gondra medicina higiene e educação escolar

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ORGANIZADORES: Eliane Marta Teixeira Lopes Luciano Mendes Faria Filho Cynthia Greive Veiga 500 ANOS DE EDUCA~AO NO BRASIL a Autentica Belo Horizonte 2003

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Page 1: GONDRA Medicina Higiene e Educação Escolar

ORGANIZADORES:

Eliane Marta Teixeira LopesLuciano Mendes Faria Filho

Cynthia Greive Veiga

500 ANOS DE EDUCA~AO NO BRASIL

aAutentica

Belo Horizonte2003

Page 2: GONDRA Medicina Higiene e Educação Escolar

MEDICINA, HIGIENE

E EDUCA~Ao ESCOLAR

JOSE G. GONDRA

A escola, nas na~6es fortes, e aofficina da nacionalidade. E ne-

lla que se forja a tempera de a~6esdos povos que conduzem a civi-liza~ao.1

este trabalho sao tratados

aspectos da hist6ria daeduca<;aobrasileira que nao se restrin-gem ao seculo republicano, tampou-co pretende a abrangencia dos 500anos ou mais, nucleando-se, portan-to, no seculo XIX,que coincide com 0desafio e a ousadia de se organizar urnEstado Nacional. Ao deter-me nessa

epoca, procuro analisar se e como aeduca<;ao escolar compareceu no in-terior desse amplo projeto de consti-tui<;aodo Brasilcomo Estado NacionalIndependente.2 A questao pode serainda melhor desdobrada pois, a rigor,o que examino e a formula<;aode urnprojetopara a escola enunciado emnome da ciencia, isto e, em nome da

razao, no seculo que recebeu 0 legadodas formula<;oes iluministas, tendo

como tarefa e desafio apropriar-se deseus frutos e, ao mesmo tempo, recicla-los em virtude das novas descobertasda Ciencia e do crescente desenvol-

vimento tecno16gico. Nesse sentido,tematizo algumas.rela<;Oesentre medi-cina, educa<;aoe sociedade refletindosobre 0 processo de constitui<;aoda or-dem medica no Brasil e das a<;oesrea-lizadas nessa dire<;ao,privilegiando,para tanto, urn exame de caracteristi-cas da razao medica, sua instituciona-

liza<;ao, seus agentes, bem como aprodu<;aodiscursiva voltada para mo-delac;ao do objeto educacional, ques-toes pouco examinadas na histo-riografia da educa<;aobrasileira.

De modo geral, 0 exame doprocesso de escolariza<;ao brasileiroa partir do seculo XIXencontra-se sus-tentado nos elementos recolhidos em

fontes legislativas e estatisticas, oraadmitindo-se que traduzem expressa-mente os avan<;os e os progressosinstaurados no que diz respeito aquestao educacional, ora afirmando oslimites do discurso legislativo, apon-tando para 0 fracasso das iniciativasdesenvolvidas nesse periodo.3 Essamodalidade de escrita da hist6ria da

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SOo-anos de educafao no Brasil

educac;aoconsidera, fundamentalmente, as politicas para 0 se-tor e seus resultados, isto e, os projetos em execuc;aoe os pro-dutos por eles deixados, de acordo com 0 que foi extraido dasfontes e 0 modo pelo qual foram trabalhadas. Urn dos resulta-dos dessa operac;ao seria 0 negligenciamento de outros proje-tos e processos de modelac;aopara 0 setor educacional, de cujamediac;ao resultaram, dentre outros aspectos, a "lei" e 0 "nu-mero", Urn outro resultado seria a desconsiderac;ao da "zonade intersec;ao"4entre os projetos e seus produtos ou entre "0instituido e 0 projetado". Assim sendo, essa tradicional formade fazer e escrever a Hist6ria da Educac;aoBrasileira tern mar-geado ou, ate mesmo, exc1uido sujeitos, processos, projetos epniticas cotidianas. Urn desses projetos, sistematicamente es-quecido, consiste naquele oriundo da ordem medica.s Mais re-centemente, contudo, alguns trabalhos de pesquisa em hist6riada educac;aobrasileira6 vem demonstrando interesse no estu-do do projeto educacional gestado no interior da ordem medi-ca7e/ou por seus "delegados".

Nesse sentido, cabe examinar elementos presentes noprojeto educacional forjado pelos medicos ao longo do seculoXIX,buscando reconhecer as representac;6es que, por interme-dio dos mesmos, se procurou ou se desejou instaurar. Em ou-tros termos, trata-se de refletir acerca do problema educacionalno Brasil tomando como referencia especial a Corte, a partir decontribuic;6es geradas em nome da Ciencia Medica e da racio-nalidade que lhe da suporte, as quais encontram-se encamadasnas instituic;6escriadas para consolidar 0 chamado campo me-dico no Brasil (Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro -FMRJ e Academia Imperial de Medicina - AIM), bem como

Vestes

designavamdistinriio ehierarquia

(1839).

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Medidna, higiene e educa~ao esco/ar -Jose G. Gondra

nos agentes que nelas atuam e em seunome (osprofessores da Faculdade deMedicina, os alunos e os formados or-

ganizados em tomo da sociedade daCiencia, medica ou nao).

PRODU<;Ao DARAZAo MEDICA

A agenda medica ao longo doseculo XIX,no Brasil, reservou urn lu-

gar especial para os problemas da or-dem social, incluindo-se ai a questaoda forma~ao sistematizada das novasgera~oes, isto e, da educa~ao escolar.Esse agendamento coincidecom 0 prO-prio processo de consolida~ao e legiti-ma~ao daciencia medica ocidental que,ao tratar de objetos da vida social, des-creve-os tambem como objetosda me-dicina, abrigando-os em sua 6rbita eexpandindo, assim, os dominios des-se saber. 0 ramo da medicina que seocupou da descri~ao e redescri~aodos objetos sociais, em conformida-de com os canones dessa Ciencia, foi

designado como Higiene, ramo quese preocupou, sobretudo, com umamedicina do social. Interessa-nos, en-

tao, interrogar: como se deu a inclu-saDdas questoes relativas a educa~aoescolar no interior das preocupa~6esmedico-higienicas?

Um breve mapeamento desseprocesso permite-nos estabeleceruma rede de comunica~ao e de dia-logo entre brasileiros e estrangeiros,uma interlocu~ao entre homens doseculo XIXe homens dos seculosxvn

e XVIII,da Inglaterra e da Fran~a.Paraefeito de nossa reflexao, tomo por baseas freqiientes referencias de medicos

brasileiros ao medico-fi16sofo ingles

John Locke e ao pensador frances J. J.

Rousseau. lluministas ambos, ap6sto-

los da cren<;ano poder do conhecimen-

to e da razao, ao mesmo tempo em que

anunciavam~ defendiam e justificavama constru<;ao. de uma nova ordem nao

mais fundada nas hierarquias do san-

gue, mas nas hierarquias da proprie-dade, dentre elas a do saber. Nao de

qualquer saber, mas, sobretudo, daque-les saberes fundados e fundadores da

Ciencia.8 Essa rede de interlocu~ao, aoatravessar oceano, terras e circunscre-

ver urn longo periodo, indica irradia-~ao, acurnula~ao e fortalecimento da fe

~ no poder redentor da razao cientffica,bem como no de seus representantes,institui~6es e estrategias de a~ao.

Irradiar, acumular e fortalecer

representaram a~oes que demanda-ram tensoes e disputas de modo aobter legitimidade para 0 discursoque, entao, passava a ser enunciadopela e em favor da razao medica con-tra os demais discursos e praticasvoltados para a manuten~ao e prolon-gamento da vida. Nesse sentido, es-tabeleceu-se uma especie de combateque elegeu duas frentes de atua~ao:uma que poderiamos caracterizarcomo mais interna it medicina e ou,.

tra mais extema. Na primeira eramidentificados como inimigos os adep-tos da homeopatia,9 da helvetica10e damedicina dita oriental. Na segunda 10-calizavam-se aqueles que eram chama-dos de curandeiros, benzedeiras,

bruxos, magicos, indfgenas, escravos ecuriosos. Em comurn, nesse combate,

estava a disposi~ao em instaurar emuma regiao de ilegitimidade todos os

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SOOanos de educafao no Brasil

cA !orJIuu:;ifo escolar

e criterio, exigcnciae condir;ifo necessaria para

° pleno exercfciodo finer 11ledico.

discursos e pniticas produzidos e reproduzidos nesse univer-so heterogeneo, constituindo-os como charlataes.u

o combate supunha 0 fabrico de armas e seu adequado ecompetente manejo. Nesse sentido e necessario distinguir, pelomenos, duas poderosas armas fabricadas para combater os ini-migos intemos e extemos da ordem medica. Vma primeira e aconstituic;ao de uma sociedade cientifica que reunisse e inte-grasse os homens que exerciam legal e oficialmente a cienciamedica. Foi com essa intenc;aoque em 28 de maio de 1829umgrupo de medicos12fundou, no Rio de Janeiro, uma SociedadeMedica que se propunha a tratar dos interesses medico-sociais edo ensino da Medicina, tudo isso sob os auspicios do govemo.

Vma segunda arma contra os "charlataes" constitui-sena propria formac;aodos medicos e, nesse sentido, e necessarioter em mente 0 processo de escolarizac;aoa que os futuros me-dicos passaram a ser submetidos para terem assegurado 0 di-

reito ao exercicioprofissional.13Sendo maispreciso, a escola de formac;ao integra urncomplexo projeto desenvolvido pela cor-porac;aomedica com vistas a obter e man-ter 0 controle exclusivo sobre os processosde formac;ao,selec;ao,organizac;ao e fisca-

lizac;aoda medicina, funcionando como uma eficaz estrategiapara garantir 0 monopolio sobre a "arte de curar".

Varios procedimentos concorrem para a constituic;aodeum monopolio sobre a "arte de curar": conhecimentos ou mate-rias medicas mais especializadas, elevac;aodo seu nUmero, fixa-c;ao da necessidade de uma formac;ao de longa durac;ao,estabelecimento de professores-medicos especializados paracada uma das materias, distribuic;aodo tempo escolar, de regrasde avaliac;ao,separac;aode competencias entre 0 medico, 0 far-maceutico e a parteira, bem como a proibic;aoda atividade dosleigos postas em uma regiao nao mais apenas de ilegitimidade,mas, desde entao, tambem de ilegalidade. Em conjunto, taismedidas contribuem para que as faculdades passem a ser reco-nhecidas como um espac;ode saber especifico,como um templodo saber e da racionalidade medica. Esse principio, a despeitodas reformas dos cursos medicos que se sucederam ao longo doseculo XIX,nao foi alterado. Como pedra fundamental no edifi-cio do templo da razao medica, a formac;ao escolar e criterio,exigencia e condic;aonecessaria para 0 pleno exercicio do fazermedico, embora isso nao sejasuficiente para garantir 0 seu pleno

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Medidna, higiene e educafffo escolar - Jose G. Gondra

exito, conforme assinalam os histori-adores da Medicina e as memoriashistoricas14 da Faculdade escritas na

segunda metade do seculo passado.

SABERES E OB]ETOSDA RAZAo MEDICA

Eliminar ou minimizar os sofri-

mentos do ser hurnano e, ainda, con-

forme a "formula" do juramento a serpronunciado na cerimonia de colac;aode grau, ser "sempre fiel aos deveresde honra, da ciencia e da caridade",

constituir-se-iam nos grandes com-promissos dos medicos, os quais se-riam forjados na longa formac;ao.Nesse sentido, os saberes e os objetosda razao medica podem ser identifi-cados pelas disciplinas ensinadas naescola medica. Mas nao exclusivamen-te. Os temas discutidos no ambito da

Academia Imperial de Medicina tam-bem indiciam os objetos que a CienciaMedica desejava recobrir, alem daque-les que cons tam nos peri6dicos pro-duzidos pelos medicos, bem como emoutras praticas por eles desenvolvidas,

tais como as literanas ou a de autoriade manuais e de obras escolares.1s00-

tendo, contra uma perspectiva deanalise dos discursos e das praticasdesencarnados de suas condic;oes deproduc;ao, que tais atos concorrempara conformar 0 campo medico e de-vem ser analisados associando-os ao

modo como os produtos materiais eas praticas saD "consumidos" pelosdestinatarios. Procurando examinar 0

"projetado" e as respostas emitidaspelos usuanos, poderiamos, a titulode esforc;o,considerar as disciplinasescolares e 0 discurso emitido nas te-

ses escritas pelos alunos, para tentarperceber 0 grau de realizac;ao da-quilo que a Faculdade procuroumodelar por intermedio dos sabe-res e objetos incluidos no projeto deescolarizac;ao. Para tanto yOUme de-ter em urn ano apenas, 0 ana de 1886.Dois anos depois da aprovac;aoda re-forma de 1884.Essa data sugere que,naquele ano, as regras daqueles esta-tutos ja encontravam-se em vigor,como se pode perceber, por exemplo,no quadro das 26 disciplinas impresso

Panorama do Rio de Janeiro. Destaque para estabelecimentos da ordem medica.

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500 anos de educafao no Brasil

nas teses defendidas nesse ano, coincidente com 0 previstonos referidos estatutos.

No ana de 1886foram defendidas 112 teses que podemser agrupadas em tres classes:

1-as que tratam das cirurgias e patologias espedficas;

II-as que tratam de quest5es de ordem sociale/ou moral e

III- as que se ocupam de quest6es com caracteristicasdas outras duas classes, como se encontra exemplificado noquadro 1.

QUADRO 1

CLASSIFICA<::Ao DAS TESES DEFENDIDAS NA FACULDADE

DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO EM 1886

ClrurgiaseI

Da amputa~ao de Pirogoff, suas indica~oes e contra- IFernando Ferreira BarretoPatologias indica~Oes

Sodais elouI

Das allucina~s, sua importancia no diagnostico da IHenrique Augusto de Mello e SennaMorais aliena~ao

Mistas IDiagnostico differencial entre as diversas especies de I Antonio Cavalcanti Sobraldrrhose hepatica

Esse expressivo mimero de 112 teses, com visivel con-centrac;ao na primeira classe, encontra-se vinculado a<?.qua-dro disciplinar em vigor na Faculdade, como pode ser checadopor intermedio das disciplir1as que compunham 0 curso me-dico.16Do mesmo modo que nas teses, a maior incidencia te-matica das disciplir1as do curso medico tambem recai nosaspectos cirurgicos e patol6gicos, 0 que ajuda a explicar a con-centrac;ao de teses nesses temas.

A despeito de urna concentrac;aonos aspectos mais t~c-nicos ou especializados e possivel evidenciar ao longo da for-mac;aomedica urna dispersao, a qual exprime urna disposic;aode recobrir objetos, os mais distintos possiveis, que consistemnaqueles incluidos nas classes II e ill. Essa disposic;ao pode serdefinida17como urn projeto de prevenc;ao contra a doenc;aan-tes mesmo que ela eclodisse, 0 que implicaria tanto a existenciade urn saber medico sobre a cidade e sua populac;ao, quanto apresenc;a do medico como urna autoridade que intervem navida social, decidindo, planejando e executando medidas aomesmo tempo medicas e politicas. Essa perspectiva da Medici-na institucionalizou-se no Brasil de forma definitiva ao longo

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Medicina, higiene e educafio esco/ar- Jose G. Gondra

do seculo XIX, tempo em que foraminaugurados dois de seus trac;osmaiscaros: 0 de que a medicina deveria pe-netrar na sociedade, incorporando 0meio urbano como alvo de sua refle-

xao e de sua pratica, e 0 de que deveriaconstituir-se como apoio indispensavelao exercicio de poder por parte do Es-tado. Essa nova configurac;aoda medi-cina representou urn deslocamento dadoenc;apara a saude pois:

Nao e mais a a~ao direta e lacunarsobre a doen~a como essencia isola-da e espedfica que move 0 projetomedico. 0 'medico politico' devedificultar ou impedir 0 aparecimen-to da doen~a, lutando, ao mvel desuas causas,contra tudo 0que na so-ciedade pode interferir no bem-es-tar fisico e moral. A inser~ao doindividuo na sociedade,a necessida-de de conhecer 0 meio e agir paraproteger 0 individuo de urn perigoao mesmo tempo medico e politiconao significaporem que a Medicinasai de seu campo pr6prio de a~ao.18Se a sociedade, por sua desorgani-za~aoe mal funcionamento, e causade doen~a, a Medicina deve refletire atuar sobre seus componentes na-turais, urbanisticos e institucionaisvisando a neutralizar todo 0 perigopossivel; nasce a periculosidade ecom ela a preven~ao.19

o referido deslocamento cola-

bora para constituir uma nova repre-sentac;ao dos pr6prios agentes damedicina e daqueles outros que, comesse movimento, saD inseridos em

uma extensa e imprecisa zona desig-nada de charla tania, nas quais outrossujeitos, discursos e praticas desen-volvidos em nome da saude seraoinscritos. Os medicos formados com

base nesse deslocamento seriam por-tadores de urna insuficiente compeb~n-cia se fossem descritos e reconhecidos,

exclusivamente, como homens respon-saveis pela adoc;aode urna tecnologiada cura. Esse movimento constituiu-se

em urn esforc;opara que os medicospassassem a ser identificados, tam-bern, como cientistas do social e, paratanto, buscaram integrar a 16gica darazao medica outros saberes, como a

estatfstica, a geografia, a demografia,a topografia e a hist6ria. Com isso, tor-nar-se-iam planejadores do urbano:

As grandes transforma~6es da cida-de estiverarn a partir de enta~ liga-das it questao da saude; torna-seenfim,analista de institui~6es:trans-forma 0 hospital - antes 6rgao deassistencia aos pobres - em 'ma-quina de curar'; cria0hospiciocomoenclausuramento disciplinar do lou-co tornado doente mental; inaugu-ra 0 espa~o da clinica, condenandoformas altemativas de cura; ofereceurn modelo de transforma~ao itpri-sao e de forma~ao itescola.20

Na expansao da medicina, a es-cola nao e esquecida nem a educac;aode urn modo mais geral, pois, para for-mar as novas gerac;6esseria necessa-rio uma intervenc;ao nao apenas noespac;o publico da escola, mas, tam-bern, no espac;oprivado da casa. Paise mestres constituem-se, portanto, nosprincipais destinatarios das prescri-c;6esmedicas quando se trata da edu-cac;ao.No que se refere aos primeiros,o Dr. Menezes21 adverte que se "osolhos da lei" pudessem penetrar 0 in-terior das familias e, com sua forc;a,

extirpar os abusos que a ignoranciaintroduzia na educac;ao fisica dos

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500 anos de educaf30 no Brasil

infantes, ela acharia na medicina as regras convenientes para arealiza<;aodaquele procedimento. A ignorancia e, pois, 0 argu-mento fabricado e mobilizado de modo a fornecer legitimida-de para as interven<;oesna esfera educacional, realizadas em

nome e em favor da ordem medica, que interferira nas repre-senta<;oesacerca da Wancia, da familia, da casa, da escola e

dos mestres. as primeiros descritos como incapazes e os Ulti-mos, como inadequados. Ambos precisariam ser reinventadosem nome de urn futuro anunciado pela medicina e para 0 qualcontribui e trabalha de modo decisivo.

Nesse futuro prometido pela ordem medica imperaria aordem, desapareceriam os excessos e 0 pacto social reencontra-ria sua "essencia": "Enquanto conhecimento e enquanto pratica,a medicina coloca-se como base para a constru<;aodesta novaordem". Desse futuro anunciado. Apresentando-se como van-guarda da civiliza<;ao,a medicina definia seu papel pedag6gicopela necessidade de difusao de urn saber e de urna verdade quefundamentavam a a<;aocoordenada de todos, ja que no corpomedico residiria "a verdade" a ser ensinada tanto "ao governoquanto a popula<;ao,que saDignorantes,"22justificativa para aado<;aode medidas medico-higienicas, tanto na esfera publicaquanto no universo privado. Cabe examinar a tarefa que reser-vavam a educa<;iioescolar e como ela deveria ser ordenada de

modo a participar desse projeto de erradica<;aoda ignorancia ede produ<;aode urn futuro ordeiro, homogeneo e civilizado.

DISCURSO MEDICO E EDUCA<;Ao ESCOLAR

Como a questao da escolariza<;ao inicial esta posta e trata-

da na trama discursiva tecida pelos medicos? A educa<;ao esco-lar representada no interior da ordem medica pode ser

compreendida em uma grade que defende tanto a necessidadede escolas como urn modo moderno ou iluminista de instala<;aodesse modelo de forma<;ao de homens e mulheres. Necessidade,

por sua vez, produzida pelo discurso identificador da barbarie,desordem, dispersao e degenera<;ao dos homens e da sociedadecomo inimigos de urn novo mundo que se desejava instaurar,

fundado na razao em novas formas de produ<;ao e de trabalho;isto e, urn mundo concebido e desejado pelos Estados burgue-

ses. Assim sendo; a educa<;ao nao mais poderia permanecer vin-

culada a esfera privada, fosse ela a da religiao ou a da casa. Educar,

pois, nessa nova perspectiva, passava a exigir a inven<;ao de urna

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Medidna, higiene e educar:ao esco/ar -Jose G. Gondra

nova organiza~ao a ser instalada emobediencia aos imperativos dessanova sociedade que se queria fundar;para a qual a escola deveria concorrerfavorecendo 0 estabelecimento de urn

processo de forma~ao de longo prazo,durante 0 qual 05 individuos fossemeducados pelas (e para) as praticasdesse mundo fabricado pela razaoilustrada e que se constitufsse em urnaexperiencia uti! a nova ordem. Comoveremos, a Higiene fomecera urn mo-delo de organiza~ao escolar calcado narazao medica que ao ser constituido

r~tiraria do espa<;oprivado - religio-50 ou familiar - 0 monop6lio sobre aforma~ao dos meninos edas meninas.Para tanto, apela-se aos argumentos ci-entificos que recobrem urn amplo es-pectro de quest6es vinculadas a escola,tais como 0 problema da localiza<;aodos ediffcios escolares, da necessida-

de de urna edifica<;aopr6pria e apro-priada para funcionar como escola, doingresso dos alunos, do tempo e dossaberes escolares, da alimenta<;ao,dosono, do banho, das roupas, dos recrei-os, da gin<istica,das percep~oes, da in-teligencia, da moral e, inclusive, dasexcre~oes corporais. Do modelo higi-enico de escola destaquei, em virtudedas caracter1sticasdeste trabalho, tres

desses elementos para submete-Ios aanalise: 0 problema do espa~o escolar,do corpo e das leituras autorizadas ecensuradas pela/na escola.

Na Corte,23a formula~ao e a au-toria do projeto medico-higienico vol-tado para a organiza<;aoescolar podeser identificado tanto no lugar de for-ma<;ao dos futuros medicos (FMRJ)como no lugar de organiza~ao cien-tifica da corpora~ao medica (AIM).

No primeiro, isso pode ser evidencia-do especialmente por intermedio dapresen<;ada disciplina IlHist6riada Me-dicina e Higiene" na grade curriculare pela recorrencia desse tema nas te-ses que 05alunos eram obrigados a de-fender ao termino de seus cursos paraobten~ao do titulo de doutor. No se-gundo, isso pode ser verificado nasdiscussoes promovidas pela socieda-de da ciencia medica e registradas nosBoletins da referida Academia.24

Do projeto higienista, em seudesdobramento escolar, detivemo-

nos nos tres aspectos anteriormentemencionados (espa<;o,corpo e leitu-ra). Com isso, pretendemos apre-sentar urn quadro de referencia queindicie minimamente a perspectivado projeto medico-higienico, procu-rando analisar as respostas aos de-safios eas delibera~oesde se construir,na Corte e no Brasil,urna sociedade deescolas; enfim, urna sociedade higie-nizada .com 0 auxilio da organiza~aoescolar. Para tanto, constituiu-se urn

questionario com tres indaga~oes como qual passo a trabalhar:

1-Como a Higiene trata a ques-tao do espa<;oescolar?

2- Como a questao do corpo etratada nos discursos dos higienistas?

3- Ao se remeter a questao daleitura escolar, quais as recomenda-~6es estabelecidas pela ordem medi-co-higienica?

EDIFICAR E HIGIENIZAR-

o ESPAyO ESCOLAR

A decisao de instalar escolas

encontra-se visceralmente ligada as

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Page 11: GONDRA Medicina Higiene e Educação Escolar

500 anos de educarao no Brasil

Sededa

Faculdade de

Medicina do Rio

de Janeiro: luta

par urn edificio

proprioehigienizado.

condic;oes fi'sicasdo lugar em que deveria funcionar, isto e, ascondic;oestopograficas, climaticas, sanitarias, atmosfericas, de

ventilac;ao,de iluminac;ao,de salubridade, das aguas e de pro-ximidade ou nao das aglomerac;oesurbanas.25No caso da Cor-te, os registros de insalubridade sac bastante freqiientes, sejada parte dos viajantes estrangeiros, seja da parte das autorida-des preocupadas com as epidemias e os altos indices de morta-lidade, sobretudo a infantil. Evidencias que levaram 0 Dr.Tavares em 1823a clamar pela atenc;aodas autoridades para 0"desastroso quadro de insalubridade publica" existente na ci-dade do Rio de Janeiro.26Afastar-se desse quadro descrito erepresentado como negativo e insalubre constituia-se, pois, umcriterio para dispor sobre a localizac;aodas escolas obedecen-do, assim, as leis de uma natureza saudavel e produtora desaude. Tal afastamento era visto como uma estrategia de pro-duc;aode uma escola e de formac;aode individuos afinados coma pedagogia da natureza, recurso que, no limite, possibilitariaum redesenhamento do urbano e do humano.

o afastamento das aglomerac;5esja era indicado por Rous-seau no livro IV do "Emilio", em que trata da "!dade das Ra-zoes e das Paix5es". Afastar-se do urbano era tido como um

procedimento necessario para afastar "0 seu Emilio" dos peri-gos, precipicios e abismos; metaforas empregadas para indicaros riscos gerados pelo ocio, solidao, leitura, vida indolente esedentaria, companhia das mulheres e dos jovens dos quais de-sejava proteger 0 seu aluno imaginario, um jovem entre 15e 20anos. E, pois, com essa intenc;aoque apresenta, como norma, 0isolamento do urbano, pois, para Rousseau" A precauc;aomaisrapida e mais facil e tira-Io do perigo local. Levo-o primeiropara fora das cidades, para longe dos objetos capazes de tenta-

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Medidna, higiene e educapo escolar - Jose G. Condra

10".27Admitia, contudo, a insuficiencia

dessa medida caso os objetos perigo-sos nao fossem afastados das lem-

branc;as do jovem. Nesse momento,contudo, considero importante reter adefesa do isolamento do aluno "ima-

giruirio", aspecto que, pelo menos naCorte, sera apropriado como criteriopara justificar a localizac;aodos edifici-os escolares.Tal criteriocomparecenosdiscursos dos higienistas e dos adep-tos desse discurso como, por exemplo,nos escritos do advogado Rui Barbosa.

Dia 21 de dezembro de 1871.

Sessao da AIM. Vma questao incoma-da os medicos e a Medicina. Vma in-

terrogac;ao e formulada: "Concorrerao modo porque sac dirigidas entrenos a educac;ao e instrucc;ao da moci-dade, para 0 bene fico desenvolvi-mento physico e moral do homem?"Tal indagac;ao pode ser entendidacomo uma provocac;ao a razao medi-ca e, dentro da sistematica de funcio-

namento daquela sociedade, urn dosseus membros titulares foi destacado

para desenvolve-la e responde-la. Ta-refa, entao, desempenhada pelo Dr.Luiz Correa de Azevedo.28

Dia 6 de abril de 1872. Sessao

da AIM. Vma resposta e oferecidapor urn medico a elite da corpora-c;ao.Trata-se da resposta formuladapelo Dr. Correa a questao "imposta"nas antevesperas do natal do ana an-terior pela Academia. Nessa respos-ta, 0 medico nao hesita em

demonstrar sua competencia ao ana-lisar globalmente a questao pela qualficara responsavel. Nessa resposta epossivel perceber 0 recurso a esta-tistica, meteorologia, topografia egeografia como saberes auxiliares a

ordem medica para defender a posi-c;aoacerca da localizac;aodas escolas.Ao diagnosticar 0 espac;o do "valle"do Rio de Janeiro, 0 medico descreve-o como urn imenso anfiteatro, comourn vasto receptaculo de umidade,dando urn solo apodrecido em aguasestagnadas, ern lodac;aisdesprezadose, alguns, ate conservados. AMmdisso,critica 0 modo como 0 homem inter-

veio na geografia carioca afirmandoque velhas conveniencias dos antigoscolonos mergulharam choc;ase case-bres dessa antiga cidade entre mOITOSe desvios. Retendo urn pouco mais seuolhar sobre a cidade, termina por des-creve-la como urna vala:

liE como uma grande valla tortuo-sa em cujo leito se assentar~o ha-bita\Oes,descurando-se de todas ascondi\oes de architectura e venti-la\ao que a hygiene de nossos diashci sanccionado e aceito, e contraas quaes nenhum povo policiadoe culto nao tern nada a oppor".29

Mas nao e tudo. Ajustando ain-da rnais as lentes, 0 Dr. Correa afirma:

o Rio de Janeiro, bem observado, esemelhante a urn vasto corti\o, ondese abrigao classesde emigrantes im-mundos e ignorantes. Contra os er-ros desta classe, que e numerosa, eque tambem conta alguns ricos epoderosos, que p6de fazer a classeintelligente e culta desta capital?

Alta temperatura, humidade cres-cente, emana\oes de centros aglo-merados de homens que economi-sac ate na limpeza do corpo, fazemdeste meio habitado, tornado emgrande parte urn loda<;al,urn focode miasmas perennes, cuja ac\ao aconstitui\ao medica de cada anno,torna 0 quadro nosologico capri-choso e complexo.30

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500 anos de educapo no Brasil

Descrevendo a cidade como mal delineada, mal cons-

truida, mal ventilada, tirnida, quente, fetida, insalubre, de ar-quitetura mesquinha e defeituosissima no tocante aos trabalhosde higiene publica, policia medica e educa~ao higienica, essemedico cria condi~oes para recusar a instala~ao de predios pu-blicos junto a esse nucleo urbano, representando-o como fococontinuado de males. Corn isso define e defende a necessida-

de de reordenarnento higienico do espa~o urbano e de suasedifica~oes. E, tarnbem, do espa~o escolar. No que se refere asfor~as que intervem na forma~ao higienica da mocidade, essemedico prioriza tres: a casa, a mae e os coIegios.

Ao referir-se aos colegios denuncia que, chegada essahora, ai come~ava "a nova obra da mais culposa destrui~ao dophysico e do moral da mocidade", pois, para ele, esses estabe-lecimentos nao passavam de indUstrias ern que se trocavampoucas coisas do saber humano por "algumas remunera~oes",assinalando tarnbem que eram casas onde a educa~ao nao eracuidada rninuciosarnente e aqueles que da familia pouco leva-vam ern terrnos de moral e costumes, deixavarn esse pouco "nosdorrnit6rios e folguedos". Alem disso, de acordo corn as lentesdesse medico, erarn casas mal ventiladas e corn nenhuma capa-cidade para comportar 0 nl1rnero de discipulos que recebiam,cujo ensino era vazio e enganoso, ern meio a indisciplina quecorroia a mocidade. Corn base nesse diagn6stico, ele faz urnveemente apelo aos homens de seu tempo, aos seus pares:

Oh! Nao. Homens da epoca e do Brazil, nao consintais que 0collegio seja uma perigosa banalidade industrial. Fazei delleurn seio de educa~ao e de saos prindpios de instruc<;ao;fazeidos pequenos pensadores uteis e esfor<;adose, das meninasuteis mulheres maes do futuro, maes que resgatem a materni-dade da criminosa indolencia em que jaz. Dissestes urn diaque no Brazil, d'ahi em diante, ninguem mais nasceria escra-vo: pois bem; sede coherentes: Salvai na pia da familia e napia da escolaesseschristiios,escravosda ignoranciae da pre-judicialissima falta de principios saos de educa~ao.31

o apelo, como se pode ver, pode ser desdobrado na edu-ca~aoferninina e na dos meninos. Dois focosno apelo enunciadopelo Dr. Correa. Ambos necessitando serem modificados por in-terrnedio da adesao aos irnperativos higiemcos, dentre os quaispode-se destacar a pr6pria cren~a no poder indeterrninado daeduca~ao. Modelada pela Higiene, a educa~ao e representadacomo um elixir responsavel pela instala~ao de uma nova era,como fica evidenciado na fala de conc1usaodo doutor. Na 6tica

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Medidna, higiene e educarao escolar - JoseC. Condra

por ele defendida, a educac;aobem cui-dada salvaria as mulheres e os filhosdos inconvenientes de uma vida anti-

tropical. Uma s6lida e adequada ins-truc;aodaria a todos aquela seguranc;ade si, aquela grave vontade de recla-mar 0 que e para 0 bem de todos e to-das as regras higienicas e sociais quetomavam 0 homem um ente superior.A educac;ao,continua ele,materialmen-te falando, "e como 0 suco gastrico, 0Unico poderoso auxiliar para a diges-tao e, esta, sendo perfeita, e a garantiada forc;ae da saude", cabendo aos me-dicos, "illustres e autorisados", salvar

do aniquilamento 0 povo que, de acor-do com 0 Dr. Correa, admirava e acre-

ditava nos medicos (e na Medicina), jaque eram homens da ilustrac;ao.Por-tanto, partidarios e defensores da ra-zao, a quem caberia, entao, redimir osmales da cidade, da casa,das maes, dos

colegiose dos mestres, dentre outros.

A questao do espac;o escolar,desdobrada nos aspectos da localiza-c;aoe da arquitetura, e partilhada porum jurista notavel. Rui Barbosa, em1882,publica um extenso parecer so-bre instruc;ao propondo uma amplareforma do ensino primario e de va-rias instituic;5es complementares dainstruc;ao publica. 0 xvrn capitulodessa obra trata, especificamente, doaspecto da Higiene Escolar. Esse ca-pitulo, apesar de escrito por um ad-vogado, encontra-se fundamentadona ciencia medica, 0 que pode ser evi-denciado pelas recorrentes citac;5esaos higienistas, tais como Riant, Fons-sagrives, Buck e Guillaume, alem derecorrer tambem a Rousseau, uma das

"radicalidades iluministas",32 cujaobra foi fartamente apropriada pelos

medicos, especialmente 0 seu tratadosobre educac;ao, "Emilio".

Com os pes no Brasil, ~as comos olhos e os ouvidos na Europa e nosEstados Unidos, 0 advogado brasilei-ro inicia 0 capitulo sobre higieneescolar repetindo express5es de umprimeiro- ministro do Reino Unidopor intermedio do qual fixa sua posi-c;aosobre 0 tema da higiene. Aderin-do ao conceito do chefe ingles, repete:"as quest5es de higiene sobreexce-dem, pela sua importancia, a todas asoutras, e para um estadista realmentepratico nao as ha superiores". Ao re-petir essas palavras e adota-Ias comoconcepc;ao,volta-se para 0 Brasildiag-nosticando, combase naquela chave deleitura, a imensidade do atraso cientl-fico e administrativo do pais onde,pela higiene escolar, ainda nao se ha-via comec;adoa fazer nada.

Para demonstrar 0 quadro pa-tol6gico da influencia da escola nasaude das novas gerac;5es,mantendoolhos e ouvidos na Europa e nos Es-tados Unidos com auxflio do's ndme-

ros (as estatisticas), apresenta umalista das doenc;as produzidas e/ouagravadas na/pela escola: miopia,ambliopia, astenopia, desvios da co-luna vertebral, cefalalgias, epistaxis eraquitismo. Com relac;aoas tres "ano-malias" ou "degenerescencias" doaparelho visual produzidas no correrdos anos escolares, uma causa e iden-

tificada: a arquitetura. Modo de cons-truir que nao levava em considerac;aoas praticas de leitura, escrita e dese-000 que se dariam no interior dos es-tabelecimentos escolares. Como

soluc;aoprop5e uma nova arquitetu-ra que, levando em considerac;ao as

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500 anos de educa~o no Brasil

U ilia nova arq II i tet II rnevitaria qlle as

esco/as COlltillllllSSelll a ser

fribricils de lIIiopes.

especificidades do edificio escolar, dispusesse as janelas dassalas de urn solado, a esquerda dos alunos, de tal modo quetodos os lugares ficassem plena e igualmente claros, reser-vados os meios de arejamento. Essa medida evitaria que asescolas continuassem a ser "fabrica de miopes", de acordocom os higienistas.

Dando continuidade a defesa da higiene escolar, RuiBarbosa faz questao de lembrar, alem da arquitetura/ilurni-nac;ao/arejamento, outros elementos que dificultam a boa hi-giene escolar: a influencia da vida urbana com seus "horizontesacanhados"; os compendios e os manuais de leitura, que pela"qualidade dos caracteres, pela excessiva densidade da materiaimpressa, pela escassez de espac;osinterlineares, cansam e exte-nuam as crianc;as";e os processos "viciosos" de escrita, ordina-riamente adotados nas escolas. Estes ultimos, segundo ele,sobressaiam "na primeira ordem entre as origens capitais, naoso das enfermidades da visao como das deformac;6esdo corpogeradas pela escola, a fatalidade das posic;6escontrafeitas, a queos alunos saDcondenados entre nos pela mobilia inadequada, deque geralmente nos servimoS".33

Com relac;aoao mobiliario, dedica-se a difundir resulta-dos de estudos feitos em diversos paises da Europa para che-gar a urna formula higienica de construc;ao e uso dos "bancosescolares", apresentado medidas, quadros, tabelas e resultados

das investigac;6espromovidas em nome daordem medica. Do mesmo modo, outro

criterio que deveria definir regras para aengenharia civil seria a questao do consu-mo de ar. Definida a capacidade de consu-mo por individuo, esta deveria guiar a

construc;ao das salas e, conseqiientemente, a definic;ao do nu-mero de alunos por sala e na escola como urn todo. Outra vez,Rui apoia-se em estudos de higienistas, tabelas, quadros, medi-das e diagnosticospartilhados pelos medicos.Para sintetizar partede suas preocupac;6es,ele afirma que nenhurn dos Estados (civi-lizados) onde a escolaera "urna realidade seria deixou, nem podedeixar, amerce da ignorancia, ao arbitrio dos interesses a dispo-sic;aodas casasdo ensino popular"; enurnerando os aspectos quedeveriam ser levados em considerac;ao:

Oesde a escolha do sitio, da qual disse urn higienista que 'nada. mede melhor 0 adiantamento da civiliza<;ao de urn povo', des-de a exposi<;aoda escola, a sua orienta<;ao, ate 0 numera, 0

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Medicina, higiene e educapio escolar- jose G. Condra

tamanho, a colocac;aodas janelas;desde a qualidade do material ateas dimens6es das portas, as condi-c;6esde isolamento das escadas, aforma curvilinea ou angular doscantos; desde 0 ginasio que, nos pa-ises onde a educac;ao comum esmracionalmente organizada, como aSuic;ae a Holanda, existe em todasas escolas rurais e urbanas, e de to-das as escolas constitui parte essen-cial, desde 0 patio de recreio com5 ou 6 metros superficiais paracada aluno e 0 avarandado cober-to para os dias de intemperie, com1 metro, pelo menos, por crianc;a,ate a extensao, a situac;ao e a incli-nac;aoda pedra no recinto da clas-se; desde a distribuic;ao do tempoe a durac;ao dos recreios; desde aluz e 0 ar ate a temperatura; tudono regimen da higiene escolar,esta subordinado a leis cientificas,cuja infrac;ao vitima as gerac;6esnovas, e fere 0 pais no primeirode seus interesses: a vitalidade da

rac;aque 0 povoa.34

Esse detalhado roteiro para ins-tala~ao de escolas reforc;aas teses daracionalidade medica que, na 6tica doadvogado baiano, deveriam ser trans-formadas em lei, porque frutos daciencia. No en tanto, 0 roteiro da hi-

giene e da higienizac;aodas escolasnaose reduziria a essas medidas. Ele pro-curacruo~outrosrerrirorioseRw

Barbosa prossegue, afirmando que 0papel da higiene escolar nao deveria selimitar aos cwdados que acabara deenumerar, acrescentando que 0 domf-nio da organizac;ao escolar deveriaabranger a profilaxia de todas as mo-lestias do homem na idade dos estu-

dos primarios; a regulamentac;aoescrupulosa das medidas essenciaiscontra as doenc;as transmissiveis; a

verificac;aodo restabelecimento com-

pleto nos casos de enfermidade agu-da ou contagiosa, chegando mesmo ao

emprego sistematico da medicina pre-ventiva contra 0 desenvolvimento das

afec~6es constitucionais e cronicas e,tambem, das diateses herdadas ou ad-

quiridas nos primeiros anos. Nessesentido, afirma que a escola seria 0lugar privilegiado para se vacinar e re-vacinar os jovens e, para que esse con-junto de ac;6espudesse ser levado aurn born termo, prop6e a criac;aodoservi~o de inspec;ao higienica das es-colas, a ser exercido por profissionaishabilitados, os medicos-inspetores.Estes deveriam possuir urn conjuntode qualidades, detalhadas pelo advo-gado, tais como 0 sentimento do de-ver, a simpatia pelas crianc;as, osconhecimentos tecnicos variados, 0

poliglotismo e a aptidao para 0 ensi-no, dentre outras, de modo a executarcom sucesso tarefa tao necessaria.

Na dilatac;aodo raio de ac;aodaHigiene e na especializa~ao desse ser-vic;o estaria a chave mestra para fa-zer com que a escola cumprisse 0duplo desideratum de instruir e. mo-ralizar, aspecto este que, para Rui,tambem constituia-se em uma das fi-

nalidades da escola higienica:

Se encaramos, e com fundamento,a escola como agente de moraliza-c;aoque deve contribuir para des-povoar as pris6es e as gales, temosigualmente 0 direito de considera-la, sob 0 aspecto que nos ocupa,como destinada a aliviar 0 orc;amen-to dos hospitais e dos hospicios.35

Fica claro 0 poder conferidoa escola ja que, aMm de retirar a

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SOOanos de educaf80 no Brasil

ed uca<;aodas novas gera<;oesdo monop6lio da casa e da igre-ja, serviria tambem, caso funcionasse de acordo com os impe-rativos da ordem medica, para esvaziar as prisoes e as gales aofabricar urna moralidade higienica e higienizadora.

Nesse amplo roteiro da higiene para as escolas, principia-do pela defini<;aoda localiza<;aoe edifica<;aoescolar, continuadocom a discussao da ocupa<;aoe uso do predio, bem como de pra-ticas que ai seriam desenvolvidas, cabe destacar duas delas jaligeiramente referidas: as corporais e as de leitura. Quanto ascorporais, e 0 pr6prio Rui, nesse mesmo parecer, que fomece 0mote, ao citar a obra de Hayem,36na qual esse autor, ao referir-sea realidade francesa, chamava a aten<;aopara os vinculos entre aeduca<;aodo espirito e a do corpo, tecendo 0 diagn6stico de urnaafrontosa indiferen<;ano tocante a saude e ao vigor dos alunosdas escolas francesas, exclamando: "Que bela tarefa nao fora a

de colocar, assim, em boas condi<;oesde salubridade e desenvol-vimento corp6reo esses cerca de oito milhoes de crian<;asquefreqiientam 0 ensino primario!" E deixa urna pergunta em for-ma de provoca<;ao:"Calculam a influencia decisiva que, destefato, resultaria abem do pais?"37Basta retomar aos diagn6sticosdo Dr. Correa para se aquilatar 0 peso dessa exclama<;aoe inter-roga<;aoem urna cidade e em urn pais cujos tra<;osindicavamurna distancia abissal entre 0 lugar no qual os pes do advogadobaiano pisava e aqueles para os quais seus olhos e ouvidos esta-yam voltados. A tarefa por aqui, alem de higienizar os poucosque podiam freqiientar a escola no Brasil,multiplicava-se diantedas desigualdades e explora<;6esradicais, cujo emblema maiorera 0 de ser urna terra de escravos e da escravidao.

CORPO MODELADO,

CORPO HIGIENIZADO

A questao do corpo, do movimento, dos exercicios ou daginastica e urna preocupa<;aoque ocupa lugar privilegiado naagenda medica fazendo com que, ao tratar da educa<;aoescolar,tambem inclua esse tema como urn dos aspectos a ser observadono rol de recomenda<;oespor eles estabelecidas, de modo a pro-duzir urn colegio, alunos, alunas, professores e mestras higieni-zados.38 Esse tema e registrado em suportes materiais e porautores diversos como fica evidenciado desde a primeira obra,

referida pelos pr6prios higienistas, que aborda essa questao - ade John Locke -, ate as publica<;6esmais recentes. Fil6sofos,

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Medicina, higiene e educarao escolar -Jose C. Condra

jornalistas, literatos, advogados e me-dicos, por exemplo, irao tematizar a

questao do corpo. Medicos em proces-so final de sua forma<;ao,medicos emexercido profissional e dentro de sua

sociedade cientfficae medicos que es-crevem para professores indidam queos sujeitos da racionalidade medica

transformaram 0 corpo do escolar e aspraticas escolares em objetode seus es-tudos. Valeexaminar 0 discurso de urnmedico ao tratar desse tema.

No dia 9 de dezembro de 1852,o jovem Francisco Antonio Gomesrealizou seu ritual de finaliza<;aodocurso de Medicina a partir do desen-volvimento de tres quest5es tiradas asorte, em tomo das quais demonstroucompetencia discursiva para 0 exerd-cio profissional e 0 definitivo ingressona ordem medica ofidal. Vma das

quest6es obrigou-o a abordar "a in-fluencia da educa<;ao fisica no ho-

mem", cujo Wcio e uma especie delouva<;ao a figura dos educadores,atribuindo a a<;aodestes a possibili-dade de mudar a face do mundo. Para

ele, educar constitufa-se de uma a<;aocom urn triplo desdobramento: dire-<;aodo fisico,aperfei<;oamentoda mo-ral e cultivo da razao e da inteligenda.Educar deveria, pois, significar a pos-sibilidade de constitui<;aode urn indi-viduo forte, robusto, puro e sabio.

Ao espedficar que sua tarefa eraanalisar 0 homem naquilo que diziarespeito ao aspecto fisico,0 Dr. Gomesassinala que tal preocupa<;ao deveriaanteceder a propria gesta<;aoe nasci-mento, tra<;andourn conjunto de pres-cri<;6esvoltadas para a higieniza<;aodo casal, isto e, da fanuna nuclear.

L'BDUCATIONPHYSIQUE

DES GARCONSA\'IS AIJX~'AlfII.I.I';~,\. .IIIX INSTITlJn:IJIIS

SUR I:ART DE nIAlnF:n U:IIII :>:\:\T.: R1' I.MIII IIt:\'RI,III'I'r\fr.~r

J.-B. FONSSAGIIIVES

PARIS

CII. JlBI.AGIlA VI! 1.:1'c~, 1.lDnAIIII!>\-I~J)JTF.UIIS

nUR 111>10 f.COLt.:S. ;8

JIfiU

a corpo como objeto da Higiene.Capa de livro do famoso higienista

frances, Dr. Fonssagrives.

Em seguida, destaca 0 papel dos par-tos e das parteiras, indicando que taloficio deveria estar submetido aosca-

nones da medicina para, ato continuo,tecer considera<;6ese recomenda<;6esvoltadas para a preserva<;ao da vidado recem-nascido.

Finalmente, aborda a idade de

ingresso nos colegios denunciandoque a organiza<;aoescolar, da formacomo vinha funcionando, constituia-

se em urn lugar pautado na imobi-lidade e no vido, contrariando os

imperativosmais caros a ciencia me-dica. Acrescenta, ainda, criticas ao cur-

riculo, a alimenta<;ao e a organiza<;ao

do tempo escolar.0 ordenamento pro-posto pela doutrina medico-higienicaqueria por fim aos semblantes placi-dos, descamados, contristados e sem

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500 anos de educapo no Brasil

expressao que, segundo 0 diagn6stico do medico, e 0 que sepodia ver, lanlJando-se urn "golpe de vista para os pensionis-tas de nossos collegios". E, pois, contra esse quadro que ape-lava para solidariedade dos "directores dos collegios" com 0conceito de educar que a Higiene queria ver legitimado.

Ao caracterizar a educalJao na infancia como tempo dorepouso para 0 cerebro e exercicio para os mUsculos, ele com-plementa a codificalJaodo tempo escolar, invadindo os recreios,indicando osexerciciosque deveriam ser privilegiados nessa oca-siao: a mUsica,0 canto e a danlJa.A primeira porque "desenvol-ve e regula as aptid6es do orgao da audilJao";0 segundo porque"pOe em aClJiioos orgaos respiratorios, communica-lhes a for-lJa,e engrandece 0 peito" e a danlJa porque "alem de desen-volver, (...) os membros inferiores, imp rime ao corpomovimentos regulares e regula a cadencia." Alias, a preocu'-palJao com 0 preenchimento do tempo livre e urn principiocaro a higiene, na z.nedida em que 0 tempo cheio e ocupado,especialmente pelos exercicios fisicos,era entendido como urnaeficaz medida preventiva.

Ao nosso ver, a defesa dos exercidos corporais encontra-se radicalizada por ocasiao do combate aquele que era conside-rado 0 mais grave e terrivel dos vidos: 0 onanismo. Tal habito,descrito como vido, provocaria 0 aniquilamento fisico, perver-teria a moral e reduziria a inteligenda. Exalu'ir fisicamente 0corpo e entorpecer 0 espirito de aconselhamento moral seriam,portanto, estrategias para interditar 0 corpo dos meninos dapratica masturbat6ria, que, no interior da ordem medico-higie-nica, concorria para impedir a constituilJaode urn corpo forte erobusto, urna boa moral e urna sabedoria desejada. No curnpri-mento desse roteiro estaria 0 remedio contra 0 raquitismo e afraqueza, contra 0 demonio dos vidos e a ignoranda. Para essemedico, porta-voz da doutrina de seu offdo, se "aquelles quese acham a testa dos estabelecimentos de educalJao" seguissemcuidadosa e obedientemente esse roteiro estariam desempe-nhando "0 seu dever, e importante missao que lhes foi confia-da, e terao satisfeito os desejos ardentes daquelles que lheshouverem confiado seus filhos".

Essa tese sugere uma sofisticalJao no modo de tratar aquestao do corpo, deslocando-a do conjunto de exercidos e ati-vidades corporais (sob a designalJao de ginastica escolar oumesmo educalJaofisica)para 0 ambiente familiar, escolar e daspraticas ai desenvolvidas, e urna oficializalJao desse tipo de

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Medicina, higiene e educarao escolar- Jose G. Gondra

orienta~ao, na medida em que e sub-metida publicamente a urn ritual.Sugere 0 ingresso do corpo na ordemmedica a partir de um mecanismo deformula~ao dos preceitos higienicos,de modo a colocar a familia, os edu-

cadores, os educandos e a pr6pria es-cola sob "0 manto da higiene". Escritaque, portando multiplas sugest6es,procura fazer ver que a educa~ao naoseria eficaz e plena caso nao abrigassea dimensao corporal em sintonia comos canones da higiene, de modo a seconquistar um corpo forte e saudavel.Educac;ao que, concebida nesses ter-mos, promovia a crenc;ade sua irre-dutibilidade ao fisico, ao moral ou ao

intelectual. Para tanto, antecipar e so-fisticaras modalidades de higieniza~aocorporal pode ser considerada comouma estrategia para manter atualiza-do e necessario 0 pr6prio saber medi-co-higienico, 0 qual, como se disse,pretendia-se colonizador, invadindo,ocupando e conquistando novos terri-t6rios, inclusive 0 interior da familia e

da escola.39Nessa dire~aoprocurou re-cobrir outras praticas tipicas da escolacomo, por exemplo, a da leitura.

LEITURAS AUTORIZADAS

E CENSURADAS

A higienizac;ao da leitura podeser trabalhada na perspectiva das pos-turas adequadas para 0 desenvolvi-mento desse ato, assim como nos

mobiliarios e na boa ilumina~ao paraque se efetivasse e tambem pela ana-lise do pr6prio modo e tecnicas de ler,incluindo-se ai as praticas de leiturasilenciosa, em voz alta, recita~ao e

respira~ao adequada, de modo a co-ordenar os 6rgaos respirat6rios como born uso dos aparelhos de fona-~ao. Tal questao poderia ainda seranalisada pelas leituras considera-das higienicas e, aquelas outras, con-sideradas perniciosas ou malditas.Do projeto de higienizac;ao da leitu-ra e esse ultimo aspecto que sera aquiexaminado. Que leituras eram reco-

mendadas pelos higienistas? Porque? 0 que consideravam como lei-turas malditas? 0 que motivava acensura medica a respeito do que de-veria ser lido no espac;o escolar?

Durante 0 estudo de algumasteses medicas, surpreendeu-me a pre-sen~a de referencias as leituras mo-rais que deveriam ser realizadas nasescolas, tomando-se por base 0 queera recomendado por Rousseau, quedestacava urn genero de literatura (asfabulas) e, desse genero, urn autor(Jean Marie de La Fontaine), desta-cando tambem uma outra obra: Ro-

binson Crusoe.40Note-se que essas re-comendac;6es datam de 1762,ocasiao

da primeira publica~ao do Emilio emParis. Nesse livro podem ser encon-trados os argumentos de defesa paraas duas leituras "escolares" indicadas

pelo escritor suic;o e acolhidas pelosmedicos brasileiros no seculo XIX.

Que justificativas Rousseau e os hi-gienistas encontraram para a defesado ingresso de La Fontaine e Crusoeno interior das escolas? Por que essase nao outras obras?

Ao refletir acerca daquilo queseu aluno "imaginario" deveria ler,Rousseau estabeleceuma primeira res-tri~aoque, no caso, se refere a idade

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SOOanos de educapo no Brasil

para 0 contato com os livros. Para ele, 0 contato com os livrosniio deveria ocorrer durante "a idade da natureza", isto e, antes

dos 12 anos. Ate essa idade, 0 livro das crian~as deveria ser aqui-10que viam e ouviam, enfim, tudo que as rodeasse. Nesse senti-do, contra-indicava as leituras em livros, "nem mesmo as fabulas,

nem mesmo as de La Fontaine, por mais ingenua e encantado-ras" que fossem. Na defesa da "natureza" como" 0 livro" a ser

lido pelas crian~as, ele acentua a critica ao generalizado empre-go das fabulas na educa~iio. Nesse sentido, ele se coloca:

Como podemos ser tao cegos a ponto de chamar as fabulasde a moral das crianc;as, sem imaginar que 0 ap610go, ao di-verti-Ias, engana-as, que, seduzidas pela mentira, elas dei-xam escapar a verdade e que 0 que fazemos para tornaragradavel a instruc;ao impede-as de tirar proveito dela? Asfabulas podem instruir os homens, mas devemos dizer a ver-dade nua para as crianc;as;quando as cobrimos com um veu,elas nao se dao ao trabalho de retira-Io.41

Para reafirmar a inadequa~iio dessa leitura na "idade danatureza", ele reconhece que a pratica recorrente era a de fazercom que todas as crian~as aprendessem as fabulas de La Fon-taine, mas, segundo ele, niio havia urna Unicaque as entendes-se e, mesmo que houvesse urn entendimento, ele assinala queisso seria ainda pior, pois considerava a moral da fabula impu-ra e fora de propor~iio com rela<;aoa idade, fato que conduziriaas crian~as mais ao vicio do que a virtude. Para confirmar suascren~as, convida 0 leitor a observa<;aodo que se processava naaprendizagem das fabulas, sugerindo 0 que seria visto:

(...) vereis que, quando estiio em condic;6es de aplica-Ias, fa-zem sempre em uso contrario a intenc;aodo autor e, em vez dese precaverem contra 0 defeito de que queremos preserva-Iaou cura-Ia, elas tendem a amar 0 vido com 0 qual tiram parti-do do defeito dos outroS.42

Uma atividade inutil e desnecessaria e como Rousseau

entende a leitura antes dos 10 anos. Para ele, com a supressaodo dever da leitura por parte das crian~as, estar-se-iam supri-mindo "os instrurnentos de sua maior miseria, os livros." A

pratica da leitura durante a "idade da natureza" para 0 autorsui~o constituia-se no "flagelo da infancia". No entanto, niiorenuncia a leitura. Apenas marca urn calendario para que Emi-lio tivesse contato com essa atividade. Esse calendario coincide

com 0 inicio da "idade da for~a", isto e, aos 12 anos: "Assimque completar 12 anos, Emilio sabera 0 que e urn livro". Antes

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Medicina, higiene e educarao escolar - Jose G. Condra

disso,leitura s6 daquilo que tivesseuma utilidade imediata: urn bilhete e

urn convite, por exemplo.

o primeiro livro, para Rous-seau, nao deveria ser 0 de fabulas.

Apesar de "odiar os livros" porques6 ensinavam a falar do que nao sesabia, reconhece a necessidade impe-riosa deles, indicando urn que, na suaperspectiva, era 0 melhor tratado deeduca\ao natural, devendo ser 0 pri-meiro livro a ser lido por Emilio, cons-tituindo-se, por bastante temposozinho, a biblioteca inteira, devendo

sempre ocupar urn lugar de destaque.

Sera 0 texto a que todas as nossasconversas sobre as ciencias natu-

rais servirao apenas de comen-tarios. Servira de prova durante 0nosso aprendizado sobre 0 estadode nosso jufzo e, enquanto nossogosto nao se corromper, sua leitu-ra sempre nos agradara. Qual e, en-tao, esse livro maravilhoso? SeraArist6teles? Sera Plinio? Buffon?Nao, e Robinson Crusoe.43

Ao indicar 0 primeiro livro do

seu aluno, para que momenta ele des-loca 0 trabalho com as fabulas? Como

justifica a sele\ao do livro de Crusoe?

Rousseau desloca 0 trabalho

com as fabulas para a idade da "razaoe das paixoes", entre 15 e 20 anos, ida-de que coincide com" 0 tempo dos er-

ros" que, para ele, e 0 das fabulas, pois,

"censurando 0 culpado sob uma mas-cara alheia, instruimo-Io sem ofen de-

10 e entao ele compreende que 0

ap610go nao e urna mentira por causa

da verdade de que e uma aplica\ao".

Ao admitir 0 emprego das fabulascomo urna estrategia de ensinamento

moral, 0 autor sui\o nao 0 faz sem re-paros a esse genero de literatura. Paraele, as fabulas seriam mais eficazes seas maximas morais nao fossem desen-

volvidas e enunciadas. A supressaodaria margem para que 0 discipulo en-contrasse urn maior prazer na instru-\ao, ja que nem tudo estaria dito,afirmando que "e preciso sempre sefazer entender, mas nao devemos di-

zer tudo sempre; quem diz tudo, dizpouco, pois no final ninguem mais 0escuta." Ao final, refor\a sua recomen-da\ao visando a obten\ao de umamaior eficaciadas fabulas:

Eu gostaria que, antes de se coloca-rem as fabulas desse autor inimita-

vel entre as maos de urn jovem,fossem retiradas todas essas conclu-

soes pelas quais ele se esforc;a porexplicar 0 que acaba de dizer demodo tao claro e agradavel. Se vos-so aluno s6 entende a fabula com 0

auxflio da explicac;ao, podeis estarcerto de que nao a entende nemmesmo assim.44

Maior eficacia que seria atingi-da caso se conjugasse essa recomen-da\ao com urn novo ordenamento naleitura delas; mais didatico e confor-

me os progressos dos sentimentos edas luzes do jovem adolescente. Essadupla altera\ao possibilitaria que asfabulas viessem a curnprir efetivamen-te a fun\ao de urn recurso eficaz paraeduca\ao moral e, desse modo, deve-riam ingressar no espa\o das escolasauxiliando na higieniza\ao e morali-za\ao dos jovens. Esse objetivo, con-tudo, deveria ser iniciado com 0 livrode Crusoe, como ja foi indicado, porser considerado como urn verdadeiro

tratado de educa\ao natural.

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500 mos de educafao no Brasil

A historia de Robinson Crusoe e baseada em urn caso ve-ridieo, tendo sido escrita ha mais de 250anos.45Nesse romance

de aventura escrito em primeira pessoa, 0 narrador conta 54anosde sua vida, concentrando-se nas aventuras ocorridas apos 0 nau-fragio de sua embarca~ao de seis canh6es que, partindo do Bra-sil, dirigia-se a costa africana com 0 narrador, 14 tripulantes eurn pequeno carregamento para negociar: "Aqui tern inicio aaventura principal da minha vida. (...)Vai come<;ar,enfim a via-gem que voces esperam que eu conte. Equipamos 0 barco de 120toneladas e deixamos 0 cais a r de setembro de 1659.Eu tinha,

entao, 27 anos", indiea no primeiro capitulo da narrativa, intitu-lado "Em busca da liberdade". A aventura e considerada urn

tratado de educa<;aonatural na medida em que descreve a hist6-ria de urn homem que naufraga em alto-mar, atinge urna ilhadeserta e, a despeito das adversidades, consegue supera-Ias eviver feliz, mesmo longe de urn mundo civilizado.

Rousseau considera que 0 meio mais seguro para ele-var 0 homem acima dos preconceitos e ordenar os seus juizosde acordo com as verdadeiras rela~6es entre as coisas seria

colocando-se no lugar de urn homem isolado e julgando tudocom rela~ao a propria utilidade. Assim, estabelece 0 criteriofundamental que deveria guiar urna educa~ao natural: 0 dautilidade. Nessa dire<;ao,so deveria ser ensinado e aprendidoaquilo que fosse util ao homem. Sendo assim, a aventura deurn homem isolado e aquilo que a necessidade the obrigara aaprender funcionaria como urn born meio para instruir os jo-yens na perspectiva de urna educa~ao fundamentada no util.

Para Rousseau, "esse romance, despojado de todas assuas bagatelas, come<;andopelo naufragio de Robinson pertode sua ilha e terminando com a chegada do navio que vemretira-Io dela, sera ao mesmo tempo a diversao e instru~ao deEmilio durante 0 periodo de que estamos aqui tratando", dos12 aos 15 anos, ou a "idade da for<;a".Com essa leitura, 0 pre-ceptor "imaginario" quer virar a cabe~a de seu disdpulo, fa-zendo com que pense ser 0 proprio Robinson, vendo-se vestidode peles, com urn grande chapeu, com urn grande sabre grosso etodo 0 grotesco equipamento do personagem. Dessa forma, pre-tendia que Emilio ajuizasse as coisas do mundo com os olhos doindividuo isolado, forma encontrada para que identificasseaquelas que seriam, de fato, as necessidades do homem. Nessalinha de raciodnio, a experiencia "veridica" de Crusoe e exem-plar na medida em que, naufrago, ve-se obrigado a reaprender

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Medicina, higiene e educaplo escolar -Jose G. Gondra

a linguagem da natureza e, com ela,a propria sensibilidade do homem, aqual tern inicio pela descoberta deestar vivo:

No final, ja nao tinha mais for~aspara nadar; era carregado pelo mar,como urn tronco de arvore. E uma

onda, enfim,me depositou na praia.Estava meio morto de cansa~o,mascom urn desejo muito forte de so-breviver. Animado por ele,pus-mede pe. Come~ava andar, quandouma onda mais forte me ajudou, ati-rando-me longe, de encontro aareia. Senti entao a terra fume sobmeu corpo e respirei fundo, im6velsob a areia timida, sem poder acre-ditar que havia conseguido salvar-me. Mas era verdade: eu estavavivo e salvO.46

Vivo, gra~as tambem a urna es-pede de auxilio da natureza que, comourn personagem, ajuda a expulsa-Io domar rumo a terra firrne.Constatado ter

sido 0 Unico sobrevivente, inicia-se 0

aprendizado, ou 0 reaprendizado, apartir do que se estabelece urn roteiroque indica os conhecimentos necessa-

rios ao homem. As margens desse ro-teiro, apenas frivolidades e inutilidade.Como necessidades prirneiras:0corner,o beber eo dorrnir, seguido da necessi-dade de prote~ao contra as arnea~asdeurn mundo natural desconhecido.

Tendo 0 barco naufragado fica-do encalhado nas proximidades docontinente, Robinson se ve tentado a

recuperar alguns objetos que,lembra-va, poderiarn ser encontrados na em-barca~ao. Desse modo, empreendealgumas viagens ao barco resgatando,na prirneira delas, pao, arroz, queijo,carne-see a, trigo, agua mineral e

aguardente, roup as, ferramentas, ar-mas, muni~6es e p6lvora. Na segundaviagem recolheu duas gatas e urn ca-chorro, aMm de volumes nos quaishavia canetas, tinta, uma boa quanti-dade de papel, compassos, instrurnen-tos materna tic os, lunetas, mapas,livros de navega~ao e ate tres Biblias.Nas viagens que se sucederam, cercade urna dUzia,conforme relato do nar-

rador-personagem, foram recupera-dos "muitos outros objetos t1teis",sendo que a ultima viagem ao barcoreservara-lhe uma surpresa, pois en-contrara algum dinheiro ern moedaseuropeia e brasileira, metade em DurOe outra metade em prata, assinalandoque "a inutilidade de tal descoberta,que me seria tao conveniente ern cir-cunstancias norrnais, me fez sorrir corn

ironia." Desse modo, ja fornece ao lei-tor alguns elementos para que se rea-valiassem as regras que ordenavam 0mundo civilizado.

Ern seguida, 0 naufrago desen-volve urn conjunto de a~6es visandoassegurar sua sobrevivencia na se-guinte ordem, mas nao de modo ex-cludente: construir abrigo, ca~ar,organizar urn calendario, escrever,plantar, medicar-se, conhecer a geo-grafia, fabricar potes, pratos e traves-sas de barro, fazer paes e construirembarca~ao, dentre outras. 0 quartoano de perrnanencia na ilha e utiliza-do para que Crusoe fa~aurn balan~o eurna reavalia~ao da vida:

No quarto ano de minha permanen-cia, senti fortalecer-se em rnim aconvic~ao de que 0 mundo s6 eraurna realidade distante que ja MOme dizia respeito. Submisso a

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500 anos de educafao no Brasil

vontade divina, podia agora contemplar serenamente 0 mun-do maravilhoso que tinha a volta: a melodia dos passaros, avariedade de flores e arvores estranhas, os regatos de agua cris-talinas, 0 cenario encantado que tive a ventura de conhecer ain-da no esplendor de sua beleza natural e do qual era 0 Unicoeprivilegiado espectador. E me agradava particularmente 0 fatode ter livrado minha vida da pemiciosa influencia dos fatoresmais negativos do mundo civilizado: a competic;ao,a explora-c;aodo homem pelo homem, a maldade e a injustic;a.

Pensava nas moedas de aura que encontrara no barco naufra-gado e sorria ironicamente. Enfim, fui adquirindo uma novafilosofia de vida, e com ela uma inalterada e permanente sere-nidade. Dormia tranqiiilamente - porque vivia em paz comi-go mesmo - e amanhecia feliz por estar ViVO.47

Essa posilSao,colocada no meio da narrativa, vai se con-firmando ao longo dela, sendo reafirmada por ocasiao do re-torno ao mundo civilizado, acontecimento que se dciap6s urnaserie de aventuras que nao cabe, neste momenta, enurnerar.Retornando a chamada civilizalSao,Crusoe condui sua narrati-

va colocando em duvida se fora ele ou seu amigo Sexta-Feiraquem ficara mais assustado com a vida agitada e barulhentadas grandes cidades. Observando aquele novo mundo, seu ami-go, urn selvagem encontrado na ilha, diz: "Talvez sejam essesos verdadeiros canibais - comentou Sexta-feira certa vez,

apontando urn lorde. - Eles devoram as almas". "Eu concor-dei", finaliza, laconicamente, Crusoe, demonstrando com isso

ter sido reeducado pela natureza.

Esses elementos me parecem ser suficientes para justifi-car a escolha dessa obra por parte do ilustrado suilSO,urna obraque funciona como dendncia do mundo civilizado e urn bradoem favor da pedagogia da natureza por intermedio da identifi-calSaodaquilo que seria uti! a educalSaodo ser hurnano. Crusoee, para Rousseau, urn verdadeiro programa de reeducalSaodohomem, na medida em que possibilita a perceplSao de que epela "rela<;aosensivel com a utilidade, com a seguranlSa,com aconserva<;aoe com 0 bem-estar" que ele, Emilio, deveria julgar"todos os corpos da natureza e todos os trabalhos do homem",com base na recusa a competilSao,explora<;ao,maldade e injus-ti<;aentre os homens.

Aproximar-se de urna razao ilustrada do mundo e, tal-vez, a motiva<;aopara os medicos-higienistas brasileiros ado-tarem Rousseau como urna referencia que freqiienta muitosdos discursos dos iluministas tropicais fazendo, por exemplo,

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Medidna, higiene e educafffo escolar- Jose G. Gondra

com que 0 Dr. Joaquim Francisco dePaula e Souza, em sua tese escrita em

1857,na Ultimaproposic;ao,ao reconhe-cer que as obras adotadas nos colegiosbrasileiros eram no geral boas, creden-ciava-se para indicar a mais recomen-dada: a de Robinson Crusoe que paraele alem de recreativa fazia com que 0pensamento pudesse ser elevado aDeus, apreciasse a natureza, refletissee extraisse recursos da pr6pria for<;ain-dicando, assim, conhecimento da obra

e uma aguda aproxima<;aocom a in-terpreta<;aorousseauniana.

Fabulas e romances de aventu-

ras eram as altemativas que os medi-cos brasileiros apresentavam asleituras perigosas e que deveriam serproibidas. Ambos constituem-se asleituras autorizadas e, portanto, lei-turas higienicas, porque, funciona-yam como estrategia para as li<;oesdeboa moral. As outras deveriam ser

consideradas leituras malditas, poispoderiam concorrer para 0 despertardas paixoes e praticas nao chancela-das pela ordem medica, como bemassinala 0 Dr. Balbino Candido daCunha em 1854:

Urn dos inevitaveis e funestos effei-

tos das sahidas dos meninos e 0 co-

nhecimento de obras immoraes, quedeleimo 0 espirito inficcionando aimagina~o, e lhes fazem perder 0gosto dos estudos serios e uteis paralan\a-Ios a urn mundo phantasticoe corrompido, que faIsea 0 juizo e

perverte muitas vezes todos os sen-timentos honestos, que se lhes terninspirado: felizes quando a ignoran-cia e a frivolidade Moosao acompa-nhadas da ruina do temperamentoe inteira degrada\ao da alma.

Deve-se pois tomar as maiores pre-cau\Oes e exercer a mais activa vi-gilancia para impedir a introduc\aoem urn estabelecimento de educa-

\ao de romances e, em geral, dequalquer obra contraria as maximasda moral universal.

A leitura como urn perigo. A lei-tura como uma solu<;ao.Oscilando deurn p610a outro encontra-se a decisaode censurar ou de autorizar a leitura

nas escolas.Do lado do perigo, as obrasimorais e os romances. Do lado da so-

luc;ao,as obras consideradas moraliza-doras e higienicas. Ambas definidas apartir da razao medico-higienica, deurna razao ilustrada que, desse modo,atinge a escola em urna de suas prati-cas mais centrais: a da leitura.

HIGIENE, ESCOLA

E CIVILIZA<;Ao

A constru<;aode urna ordem ci-vilizada nos tr6picos constituiu-se emurn sonho dos homens da ciencia me-dica no Brasil do seculo XIX.Homens

cujosolliose ouvidos voltados para urnmundo considerado civilizado recusa-

vam-se a aceitar a vida e parte dascondi<;oes do pais em que viviam eno qual muitos deles haviam nasci-do e se formado. Homens que irma-nados pelo cimento de uma razaoilustrada construiram urna sociedade

cientffica, faculdades, fundaram e di-

rigiram peri6dicos, participaram desociedades literarias, foram escrito-

res, discorreram sobre 0 quartel, so-bre as febres e a nosografia tropical,tematizaram a loucura e 0 destino dos

cadaveres bem como as praticas de in-fantiddio,o tabagismo, 0 alcoolismo,

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500 anos de educafio no Brasil

a polui'1ao,as aguas, os ares, a topografia, 0 clima, a geografia, aquirnica, a fisiologia e a higiene; dentre outros. Homens que serecusaram a reduzir seu campo de interven'1aoao corpo do indi-viduo. Homens que, autorizados pela racionalidade que lhes davasuporte, procuraram transformar a sociedade em urn corpo aser, tambem, objetodo olhar e da aventura da razao medica. Nesseafa, dispuseram a escola sob 0 manto da Medicina, melhor di-zendo, sob 0 manto da Higiene.

Essa estrategia vinculava-se a cren'1ano poder quase ma-gico da razao. Magia que levaria a supera'1ao da ignorancia, dadegenera'1ao e da heterogeneidade social, evidenciadas na ter-ra tropical, na terra do imperador ena terra da escravidao. Nessesentido, tomou-se imperativo modelar a propria corpora'1aome-dica, ao mesmo tempo em que se procurava modelar outrasinstitui'1oes e praticas desenvolvidas. Nessa dire'1ao, inu.merosaspectos da organiza'1ao escolar foram constituidos em objetode aten'1aodo saber medico, como foi assinalado, dentre os quaisfoi dado destaque a arquitetura, ao corpo e a leitura. Esse mo-vimento, rurno a urna remodela'1ao da escola, tinha no hori-zonte a utopia de produzir uma sociedade escolarizada,regenerada e homogenea. Uma escola e urna sociedade higie-nizada. Enfim, uma sociedade civilizada na medida em que seacreditava, como bem explicitado na epfgrafe deste trabalho,vigorosamente na escola como" officina da nacionalidade", jaque seria nela que se forjaria "a tempera de a'1Oesdos povosque conduzem a civilisa'1ao".Utopia que esbarrou nas teimo-sias e rebeldias de urna sociedade que permanecia desigual,escravocrata, monarquista e patriarcal, apesar do romanticosoooo partilhado e difundido pelos homens da razao medicaou, talvez mesmo, em certa medida, por causa dele.

NOTAS

I 0 medico, Dr. Moncorvo Filho, fundador e diretor do Departamento da Crian~ado Bra-sil, 0 qual fora criado em 1/3/1919, ao escrever a obra Hist6ria da protefiio it inJancia noBrasil (1500-1922), apoia-se em Carneiro Leao, 1917, para confirmar 0 persistente quadrode abandono e ineficacia da instru~ao primaria no Brasil, 0 qual, segundo ele, modifica-secom a cria~o da Escola Normal do Rio de Janeiro em 1881. Para ele, datava daquele mo-mento uma "nova era para 0 nosso paiz, porque ate entio 0 ensino popular quasi se cingiaa uma simples e mal orientada leitura e peior escripta, as quatro opera~ e urn grandeapuro no conhecimento do cathecismo." MONCORVO FILHO. Hist6ria da protefiio it infan-cia no Brasil (1500-1922). 2. 00. Rio de Janeiro: Editora Paulo Pongetti, 1926, p. 122.

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Medidna, higiene e educapo escolar- Jose G. Gondra

2 Projeto que ganha forma escrita na letra da Constitui"ao promulgada em 25/3/1824,evento que pode ser adotado como data indicativa do inicio formal do Estado Nacional.No entanto, 0 periodo estudado encontra-se balizado pelos anos de 1808 e 1884, nosquais foram tomadas medidas relevantes no que se refere a organiza"ao do campo medi-co no Brasil. Datas que cumprem, neste trabalho, finalidade mais indicativa e menos derestri"ao temporal e/ou interpretativa.

3 Com rela"ao a primeira perspectiva, 0 livro do medico Jose Ricardo Pires de Almeidapode ser tornado como exemplar e, com rela"ao a segunda, 0 de Fernando de Azevedopode ser considerado como urn modelo. Cf.: ALMEIDA, Jose Ricardo P. Hist6ria da ins-tru~iio Pllblica no Brasil. Hist6ria e legisla~iio (1500-1889). Brasilia: MEC/INEP, 1989.AZEVEDO, Fernando. A transmissiio da cultura. Sao Paulo: Melhoramentos, 1976.

· Expressao de: CARVALHO, Marta. "A Configura~ao da historiografia educacional brasi-leira". In: FREITAS, Marcos C. Historiograjia brasileira em perspectiva. sao Paulo: USF/Contexto,1998.

5 Estudos preocupados em analisar a configura~ao e os procedimentos de legitima~o dessaordem profissional e cientffica ja foram desenvolvidos sem, contudo, privilegiar 0 cruzamen-to com a educa~o como, por exemplo, os estudos de COSTA, Jurandir Freire. Ordent midiae normafamiliar. 3. ed.. Rio de Janeiro: Graal, 1989 e MACHADO, Roberto et al. Danafliodanorma- Medidna sociale constituipio da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.

6 Entre eles lembrariaos de BASTOS,Maria H. C. 0 discursomidiconaconstihli~odocampoeducacional brasileiro no seculo XIX: a educa~o physica, moral e intelectual da moddade doRio de Janeiroe sua influenciasabrea saUde.Porto Alegre: UFRGs/FACED. s.d. (mimeo); osde CARVALHO, Marta M. C. Molde nacional e forma cfvica: higiene, moral e trabalho noprojeto da associa~o brasileira de educa~iio(1924-1931). Sao Paulo: Universidade de saoPaulo,Tese de Doutorado, 1989.

"Quando a hist6ria da educa~ao e a hist6ria da disciplina e da higieniza~ao das pessoas".In: FREITAS, Marcos Cezar. Hist6ria sodal da infancia no Brasil. Sao Paulo: Cortez/USF,1997;MARQUES,Vera R. B. A medicaliza~iioda ra~a- medicos, educadores e discursoeugenico. Campinas: Educa~ao UNICAMP, 1994; ROCHA, Heloisa H. P. Imagens doanalfabetismo: a educa~iio na perspectiva do olhar medico no Brasil dos anos 20. UNI-CAMP: Disserta~ao de Mestrado, 1995; "Pedagogia da boa higiene: uma leitura do dis-curso medico-pedag6gico nos anos 20". In: 19- Reuniiio Anual da ANPEd. Caxambu,1996. (disquete); "Um olhar sobre a cidade: a medicina e a constru~ao da cidade sauda-vel". In: Anais do VI Semintirio Nacional de Hist6ria da Ciencia e da Tecnologia. Rio deJaneiro: SBHC, 1997; "No~6es de hygiene": pniticas de leitura e forma~ao dbcente". In:Atas do II CongressoLuso-Brasileirode Hist6riada Educa~o - Vol.!. Sao Paulo: Facul-dade de Educa~ao da Universidade de Sao Paulo, 1998 e STEPHANOU, Maria. "A For-ma~ao de sujeitos higienicos: medicos-educadores na escola profissional". Caxambu: 19-Reuniiio Anual da ANPEd, 1996. (disquete); Praticas educativas da medicina social: osmedicos se fazem educadores. Hist6ria da educa~iio. Pelotas: UFPel! ASPHE, v. 1, nO 2,p. 145-168, set. 1997; "Governar ensinando a governar-se: discurso medico e educa~ao".In: Pesquisa em hist6ria da edllca~iio: perspectivas de analise, objetos e fontes. FARIAFILHO, Luciano M. (org.). Belo Horizonte: HG Edi~6es, 1999.

7Podemos antecipar que a condu~o de projetos educacionais apresentou alguns expoen-tes ao longo do secuIo XIX.Nesse sentldo podem ser destacadas a~6es como a dos medi-cos Abilio Cesar Borges e Joaquim Jose Menezes Vieira, ambos donos de escolas particularese com intensa participa~ao na vida publica e editorial. No inicio do secuIo XX poderiamosdestacar as figuras de medicos como Caetano de Campos, Afranio Peixoto e Miguel Coutopelo fato de terem se dedicado a causa educacionaI, seja na ~o de escola normal, noparlamento e na quesffio editorial, por exemplo. Segundo nossa compreensao, essesho-

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500 anos de educafao no Brasil

mens valeram-se, em suas intervenc;oes pedagogicas, das doutrinas construidas e ~lhadas pela ciencia medica.

8 Rousseau, entretanto, em seu tratado de educac;ao,Emilio,problematiza 0 valor da ~"~,..cina ao descreve-la como uma "arte enganosa", ressaltando, porem, que "a Unica p~uti! da medicina e a higiene". ROUSSEAU, J. J. Emilio ou da Educa(iio. Traduc;k ':;;f:Roberto Leal Ferreira. Sao Paulo: Martins Fontes, 1995.

9 A esse respeito vale lembrar que logo apes a fundac;aodo Instituto Homeopatico Brasilein. C!:""1844 houve alguns incidentes. Na ata da Congregac;ao da Faculdade de Medicina do Ria ~Janeiro, de 20/12/49, registra-se que 0 Diretor, 0 Dr. Jobim, remete urn oficio ao Governo ~tuando os inconvenientes que resultavam da criac;aodo referido Instituto e da sua competen.:J;iem expedir diplomas. Essa pratica fazia com que" de improviso, arvoravam em medicos, em:-dos dos cares, sapateiros, caiadores e outros, pois a autorizac;ao de dar diplomas com denorm-nac;aode certificados e urn invento capcioso com 0 fim de iludir a Lei e de infrigi-Ia mesmo ifavor de charlataes e aventureiros que especu1am com embustes sabre a credulidade pUblica .

LOBO, Francisco Bruno. "0 Ensino da Medicina no Rio de Janeiro". Rio de Janeiro: Revisb1.i-IHGB. Departamento de Imprensa Nacional. V. 260, p. 1-115,jul./set., 1963. Estudo recena?examina particularmente a tensao entre a alopatia e a homeopatia no Brasil, chamando a atelrc;aopara a existeficiade divergencias no interior dos adeptos da homeopatia atribuindo, incIu,..sive, a tal evidencia, uma fragilizac;aodo sistema homeopatico: "0 fato que 0 combate alopatiaversushomeopatia tenha sido a principal batalha que a homeopatia enfrentou para sua legali-zac;aona sociedade brasileira nilo deve levar a supor que a divisao interna nilo tenha tido urnpeso consideravel, talvez decisivo, na marginalizac;ao institucional do sistema homeopatico.LUZ, Madel T. A arte de curar versus a ci€nciadas doen~ - hist6ria social da homeopatiano Brasil. Sao Paulo: Dynamis editorial, 1996, p. 97.

10.0 estudo de botanica integrava a grade curricular dos medicos e muitas teses trataramdessa questao, como indica a tese de Francisco Xavier Veiga intitulada "Sera possivel nasplantas fanerogamas em relac;ao a sua nutric;ao a ausencia vital de urn dos dois aparelhosou foliar ou radical? Que analogias podem ter entre si? Qual 0 carater distintivo de suasrespectivas func;5es e qual a relac;ao de dependencia entre elas?", de 1851.

II 0 tema do charlatanismo constitui preocupac;ao dos medicos ao longo da sua formac;aocomo indicam, por exemplo, as teses de Francisco Paula Costa, defendidas em1841, emque urn dos pontos por ele abordado foi designado "0 charlatanismo em Medicina", ouainda a de Joao Monteiro Peixoto de 1852,em que urn dos pontos constituia uma pergunta:"Deve haver leis repressivas do charlatanismo medico, ou convem que 0 exercicio da Me-dicina seja inteiramente livre?" Indagac;ao que apresenta urna polaridade entre a obrigato-riedade de uma formac;ao especifica e uma ren11ncia a mesma. No caso da opc;ao pelaprimeira, a propria pergunta jeiindicava urna associac;ao com os dispositivos legais comoestrategia para assegurar 0 atendimento ao principio da formac;ao escolar dos medicos.Esse tema reaparece em outras teses ao longo do seculo XIX.SANTOS FILHO, Lycurgo.Hist6ria geral da medicina brasileira. Sao Paulo: HUCITEC/EDUSP, 1991.

12Esse grupo era constituido por cinco medicos, a saber: Luiz Vicente de-Simoni, medico itali-ano que viera para 0 Brasil em 1817;Jose Martins da Cruz Jobim, que foi diretor da Faculda-de de Medicina do Rio de Janeiro entre 1842 e 1872; Joaquim Candido Soares Meirelles,mineiro que em 1822 tirara 0 curso na antiga Academia Medico-CirUrgica e que, posterior-mente, se doutorara pela Faculdade de Medicina; Jose Francisco Xavier Sigaud, natural deMarselha e que se formara em Medicina pela Faculdade de Strasbourg e mais urn outromedico frances, Jean Marie Faivre. MAlA, George Doyle. Biografia de uma faculdade -hist6ria e est6ria da Faculdadede Medicina da Praia Vermelha. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995.

13Para Machado (1978), tanto a SMRJ como a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiroforam inspiradas nas experiencias francesas, chegando a afir~r que os estatutos de1832 "sao uma copia dos da Faculdade de Paris" (p. 192). A presenc;a da Franc;a, a meu

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Medidna, higiene e educariio escofar -Jose G. Condra

ver, nao circunscreve-se aos desenhos institucionais das organiza<;oes medicas imp le-mentados no Brasil ao longo do seculo XIX. Essa presen<;a tambem comparece no ensi-no, 0 que pode ser comprovado pela lista das disciplinas de forma<;ao,nos livros utilizadose tambem pelos autores citados pelos medicos brasileiros em suas teses.

14 Textos escritos por urn medico eleito de modo a registrar os acontecimentos mais rele-vantes da Faculdade de urn determinado ano.

15Os medicos Joaquim Manuel de Macedo e Manuel Antonio de Almeida podem ser lembra-dos como autores que, ate hoje, sao referencias da literatura oitocentista. Ja os Drs. AbilioCesar Borges, Joaquim Jose Menezes de Vieira e Balthazar Vieira de Mello sao expressoesdaqueles que produziram obras voltadas para alunos e professores. Em uma zona de in-terse<;aopodemos identificar JUlio Afranio Peixoto por intermedio de sua extensa produ-<;aobibliografica que, segundo ensaio biografico, atingiu 141 obras. MOTA, Joaquim e,LOPPS, Eliane M. T, & C6sER, Silvana M. L. "Julio Afranio Peixoto (1876-1947): EnsaioBiografico". In: HERSCHMANN, Micael M. & PEREIRA, Carlos M. A invenfiio do Brasilmoderno - medicina, educafiio e engenharia nos anos 20-30. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

16Physica Medica, Chimica medica e mineralogia, Botanica medica e zoologia, Anatomiadescritiva, Histologia teorica e pratica, Chimica organica e biologica, Physiologia theoricae experimental, Anatomia e physiologia pathologicas, Pathologia geral, Pathologia medi-ca, Pathologia cirurgica, Materia medica e therapeutica, especialmente brazileira, Obste-tricia, Anatomia topographica, Medicina operatoria e apparelhos, Pharmacologia e artede formular, Hygiene publica e privada e Historia da Medicina, Medicina legal e toxicolo-gica, Clinica medica e de adultos (I" cadeira), Clinica medica e de adultos (2" cadeira),Clinica cirurgica de adultos (I" cadeira), Clinica cirurgica de adultos (2" cadeira), Clinicaobstetrica e gynecologica, Clinica e policlinica medica e cirurgica de crian<;as, ClinicaOphthalmologica, Clinica de molestias cutaneas e syphiliticas e Clinica psychiatrica.

17 MACHADO, Roberto et al. Danafiio da norma - Medicina social e constituiflio da psi-quiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 18.

18 Essa afirma<;ao pode.;;er confirmada, inclusive, pela preponderancia de disciplinas e deteses identificadas, mais imediatamente, com 0 "campo proprio de a<;ao" dos medicos.

19MACHADO, op. cit., p. 155.

211Ibidem, p. 115-15621In: Semantirio de Sallde Publica, 24/4/1831, p. 179 (apud, MACHADO, op. cit., p. 196).

22 Ibidem, p. 255.23 Teses defendidas na Faculdade de Medicina de Montpellier e na de Paris, ambas na

Fran<;a,ao longo do secuIo XIX,demonstram preocupa<;6es semelhantes no que diz res-peito ao objeto educacional e ao modo de registra-Io. Do mesmo modo, as teses defendi-das na Faculdade de Medicina da Bahia, ao incidirem sobre temario e modelo discursivosemelhante ao verificado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e nas da Europa,indicam a constru<;ao daquilo que Foucault designa como uma efetiva Doutrina Medicana medida em que, mesmo sendo urn discurso publicado, proeura estabelecer partilhasdiferenciadas no interior da "ordem do discurso verdadeiro" (1996, p. 40-42).

24 Sobre a presen<;a do tema educacional no ambiente da Academia Imperial de Medicina,conferir GONDRA, 1997.

25Tudo indica que tais preocupa<;oesforam inicialmentepostas por Hip6crates, considera-do 0 pai da Medicina, em seu tratado intitulado Des airs, des eaux et des lieux e, ao quetudo indica, foi apropriado por seus discipulos, nesse caso, como argumento de autori-dade no que se refere a defini<;ao da localiza<;iiodas escolas.

:5 Trata-se do discurso contido em sua tese de doutoramento Consid€rations d'Hygiene

Publiqu'e et de Police M€dicale applicables a la Ville de Rio de Janeiro, capitalede L'[mpire

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SOOanos de educarao no Brasil

du Bresil,apresentada a Facultede Mededne de Paris,pretendendo ser urna ~ ~

..ao para 0 bem de seus concidadaos.

27 ROUSSEAU,J. J. Emmo ou da Educarito,p. 438.

28 AZEVEDO, Luiz Correa." Concorrera 0 modo porque sac dirigidas entre nos a ed~:e instrucc;ao da mocidade para 0 benefico desenvolvimento physico e moral do hOmelr -.In: Boletimda AcademiaImperialde Medicina.Rio de Janeiro, 1872.

29 Ibidem,p. 418.30 Idem.

31 Ibidem, p. 430-431.

32 Designac;aoempregada por HILSDORF,Maria Lucia S. Pensandoa educaritoem t~modernos. Sao Paulo: EDUSP, 1998.

33BARBOSA, Rui. Reforma do ensino prinuirio e vtirias instituiroes complementares da rr...<--tnlfiio publica.Rio de Janeiro: Fundac;ao Casa de Rui Barbosa, v. X, tome W, 1982, p. 17

34 Ibidem,p. 50-51.35 Ibidem, p. 56.

36 Trata-se da obra Quelques reformes dans les ecoles primaires. Paris, 1882, p. 110.

37 apud BARBOSA, p. 63.

38 Esse item foi reescrito a partir do texto do poster apresentado na XXII Reuniao Anual da

ANPEd. GONDRA, Jose G. & ROCHA, Heloisa H. P. "Estrategias de higienizac;ao daorganizac;ao escolar: a questao do corpo (1852-1902)". In: CD-Rom da XXII Reuniito Ii::ANPEd. Caxambu, 1999.

39Ao integrar a formac;ao dos medicos, 0 tema do corpo passa a ser uma das competenciasda Medicina, a partir do que os "doutores" acionam diversos dispositivos para obter ahigienizac;ao do corpo. Por exemplo, em 1902, 0 Dr. Balthazar Vieira de Mello publica.sob 0 patrocinio do Governo do Estado de Sao Paulo, a obra intitulada A HygieneMEscolaque, segundo 0 proprio autor, caracterizava-secomo urn trabalho de propagandacomprometido com a divulgac;ao de noc;6es praticas de higiene escolar entre os respon-saveis pelo desenvolvimento intelectual e fisico da infancia e mocidade. Esse livro econstituido de prescriC;6es que visam a organizar a escola tomando 0 corpo do alunccomo medida e, ao mesmo tempo, a modelar 0 corpo dos alunos e alunas a partir daac;ao do meio escolar, na medida em que trabalha com a concepc;ao de urn corpo molda-vel e do poder do meio externo agir, via medicina, na obra de modelac;ao. A produc;ao deurn "corpo forte" e de urn "espirito sadio" adaptado as necessidades do trabalho, nocaso dos meninos, e as exigencias da maternidade, no caso das meninas, figura comourn imperativo em tomo do qual se articulam as prescric;6es higienicas que marcam cdiscurso desse medico que, assim, pretendia formar professores.

40 Alem dessas duas recomendac;Oes, a questao da leitura de textos religiosos tambem estapresente em Rousseau e nas teses medicas brasileiras do secuIo XIX,mas mo sera aborda-da aqui por ter multiplos desdobramentos, os quais tornariam sua analise muito extensa.

41ROUSSEAU, op. cit., p. 121.

42Ibidem, p. 125.'43 Ibidem, p. 233.Destaque do proprio autor.

44Ibidem, p. 329.

45Trabalhei com a versao redigida por Daniel Defoe escrita no final do seculo XIX e queobteve gr2ude sucesso, valendo a imortalidade de seu autor. De acordo com as notasbiograficas da 25. ed., esse autor ingles fundou 0 jornal The Review e publicou ~'K

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Medidna, higiene e educapo esco/ar -Jose C. Condra

Family Instmctor, depois de ter sido exposto no pelourinho e de ter passado seis meses noCiircere.Tudo isso antes da publica~ao daquele que e considerado 0 seu primeiro trabalhode cunho realmente literario e seu grande sucesso, ate hoje, considerado urn dos maioresromances de aventura da literatura mundial.

..DEFOE, D., 1996, p. 15.

r Ibidem, p. 66.

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