:23).

Em retrospecto, a mão orientadora de Park se revela muito interessan-

te para a nossa discussão a seguir, visto que para a Escola de Chicago a or-

ganização espacial emergiu dos efeitosda interação social, num a forma mui-

to semelhante às forças evolutivas de Darwin ou à "mão invisível" de Srnith.

As campanhas ecológicas eram auto-reguladoras ou equilibradorase, assim,

por dedução, socialmente úteis (Park, 1936). Segundo Suttles, o mosaico ur-

bano não era "a maquinação planejada ou artificial de alguém". Park, Bur-

gess e McKenzie salientavam que a padronização espacial se desenvolvia a

partir das "muitas decisões pessoais independentes, baseadas em conside-

rações morais, políticas, ecológicas e económicas" (Suttles, 1973:8). Existe

um certo reconhecimento de que as forças sociais desempenham um papel

igual, interdependente, na vida da cidade, e um entendimento implícito de

que a interação dentro de um espaço concebido como um continente produz

os padrões que observamos, subsequentemente, através do mecanismo de al-

guma mão orgânica invisível. Acredita-se, portanto, que os padrões regionais

de crescimento são o produto inevitável da competição ecológica entre gran-

des quantidades de indivíduos. Decerto, os primeiros ecologistas viam no

grupo a -base da interação (Thrasher, 1963). Contudo, isso era conceituado

sem pensar em benefício de classe ou em consumo e focalizava distintamente

a natureza individualista das coletividades sociais. Essa doutrina é que foi

passada explicitamente para os escritos tardios dos ecologistas e emoldura o

desvio ideológico no próprio núcleo do pensamento ecológico. Uma tal cren-

ça na produção inexorável do modelo ambiental é, segundo a perspectiva

dessa discussão, o ponto-chave da luta entre a abordagem do espaço pelosanalistas convencionais e outras abordagens alternativas.

A teoria da urbanização defendida pela primeira Escola de Chicago

começou a receber uma resposta crítica nos anos 30 (Davie, 1937; Hoyt,

1933; Alihan, 1938; Harris e Ullman, 1945; Gettys, 1940; Firey, 1945; Form,

1954). A controvérsia em torno dessas asserções teóricas veio à tona durante

essa época, especialmente no tocante à relutância da Escola de Chicago em

reconhecer o importante papel que os valores culturais desempenhavam na

determinação de decisões sobre localização& sua dependência da competição

económica como critério predominante em interação social. Além disso,

porém, Alihan levantou outro problema, ou seja, o de que os ecologistas, em

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conjunto, usaram o termo "comunidade" para especificar ao mesmo tempo

um a realidade empírica e uma unidade abstraia de organização ecológica

(1938). Dessa maneira, a Escola de Chicago confundiu o "real" com seu ob-

jeto "teórico" de análise e, assim, deixou de c aminhar para u ma clareza teó-

rica maior. Essa limitação, em p articular, revelou-se fatal para o mo delo da

zona concêntrica de Burgess, que não poderia sustentar-se diante de uma

análise comparativa e que, como afirmavam seus críticos, era mal orien tadomesmo como tipo ideal (Hoyt, 1933; Harris e Ullman, 1945). Foi Castells, no

entanto, quem elucidou o debate surgido no próprio começo da ecologia hu-

mana. A oposição de fatores "culturistas" a "naturalistas" pela crítica apenas

desloca a ênfase da abordagem ecológica, mas não soluciona a problemática

espacial (1977:121). Uma teoria do espaço tem, necessariamente, de escolherentre uma ampla gama de fatores a fim de desenvolver conceitos coerentes

internamente e as relações analíticas en tre eles p ara explicar os padrõe s do

espaço de assentamento.

Pode parecer irónico que um marxista critique não-marxistas por se

apoiarem demais na economia como fator de explicação, não obstante seja

isso exatamente o que Castells tem em mente quando afirma que a ecologia

é uma forma iíe "materialismo vulgar". Mas, segundo Castells, a crítica vo-luntarista à ecologia não vai além de inc riminar a Escola de C hicago por sua

escolha de fatores teóricos e seu processo consciente de exclusão analítica,

por mais ma l concebido que ele possa ser. Essa mudança de ênfase não nos

leva para mais perto de uma teoria da produção do espaço de assentamento

- ela mostra apenas as limitações de todas as abordagens unilaterais que

não levam em conta a base multifatorial da organização social. Co mo afirma

Castells:

De fato, a problemática adequada a qualquer teoria do espaço não consiste em opor va-

lores e fatores "naturais", mas, no plano epistemológico, em descobrir leis estruturais ou a

composição de situações historicamente dadas e, no plano estritamente teórico, emestabelecer

hipóteses no que diz respeito ao fator dominante de uma estrutura naqual, obviamente, todas

asescolas incluem a totalidade doselementos da vida social (1977:121).

Assim, nossa tentativa de desenvolver uma teoria do espaço nos com-

pele a levantar uma série de questões analíticas com relação às limitações

da primeira Escola de Chicago. Por exemplo, quais são os fatores importan-

tes na produção de espaço? Qual é a relação entre interesses económicos,

políticos e culturais? Qual é a relação desses três com as decisões sobre o uso

da terra? Até que ponto a localização central implica dominação espacial?

Qu e fatores contribuem para a expansão metropolitana e qual é a relação en-

tre eles na produção de espaço? Qual é a relação entre os impulsos biogêni-

cos inatos e a organização territorial? Finalmen te, que modelo de padrões de

uso da terra urbana está mais próximo da realidade empírica das modernas

A PR ODU ÇÃO S OCIA L D O E S P A Ç » URB AN O 45

regiões metropolitanas do s Estados Unidos? Como veremos adiante, abor-

dagens subsequentes do espaço estu daram estas e outras questões relaciona-

das, num quadro de crescente sofisticação da análise do espaço de assenta-mento.

Ecologia Urbana Contemporânea

Após a Segunda Guerra M undial, a tradição ecológica foi ressuscitada.E esta ressurreição se deve em grande parte ao rápido amadurecimento das

áreas urbanas do s Estados Unidos. Os resultados do censo de 1950 revela-

ram aos sociólogos quê, graças ao processo de su burb anização , estava em

marcha uma expansão significativa do espaço metropolitano. Um a segunda

razão surgiu da crescente con sciência, por parte de ec ono mistas e geógrafos,

de que a progressiva diferenciação na s funções da cidade durante o esforço

nacional de guerra havia estimulado um a considerável integração regional,

ou mesmo internacional, de atividades produtivas. Os eco nom istas reagiram

a tal amadurecimento articulando um a teoria marginal da localização e uma

abordagem regional da econo mia, en qu ant o os ecologistas caminhavam em

duas direções aparen teme nte relacionadas mas diferentes. De um lado, re-

formavam a teoria da ecologia humana (Hawley, 1950) e, de outro, propu-nham um esquema formal de análise cha mado c omplexo ecológico (Schn ore,

1957, 1961; Duncan e Schnore, 1959; Duncan, 1961). A última teoria foi tão

bem criticada por outros que não a discu tirei aqui (Castells, 1977).

Essas duas abordagens renovadas eram organizadas em torno de uma

resposta à crítica culturista. Um a importan te observação co m respeito a essa

atividade é que a nova teoria da ecologia hu ma na , proposta por Amos Ha-

wley, desempenhava um papel significativo na consolidação dos esforços de

economistas e geógrafos urbanos o rtodoxos em pro l de uma abordagem con-

vencional unificada do ambiente construído. Críticas anteriores à ecologia da

parte de contextos neomarxistas (Castells, 1977) e neowebèrianos (Saunders,

1981) não avaliaram o papel fundamental da obra de Hawley no pensamento

urbano contemporâneo, tampouco procuraram avaliá-la com o mesmo rigordedicado aos expoentes mais antigos, mais vulneráveis da Escola de Chicago.

Nas páginas seguintes, ten tarei reme diar essa falha. Voltemos, então, a con-

siderar a obra de Hawley.

O mais ambicioso projeto teórico descoberto no po s-guerra foi, de lon-

ge, a publicação, em 1950, de Human Ecology. Representou, da parle de

Hawley, uma ten tativa combinada de reter a essência do organ ismo biológico

numa análise puramente sócio-estrutural do crescimento e desenvolvimento

da cidade que fosse destituída de elementos culturistas. Além disso, Haw ley

se manteve fiel ao projeto o riginal da Escola de Chicago, na medida em que

propunha uma teoria do crescimento metropolitano que explicasse a forma

urbana. Para cumprir essa tarefa, ele realizou várias operações conceituais

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MARK GOTTDIENER

sobre o modelo de Park-Burgess-McKenzie. Primeiramente,deixou de enfa-

tizar t\a espacialper se, para enfocar a rede funcional interdependente

de organização espacial. Essa concepção era uma extensão da análise funcio-

nal do crescimento metropolitano regional elaborada por McKenzie (1933).

Os conceitos básicos em seu modelo de organização ecológica, Hawley bus-

cou-os diretamente no uso que fez McKenzie da interdependência funcional

e da importância da posição de localização. Retornarei a essas ideias, visto

que complementam a base para teorias convencionais da economia e geogra-

fia urbana» sobre a localização urbana.

Em segundo lugar, Hawley elevou o objeto de análise dosecologistas, a

"comunidade", a um status teórico abstraio, embora mantivesse o organismo

na raiz do pensamento ecológico. Ele o fez para evitar a confusão conceituai,

que Alihan apontou na obra da primeira Escola de Chicago, confusão que

está em usar a comunidade ao mesmo tempo como objeto empírico de pes-

quisa e como conceito teórico empregado para explicar esta mesma pesquisa.

A abordagem de Hawley se preocupava em explicar a origem e desenvolvi-

mento do espaço de assentamento da comunidade através da ação de forças

biogênicas abstraías, internas à própria comunidade. A sua, portanto, é uma

análise Horizontal, que vê na organização espacial urbana uma emanação docentro da cidade. Concentrando-se mais na interdependência da "trama de

vida" de Darwin do que nos aspectos competitivos da luta pela sobrevivência,

Hawley identificou uma dupla consequência relacional da coexistência espa-

cial que emerge do uso, pela mesma espécie, de um habitat comunitário.

Elevou, assim, o aspecto "cooperativo" da cooperação competitivade Park a

um fator generativo primordial na ordem funcional da sociedade.

A benigna visão hawleyana da interação dependia de "relações simbió-

ticas" ou da "mútua dependência entre organismos diferentes", como a re-

lação predador-presa ou a menos sanguínea entre legumes e nematóides, e a

"relação de comensal" ou a cooperação devida a similaridades suplementares

dentro da mesma espécie, porque "nós todos temos de comer da mesma me-

sa" (1950:36, 39). Uma limitação dessa abordagem abstraia da organização

espacial da comunidade é que ela deixou de explicar a forma espacial das ci-

dades daquela época. Contudo, essa necessidade não foi preenchida dentro

dos parâmetros do modelo da comunidade ecológica; foi atendida, em vez

disso, por um retorno ao quadro de zonas concêntricas de Burgess. Portanto,

a obra de Hawley prosseguiu, até certo ponto, como economia neoclássica,

com um modelo abstraio de realidade baseado em conjeturas simplificadoras

- em seu caso, todas as relações sociais poderiam ser reduzidas às relações

biogenicamente cooperativas acima; no caso dos economistas urbanos, pos-

suímos, entre outras coisas, uma "competição perfeita". Em ambos os exem-

plos, aparentemente, a necessidade de elaborar imagens do espaço urbano

harmónicas com os padrões observáveis de organização sócio-espacial não

er é tão importante quanto o exercício abstraio de deduzir modelos da comu-

A PR O D U ÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBAN O 47

nidade urbana que flutuassem num espaço reificado, bidimensional, organi-

zado por forças distribuídas horizontalmenteque emanam do centro da cida-

de. Assim, o quadro da cidade desenhado pelos geógrafos urbanos, baseado

como era no mapeamento de formas materiais, começou nessa época a dife-

rir das abstrações de ecologistas e economistas, e tal divisão do trabalho

permaneceu, desde então, característica dessas disciplinas.

Com base na interdependência funcional, na diferenciação espacial ena s relações biogênicas delineadas acima, Hawley elaborou, para a estratifi-

cação interna da comunidade ecológica, uma explicação que evitava o uso do

conceito marxista de classe ou do conceito weberiano de status; em vez disso,

ofereceu uma explicação organicista para a estratificação da riqueza e dos

recursos. Além do mais, essa ordem social, como já vimos, estava baseada no

impulso simbiótico e não na luta competitiva pela sobrevivência, o que expli-

cava a distribuição injusta dos recursos sociais, sem que fosse necessário

mencionar o conflito, de fato, quando produzido através de "cooperação"! A

me u ver, não existe uma ilustração mais clara da natureza ideológica do pen-

samento convencional do que esta. Como afirma Hawley:

A simbiose, por exemplo, não existe uniformemente entre todos os indivíduos no agre-gado comunal, e entre aqueles que estão ligados dessa fornia a relação pode ocorrer de modo

direto emvários graus. A comunidade apresenta o aspecto de um exame de agrupamentos sim-

bióticos através dos quais se estabelecem as relações dos indivíduos com a população em geral.

Domesmo modo, o comensalismo nio é constante em toda a comunidade. Aparece muitas ve-

zes entre indivíduos de funções semelhantes. E, já que a diferenciação funcional é umacarac-

terística fundamental da comunidade, o comensalismo tende a ocorrer disjuntivamenteem cada

categoria funcional. Do ponto de vista dessa relação pode-se conceber a comunidade como

uma série de camadas ou estratos (1950:109).

Portanto, durante o período de guerra fria dos anos 50 nos Estados

Unidos, fomos testemunhas do aparecimento de uma formulação abstraia

para a organização social estratificada que não menciona classe, status ou

poder e que despoja a sociedade de todo conflito em torno da distribuição in-

justa da riqueza social.

Um terceiro aspecto da teoria de Hawley é sua especificação de que a

ecologia humana constitui o processo pelo qual a comunidade se adapta

coletivamente ao seu meio ambiente. Admitindo-se que este se acha em

constante mudança por influências endógenas e exógenas, o desenvolvimento

da comunidade era concebido de uma maneira dinâmica. Isso substituiu a

visão mais descritiva e estática da comunidade que caracteriza a primeira Es-

cola de Chicago. A ênfase sobre a adaptação coletiva empurrou a ecologia

para o mundo parsoniano dos sistemas "buscadores de equilíbrio" que

ainda negavam uma visão de que a sociedade sofria uma série de problemas

oriundos de sua nalureza de classe e que ignorava os efeitos do racismo, da

desigualdade económica e do desenvolvimento espacial desigual no espaço

de assentamento. Essa convergência teórica com o parsonianismo constilui

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4S MARK GOTTD1ENER

um aspecto da convergência mais global, dentro da ciência urbana conven-

cional, na década de 50, em torno de um núcleo de ideias que se isolou

contra o pen sam ento marxista. Enfocar os sistemas urbanos com o se fossem

orientados, principalmente, m ais para a adaptação que para um a luta por

causa dos recursos injustos continua sendo até hoje o motivo central da áreada ecologia, com o indicam Berry e Kasarda:

O problema básico da investigação ecológica contem porânea consiste em entender co-

m o u m a população se organiza ao se adaptar a um meio ambien te em constante mudança, em -

bota restritivo. Considera-se a adaptação um fenómeno coletivo, resultante do fato de que a

população desenvolve u m a organização funcionalmente integrada através da s ações acumula t i -

vas e f requen temente repetitivas de grande n úm ero de indivíduos (1977:12).

O qu e está esboçado acim a constitui um exemplo perfeito do que se

considera hoje ciência urba na convencional, ou seja, o uso de um a abstracão

mistificadora e uma ênfase num processo incontroverso de ajuste e inte-

gração funcional para esconder os importantes problemas concretos da vida

diária que surgem da desigualdade da distribuição de recursos, que tanto

)Veber quan to Marx reconheceram ser a principal força impulsionadora da

Vistoria social.Com o já dissemos, o desígnio da Human Ecology de Hawley era articu-

lar uma teoria do espaço de assentamento. Assim, usaram-se os processos

dinâmicos de adaptação ecológica para explicar a natureza da morfologia

comunitária e da expansão territorial. Ao buscar esse m otivo central para sua

obra, imbuído como estava de uma visão benigna da luta por causa dos re-

cursos injustos, Hawley critica a dependência em q ue se encontrava a prim ei-

ra Escola de Chicago com relação às noções spencerianas de competição das

espécies, em favor da explicação dur kheim iana da "solidariedade orgânica".

Assim, à perspectiva do primeiro de que o desenvolvim ento social era função

do crescente au m ento populacional e da "densidade física" (a mudança

endógena no meio ambiente devida à taxa de natalidade), ele opôs a con-

cepção do último de que a complexidade da organização social é fruto da"densidade social", isto é, da "densidade moral" de Durkheim, ou da

"frequência de contatos e intercâmbios entre os membros de uma popu-

lação" (1950:196). Na opinião de Durkheim, a densidade moral é que conduz

à competição necessária para uma maior especialização de tarefas, e isso le-

va, em última análise, à divisão "orgânica" do trabalho, característica das so-

ciedades dotadas de uma ordem social benigna e integrada. Para derivar seu

princípio ecológico de adaptação da comu nidade, Hawley utilizou o conceito

menos sanguinário de competição elaborado por Durkheim, em comparação

com o deSpencer ou mesmo dos membros da prim eira Escola de Chicago. A

complexidade e ampliação da sociedade, necessárias para manter o cresci-

mento populacional, só podem ocorrer com um aumento do alcance e

frequência dos contatos inter-humanos, isto é, através do próprio aum ento da

A PR ODU Ç ÃO S OC I AL DO ES P AÇO URB ANO 49

densidade social. Esse efeito, por sua vez, só se pro du z através da facilitação

do movimento f ísico. Assim, adaptação da com un idade significa expansão da

comunidade, e Hawley passou de suas ideias sobre a ordem social para um ateoria do crescimento da comunidade. Como ele indica:

O te rmo movimento é usado aqui num sentido amplo, incluindo todas as formas de

transporte através do espaço, seja de indivíduos, de materia is ou de ideias... Num grau m ui t oamplo, a história do crescimento da organização h um ana é um registro do desenvolvimento eperfeição das facilidades de movimento (1950:200).

Como vimos, portanto, a teoria hawleyana dos meios pelos quais as so-

ciedades caminham para níveis maiores de diferenciação interna e complexi-

dade funcional se baseia justamente em sua ideia da im portância das tecno-

logias de transporte e com unicação, pois são m eios que podem facilitar a

crescente densidade moral necessária para níveis progressivos de m aior

complexidade. Desse m odo, isolamos o determ inism o tecnológico no próprio

âmago do pensam ento ecológico; esse determinismo tem sido um constante

artifício explicativo que caracteriza esse campo desde então (Hawley, 1956,

1980; Berry e Kasarda, 1977; Street et ai, 1977). Essa m esm a explicação para

a m udança na forma urbana, ou "a conquista da distância como um a barreiraao tamanho", é utilizada também por outras disciplinas urbanas, n u m a pers-

pectiva explicativa unificada sobre a mudança morfológica social e urbana

que serve de núcleo dessas disciplinas. Segundo essa concepção, o fato espa-

cial qu e gera as complexas form ações sociais modernas é a qualidade do mo-

vimento em termos de tecnologias do transporte e da comunicação. Assim, o

transporte, em particular, explica a desconcentração regional maciça, como

veremos em capítulo posterior; a morfologia do desenvolvimento metropoli-

tano, para a geografia urbana (Borchert, 1967; A dam s, 1970; Mu ller, 1976); e

a dinâmica da economia da localização conceituada como a minimização doscustos de transporte, para a economia urbana (Alonso, 1964; Wingo, 1961;

PerloffeWingo, 1968).

As limitações da ecologia ur bana contemporân ea já são evidentes. Ela

possui um a visão biologicamente reducionista das relações hum anas que ig-

nora as influências de classe, status e poder político. Assim, ela desdenha a

saudável apreciação que os primeiros ecologistas dem onstraram pela luta

competitiva - como se refletia noespaço através dasgangues, crim es etc. -

em favor de uma visão cooperativa de toda a interação humana . Em segundolugar, é esquematicamente conservadora po r causa de seu enfoque da adap-

tação e integração funcional. Por f im , é tecnologicamente determinista na

medida em que depende das inovações do transporte e das com unicações pa-

ra explicar o crescimento e mudança urbanos. A teoria de Hawley prossegue,

por exclusão lógica, até um nível de abstracão dotado de coerência interna,

m as que deixa de lado fatores com o o con flito social, o imp ulso voluntarista

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50 MARK GOTTDIENER

na tomada de decisão ambiental, os interesses que atuam no espaço, a

influência dos programas e políticas de governo, a natureza variável da

organização económica e a produção de desenvolvimento espacial desigual; e

todos esses fatores se revelaram, durante anos, mais importantes para um

entendimento do ambiente urbano contemporâneo do que qualquer um dos

insigliís de Hawley.

Dadas as falhas de Human Ecology, começamos a nos socorrer de

abordagens alternativas. E elas só apareceram recentemente. O motivo prin-cipal dessa reação lenta talvez já tenha sido indicada, ou seja, o estrangula-

mento ideológico da visão conservadora das instituições académicas. Nossa

asserção aqui pode ser sustentada se chamarmos a atenção para a con-

vergência analítica da economia, geografia è ecologia na análise da estrutura

urbana. Em essência, a teoria ecológica contemporânea se associou à eco-

nomia da localização para realizar uma abordagem convencional unificada

do espaço de assentamento. Podemos ilustrar esse importante aspecto da

convergência teórica entre abordagens urbanas convencionais ao estudarmos

a economia e a geografia urbanas.

GEOGRAFIA E ECONOMIA URBANAS

O tratamento convencional da economia e geografia urbanas, que

emergiu a partir da Segunda Guerra Mundial, adota como conceitos organi-

zadores certas regularidades estatísticas no tocante a tamanho da cidade,

função e organização espacial que foram observadas durante muitos anos.

Incluem a teoria do lugar central de Walter Christaller, proposta pela pri-

meira vez em 1933, a regra da ordem-tamanho de George Zipf, apresentada

em 1949, e a relação de densidade exponencial negativa de Colin Clark,

exposta por volta de 1950 (Christaller, 1966; Singer, 1936; Clark, 1951). Essas

propriedades estocásticas, que exprimem descritivamente a característica

distribucional da população, combinavam-se de duas maneiras isoladas mas

relacionadas entre si com a análise económica neoclássica da localização,estabelecida no pós-guerra. De um lado, a economia da localização se uniu à

relação densidade-distância de Clark para compor uma análise bidimensional

da distribuição espacial intra-urbana que dependia de considerações

sobre o custo dos transportes (Alonso, 1964; Wingo, 1961; Muth, 1969). De

outro, a visão essencialmente horizontal da organização espacial económica

foi modificada no decurso dos anos, para incluir considerações não-econômi-

cas, mas apenas de forma limitada (Mills, 1972; Bourne, 1971; Chapin e

Weiss, 1962; Goodall, 1972).

No capítulo 3, apreciarei a crítica da teoria convencional da localização

a partir de uma perspectiva marxista. Nessa altura, transcenderei os limites

impostos pelo autocriticismo interno à análise convencional, abrindo a dis-

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 51

cussão da teoria da localização para incluir a natureza social dos valores e

renda da terra, os efeitos negligenciados dos interesses ligados à oferta na

determinação dos valores de uso e de troca da terra, o papel das forças verti-

cais ou hierárquicasda organização espacial, o papel qu e determina a renda

de monopólio e o controle monopolista na padronização do espaço, e a im-

portância da intervenção do Estado na produçãodo ambienteconstruído.

Entre as limitações dos modelos económicos da fornia urbana, contu-

do, três são dignas de menção. Primeiro,virtualmente toda abordagem cor-

rente do uso da terra urbana segue Von Thunen, formulando a hipótese de

qu e o papel primordial da organização do espaço urbano cabe ao centro

histórico da cidade. Nos últimos anos, houve algumas tentativas de superar

essa limitação, pois há evidência de que o modelo de Von Thunen não expli-

ca nem mesmo o uso da terra de agricultura sob as modernas condições de

urbanização (Sinclair, 1967). Segundo, o pensamento económico convencio-

na l depende essencialmente da importânciada tecnologia, em especial dos

custos de transporte e de comunicação, em determinarmudanças no valor da

terra. Esse princípio também foi atacado de maneira limitada pela tradição

• convencional(Leven, 1978b). Finalmente, as abordagens convencionais igno-

ram o aspecto mais fundamental do valor da terra - sua natureza social.

Consequentemente, a teoria convencional é uma teoria de equilíbrio que

admite a ausência de circunstâncias exteriores. Considerando a natureza

complexa e densa da vida urbana, esta sempre foi uma hipótese irracional.

Há não muito tempo, o problema das circunstâncias exteriores foi apontado

também pelos analistas convencionais, na tentativa de entender os proble-

mas do crescimento urbano (Bourne, 1971). Novamente, essa discussão foi

limitada em sua análise e implicações. Em resumo, podem-se fazer duas

observações acerca da ciência urbana convencional dessa época. Em primei-

ro lugar existe ampla evidência, oriunda de dentro dessa tradição, que nos

leva a questionar seu padrão de explicação. Em segundo lugar, embora os

analistas convencionais chamem a atenção para essas falhas, eles o fazem de

maneira restrita. Antes de prosseguir, expliquemos commais pormenores as

três impropriedades do pensamento convencional.

A Centralidade na Teoria da Localização

Segundo Berry, os lugares centrais constituem a base económica em

torno da qual se aglomeram outras atividades urbanas. A lógica da teoria

da localização sugere que pode haver vários motivos para considerações

sobre localização, os quais dependem das necessidades industriais, das ofer-

tas de fatores de produção, das considerações de mercado e das exigências

administrativas ou organizacionais. Os benefícios percebidos da aglomeração

são extremamente coercitivos, conforme a abordagem convencional, como

afirma Berry:

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52 M A R K G O TTD IEN ER

O teórico da localização com umente classifica em três tipos as atividades económicas

concentradas localmente: as que são orientadas pela matéria-prima, as localizadas em pontos

intermediários entre a matéria-prima e o mercado e as orientadas pelo mercado... Os três

princípios clássicos da localização ur ban a derivam desses três tipos de orientação das atividades

económicas em termos de localização: cidades que são locais de funções especializadas, cidades

que expressam o traçado e caráter das redes de transportes, e cidades que são lugares centrais.

Considerando que as cidades são lugares centrais que cumprem as funções de comércio varejis-

ta e de serviços para a área circunvizinha,nem toda cidade possui os dois primeiros aspectos...

A zona comercial central é um ponto focal em torno do qual se desenvolveram usos e densida-

des da terra, a padronização espacial da população urbana, a localização subsidiária do comér-

ciovarejista e dos serviços, padrões de transporte e commttting e semelhan te s (Berry, 1971:97).

Os econom istas urba nos convencionais divergem na maneira de deter-

minar a importâ ncia da centralidade, embora aceitem as premissas da teoria

do lugar central. Alguns se concentram em considerações económicas oriun-

das da competição dentro de mercados que funcionem perfeitamente. O utros

consideram as decisões económicas dos habitan tes da cidade. Acom panha n-

do Losch (1954), teve início uma tradição de modelos gerais de equilíbrio

que comb inavam decisões sobre residência com decisões quanto à locali-

zação dos negócios; o modelo da localização do lar, formulado por Alonso,

foi o primeiro deles (Alonso, 1964; Beckmann, 1968; Muth, 1969). Essen-cialmente, presume-se que os tomadores de decisão sobre os negócios e o lar

familiar têm de optar entre altos preços da terra no centro da cidade e custos

relativamente mais altos de transporte qu and o se mudam para a periferia, is-

to é, para lugares onde a terra é mais barata. Essa opção só tem sentido se

admitirmos que o centro da cidade é um ponto de concentração tanto da s

oportunidades de emprego quanto das de negócios (cf. Wingo, 1961). Essa

abordagem deriva diretam ente do primeiro raciocínio ecológico, visto que elaadmite que se produz espaço mais pela interaçáo de inúmeros indivíduos doque de grupos sociais. Assim, basicamente é uma concepção ligada à deman-

da que eleva as preferências do consumidor individual e dos negócios a um

lugar primordial entre aquelas forças que se articulam com o espaço, e que

descura os fatores sociais que estruturam a oferta diferencial de localizaçõesatraentes, como os programas de governo. Essa mesm a limitação é típica das

explicações predominantes para as mudanças inter-regionais (Sternlieb eHughes, 1975; South e Poston, 1982), como veremos nocapítulo 7.

O conceito de centralidade, como é usado na análise económica tradi-

cional, parece hoje insustentável e injustificado. Não há qualquer dúvida de

que os modelos convencionais de localização possuem certa aceitação quan-

do o centro da cidade funciona da maneira admitida acima; todavia, esse

período foi ultrapassado por transformações espaciais ocorridas pelo menos

nos últimos trinta anos. Como observa Rom anos:

Admitindo-se a concentração de emprego no CBD (Central Business District - Distri to

Comercial Central], duas tendências irão influenciar os resultados de modelos monocêntricos:

A P K O D U Ç À O S O C I A L DO E S P A Ç O U R B A N O 53

(1) Ao explicar a es t ru lu ra u rbana e a localização do lar f ami l i a r , dá-sc mais importânc ia ao

CBD do que ele rea lmente merece; (2) a análise do restan te da área urbana lorna-sc inadequada

porque a homogeneidade da te r ra residencial é destruída pela presença de usos não-rcsidcn-

ciais (1976:79).

O trabalho prosseguiu no s últimos anos entre analistas convencionais

da localização apenas mediante a introdução, no s chamados modelos

policêntricos, de vários pontos distintos de aglomeração dentro da mesmaregião urbana. Ta l obra continua restrita. De um lado, a análise da locali-

zação em modelos policêntricos não possui mais o tipo de credibilidade inu-

sual para suas explicações de que gozava an tes a teoria m onocêntrica. U ma

vez reconhecida a existência de muitos pontos de aglomeração, qualquer um adas várias razões pode dete rmin ar as decisões sobre a localização. De outro,

a presença de núcleos múltiplos sugere a diferenciação funcional cada vez

mais complexa do espaço urban o dentro das regiões metropo litanas. Isso põe

em questão a hipótese principal de predominância do centro histórico dacidade. Como veremos adiante, uma vez derrubado o conceito de predo-

minância, realmen te pouca coisa restou de explicações convencionais para a

forma urbana.

Determinismo Tecnológico

A economia urbana convencional acompanha de muito perto a expli-

cação da teoria ecológica para a mudança espacial e é tecnologicamente

determinista. Como já observamos, a maioria dos analistas da localização co-

locam as considerações de trans porte como o fator determinante dos padrões

espaciais. Mais recentemente, inovações no plano das comunicações recebe-

ram atenção na estruturação do espaço (Pye, 1977; Pred, 1973; Gottmann,

1972). Ironicamente, analistas convencionais desenvolveram um a hipótese

em que a inovação tecnológica desempen hava o papel de força de produção

no sentido marxista. Contudo, suas análises nunca vinculam essa importante

fonte de m udança social a outros fatores, espec ialmente os institucionais, que

são mais significativos como explicações das transform ações morfológicas

urbanas. Por exemplo, Leven explica a descentralização industrial das cida-

des para os subúrbios apenas delineando as man eiras como a mudança tec-

nológica, enquan to força de produção, influenciou o processo de produção

industrial nos últimos anos. Como ele afirma:

Localizar atividades económicas perto do núcleo de uma área urbana ou dentro de uma

área metropolitana qualquer é muito menos importante hoje devido a desenvolvimentos tec-

nológicos mais recentes. Mais significativa foi a constante redução do volume de maicrias-pri-

mas associada com mui tas ocupações. Pelo menos dois terços dos trabalhadores americanos

nãoestão envolvidos com qualquer tipo de matéria-prima, graças à expansão do sctor de servi-

ços. Para o restante, houve uma queda relativamente constante na relação volume-valor para a

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54 M A R K C O TTD IEN ER

maior ia da s mercadorias. Ao mesmo tempo, reduziu-se a necessidade de g randes u n i d a d e s in-

dividuais de produção, visto que o ã m b i i o das economias de esca la ao nível d o e s t a b e l e c i m e n t oé muito ma is l imi tado no tocante aos serviços do que com relação às mercadorias (I978a:102).

O exposto acima singulariza de forma perspicaz o efeito da inovaçãosobre as relações sociais da produção. Contudo, está implíci to nessa análisequ e o status de mudança tecnológica é a única causa da s transformações in -

dustriais qu e parecem ocorrer fora de um contexto institucional. Co m efeito,mudam os padrões espaciais de organização porqu e mudam as relações so-ciais do desenvolvim ento industrial. Estas, por sua vez, foram alteradas gra-ças ao progresso tecnológico. Portanto, no argumento acima está presenteum a cadeia diferente de causalidade, qu e emana do suposto efeito da tecno-logia como agente principal de mudança na sociedade. É esse, portanto, umexemplo do tipo de raciocínio que se pode chamar de tecnologicamente de -terminista.

No capítulo seguinte veremos que o argumento monocausal do raciocí-nio inspirado na ecologia torna compreensíveis os fatoies mais críticos qu ecausam a mudança social, fatores que são institucionais ou estruturais pornatureza. Na verdade, a inovação tecnológica fornece u os meios qu e produzi-

ram as transformações sócio-econômicas. Contudo, as interconexões causaisentre as forças de produção e os níveis mais altos da sociedade são muitomais complexas do que nos levariam a crer os analistas convencionais. Issoé especialmente verdadeiro no tocante ao efeito do próprio espaço sobre

aquelas mesmas transformações industriais que são atribuídas, muitas vezes,à força cega do progresso tecnológico. No capítulo 4, exam inare mos a afir-mativa de Lefebvre, segundo a qual os interesses dos capitalistas são promo-vidos quand o se usa a própria organização espacial como força de produção.Nu m sistema social desse tipo, inovações tecnológicas no s transportes e nascomunicações são apenas aspectos de um complexo muito mais amplo deforças sócio-estruturais que transformaram as relações espaço-tempo nasociedade moderna.

Teoria do Equilíbrio

"' • A teoria convencional é uma teoria do equilíbrio. Isto é, adotando um avisão sistémica que enfatiza a diferenciação funcional e a integração, elaanuiia qu e íodãs as partes do sistema urbano se ajustam a um todo socialqu e funciona muito bem. Essa concepção nã o reconhece a existência deconflito ou seu papel em realizar mudanças. É uma posição familiar, adotadapela ciência social convencional em geral, como um meio de evitar conside-rações lev antadas pela análise m arxista.

Segundo analistas convencionais, as forças impessoais do mercado

atuam como um a espécie de mão invisível qu e classifica os usuários da

A P R O D U Ç Ã O S O C IA L DO ES P A Ç O U R B A N O 55

terra, n u m a distribuição funcionalmente diferenciada, de acordo co m suaspreferências individuais e na medida em que são coagidos por sua relativacapacidade de propiciar localizações. O caso seguinte é um exemplo decomo os analistas convencionais, mediante um argumento qu e enfatiza oequilíbrio funcional, explicam a luta compe titiva desigual pelos valores de usodo espaço:

Toda função urbana e toda insti tuição tem seu conjunto de requisitos de centralidade.

Visto que a terra urbana deriva seu valor de seu potencial de uso e que, portanto, a competição

entre usuários faz subir o custo, os preços mais altos de terra estão nos pontos de maior acessi-

bilidade para a maioria dos usuários em perspectiva. Há, assim, uma ordenação dos usuários da

terra e dos estabelecimentos com relação à capacidade que cada um tem de t i rar proveito da

localização centrare, por conseguinte, de pagar por ela (Mayer, 1969:37).

O conceito de equilíbrio diminui grandemente a capacidade da análiseconvencional de apreender os processos de desenvolvimento metropolitano.De fato, há forte evidência de que as regiões se desenvolvem por um proces-so que seria mais bem descrito pelo termo "desigual" e mais bem analisadopela chamada teoria do desequilíbrio (Myrdal, 1957; Holiand, 1976). Esses

autores rejeitam a noção de equilíbrio em favor de uma análise que se con-centre na forma como os recursos fluem entre regiões que são diferencial-mente capazes de promover crescimento. Segundo Holiand:

A teoria do desequilíbrio tem um alcance maior, na explicação dos motivos por que

ocorrem problemas regionais, do que a teoria do auto-equilíbrio regional. Existem vários moti-

vos. Um deles são as hipóteses artificiais, exigidas para a maioria dos modelos de auto-equilí-

brio de alocação regional de recursos. Estes se desviam das economias de escala internas e ex-

ternas, negligenciam a assimetria na resposta do trabalho e do capital às diferenças regionais

em potencial de salários etc. Em outras palavras, a teoria de auto-equilíbrio regional começa

com um tapa-olho que oculta as principais características do mundo regional e se volta para

uma análise irrealista idealizada (1976:54).

As mesmas observações de Holiand sobre a análise regional conven-cional também se aplicam à análise convencional da estrutura interna dacidade em termos de equilíbrio. A teoria convencional não pode explicarproblemas sociais, o crescimento diferencial da s áreas citadinas, ou a relaçãoentre os dois. Não há meio de entender as forças que produzem o desenvol-vimento social desigual, como o conflito de classes, o conflito entre capitaisseparados, ou mesmo frações dentro da mesma classe - sem mencionar as

patologias associadas à vida na cidade, como crim inalidade, ruptu ras da famí-lia e o v ício da droga.

Os modelos de análise convencional, cujos custos sociais e privadoscoincidem em valores ótimos competitivos, foram criticados por inúmerosanalistas, alguns do s quais são também convencionais (Koopmans e Beck-man, 1957; Solow, 1973). Solow, em particular, considera "simplório" presu-

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S « M A K J C GOTTD1ENER

m ir um equilíbrio dos modelos de localização urbana, pois o ambiente cons-truído só é duradouro se desempenhar um papel importante na determi-nação do local de atividades económicas, apesar da açâo de outras forças.Basta um passo mui t o pequeno para ir do insiglil de Solow à revelação maiorde que as escolhas de local dependem das atividades de interesses especiaisdo mercado imobiliário, em termos de oferta, não obstante Solow e outrosanalistas convencionais não t terem aceitado. Em discussões posteriores, de-

verei expor o papel decisivo que considerações no plano da oferta desempe-nham na compreensão da f >rma do espaço de assentamento. Além disso, ospróxim os capítulos focaliza ião o modo essencialmente desigual como ocorreo desenvolvimento urbano, o que propicia argumentos bem fundados em fa-vor de uma versão marxista da teoria do desequilíbrio. Desse modo, possodemonstrar a necessidade de um Estado intervencionista, cuja presença qua-se todos os analistas convencionais ignoram, para corrigir as injustiças docrescimento desordenado.

As três limitações da economia urbana convencional, discutidas acima,agiram em torno de um conceito organizador central, isto é, a importância,para a análise convencional, de um centro de cidade que predomine sobreseu interior, um centro cuja localização seja um pouco mais importante para

o processo de predominância do que o de outros lugares não-centrais. Esseconceito sofreu uma transformação entre urbanistas convencionais. Inicial-mente, predominância significa o controle de atividades sócio-econômicaspelo centro da cidade, manifestadoem sua capacidade espacial de organizaratividades em seu próprio interior. Essa concepção da predominância é atri-buível a modelos do tipo de Von Thunen, como o de Burgess; ela descreve aintegração urbana como um conjunto de vínculos horizontais desenvolvidosatravés do espaço. Por conseguinte, quando os ecologistas contemporâneosse referem a predominância, algumas vezes subentendem esse significado.Em compensação, a partir da obra de Gras (1922) e de Duncan e seus cole-gas (1960), predominância passou a significar a capacidade de qualquer cida-de isolada de organizar funcionalmente ligações com todas as outras cidades

que são inferiores numa hierarquia de tipos de cidade. Essa abordagem por"sistemas de cidades" constitui hoje a perspectiva da economia e geografiaurbanas. É importante observar que uma versão da predominância não im-pede a existência da outra e que, juntas, elas definem a rede tridimensionalde lugares urbanos organizados no espaço tanto vertical quanto horizontal-mente. Assim, quando ecologistas contemporâneos falam de predominância,tendem a usar esses termos de modo permutável. A abordagem por "siste-m as de cidades", contudo, é um conceito básico da geografia e economia ur-banas, e requer assim um pouco mais de nossa atenção.

A PRODUÇÃO SOCIAL DO E S P A Ç O URBANO 57

A Perspectiva por Sistemasde Cidades

Em retrospecto, pode-se a f i rm ar que tanto os econom istas urbanosquanto os geógrafos que defendem a abordagem da organizaçãourbana por"sistemas de cidades" seguiram a orientação funcional para a localizaçãofornecida pelo ecologista McKenzie. Na análise sobre o ambienteconstruído,McKenzie descreveu a cidade exatamente como fez Burgess, exceto que, aofocalizar as funções económicas e a rede interdependente de comércio, eleavaliou a natureza regional amp lamen t e fundamentada da influência urbana.Consequentemente, introduziu a noção de comunidade metropolitana comum a ênfase regional (1933). Além disso, em lugar do conceito de predo-

m inância de Burgess, que era função apenas da localização central, McKen-zie introduziu a noção de predominância por influência económica. Numaversão embrionária da teoria do lugar central, ele dissecou a distribuição re-gional de lugares de acordo com sua influência funcional económica dentroda área circunvizinha. Assim, identificou uma hierarquia de dominação que

incluía áreas industriais, comerciais, recreativas e de serviços primários(1925). Geógrafos e economistas combinaram a noção de diferenciaçãoe in-

terdependência económicas funcionais devidas ao comércio, com uma versãomais desenvolvida da teoria do lugar central fo rmulada por Christaller paraexplicar os padrões de localização do espaço (Berry, 1968).

Na análise tanto da integração horizontal do espaço quanto da hierár-quica (Losch, 1954; Isard, 1956; Berry, 1968), a perspectiva por "sistemas decidades" combinava todos os elementos acima, isto é, teoria do lugar central,interdependência funcional, uma perspectiva regional e a importância dasatividades económicas. A economia regional era encarada como uma hierar-quia de lugares urbanos que compreendia uma matriz funcional de redes decomércio, de transporte e de administração que sustenta um enxame de ci-dades, desde as pequenas e afastadas até as aglomerações maiores, localiza-das no centro. O aspecto principal das cidades maiores era sua capacidade decumprir

váriasfunções, numa base regular, para os outros lugares urbanos

localizados na região circunvizinha. Além disso, Walter Isard (1956), em par-ticular, mostrou que esses arranjos em rede dependiamamplamente dos cus-tos de transporte, de modo que a competição espacial se converteu no fator

mais importante da economia da localização. Assim, a análise interurbana dacidade era colocada nu m quadro teórico coerente, ao lado de consideraçõesintra-urbanas, por força da prioridade dada aos custos de transporte na eco-nomia da localização. Além disso, a ideia descritiva predominante nessa teo-ria unificada era que as cidades constituíam nós funcionais n u m a sociedadeconcebida como um grande sistema social que realizava tarefas essencial-mente económicas. Assim, no começo da década de 60, Wilbur ThompsoneBrian Berry publicaram artigos que consolidaramessa visão com o nome de

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5* MARK GOTTD1ENER

perspectiva por sistemas de cidades (Thompson, 1965b; Berry, 1962). Essa é

a abordagem predominante atualmente na geografia urbana. Em termos f u n -

cionalistas que lembram Hawley e McKenzie, Berry salientava a interde-

pendência entre lugares urbanos, sua especialização económica e sua organi-

zação hierárquica, que desse modo estrutura b espaço. Umarranjo desse tipo

constituía um sistema, como el e indicou:

Está claro que as cidades podem ser consideradas sistemas - ent idadesque constituem

partes interdependentes interativas. Podem ser estudadas em vários níveis - est ru tural , f u n -cional e dinâmico - e ser fracionadas em diversos subsistemas. A par te mais imediata domeio

ambiente de qu alqu er cidade são outras cidades, e conjuntos de cidades também constituem

sistemas aosquais se aplicam todas asafirmações anteriores (1962:132).

A moderna geografia urbana progrediu ao assimilar as abordagens teó-

ricas da ecologia humana, a teoria do lugar central e a ec onomia da locali-

zação. A natureza compelativa de sua perspectiva por sistemas de cidades era

sua capacidade de ligar-se à abordagem abrangente da teoria geral dos sis-

temas, em moda na época. Havia, portanto, uma parte mais sensível sob esse

campo que mais tarde seria exposta por geógrafos m arxistas, como Harvey

(1973).

A geografia e a economia urbanas podiam proporcionar dois avanços à

teoria doespaço. Em primeiro lugar, osanos admiráveis da análise ortodoxa

que se baseava na convergência da ecologia, geografia e economia produzi-

ram uma série de análises interdisciplinares descritivas da estrutura contem-

porânea do espaço. Vários estudos da u rbanização regional foram realizados

sob os auspícios de uma fundação ou do governo na década de 60, começan-

do com Duncan e seus colegas (1960) e culminando na obra de seis anos pa -trocinada pelo Social Science Research Council (Hauser e Schnore, 1965).

Combinaram os talentos de geógrafos, economistas, historiadores e ecologis-

tas em documentar o alcance da diferenciação funcional urbana e do desen-

volvimento metropolitano regional. Serviram também para expressar a com-

patibilidade teórica dessas áreas distintas.Em segundo lugar, a formulação por sistemas de cidades revelou sua

força na capacidade de explicar certos fluxos de recursos em rede, ao longo de

eixos verticais - partindo de encadeamentos entre lugares individuais para

encadeamentos nacionais e mesmo globais de atividades urbanas. Para dar

um exemplo, alguns achavam qu e cidades qu e ocupavam o mesmo nível na

hierarquia dos sistemas, embora separadas no espaço, eram afetadas, em

primeiro lugar, pela expansão da inovação tecnológica, antes que a mudança

filtrasse para as áreas do interior adjacentes ao sítio inicial da inovação (Pred,

1973; Berry, 1972). Isto é, generalizando da regra ordem-tamanho de Zipf

para a perspectiva por sistemas, descobriu-se que o fluxo de recursos, ideias

e pessoas entre cidades equivalentes nosníveis verticais era tão importante -

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 59

ou mais - quanto os encadeam entos horizontais entre lugares u rbanos pró-

ximos um do outro (Bou rne, 1975; Pred, 1977; B our ne e Simmons, 1978).

Já se registraram algumas das mais importantes limitações da aborda-

gem da ciência urbana po r sistemas, inclusive o fato de ela depender tanto de

um modelo competitivo de teoria da localização segundo o uso da terra e de

acordo com a demanda quanto de sua visão conservadora da integração

económica funcional. Além disso, a perspectiva por sistemas de cidades eleva

a classificação descritiva à condição de principal enfoque dos estudos urba-nos. Ela categoriza sem análise, quase da mesma maneira que a regra or-

dem-tamanho persiste, cerca de tr inta e cinco anos depois da descoberta,

como uma observação estocástica co m pouco impacto teórico. A principal fa -

lha dessa abordagem é que ela constitui um exemplo do que Anderson cha-

ma fetichismo espacial (1973) e Alonso denomina falácia geográfica (1971),

isto é, a atribuiç ão às próprias cidades dos poderes e atributos que perten-

cem às instituições e às a tividades desenvolvidas dentro desses lugares. A im-

portância teórica dessas forcas sociais é reificada em atribute s espaciais de

cidades através de um processo discutível de agregação, e somos confundidos

pelas definições dos geógrafos para as unidades espaciais - impedidos de

ver que a organização funcional do sistema económico é um produto social

não de lugares, mas do poder institucional concentrado (Williamson, 1975;Green, Moore e Wasserstein, 1972; Baran e Sweezy, 1966; Mandei, 1975).

Além disso, os modelos de cidades dos geógrafos e dos economistas obs-

curecem a importante característica social da organização urbana dentro de

tais lugares. Como observa Anderson: "O fetichismo do espaço é a fantasia

particular dogeógrafo. Relações entre grupos ou classes sociais são apresen-

tadas como relações e ntre áreas, obscurecendo as divisões sociais dentro das

áreas" (1973:3).

A perspectiva por sistemas de cidades é um exemplo de fetichismo es-

pacial porque condensa a organização metropolitana intra-regional num nó

sem espaço, a cham ada cidade. Assim, ignoram-se os traços mais salientes da

forma urbana contemporânea - ou seja, seu alcance maciço, disperso e qua-

se ilimitado, e seu padrão injusto ou desigual de desenvolvimento sócio-

econômico. Pela estrutura interna desse arranjo regional e uma abordagem

por sistemas orientados verticalmente, dá-se rédea livre ao fetichismo espa-

cial e permissão para que prospere. Como foi indicado no capítulo anterior,

às vezes é difícil identificar os limites entre as cidades individuaise as outras.

O estudo da diferenciação funcional se baseia num procedimento de agre-

gação estabelecido segundo a prática institucional do censo e por força de

certas definições de formas espaciais que simplesmente não se sustentam sob

um escrutínio empírico severo (Edmonston, 1975; Mazie, 1972). Nenhum a

das definições de desenvolvimento regional apreende de modo adequado o

caráter disseminado do crescimento. Como admite Bourne, um dos defenso-

resda abordagem por sistemas:

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00 M A R K G O T T D I E N E K

O problema de def in i r os níveis de tais sistemas (nacionais) na r eal idade a i n d a c o n t i n u asem solução. Enquanto o sistema nacional urba no é fac i lmen te reconhecivel, a di f er enc i ação de

níveis dentro desse sistema não o é. Tampouco os níveis tê m probabilidade de c on t i n u a r fixa-dos no curso do tempo. O crescimento rápido e a difusão de estilos de vida urbana apagaram

as fronteiras tradicionais entre o urbano e o rural, e mesmo entre cidades pequenas e grandes.

Conscquen temen te , foram cada vez mais questionadas as tentativas t r adi c ionai s de def in i rf ronteiras para regiões urbanas individuais e hierarquias urbanas (1975:14).

Assim, embora ninguém possa negar o conhecimento descritivo adqui-

rido pelas sofisticadas técnicas estatísticas da ciência urbana, a c onceituaçãodessa informação numa teoria do espaço é artificial: fetichiza as definições

abstraias de espaço que ela mesma impõe à realidade do ambiente cons-

truído, ignorando as forças reais qu e estão em ação produzindo as formasobservadas de organização espacial. Sempre qu e temos oportunidade dereexaminar os esquemas de definição do empirismo abstrato característico

da geografia e ecologia convencionais, descobrimos que as distinções espa-

ciais são muito mais os artefatos categóricos dessa pesquisa do que os obje-

tos reais de análise espacial.

Essa revisão da ciência urbana convencional revelouum a razãp mais do

qu e suficiente para articular abordagens alternativas. No entanto, o pacoteideológico simples da ortodoxia levou muito tempo para ser desembrulhado.Concepções alternativas do espaço procuram livrar-se da perspectiva mecâ-

nica e fetichizada do s analistas convencionais, que dá a impressão de que omeio ambiente sócio-espacial é produzido pelo efeito inexorável da mão in-visível. Em seu lugar, eles propõem um a teoria de interesses e ações segundo

a qual certas forças de organização social e/ou certos grupos de indivíduospossuem a capacidade de controlar o espaço e alterar seus padrões de desen-

volvimento em apoio a interesses especiais. O nosso ambiente construído as-

sume a forma que tem por causa da ação recíproca entre esses poderes esta-

belecidos distintos, enquanto se deixa que a maioria dos negócios individuais

e competitivos se arranjem sozinhos no espaço que esses outros importantes

produziram.Estive preocupado, até o momento, em indicar as áreas da análise que

foram abertas à discussão por parte tanto de fontes internas a ela quanto da

tradição marxista. Em geral, elas forjaram problemas teóricos que, portanto,

requerem uma análise teórica. Essa necessidade será tratada em capítulos

posteriores. Existe, contudo, uma segunda maneira de avaliar a análise con-

vencional, ou seja, o exame de sua capacidade de explicar o desenvolvimento

urbano. No interesse da concisão, preocupar-me-ei, adiante, com um aspecto

da teoria ecológica - suas afirmações no tocante ao seu entendimento do

processo de expansão metropolitana. A seguir, examinarei esta teoria em

seus próprios termos.

A P R O D U Ç Ã O S O C I A L DO E S PA Ç O U R B A NO 61

A Teoria da Expansão Metropol i tana: U m R e e x a m e

A teoria ecológica da expansão metropolitana foi articulada po rHawley (1950), na esteira do trabalho de McKenzie (1933), para explicar o

crescimento do tamanho da cidade. Como observou Schnore (1965), a prin-

cipal investida da primeira Escola de Chicago, qu e culminou na teoria de

Burgess, fo i explicar a diferenciação interna mutável e a expansão de áreasmetropolitanas. Em sua forma anterior à Segunda Guerra Mundial, essa teo-

ria contou demais com as ideias sociais de Darwin, especialmente o "ciclo der

estrutura interna" de invasão, sucessão etc. Essa variante antiga existe hoje

apenas n uma forma reificada e funcionalmente determinista (Sly e Tayman,1980). Contudo, Hawley salientou o papel fundamental das pressões popula-

cionais como motor endógeno do crescimento. À medida que a população dacomunidade sócio-espacial crescia, Hawley acreditava que o espaço de assen-

tamento se expandiria a fim de adaptar-se a essa mudança. Um aspecto desse

processo de expansão é realizado porque concentra funções administrativas e

coordenativas dentro do centro da comunidade, assim como o núcleo de um acélula biológica aumenta quando a própria célula cresce. O segundo aspecto

desse processo envolve um a expansão da comunidade para a periferia, de tal 'modo qu e aumenta a área espacial de todo o conjunto da organização comu-nitária. Essa maneira particular de conceituar a relação centro-periferia de-pende de uma analogia orgânica que se explica através do mecanismo de

processos compensadores de crescimento centrífugo e centrípeto (Hawley,

1950:348). A discussão que se segue focaliza a primeira parte desse argumen-

to, o processo centrípeto, enquanto, no capítulo 7, considerarei o segundoaspecto, ou seja, a explicação da desconcentração urbana.

Como afirmou Hawley em recente formulação:

O movimento centrípeto concentrou no distrito comercial central do centro da cidade as

tarefas administrativase o comércio varejista de bens de consumo caros e da moda. Esse mo-

vimento esteve associado a uma centralização menos conspícua de controle sobre o sistema me-

tropolitano. A redisposição espacial é uma manifestação externa da reorganização funcional deuma comunidade em expansão (1981:183).

Hawley não forneceu qualquer prova dessa afirmação, embora também

reconhecesse que as funções administrativasse estão dispersando atualmentepara a periferia - mas em menor extensão que outras atividades urbanas

(Hawley, 1981:178; Sly e Tayman, 1980). Não obstante, a explicação ecológica

para a concentração de funções administrativas dentro do centro da cidade

continua sendo um aspecto primordial da teoria ortodoxa da ecologia urba-

na, que é responsável pela persistência de conceitos falaciosos sobre a centra-

lidade da cidade. Além disso, a teoria de Hawley fo i testada e confirmada po rKasarda (1972) e novamente por Berry e Kasarda (1977:195-209), usando

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62 MARK GOlTl.Hh.HER

dados de 157SMSAs [Standard Metropol i t an Statistical Áreas - Áreas Pa-drão de Estatística Metropolitana] de censo. No ú l t imo caso, os autores pos-tularam um padrão coerente de relações positivas entre o t amanho da s áreasmetropolitanas e o desenvolvimento de funções organizacionais dentro da ci-dade central, mesmo quando se controlavamos efeitos sobre a cidade centraldo t a ma n h o da população, da idade da S M S A , da renda e da composição ra -

cial. A seguir, portanto, dedicarei algum tempo ao trabalho de Berry e Ka -sarda com relação ao tópico à mão, nã o porque eu deseje singularizá-los co -m o exemplos particulares, m as porque o próprio Hawley n êo forneceu umteste de sua teoria, enquantoaqueles o f ize ram.

Berry e Kasarda usaram dados de 1960 para testar a teoria de Hawley,ignorando os dados de 1970, disponíveis na época em que publicaram seusresultados. É de admirar o menosprezo por um período importan te de cres-c imen to urbano e de dispersão urbana . Mesmo com os dados de 1960, con-tudo, existem vários motivos para reconsiderar seus resultados. Em primeirolugar, se u conjunto de dados consistia em n ú me ro s sobre d emprego em 157S M S A s monocentradascom populações de 100 000 habitantesou mais, em se-te categorias de ocupação supos tamente relacionadascom-funções adminis-

trativas: profissional, de direção, escriturária, de comunicação, f inanças, ser-viços comerciais e administração pública. Isto é, lançaram a-hipótese de queos números para as categorias ocupacionais padrão tipo colarinho-brancosubstituíam adequadamenteos números para as funções administrativas. To-davia, embora algumas categorias ocupacionais colarinho-branco, como aadministração pública, se refiram diretamente a funções organizacionais, ou -tras, como a categoria profissional, não apresentam de modo nenhum um arelação mui t o forte. Uma abordagem mais acurada tentaria medir o númeropreciso de empregos colarinho-branco localizados especificamente em ativi-dades administrativas. Em segundo lugar, o método de Berry e Kasarda igno-ra técnicas de classificação das funções organizacionais mais diretas e quepossuem maior clareza. Por exemplo, podemos examinar os padrões de loca-

lização dos escritórios do governo e das corporações em regiões metropolita-na s e comparar a cidade central com áreas adjacentes a ela. Um enfoque daconstrução de edifícios de escritório e das escolhas para a localização de em-presas administrativas públicas e privadas aumentaria nossa capacidade detestar a teoria deHawley.

Um a abordagem alternativa para avaliar os padrões de localização degrandes companhias fo i utilizada por Arms trong em dois estudos distintos(1972, 1979). Trabalhando para a Regional Plan Association de Nova York,com o auxílio de dados do censo, el a construiu um a medida do emprego deescritório qu e fornece um índice da s funções administrativas mais preciso doqu e a classificação mais ampla de colarinho-branco qu e Berry e Kasardausam. A categoria de Armstrong nã o leva em conta grupos ocupacionais qu e

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 63

nã o estão ligados a empresas, como artistas, músicos, farmacêuticos, dent i s -tas e médicos - grupos que são contados pelo método de Berry eKasarda.

Usando essa medida para o mesmo ano, 1960, Armstrong optou por es-tudar as 21 maiores SMSAs do país, co m população superior a um milhão ,tornando assim sua obra mais útil para nosso propósito de examinar a hipó-tese de Hawley, pois as cidades maiores, na opinião deste autor, revelariam

a maior concentração de funções administrativas. Armstrong achava que,nessa amostra, 65% de todo o emprego de escritório estava concentradodentro das cidades centrais. Todavia, mais de 33% dos empregos dê escritó-ri o eram contados apenas em Manhattan, o distrito comercial central deNova York. Assim:

... deixar de lado a S M S A Manhattan e Nova York produz um a distr ibuição c l a r a m e n t eequil ibrada entre os centros comerciais das cidades e os subúrbios: 1,84 milhão de empregos deescritório no anel suburbano contra 1,6milhão nos centros comerciais, estando o restante -1,28 milhão de empregos de escritório - localizado nascidades centrais fora do distr i to comer-cial central, em vários locais de escritório, de fábrica, institucionais e comerciaisou em subcen-tros menores (1972:49).

Usando um a segunda medida, para os anos até 1965, do grau de con-centração de escritórios centrais da s empresas em cidades centrais, v análisede Armstrong questiona também a obra de Berry e Kasarda. Focalizando as21maiores áreas metropolitanas, ela indicava que, antes de 1965, apenasumada s sete f irmas havia localizado su a sede nos subúrbios. Contudo:

Por volta de 1969, de seis escritórios centrais apenas um se localizava nossubúrbios. Éevidente que as preferências que as sedes das indústrias demonstram por locais suburbanosestão crescendo com grandes áreas metropolitanas e que elas inicialmente aparecem quandoot amanho da área metropolitana aumenta além de uma população de cerca de 2 milhões(1972:52).

O estudo de Armstrong parece contestar a teoria hawleyana da ex-

pansão metropolitana, especialmente para as cidades maiores, nas quais ateoria se baseia na maioria das vezes. Tomando como ponto de partida suaanálise dos dados de 1960 e as tendências de localização dosescritórios desdeentão, ela considera que as funções de administração e de controle estão re-lacionadas com o papel da área metropolitana no sistema económico global enacional e que essas funções têm muito pouco a ver com a relação entre a ci-dade central e a expansão do interior urbano. As atividades administrativaspodem ser divididas em funções de escritório, de mercado intermediárioe demercado local. As funções locais que mais dependem da região urbana parti-cular também têm menos probabilidade de se concentrar dentro do distritocomercial local. Em compensação, as funções de administração e de contro-le, simbolizadas por edifícios de escritório de bancos e corporações, estão

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64 MARKGOTTDIENER

concentradas em grandes distritos comerciais centrais, mas têm pouco aver com as necessidades metropolitanas de coordenação de suas cidades. Emvez disso, elas possuem conexões administrativas com a empresa global.Em resumo, uma vez que desagregamos os dados para usar medidas maisobjetivas de emprego de escritório e estabelecer distinções mais objetivasentre o distrito comercial central, áreas citadinas adjacentes a ele e anéissuburbanos, existe pouca evidência a apoiar a teoria da expansão metropoli-

tana na forma como é concebida pelos ecologistas urbanos contemporâneos- e existem razões substanciais para abandonar totalmente a perspectiva.É o caso, em especial, das maiores SMSAs com populações superiores a lmilhão de habitantes.

Inúmeros estudos independentes sobre as tendências surgidas a partirde 1960 indicam que as funções de administração e de coordenação se estãodispersando, juntamente com todas as outras atividades sócio-econômicas epolíticas, a despeito da permanente viabilidade da cidade central como lugarideal para a construção de escritórios (Cassidy, 1972; Manners, 1974; Quante,1976; Pye, 1977). Com efeito, o relatório mais recente sobre a construção deedifícios de escritório indica que a maior parte da utividade de construção erelocalização de escritório, na década de 80, se realizava fora do distrito co-mercial central (National O f f i c e Martcet Repoit, 1988). Assim, os dados e aná-lises disponíveis a partir de 1960 revelam uma relação curvilinear entre aconcentração das funções administrativas e o crescimento das regiões metro-

politanas. Nos estágios iniciais do crescimento urbano, as áreas centrais ad-quirem uma maior concentração das funções de coordenação, daí a im-portância do distrito comercial central para o modelo de Burgess. Contudo, àmedida que áreas de terra periféricas se desenvolvem para usos alternativos,sob o jogo de forças hierárquicas e globais da organização sócio-espacial, asfunções administrativas urbanas começam a dispersar-se juntamente com ou-tras atividades (Sly e Tayman, 1980). Embora a fase ascendente (aproxima-damente até a década de 1960) dessa relação curvilinear seja devida ao ta-manho da população e ao nível de organização económica, isto é, de fatoresecológicos clássicos, precisamos examinar em outro lugar para descobrir asrazões que se acham por trás da dispersão urbana. Depois da década de1960, a base centrípeta de desenvolvimento formulada por Hawley simples-

mente parece não existir.

Em resumo, então, está claro que há uma "divisão localizacional dotrabalho" com relação às funções de coordenação. As empresas que optampela cidade central estão mais propensas a se envolver em atividades admi-nistrativas globais, enquanto aquelas que possuem vínculos claramente re-gionais com a economia metropolitana parecem, nos últimos anos, estar-sedispersando, juntamente com outras atividades, para o interior urbano. Fi-nalmente, o emprego público e outros relacionados com o setor público, uma

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO (, 5

fonte importante da s atividades administ rat ivas, parecem igualmente inclina-

dos às recentes tendências de desconcentração.

Nossas evidências sugerem que, por volta de 1960, começou a manifes-

tar-se materialmente no espaço de assentamento uma mudança significativa

na formação social da sociedade norte-americana. Isso não quer dizer, neces-sariamente, que tais mudanças tenham ocorrido naquele ano. Na realidade,está claro atualmente que, a partir do final do século XIX, vêm ocorrendotransformações qualitativas na estrutura da sociedade americana, embora te-nham acelerado seu impacto depois da Segunda Guerra M undia l . Apesar deos marxistas não serem os únicos académicos interessados; nessas transfor-mações - não-mandstas como Bell (1973) e Galbraith (1969) escreveramsobre o assunto -, uma preocupação com as transformações sistémicas nomodo de produção é a marca essencial da análise marxista da sociedadeamericana, que existe como uma alternativa paradigmática à ortodoxia do ra-ciocínio ecológico. A análise marxista das transformações capitalistas dopós-guerra, que Mandell (1975) denominou capitalismo tardio, abrange umnúmero significativo de análises e conceiluações, inclusive contribuições davisão convencional. Geralmente, três traços essenciais do capitalismo tardiodiferenciam essa fase do período anterior nos Estados Unidos.

Em primeiro lugar, fomos testemunhas da hegemonia da forma buro-crático-corporativa que transformoua empresa de negócios na América emalgo dominado por companhias multinacionais, de multiprodutos e multifá-

bricas (Chandler, 1977; Holland, 1976; Hymer, 1979). Essa mudança secaracteriza pela integração global do sistema capitalista, por uma divisãointernacional do trabalho (Frobel, Heinrichs e Kreye, 1980) e das finanças,

e pela crescente concentração da indústria, como exemplifica o maior núme-ro, a partir de 1950, das fusões de bancos e outros negócios (Zeitlin, 1970;Heilbroner, 1965; M inty e Cohen, 1972; Wallerstein, 1979; Baumol, 1959;Berle e Means, 1932; Means, 1964; Baran e Sweezy, 1966; Schonfeld, 1965;O'Connor, 1974; Menshikov, 1969; Green, Moore e Wasserstein, 1972; Hy-mer, 1972; Amin, 1976; Palloix, 1975; Mandei, 1975).

A segunda transformação envolve o papel estrutural do Estado inter-vencionista como participante diário na atividade económica e como suportedas relações capitalistas de produção através de políticas de gastos, de regu-lação e legislativas. A percepção dessa mudança evoluiu da primeira obra so-bre a conexão keynesiana às análises atuais da crise fiscal e da socializaçãodo capital (Lerner, 1944; Klein, 1947; Dillard, 1948; Crosser, 1960; Baran eSweezy, 1966; Mandei, 1975; Castells, 1980; O'Connor, 1973; Hirsch, 1981;Holloway e Picciotto, 1979; Crouch, 1979).

A terceira transformação concerne ao aumento de importância do co-nhecimento e da tecnologia como forças organizadas de produção na empre-sa de capital intensivo. De um lado, estudos nesta área apontam para o modoorganizado e acelerado pela qual uma "indústria" do conhecimento está ago-

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MARK GOTTD1ENER

rã articulada com a atividade económica (Rosenberg, 1972; Silk, 1960; Mans-field, 1968; Mandei, 1975). De outro lado, estimou-se que essa transformaçãoalteraria a própria estrutura económica, especialmente com o desvio das ne-cessidades de força do trabalho para empregos colarinho-branco e proces-samento de informação e com o afastamento das ocupações manuais, colari-

nho-azul* (Cárter, 1970; Gillman, 1957; Poulantzas, 1976; Bock e Dunlap,1970; Fuchs, 1968; Singelmann, 1977; Braverman, 1974; Blau e Duncan, 1967;

Gartner e Reissman, 1974).Estas transformações fundamentais afetaram a morfologia espacial devárias maneiras, entre elas a promoção de suburbanização (Walker, 1981;

Gottdiener, 1977); a transformação da agricultura em agroindústria agrícola(Hightower, 1975; Shover, 1976; Danborn, 1979; Berry, 1972); o surgimento

da mudança inter-regional para o cinturão-do-sol (Sternlieb e Hughes, 1975;Watkins e Perry, 1977); e a reestruturação do meio ambiente da cidade cen-tral (Fainstein etai,1983; Smith, 1984). É o último aspecto que precisamostratar neste momento. Deixamos para o capítulo 7 uma explicação do modopela qual essas transformações afetaram o espaço de assentamento. Nossadiscussão aqui requer que eu focalize os exemplos concretos desses processosquando mudaram a natureza do centro 'da cidade e dos pontos de aglome-

ração nos subúrbios.Embora minha abordagem derive de uma perspectiva marxista, não é

necessário ser marxista para avaliar seu principal enfoque conceituai. Aocontrário dos analistas convencionais, afirmo que as mudanças importantesda padronização social e da reestruturação urbana ocorreram porque sãofunções de mudanças do sistema social maior, e não porque sejam produtosde processos internos aos próprios lugares. A posição ideológica convencio-nal pode ser resumida claramente por uma antiga observação de RobertPark: "A cidade é uma unidade urbanizada externamente no espaço produzi-do por leis próprias" (Park, Burgess e McKenzie, 1925:4). A perspectiva deprodução social do espaço, que defendo, rejeita essa visão e procura substi-tuí-la por um entendimento da maneira pela qual as formas de espaço de as-

sentamento são estruturadas por forças oriundas do sistema maior da organi-zação social. Seguramente, existem inúmeros processos interativos essenciaisque também perdem sua eficácia dentro de meios ambientes urbanos quepossuem origens puramente locais, e é igualmente importante avaliar seu pa-pel na geração de padrões sócio-espaciais. Todavia, estes são produzidos pornecessidades que pouco têm a ver com lugares como esses e são mais afeta-dos pelos processos sistémicos que atuam em toda parte, isto é, tanto nomeio ambiente rural e suburbano quanto no urbano.

• Blue-coltar, em inglês. Designativo de trabalhadores industriais, especialmente os senii-especializados ounão-especializados. (N. do T.)

A PRODUÇÃO SOCIAL DO l:Si'AÇO URBANO 67

Para ilustrar essa mudança conceituai, é necessário explicar os padrõesreais de uso espacial a partir do interior desse modelo de organização socialconcebido mais hierarquicamente. Po r conseguinte, voltemosa considerar a

teoria ecológica da expansão metropolitana. Já estamos de posse de evidên-

cia contrafatual suficiente para levar-nos a abandonar essa abordagem. Seriaoportuno agora usar nossa teoria para tratar especificamente a mesma

questão, ou seja, quais são os fatores que formam a base da distribuição das

funções administrativas na região metropolitana? Pode-se explicar os pa-drões variáveis da morfologia urbana como se foãsem produzidos pela ação eexigências da formação social maior, que afetarafn os padrões de localização

administrativa.Nosso primeiro exemplo implica a mudança para uma economia terciá-

ria (serviços) e quaternária (informação) orientada para os serviços, especia-lizada em processamento de informação, com uma força de trabalho trans-formada pela necessidade de aptidões colar inho-branco. A questão que es-tamos estudando aqui é: de que maneira o aumento do emprego colarinho-

branco está relacionado com a distribuição de funções administrativas portoda a região metropolitana? Em segundo lugat , consideraremos o papel do

Estado intervencionista com relação ao boom de construção de edifícios de

escritório na cidade central. Em particular, focalizaremos o caso dos esforçosde renovação urbana, no intuito de estudar por que a cidade central conse-guiu manter um a porcentagem significativa de funções administrativas, dada

a presença de uma forte tendência centrífuga aluando em favor da descon-centração urbana e contra a aglomeração no distrito comercial.

Padrões de Emprego Colarinho-Brancoe de LocalizaçãoAdministrativa

Começando com o período pós-guerra, mas especialmente a partir de1960, a força de trabalho americana sofreu uma profunda mudança, abando-

nando a manufatura em favor das ocupações colarinho-branco. Essa alte-ração qualitativa afetou diretamente a cidade central, especialmente as loca-lizadas no nordeste e no meio-oeste (Sternlieb e Hughes, 1975). Entre 1950 e1975 por exemplo, 70% dos novos participantes da força de trabalho apre-sentavam habilidades colarinho-branco, e quase 20% destes se achavam nascategorias de serviços (Armstrong, 1979:64). Uma estimativa de 1979, feita

pelo Department of Labor, afirma que, por volta de 1990, as colocações cola-rinho-branco serão responsáveis por mais de 50% de todos os empregos no-vos, indicando assim uma mudança na economia, que abandona a produçãoindustrial em troca dos negócios relacionados com serviços e processamento.

Não resta dúvida de que o aumento do emprego de escritório constituium caso especial dessa transformação social mais geral da força de trabalho.

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68 MARK GOTTDIENER

Contudo, como indicamos acima, comp reender os padrões de localização

das funções administrativas exige que corrijamos os núm eros de emprego

colarinho-branco, de modo qu e reflitam especificamente o componente

"escritório" à maneira de Armstrong (1979). Por exemplo, um estudo de

Berry e Kasarda revela que, entre 1960 e 1970, as áreas suburbanas recebe-

ram uma parcela maior dos empregos colarinho-branco para cada uma das

quatro categorias principais: profissional, de direção, de escritório e de ven-

das (1977:228-247). Assim, a.evidência deveria sugerir que, a partir de 1960,as funções administrativas ss foram descentralizando, juntamente com os

outros aspectos da economia, rumo aos subúrbios e para longe da cidade

central. Isso sugere que nenhuma área particular da região metropolitana é

especializada em atividades administrativas, embora haja um a nítida divisãode trabalho en tre cidades e subúrbios com relação ao enfoque dessas ativida-

des. Contudo, é necessário ajustar esses números de modo a representarem

de forma mais adequada as mudanças no emprego de escritório, antes quepossamos admitir essa conclusão. Armstrong (1979:66) compilou núm eros

nacionais para empregos de escritório em proporção ao emprego colari-

nho-branco para as mesma? quatro categorias citadas acima e para os anos

1950, 1960, 1970 e 1975. Uiândo coerentemente os números para o total do

emprego colarinho-branco, pode-se representar a porcentagem de traba-lhadores de escritório em relação ao total de cada categoria, como se pode

observar na Tabela 1.

TABELA 1. Porcentagem dos Trabalhadores de Escritório em Relação ao Total de Emprego

Colarinho-Branco, 1950-1975

An o Profissional DeDireçio Escriturário Vendas

Total Escritório % Total Escritório % Total Escritório % Total Escritório %

1950 4867 1563 32 6646 1863 28 7292 6657 91 3785 988 26

1960 7280 2293 31 7140 2574 36 9655 8965 93 4386 1333 30

197011287 3781 33 8002 3281 41 13791 12757 93 4982 1605 32

197513032 4457 34 8386 3682 44 15384 14230 92 5756 1920 33

Adaptado de rmstrong, 197S):66.

A PRODUÇÃO SOCIAL D O ES PA ÇO URBANO 69

Esta tabela revela que o emprego de escritório varia bastante entrecategorias ocupacionais colarinho-branco. A porcentagem é mais alta nos

postos de escriturário, considerados na categoria de emprego de escritório,

que atingem cerca de 90%; as ocupações profissionais e de vendas, incluídas

na categoria de funções administrativas, envolvem, cada uma delas, cerca de

35% de todos os empregados colarinho-branco. Uma comparação com osdados de Berry e Kasarda (1977:236) revela que o maior aumento isolado

em emprego registrado pelos subúrbios estava exatamente na categoria deescriturário. Além disso, as cidades«centrais perderam, de m aneira absoluta,

milhares de postos de direção entre 1960 e 1970, enquanto os subúrbios

ganharam nessa área quase 50%. De acordo com os números de Armstrong,

a proporção de trabalhadores de escritório em postos de direção, em 1970,

era de 41%. Ao mesmo tempo, esses números sugerem que, a partir de 1960,

os subúrbios haviam captado mais do que sua cota de trabalhadores adminis-

trativos de escritório, além de desfrutar de uma oscilação mais rápida no

emprego colarinho-branco do que tiveram as cidades centrais.

Esses números sugerem o impacto de transformações sócio-estruturais

sobre a extensão total do espaço áe assentamento através de regiões metro -

politanas. Indicam que as funções administrativas, longe de se concentrarem

dentro dos distritos da cidade central, se foram dispersando, a partir da dé-

cada de 1960, para os subúrbios, a um índice impressionante. O importante

aqui é que tais resultados fornecem evidência adicional para a nossa con-cepção do espaço de assentamento, entendido através de sua interconexão

com forças nacionais e globais de organização social e contrário à concepção

horizontal e localizada da ecologia, que considera o crescimento regional co-

ordenado por um centro de cidade único.

Para concluir este subcapítulo, especulemos sobre as razões que de-

terminam o vigor do emprego de escritório nos subúrbios. Como indiquei,

devemos entender esse fato como um caso especial dê suburbanização,

em geral depois da Segunda Gu erra M undial. Talvez o aspecto mais interes-

sante do crescimentoregional

contemporâneo seja o crescente prob lema docontrole sobre as áreas suburbanas. De fato, a coordenação e a integração

políticas se tornaram difíceis devido à proliferação de governos locais dentro

das regiões metropolitanas, num padrão segmentai, polinucleado, de descen-

tralização administrativa que, surpreendentemente, é contrário ao quadro

concêntrico que Hawley parece possuir. Num levantame nto feito em 1967, de

227 SMSAs, Campbell e Dollenmeyer encontraram 20 703 governos locais di-

ferentes, uma média de 91 por SMSA (1975:364). Mais importante, Bollens e

Schmandt (1965) observam que, quan to mais extensa a SMSA, maior o núme-

ro de governos locais e, portanto, mais fragmentadas a coordenação e a ad-

ministração da região. Em 1962, por exemplo, SMSAs com uma população en-

tre 300 000 e 500 000 habitantes contavam 76,6 administrações; aquelas corn

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70 MARKCOTTDIENER

50 0 000 a l 000 000 de cidadãos t inham em m édia 98,5; e as com 1000 000 ou

mais contavam em média 30 1 unidades governam entais diferentes.Segundo esses estudos, os maiores aumentos em autoridades locais

ocorreram em distritos suburbanos de serviços especiais qu e fornecem bens

públicos como água, esgotos, saneam ento, forças de polícia e bombeiros. Em1962, esses distritos cresceram cinco vezes mais depressa que o tipo seguintede governo local que revelou maior crescimento (Bollens e Schmandt,1965:147), e entre 1962 e 1967 seu aumen to era quase de z vezes maior

(Campbell e Dollenmeyer, 1975). Os empregados qu e fornecem tais serviçossão classificados entre os colarinhos-brancos, e cada distrito descentraliza-do requer seu próprio s t a f f administrativo, também colarinho-branco, para

supervisionar seu tríabalho. Os subúrbios t iveram de adotar um a solução

descentralizada para o provim ento desses serviços especiais, pois em quasetodos os casos o crescimento regional ocorreu dentro de um sistema politi-camente forçado de autoridades independentes, fronteiras de cidade inflexí-

veis e repart ições públicas ciosamente guardadas. Em bora m uitos possaml amen tar o padrão qu e evoluiu (e.g., Wood, 1961), a est ru tura de governodentro das regiões metropolitanas em expansão é tão balcanizada que qual-quer coordenação?central se parece co m uma fantasia idealizada ou uma

ideologia romântica da parte de seus defensores e teóricos. Voltemos agoraao nosso segundo exemplo, o crescimento da cidade central que ilustra nossa

perspectiva, ou seja, o caso da renovação urbana.

Renovação Urbana e Transformações da Cidade Central

Embora os subúrbios tenham nit idamente crescido em importância

como locais para funções administrativas, a maioria da s cidades centraistambém experimentaram, a partir de 1960, uma febre crescente da cons-

trução de edifícios de escritório. Durante a década seguinte, 44% de todo o

investimento feito em tais edifícios foram dirigidos pa ra as doze maioresáreas metropolitanas, e o total de metros quadrados de espaço de escritório

no país como um todo dobrou entre 1957 e 1970 (Armstrong, 1979:67). Essa

tendência era tão evidente em cidades centrais mais antigas do nordeste,

como Boston (40% de aumen to no espaço de escritório) e Nova York(aumento de 24%), quanto em metrópoles do cinturão-do-sol, como Dálias(aumento de 23%). Num levantamento da s trinta maiores cidades do s Esta-

do s Unidos, por exemplo, O'Brien e Ganz relataram que, entre 1960 e 1970,essas cidades apresentavam, em média, um crescimento de 44% em espaço

de escritórios (1972).Os ecologistas erram em interpretar o aparecimento das recém-cons-

truídas torres de escritórios de muitos andares como um a confirmação doorganicismo. A reestruturação do distrito comercial central histórico, todavia,

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 71

resultou do s esforços combinados de programas e política públicos urbanos

e os interesses monopolistas qu e atuam n a economia. Embora um a análisecaso a caso de cada cidade no tocante à relação Estado-economia possa ser

instrutiva, tentemos, em vez disso, ilustrar essa articulação referente ao espa-

ço da cidade central resumindo o efei to da grande quantidade de esforçosqu e estão compreendidos sob o título geral de renovação urbana, tendo em

m en t e que nem todo projeto er a apoiado po r fundos federais. Como afirma

Michael Smith : "Nas cidades centrais afetadas pela perda de mão-de-obraindustrial, de população e de base tributária, a principal resposta do governofoi subsidiar a especulação :em edifícios de escritório e em apartamentos deluxo através da 'renovação urbana ' "(1979:239).

A partir de 1958, as dotações governamentais para projetos de reurba-nização da cidade central aum entava m grandem ente a cada ano, m esmo quea partir de 1949 tenha sido aprov ada a legislação federal sobre renovação ur-bana. Por exemplo, as despesas combinadas at ingiram 706 milhões de dóla-res em 1960, 1,8 bilhão em 1966 e 3,8 bilhões em 1970, ou um aumento decerca de 500% em dez anos (Mollenkopf, 1975). A maioria dos marxistasamericanos atribuem esse súbito aumento da atividade de reurbanização à

necessidade percebida de controle social depois dos tum ultos dos guetos na

década de 60 (Mollenkopf, 1975:261). Uma outra ex plicação salienta as ne-cessidades de acumulação de capital e o papel que o investimento imobiliário

na cidade central representa no combate à queda da taxa de lucro no setorprimário da produção (Harvey, 1981; Hirsch, 1981), começando com a recu-peração dos anos recessivos da década de 50 (M ande i, 1975). Tal abordagemfoi usada dentro de um quadro estruturalista po r analistas do boom da cons-

trução de edifícios em cidades centrais da Ingla terra e d o Cana dá (Massey eCatalano, 1978; Scott e Roweiss, 1978; Longstreth, 1979); contudo, carece-m os desse tipo de análise com relação aos Estados Unidos. Não obstante, a

história dos esforços de renovação u rbana foi docum entad a por vasta litera-tura (Greer, 1965; Wilson, 1967; Bellush e Hausknecht, 1967; Mollenkopf,1975; Anderson, 1964). Análises intensivas dessa matéria indicam que a ne-

cessidade de m aior controle social de áreas do centro comercial se juntav a aodesejo municipal de reagir tanto à perda de mão-de-obra industrial qua nto à

devastação qu e castigou as cidades centrais, mediante o saneamen to de dis-tritos comerciais suburbanos.

Segundo quase todos os analistas urbanos, do conservador Anderson(1964) ao s mais liberais Hartm an e Kessler (1984), o programa de renovação

urbana alcançou um sucesso comercial apen as lim itado, e falhou como medi-da social para propiciar moradia ao pobre de baixa renda e de renda media-

na. Não obstante, contribuiu enormemente para o processo pelo qual foram

removidas vastas seções da cidade, apesar dos apelos dos moradores, para aconstrução de torres de escritório de vários andares e apartamen tos de luxo.

Isto é, a reestruturaçfio dos centros com erciais foi um resul t ado direto da s

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72 M ARKGOT T DIENER

ações de interesses especiais, que atuam através de uma art iculação ent re o

Estado e o setor imobiliário e estão associados à reurbanização, mesmo que

alguns projetos tenham partido da iniciativa privada (Friedland, 1980; Mol-

lenkopf, 1983). Em Minneapolis, por exemplo, para resgatar a área comercial

em depressão económica, uma coligação cívica, trabalhando com apenas

4 milhões de dólares, alavancou 400 milhões de dólares em projetos de reabi-

litação e construção nova patrocinados pelo governo federal, inclusive subsí-

dios federais que cobriam cerca de 90% dos custos totais do projeto. Este in-

cluía a construção de um shopping center de 8 quarteirões no coração do dis-

trito comeiciai agonizante da cidade, bem como a edificação do arranha-

céu de 57 pavimentos, Investors Diversified Services; o últ imo representava

um esforço extr amurai construído nas adjacências da área de desenvolvi-

mento subsidiada pelo governo. Num segundo exemplo, Boston conseguiu

inflamar um booin de construção de edifícios de escritório n u m a área de-

molida para reurbanização. Durante a década de 1960, 650 000 metros qua-

drados em espaço de escritório foram acrescentados ao horizonte da cidade

central, incluindo a Tower Prudential, de 52 pavimentos e financiada pela

iniciativa privada, e o edifício do New England Merchants Bank (O'Brien e

Ganz, 1972), preservando assim a função de escritório que a cidade central

cumpria.

Esses exemplos apontam para o que Scott denomina nexo entre o Es-

tado e a terra (1980), a articulação entre programas de governo, planejamen-

to urbano e interesses monopolistas dentro da cidade. Eles se juntaram para

desvalorizar a infra-estrutura representada pelo ambiente construído do pas-

sado (Harvey, 1981), para remover sua presença física, que agia como uma

barreira a novos investimentos (Lojkine, 1977b), e para desobstruir grandes

áreas para nova construção; muitos deles representam interesses bancários e

capital de monopólio, como mostraremos adiante. Além disso, o capital pri-

vado se associou de forma eficiente aos esforços do setor público para t i rar

partido dos efeitos benéficos da aglomeração (Lamarche, 1977) e explorar a

criação social, interativa, de valor em espaço com base nas circunstâncias ex-

teriores do crescimento. Assim, a revitalização é muito mais um produto so-

cial subsidiado pelo Estado que alguma iniciativa mágica, orgânica, de lugar.

Para um pesquisador isolado, é quase impossível descobrir o processo

deljastidor envolvido na parceria Estado-empresários que resgatou o valor

da terra na cidade central. Contudo, o grupo Nader, constituído por uma

equipe de pesquisadores, revelou a história que se escondia por trás da cons-

trução do World Trade Center em Nova York. As torres gémeas, de 110 pa-

vimentos cada uma, foram construídas em 1972, acrescentando de repente à

área comercial 420 000 metros quadrados de espaço de escritório. O projeto

foi concebido, inicialmente, pela Downtown Lower Manhattan Association,

"a fim de fornecer um alicerce sólido para a expansão da baixa Manhattan

coino centro predominante das finanças, dos negócios mundiais e do t rans-

A PR O D U Ç ÃO S OCIAL DO ESPAÇO URBANO 7 <

porte marítimo"(Leinsdorff et ai., 1973:143). Faziam parte da associação os

presidentes ou superintendentes do s seguintes bancos: First National Ci ty ,

Chase Manhat tan, M anufacture rs Hanover Trust, Morgan Guaran ty Trust ,

Chemical Bank, Bankers Trust, Irving Trust, Marine Midland Grace e o

Bank of New York.

N o entanto, as torres comerciais não foram construídas por esse grupo.

Ao contrário, o projeto envolveu um organismo público independente, a Fort

of NewYork Authori ty, à qual o "governo deu o poder de desapropriar terraprivada e a tomar"emprestado dinheiro a juros baixos, com isenção de impos-

tos" (Leinsdorf et ai., 1973:141). O projeto, portanto, combinavaos extraor-

dinários recursos isentos de impostos do poder público com os interesses do

setor privado centralizados em torno da finança internacional e dos negócios

mundiais. Como indica o relatório Nader, essa parceria foi a mais eficiente

possível, embora os moradores locais tenham sido contrários ao projeto; as

necessidades comerciais de Nova York não tenham exigido um crescimento

maciço em espaço de escritório nem um aumento nessa localização; as facili-

dades de transporte que serviam a área tenham sido limitadas; os commuters

que usavam as pontes e túneis operados pela Port Authori ty tenham coberto

seu capital operacional com suas tarifas diárias, sem receber das torres qual-

quer benefícioou qualquer redução em tarifas por causa do bem-estar finan-ceiro da Authority.

Para financiar o projeto, a Authority tomou emprestado,de um consór-

cio de 13bancos, 210milhões de dólares, dando como garantiao seu contro-

le de monopólio gerador de rendas sobre as pontes e túneis de Manhattan.

Dez dos bancos também eram membros da mesma associação que havia

proposto o projeto. O relatório Nader concluiu sua avaliação desse projeto

afirmando:

A 31 de dezembro de 1968, a Port Authority tinha 276 milhões de dólares, ou 93% de

seus depósitos a prazo fixo, nosmesmos bancos queestavam recebendojuros isentos de impos-

tos sobre o empréstimo de 210 milhões de dólares. O Citibank, e provavelmente também os

outros bancos, estava igualmente recebendo juros com isenção de impostos sobre os bónus

emitidos pela Port Authority. Esta depositava os lucros de seus bónus nos mesmos bancos que

estavam recebendo seus pagamentos de juros com isenção de impostos. Se os bancos deduzis-

sem os impostos sobre os juros que pagavampelos depósitos a prazo fixo da PortAuthority es-

tariam violando a lei (Leinsdorf et ai., 1973:148).

Algumas evidências apoiam certas generalizações que o estudo do gru-

po Nader fez sobre o papel fundamental do capital financeiro internacional

na canalização de investimentos para o setor imobiliário da cidade central

(Ratcliff etai,1979; Sbragia, 1981), mesmo que aqueles que estudam o pro-

blema tenham a tendência a aglomerar, simplistamente, frações de capital

(Friedland, 1976, 1980) ou a considerar erroneamente tais interesses como

um a classe inteiramente separada (Molotch, 1976). Burns e Pang (1977) pré-

74 MARKGOTTDIENER A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 75

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dizem, por exemplo, que, embora os escritórios centrais das grandes compa-nhias continuem a descentralizar-se, os bancos manterão suas sedes centraisno centro histórico da cidade. Longstreth (1979) menciona que a fração decapital financeiro da classe capitalista, inclusive bancos e seguradoras, é

realmente equiparada aos interesses da cidade central no Reino Unido, es -pecialmente no caso de Londres. Mais evidência da importância da fração de

capital financeiro na reestruturação da cidade central advém de um recenterelatório sobre Los Angeles, que m ostra que bancos, c ompanh ias segurado-

ras e investidores financistas estrangeiros são donos, atualmente, das pro-priedades mais valiosas do centro histórico da cidade. De acordo com o re-latório: "Lei federal proíbe que os bancos especulem com imóveis, mas po-

de m ser donos da propriedade onde mantêm seus negócios bancários. Taisholdings bancários são responsáveis talvez por um quinto do total das pro-priedades comerciais" (Los Angeles Times, 25 de abril de 1982). Posso acres-centar qu e essas propriedades, torres gigantescas de escritório co m muitoslocatários não-banqueiros, mudaram o horizonte h istórico da cidade.

Dizer que a morfologia espacial é um produto do capitalismo tardioque emerge atualmente nos Estados Unidos equivale a reservar os setorescomerciais das cidades para a fração de capital financeiro e para as funçõesde escritório central de grandes companhias que ocuparam partes das torres

gigantescas construídas pela associação entre Estado e capital financeiro, en-quanto jr afividades industriais e comerciais foram dispersadas por toda aregião metropolitana ou exportadas para outros lugares. Co m isso, a primei-ra fração, juntamente co m empreendedores e especuladores imobiliários, setransformou nos principais beneficiários da reurbanização (Carruthers, 1969;Boyer, 1973). Tal observação levanta impo rtantes questões teóricas com re-lação ao desdobramento diferencial das necessidades que o capital tem de

espaço, dada a presença de uma classe dirigente fracionada. No geral, paraos marxistas americanos a influência do capitalismo no espaço é uma presen-ça monolítica da corporação, visto qu e admitem, falaciosamente, um a ligaçãodireta entre as transformações do capitalismo e as formas espaciais (verGordon, 1977a, 1977b; Tabb e Sawers, 1984). O problema controverso que

existe em especificar a relação entre capitalismo e espaço é um dos vários aque deverei retornar no próximo capítulo e nos subsequentes.

, A visão defendida aqui quanto à reestruturação da cidade central diferedas explicações convencionais tecnologicamente deterministas, como a de

Gottmann (1972), para as quais as tendências de aglomeração do capitalfinanceiro são o resultado da grande proximidade dos"espaços de transação"exigidos pelas necessidades de processamento de informação. Na verdade,essas necessidades são reais (Burns e Pang, 1977), mas não explicam osaspectos específicos da oferta revelados pela articulação entre o Estado e

o setor imobiliário, a qual constitui a linha de frente das transformaçõesespaciais; nã o explicam também a medida da concentração do s principais

interesses financeiros, qu e promove a aglomeração; ou o fato de os bancos,sob o pretexio de conseguir acomodações para seus negócios, constru íremtorres de escritório qu e abrigam outros locatários associados.

O orçamento do governo continua a apoiar, nosEstados Unidos, a revi-talização do centro da cidade e a construção de edifícios de escritório. Em1979, por exemplo, cerca de 200 programas federais distintos asseguraramassistência financeira e técnica para a revitalização do centro da cidade.Órgãos federais como o HUD [Housing and Urban Development], qu e deti-

nha um cré dito orçamentário de cerca de 30 bilhões de dólares, destinaramum a porcentagem significativa de suas despesas para tal obra. O padrão geralde desenvolvimento urbano, então, implicou a substituição de setores varejis-tas e residenciaisdo centro da cidade pelas facilidades comerciais eadminis-trativas recém-construídas, preservando assim, em parte, a localização cen-tral da cidade no arranjo espacial metropolitano em expansão, apesar depressões mais "naturais" em favor da dispersão. Grande parte dessa ativida-de foi especulativa, resultante da facilidade de financiamento, graças ao ssubsídios governamentais, para projetos de cidade central, mas não para ossuburbanos (Boyer, 1973; Fellmuth, 1973; Lindemann, 1976; Hartman, 1974).

Em todo o boom de construção da cidade central, o Estado facilitou aos in-vestidora a construção em toda a cidade, dando vários incentivos, inclusive

benefícios em impostos federais, reduções de taxas locais e subsídios diretospara cobrir os custos da terra (Goodman, 1971; Marcuse, 1981).

Um a vez que os interesses monopolistas no desenvolvimento produzi-ram mudanças no espaço, outros protagonistas da sociedade, inclusive em-presários e moradores, devem ajustar-se às novas prioridades da paisagemmetropolitana (Davis, 1980; Rosenthal, 1980; London, 1980). Via de regra, ascoligações governo-empresários agiram com pouca preocupação pelos dese-

jos dos moradores, quando forjaram as redes pró-crescimento qu e impulsio-naram o redesenvolvimento comercial (Mollenkopf, 1975; Anderson, 1964;James, 1977; Davies, 1966). Discutirei com maiores detalhes no capítulo 6 a

natureza exata dessas coligações, uma vez que sua presença suscita, para aanálise marxista do espaço, inúmeros problemas teóricos importantes.

Como um desfecho de tais tentativas, as cidades centrais de todo o paíscomeçaram a assemelhar-se a parques de escritórios - umaversão em gran-de escala, de muitos pavimentos, do padrão suburbano de uso administrativoda terra. Caracteristicamente, essas áreas aprese ntam altas densidades popu-lacionais durante o dia, mas se esvaziam de qualquer população depois dohorário de expediente. Há uma ausência de indústrias e dos antigos mo rado-res de baixa renda. Consequentemente, todas as áreas comerciais, como as

de São Francisco, Boston, Atlanta, Houston e Phoenix, começaram a asseme-lhar-se a versões mais grandiosas de parques de escritório localizados em

subúrbios, à medida que desaparece da face da terra o centro histórico emultifuncional da cidade.

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7ii MARK GOTT11IKSI:.K

CONCLUSÃO •

Exi s te uma grande d i s tânc i a ent ro o i m p u l s o dcs cnvo lv iment i s t a con-

j u n t o de governo e empresá r io s que p r o d u z i u os c in t i l an t e s centros de es-

cr i tó r i os de m u i t o s p a v i m e n t o s do s d i s t r i t o s c o m e r c i a i s m u n i c i p a i s e a teo r i a

b i o log i camen te p r i m i t i v a de H a w l e y , segundo a q u a l os cen t ros dos organi s-

m o s crescem p o r q u e su a per i f e r ia se e x p a n d e em t a m a n h o . N ão obstante ,

Hawley , Berry e Kasarda , tanto q u a n t o o u t r o s ecologistas urbanos , se r i amo s p r i m e i r o s a concorda r q ue os processos c o m p l e x o s do s i s tema socia l

a l i m e n t a m o desenvo lv im ento das reg iões m e t r o p o l i t a n a s , espec i a lm ente em

soc iedades tecno log icam ente ad i antadas . A de f ic i ênc ia da perspec t i va desses

auto res nã o está na negação de ta i s fatos , mas na r e l u t ânc ia em a b a n d o n a r o s

ú l t i m o s vestígios do organic i smo b io lóg ico qu e P a r k e Burgess for am os p r i -

mei ros a p o p u l a r i z a r c o m o te rmo "abordagem da Esco la de Chicago". Sã o

passíveis de q u c s l i o n a m c n t o os padrões eco lóg icos descober tos pe la s sof is t i-

cadas técnicas estatísticas de aná l i se fa ior i a l c aná l i s e socia l de área. M a i s

i m p o r t a n t e , suas explicações para aspectos descobertos i n d u t i v a m e n t e p a r e -

ce m desesperadamcnte l i m i t a d a s .A perspec t i va di t a produção de espaço leva u u m a c o m p r e e n sã o m a i o r

desses padrões e eventos, pois os exp l i ca como p rodutos de processos, estru-tu ras e t ransfo rmações f undamenta i s da sociedade. Tanto as c idades como os

subúrb ios sã o mant idos e alimentados pelos processos nacionais, ou m e s m o

globais, de industria l ização avançada. Negócios, f inanças c governo, em todos

o s níveis, convergem para o espaço urbano a f im de alterá-lo ou transfo rmá-

lo, pois na maior i a do s casos as fraçõcs de classe do cap i ta l o exigem, o setor

da propr i edade o p r o d u z , e o governo considerou provei toso fazê-lo . Embora

áreas locais ainda cresçam "por si mesmas", os aspectos e prob lemas rea l -

m e n t e amplos da expansão urbana contemporânea, concei tuados como sis-

temas maciços de crescimento regional, requerem a visão da sociedadedi scu-

t ida neste vo lume .A discussão acima, da aglomeração e rees t ru turação me tropo l i tana ,

apenas i n t roduziu aspectos da abordagem marxista do espaço, s e m u m agrande dose de especific idade teórica. Alguns do s e lementos desse a rgumen-

to a l te rna t i vo já estão em evidência e serão levantados em capítulos posterio-

res. Incluem o pape l da s frações de classe no espaço, especia lmente aquelas

den t ro da classe capi ta l ista; a relação entre desenvolvimento espacial e con-

t ro l e social, isto é, o conf l i to de classes tal como se dis t r ib u i no espaço; a re-

lação e n t r e o Estado e o espaço; e , f ina lmente , o p a p e l das redes pró-cresci-

m e n t o na rees t ru tu ração das forças do espaço de a ssentamento . No próximo

cap í tu lo , e x a m i n a r e i esses e o u t r o s p r o b l e m a s dentro do contexto de seu t ra -

t a m e n t o pe la econo mia p o l í ti ca marx i s ta .

E C O N O M I A P O L Í T I C A M A R X I S T A

O cabedal teórico da ciência urbana convencional fo i transmitido, como

vimos, pela perspectiva ecológica e seu paradigma funcionalista . Nesse es-

quema , elementos de vo lunta r i smo têm certamente a sua importância - a

economia da localização enfatiza o papel do consumidor em termos de de-

m a n d a e as preferências das empresas num mundo l ivre de coerções mono-

polistas. A força epistemológica desse trabalho, contudo, permanece com-

patível com a ênfase ecológica sobre as fo rmas sociobióticas que se mani fes-

ta m mais no plano estrutural da sociedade do que no plano do comporta-

mento individual. O foco dinâmico dessa análise é um tipo de funcionalismo

ecológico, na f o r m a de um processo coletivo de adaptação. Isto é, a socieda-

de é concebida como um sistema fo rma l , integrado, se m dúvida, por meca-

nismos parsonianos de consenso de valor, que se ajustam cole i vãmente adistúrbios ambien ta i s de maneira equilibrada. A partir de tal perspectiva, o

desenvolvimento metropolitano é entendido como um processo natural que

decorre das pressões inexoráveis por mudança social exercidas pela inovação

tecnológica e da crescente escala societária que essa inovação possibilita.

P o r volta do s anos 60, um rude despertar aguardava qua lquer ana l i s ta

urbano qu e quisesse acreditar n u m a ta l versão reificada, conservadora, da srealidades da vida urbana. Os tumul tos de gueto da metade do s anos 60 ex-

plodiram por todos os Estados Unidos, desfigurando assim o valor teórico

do s processos ecológicos de ajuste. O fa to mais significativo qu e surg iu do s

milhares de investigações que se seguiram à insurreição da cidade centra l no s

anos 60 foi evidenciado pela documentação explíc i ta dos mui tos anos - na

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7S MARK COTTD1ENER

realidade, a natureza intergeracional - de privação por que passaram o nú-mero crescente de pobres urbanos em todas as nossas grandes cidades, mes-mo aquelas localizadas no cinturão-do-sol. Essa "outra América", para usara expressão de Michael Harrington sobre as condições urbanas e rurais,compreendia cerca de 20% da população dos Estados Unidos, cujo dia-a-dia

era cercado de pobreza, desemprego, racismo, moradia abaixo do padrão,

desnutrição, crimes violentos, desintegração da família, assistência médica eeducacional inadequada.

Na época, a divisão que se seguiu entre cientistas sociais críticos e con-servadores dizia respeito, na realidade, a sua respectiva sensibilidade ao de-

senvolvimento injusto da sociedade americana e à violência social queafetavaa própria essência da vida diária na América. Alguns analistas críticos pre-tenderam entender tais atributos mais do que neutralizá-los conceitualmente,po r estarem fora dos limites dos tópicos aceitáveis para análise urbana. Em

retrospecto, é provável que nunca teria sido articulada uma versão marxistada análise urbana se a obra convencional tivesse conseguido promover umacompreensão das injustiças sociais que permeiam a vida em nossas regiões

metropolitanas.

Durante os anos 60, a análise marxista da sociedade moderna recebeuuma ajuda do exterior. Em maio de 1968, a "explosão" sacudiu a França e, naverdade, toda a Europa. Cerca de 20milhões de trabalhadores franceses saí-ram às ruas numa greve geral, colocando aquele país à beira darevolução. Porum a decisão fortuita, a intranquilidade que invadiu a sociedade europeia foiidentificada, em parte, como sendo de natureza urbana, e o Estado deu seuapoio a um esforço da ciência social para analisar o que veio a ser conhecidopelo termo "revolução urbana".A prolífica quantidade de obras sobre tópicosurbanos que se publicaram na França depois de 1968, eventualmente, fecun-

dou por cruzamento os esforços dos analistas urbanos marxistas nos EstadosUnidos, numa época em que carecíamos extremamente de um tratamento al-ternativo desse tema. O objetivo fundamental de toda obra marxista publicada

depois dessa época foi substituir o que se tornara a aplicação aborrecida decorrelações fatoriais urbanas descritivas por urna síntesevibrantequepudesse,

deum lado, revelar os processos pelos quais o ambiente urbano assumira suaforma presente e, de outro, explicar as características dadistribuição espacial

desigual e as crises sociais associadas a ela. Esta perspectiva crítica se inte-ressava não só pelo pobre e pela justiça social, mas também pela presença deum desigit arquitetônico desumanizador e de um planejamento urbano ina-

dequado. A análise urbana marxista, portanto, era, ao mesmo tempo, umcomentário económico, político e social sobre eventos urbanos e a forma dacidade, que as impropriedades das abordagens convencionais exigiam.

O problema dos primeiros proponentes da perspectiva marxista residiuno pouco destaque que o legado do mestre deu à análise urbana. Na realida-

de, Engels, e não Marx, é que parecia mais interessado em escrever sobre o

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 71

assunto (Engels, 1973, 1979; Lefebvre, 1970). Contudo, alguns comentários

qu e aparecem em Formações Económicas Pré-Capitalistas, de Marx, sugeremo ponto estrutural essencial: a forma do espaço de assentamento deve estarligada a seu modo de produção (1964:78). N uma breve passagem, Marx de-senvolve a noção de que os quat ro estágios da sociedade que a técnica do

materialismo histórico identifica a formas separadas de organização social

poderiam estar associados a uma análise urbana:

A história clássica antiga é a história de cidades, ma s cidades baseadas na propriedadeda terra e na agricultura; a história da Ásia é um tipo de unidade não-diferenciada de cidade e

campo (a cidade grande, propriamentedita, deve ser encarada apenas como um arraial princi-pesco, devidamente imposto à estrutura económica verdadeira); no começo da Idade Média

(período germânico) o campoé o locus da história, cujo desenvolvimento posterior se dá entãomediante a oposição entre cidadee campo; a história moderna é a urbanização da zona rural, enão, como entre os antigos, a ruralização da cidade (1964:77-78).

Essa formulação concisa fo i utilizada como um pensamento sistemati-zador na obra de outros autores, que preencheram os detalhes do processodiacrônico traçado por Marx. Essa obra era, até a década de 70, a única aná-lise urbana marxista de que se dispunha. De passagem, seria oportuno obser-va r a extraordinária presciência que caracteriza grande parte do pensamentode Marx: como vimos, de fato, os padrões atuais de expansão implicam a ur-banização do campo. Não obstante, também ficará evidente que, em contras-te com a afirmação de Marx e a visão dos marxistas que se seguiram a ele, édemasiado simplista postular uma correspondência direta entre um modo deprodução e uma forma específica do espaço de assentamento.

Por volta dos anos 70, boa parte dos marxistas nos Estados Unidos vol-taram sua atenção para o espaço urbano. Para entender seu trabalho, deve-

mos encará-lo como um projeto contínuo, como uma discussão polifônicaque pretende aperfeiçoar a abordagem crítica, de modo que possa analisar avida contemporânea com uma fidelidade cada vez maior. Por isso, emboraseja possível criticar exemplos individuais dessa produção intelectual por se-rem incompletos ou, em parte, pouco desenvolvidos, deve-se ter em menteque estamos discutindo ao mesmo tempo um projeto contínuo e a emergên-cia de um novo paradigma sócio-espacial. Atualmente, graças à fecundidade

do pensamento marxista e às suas várias interpretações, grande número deabordagens isoladas são aplicadas à análise urbana. Devem ser avaliadas porum exame acurado das questões que suscitam, dos problemas que levantam edas respostas que fornecem.

O problema básico engendrado pela aplicação do marxismo ao casodos Estados Unidos foi: pode uma abordagem desse tipo se circunscrever àperspectiva de economia política? Isso ocorre porque, no momento, a eco-nomia política marxista domina o modo de pensar mais característico domarxismo deste país (como irei demonstrar adiante, a resposta é negativa).

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MARK G O T T D 1 F. N ER

Co n t u d o , mesmo essa dis tinção apresenta cer tas di f i cu ldades , pois h á váriasperspectivas dist intas, todas e las denom inada s econo mia pol í tica . E m gera l ,pode-se dist inguir entre aqueles anal is tas que, para de te rmina r a f o r m a u r-bana , ressaltam o conf l i to de classe c suas consequências p rocessuais e a q ue -le s qu e estão mais preocupados com a lógica da acumulação de cap i ta l . Éclaro que os dois aspectos sã o parte do m e s m o processo, ou seja, a predo-

minânc ia hegemónica das relações sociais capital is tas na sociedade mod erna.N o entanto, convém fazer uma dis t inção entre e les.A seguir, tive de me abster de fazer uma revisão da l i tera tura sobre

economia polí tica marxista. Em vez disso, focalizarei um grupo seleto dequ a t r o expoentes. M eu propósito é m uit o mais isolar o mod o básico de ra-ciocínio característico da economia política, j u n t a m e n t e com os problemassuscitados po r suas limitações, do que t e n t a r r e s um i r o escopo de suas preo-cupações. Agir de outro modo seria deixar de reconhecer as i m p r op r i e da de scríticas dessa abordagem, qu e nunca serão superadas de de n t r o desse para-d igma .

TEÓRICOS D O CONFLITO D E CLASSESEssa abordagem deixa de desenvolver a i m p o r t a n t e distinção entre ca-

pi tal ismo como uma tota l idade, como u m modo de p rodu ção organizado s is -t ema t i camen te , e cap i ta l i smo como uma fo rma de sociedade dentro da qua lo c o m po r t a m e n t o do s indivídu os segue as l inhas de classe. Grande parte des-ta obra evi ta a aná l i se dia lé t ica e apenas reprodu z o pensamento convencio-na l d e n t r o de uma forma marxista, pois possui a mesma ênfase positivista emdescobrir um ou dois fatores que "causam" f enómenos urbanos . Invariavel-mente , nesse modo de análise, considera-se que o f a tor t raba lho é o pr incipa ld e t e r m i n a n t e da s decisões capitalis tas sobre localização. Po r conseguinte , afo rma ur b a na é "explicada" como um p r odu to da l u t a de classes.

Em suas ar t iculações mais ant igas, a abordagem segundo o conf l i to declasses foi usada para just i f icar uma visão cm termos de controle social dat o m a d a de decisão quanto ao uso da terra (Gordon, 1977a, 1977b; M o l l c n -kopf, 1975; Katznelson, 1976). Lançou a hipótese da existência de uma classecapita l ista que fosse capaz de aluar monol i t i camente a f im de harm oniza r oseventos de ta l modo que eles se adap tassem melhor à s necessidades dessaclasse. E m alguns casos, a classe capitalis ta é do ta da de uma presciência ca -pa z de fazer com que suas decisões politicamente orquestradas sejam funcio-nais para a sobrevivência do sistema (Boulay, 1979:615). Essa abordagem su-gere que a existência de tudo o que realça a capacidade da classe capitalis tade controlar a sociedade fo i determinada pe la vontade, ou, se isso so a cons-pi rador demais (e muitos marxistas preferem que as coisas soem desse m o-

do), então o p rópr io cap i ta l i smo pode se r ant ropomor f izado de ta l modo que

A P RODUÇ Ã O S OC I AL D O E S P AÇ O C RH AN O SI

possa agir como um todo e determinar o que é m e l ho r p a ra el e como sisteman u m a forma evolutiva ao extirpar o que não o é . Os próprios marxistas nã odeixaram de mencionar os extremos funcionalistas a que chegaram, às vezes,esses argumentos. Como Edel observa:

Se existem fenómenos porque são necessários para um processo de acumulação, e eles

são parte do processo de acumulação, o que se quer dizer é que eles existem porque eles mes-

m os se necessitam. Não está m u i t o claro como o processo de acumulação pode exist i r co m oum a coisa à parte a determinar a característica de suas partes componentes (1981:39).

Um a abordagem qu e ressalte os poderes equi l ibradores do capitalismoou da classe capitalista, qu e pref ira considerações de t raba lh o para determi-na r a f orma de uso da terra e que explique os eventos po r meio de argumen-to s funcionalistas é pouco diferente da ciência social convencional, como v e-remos adiante. Contudo , de certa maneira , os teóricos do conf lito de classesintroduziram melhorias substanciais em nossa compreensão do processo ur -bano de localização e contribuíram para um maior esclarecimento da dinâ-mica desse processo; no entanto, continuam restringidos pelo pensamentoconvencional. Dois argumentos, em particular, deveríamos distinguir nesse

momento. O primeiro é a explicação de Gordon para a descentralização daindústria; o segundo, a teoria, ideal izada po r Storper e Walker , da localizaçãosegundo o trabalho.

A Teoria do Controle Social e a Fornia Urbana

A ecologia e a geografia urbanas convencionais consideram as m uda n-ças na f orma da cidade um a consequência de alterações na tecnologia dostransportes e das comunicações (Hawley, 1956, 1977; Schnore, 1957, 1961;Borchert, 1967). Essa explicação ilustra o que alguns marxistas querem evi-tar: a discussão da mudança urbana divorciada do s aspectos sistémicos maisamplos da economia, da política e da história. Nasituação atual, ecologistas e

geógrafos parecem sugerir que a f orma urbana se concretiza como a con-sequência inevitável da inovação tecnológica. Assim, pouco poderíamos fa -zer, por exemplo, para alterar o padrão disperso de cidade, no momento em

qu e o automóvel fo i introduzido de modo maciço. Em contraste com o de-terminismo tecnológico dos ecologistas, David Gordon, num a série de três

estudos distintos sobre o mesmo tema, desenvolveu um a primeira explicaçãomarxista para a f orma dispersa de cidade (Alcaly e Mermelstein, 1977; Wat-kins e Perry, 1977; Tabb e Sawers, 1984). Segundo Gordon, a inovação tec-nológica é importante no desenvolvimento do espaço urbano, e o automóvelé particularmente decisivo para esse processo. Todavia, tais fatores tecnoló-

gicos fornecem os meios mas não o incentivo para o crescimento esparrama-do de cidade e a dispersão urbana . Ele observa que a desconcentração urba-

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n a j a ocorr ia n os Estados U n i d o s n a década de 1880, q u a n d o m e s m o a s vias

fé r rea s de coininulcr e r a m r e l a t i v a m e n t e novas .

Para fazer su a crí t ica a o d e t e r m i n i s m o tecnológico, G o r d o n dispõe do s

segu in tes a r g u m e n t o s . Pr imei ro , e le cria categor ias n o m i n a l i s t a s , co nco r d e s

co m os vários per íodos de a c u m u l a ç ã o de capi t a l , q u e e leva a o siaius de es tá -

gios dentro do desenvo lv im en to h is tó r ico do s i s t ema cap i t a l i s t a , s e m d e m o n s -

t r a r q u e estes sã o m o d o s q u a l i t a t i v a m e n t e s ingu la r es de organ ização . E le se

refere a o capita l comerc ia l , capi t a l i n dus t r i a l c capi t a l de monopó l io . En tão ,cada estágio t e m u m a f o r m a ún ica de cidade cor r e lac ionada com e le : a c i da-

de co m e r c i a l , a cidade i ndus t r i a l c a f o r m a a t u a l , a c idade corpora t iva . As-

sim, segundo ele, esses três estágios da história do capi t a l i s mo se rcf letem

em fo rmas d i s t i n t a s do espaço de assen tamen to . Além disso, essas f o r m a s

e ram produz idas pelas várias respostas espaciais que o sistema capitalista

(ou, às vezes, a classe capitalista) t i n h a de dar para m a n t e r s u a h e g e m o n i a

social sobre o processo de produção . Cons idcra - se q u e cada estágio é domi-

nado pelo capita l em gera l , isolado do conf l i to e n t r e f raç ões . D uran te o

período de a c u m u l a ç ã o i ndus t r i a l , em p a r t i c u l a r , o processo de obtenção de

l uc ro mudou qua l i t a t ivamen te par a o modo de produção cm fábricas . Nesse

estágio, a economia "exigiu" u m s i s tema de produção em m a s s a e m g r a n d e s

fábricas e u m a força de t raba lho es táve l em tais estabe lec imentos , n u m a baseregu l a r e, a n t i g a m e n t e , po r longas horas. Esse estágio se dis t ingue do a n t e -

rior, que en focava o processo global de colon ização e comércio que "exigia"

cidades portuár ias q u e func ionassem bem e com mercados ; distingue-se

t ambém do estágio de cidade corpora t i va , q u e "exige" a necess idade de es-

critórios cen trais de a d m i n i s t r a ç ã o e negócios.

Então Gordon a rgumenta que , n a cidade industr ial consti tuída de fá-

bricas, m a i s ou m e n o s na v i r ada do século, a l u t a de classes se t r a n s f o r m o u

em confl i to aberto de n a t u r e z a v io len ta . Ele o d e m o n s t r a n u m qu adro sobre

o n ú m e r o de greves entre 1880 e 1920. U m a ve z q u e o s capitalistas estavam

interessados na a c u m u l a ç ã o a t r avés do processo de produção em fábricas,

precisavam proteger dessa inqu ie tação t raba lh i s t a s u a s e m p r e s a s e o r e g i m e

de t raba lho . C on s e q ú e n t e m e n te , o pr inc ipa l agente a co nt r ibu i r para o pri -meiro tipo de desconcentração foi a necessidade de isolar a força de trabalho

da inqu ie tação e agitaç ão coletivas. Isto é, a decisão coletiva do s capitalistas

dê m u d a r suas fábricas da s cidades cent ra i s densam ente povoadas para á rea s

adjacentes fo i causada pe l a necess idade de maior con t ro le social sobre a fo r-

ça de t r aba lho .

Na opinião de Gordon, port anto , os donos de fábrica reag i ram à l u t a

de classes dessa m an eira be m di re t a . Ta l tendência cr iou a i n f ra - e s t ru tura

qu e susteve o início da descentral ização metropoli tana, à medida que o cres-

c imen to da cidade se expandia para l igar-se às cidades-satélite e sítios indus-

triais local izados em á reas suburbanas . Esse crescimento centr ífugo recebeu

um a g r a nd e a juda da cons t rução de fer rov ias , que deu aos t r a b a l h a d o r e sa

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 83

possibilidade de viajar diar i amente , po r exemplo, do s slums congestionados

de Chicago, onde viviam, para as usinas de aço de G ary, Indiana . Contudo,

como os anal istas convencionais se concentram no aspecto tecnológico desse

crescimento, ignoram o registro histórico do confl i to de classes e os incenti-vo s que a tuam no sentido de orientar tais tendências e usos inovados apenas

para propósitos sociais.

Dedicamos mais espaço à demonstração de Gordon porque i lustra al-

guns dos melhores e piores aspectos da análise marxista. Proporciona o ele-m e n to q u e faltava para o estudo completo da expansão urbana numa socie-

dade que sente os eventos como se fossem dispostos pelas pessoas e seus

respectivos conflitos ou desejos, e não por invenções mecânicas reificadas

que misteriosamente parecem submeter as vontades à sua ordem. Sua l imi-

tação reside no fato de que tais rótulos económicos e pol íticos, como "cidade

corporativa" - inventados ali m e s m o e lançados apenas como categorias

nomina l is ta s - carecem de substância, pois af i rmam que o desenvo lv imento

capitalista sofre m u d a nç a s qua l i ta t ivamente distintas que se ref letem a u t o m a -

t icamente em fo rmas espaciais distintas. Gordon cria uma série de estágios

como tipologias e acompanha-os com uma série de correlações superficiais;

m as fal ta a essa abordagem um modelo marxista q ue demonstre, em detalhe,

as ma neiras específicas pelas quais os processos capitalistas de acumu lação ,produção e reprodução ditam um procedimento de tomada de decisões que

produz mudanças m ateri a i s na fo rma u r b a na . Pode-se dizer que essa falta é o

primeiro prob lema enf rentado pela anál ise urbana marxista: o procedimento

pelo qual possamos especificar a relação entre es t ru tu ra social e estrutura

espacial. No capítulo 6, contestaremos a visão de form as históricas do capita-

lismo, qualitativamente separadas, em favor da continuidade histórica desse

modo. Além disso, contestaremos t ambém a visão de processos capitalistasdistintos como se refletem no espaço, em favor de uma relação mais dialética

entre organização espacial e organização social.

N ão precisamos de muito para estabelecer o fato de que a virada do sé-

culo foi um período de luta de classes sustentada, caracterizado pela presen-

ça franca de m ilitância trabalhista e formas violentas de controle social. Aquestão a que devemos nos aplicar, contudo, é saber se apenas essa luta fez

co m que inúmeros donos de fábrica procurassem localizações suburbanas

para seus negócios. Sem ver nisso apenas um a parte da resposta, G ordon

funde processos históricos complexos nu m a cadeia l inear e causal que revela

a o mesmo tempo u m a visão conspiratória de m u d a nç a n a fo rma de cidade e

um a anál ise funcionalista do capital ismo. Como iremos ver no capítulo 7,

inúmeros fatores se mostram importantes na descentralização-da indústria,

incluindo a especulação com a terra; a ideologia pró-crescimento, que esti-

m u l a os incentivos à migração; ciclos n a acu m ulação de ca pital ; e, f inal m ente,

conflitos entre frações da própria classe capitalista. Assim, a anál ise de Gor-

do n levanta vários outros problemas. De que manei ra podemos especi f i ca r

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« M A K K G O TTD IE N E R

um a análise marxista do espaço qu e t ra te os mu i tos f a tores qu e a t u am nele?Q u a l é a relação entre a necessidade de controlar a l u t a de classes e o a m -biente const ruído? Qua l é a re lação en t re acum ulação de capital e conflito declasses q u a n d o a fe t am o am b ie n t e construído? Como pode a análise marxistaevitar o funcionalismo em bora especif ique a necessidade da classe ca pitalistade domi n a r o sistema? Em resumo, o q u e u m a avaliação da obra de Gordonexige não é um aban don o da abordagem m arx ist a urba na , mas, an tes , a ne-cessidade de torná-la m a i s sofisticada. Na situação em qu e se apresenta, pa -rece um correlativo funcionalista da teoria ecológica, na medida e m que bus-ca explicações monocausais e confunde fenómenos compor tam enta is com só-cio-estruturais. Um a l imi t ação semelhante aflige a segunda abordagem po rconflito de classes que desejo discutir: a teoria, criada por Storper e Walker,da localização segu ndo o trab alho. Vam os considerá-la em seguida.

A Teoria da Localização Segundo o Trabalhoe a Forma "Urbana

Todo o pensamento u r ban o marxista representa uma crít ica à teoria

convencional da localização, ainda qu e seja desenvolvida a penas de f o rm a li-mitada . Contudo, Michael Storper e Richard W alker (1983,1984) decidiramatacar de frente a ab orda gem neoclássica, nu m a crítica global à lógica da lo-calização industrial. É fácil apreender as impropriedades da teoria conven-cional, enfatizando, como ela faz, a tecnologia dos transportes e das comuni-cações, pois os próprios analistas convencionais reconhecem qu e tais fatoresjá não contam ta nto nas decisões de localização com o contavam antes (Mas-sey, 1977a, 1977b; Richardson, 1972; Watkins, 1980). Storper e Walker pro-curaram m uda r r a p i damen t e: em vez de reconhecer essa limitação, propuse-ra m um a abordagem alternativa, que, segundo a f i rm am , tem suas ra ízes fin-cadas no pensamento m arx is t a . A argum entação desses autores prosseguecom a análise da fornia complexa pela qual ponderações sobre a mão-de-

obra e a força de trabalho passaram cada vez m ais a ser as mais impor t an tesnas decisões sobre a a t u a l localização industrial.

Para começar, Storper e Walker chamam a atenção pa ra a m aior capa-cidade das empresas industriais de se localizar nu m a variedade m aior de lu-gares. Os fatores que julgam responsáveis por esse fato dificilmente podemser debatidos a part ir de alguma perspectiva; eles apenas harmonizam a aná-lise da localização com as realidades a tuais. Natura lmente, entre esses fato-res kic'.uem-se inovações na tecnologia do s transportes e das comunicações,como faz a teoria convencionai da localização, ao lado daquelas transfor-mações associadas ao capitalism o tardio, como, po r exemplo, o crescimento eo desenvolvimento da organização capitalista global, que associou áreas pe-riféricas a uma intensificação geral dos processos de industrialização e co-

A P R O D U Ç Ã O S O C I A L D O E S P A Ç O U R B A N O s s

mercialização; integração global, qu e abr iu novas fontes de mão-de-obra e dematér ias -pr imas ; proliferação do s processos industriais de múltiplos estágiose m últiplas fábricas, "tornando antiqu ad a a ideia de que um a localização úni-ca é melhor"; novas formas de automação e de tecnologia da produção sinté-tica, que a tenuaram dependências an ter iores do m ercado de m a t é r i a - p r im a ede m ão-de-obra; crescim ento da imp ortância de grandes com pa nhias par a obem-estar económico geral, qu e lhes p erm itiu obter condições de infra-estru-tura e financeiras atraentes; e, f ina lmente , a maior capacidade científica da sfirma s de calcular valores ótim os de localização e d e estrutu ras com ponentespara seus propósitos de produ ção (Storper e Walker , 1983:2-3).

Juntas , essas t ransformações tornaram m enos im por t an tes , hoje, a stradicionais lim itações em localização. Por conseq uência, com o observ amStorper e Walker, ganha ram natu ralm ente im portância as ponderações sobreo trab alho: "À medida que o capital desenvolve sua capacidade de localizar-se m ais livrem ente co m relação ao ma i o r n ú mero de fontes e mercados, podepermitir-se um a maior harmonia c om a s diferenças na força de t raba lho. So ba pressão da competição, isso se torna um a necessidade" (1983:3-4).Até esseponto, a análise desses autores é, na verdade, a m ais convencional possível!

No entanto, reconhecer as imp ortantes transform ações industr iais associadasa o capitalismo tardio constitui um simples prelúdio a u m a abordagem maismarxista da teoria da localização.

Segundo Storper e Walker, embora os analistas convencionais concor-dem com a sua estimativa de uma maior flexibilidade em matéria de locali-zação, eles são incapazes de t ratar o t rabalho dentro do qua dro convencionalde uma maneira adequada a seu papel nas decisões sobre localização. Isso é

verdadeiro porque todo o pensamento neoclássico reduz o trabalho, ideolo-gicamente, ao status reificado de mercadoria. Para os analistas convencionais,a força de t raba lho é apenas um insumo, entre vários, que os capitalistasobtêm do mercado para usar na produção. Como eles sugerem:

Confundir trabalho com verdadeiras mercadorias significa adotar os seguintes pressu-postos incorretos: o trabalhadoré a m e s m a coisa que os objetos de t rabalho ; a produção éum

exercício puramente técnico, um sistema de maquinar ia que os trabalhadores não têm comodi-

rigir, ou para o qual não contribuem...; o processo de produção é desprovido de relações sociais

e vida social que afetem o comportamento do trabalhador...(1983:4).

Focalizando os aspectos singulares do t raba lho humano no processo

industrial, Storper e Walker fazem uma crítica à teoria convencional da loca-lização, que é dist inta do pensamento dominante. Dividem sua análise emdois fatores: os que afetam as m udanças na ofer t a de t raba lho e os que a fe-ta m a demanda . E m s u a concepção, o m ais im por t an te é reconhecer que osfatores específicos do trabalho variam de lugar para lugar . Po r conseguinte,as decisões sobre localização devem ter em conta a especificidad e geog ráfica

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«« MARK GOTTD1ENER

do trabalho, mesmo qu e outros fatores específicos da localização se tornemmenos importantes. No caso da oferta de força de trabalho, diz-se que os fa-

tores que a afetam são idiossincráticos e dependem de inúmeras conside-rações distintas que as indústrias individuais avaliam de modo diferente. In-cluem as condições de aquisição, que dependem não só de salários mastambém de alguns outros custos de reprodução do trabalho que os trabalha-dores exigem que sejam assumidos pelos empregadores, como os de saúde,

segurança, moradia, perspectivas de promoção etc.; a qualidade do trabalho,que inclui especialização, criatividade e regularidade e que, "como se sabe,varia acentuadamente de região para região"; o controle do trabalho, pois "adiferença mais fundamental entre trabalho e verdadeiras mercadorias é quenão há qualquer garantia de que sé obtenha aquilo por que se paga, mesmona troca mais justa"; e, finalmente, "reprodução no local", ou a dependênciavariável do trabalho em relação a aspectos da comunidade e da vida emfamília específicos da localização, os quais também variam geograficamen-

te (1983:5-6). Em suma, o motivo pelo qual considerações sobre a força detrabalho se tornaram mais importantes nas decisões de localização são asqualidades incomparáveis da força de trabalho como insumo de produção,um aspecto que a análise convencional não pode reconhecer devido a suaslimitações ideológicas.

No segundo caso, a demanda de trabalho por parte das grandes com-panhias também mudou, mas continua obrigada geograficamente. Storper eWalker sugerem que ás indústrias se localizem onde a oferta de trabalho seajuste melhor a sua demanda. Isso, por sua vez, é função sobretudo da tecno-logia dominante, usada no processo de produção, que compreende seis tipos:tipo artesanal, processamento contínuo, processamento automatizado de ma-teriais, montagem mecânica, processamento mecanizado e montagem ma-nual. Ao determinar a demanda, olham-se cada vez mais certas característi-cas comuns do trabalho: trabalhadores vulneráveis à aceitação de controlescorporativos sobre os salários, aqueles que têm pouca sustentação para for-mas coletivizadas de protesto e aqueles que se acham sob pressão de traba-lhadores similares desempregados. Tais fatores ajudam a baixar salários on-de quer que se localizem as fábricas.

No entanto, ao escolher tecnologias predominantes, Storper e Walkerintroduziram diferenciais qu e determinam a especificidade regional de algu-ma s indústrias em contraste com outras. Por exemplo, uma montadora demotores de automóveis que trabalhe com processamento automatizado dematéria-prima requer grande número de operários especializados paraoperá-la com eficiência. Tais fábricas tendem a localizar-se no coração indus-trial do meio-oeste, que apresenta uma oferta superabundante desses operá-rios. Em compensação, a indústria têxtil é um exemplo de indústria de pro-cessamento mecanizado; requer trabalhadores com o mínimo de habilidade emuita paciência, que possam atender às máquinas sem reclamação. Estas

A PR ODU ÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 87

indústrias tendem a localizar-se em áreas rurais do Sul, longe da influência

sindical, e em áreas onde haja pronta disponibilidade de grande número detrabalhadores combaixa especialização.

Co m efeito, segundo mostram Storper e Walker, como a teoria conven-cional não entende a verdadeira natureza do efeito do trabalho sobre as de-cisões de localização, carece de uma avaliação da antropologia marxista e,portanto, fetichiza a natureza da força de trabalho. Além disso, o pensamen-to convencional deixou inexplorada a relação diferencial entre força de traba-lho e tecnologias industriais como forças de produção, juntamente com £.ia.maior dependência de lugares específicos em matéria de localização. Cornoeles observam:

Deve-se não só analisar as forças comuns que atuam sobre diferentes ramos da indús-

tria, como também estudar o que os torna distintos. De outro modo, a agregação pode ocultartanto quanto revela. Essa abordagem conserva a ideia de forças sistémicas e estruturaisqu eacionam a evolução industrial , mas se liberta das excessivas generalizações do ciclodo produto;isto í, considera as particularidadesda s indústrias um prisma necessário através do qual as for-ças estruturais são refratadas em resultados específicos. As forças comuns de competição, lu ta

de classes etc., levaram as indústrias a seguir caminhos evolutivos diferentes, pois cada um * de-las enfrenta conjuntos fundamentalmente diferentes de possibilidades e limites em come.vii'li-

zação, produçãoe organização (1983:25).

Isto é, as qualidades específicas do produto de cada indústria impedem

que a análise convencional agregue com eficácia todas as qualidadese reque-rem, em vez disso, que se examinem, indústria po r indústria,os determinan-tes específicos das decisões de localização. É esse o caso, mesmo depois queconhecemos o papel primordial que desempenham as considerações sobre aforça de trabalho. Na realidade, focalizando a tecnologia da produção, Stor-per e Walker, em sua análise das decisões de localização, vinculam ascoerções tecnológicas da produção às necessidades de força de trabalho.Como indicamos acima, uma vez especificada um a apologia de tais tecnolo-gias de produção, as distinções geográficas no tocante às decisões sobre loca-

lização podem ser feitas na base de que seja encontrada numa área um a for-ça de trabalho que se adapte melhor às necessidades de produção.Finalmente, a análise de Storper e Walker deixa de enfatizar a qualida-

de determinante da tecnologia específica da indústria para explicar a trajetó-ria histórica do desenvolvimento industrial. Em sua concepção, ela é deter-minada po r três processos distintos qu e unem respectivamente a relação en -

tre capitalistas e trabalhadores, entre indústria e comunidades circunvizinhas,

e entre indústriae crescimento regional. Como eles sugerem:

Abandonar um a concepção estática do emprego significa repensar a localização indus-trial. A localização é mais do que combinar as demandas de trabalho por parte da fábrica paraapropriar as forças de trabalho espalhadas na paisagem. Está entrelaçada com a reprodução docapital, do trabalho e com o padrão de geografia industrial (1984:39).

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ss MARK GOTTD1ENER

É nesse ponto de sua discussão que se pode salientar a principal con-tribuição da abordagem da localização segundo a teoria do trabalho. Aessência da abordagem de Storper e Walker é introduzir a luta de classes nateoria da localização, que é identificada à relação de emprego, isto é, à lutaentre capital e trabalho pelas condições de emprego. De um lado, os capita-

listas são compelidos, nessa luta, não só por suas próprias margensde lucro,

ma s também pela ação do n eio ambiente externo, inclusive a competição en -

tre setores e a "estabilidad da base industrial de uma área" (1984:40). Asaúde da indústria significa, muitas vezes, promover igualmente o crescimen-

to regional. De outro, a estabilidade da oferta local de trabalho depende, emgrande medida, do bem-e.' tar da comunidadee do processo localizado de re-

produção do trabalho. Per esse motivo, a sorte da indústria e a da vida co-

munitária estão muitas vezes entrelaçadas. No final, a luta no âmago da re-lação de emprego regulará tanto a oferta de trabalho quanto a sua demanda

e, por seu turno, afetará tanto a expansão específica da indústria quanto o

desenvolvimento regional. No entanto, esse processo se esgota contra a ação

do meio ambiente mais amplo da indústria,do setor e da sociedade como umtodo. „

Nesse sentido, soluções estáveis para a relação de emprego "não po-

dem ser mantidas para sempre", visto que as contradições do desenvolvi-mento capitalista interferem na paz entre patrão e trabalhador. Impactos

desequilibradores forçam as empresas a repensar a localização e a mudar os

arranjos espaciais no intuito de administrar tanto os custos do trabalho quan-

to a competição entre setores. Como observam Storper eWalker:

Em resui 10, ocalização e «localização são meios essenciais de moldar e mudar a re-

lação de emprego, num esforço continuado da administração para manter-se competitiva e con-ter a luta de classes no local de trabalho. Mobilidade no espaço não é um luxo para o capital,

ma s umanecessidade. No curso do tempo, a interacção entre capital e trabalho no espaço, co-

mo dimensão crítica do emprego, realimenta as fortunas do capital, a evoluçãoda tecnologia e,

naturalmente,a história das comunidades de classe trabalhadora (1984:41).

A maioria das afirmações de Storper e Walker deve despertar pouca

controvérsia, mesmo da parte dos analistas convencionais. Sua contribuição,

que decorre do marxismo, consiste na comprovação de que o trabalho não

equivale aos outros insumos de produção, mas envolve um processo conten-

cioso que afeta sua oferta, qualidade e custo. Essa abordagem esclarece as

premissas falaciosas da teoria contemporânea da localização, que reduz o

trabalho a uma mercadoria sem vida, oferecida a determinado preço. Desse

modo, a abordagem marxista revela de novo sua superioridade em relação àciência urbana convencional, por ter maior capacidade de explicar a mudança

da sociedade, especialmente o atual meio ambiente, altamente fluido, das

mudanças de localização.

A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 89

Storper e Walker gostam de deixar seus leitores com a impressão deque explicaram tudo. Isso se harmoniza com uma limitação ideológica daeconomia política marxista, ou seja, sua imitação do positivismo dominan te.Assim, reconhecem qu e outros fatores não-relacionados diretamentecom otrabalho também têm certa importância na s decisões de localização. Nã oobstante, somos convidados a colocar em segundo plano tais considerações,

em favor de um modelo causal de tomada de decisão qu e depende exclusi-

vamente de coerções tecnológicas e de limitações da força de trabalho.Assim, aqueles fatores que envolvem circulação ou marketing, organização

industrial, atratividades sócio-espaciais, competição internacional, coerções

financeiras e competição entre capitais - em suma, mudanças nas relações

sociais de produção - se tornam fenómenos de segunda ordem, menos im-

portantes que os dois fatores enfat izados po r Storper e Walker, pois sã ocompostos por termos vagos como "meio ambiente setorial", e "estrutura"

industrial. Em essência, art icularam um a teoria causal e empírica da locali-

zação, que é compatível com o pensamento convencional porque assevera

que un s poucos fatores escolhidos, que não têm qualquer relação dialética

entre si, determinam a localização de firmas em lugares específicos. De fato,compartilham com os analistas convencionais um a ênfase sobre, conside-

rações tecnológicas e uma ênfase vulgar sobre o efeito determiirtstico dasforças de produção (isto é, força de trabalho e tecnologia) à custa das re-lações de produção.

|ndependentemente de saber como os pequenos capitalistas de Storper

e Walker avaliam o valor humano dos trabalhadores e como procuram em-

pregar, no processo industrial, elementos "vulneráveis" da população, para

esses autores esses capitalistas ainda buscam maximizar seus lucros de ma-

neira racional, da mesma forma que os capitalistas do modelo neoclássico delocalização, isto é, controlando as forcas de produção de modo a minimizar

os custos. Quando surge alguma contradição em seus argumentos, ela

provém de fora daquilo que constitui, essencialmente, um processo racional

pelo qual o capital administra a luta de classes no próprio local de trabalho.

Em resumo, a análise de Storper e Walker complementa a obra convencio-nal, quando, no intuito de articular as contradições e conflitos entre as forças

de produção e as relações capitalistas de produção e reprodução, fornece

um a versão marxista da teoria do capital que não vai além de uma antropo-

logia marxista. Em contraste com sua abordagem, essa interseção não só é

contingente e anárquica em seus resultados, mas também as relações de pro-

dução e reprodução são organizadas hierárquica e globalmente, uma carac-

terística que Storper e Walker negligenciaram em favor de uma visão mais

limitada da estrutura social (1983:31-33, 1984:38-41). Concentrando-se, em

vez disso, no conflito de classes no local de trabalho, eles ignoram aspectos

da hegemonia capitalista que administram a reprodução do trabalho a partir

do sistema maior de organização sócio-espacial, isto é, deforè da fábrica.

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90MARK GOTTDIENER

Um aspecto da presente discussão, além de exorcizarda análisemarx is -

ta o flagelo do positivismo, é seu ataque à economia política por causa de

suas tendências reducionistas, especialmente sua colocação de f a to res

económicos no centro da análise sócio-espacial. No caso presente, torna-se

uma necessidade salientar a estrutura hierárquica das relações de produção

que sustém as novas relações de organização sócio-espacial. Assim, a abor-

dagem de Storper e Walker é limitada, devido à maneira pela qual concei-

tuam a relação de emprego. Em sua opinião, ela é estruturada pelo que são,

basicamente, relações francas, quase unidimensionais, entre trabalhadores e

capitalistas dentro das indústrias,das comunidades, dos mercados de t rabalho

e, especialmente, dentro do contexto do próprio trabalho - ou por aquilo

que denominam relações na produção, usando uma expressão cunhada por

uma moda recente da sociologia industrial. Isso negligencia aquelas forças

sociais, estruturadas hierarquicamente, que intermediam de fora a relação de

emprego. Tanto a demanda quanto a oferta de trabalho, para usar as mes-

ma s categorias em sua análise, são afetadas qualitativamente por relações de

produção e reprodução exógenas à relação part icular izada de emprego.

Em primeiro lugar, e com relação à oferta, Qsegmento de trabalho re-

lativamente bem pago e altamente especializado é.treinado profissionalmen-

te e comercializado progressivamente por sistemas nacionais de educação

e emprego, ao passo que os segmentos secundários, cada vez mais margi-

nalizados, têm tão pouca especialidade que as diferenças entre os próprios

trabalhadores quase não têm importância para a relativa expansão de sua

organização em sindicatos trabalhistas. Isso faz com que a oferta de trabalho

especializado dependa de um processo de reprodução que é seriado pela lo-

calização no curso do tempo, ao passo que a oferta de trabalho semi-especia-

lizado é regulada por condições gerais de marginalização do trabalho e em-

pobrecimento, como a necessidade de duas rendas familiares e a falência do

poder sindical. Tanto a comercialização nacional do trabalho quanto a mobi-

lidade geográfica em carreiras educacionais dão à força de trabalho treinada

uma base muito mais livre do que parecem sugerir Storper e Walker. Quan-

do isso afeta os cabeças-de-casal masculinos em nossa sociedade, mulheres e

crianças, que constituem o esteio da força de trabalho com baixos salários,

parecem segui-los de perto. Em resumo, o trabalho, tanto quanto o capital,

tbrnou-se mais móvel devido às relações sociais contemporâneas.

A disposição do trabalho de mudar-se, acompanhando todos os seg-

mentos do mercado, é amplamente demonstrada pelo rápido afluxo de pes-

soas para as áreas de explosão, como Califórnia e Texas. Sobesse fenómeno

existe associada umapredisposição da parte da maioria dos americanos a via-

jar de um lugar para outro, de sorte que os empregados em perspectiva não

estão tão presos ou tão dependentes de fontes particulares de oferta de força

de trabalho, específicas em matéria de localização, como eram antigamente.

Em segundo lugar, Storper e Walker ssquecem o principal aspecto ex-

A PR O D U ÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 91

plorável da força de trabalho com relação a outros insumos da produção,ou

seja, sua capacidade de absorver seus próprios custos de fornecimento.Não

há qualquer inventário no que se refere ao trabalho, apenas um exército de

reserva dos desempregados e a opção entre aceitar a barganha salarial ou ab-

sorver os custos do conflito. Nesse particular, quando o exército de reserva

cresce até atingir uma massa crítica, o trabalho atua como um perfeito com-

petidor - com a luta no âmago da relação de emprego sendo regulada pelas

características exógenas do nível de consciência de classe da sociedade e sua

predisposição a subsidiar a reprodução do trabalho. Assim, a oferta de traba-

lho pode ser orquestrada em seu favor somente se a força de trabalho assu-

mir f o rmas coletivas não-competitivas como sindicatos, organizações de em-

pregados e semelhantes. Atualmente, o nível de organização da oferta de

trabalho segundo os interesses dos trabalhadores se encontra num dos pon-

tos mais baixos da história dos Estados Unidos. Por conseguinte, os empre-

gados estão menos preocupados em administrar a oferta de trabalho através

de todos os meios, inclusive o espaço, do que sugerem Storper e Walker. De

fato, na história recente, a força de trabalho colarinho-branco em particular

- daqual depende a maioria dasnovas indústrias - mos|rou-se ansiosapor

absorver os custos das decisões capitalistas sobre localização. Isso é verdadei-

ro no que diz respeito a mudar-se para novas oportunidades de emprego,

quando são abertas em escala nacional, e a pagar os crescentes custos de

transporte com tempo e dinheiro. Quando consideramos a época atua), está

em ação em favor do trabalho uma espécie de lei inversa de Say. Ademanda

cria sua própria oferta, mesmo para empregos especializados. Basta-nos se-

guir o curso dos acontecimentos, depois do anúncio de ofertas de emprego,

desde postos académicos até bombeiros municipais, para f icarmos convenci-

dosda nova mobilidade do trabalho. Assim, enquanto a indústria depende de

fontes de trabalho, algumas condições contemporâneas que atuaram para re-

duzir o conflito de classes em geral, como o volume absoluto de perda de

emprego, tornaram o trabalho quase tão móvel quanto o capital - funcio-

nando assustado, como ele estava.

Em terceiro lugar, a relação de emprego contemporânea, que atua for-

temente em favor da classe capitalista, é beneficiada por sistemas hierárqui-

cosde dominação. Bastante eficientes, nos últimos anos, em atenuar o confli-

to de classes, eles incluem principalmente o papel do Estado e o da cultura

de massa. Na realidade, os três aspectos da organização social - economia,

política e cultura - foram todos amarrados na discussão do conflito de clas-

ses pela teoria do fordismo, especialmente sua escola francesa (Aglietta,

1978). Essa abordagem foi dividida em estágios, isto é, periodizada, para es-

tudar os aspectos variáveis do fordismo global (Lipietz, 1982) ou do atual,

chamado neofordismo (Aglietta, 1978; Hirsch, 1983). Segundo essa aborda-

gem, a relação de emprego pode ser especificada pela adoção, por parte, res-

pectivamente, da classe capitalista em particular e d? sociedade como um to-

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92 M A R K GOTTDIE N E R

do, de técnicas de produção em massa e da cultura do consumo em massa.

N a opinião de Davis, esses processos se manifestaram de maneira mais es-

pecífica nos dois propulsores que são a "automobilização" e a "mecanização"

do lar (1984:14), os quais afetaram a organização sócio-espacial através da

promoção de suburbanizaçãoe de mudança metropolitana desconcentrada.

Vista a partir dessa perspectiva, a relação entre capital e trabalho é regulada

menos pelas contradições das forças de produção ou dentro dos limites do

confronto direto entre capital e trabalho n o local de emprego, como afirma-vam Storper e Walker, do que pelos esforços conjuntos de um sistema de

prioridades combinado do setor público e do privado que integra a classe

trabalhadora à própria essência das necessidades do capital. Portanto, o for-

dismo representa uma mistura delicada de comportamentos políticos e cultu-

rais harmonizados hierarquicamente para adaptar-se à lógica do desenvolvi-

mento capitalista. Para Davis, essa confluência favoreceu as mudanças só-

cio-espaciais que são o tema dessa discussão, ou seja, a desconcentração.

Segundo Storper e Walker, a comunidade da classe trabalhadora é o sí-

tio da reproduçãode pools de trabalho singulares. Desse modo, a comunida-

de clássica promove a estabilidade das relações capitalista-trabalhador e o

entrelaçamento entre desenvolvimento industrial e social. Não obstante, sob

as forças da desconcentração metropolitana, das ideologias fordistas e da in-

tervenção do Estado no campo do consumo (ver capítulo 4), desapareceu ca-

da vez mais a comunidade de classe trabalhadora do passado, com ligações

firmes. Isso tornou o capital menos dependente desses mecanismos clássicos

de reprodução do trabalho e mais dependente do Estado. Além disso, o de-

saparecimento de tais comunidades foi ocorrendo pouco a pouco durante al-

gum tempo, bem antes da recente fase de desindustrialização e fechamentos

de fábricas, visto que está intimamente ligado ao processo de suburbanização

no s Estados Unidos. Não foi por acaso, portanto, que Storper e Walker esco-

lheram apoiar sua teoria da reprodução do trabalho na citação de fontes que

tendem a estudar mais o caso britânico do que o americano.

As principais implicações localizacionais da desconcentração metropo-

litana, da intervenção do Estado na reprodução do trabalho, e das estratégias

fordistas, que Storper e Walker deixam de considerar, envolvem, ao mesmo

tempo, liberar de localizações particularizadas a demanda de trabalho e re-

gular o desenvolvimento industrial menos pelo conflito de classes que pelas

contradições desenvolvidas no espaço, na verdade, globalmente, da própria

orquestração fordista. Como sugerem Lipietz (1982), Hirsch (1983) e Davis

(1984), as escolhas variáveis de localização pelo capitalismo e o desdobra-

mento sócio-espacial global e completo da produção são ditados pelas reali-

dades contraditórias da lógica fordista e sua crise atual, um problema que

deve ser ignorado aqui. Basta dizer que a visão limitada e não-hierárquica da

luta de classes, conceituada pela teoria da localização segundo o trabalho,

requer uma revisão a partir da perspectiva maior, sugerida pela visão mais

A P R O D U Ç Ã O S O C I A L D O E S PA Ç O U R B A N O 93

global citada acima. Isso leva em conta tanto as contradições políticas e cul-

turais quanto as económicas do processo capitalista tardio de acumulação

global e de oferta do trabalho na determinação das necessidades variáveis da

indústria em matéria de localização. Tanto a desconcentração metropolitana

quanto a produção social de espaço são entendidas com maior clareza a par-

tir da última perspectiva do que a partir das abordagens por conflito de clas-

ses, as quais limitam ao próprio local de trabalhoa administraçãoda luta en -

tre capital e trabalho. Consequentemente, a variante da economia política

marxista que enfoca a luta de classes para explicar as nudanças na forma es-

pacial, como a discutimos nos dois subcapítulos anteriores, é forçada causal-

mente demais, e precisamos buscar em outro lugar um a abordagem mais

dialética. Dentro dos limites da economia política marxista, tal necessidade é

satisfeita pela teoria da acumulaçãode capital em meios ambientes urbanos.

T E O R I A D A A C U M U L A Ç Ã O D E C A P IT A L

Todos os analistas marxistas concordariam em que o estudo do capita-

lismo requer uma análise do processo de acumulação(Edel, 1981; Hill, 1977;

Harvey, 1975a). Segundo Hill, por exemplo:

A acumulação de capital, a produção de mais-valia, é a força que impulsiona a sociedade

capitalista. Por sua própria natureza, a acumulação de capital necessita da expansão dos meios

de produção, da expansão do tamanho da força de trabalho assalariada, da expansão da ativi-

dade de circulação na medida em que mais produtos se tornam mercadorias e da expansão do

campo de controle da classe capitalista (1977:41).

A partir dessa perspectiva, os teóricos da acumulação de capital expli-

cam que os processos de desenvolvimento da cidade ou urbanização são a

manifestação espacial do processo de acumulação. Como Harvey observa:

"Urbanismo implica a concentração de excedente (seja como for designado)

em alguma versão da cidade (seja ela um endave murado ou as metrópoles

dispersas dos dias atuais)" (1973:237). Ou, como sugere Hill: "Numa socie-

dade capitalista, a urbanização e a estrutura e funcionamento das cidades

estão radicados na produção, reprodução, circulação e organização em toda

parte do processo de acumulação de capital" (1977:41).

A perspectiva segundo a acumulação tem em vista um entendimento

mais global do processo de desenvolvimento da sociedade do que a aborda-

gem por conflito de classes. Evidentemente, os dois aspectos estão relaciona-

dos entre si e, como observa Edel, a qualquer época "a reprodução das re-

lações capitalistas e a acumulação de capital podem ser interrompidas ou ser

afetadas pela luta permanente entre capitalistas e a classe trabalhadora"

(1981:37). Na prática, os acumulacionistas de capital ressaltam os aspectos

estruturais desse processo e os relacionam com o desenvolvimento urbano. A

94 MARK GOTTDIENER A P RODUÇÃ O S OCIAL DO ES P AÇO URB ANO < • <

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maior ia do s analistas invocam a palavra "capitalista" se m especificar exata-mente a que se assemelha o processo de acumulação, desdo brado espacial-mente. Todavia, os melhores exemplos dessa abordagem localizam a génesedos fenómenos urbanos dentro do próprio processo de desenvolvimento,aomostrarem como a acumulação de capital se manifesta no espaço e como éafetada po r esse mesmo desenvolvimento. Isso se assemelha bastante a umateoria dialética das relações sócio-espaciais, o enfoque central deste livro;

consequentemente, su a articulação exige nossa atenção m inuciosa. Ent re to -do s os analistas que trabalham nesse veio, David Harvey e Allen J. Sco tt sedestacam em suas tentativas de apreender a natureza inter-relacionada do

desenvolvimento capitalista e da forma espacial. Consideremos suas aborda-gens do espaço.

O Papel do Capital Financeiro e o Estado Intervencionista

A abordagem do ambiente construído de David Harvey acha-se espa-lhada por diversos artigos e um livro (1973) que aplicam o m étodo m arxista àanálise urbana. M esmo seu artigoxíe 1981, que oferece uma estrutura e che-ga bem perto de uma exposição completa de sua perspectiva, representa mais

um guia para um a análise urbana ulterior do que uma amarração de seu ma-terial anterior. Po r isso, qualquer avaliação que se faça de Harvey requermais uma leitura de todos os seus artigos do que de seu livro mais recente(1983), que, em vez de um estudo de fenómenos urbanos, constitui antes um aanálise geral do capitalismo.

Harvey parte do mesmo ponto qu e Gordon. Pode-se explicar a formaurbana num sentido marxista se focalizarmos os dois propulsores da socieda-

de : a acumulação de capital e a luta de classes (1973). Contudo, logo aban-donamos argumentos simplificados para enfrentar a total complexidade deum a tentativa de integrar fatores institucionais a fatores económicos na aná-lise do desenvolvimento capitalista. Harvey inicia suas explorações pela apli-cação de conceitos marxistas clássicos ao desenvolvimento urbano, comomais-valia, superprodução, a queda da taxa de lucro e a crise de acumulação.A esses acrescenta argumentos em voga qu e explicam o surgimento do key-nesianismo ou o Estado intervencionista e a investida hegemónica do capitalfinanceiro - todos aspectos do capitalismo tardio não tratados por Marx.No

curso desses artigos, são desenvolvidas cinco argumentações básicas de eco-nomia política.

Em primei ro lugar, Harvey especifica o papel funcional da cidade - o

processo de acumulação - e as consequências desse papel para a estruturade classes da sociedade. Define a cidade como um nó de interseção na eco-nomia do espaço, como um ambiente construído que surge da mobilização,extração e concentração geográfica de quantidades significativas de mais-va-

lia (1973:246). O capitalismo depende, primeiramente, da concent ração e,depois, da circulação deste sobreproduto. A cidade é produzida pela padro-nização espacial desses processos, e o papel que a forma urbana desempenhaneles se deve a possibilidades sociais, económicas, tecnológicas e institucio-nais qu e regem a disposição da mais-valia concentrada d entro dela. Um acombinação diferente dessas possibilidades, portanto, resultaria num papeldiferente para a cidade como nó na economia de espaço. Desse mo do Har-vey explica a diferenciação funcional que serve de base à abordagem po r sis-temas de cidades.

Tanto quanto qualquer outro geógrafo m arxista, Harvey argu m entaque a fo rma da cidade depende, para su a sobrevivência, de um funcionamen-to adequado do sistema social organizado espacialmente. Como ele afirma:

Os fluxos de bens e serviços através de toda essa economia de espaço são uma ex-pressão tangível daqu ele processo que circula a mais-valia a fim de concentrar-maior vo lumedela. Essa concepção da economia de espaço é mais instru tiva que a convencional existente nageografia e ciência regional, a qual repousa sobre a noção de Adam Smi th de que tudo pode

se r explicado por uma demanda insaciável de consumo e ganhos mútuos do comércio. É m a i srealista, portanto, plasmar uma economia de espa»>-s urbano na forma de um dispositivo cria-dor, extrator e concentrador de mais-valia (1973:238).

Usando essa conceituação, e seguindo Lefebvre (1970, 1972), Harveydá início a uma teoria da produção de espaço qu e cobre grande parte domesmo terreno coberto pela geografia convencional, m as serve também co -m o alternativa ma rxista para ela. Fornece uma explicação para o surgime ntoda cidade a partir de uma planície agrícola indiferenciada à maneira de VonThunen. Depois, dá uma explicação pa ra a padronização espacial variável dacidade, ta l como é especificada po r mudanças qualitativasna formação social,desde o feudalismo até a metrópole moderna. No entanto, sua análise é mui-to ma is específica do que a fornecida pela perspectiva segundo o conflito dotrabalho, e está presa m ais diretam ente a seu modelo de cidade enquanto nóde acumulação do sistema de ex tração e circulação de ma is-valia.

Em particular, Harvey demonstra como o esforço para acumular capitalatravés da realização de mais-valia e de sua confrontação com o trabalho na lu-ta de classes criou tanto um a estrutura social complexa co m frações dentro daclasse capitalista qu anto um relacionam ento variável entre trabalho, capitalis-tas e o Estado. Em dois artigos, e tratando mais especificamente esse tópico,

ele volta sua atenção para as mudanças qu e ocorreram em virtude da inter-venção do capital na sociedade devido à crise da Grande Depressão do s anos30, especialmente os efeitos da s medidas transformacionais keynesianas(1975b, 1976). Segundo Harvey, as me smas características que emergem danecessidade de estimular a d em anda efetiva e evitar o desemprego m aciço pas-sa m a funcionar como um meio de produzir desconcentração urbana e o sur-

06 MARK GOTTDIENER A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 97

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g i m e n t o d a f o r n i a m e t r o p o l i t a n a r e g i o n a l . Esse a r g u m e n t o fun c io n a l i s t a se rá

a va l ia do a d i a n t e , n a m e d i d a e m q u e d i f e r e d a t e o r i a fo rd i s t a d iscu t ida a c i m a .

N um art igo subsequente (1976), H a r v e y vol ta su a a t enção p ara e sp ec i -

f i c a r a m a n e i r a p e la q u a l o c o r r e a a c u m u l a ç ã o d e cap i ta l no espaço. Ele e

Sco t t são os do i s ún i co s u rban i s t as , nos E s t ados Unidos , qu e assu m i ram essa

p e q u e n a t a r e f a. Usando as c a t egor i as da e conomia p o l í t i c a c láss i ca , Harvey

dist ingue entre t rês condições sob as qu ai s o s cap i t a l i s t as realizam mais-valia

n o espaço; e las e n v o lv e m f o r m a s de r end imento , ju ros e lu c ro . Vár i as f r açõesd e n t r o da c lasse cap i ta l is ta a t u a m m e d i a n t e a a p r o p r i a ç ã o d e a l g u m a d e l a s

ou a combinação da s três fo rmas . Po r consegu in t e , Harvey com eça a d i scu t i r

o p a p e l d a a c u m u l a ç ã o d e c a p i t a l n o espaço p e la r e je i ção de u ma v i são mo-

nolí tica d a classe capi tal ista. Ta l q u a l i f ic a ç ã o to r n a - s e i m p o r t a n t e p o r q u e re -

vela q u e , se g u n d o p a r e c e , h á n o m í n i m o três f r ações de c ap i t a l qu e a tu am no

a m b i e n t e c o n s t r u íd o , d e a c o r d o c o m a s v á r ia s f o r m a s de r ea l i zar mai s- va l i a .

A p r ime i ra f r ação de cap i t a l concen t ra- se na r enda e se ap rop r i a de la

ou d i r e t a m e n t e , c o m o n o c a s o d o s se n h o r e s d e t e r r a , o u i n d i r e t a m e n t e , c o m o

i nd ica m i n t e re sses f i nan ce i ros qu e a tu am a t ravés da e sp ecu lação imobi l i á r i a .

A segu nda f ração de cap i t a l , bu sca ao m esm o t emp o ju ros e lu c ro a t r avés da

construção - c o n t r i b u i n d o D i r e t a m e n t e p ara o a m b i e n t e c o n s t r u íd o ou en-

car regando- se el a m e s m a d * * cons t ru ção ou f inanc iando a obra de o u t r o s .

Existe u m a tercei ra fração d e capi tal q u e a t u a n o interesse d a classe c o m o

um t odo . Harvey denomina- a "cap i t a l e m geral", pois e la cons ide ra o a m -

bien te cons t ru ído um loca l p ara a ap rop r i ação ef e t iva d e mais- va l i a , qu e fa-

vorece a acu mu lação de capital. Esta úl t ima f ração é intervencionista por na-

t u reza , e a t u o u , d e s de a década de 30 p e lo m e n o s , m a i s d i r e t a m e n t e a t r a v é s

d e p r o g r a m a s a d m i n i s t r a d o s e s u s t e n t a d o s p e lo E s t a d o q u e t e n t a m g a r a n t i r a

sobrevivência da classe cap i t a l i s t a .

E ssa conce i t u ação esc la re ce não só os avanços fei tos p o r H a r v e y ,

m as t am bém a lgu m as das limi t ações de su a an á l i se . D o lado p os i t ivo , esses

art igos t en t am exp l ic ar a p rodu ção da f o r m a u r b a n a p e l o p r oc e ss o d e a c u m u -

lação de cap i t a l e, depois, esp ec i f i c a r esse processo n o espaço. D o l a d o

negat ivo, dois pontos se p odem obse rvar nessa ép oca . P r ime i ro , as frações d e

cap i ta l n o processo d e a c u m u l a ç ã o não co r respondem d i r e t a m e n t e ao s

c o m p o n e n t e s d e cap i t a l i den t i f i c ados como renda , ju ros e lu c ro . Os cap i t a l i s -

t as p odem t rabalhar c om algum deles o u c o m a l g u m a combinação desses

e lementos p ara r ea l i zar mai s- va l i a no esp aço . Contu do , as at ividades do s

capi tal istas p odem se r d iv id idas em f rações sep aradas de c ap i t a l , qu e Harv ey

identif ica pelos termos: interesse corp ora t i vo , f inance i ro e fu nd iá r i o . N ãoes tá mu i to c l a ra , na an á l ise de Harv ey, a d i st i nção en t r e as f r ações de c ap i t a l

const i tuídas como p ar t e s da c lasse c a p i t a l i s t a e as f o r m a s de m ai s- va l ia cons-

t i tuídas c o m o r e n d a , ju r o s e lu c ro . A lém d i sso , o s m a r x i s t a s di v er g e m q u a n t o

a cons ide rá -las f r ações r ea lm ent e d i s t i n t as (ve r c ap í tu lo 5) . Se , como su ben-

t e n d e Harvey, devem se r con s ide radas d i s t i n t as , e l e não nos o fe re ce u m a

an á l i se d e classe qu e possa d e f e n d e r ta l imp l i c ação . C o n s e q u e n t e m e n t e ,

H a r v e y t i n h a necessidade de u m m e i o m a i s e s t r u t u r a l de esp ec i f i c a r o p r o -

cesso de a c u m u l a ç ã o . Isso fo i r ea l i zado mai s t a rde c o m a i n t r o d u ç ã o da ideiade c i r c u i t o s de capi tal , criada po r Lefebvre.

Em segu ndo lu ga r , Harve y conce i t u a os asp ec tos i n t e rve nc ion i s t as da

classe ca p i ta l i s t a c o m o "capital e m ge ra l" . Isso significa q u e o E stado a tu a

c o m o a g e n t e da classe capitalista, um a visão consentânea c o m o marxi smo

o r todoxo . Contu do , r e cen t em ente , fo i bené f ico cons ide rar qu e o E s t ado de t i -n ha a q u i l o qu e Pou lan tzas (1973) d e r o m i n a " a u t o n o m i a r e la t iv a " , o u q u e e r a

" a u t ó n o m o " c o n f o r m e a obra dos neoweberianos (Saunders, 1981), e perse-

gu ia t a n t o i n t e re sses p o l í t i cos qu an to e conómicos nem semp re cap i t a l i s t as

p o r n a t u r e z a . Essa concepção do E stado a t r ibu i maiores g rau s d e l iberdade

às ações polí t icas d o q u e c faz a p e rspec t i va fu nc ion a l i s t a ado t ada p or H a r -

vey. Isso é ve rdad e i ro , ap esar do fa to d e q u e o E stado t ambém p ode ser vi-

su a l iza do t a n t o n o s e n t i d o q u e e l e p r e t e n d e q u a n t o n u m m o d o m a i s "autó-

nomo" de ação .

H a r v e y passa, então, a u m t e r c e i ro tóp i co : cons t ru i r u m a teoria da re-

lação entre o Estado e o capital rçc que se refere à intervenção no espaço.

Su a aná l i se i n t egra o conf l i t o d e classes à r e lação con t rad i tór i a en t r e o Esta-

do e a sociedade c ivi l . Observa que. o t rabalho "usa o ambien t e cons t ru ídoc o m o uma f o r m a de consumo e um modo para a sua própria reprodução".

Esse e n f o q u e do uso da f o r m a u r b a n a pelo t r aba lho t o rnar - se - á mai s imp or -

t a n t e ad ian t e , qu ando cons ide rarmos a abordagem d e Castells. Contudo, é

essencial também para a análise d e Harvey, pois si tua a l u t a de classes den t ro

de questões associadas c om ar ran jos vivos, a lém daqu e les p roblemas qu e

surgem no local de t r aba lho . Como e le enfat iza: "O t rabalho, ao procurar

proteger e realçar seu padrão de vida , empenha-se n u m a série de batalhas,

no lu gar onde v ive , con t ra vá r i os p roblemas r e lac ionados c o m a criação, a

admin i s t r ação e o uso do ambiente construído" (1976:268). Tal perspectiva

q u a n t o à imp or tânc i a d a qu al idade d a vida co t i d i ana para os trabalhadores

t a m b é m é t r a t ada p e la teoria fordista, como vimos, e é esp ec i a lment e f e cu n-

da para um entendimento da política urbana. Para Harvey e Castells, essa lu-ta se explica, t eo r i c amente , como um des locamento do c o n f l i t o de classes pa -

ra a c o m u n i d a d e l o ca l. Como a r g u m e n t a r e i n o cap í tu lo 5, essa é u m a visão

limitada do confl i to sócio-espacial e u m a redução d a polí t ica local a u m a v a -

r i an t e neomarxis ta do economicismo.

O q u a r t o aspecto d a obra d e Harvey t r a t a d a necessidade d e explicar as

m u d a n ç a s n a f o r m a u r b a n a . S e u a r g u m e n t o p a r a a t r a n s f o r m a ç ã o d o p a d r ã o

u r b a n o , d a c idade p ara a região met rop ol i t ana em expansão, focaliza as in-

terconexões entre a s frações d e capi tal e a l u ta d e classes. A f i r m a q u e o a m -

bien te construído é t r ansformado, e ssenc i a lment e , pelo cap i t a l i n t e rvenc io-

nista q u e a g e a t ravés d o gove rno . Isso ocor re p orqu e o s a p r o p r i a d o r e s d e

r e n d a e os construtores que l rabalham por lucro não desf ru t am, necessária-

98 MARKGOTTD1ENEKA PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO w

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mente , de uma confluência de interesses no tocante à maneira como cada um

deveria usar o excedente social. Além disso, o trabalho no lugar de residêncialuta co m essas frações distintas de capital pela qualidade de vida na medida

em que se propõem esquemas de desenvolvimento. Portanto, Harvey susten-

ta que "o capital em geral nã o pode fazer com que o resultado da s lutas em

torno do ambiente construído seja determinado apenas pelas forcas relativas

de trabalho, pelos apropriadores de renda e pelo segmento da construção"(1976:272). O capital deve intervir, e ele usualmenteo faz através da ação do

Estado.

Harvey indica vários aspectos dessa característica ntervencionista:a socialização da força de trabalho mediante a imposição de disciplina de

trabalho, a administração do consumo colelivo como parte de medidaskeynesianas de crise para evitar um a recorrência da depressão, e a m u d ança

fundamenta l para a posse de casa própria como fo rma predominante de

residência do trabalhador. Como no s argumentosfordistas, essas três respos-tas dadas pelo capital convergiram, no decurso do s anos, para a produção deum a complexa diferenciação interna entre governo, negócios e trabalho,característica da sociedade hodierna; todavia, Harvey tem uma versão muito

mais funcionalista d\;ssa abordagem. Nesse ponto da discussão de sua obra,pode-se sublinhar sua limitação básica. Exatamente como fazem outros

economistas políticos marxistas, Harvey atribui demasiada racionalidade

tanto ao processo de acumulação de capital quanto, mais significativamente,

à articulação Estado-capital. Em particular, a abstração "capital em geral"

como meio escolhido de especificar a natureza da intervenção do Estadoconduz Harvey a uma senda terminalmente funcionalista. Talvez seu funcio-

nalismo endémico se esclareça melhor quando se discutir a natureza do

Estado intervencionista como controle social, especialmente o apoio à

aquisição da casa própria por particulares.Segundo Harvey, a crise fiscal urbana é apenas um aspecto de um pa-

drão geral de financiamento de dívida, assumido pelo sistema capitalista, so-

bretudo depois da Segunda Guerra Mundial, e que coincide com o surgimen-to do capital financeiro como fração hegemónica de capital. Ele salienta um

caso especial desse processo, o crescimento fenomenal da posse de casa pró-pria por particulares, sinal de mais uma maneira pela qual "o capital em ge-

ral" interveio na sociedade para proteger da luta de classes o processo de

acumulação. A casa térrea, para uma família, é talvez o único elemento pri-mordial de suburbanização e, por conseguinte, o principal constituinte da

dispersão regional de população. Emergiu contra osdesejos do que costuma-va ser uma fração significativa de capital, os donos de terra co m investimen-

to s em propriedades geradorasde renda dentro da cidade central.Harvey explica a tendência à posse de casa própria por particulares em

termos de controle social. Ele observa que, numsistema capitalista em que a

classe trabalhadora dispõe apenas de apartamentos ou casas alugados, um a

luta be m desenvolvida entre inquilinos e senhorios pode potencialmenteco -

locar em questão todo o sistema da propriedade privada - devido à relativafacilidade com que a habitação pode ser expropriada no princípio por seusmoradores. Estendendo a posse de casa própria a um segmento da classetrabalhadora, a sujeição desse segmento ao sistema de propriedade privadapode ser obtida de maneira fundamental. Nesse sentido, tal extensão é "fun-cionar' para a sobrevivência do capitalismo. Além do mais, a indução de um

segmento da classe trabalhadora à posse de propriedade divide os trabalha-dores em duas frações: aqt.eles que podem pagar o custo de uma casa e

aqueles que não o podem. Como Harvey observa: "Isso proporciona à classe

capitalista uma alavanca ideológica útil, para usar contra a propriedade pú -

blica e exigências de nacionalização, porque é fácil fazer que essas propostas

apareçam como se o intuito fosse tirar dos trabalhadores as casas que pos-suíam" (1976:272). Embora tais ideias sejam atraentes, explicam mal o

fenómeno de políticas habitacionais do Estado; precisamos procurar outrosfatores. Além disso, a explicação da suburbanização pelo controle social é es-

sencialmente frágil, como veremos no capítulo 7.

O quinto e último aspecto da obra de Harvey focaliza as mudanças in-

fra-estruturais no capitalismo contemporâneo qu e favorecem a circulação de

capital e ajudam sua realização no espaço. Usando Baltimore«um estudo de1975, por exemplo, Harvey detalha a maneira precisa pela qual o sistemacomplexo, altamente especializado, de circulação de capital vincula mudanças

no padrão espacial urbano ao processo de investimento financeiro (vertambém Hula, 1980). Tal sistema é diferenciado em várias instituições, inclu-

sive associações de poupança e empréstimo, bancos comerciais, cooperativas

de crédito, companhias de seguro de vida, fundos de pensão, trustes de inves-timento imobiliário e casas de corretagem financeira. Cada umadelas operaco m objetivos diferentes em mente, e cada um a delas tem um impacto sobreaspectos diferentes da indústria da construção. Harvey demonstra que, em

Baltimore, o crescimento suburbano e a decadência da cidade central esta-vam ligados diretamente ao s incentivos e à relativa facilidade de f inancia-

mento oferecida por esse sistema. A canalização de recursos para a região deBaltimore tinha uma manifestação geográfica diferencial que favoreceu a ex-

pansão regional, mastambém engendrou a desigualdade dedesenvolvimento,

co m suas consequentes injustiças. Harvey conclui:

Há abundante evidência de que a superestrutura financeira desempenha um papel im-

portante na organização dos mercados locais de residência e que muitos dos "problemas urba-

nos" com que estamos familiarizados - segregação racial e de classe, abandono de moradias,

deterioração da vizinhança, mudança especulativa, injustiças fiscais entre cidades e subúrbios,

desigualdade de acesso aos serviços (como os de educação e saúde) - estão de algum modo

vinculados à diferenciação residencial em cidades que, por sua vez, está ligada à maneira pela

qual o investimento é canalizado para mercados locais (1957b:140).

10 0 MARK GOTTDIENEK A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 10 1

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Por esse motivo, Harvey assinala que as contradições experimentadas

no ambiente construído são reproduzidas po r causa do s passos dados para

converter o capital financeiro no "elo mediador entre o processo de urbani-

zação (em todos os seus aspectos, inclusive a edificação de ambientes cons-

truídos e movimentos sociais urbanos) e as necessidades ditadas pela dinâmi-

ca subjacente do capitalismo nos Estados Unidos" (1957a:40). No próximo

tópico, veremos que Allen Scott explica os mesmos resultados usando um

modelo diferente, neo-ricardiano.

Em resumo, a obra de David Harvey apresenta cinco argumentos prin-cipais. Ele pretendeu explicar a produção do ambiente construído mediante

um quadro detalhado dos modos pelos quais o sistema capitalista trabalha e

é transformado em reação a suas crises. Vincula a luta de classes a aspectos

mais fundamentais do desejo que tem o capital de socializar a força de traba-

lho industrial,de administrar o consumo coletivo e de buscar medidas inter-

vencionistas keynesianas. Finalmente, assinala que esses esforços resultaram

numa formação social dominada pelo capital financeiro - com a sociedade

dependendo do funcionamento adequado de uma complexa estrutura m o-

netária que mantém o capital circulando na forma de investimentos na cida-

de. Ao final, f i arvey chega à certeza de que a natureza do espaço urbano fo i

alterada. Originariamente um mecanismo de concentração e apropriação de

mais-valia através da produção industrial, o meio ambiente urbano tornou-seum lugar criado para estimular o consumo e manter um alto nível de deman-

da efetiva dentro de um quadro sobrecarregado de dívidas. Em conformida-

de co m argumentos fordistas, ele afirma:

O destino da cidade americana agora é estimular o consumo. A ênfase sobre dissemi-

nação, modos individualizados de consumo, ocupação por proprietários, e coisas semelhantesdeve ser interpretada como uma das várias respostas aos problemas de subconsumo da décadade 30(outra são as despesas militares). E t nesses termos, t ambém, quepodemos interpretar o

modo pelo qual a superestrutura financeira, ela própria criada em reação às condições de crise

nosanos 30, mediou o fluxo de investimento para a infra-estrutura urbana, inclusive moradias;

que suas intermediações serviram para transformar cidades outrora ajustadas à função de "ofi-

cinas da sociedade industrial" em cidades para o estímulo artificial de consumo (1975a: 139).

Podemos acompanhar, dessa maneira, a mudança dramática na ênfase

de Harvey desde quando desenvolveu suas ideias, a começar pela publicação

de seu trabalho de 1973. De motor do crescimento, a cidade tornou-se um

espaço organizado para o consumo e investimento de capital De um ponto

de vista que encara a cidade como um nó concentrado de produção, muda-

mos para o espaço mais descentralizado do ambiente construído que funciona

principalmente comoo sítio de circulação de capital mais do que de produção

(para melhor análise, vez Scott adiante). Finalmente, a partir de uma visão

da sociedade em que a classe capitalista intervém monoliticamente através do

Estado para evitar crises de subconsumo, vemos uma fração de capital, o capi-

tal financeiro, alcançar a hegemonia. Assim, o processo de investimento de

capital torna-se o foco central na produção do ambienteconstruído.

Essas mudanças representam mais um refinamento da abordagem de

Harvey através de seus vários artigos do que uma transformação de ideias.

Contudo, através delas ele parece ter abandonado o papel que a produção de

mais-valia desempenhava no processo de acumulação de capital, um papel

que a maioria do s marxistas considera fundamental para a análise. Além do

mais, dando ares de ignorar a produção, Harvey pode desenvolver apenas

um a versão atenuada do conflito de classes, que constitui outro processo-chave para os marxistas. O problema básico de sua análise é a falta de co-

nexão entre o processo focal na produção do ambiente construído, que ele

identificou à acumulação de capital, e a formação social mais ampla, que

cumpre também outras funções. Assim, sua teoria da relação entre capitai e

Estado deixa muito a desejar (ver a discussão sobre Castells no capítulo 4).

Seguramente, embora a análise do conflito de classes po r Harvey pareça

mais sofisticada do que a teoria do controle social, po r exemplo, ela requer

não obstante maior ampliação, especialmente co m relação a conflitos entre

frações distintas da estrutura de classe e o papel do Estado no espaço. Como

observou Mingione (1981) recentemente sobre a abordagem de Harvey,sua

obra enfatiza demais o ambiente construído - negligenciando a explicação

dos padrões espaciais em geral e como resultado do modo complexo de pro-dução sob as relações capitalistas tardias. Em resumo, Harvey especificou,

com considerável detalhe, a relação entre processos capitalistas de desenvol-

vimento e organização sócio-espacial; todavia, cada um dos tópicos que ele

estuda exige muitíssimo mais trabalho, se a análise marxista quiser superar

suas limitações funcionalistas, positivistas.

Na tentativa de recuperar uma visão mais teórica da conexão entre

espaço e modo de produção, Harvey (1981), abeberando-se em seus estudos

anteriores, propôs um quadro geral para análise, que integra osargumen-

to s acima citados. Em sua opinião, o foco centrai da análise urbana é a

produção do ambiente construído e, como vimos, esse processo se reduz

àquele que envolve a dinâmica do investimento de capital. Então, a tarefa

de Harvey é explicar, com algum detalhe, a conexão entre esse processoe a acumulação de capital para a sociedade como um todo. Ele consegue

explicar essa relação, ao abandonar seu argumento anterior de rendimen-

tos-do-capital (ver acima) e identificar três circuitos distintos de acumulação

de capital. O circuito primário, baseado na análise marxista do capital, se

refere à organização do próprio processo produtivo, como a aplicação de

maquinaria e trabalho assalariado para produzir bens em troca de lucro. O

circuito secundário - Harvey deriva essa distinção de Lefebvre (1970), que

veremos no capítulo seguinte - implica investimento noambiente construído

para produção, ou ativo fixo, e bens de consumo, ou fundo de consumo

(1981:96). Finalmente, o circuito terciário do modelo de Harvey se refere

m «nUHBJMBDVÍAK*» «mBTIlUIU•»

10 2 MARK GOTTD1ENERA PRODUÇÃO SOCIAL DO ESP AÇO i,Y«H Vc»

103

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ao investimento em ciência e tecnologia e a "u ma ampla gama de despesas

sociais relacionadas, principalmente, com os processos de reprodução da

força de trabalho" (1981:97).

A questão im ediata que tal esquema levantou para os m arxistas é: sen-

do todo valor criado pela fo rça de trabalho através do processo de produção,

como podem o circuito secundário e o terciário ser considerados um meio deos capitalistas adquirirem mais-valia? De que modo existe um incentivo a in-

vestir em outros circuitos de capital, ou, antes, qual é o lugar desses circuitos

na criação de mais-valia? Harvey tenta responder a essa questão mediante adinamização da produção de capital, isto é, considerando a atuação do modo

de produção po r vários períodos de tempo. Dessa maneira, o investimento nocircuito secundário realça a capacidade do capital de produzir mais mediante

a instalação de mais ativos fixos e também mediante a estimulação do con-

sumo através da produção de mercadorias para a sociedade consumidora. O

investimento no circuito terciário resulta também na criação, no curso do

tempo, de m aior volume de m ais-valia, tanto porque a perícia tecnológica é

uma força de produção que amplia o poder do trabalho qua nto porque o in-

vestimento em educação e saúde melhora a qualidade intrínseca da força de

traba'ho. Contudo, como iremos ver, é injustificada a fé funcionalista de

Harvey na natureza p rodutiva da articulação do capital com o espaço.

A tarefa seguinte do quadro de Harvey é explicar a conexão entre a

produção do ambiente construído e o processo de acumulaçãode capital. Se-

guindo Marx, Harvey observa que a competição entre capitalistas resulta em

superacumulação: "Capital em demasia é produzido no total com relação às

oportunidades de empregar esse capital" (1981:94). Uma solução temporária

para esse problema é uma mudança do fluxo de capital para o utros circuitos.

Quando isso é feito comrelação ao circuito secundário, temos a produção do

ambiente construído. Contudo, como Harvey está pronto a salientar, apesar

dos benefícios para períodos futuros de produção, a tendência será a de oscapitalistas individuais subinvestirem no ambiente construído. Conseqiiente-

mente, há uma necessidade de duas ajudas estruturais para garan tir o inves-

timento de capital superacumulado no circuito secundário. De um lado, o ca-

pital requer uma rede financeira e mercado que funcionem livremente(1975b). De outro, o capital exige um Estado desejoso de fornecer o suporte

pára projetos de construção a longo prazo (1975a). Tanto a rede financeira

quanto a intervenção do Estado tornam-se os processos mediadores para a

relação de a cumulação entre os dois primeiros circuitos de capital.

De uma maneira ba stante interessante, o Estado nesse quadro é consi-

derado um coordenador de investimento entre os circuitos de capital. Contu-

do, sabemos, pelos escritos anterio res de Harvey, que, com relação ao am-

biente construído, deveria caber ao Estado mais do que isso, e adiante trata-

remos dessa impropriedade. De fato, nesse ponto atingimos os limites de sua

teoria dos fluxos de capital. Segundo Harvey, à medida que a superacumu-

lação é canalizada para o circuito secundário, alcança-se um sistema-limite e

tais investimentos já não dão lucro. Harvey explica esse fenómeno recorren-do a uma teoria da desvalorização de capital. De fato, toda a sua abordagem

da relação entre capital e espaço apóia-se nesse c onceito. Ele afirma que, no

momento em que o investimen to no circuito secundár io atinge seu limite, "o

valor de troca investido no ambiente construído tem de ser depreciado, dimi-

nuído, ou mesmo totalm ente perdido" (1981:106). Contudo, não elucida por

que o investimento no circuito secundário atinge a saturação, um ponto de

desacordo, como veremos no capítulo 5, explicando apenas que o trabalho

morto representado pelo ambiente construído deve ser varrido periodica-

mente a fim de que ocorram novos investimentos. Consequentemente, o ve-

lho ambiente construído torna-se uma barreira que só pode ser superada

através de desvalorização periódica. Assim, o que se pode considerar o pro-

duto de consequências sócio-espaciais não-a ntecipa das (ver Scott, adiante),

isto é, o desenvolvimento desigual de espaço, torn a-se pa ra Harvey uma teo-ria funcionalista da desvalorização.

Na abordagem d e Harvey, o mo nta nte periódico de investimento e asubsequente desvalorização do ambiente construído estão indicados, clara-

mente, nos ritmos cíclicos do processo de investim ento de capital no espaço.

Os ciclos híduem, especialmente, as ondas Kondratieff ou ondas de 50 anos

de comp rimento e movime ntos mais curtos, de 15 a 25 anos. Servem para

documentar a natureza cíclica de crises periódicas do capitalismo como um

todo. Portanto, a dinâm ica por trás dos ciclos de inves timento do capitalismo

explica os estágios na construção do a mbiente construído, e Harvey apoia es-

sa asserção com imp ressionante evidência empírica da Inglaterra e dos Esta-

dos Unidos, reunida por Gottlieb (1976). Todavia, a conclusão lógica de sua

abordagem é que o desenvo lvimento espacial desigual e a desvalorização pe-

riódica do ambiente construído são "funcionais" p ara futuro investimento de

capital. Para cada "zona de crescimento" que representa um a área deatração de investime nto, existe um a "zona de transição", onde o capital fixo é

desvalorizado antes que especuladores tirem vantagem do redesenvolvimen-

to. Como indica Harvey:

O capital desvalorizado em espaço funciona como um bem livre e estimula a renovação

do investimento; sob o capitalismo existe, então, uma luta perpétua em que o capital constróiuma paisagem física adequada à sua própria condição num momen to particular no tempo, so-

mente para ter de destruí-la, comumente no curso de uma crise, num ponto subsequente notempo. O fluxo e o refluxo temporários de investimento no ambiente construído só podem ser

entendidos em termos de tal processo (1981:114).

Mais importante ainda, e de acordo com a teoria de Harvey, esse pro-

cesso ocorre p or causa da saturação de investimento na atividade de circuito

secundário, uma visão que não compartilho e que, subsequentemente, coloca

em questão toda a sua teoria do capital.

10 4 MARK GOTTD1ENERA PR O D UÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 105

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Uma discussãodas limitações da teoria da acumulação estabelecida por

Harvey ajudará a ordenar os problemas que ainda necessitam ser considera-

dos por uma análise marxista do espaço. Em primeiro lugar, sua abordagem

é limitada porque não especifica a relação entre o Estado e o espaço. No

corpo total da obra de Harvey, o status ontológico do Estado funciona como

o agente do capital em geral. Assim, a concepção de Harvey não vai além de

um a noção marxista tradicional: o Estado como o agente da classe dirigente.

Em sua visão mais sofisticada, esse Estado é um parceiro de uma fração par-ticular da classe capitalista - o capital inanceiro -,mas, nesse sentido, Har-

vey vai um pouco além de especificar a natureza do Estado no capitalismo,

como fizeram Rudolf Hilferdingou V. I. Lênin. Veremos nos capítulos sub-

sequentes que uma teoria do espaço requer um entendimento detalhado da

relação entre o Estado, a sociedade e o próprio espaço, e somente Castells e

Lefebvre nos forneceram tal conexão.

Em segundo lugar, para Harvey a criação de valor na sociedade depen-

de da distribuição dos fluxos de capital entre circuitos, que é impulsionada

pela crise básica do capitalismo, isto é, a tendência de queda da taxa de lucro.

Ele especifica que o mecanismo para tais mudanças é externo à própria clas-

se capitalista e se localiza num quadro combinado de Estado-capital financei-

ro. Todavia, isso não pode explicar a atuação, na sociedade, da lei do valor detroca, tampouco explica por que o capital pode opor-se à queda da taxa de

lucro com esse investimento. Harvey também não explica por que ocorre su-

perinvestimento no Circuito secundário, já que não especificou a atuação da

lei de valor no espaço (ver Lipietz, 1977,1980). Em vez disso, os capitalistas

de Harvey não percebem que o circuito secundário é necessariamente

atraente para investimento, exceto durante crises de superacumulação. As-

sim, o fluxo de capital para o ambiente construído é orquestrado de fora da

relação capital-trabalho e pela articulação Estado-capital financeiro. No en-

tanto, no caso de Lefebvre, o próprio espaço foi elevado em importância a

uma força de produção por um argumento teórico que se pode usar para su-

perar essa limitação e explicar por que o investimento na terra é sempre atra-

tivo; voltarei a esse assunto no próximo capítulo. Por agora basta dizer queHarvey não explicou como se pode fazer com que o capital mude para outros

circuitos de capital, não obstante o Estado e as redes de financiamento - e

isso é especialmente importante para entender o capitalismo tardio, onde o

circuito produtivo é dominado por formas concentradas de capital de mo-

nopólio que, através de redes globais, podem certamente modificar os tipos

de crise de superacumulação que, segundo Harvey, ainda prevalecem. De fa-

to, a análise harveyana do capitalismo tardio como uma forma de organi-

zação social e seus processos globais de acumulação é surpreendentemente

pouco desenvolvida em geral, como observa Mingione (1981), e no capítulo 6

tentarei remediar essa falha.

Uma terceira limitação do trabalho de Harvey é a tendência segundo a

qual todas as intervenções no espaço promovem os processos de acumulação

de capital de uma maneira funcionalista. Por exemplo, Harvey afirma que,

eventualmente, o ambiente construído é de tal fo rma desvalorizado que o de -

senvolvimento desigual pode representar seu papel no futuro processo de

acumulação. Trata-se de uma visão muito limitada do processo de desenvol-

vimento desigual e do papel que ele desempenha no espaço (para uma crítica

da teoria da desvalorização, ver Theret, 1982; Mandei, 1975). Além do mais,

a afirmação de que tal desvalorização ocorre porque é necessária sucumbe

maif uma vez à falácia funcionalista - banalizando a análise empírica mais

sofisticada de Harvey, em que ele documenta o papel que a estrutura finan-

ceira fragmentada desempenha na desvalorização dos setores da cidade cen-

tral de Baltimore (1957b). Em toda a produção intelectual de Harvey há uma

tendência a retomar um argumento da cidade manipulada,em que uma clas-

se capitalista domina uma classe trabalhadora monolítica e seu espaço co-

mum. Isso confunde a atuação do capitalismo como sistema estrutural com

as ações voluntaristas de indivíduos como membros de classes. Afi rmando

qu e resultados de processos, eventualmente, servem aos interesses do siste-

ma , Harvey reivindica para capitalistas como indivíduos uma presciência que,

como já foi observado por Boulayem outro contexto, "raia os limites da cre-

dulidade". Por conseguinte, a análise harveyana do importante processo de

desenvolvimento espacial desigual deixa muito a desejar. No tópico seguinte,

veremos que Scott propôs uma explicação alternativa para a natureza desi-

gual do desenvolvimentoda cidade central, uma explicação que especifica a

produção desse padrão com muito mais detalhes sem recorrer à teoria da

desvalorização.

Em quarto lugar, e depois do que foi dito acima, a análise de Harvey

sobre a estrutura de classes na sociedade moderna e sua relação com a terra

exige maiores explicações. Concordamos aqui com um grande número de ou-

tros analistas, que serão discutidos adiante com maiores detalhes, que enten-

der tal relação exige mais detalhes no tocante à natureza da estratificação

sob o capitalismo tardio. Em particular, identificando os interesses distintos

que atuam no ambiente construído, podemos entender o conflito espacial

que, de um lado, é mais complexo do que Harvey nos faria acreditar e, de ou-

tro, produz resultados não necessariamente funcionais para alguém, tais co-

mo a ineficiência ambiental, o desencadear de crimes violentos, a reprodução

espacial da segregação racial etc.

Finalmente, observo que a principal contribuição de Harvey parece ser

sua elaboração da obra de Lefebvre e de Gottlieb sobre a relação entre os ci-

clos periódicos de investimento verificados empiricamente, que produzem o

ambiente construído, e o processo de acumulação de capital conceituado em

termos de circuitos. Contudo, esse mesmo argumento da lógica do capital

parece afirmar que tal relação permaneceu invariável por centenas de anos,

isto é, desde o advento da hegemonia capitalista. Assim, a teoria de Harvey

MARK GOTTDIENER A P R O D UÇÃ O S O CIA L DO ES P A ÇO UR B A N O 10 7

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nã o explica rea lmente a produção deformas urbanas diferentes, um t ema deinteresse f undamen ta l para a nossa análise. Além do mais, como mostrouMandei (1975), já que tais mudanças cíclicas variam de acordo co m for -mações sociais particulares, devem se r examinadas hoje a partir de uma

perspectiva global que periodize os aspectos do desenvolvimento capitalistacomo um todo. Neste po nto é que podemos av aliar a grande necessidade que

têm todos os economistas políticos marxistas de uma teoria da organização

social que pode dizer-nos como todos os elementos de sociedade se articu-lam no espaço (e com o espaço). Isto é, apesar de todos os esforços de Har-

ve y at é agora, tornou-se evidente que a crescente sofisticação do método

marxista requer um a teoria mais compreensiva, qu e detalhe a natureza da

organização social e ind ique os processos pelos quais os elementos desse sis-

tema vêm a ser distr ibuídos no espaço.

Um a Abordagem Neo-Ricardiana doAmbiente Construído

Allen J. Scott elaborou sua teoria do "nexo da terra urbana", numa

série de artigos q ue culminaram nu ma mo nografia simples (1980). Essa obrarequer nossa atenção porque no s muniu do único modelo coerente de cres-

cimento da cidade central a pa rtir de uma perspectiva neo-ricardiana mais

detalhada do que as análises marxistas da produção. Essa ab ordagem é dignade nota, pois a análise neo -ricardiana supera as l imitações do método ma r-xista, especificamente no tocante à inadequad a teoria do valor deste últ imo

e à desvalorização dos fluxos de capital de Harvey. A tarefa essencial de

Scott consistiu em atr ibuir um status epi fenomena l a conceitos como renda,salário, preço e juros em conexão com o ambiente construído, demonstrando

qu e todas as relações de mercado são manifestações reificadas de relaçõessubjacentes de produção e reprodução específicas do capitalismo. Nessesentido, a obra de Scott está muito mais próxima do pensamento de Marxsobre a crítica da política económica do que da de Harvey. Como observam

Scott e Roweiss:

Co m referência aosprocessos de urbanização e aos problemas da t erra urbana, então, o

ponto de partida essencial para nós não é o fenómeno do lance competitivo pela terra (rendas,

preços etc.), mas a profunda est rutura das relações de propriedade urbana , f rente às quais o

lance competitivo pela terra constitui apenas a vibração mais fraca e mais superficial (1978:54).

A importância da obra d e Scott, portanto, está em sua avaliação da na-

tureza ideológica de toda a economia política, mesmo em suas versões mar-

xistas, e em seu desejo de abarcar processos urbanos através de um entendi-mento da "totalidade" ou do processo de produção sob relações sociais capi-talistas e através da forma da uti lidade. Sob essa perspectiva, existem dois

aspectos conceituais importantes. Primeiro, Scott deseja enfatizar a natureza

contraditória do valor da terra urbana, que os marxistas franceses foram osprimeiros a reconhecer (1976). O valor de uso da terra depende, de um lado,dos "efeitos agregados de inú meras atividades in dividu ais, económicas e so-ciais" (Scott e Roweiss, 1978:38) e, de outro, da intervenção social do Estado,qu e é responsável por melhorias de infra-estrutura e por serviços públicos.

Segundo Scott, a primeira fase "é imprevista como um todo, e não pode se r

socialmente decidida no início. Na outra fase, as consequências do uso da

terra são o resultado dos cálculos políticos do Estado, que exerce controle di-reto sobre a qualidade, a localização e o timing das obras públicas"(1980:136).

Um a vez que o processo global d e desenvolvimento é impulsion ado pe-

la primeira fase, controlada po r particulares, a intervenção do Estado nã opode resgatar das exterioridades da expropriação p rivada os valores de uso

do espaço. Não obstante, a intervenção estatal regula esse processo de for-ma s muito diversas, co m graus variáveis de ineficácia. Po r conseguinte, um

segundo aspecto do desenvolvimento da terra sob o cap italismo é sua nature-

za pouco coordenada. Como observa Scott: "Daí decorre, inevitavelmente,

qu e o processo de desenvolvimento da terra urban a como u m todo no capita-lismo é anárquico e conduz persistentemente a resultados que não são pre-

tendidos, nem socialmente decididos" (1980:137). Como v eremos, concordoco m essa visão - que questiona diretamente as hipóteses, estabelecidas por

Harvey e outros marxistas, de que a intervenção no espaço pelos capitalistasé sempre produtiva e lógica, mesmo q uand o escolhe novas localizações com

base na mão-de-obra disponível.A análise de Scott aponta as contradições internas ao próprio processo

de desenvolvimento da terra. Elas são apreendidas pelo que ele denominanexo da terra urbana - o sistema denso e imbricado de práticas pelas quais a

tomada de decisão pública e privada interage num padrão que é contingentepo r natureza. De um lado: "Essa contingência da s consequências do uso da

terra em cidades capitalistas é o resultado direto da existência de controle

privado, legal. Em resumo, exatamente porque o desenvolvimento da terra

urbana é controlado pela iniciativa privada, as consequências agregadas fi-nais desse processo estão necessária e paradoxalmente fora de controle"(1980:137). De outro lado, o Estado intervém para compensar a natureza ir-

racional dos processos de mercado, não obstante ele próprio seja privado,

pelas relações sociais do capitalismo, de coordenação de uma forma que po-de corrigir tais impropriedades para o interesse geral.

Como assinala Scott, o efe ito total dessas contradições produz uma pai-sagem urban a que é o resultado de um processo contingente, não-funcional

de desenvolvimento desigual. Fenómenos como deterioração, especulação,altos e baixos na propriedade, poluição, os padrões espaciais diferen ciais deáreas residenciais etc., são produzidos pelo próprio processo de desenvolvi-mento capitalista da terra, pois esse processo é descoordenado e anárquico .

MARK GOTTD1ENERA PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO URBANO 10 9

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Como vimos acima, Harvey explica os mesmos efeitos, através da teoria da

desvalorização, como sendo funcionalmente produzidos por fluxos de capitalque são mediados e canalizados pelo segmento de capital financeiro da classecapitalista. A diferença, então, é que. Scott explica a desigualdade de desen-volvimento como algo interno ao processo de produção do capitalismo -como algo que compele a decisões disfuncionais sobre localização, sem re-correr a outros circuitos de capital -, enquanto a ênfase de Harvey explicacomo o desenvolvimento desigual é intensificado pela "necessidade" funcio-

nalista do processo de acumulação de capital em desvalorizar seus investi-mentos passados.

A contribuição singular de Scott é que ele demonstrou a naturezainexorável do desenvolvimento desigual através de um modelo económico delocalização que integra a abordagem neo-ricardiana de Sraffa (1960) compremissas marxistas relativas à dinâmica da produção de mais-valia sob ocapitalismo. Dessa maneira, ele aplicou o conhecimento cumulativo daeconomia política contemporânea no sentido de uma compreensão maissofisticada da determinação da renda da terra urbana dentro de uma fornia

limitada de cidade. Como afirmou Bandyopadhyay:

Scott segue Stedman quando diz que os salários reais sãodeterminados exogenamente afim de que a economia produtora de mercadoria produza determinados preços e lucros. Nessecontexto, a originalidadede Scott é dupla. Em primeiro lugar, como foiassinalado,ele vai além

da análise da exploração e da luta de classes apresentada num sistema de referência valor-tra-

balho pelos marxistas ortodoxos. Estes últimosse,concentraram no processo de monopolizaçãoe superacumulação de capital na esfera da produção e imputaram ao Estado a responsabilidadeprincipal pelas crises de queda de taxas, ao remover do processo de avaliação uma porção docapital social através do financiamento públicode consumo colelivo e de moradia para a força

de trabalho. Embora forneçam uma análise rica da socialização parcial dos custos de repro-dução da força de trabalho, tais estudos, com poucas e notáveis exceções, ignoraram a for-mação e apropriação das rendas urbanas e o papel desta na determinação do padrão de locali-zação de virias atividades produtivas e socialmente reprodutivas. Scott se concentra no primei-ro problema, mas investiga a fundo a produção e localizaçãodo consumo colelivo... Esse enfo-

que sobre os processos de produção e, consequentemente, sobre a importânciada utilizaçãodaterra, e portanto sobre as rendas, está muito mais próximoda própria prática de Marx do que aimportância analítica dada a problemas de injustiça e desigualdadeno que diz respeito a acessoa serviços, moradia e comodidades, isto é, um conjunto de resultados distributivos, em grandeparte da recente literatura marxista e radical. Os nâo-marxistas tiveram pouca dificuldade coma última obra, pois umas poucas declarações relativas a remédios fiscais ou a medidasde redis-tribúição foram suficientes para atendera tais reivindicações (1982:178).

Citei longamente esse resumo da obra de Scott porque ele ajuda a isolaros argumentos importantes a ser considerados no próximo capítulo. Scott le-vanta dois problemas para uma análise marxista do espaço. Em primeiro lu-gar, sua abordagem da renda da terra urbana, enquanto economia políticasofisticada, é apenas um modelo de forma urbana. Como tal, é limitada pelaprópria natureza do raciocínio dedutivo. Na verdade, Bandyopadhyay estácerto quando afirma que essa análise está mais próxima da do próprio Marx,

pois Scott procura plasmar o processo de desenvolvimento capitalista naforma pela qual ele está distribuídono espaço median te o isolamentode suas

contradições internas. Todavia, podemos muito bem indagar se esse modeloretrata precisamente a forma que esse processo de desenvolvimento real-mente assume. A resposta é não, como ocorreu também no caso da teoriaconvencional da localização, uma vez que a história atual tornou obsoletaqualquer abordagem que veja no ambiente construído uma forma monocên-trica, limitada. A análise neo-ricardiana da determinação da renda da terra

depende amplamente das tendências de aglomeração no centro da cidade,em que é falaciosamente atribuído ao próprio espaço o status de mercadoria(ver Scott, 1980:31-41). Simplesmente, isso não pode explicar os determinan-tescontemporâneos dovalor da terra numa região metropolitana policêntrica,mesmo no caso em que o desenvolvimento da terra se dá no sítio do antigodistrito comercial central (ver o capítulo anterior). Em toda a sua obra, Scotté prejudicado por uma dependência em relação aos modelos de Von Thunene da zona concêntrica. Assim, essa abordagem tem um valor limitado comobase de uma teoria da produção de formas espaciais, pois o espaço não podeser simplesmente reduzido a uma mercadoria produzida pelo capital, comoos neo-ricardianos podem supor. No entanto, a abordagem de Scott vale

como uma refutação da teoria da desvalorização e como uma demonstração

de que o crescimento desigual constitui um efeito fenomenal das relaçõescapitalistas de produção.

Em segundo lugar, no intuito de mostrar que o desenvolvimento desi-gual é uma contradição interna do processo capitalista de crescimento, Scottadota um modelo simples da sociedade, em duas classes, que é destituído defrações de classe e, consequentemente, dos determinantes diferenciais desalários, lucro e renda. Embora isso seja congruente com o seu desejo detranscender as categorias ideológicas da economia política, Scott rejeitao status fenomenal crítico de frações de classe baseada na divisão contenciosado sobreproduto. Análises indutivas da estrutura social realizadas por todosos marxistas contemporâneos revelam a importância das frações de classe naluta pela apropriação de mais-valia - como assinalou a discussão da obra de

Harvey, a competição entre frações distintas dentro da classe capitalista éparticularmente importante na determinação do fluxo diferencial de recursosatravés da região metropolitana. Mais especificamente, e como deverei parti-cularizar no capítulo S, a lei do valor no espaço atual, não só através dos efei-

tos agregados de ações coletivas, como assinala Scott, mas também atravésdos esforços monopolísticos de frações específicas de capital, às vezes emconjunção com o Estado. Sem reconhecimento dos fatores de concentraçãoque se encontram fora do mercado, análises do processo de desenvolvimentoda terra, como a de Scott, apenas reproduzem a forma competitiva da eco-nomia política burguesa.

É irónico e, em última análise, debilitador que, num esforço para igno-

11 0 MARK GOTTD1ENER A PRODUÇÃO SOCIAL DO ESP A ÇO URBANO 11 1

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ra r outros analistas marxistas qu e focalizam o efeito de interesses monopolís-

ticos na determinação do s padrões de uso da terra urbana, Scott tenha articu-

lado uma versão neo-ricardiana da competição perfeita. Se m dúvida, seu

modelo aponta as contradições daquele processo, especialmente quando de-

rivam de circunstâncias exteriores; contudo, sua abordagem está mais próxi-

ma das hipóteses convencionais no toca nte à extração diferencial de mais-va-

lia, ou lucro, do que de uma análise marxista mais afinada com a presença

ubíqua de forças monopolísticas e sua produção de espaço em termos deoferta. Tal preferênc ia já se revela em sua obra mais antiga sobre a questão

do uso da terra urbana, em que criticou abordagens voluntarísticas que con-

sideram demasiado simplistas e conspiratórias coligações de elite no proces-

so de desenvolvimento (Scott e Roweiss, 1978). Para Scott, tais interesses seencontram fora da lógica estrutural da apropriação de mais-valia ou são ape-

nas produtos epifenomenais desse processo. Esse desvio antivoluntarístico

existe em suas formulações m ais recentes, porque ele deseja especificar a na-

tureza fundamental do processo de desenvolvimento desigual, que é inde-

pendente das ações d e tais coligações ou da alegada necessidade de desvalo-

rização.Discordo dessa abordagem, embora aprecie a maneira restrita pela

qual Scott especifica que a natureza do desenvolvimento d esigual é internaao capitalismo. Mostrarei, adiante, que nenh um quadro do desenvolvimento

metropolitano sob o capitalismo pode ser comp leto sem um entendimento do

papel do meio de ação, bem como da estrutura, especialmente a maneira pe-

la qual forças monopolistas e redes de crescimento atuam no espaço. Scott

nivelou os interesses do setor de propriedade vinculados à terra, reduzindo-

os a meras cópias dos interesses capitalistas que atuam da mesma forma emtoda parte. Como d emonstrarei no próximo capítulo, essa abordagem segun-

do a lógica do capital, neo-ricardiana, é absolutamente válida para a pro-

dução de qualquer outra mercadoria, exceto o espaço. Assim, a análise dosmúltiplos status ontológicos do espaço na formaçã o capitalista tardia requer

um modo de investigação que supere os limites da escola da lógica do capital

ou um que reduza o espaço a mercadoria. Mais especificamente, Scott nãoconsidera as propriedades qualitativamente distintas do circuito secundário

de Lefebvre, que une processos estruturais a ações de grupo organizadas emtorno do setor da propriedade, e que Harvey expandiu com grande proveito.

É exatamente a atuação de frações específicas de classe no circuito secundá-

rio, o papel do Estado em todos os níveis na ajuda à atividade do setor imo-

biliário e as consequências contraditórias dessas intervenções que explicam aforma espacial.

Em suma, Scott plasmou o meio ambiente urbano, mas sua imagem

aborda alguns de seus aspectos reais e ignora outros. Embora sua concepção

da produção de valores da terra, em sua essência, esteja correta para o casode uma cidade monocêntrica sem interesses monopolísticos no desenvolvi-

mento da terra, existem propriedad es de espaço e frações distintas de capital

que entram na determinação coletiva dos valores de troca e de uso de uma

forma qualitativamente diferente da ana lisada por Scott ou, no tocante a essa

questão, pelos analistas convencionais. Finalmente, a análise do Estado por

Scott é limitada demais. Sua noção de nexo da terra urbana é intelectualmen-

te atraente, pois todos os marxistas contemporâneos reconhecem que o Es-tado tem algum papel integral a desempenhar no capitalismo tardio. Nã o

obstante, sua articulação entre sociedade civil e Estado é, antes, maldefinida.De fato, nunca ficou muito claro o que Scott quer dizer co m nexo da terraurbana.

A análise de Scott apresenta o que considero um erro fatal de concre-tude mal aplicada no caso dos Estados Unidos. Virtualmente, ele equipara aintervenção do Estado a planejamento urbano. Contudo, como se pode mos-

trar, embora boa parte dos recursos burocráticos e ideológicos sejam devota-

dos à "ideia" de planejamento urbano nos Estados Unidos, na realidade hámuito pouco pla nejame nto urba no neste país (Gottdiener, 1977, 1983). A in-

tervenção do Estado nessa sociedade é mais um a questão de , política pública

e de regulação indireta do que de planejamento, embora, ao nível local, haja

algum controle do uso da terra. A análise neomarxista, especialmente a teo-

ria do consumo coletivo, foi muito eficaz em nos propiciar de um entendi-mento da política urbana como modo primordial de intervenção do Estado.

Particularmente, a articulação entre Estado e sociedade civil foi analisada de

acordo com a natureza histórica da s reações às crises de acumulação,das ne-

cessidades de controle social e das transformações estruturais no decurso dotempo, em resposta às necessidades de capital.

Podemos considerar que a conceituação de Scott sobre o nexo da terra

urbana é uma representação precisa dos poderes do Estado local emregular o uso da terra. Zoneamento e outros artifícios de autogoverno, como

convenções restritivas, são decerto úteis na determinação dos padrões de

desenvolvimento do espaço de assentamento. Todavia, Scott especifica esseaspecto da intervenção de modo particularmente estático, ignorando a luta

de classes pelo uso da terra. Como qualquer analista dos processosmunici-pais de tomada de decisão pode atestar, as políticas de uso da terra são umaárea inconstante de conflito político. As políticas do Estado, às vezes, sãocontestadas entre frações da classe trabalhadora, como os proprietários decasa, e frações capitalistas, como os investidores imobiliários de grande esca-

la. Contudo, outras vezes, o Estado se transforma numa arena de desacordo

entre os próprios capitais ou de confronto entre buroc ratas públicos locais einteresses do capital de monopólio, como no caso dos conflitos ambientais.

Em todas as disputas sócio-espaciais, a relação entre o Estado e a sociedadecivil é mu ito mais contenciosa do que a retratada pela análise de Scott.

Finalmente, Bandyopa dhyay, na revisão acima da obra de Scott, erra

quando afirma que os não-marxistas descartam facilmente os problemas

11 2 MARK GOTTDIENERA PRODUÇÃO SOCIAL DO E S P A Ç O U R BA N O 11 3

7/16/2019 GOTTDIENER, Mark.A produção social do espaço urbano

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de diferenciais injustos no fornecimento de serviços sociais, buscando solu-

ção em contramedidas reformistas. Como observou Castells (1978) aoestabelecer a análise do consumo coletivo,a intervenção do Estado na socie-dade civil em qualquernível não é simples;é complexae contraditória. Comoexpressão da sociedade de classes, ela nunca pode corrigir de maneira

adequada a natureza desigual do processo privado de desenvolvimento que échamada, funcionalmente, a assistir. Em contraposição a Scott, para quem o

Estado é um planificador urbano antigo que se m a n tém à par te da luta declasses, para os estruturalistas althusserianos, como Castells, o Estado é umsistema político de práticas sociais, homólogo à própria economia privada

capitalista, e que sofre, consequehtemente, de tendências contraditórias

semelhantes. Em particular, a intervenção do Estado, embora nem sempreaparente, é o produto do conflito de classes na sociedade civil; suas inter-

venções sempre tendem mais a reproduzir os problemas de uma sociedade

de classes que a amenizá-los.No próximo capítulo, dedicarei mais tempo à teoria do consumo

coletivo, que elabora essa argumentação com mais vigor. Além de discutirCastells, examinaremos igualmente a obra de Henri Lefebvre. Quanto àintervenção do Estado e ao que Scott pode considerar planejamento urbano,

Lefebvre tem uma visão um pouco mais crítica. Para ele, o Estado nãosó intervém no espaço, mas ajuda a produzi-lo. Cria um "espaço abstraio"mediante práticas intelectuais e burocráticas como planejamento urbano,que se torna então uma estrutura administrativa de controle social dispostacontra os usos do espaço pela ciasse trabalhadora na vida cotidiana. Alémdisso, essa estrutura espacial de dominação do Estado não se limita apenasa sociedades capitalistas, mas está presente, como instrumento de controle,em todo sistema social não-democrático e é bastante característica dosregimes totalitários.

Antes de terminar, é oportuno estabelecer uma comparação entre aeconomia política marxista e a teoria convencional. A primeira aperfeiçoa ateoria espacial da última de quatro maneiras, pelo menos. Primeiro, substitui

um a teoria simplista da localização, que focaliza o equilíbrio entre os custosda terra e os de transporte, por um quadro mais preciso de localizações esta-belecido pela luta de classes e pelas necessidades do processo deacumulaçãode capital, que atualmente assume uma estrutura global de obtenção de lu-cro. Segundo, em lugar de uma versão de crescimento capitalista sem espaço,baseada no equilíbrio de grande número de produtores e consumidoresdentro de um espaço que apenas os contém, os marxistas especificaram opapel do ambiente construído no processo de acumulação de capital e suavinculação a crises periódicas de acumulação. Dessa forma, o espaço se tornaparte integrante das relações de produção. Para os neo-ricardianos, alémdisso, o espaço é produzido pela natureza contraditória do processo deprodução, que envolve tendências desequilibradoras, contrastantes com o

plácido quadro dominante de crescimento eficiente. Terceiro, os analistasconvencionais atuam como se o Estado não existisse. Economistas políticosmarxistas estudam, explicitamente, o papel do Estado no espaço, emboraesta obra requeira maior elaboração. Quarto, em lugar da rede hierárquicade integração espacial, conhecida pelo nome de abordagem por sistemasde cidades, os marxistas transcendem o vocabulário reificado de lugar aomostrarem como a localização é o sítio das relações de produção, que no

caso são integradas por um sistema global de acumulação capitalista e umprocesso de produção em escala mundial , inclusive uma divisão internacionaldo trabalho.

A abordagem segundo a economia política marxista, contudo, parecelimitada por pelo menos três aspectos, alguns dos quais são compartilhadospor neo-ricardianos. Primeiro, possui uma tendência positivista que buscadesenvolver sua argumentação explanatória negando a atuação de outros fa-

tores, de tal modo que causas distintas podem estar ligadas a efeitos distin-tos. Segundo, seu funcionalismo endémico sugere que os eventos históricosservem às necessidades de capital, de modo que os efeitos benéficos sãoidentificados, ex post facto, como as causas da mudança, explicando, dessaforma, as causas pelos efeitos. Finalmente, a abordagem se concentra na aná-

lise dos padrões de desenvolvimento económico na sociedade, mais do queno projeto revolucionário de transformá-la. A economia política marxistacompartilha essa limitação ideológica com a ciência urbana convencional, ouseja, uma tendência a concentrar-se em descrições económicas cada vez mais

detalhadas da sociedade. Isso equipara a compreensão do bem-estar social àinvestigação da riqueza das nações. É preciso fugir do economicismo, e deve-remos fazê-lo no próximo capítulo.

Pode-se dizer que a principal contribuição do marxismo europeu para ainvestigação da produção de espaço reside em sua insistência em declararque a análise marxista possui uma disjunção epistemológica das categoriasanalíticas do pensamento burguês. Afinal, foi isso o que Marx realmente quisdizer quando deu ao Capital o subtítulo "Crítica da Economia Política". Nes-se sentido, o marxismo europeu é um antídoto para a economia política. Essaabordagem mais filosófica deixa de enfatizar aquilo que o próprio Marx dis-se, em favor de tentativas combinadas de apreender como ele pensa de fato.Por essas razões, as abordagens que deverei considerar em seguida se achamà parte da economia política, mesmo que dependam dela para insights deri-vados da análise concreta das formas espaciais. O estruturalismomarxista, deque Castells é um exemplo, e a dialética sócio-espacial, como éexemplificadapor Lefebvre, esforçam-se por reproduzir o próprio modo de pensar de Marxe estabelecem uma disjunção permanente entre as tendências rastejantes daciência social dominante e a epistemologia dialética de Marx. Além do mais,tanto Lefebvre quanto Castells têm em vista uma perspectiva mais global so-bre a produção de espaço e sua relação com a organização social do que a

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7/16/2019 GOTTDIENER, Mark.A produção social do espaço urbano

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economia política marxista. Ta l abordagem deve considerar importantes paraqualquer análise do espaço os aspectos da formação social que já identifica-

m os acima: o Estado, a luta de classes, o processo de acumulação de capital,

a desigualdade de desenvolvimento, ideologia e a repro dução das relações de

produção. Embora a influência de Manuel Castel ls sobre a análise urbana

marxista nã o tenha ficado devendo a n inguém nos Estados Unidos, Henri

Lefebvre foi por demais prolífico em publicações sobre o mesmo tema. Infe-

lizmente, grande parte da obra deste autor ainda não foi traduzida. Demons-

t r a r e i adiante que a diferença entre os dois anal istas reside menos no con-

t eúdo analítico per se do que n u m a questão fundamenta l sobre a verdadeira

na tureza da análise marxista. Casp isso não tenha ficado claro ao leitor, nessa

discussão estou a favor de Lefebvre, embora vá ter grande dificuldade paraindicar como a análise espacial deve descartar todo esse conflito sectário pa-

ra forjar um a teoria ma rxista coeren te qu e seja superior à influência de per-

sonalidades isoladas.

P A R A D I G M A S FLUTUANTES

O D E B A T E S O B R E A T E O R I A D O E S P A Ç O

Dadas as imperfeições da s formulações convencionais, surgiu a análise

urbana marxista para explicar os eventos urbanos importantes a par t i r da Se-

gunda Guerra Mundial . De maneira semelhante, porém dentro de um con-texto não-espacial diferente, a iniciativa estru tural ista no meio m arxista pode

ser a resposta teórica, há mu ito esperada, para as imperfeições do marxi smo

ortodoxo. Segundo um a visão que a propaganda stalinista e u ma geração deeconomistas políticos "vulgares" codificaram num dogma, o modo económi-

co de produção, ou a "base", determinou os processos da política c da cultu-

ra , a "superestrutura". Nesse modelo, o Estado nada mais era que a classe

capitalista travestida de políticoscorruptos, ao passo que todo evento musical

ou artístico, por exemplo, constituía um exercício da lavagem cerebral bur -

guesa. Começando com a Escola de Frankfu r t nas décadas de 20 e de 30,quando o raciocínio dialético substituiu a modelação determinista e causal

do s materialistas vulgares, fez-se um a tentat iva de t o rnar a economia política

marxista receptiva a um ponto de vista ma is interdependente. Em par t icu la r ,

a Escola de Frankfu r t ressaltou o pen same nto crí t ico "neo-hegeliano", que

filosoficamente se baseava no conceito hístoricista alem ão de "totalidade". A

sociedade e todos os seus elementos agiam co mo um conjunto o u "mo men -

to" dialético, em que aspectos da necessidade económica estavam relaciona-do s a necessidades culturais e políticas, e vice-versa (Hork heim er, 1972).

A Escola de Frankfu r t especificava a form ação social existente comoum sistema capitalista; e o fazia most rando qu e f enómenos "superestrutu-

rais", como a política ou a cu l tu ra , atuavam de mo do m ui t o semelhan te à