giuliana de gragnani
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Título: Os artistas experimentais da MPB nos anos 70 vistos pela imprensa da época1
Aluna: Giuliana de Gragnani (Jornalismo – 1º ano)
Prof. Orientador: Dr. Herom Vargas
Resumo:
Um grupo de artistas da música popular brasileira (MPB) nos anos 1970 se
caracterizou pelos aspectos experimentais, inovadores e polêmicos de suas obras. São os
casos de Walter Franco, Jards Macalé, Tom Zé, Jorge Mautner e os grupos Secos &
Molhados e Novos Baianos. Suas inovações estavam nas poéticas das letras, nos arranjos
instrumentais, em performances nas apresentações e nas relações entre letra e música.
Um dos espaços privilegiados das discussões sobre tais trabalhos foi a imprensa da
época: reportagens tratavam da performance andrógina de Ney Matogrosso, cantor do
Secos & Molhados; críticos debatiam as composições de Walter Franco, sobretudo Cabeça,
que dividiu público e júri no 7º Festival Internacional da Canção (FIC-TV Globo) de 1972;
outros comentavam as criações do álbum Todos os Olhos, de Tom Zé, em espacial sua capa.
De forma geral, críticos e jornalistas repercutiam as obras criativas desses músicos num
momento de endurecimento da ditadura militar e de expansão da indústria fonográfica com
crescimento na vendagem de discos.
A pesquisa tem como objetivo averiguar como tais compositores e grupos foram
divulgados por três veículos da imprensa paulista dos anos 1970: os jornais O Estado de S.
Paulo e Folha de S. Paulo e a revista Veja. A investigação terá como corpus reportagens e
1 Este projeto de pesquisa está vinculado ao projeto Experimentalismo e Inovação na Música Popular Brasileira nos Anos 1970, do prof. Dr. Herom Vargas, enviado ao CNPq para o edital 2/2009, de fomento à pesquisa, e aguarda resposta.
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críticas dessas publicações durante a década. Serão observados os gêneros jornalísticos
utilizados e os enfoques dados nas matérias sobre tais artistas. A metodologia utilizada para
análise será a Análise de Conteúdo e a análise do texto jornalístico (os gêneros e os
elementos jornalísticos de imparcialidade, clareza, informação visual etc.).
Introdução e justificativa
Pouco estudados até o momento no campo das ciências da comunicação, a
investigação sobre como a imprensa repercutiu o trabalho de músicos e compositores
experimentais centrados no eixo Rio–São Paulo no específico contexto cultural e midiático
dos anos 1970 é fundamental por colocar luz sobre um período importante da produção
musical do país. Tais artistas – Walter Franco, Jorge Mautner, Jards Macalé, Tom Zé e os
grupos Secos & Molhados e Novos Baianos – produziram obras nessa década que até hoje
são referência de criação contracultural e experimental na canção popular.
Tal produção não se consolidou de forma homogênea, como uma espécie de
“movimento” com relativa organização. Ao contrário, cada um ao seu modo e seguindo
suas próprias intuições e formas de criação, percorreram caminhos paralelos, porém, com
determinadas sintonias. Para pensar melhor o contexto musical dos anos 1970, vale indicar,
segundo Napolitano (2005, p.127), que esse cenário, a rigor, dividia-se em três áreas
relativamente definidas: o circuito engajado herdeiro da proposta nacional-popular da
década de 1960; o circuito mais alternativo e experimental, herdeiro das ações tropicalistas;
e, finalmente, o circuito cultural “massificado”, marcado pelas músicas de maior sucesso de
público e mídia. Tais áreas, apesar de conceitualmente demarcadas pelo autor, não são
totalmente excludentes. Havia artistas que circulavam com desenvoltura pelos três,
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ultrapassando limites e criando obras que oscilavam entre um e outro setor. Um caso desses
foi o do compositor Caetano Veloso, cuja obra trazia canções inovadoras e também alguns
sucessos que frequentavam trilhas de telenovelas e programações de emissoras de rádio.
Certamente, o circuito da música popular que mais se estruturou foi aquele
vinculado às peças de sucesso massificado, embasado numa das principais características
da época: o crescimento, a profissionalização e a forte penetração das gravadoras no âmbito
da produção e divulgação da canção (cf. MORELLI, 1991; PAIANO, 1994; VICENTE,
2002; DIAS, 2000), chegando ao ponto de alterar vários critérios de valoração da música
popular antes vinculados quase que exclusivamente às respostas do público nos festivais da
TV Record, por exemplo (TATIT, 2005, p.121-122). Tal mudança tem a ver também com
alterações nas grades de programação das emissoras de TV, com a ascensão da TV Globo e
com ações dos próprios governos militares visando arrefecer o ímpeto das esquerdas que,
desde a era dos festivais, utilizavam-se da produção artístico-cultural na luta política.
Apesar das ações concentradoras das mídias (em especial, gravadoras e emissoras
de TV), o circuito musical experimental manteve-se com relativa força. Se alguns tiveram
razoável destaque (como Caetano e Gilberto Gil, herdeiros do tropicalismo, ou os grupos
Novos Baianos e Secos & Molhados, pelo sucesso na mídia), outros permaneceram ligados
a circuitos marginais, como Walter Franco, Jards Macalé e grupos como o Som Imaginário
(de divulgação restrita e avessos ao “estrelismo” comercial). Sem falar no descrédito em
que caiu o tropicalista Tom Zé, alijado do mercado fonográfico nos anos 1980 até ser
redescoberto por David Byrne (músico do grupo Talking Heads) e ter suas canções
compiladas no álbum The Best of Tom Zé, em 1990.
Alguns aspectos do período são importantes para demarcar o surgimento desse tipo
de criação artística dentro do campo da música popular. Um deles é a expansão da indústria
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fonográfica com apoio de multinacionais e das políticas levadas a cabo pelo regime militar.
Movido pela propaganda ufanista do governo e como consequência do “milagre
econômico”, a produção de bens de consumo (o disco, inclusive) conhece um expressivo
aumento. Segundo Enor Paiano (1994, p. 195), entre 1968 e 1971, a “indústria de material
elétrico (na qual se incluem rádios, toca-discos e toca-fitas) cresce 13,9% no período, (…)
mais que os ramos têxtil (7,7%), alimentos (7,5%) ou vestuário e calçados (6,8%)”. Tais
números indicam aquecimento no consumo de setores da classe média beneficiados pelo
sistema de crédito ao consumidor, a ponto de 60% das famílias brasileiras fazerem “parte
do mercado de bens de consumo ’modernos’ – ou seja, tinham pelo menos um dos
seguintes bens: rádio, geladeira, TV, carro – negando a hipótese de que o crescimento
econômico tivesse excluído totalmente os estratos inferiores”. Especificamente sobre a
indústria fonográfica os dados apresentados pelo autor não deixam dúvidas:
O que chama a atenção imediatamente ao analisarmos os números do mercado fonográfico nacional, de 1966 a 1976, é o crescimento acumulado de 444,6% no período, para uma época em que o crescimento acumulado do PIB foi de 152% (…). Os anos de 1967 e 68 apresentam crescimento percentual significativo, enquanto que 1969 e 70 vivem certa estagnação. A partir de 1971 os números crescem de forma estável, à média de 20% ao ano – exceção para 1974 e 75 quando a falta de vinil [devido à crise do petróleo] criou uma demanda reprimida responsável também pela explosão de 1976, quando o fornecimento de matéria-prima se normalizou. Para se ter um termo de comparação com outras áreas similares, o mercado de livros cresceu 260% de 1966 a 1976, e as revistas 68,9% de 1965 a 1975 (PAIANO, 1994, p. 195-6).
O estudo de Paiano demonstra o dinamismo de um setor produtivo ligado à cultura
musical que se expandia ainda como reflexo dos sucessos televisivos e musicais dos
festivais de música da década anterior, outros programas musicais de TV e a explosão da
jovem guarda. Tal expansão procura se alinhar à demanda de consumo cultural que cresce
em função do maior acesso aos bens por setores da sociedade antes alijados desse consumo.
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Obviamente, o aquecimento nas vendas de discos está vinculado aos produtos musicais de
comércio popular mais imediato e de menor custo. Dois desses produtos são bem
identificados: os LPs com trilhas sonoras de telenovelas (os lançados pela Sigla-Som Livre,
braço fonográfico da TV Globo), e os sucessos massivos de cantores e grupos brasileiros
que cantavam em inglês, criados em estúdios e mantidos pelo marketing das gravadoras.
Mas, o que essas tendências econômicas têm a ver com os compositores
experimentais dos anos 1970? De imediato, é impossível dizer que o crescimento da
produção e das vendas de disco na década seja motivo definitivo para o surgimento desse
núcleo de artistas. O elo, a rigor, está nas condições que essa expansão fornece para a
visibilidade do artista. Quanto mais aquecidos estão os mercados, maiores são as
oportunidades tanto do lado do consumo – o interesse por um artista num espectro de gosto
mais específico – como também de lucro das gravadoras por meio da busca de novidades
para esse mercado. Tais interesses, sobretudo no início da década, se transformaram em
portas abertas ao mercado para artistas com esse perfil diferenciado.
Ao se referir às gravadoras, Napolitano (2002, p. 4) indica um aspecto recorrente
quando tratamos de produtos culturais no mercado de bens simbólicos, em que vale a
imagem de legitimidade que determinado produto empresta a seu fabricante: se as
gravadoras estavam interessadas no lucro – daí a busca por artistas de sucesso e por
novidades que pudessem suscitar a curiosidade do público – havia também um cuidado em
apresentar um produto com perfil “refinado” que desse à empresa fonográfica determinado
status num nicho de consumo, digamos, mais “sofisticado”, apesar da baixa vendagem.2
2 Tal argumento é utilizado em diversos outros mercados culturais para explicar a manutenção de determinados produtos com elevado grau de sofisticação simbólica e vinculado a um consumo limitado, porém, específico e realizado por setores da sociedade formadores de opinião.
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Assim, se as gravadoras investiam no produto musical de sucesso mais imediato e
popular, também buscavam manter em catálogo uma gama de compositores e cantores que
alcançavam repercussão na crítica especializada e nos ouvintes de maior nível de
escolarização. Foi, por exemplo, o caso da gravadora Continental, como sugere Eduardo
Vicente (2002, p. 76 e seg.): buscando alternativas para conquistar público num mercado
aquecido e disputado por grandes empresas, a Continental, uma das maiores gravadoras de
capital nacional, diversificava seu catálogo dando espaço a novos grupos e compositores,
mesmo que isso gerasse, num curto prazo, algum prejuízo. Um investimento como esse não
ocorreria caso estivéssemos em um momento de recessão e tais músicos não teriam as
oportunidades – ainda que pequeno em termos numéricos – que tiveram no início da década.
Tanto que, no final dos anos 1970, quando o mercado fonográfico se restringe e grandes
gravadoras se estabelecem com firmeza no país, muitos artistas já não conseguem espaços
para apresentação de trabalhos alinhados a procedimentos mais vanguardistas.
No entanto, é importante destacar algumas conjunções bastante curiosas entre as
tendências mais comerciais e as mais inovadoras. Uma delas está no caso do grupo Secos &
Molhados, que juntou com muita competência esses dois pólos. O grupo respondeu aos
objetivos mercadológicos a partir do sucesso repentino que conseguiu com o lançamento de
seu primeiro disco, o que sustentou os interesses comerciais da gravadora Continental. Ao
mesmo tempo, as composições, a maioria de João Ricardo, e as performances do cantor
Ney Matogrosso nas apresentações ao vivo marcaram um perfil de inovação elevado para
um produto de sucesso, como bem observam Zan (2006) e Silva (2007). Outro exemplo de
relativo sucesso comercial e manutenção da veia experimental é o grupo Novos Baianos ao
mesclar a tradição da MPB e a modernidade do rock.
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Vinculado à discussão anterior, mas podendo ser pensado com relativa distância, é
possível indicar outro elemento que contribuiu para a presença do perfil experimental na
produção dos anos 1970 na MPB. Paralelo ao crescimento das vendas de disco no período,
houve também a popularização de um novo suporte: o disco long-playing ou LP. Com
maior diâmetro que o antigo disco de 78 rpm e girando mais devagar no aparelho toca-
discos (com 33⅓ rpm), o LP tinha mais tempo de gravação – cerca de 20 minutos em cada
lado ou um total de 12 faixas-padrão de três minutos em média. Porém, desde o lançamento,
a indústria fonográfica ainda se debatia entre a massificação do formato e o convívio com
os outros: o disco de 78 rpm, o de 45 rpm e o compacto (simples ou duplo) de 33⅓ rpm.
O long-playing tornou-se o principal produto fonográfico da indústria no Brasil
entre o final dos anos 1960 e início dos 1970. Com ele, foram possíveis algumas alterações
no produto em si e na música. Uma delas foi o surgimento de coletâneas de gêneros
específicos, de sucessos de um artista, de uma nacionalidade, de trilha de filmes e
telenovelas (este último de grande sucesso) etc. Outra distinção, e que vale mais para esta
discussão, é o fato de o álbum ser o produto cultural que melhor corporifica o projeto
estético de um artista, diferente do que ocorria com o 78 rpm ou com o compacto simples,
que traziam duas músicas gravadas para serem divulgadas em emissoras de rádio. Se esses
formatos menores funcionavam mais para a venda de músicas de sucesso, o LP possibilitou
uma melhor observação do trabalho do artista, ou seja, um conjunto de canções organizadas
em sequência nos dois lados do disco acondicionado em uma capa com determinadas
imagens e um encarte com letras transcritas, ficha técnica (músicos e técnicos de gravação)
e quaisquer outras informações complementares ao que estava ali gravado. Enquanto o
compacto servia ao consumo imediato, o álbum dava condições para um produto cultural
mais refinado e com organicidade estética. Se o LP fez do artista o grande “produto” das
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gravadoras e possibilitou a ele a elaboração de um trabalho de maior consistência estética,
mais “autoral”.
É certo que muitos cantores mais populares não utilizavam essas possibilidades que
o álbum proporcionava e não tiveram a mesma atenção dos produtores, pois suas canções
eram divulgadas dentro do padrão mercantil do sucesso. Artistas cujos trabalhos eram mais
“elaborados” tinham um tratamento diferenciado dos chamados cantores “populares”.
Outro elemento de base para a presença desse perfil mais experimental na música
popular brasileira dos anos 1970 tem a ver com um substrato do campo da cultura que
marcou o período, apesar de seu surgimento estar vinculado à década anterior. A
contracultura desenvolveu-se como um nome genérico para uma série de manifestações que
se contrapunham a várias posturas e conceitos da cultura ocidental dominante. Essas
proposições, capitaneadas por jovens, intelectuais e artistas, buscavam atingir os alicerces
culturais da sociedade ocidental e se multiplicaram em amplos setores. A rigor, tratava-se
de posicionamentos contrários às formas instituídas – o establishment – de organização
politicossocial, de polaridade ideológica (direita e esquerda) e de “bom comportamento”.
Na arte, as novas produções estavam direcionadas fundamentalmente para uma
constante busca por novas experiências estéticas, o que lembra, guardadas as diferenças de
época, a aventura das vanguardas no início do século XX. Assim, contraculturais são a arte
pop, o minimalismo, a arte conceitual, o happening, os trabalhos de John Cage, o rock, a
música de Jimi Hendrix e a fase final dos Beatles.
No caso da MPB, uma das primeiras traduções da contracultura se deu no final dos
anos 1960 com o tropicalismo, que colocou em xeque as polaridades políticas da época (a
ditadura militar e a esquerda nacionalista) e traduziu essa polêmica na linguagem da canção.
Para tanto, apropriou-se da antropofagia oswaldiana e adaptou várias proposições da
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contracultura internacional ao contexto da música popular. Tais posturas serão a chave para
os desdobramentos da música popular no início dos anos 1970. Conforme Christopher
Dunn (2002, p. 77), os tropicalistas “(…) propuseram um discurso de alteridade e
marginalidade que estimulou as mais explícitas expressões de novas subjetividades na
cultura popular na década seguinte”.
A atenção à linguagem da canção, a ênfase em novas subjetividades e a postura
marginal são dados relevantes da contracultura para se entender o experimentalismo na
MPB da década. No entanto, para tratar de contracultura no caso brasileiro, não há como se
distanciar da situação de exceção que o país vivia por conta da ditadura. Apesar de alguns
autores procurarem afastar uma da outra3, as formas que tais manifestações adquiriram no
Brasil levam em consideração, de maneira mais ou menos indireta, o cenário político,
passível de serem vistas na produção musical e na postura marginal de alguns artistas:
A marginalidade é tomada não como saída alternativa, mas no sentido de ameaça ao sistema; ela é valorizada exatamente como opção de violência, em suas possibilidades de agressão e transgressão. A contestação é assumida conscientemente. O uso de tóxicos, a bissexualidade, o comportamento descolonizado são vividos e sentidos como gestos perigosos, ilegais e, portanto, assumidos como contestação de caráter político (HOLLANDA, 1992, p. 68).
Em outras palavras, se a contracultura não surgiu em função direta do cenário
imposto pelos militares, as práticas marginais, experimentais e transgressoras, em sentido
amplo, tiveram um viés político, conscientemente ou apenas a reboque das posturas
“desbundadas” que visavam a carnavalização geral de atitudes e conceitos políticos.
3 É “(…) uma tolice afirmar, como muitos fizeram na época, que a contracultura foi um subproduto alucinado do fechamento do horizonte político pela ditadura militar. A contracultura foi um movimento internacional, que teve a sua ramificação brasileira. Mas, exatamente ao contrário do que se chegou a proclamar, a contracultura se expandiu no Brasil não por causa, mas apesar da ditadura” (RISÉRIO, 2005, p. 26).
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Assim, ser marginal ou se colocar como underground revelava uma atitude de
descompostura frente aos padrões. Daí também as posturas provocativas que geravam
estranhamentos e reações mais ou menos tempestivas. Podemos lembrar as provocações na
letra de Gothan City, de Jards Macalé, a calma de Walter Franco frente à platéia que vaiava
sua canção Cabeça, no Festival Internacional da Canção, de 19724, os rebolados de Ney
Matogrosso ou a vida em comunidade dos Novos Baianos. Tais polêmicas serviam para
demonstrar certa insatisfação com o estado geral da arte e da sociedade brasileira, mas sem
ter aquele projeto geral de conscientização da população para a tomada do poder conforme
as esquerdas universitárias preconizavam antes. As críticas eram para todos os lados.
Da mesma maneira, o trabalho com a linguagem da canção mobilizava ouvidos e
mentes em favor de uma liberdade ampla, já antecipada em É Proibido Proibir, de Caetano
Veloso, em 1968, mas desdobrada nos anos 1970 pelos compositores mais experimentais.
As letras e entoações de Walter Franco e as composições de Tom Zé são exemplos dessa
luta semiótica tratada, no fundo, como recusa das linguagens tradicionais da canção popular
– e não da tradição – em prol dos exercícios de novidades que pudessem ampliar a
percepção da sociedade. O caso do disco Estudando o Samba, de Tom Zé (1975) é
exemplar. Nele, a tradição do samba é retomada a partir das experiências com as estruturas
rítmicas, melódicas e poéticas do gênero, no melhor estilo antropofágico. Procedimento
paralelo foi realizado pelos Novos Baianos ao trabalharem a linguagem das músicas
tradicionais com o rock e o contraponto.5
4 Segundo o próprio compositor, em depoimento de 1976: “Foi um momento de grande violência. Eu sabia que estava confundindo as pessoas lançando o sim e o não numa contagem muito rápida. As pessoas reagiam jogando de volta uma carga negativa fortíssima, mesmo quando eu repetia uma palavra positiva como ‘irmão’” (apud BAHIANA, 1980, p. 177). 5 Por exemplo, ouvir Brasil Pandeiro, de Assis Valente, no disco Acabou Chorare, de 1972.
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Todas as nuances da produção da MPB nos anos 1970 foram, de formas variadas
percebidas, repercutidas e analisadas pela imprensa e seu papel foi fundamental nesse
processo. Em primeiro lugar, foi espaço privilegiado para divulgação desses trabalhos a um
público minimamente interessado. Em segundo, por conta da crítica e das repercussões da
ditadura, era também o local de intensos debates sobre a cultura. Seja nos jornais chamados
de alternativos (Pasquim, Bondinho, Opinião etc., outra expressão da contracultura) ou na
grande imprensa, os discos e shows desses artistas marcavam parte das pautas dos cadernos
culturais. E isso ocorria tanto pela qualidade de suas músicas, analisadas com mais ou
menos rigor nos textos de crítica, quanto pela polêmica que provocavam.
Por meio de reportagens, entrevistas, críticas ou pequenas notas, a imprensa foi um
dos instrumentos privilegiados a dar corpo público a eles. Por isso, uma prospecção do
material publicado sobre os experimentais pela ótica da grande imprensa revela-se de
grande valia, pois demonstra como parte da sociedade civil (corporificada ideologicamente
na visão que os veículos impressos tinham) entendia e divulgava essa produção cultural
mais distante dos padrões massificados de gosto.
Assim, a principal contribuição da pesquisa aqui é trazer à luz os enfoques que o
jornalismo cultural de três importantes veículos de comunicação impressos (os jornais O
Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo e a revista Veja) tinha sobre as formas de criação da
música popular baseadas na experimentação e na inovação.
Objetivos
O objetivo principal da pesquisa é recolher as matérias publicadas nos jornais O
Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo e na revista Veja sobre os compositores, músicos e
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grupos considerados experimentais na MPB, na década de 1970, e observar as tendências
de cobertura desses artistas que essas matérias traziam.
Os objetivos específicos são:
- fazer um levantamento quantitativo e qualitativo das matérias publicadas nos três veículos
sobre os artistas;
- observar qual é a tendência de cada publicação ao tratar deste ou daquele músico e, no
geral, dessa vertente da MPB nos anos 1970;
- refletir sobre o jornalismo cultural brasileiro da época na cobertura da música popular
experimental.
Plano de trabalho e cronograma
Os primeiros passos da pesquisa serão um levantamento bibliográfico sobre o
campo da música popular brasileira entre os anos 1960 e 1970 e, em segundo lugar, sobre
jornalismo cultural e os gêneros jornalísticos. No primeiro caso, será importante para situar
a produção musical num contexto cultural específico. No segundo caso, os conceitos que
envolvem o jornalismo cultural e, principalmente, as tipologias dos gêneros jornalísticos –
em especial, dos empregados nas editorias de cultura – serão fundamentais para orientar os
critérios de análise das matérias selecionadas nas publicações.
Outro passo importante é o conhecimento do trabalho desses artistas mais
experimentais na época: audição de discos, leitura de perfis biográficos etc. Uma listagem
dos discos lançados na década de 1970 mostra os seguintes trabalhos por artista:
− Walter Franco: Walter Franco – Ou Não (Continental-1973), Revolver (Continental-
1975) e Respire Fundo (Epic/CBS-1978).
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− Secos & Molhados: Secos & Molhados (Continental-1973) e Secos & Molhados
(Continental-1974).
− Tom Zé: Tom Zé (RGE-1970), Tom Zé – Se o Caso é Chorar (Continental-1972), Todos
os Olhos (Continental-1973), Estudando o Samba (Continental-1976) e Correio da
Estação o Brás (Continental-1978).
− Jards Macalé: Jards Macalé (Phonogram-1972), Aprender a Nadar (Phonogram-1974) e
Contrastes (Som Livre-1977).
− Novos Baianos: É Ferro na Boneca (RGE-1970), Acabou Chorare (Som Livre-1972),
Novos Baianos F.C. (Continental-1973), Novos Baianos (Continental-1974), Vamos Pro
Mundo (Som Livre-1974), Caia na Estrada e Perigas Ver (Tapecar-1976), Praga de
Baiano (Tapecar-1977) e Farol da Barra (CBS-1978).
− Jorge Mautner: Pra Iluminar a Cidade (Pirata/Phonogram-1972), Jorge Mautner
(Polydor-1974) e Mil e Uma Noites de Bagdá (Phonogram-1976)
Como o principal objeto de análise são os textos jornalísticos, a segunda fase da
investigação será a busca por esse material. A revista Veja é a de melhor acesso, já que sua
coleção completa encontra-se aberta ao público para consulta na internet, no Acervo Digital,
no site da Editora Abril (http://veja.abril.com.br/acervodigital/home.aspx). Os dois jornais
paulistanos serão consultados no Arquivo do Estado de São Paulo, de maneira presencial,
também aberto ao público. Este arquivo fica na cidade de São Paulo e seu site é
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/.
Coletadas as matérias e avaliada a sua quantidade numérica, será o momento de ler
e observar os respectivos textos em termos de formato e enfoque. Os estudos sobre gêneros
jornalísticos nos veículos impressos – em especial com os trabalhos referenciais de Melo
(1992 e 2003) e Chaparro (2008) – e sobre jornalismo cultural – Piza (2003) e Dines e
Malin (1996) – serão condições básicas para esse estágio da pesquisa.
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Tais atividades serão organizadas no seguinte cronograma com duração de 12 meses
(de agosto/2009 a julho/2010):
Atividades 2º semestre de 2009 1º semestre de 2010
Pesquisa bibliográfica X
Pesquisa discográfica X
Consultas ao site da Editora Abril X X
Visitas ao Arquivo do Estado de
São Paulo
X X
Levantamento e análise das
matérias coletadas
X
Elaboração de textos e relatórios X
Conclusão da pesquisa X
Procedimentos Metodológicos
Em primeiro lugar, é importante uma breve delimitação conceitual do termo
“música popular” para que se evitem as posturas críticas ou superficiais quanto à canção
massiva. A idéia principal é a de que a música popular está intimamente ligada aos meios
de produção e de reprodução sonora. Desde o início do século XX, a canção veio sendo
moldada, influenciada e, ao mesmo tempo, recriada em função das máquinas de
fonofixação e fonoreprodução (VALENTE, 2003) e também em função do mercado urbano
de consumo simbólico que então se consolidava. Tanto que tais estruturas midiáticas foram,
em parte, responsáveis pela criação de ritmos e gêneros, danças e coreografias,
instrumentos, timbres e, inclusive, novas formas de audição individual ou coletiva. Assim,
o conceito “música popular” vincula-se ao que Pierre Bourdieu (1996) discute sobre a
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situação do campo literário francês no século XIX, colocado entre as exigências do
mercado e as práticas voltadas à “arte pura”. Obviamente, no caso da música popular
massiva, esses campos não estão tão separados como estão na literatura, conforme indicado
pelo autor. Na verdade, a canção pode ser pensada tanto nos aspectos especificamente
mercantis como também em termos de criação estética, experimentalismo e inovação. Há
vários casos de compositores que se situam com muita tranqüilidade nesses espaços
intermediários, utilizando dados e dinâmicas de um e de outro indiscriminadamente.
Voltando ao conceito, a música popular se caracteriza por alguns parâmetros
formais e temáticos que possibilitam que seja apreciada pelo grande público com facilidade,
seja decodificada de maneira mais imediata e incorporada ao repertório cotidiano por meio
de uma atenção individual pouco concentrada. Por isso, ela é bastante divulgada pelos
meios de comunicação, tratada como uma espécie peculiar de mercadoria.
No campo da música popular, bastante sincrético e complexo, as tendências
comerciais se cruzam com as tendências voltadas para a criação estética e ambas se
complementam mutuamente, com muita frequência, a ponto de determinados trabalhos
poderem ser estudados e analisados tanto sob a ótica mercadológica quanto pela observação
puramente artística. Assim, se tratamos de música popular massiva (JANOTTI JR., 2006),
temos como objeto de estudo as canções que atuam nesses limites e estejam dentro do
mercado massivo de bens simbólicos.
A escolha dos artistas para tal investigação tem a ver com esses limites entre o
consumo massivo da música popular e as posturas mais experimentais. Dentre os
compositores, foram escolhidos os mais representativos nesse tipo de produção por estarem
vinculados menos ao grande sucesso e mais pela fama que tiveram como polêmicos,
vanguardistas, e pela importância da criatividade de seus trabalhos. Os músicos e grupos
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que estarão entre os temas das matérias a serem analisadas são os seguintes: Walter Franco,
Secos & Molhados, Tom Zé, Jards Macalé, Novos Baianos, Jorge Mautner. E seus discos
lançados nos anos 1970 são os citados no item anterior deste projeto.
Outro tema conceitual importante nesta investigação é o jornalismo cultural. Uma
de suas peculiaridades está no fato de ser um importante mediador entre artistas e o público.
Ele se revela numa interface parecida com a da música popular, na medida em que reporta
produtos da cultura (seja ela mais popular ou mais erudita) ao mesmo tempo em se insere
num mercado comercial e industrial (VARGAS, 2004). Se, por um lado, a imprensa tende a
divulgar temas e objetos de maior interesse do grande público, cabe a ela, sobretudo na
editoria de cultura, trazer novas abordagens e novos conceitos. Nesse ponto, é importante a
repercussão dos músicos experimentais, pois seus trabalhos tiveram o difícil propósito da
provocação e da solicitação de diferentes respostas a novas proposições. De outra parte, o
potencial polêmico de alguns deles tornou-se material básico para as pautas jornalísticas, o
que lhes garantia, para o bem ou para o mal, espaço nas páginas de jornais e revistas. Por
exemplo, Walter Franco fora considerado “maldito” por parte da crítica, por causa da
dificuldade de entendimento (logo, de consumo) de suas canções pelo grande público,
apesar da relativa presença de suas músicas em situações de consagração, como festivais,
emissoras de rádio e TV. O caso do Secos & Molhados é inverso. Apesar de várias de suas
canções terem perfil criativo, o grupo realizou intenso sucesso comercial, mesmo tendo
lançado dois LPs numa vida curta de pouco mais de um ano.
A análise das matérias se pautará pelos conceitos de gêneros jornalísticos tratados
por Marques de Melo (1992 e 2003) e Carlos Chaparro (2008), guardadas as diferenças
conceituais entre ambas proposições. Outra metodologia a ser utilizada é a Análise do
Conteúdo, conforme Bardin (1977) e Bauer e Gaskell (2003). Tal instrumento será
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importante para evidenciar as nuances de abordagem dos jornalistas e dos críticos a respeito
do trabalho desses artistas.
As matérias também serão observadas conforme determinadas categorias dentro do
jornalismo e que compõem as peculiaridades do texto jornalístico, como tamanho, presença
de informação visual, clareza, enfoque etc. Com tais teorias, instrumentos e categorias, será
possível definir algumas formas de abordagem que jornalistas, críticos e os próprios
veículos tiveram desses artistas na década de 1970 e como construíram o jornalismo
cultural ligado à música popular na época.
Assim, como se percebe, a pesquisa terá caráter exploratório por buscar documentos
e evidenciar tendências. Trabalhará com análise documental de natureza qualitativa, apesar
de, nas análises das categorias indicadas acima, ter uma natureza quantitativa. Ambas
naturezas estão explicitadas no item seguinte.
Análise dos dados e resultados
Os dados retirados das matérias a partir dessa observação estarão vinculados às
categorias do texto jornalístico, sejam os mais opinativos e críticos ou mais imparciais
como reportagens. Inicialmente, este levantamento terá um caráter quantitativo, mas os
dados não poderão ser tabulados de maneira precisa, pois eles não têm uma dimensão
meramente numérica. Assim, a análise terá também um perfil qualitativo, pois estarão em
questão as formas que a cobertura jornalística usou para reportar ao seu público os
trabalhos desses artistas. Ou seja, a investigação buscará evidenciar como esses veículos
mostravam tais artistas de difícil entendimento ao grande público, pois as três publicações
tinham um perfil mais massivo do que segmentado.
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Dentre as categorias de análise mais precisas e passíveis de quantificação estão o
tamanho da matéria, sua posição na página, a presença de informação visual, entre outros
elementos físicos do texto. Com essas categorias, será possível determinar algumas
tendências gerais da cobertura que cada veículo faz desses compositores.
Por outro lado, as categorias ligadas aos gêneros jornalísticos e ao conteúdo das
matérias indicarão outras tendências sobre o perfil dessa cobertura. Neste passo da análise,
os procedimentos serão mais qualitativos, ou seja, estarão vinculados a como os músicos e
seus trabalhos são vistos pelos jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo e a revista
Veja que delimitam as matérias em questão.
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