giorgio vasari vida de michelangelo buonarroti florentino. pintor, escultor e arquiteto

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Giorgio Vasari Vida de Michelangelo Buonarroti Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto (1568) Tradução, Introdução e Comentário Luiz Marques Texto original: www.memofonte.it

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Tradução, Introdução e ComentárioLuiz Marques

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  • Giorgio Vasari

    Vida de Michelangelo Buonarroti

    Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto

    (1568)

    Traduo, Introduo e Comentrio

    Luiz Marques

    Texto original: www.memofonte.it

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    NDICE

    Prefcio

    Introduo

    1 Origens Florena (1524-1527) Roma Clementina Sob Alessandro (1533-1536) Morte e transfigurao (1537-1539) A cura de Camaldoli

    2 Michelangelo e Paolo Giovio (1541-1548) A parte de Michelangelo O trptico de Paolo Giovio A revitalizao do gnero histrico

    3 O presente como problema histrico: a terceira perspectiva

    Giorgio Vasari Vida de Michelangelo Buonarroti. Florentino. Pintor, Escultor e Arquiteto

    Comentrio

    Advertncia sobre o Comentrio

    1. Promio, 1-12 2. Nascimento e ascendncia de Michelangelo, 13-24 3. Instruo e primeira formao artstica, 25-43 4. As cpias e o Jardim de So Marco, 44-55 5. A Centauromaquia e a Madonna della Scala, 56-67 6. O Hrcules e o Crucifixo de S. Spirito, 68-74 7. A primeira estada em Bolonha, 75-84 8. O San Giovannino, o Cupido e a primeira viagem a Roma, 85-97 9. O Cupido Galli, o Baco e a Piet, 98-115 10. O retorno a Florena e o Davi, 116-145 11. O Davi em bronze, os tondos e o So Mateus, 146-153 12. A Madona de Bruges e o Tondo Doni, 154-162 13. A Batalha de Cascina, 163-192 14. Roma e a encomenda do Sepulcro, 193-228 15. O Moiss e o retorno a Florena, 229-251 16. A segunda estada em Bolonha e a esttua de Jlio II, 252-265 17. Os afrescos da abbada da Capela Sistina, 266-348 18. O retorno aos Medici e a Fachada de San Lorenzo, 349-382 19. A Sacristia e Biblioteca de San Lorenzo, a Leda e o Cristo da Minerva, 383-426 20. A Fuga e a Defesa de Florena, 427-455 21. A Biblioteca Laurenziana, 456-472 22. O sepulcro de Jlio II e os afrescos do Juzo Final, 473-538 23. A Capela Paolina, a fortificao do Borgo e a Piet de Florena, 539-550 24. A Baslica de So Pedro, o Capitlio e o Palcio Farnese, 551-567 25. Jlio III e as tumbas de S. Pietro in Montorio, 568-585

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    26. San Giovanni dei Fiorentini, 586-591 27. Intrigas, o palcio de Jlio III e a ponte Santa Maria, 592-598 28. A Escadaria da Biblioteca Laurenziana, 599-603 29. Paulo IV, a morte de Urbino e a destruio da Piet, 604-628 30. O modello da cpula de So Pedro, 629-634 31. Pio IV, os retratos de Michelangelo e a Sala Grande, 635-650 32. A Porta Pia e Santa Maria degli Angeli, 651-653 33. San Giovanni dei Fiorentini, o Bruto e Tiberio Calcagni, 654-658 34. ltimas manobras contra Michelangelo, 659-662 35. Morte, desenhos de homenagem, dicta e retrato de carter, 663-754 36. As exquias e a homenagem da Academia, 755-820

    Bibliografia ndice onomstico Indice remissivo das obras de Michelangelo

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    Prefcio

    Il mondo come torso. Em 1940, Roberto Longhi assim definia a arte de Michelangelo, compensando por uma fulgurante intuio o (quase) silncio que seu gnio crtico manteve em relao ao maior artista da Idade Moderna1. Fulgurante essa intuio porque diz o elemento de Michelangelo. no torso que se formula sua conscincia do Antigo como cosmos e como fragmento, como comeo e como fim; por ele que se opera a implacvel reduo da multiplicidade fenomenolgica do visvel unidade do nu; nele, numa palavra, que se elabora a sntese entre histria e natureza.

    O torso oferece de Michelangelo a imagem essencial do embate com a interioridade e com a superfcie do mrmore, embate que atravessa a existncia do artista, at se sublimar em educao pela pedra, exerccio espiritual, experincia religiosa. A Michelangelo, mais que a ningum, poder-se-ia aplicar a sentena de Schleiermacher2: ser alma quer dizer ter corpo. O mundo como torso remete, enfim, proclamao do artista segundo a qual o mrmore contm o universo do exprimvel3. Sculos depois, Ezra Pound4 diria algo semelhante na equao Dichten = Condensare.

    A primeira edio de Le Vite de pi eccellenti architetti, pittori e scultori italiani da Cimabue insino a tempi nostri, descritte in lingua Toscana, da Giorgio Vasari Pittore Aretino. Con una sua utile et necessaria introduzione a le arti loro, para os tipos de Lorenzo Torrentino, editor ducal, aparece em Florena em maro de 1550. O ttulo ser alterado na segunda edio, de 1568, com inverso na ordem das artes: Delle Vite de pi eccellenti pittori scultori et architettori, scritte da M. Giorgio Vasari... di nuovo dal Medesimo riviste et ampliate, con I Ritratti loro, et con laggiunta delle Vite de Vivi et de Morti, dallanno 1550, infino al 1567. Con tavole copiosissime De nomi, Dellopere, E de luoghi ouelle sono. In Fiorenza appresso i Giunti. A Vita di Michelagnolo de Giorgio Vasari, na edio de 1568 de que se prope aqui a traduo e uma verso abreviada da Introduo e do comentrio que constituiu minha Tese de Livre Docncia (2010)5 , narra o percurso do artista entre Lorenzo de Medici, morto em 1492 e o pontificado de Pio IV, morto em 1565. Nenhuma das transformaes histricas que, entre esses dois marcos cronolgicos, remodelaram a fisionomia da Itlia passa ao largo da arte de Michelangelo. Poucas so as personagens centrais da histria poltica, literria ou artstica da pennsula que, em um momento ou outro desses trs quartos de sculo, deixaram de interagir, direta ou indiretamente, com ele. Ao reconstituir o tecido dessas relaes, Vasari pe em evidncia outro sentido da mxima de Longhi: no torso em torno do qual gravita a arte de Michelangelo, encerra-se o mundo que se convencionou chamar Renascimento. Isto no significa apenas que Michelangelo , em medida maior que a de qualquer outra personalidade de seu tempo, a includos papas, reis e imperadores, um fenmeno tentacular cujo estudo pressupe o das mais diversas esferas da histria. Isto significa, principalmente, uma presena qualitativa: vistas pelo prisma de sua arte, as diversas determinaes de seu sculo

    1 Cf. Longhi [1940/1980:160]. Nas notas de seu curso de 1913-1914, Longhi [1913/2005:78] via

    Michelangelo imaginando uma humanidade gigantesca que age, mas em movimentos contidos e concisos e como que travado pela massa. Sobre as reservas de Longhi ao Juzo Final, expressas neste curso, e seu relativo laconismo em relao ao artista, cf. Agosti, Farinella [1987:9]. 2 Apud E. Staiger, Grungbegriffe der Poetik (1968), trad. port., Rio de Janeiro: 1972, p. 63.

    3 Non ha lottimo artista alcun concetto / cun marmo in s non circonscriva. Soneto datvel entre 1538 e

    1544 (Girardi, 151). Vide infra o texto da biografia e as notas 417 e 704. 4 Ezra Pound, ABC of Reading (1934), New York: Penguin Books, 1960, p. 97.

    5 O texto integral encontra-se em www.vasari.art.br

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    parecem entrar em perspectiva e formar uma figura. Retirado o prisma, a histria da arte do sculo XVI seria reduzida aparncia absurda de uma anamorfose. Poder-se-ia, assim, transitar facilmente da frmula de Longhi para a de Hegel, e afirmar que a arte de Michelangelo seu tempo apreendido em um torso6.

    A parfrase de Hegel tanto mais pertinente pelo fato de ter sido necessrio arte de Michelangelo, para apreender seu tempo, no se limitar a ser apenas um aspecto dele, mesmo o mais profundo. Para exprimi-lo em sua totalidade, esta arte deveria estar, de certo modo, desidentificada com seu tempo. Esta desidentificao deve ser entendida em dois sentidos. De um lado, Michelangelo o passado do sculo XVI e um passado que o sculo XVI j no reconhece como seu. A pretenso michelangiana de condensar no nu, e to somente nele, o universo do exprimvel permanece tributria do horizonte cultural da Florena dos anos 1480-1494, momento em que o jovem artista estruturou sua forma mentis. Ora, desse horizonte a Itlia, precipitada em crises poltico-militares e religiosas abissais, seria rapidamente distanciada, e isto j a partir do pontificado de Leo X (1513-1521). No obstante o fato de que os nus de Michelangelo retorcidos, vergados e arcados sob o peso da expresso , j nada tm a ver com o homo quadratus do Quatrocentos, eles permanecem a seu modo um paradigma absoluto, que o sculo XVI, finda sua Idade de Ouro, tender a abandonar e mesmo a censurar. Neste sentido, a arte de Michelangelo , paradoxalmente, uma arte do passado, no sentido de uma arte no-atual ou intempestiva. Malgrado o endeusamento de que o artista foi objeto em vida, o fato incontornvel que a recepo de sua arte foi, desde ao menos os anos 1540, crescentemente negativa. Michelangelo no podia dar ao sculo de Trento a arte pela qual este ansiava.

    Por outro lado, a arte de Michelangelo desidentifica-se com a arte do sculo XVI por ser, igualmente, uma arte do futuro, enunciadora de um destino no-advertido pelos homens de seu sculo. Assim Burckhardt a v em um texto de 1885:

    [Michelangelo] foi como uma personificao do destino para a arte; nas suas obras e no seu sucesso residem os elementos essenciais para definir a ntima natureza da cultura moderna. A caracterstica da arte dos ltimos trs sculos, vale dizer, a subjetividade, comparece aqui sob as vestes de uma criatividade absolutamente livre de todo limite. E isto no involuntariamente ou inconscientemente, como em tantos grandes movimentos culturais do Quinhentos, mas com uma intencionalidade hiper-potente. Dir-se-ia que Michelangelo tenha concebido to sistematicamente a arte que cria e postula o mundo, quanto algumas filosofias pensam o Eu criador do mundo7.

    Maurizio Ghelardi retira dessa passagem, bem como de um texto extremo de Burckhardt, que ele publica em 1991, seus desdobramentos ltimos: Burckhardt o primeiro a ter percebido em toda a sua agudez o contraste entre o historicismo rafaeliano da Escola de Atenas, ao qual atribura grandssima importncia artstica e tica, e a arte de Michelangelo, na qual vira, ao contrrio, o exemplo tpico de fuga do clssico equilbrio dos pesos e das medidas, a manifestao de um ato de existir mais que de conhecer, o smbolo da preponderncia do ser sobre o conhecer8. Nesta fuga do clssico fundadora da maniera e premonitria de um alm histrico-artstico cujo

    6 Hegel, Philosophie der Rechts (1805): Die Philosophie [ist] ihre Zeit in Gedanken erfasst (A filosofia

    seu tempo apreendido em ideias). Em 1927, Ernst Cassirer iniciava a Introduo a Indivduo e o Cosmos na Filosofia do Renascimento, problematizando esta afirmao de Hegel no que tange filosofia desse perodo. Mas no com a filosofia, e sim com a arte de Michelangelo que se pode parafrasear o dictum de Hegel. 7 J. Burckhardt, Gesamtausgabe, IV, ed. por H. Wlfflin, Basileia, 1933, p. 82, apud Ghelardi [1991:607].

    8 Cf. Ghelardi [1991:608]. Agradeo a Cssio Fernandes ter chamado minha ateno para esse texto.

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    alcance foi apenas parcialmente compreendido por seu sculo, manifesta-se o que Longhi viu j no Tondo Doni9:

    Mesmo na Itlia, o pice clssico no durara mais que poucos anos. Mximo autor do desvio ningum mais que Michelangelo. E sua atitude no devia parecer algo que se pudesse retomar e trocar em midos, to altiva, solitria, aparentemente intocvel era sua inteno primeira".

    Em mais de uma passagem dessa biografia, Vasari colocar Michelangelo fora da histria, em parte para poder nele fundar a histria da arte, mas em parte tambm porque o bigrafo parece consciente de que a arte de seu amigo apontava para um horizonte situado muito alm da recepo adversa que comeava ento a se desenhar.

    Antes de passar, na Introduo, ao percurso que leva Vasari s suas biografias de artistas, impe-se uma palavra sobre o cerne deste trabalho: a traduo do texto do bigrafo e o comentrio que este engendra. Pouco h a avanar no que se refere traduo10, realizada a partir do texto de 1568, segundo a edio de 1966-1987, proposta por Paola Barocchi e Rossana Bettarini. 6 volumes, volume 6, Florena: S.P.E.S., 1987, disponvel no site da Fondazione Memofonte (www.memofonte.it).

    No cabe a mim um juzo sobre o valor literrio do original. Vasari no est entre os maiores literatos do sculo de Pietro Bembo. Mas um escritor que olha nos olhos do leitor e que possui no mais alto grau trs qualidades: um senso inigualvel da cfrase, uma enorme verve narrativa e um senso da histria em grande angular. As duas primeiras qualidades foram-lhe reiteradamente louvadas. A ltima no lhe ter talvez sido reconhecida em sua justa medida. As Vidas compem uma histria de trs sculos da civilizao italiana, construda graas ao talento de grande orquestrador de seu vasto material histrico; graas tambm a uma genuna teoria da histria, qual no faltam uma aguda conscincia da unidade desse perodo, a especificidade de seu objeto e a maestria no manejo de seu aparato conceitual. Trata-se de uma genuna, complexa e fecunda teoria da histria, irredutvel ao evolucionismo ou a uma simplria crena no progresso das artes a que se a quis expeditiva e anacronicamente reduzir.

    Acima de tudo, Vasari um homem capaz de imensa empatia em relao a seus semelhantes, qualidade imprescindvel de todo grande bigrafo. Com seus pares, ele revive sucessos e alegrias, mas tambm infortnios, que lhe oferecem ocasio para digresses de plutarquiana memria sobre o inelutvel destino e a inimizade que h entre a fortuna e a vontade (virt). Em uma carta a Andr Gide de 25 de agosto de 1894, Valry escrevia: Il faudra crire la vie d'une thorie comme on a trop crit celle d'une passion. Justamente, Vasari foi capaz de escrever nesta biografia de Michelangelo a vida de uma ideia de arte como se escrevesse a vida de uma paixo. Quem quer que o tenha traduzido ter passado por uma experincia gratificante, pois no se pode conviver com seu texto sem se deixar contagiar por seu entusiasmo. Caber ao leitor ajuizar o resultado aqui obtido. Para maior comodidade de leitura, acrescentamos em nossa traduo os subttulos que pontuam o texto.

    O comentrio foi concebido a partir de um modelo: o Commento a esta biografia publicado por Paola Barocchi em 1962, com o ttulo: La Vita di Michelangelo nelle redazioni del 1550 e del 1568, 1 volume de Texto e 4 volumes de Comentrio, Milo-Npoles: Riccardo Ricciardi. Nestes 4 volumes, a estudiosa retraa a fortuna

    9 Vide infra a nota 159 do Comentrio.

    10 Uma traduo parcial desta Vida de Michelangelo, por A. Della Nina, comparece no volume X da

    coleo Biografias de Homens Clebres, So Paulo, Editora das Amricas, 1955.

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    crtica de cada frase do texto de Vasari sobre o artista, fornecendo, ademais, anlises penetrantes sobre seu valor crtico. De 1960 a 2010, meio sculo de bibliografia sobre Michelangelo e sobre Vasari, como bigrafo, supera, ao menos em nmero de ttulos, tudo o que fora escrito sobre ambos os artistas nos quatro sculos anteriores. Apenas os livros, artigos e Atas de Congressos publicados no quarto centenrio da morte de Michelangelo, em 1964, os estudos sobre novas atribuies e interpretaes iconogrficas, sobre as relaes do artista com a histria poltica, religiosa e literria, sobre as descobertas de um nmero considervel de suas obras juvenis, sobre as restauraes do Tondo Doni, da Capela Sistina, da Capela Paolina e do Sepulcro de Jlio II, apenas os novos catlogos dos desenhos e de sucessivas exposies sobre os mais diversos aspectos e perodos de sua vida e atividade de artista e poeta, e, enfim, as tentativas de sntese, ultrapassam nestes ltimos decnios a casa dos mil ttulos.

    O objetivo primeiro do presente comentrio foi dar a devida evidncia a esta literatura surgida aps a publicao do Commento de Barocchi, destacando os trechos em que se cristaliza o pensamento dos estudiosos. Salvo quando se tratava de passagens de outras biografias do prprio Vasari, da correspondncia de Michelangelo, de seus outros bigrafos quinhentistas (Giovio, Condivi, Varchi), ou, ainda, de autores centrais dos estudos michelangianos (Gotti, Thode, Tolnay...), ative-me, em geral, ao critrio de remeter ao Commento de Barocchi os textos anteriores a 1960, j ali citados. Alm disso, no-raro retomei as anlises da prpria Barocchi acerca de Vasari e de Michelangelo. No mais, tentei seguir de perto seu mtodo que consiste em organizar o prprio comentrio tanto quanto possvel como um mosaico de passos relevantes de outros autores sobre o tema discutido.

    Isto posto, convm explicitar a ordem de exposio adotada nos comentrios aqui propostos. Salvo nas notas puramente informativas e de contexto (notcias sobre personagens e fatos histricos citados), priorizou-se grosso modo a seguinte hierarquia:

    I. Em relao ao texto:

    a. questes atinentes traduo; b. eventuais discrepncias entre o texto vasariano de 1550 e o de 1568; c. cotejamento dos textos vasarianos com o das outras biografias coevas de

    Michelangelo (Paolo Giovio, Ascanio Condivi, Benedetto Varchi) e demais testemunhos antigos;

    d. exame da Correspondncia e da Poesia de Michelangelo; e. anlise dos comentrios modernos passagem em apreo

    II. Nas notas relativas s obras de Michelangelo:

    Tentou-se em seguida a anlise da obra, sucedendo-se em princpio em nosso enfoque os seguintes aspectos: iconografia, datao, estudos preparatrios, circunstncias da encomenda, recepo, fortuna crtica, etc.

    A seleo dos aspectos considerados mais relevantes da bibliografia , em si, uma tcita tomada de posio. Quando cabvel, as notas explicitam posicionamentos prprios em relao ao debate em curso.

    O segundo objetivo deste Comentrio reconstituir de modo sistemtico a biografia e o Corpus das obras de Michelangelo, atravs da anlise da documentao textual e visual disponvel. No que se refere documentao visual, uma nfase especial foi colocada na ilustrao do Comentrio, que remete a imagens da quase totalidade das

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    obras de Michelangelo e, secundariamente, tambm de obras de outros artistas que com estas se relacionam. A este Corpus de 960 imagens tem-se acesso no stio www.vasari.art.br, que dever no futuro abrigar todas as imagens de obras existentes, bem como seus estudos preparatrios, cpias e derivaes, mencionadas nas Vite de Vasari. A leitura do texto de Vasari e do comentrio que ele engendra deve ser feita concomitantemente com a consulta das imagens deste stio. Ele se desenvolve, de resto, em estreita interao com outro, tambm de nossa autoria www.mare.art.br , graas ao qual as obras de Michelangelo so colocadas em perspectiva do ponto de vista da histria da iconografia.

    * * *

    Ao longo de seu desenvolvimento esta pesquisa recebeu apoio, que aqui agradeo, da FAPESP e do CNPq. com prazer tambm que agradeo meu Departamento pelo apoio prodigalizado sob diversas formas no curso deste trabalho. A Pina Ragionieri e ao Prof. Luciano Berti agradeo a generosidade e confiana de que deram prova ao emprestar em 1996 ao Museu de Arte de So Paulo, quando de minha atuao nesta instituio como Curador-Chefe, um conjunto aprecivel de desenhos de Michelangelo pertencentes Casa Buonarroti, ocasio em que pudemos organizar um proveitoso colquio internacional consagrado ao artista.

    Com Luciano Migliaccio, Maria Berbara, Jens Baumgarten, Daniela Cabrera, Juliana Barone, Ricardo de Mambro Santos, Waldemar Gomes, Alexandre Ragazzi, Elisa Byington, Letcia M. de Andrade, Marina Berriel, Fernanda Marinho e Patrcia Dalcanale Meneses compartilho h anos o amor por Michelangelo, por Vasari e pela arte italiana. Talvez no avaliem na justa medida o muito que este trabalho lhes deve. Jens Baumgarten, Maria Berbara e Elisa Byington leram parte da Introduo. Luciano Migliaccio dirimiu, alm disso, muitas dvidas de italiano. Joo Angelo Oliva corrigiu e melhorou enormemente meu portugus. Luiz Arnaldo Ribeiro ocupou-se com sua habitual competncia e prestatividade da montagem dos stios www.vasari.art.br e www.mare.art.br. A todos esses amigos, renovo aqui minha gratido. Agradeo tambm aos meus alunos de graduao e ps-graduao pelo interesse e pacincia com que acompanham ano aps ano meus cursos sobre Vasari e Michelangelo. Enfim, os comentrios da banca examinadora de meu concurso de Livre Docncia a que submeti este trabalho em maro de 2010 foram de grande utilidade para corrigi-lo e aperfeio-lo.

    Sabine, Elena, Leon e Iza, dedico este trabalho.

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    INTRODUO

    1 Origens

    Giorgio Vasari nasce em Arezzo em 30 de julho de 1511 e morre em Florena em 27 de junho de 157411. Embora tenha passado parte de sua vida em Roma e em Florena, cidades nas quais convive com muitas das mais agudas mentes de sua gerao, a pequena Arezzo, com seus cinco mil habitantes, que permanece sua referncia primordial, sua famlia, seu lar e, quando vier a prosperar, seu foco de investimentos imobilirios. A igreja em que se batizou, a belssima Pieve, a mesma que escolher por jazigo, junto de seus antepassados12. Em Arezzo, radicara-se seu bisav, Lazzaro di Niccolo de Taldi, nascido em 1396 ou 1399 em Cortona (morto em 1468) e o mais antigo membro de sua famlia de que se tem notcia. Em sua Vita, Vasari afirma, no decerto sem exagero, ter ele sido um artista famoso em seu tempo, no apenas em sua ptria, mas em toda a Toscana, alm de amicssimo de Piero della Francesca. Na realidade, seu nome no comparece nos registros corporativos dos pintores de Arezzo e ao menos em sua declarao de bens ao censo (Estimo) de Cortona de 1427 ele se declara um arteso fabricante de selas de cavalo, um sellaio13. Em princpio, tal declarao no exclui a possibilidade de uma atividade artstica, naquele tempo muito verstil, e Vasari afirma que Lazzaro adornava selas, sendo nisso timo mestre, afeito em pintar figurinhas com muita graa, as quais em tais selas muito bem se ajeitavam. plausvel que, radicado em Arezzo pouco antes de 1458, Lazzaro tenha satisfeito a demanda quase industrial por cassoni, o que levou Roberto Longhi a imaginar se o Maestro delle Nozze degli Adimari no seria, quase por milagre, o prprio Lazzaro14, o qual teria tambm assumido ao menos algumas das encomendas artsticas que Vasari lhe atribui15. Seja como for, parece evidente que o bigrafo projeta no patriarca da famlia as qualidades cortess reformadas, que so de fato suas prprias: pessoa agradvel e argutssima no falar; e ainda que muito dedicado aos prazeres, jamais se afastou da vida honesta16.

    O filho de Lazzaro, Giorgio, lavor benissimo di rilievo, isto , teria sido um timo modelador de relevos em terracota. Sua atividade principal, contudo, a de

    11 A bibliografia sobre Vasari imensa. Entre os estudos biogrficos e de anlise de sua evoluo

    intelectual, ressaltam os de Del Vita [1930:51-75], Idem [1952:215-220], Boase [1979], Barocchi [1984], Barolsky [1991], Rubin [1995], Le Moll [1995], Kliemann [1997:10-25], Salem [2002] e Pozzi e Mattioda [2006]. Mas no prprio artista-escritor que se encontram os elementos de sua biografia, consignados em trs fontes principais: as Vite (que incluem uma autobiografia, 1568), as Ricordanze (1527-1573) e a Correpondncia (1532-1573). 12

    Para as figuras, ver o stio www.vasari.art.br. 13

    Cf. Milanesi, ed. de G. Vasari, Vita di Lazzaro Vasari [1878-1885/1906:II,553], nota 1. 14

    Cf. Longhi [1927/1980:101] e Idem [1940/1975:58] 15

    Por exemplo, o afresco de S. Vicente Ferrer na igreja de S. Domenico em Arezzo e os afrescos fragmentrios de uma Crucificao e de cenas da Vida de S. Catarina, nos Servitas de Perugia, pintados por volta de 1460. Cf. Boase [1979:4]. 16

    Cf. Vasari, Vita di Lazaro Vasari. Salvo indicao em contrrio, todas as citaes das Vidas de Vasari so tomadas do texto editado por Paola Barocchi e Rossana Bettarini, Le Vite de' pi eccellenti pittori, scultori ed architettori nelle redazioni del 1550 e 1568. 6 volumes, Florena: S.P.E.S., 1966-1987, disponvel no site da Fondazione Memofonte de Florena (www.memofonte.it).

  • x

    vasaio, ceramista poteiro, ofcio que o leva a adotar o sobrenome Vasari17. Giorgio era hbil em modelar grandes vasos que, ao que parece, podiam passar por antigos, e seu neto, ainda mais habilmente, nobilita essa competncia, associando-a a um interesse pelas cermicas etruscas, abundantes em territrio aretino18, o que o teria levado aps 1473, durante o episcopado aretino de Gentile de Becchi (o amigo de Ficino e Poliziano, alm de preceptor de Lorenzo de Medici), a redescobrir o segredo da cor vermelha e negra dos vasos de cermica que desde os tempos do rei Porsena os velhos aretinos haviam trabalhado. E ele que era pessoa industriosa fez vrios vasos grandes em um torno, da altura de uma braa e meia, que ainda em sua casa se vem19. Alm disso, no falta ao av a magnificncia de presentear Lorenzo de Medici, quando de sua passagem por Arezzo em abril de 1483, com quatro grandes e autnticos vasos etruscos por ele descobertos, o que, diz ele, sela para sempre os vnculos de clientela (servit) da famlia Vasari com os Medici. Os filhos de Giorgio seguiro o ofcio do pai, mas Antonio, pai de Vasari, morto na peste de 152720, parece no ser particularmente dotado, pois ter de suplementar suas parcas rendas como pequeno comerciante, tanto assim que Vasari o definir um pouero cittadino e artigiano21. De Maddalena Tacci, me do escritor, nada se sabe, alm da data da morte em 1557 e de sua fisionomia quando jovem, que lhe pinta de memria o filho em 1563.

    A pretenso de Vasari de descender de uma estirpe de artistas aretinos tem, sobretudo na edio Giuntina das Vidas, de 1568, o sabor de um discreto paralelo histrico: se a histria da arte italiana deve, nas Vidas vasarianas, confluir em Michelangelo, a histria da arte em Arezzo deve confluir no prprio Vasari, que, de resto, como notado, no hesita em fazer de sua cidade um reflexo direto do protagonismo florentino22. Essa pretenso genealgica inscreve-se no promio da Vita di Lazaro Vasari com fora quase herldica:

    verdadeiramente grande o prazer dos que tm em um de seus antepassados e da prpria famlia algum singular e famoso em uma profisso, de armas, letras ou pintura, ou em qualquer nobre ofcio.

    Ela retorna em uma passagem da mesma Vida de seu bisav, segundo a qual ningum menos que Luca Signorelli (1450c.-1523) o mais notvel discpulo de Piero della Francesca23, o artista que conclui a gesta dos artistas da Segunda Idade e o nico imediato precedente pictrico de Michelangelo sobrinho de Lazzaro, nascido de uma sua irm24. Mais que isso, Lazzaro te-lo-ia generosamente trazido de Cortona e o introduzido no ateli aretino de Piero, promovendo, assim, um dos mais fecundos entroncamentos artsticos do Quatrocentos25. Nenhum documento corrobora a relao

    17 Cf. Milanesi, loc cit.

    18 Cf. Giovanni Villani, Cronica, I, cap. 47, p. 72: anticamente fatti per sottilissimi maestri vasi rossi con

    diversi intagli... parevano impossibili a esser opera umana, e ancora se ne truovano (antigamente feitos por sutilssimos mestres, vasos vermelhos com diversos entalhes... parecia impossvel que fossem obra de mos humanas, e ainda se encontram). J citado por Rubin [1995:61]. 19

    Cf. Vasari, Vita di Lazaro Vasari. 20

    Cf. Descrizione delle opere di Giorgio Vasari, autobiografia com que se concluem as Vite. 21

    Cf. Frey, Lit. Nachlass [1923-1930:I,30], j citado por Rubin [1995:62]. 22

    Cf. Bozzoli [2007:9-20], Melani [2007:39-49] e Torricini [2007:59-66]. 23

    Cf. Vasari, Vita di Piero della Francesca: foi seu aprendiz Luca Signorelli de Cortona, que o honrou mais que qualquer outro. Sobre Piero na linhagem aretina das Vidas, cf. Melani [2007:39-49]. 24

    Veja-se Vita di Lazaro Vasari. Idem na de Signorelli: tornandosi [Signorelli] in casa di Lazzaro Vasari suo zio. 25

    Vita di Lazaro: tirossi (...) in casa Luca Signorelli da Cortona suo nipote, nato duma sua sorella, il quale, essendo di buono ingegno, acconci com Pietro borghese acci imparasse larte dela pittura.

  • xi

    de parentesco entre Signorelli e os Vasari26, mas nenhum tampouco o refuta, o que permite no limite pr em dvida, mas no descartar, o depoimento do bigrafo, ainda que este seja evidentemente pro domo. Ainda menino, Vasari diz ter conhecido Signorelli quando de sua passagem por Arezzo em 1519 ou em 152227 e deixa dele uma recordao comovente, ao mesmo tempo em que o faz convoc-lo a assumir seu destino de artista: impara, parentino! (aprende, parentezinho!), exclama ele, aps conclamar o pai a inici-lo nas artes do desenho28. Tal recordao, alm uma rpida meno a um primeiro aprendizado autodidata, copiando os afrescos das igrejas de Arezzo e junto ao artista de vitrais, Guillaume de Marcillat, ento em Arezzo, tudo o que nos informam de sua infncia as interpolaes autobiogrficas nas Vidas, bem como a autobiografia do artista-escritor, antes de seu tirocnio como artista a partir de 1524 em Florena.

    Antes, porm, de segui-lo a Florena preciso ressaltar que Vasari teve mais que uma simples iniciao nas letras. Vale registrar seu apego a dois mestres de infncia, Antonio da Saccone e Giovanni Lappoli, conhecido como Pollastra, recordados nas Vite de Rosso, de Giovanni Antonio Lappoli (seu sobrinho) e de Cecchino Salviati. Na primeira, sabemos que Rosso pintou em Arezzo, em uma abboda da igreja da Madonna delle Lagrime, quatro afrescos cujo programa foi-lhe ditado pelo belo engenho de messer Giovanni Polastra, cannico aretino e amigo de Rosso. Na segunda, Vasari recorda Pollastra como uomo litteratissimo, poeta e comedigrafo. Na terceira, a de Salviati, estende-se mais, fornecendo algumas informaes importantes sobre sua formao:

    Em 1523, passando por Arezzo Silvio Passerini, cardeal de Cortona, como legado do papa Clemente VII, Antonio Vasari, seu parente, levou Giorgio, seu filho maior, para fazer reverncia ao cardeal. Vendo aquele menino, ento com menos de nove anos, pela diligncia de messer Antonio da Saccone e de messer Giovanni Polastra excelente poeta aretino, ter sido de tal maneira introduzido nas primeiras letras que sabia de memria uma grande parte da Eneida de Virgilio, quis ouvi-lo recitar; e vendo que havia aprendido a desenhar com Guilaume de Marsillat, pintor francs, ordenou que Antonio mesmo conduzisse aquele menino a Florena.

    Vasari tinha algum comando do latim, como indicam inmeras passagens das Vite. Mas ainda que tivesse fresco na memria seu Donato, o manual escolar de latim ento em uso, e embora a memorizao fosse uma prescrio pedaggica usual, ele pode ter recitado no o texto latino, mas alguns versos da traduo italiana dos cantos VI e XII da Eneida, realizada pelo prprio Pollastra, que permanece seu mdico espiritual, como demonstra uma magnfica carta de 1537 ao mestre, em agradecimento por uma indicao aos monges do Ermo de Camaldoli, que lhe encomendam a decorao de sua igreja. Como se ver adiante, alguns indcios cronolgicos disponveis permitem conjecturar que Vasari concebeu neste retiro de Camaldoli as primeiras notas das suas Vite, o que faria de Pollastra seu primeiro, ainda que indireto, inspirador.

    26 Como fazem notar, por exemplo, Rubin [1995:61] e Henri, Kanter [2001:13].

    27 Em 1519, Signorelli recebe a encomenda do retbulo para a Compagnia di San Girolamo, que ele

    entrega com pompa e circunstncia em 1522. Vasari diz que a visita ocorreu por ocasio da entrega da obra, mas, por outro lado, diz ter ento a idade de 8 anos, um lapsus memoriae explicvel pois Signorelli deve ter vindo a Arezzo para assinar o contrato em 1519. 28

    Vita di Luca Signorelli: Disse muitas outras coisas de mim, que calo por saber no ter em grande parte confirmado o juizo em que me teve aquele bom velho.

  • xii

    Florena (1524-1527)

    Graas, como visto, a uma providencial relao de parentesco com Passerini (no confortada por outra documentao), o adolescente de 13 anos subiu to repentinamente para Florena, onde as portas se lhe abrem de par em par. Para a cidade que dominava havia muito Arezzo, Vasari levado em maio de 1524, por ordem do tirnico cardeal de Cortona, Silvio Passerini (1469-1529), j datrio de Leo X e figura-chave do poder em Florena, na qualidade agora de legado pontifical de Giulio de Medici, eleito papa Clemente VII em 3 de novembro do ano anterior29. Vasari afirma ter sido introduzido pelo cardeal de Cortona no ateli de Michelangelo, com quem convive alguns meses, antes deste partir para Roma, chamado por Clemente VII. A informao, reiterada na autobiografia, na Vita de Salviati e na de Michelangelo, contradita pelos fatos, pois como nota Barocchi e como demonstra a correspondncia de Michelangelo, este parte para Roma entre 26 de novembro e 12 de dezembro de 1523, e j se encontra de retorno em 22 de dezembro de 1523, antes, portanto, da chegada de Vasari a Florena30. na realidade no ateli de Andrea del Sarto (1486-1531), artista muito prximo dos Medici e de Passerini31, que o adolescente seguir sua formao artstica, prosseguida entre 1525 e 1527 junto a Baccio Bandinelli e sempre em amistosa emulao com Francesco Salviati.

    Passerini instala Vasari na casa de Messer Niccol Vespucci, nas imediaes do Ponte Vecchio32. Cavaleiro de Rodes, Vespucci era membro de uma famlia de mecenas, velha aliada dos Medici, sendo ele prprio figura de projeo no cenrio cultural florentino de ento, retratado por Parmigianino e por Giulio Romano33, alm de amigo de Ariosto, que se hospedara dez anos antes em sua casa, cenrio de sua paixo por Alessandra Benucci. Em uma carta de agradecimento por sua hospitalidade, escrita de Roma em 8 de fevereiro de 1532, Vasari garante que jamais se esqueceria de ter sido educado em casa vossa e recorda quanto deve a seu primeiro anfitrio por t-lo afastado das extravagncias indecorosas de um temperamento de artista, por assim dizer sodomiano34 ou pontormiano35, modelo ao qual comeava ento a se contrapor um ideal de artista-corteso, de que Vasari far-se- novo paradigma: Agradeo-vos ainda pelos confortos que me d em ser modesto, amoroso, benigno e de bons costumes, no estranho, luntico e bestial, como costuma ser a escola de ns todos36.

    Este ideal de gentilezza implicava um aperfeioamento dos estudos e o jovem seguir a tal fim, por ordem do cardeal Passerini, os cursos dirios de duas horas

    29 Sobre o Cardeal Passerini, vide infra a Vida de Michelangelo e a nota 386 do Comentrio.

    30 Vide infra as notas 387 e 389 do Comentrio.

    31 Alm de executar os afrescos de Poggio a Caiano (Homenagem a Lorenzo il Magnifico), Andrea

    desenhara havia pouco para Passerini os cartes para os parati (paramentos) enviados pelo cardeal Catedral de Cortona. Cf. Rubin [1995:81]. 32

    Vita di Francesco Salviati. 33

    Giulio Romano inclui-o entre os membros da corte de Leo X no Batismo de Constantino, na Sala de Constantino no Vaticano (1523-1524). O retrato atribudo a Parmigianino encontra-se em Hannover. 34

    Na Vita de Sodoma, Vasari o toma como um caso exemplar de vida extravagante e bestial: Se Giovannantonio da Verzelli, que teve boa fortuna, tivesse tido (...) igual virt, no teria no fim da vida, que foi sempre extravagante e bestial, cado loucamente em mseras dificuldades. 35

    Paradoxalmente, Niccol era um protetor de Pontormo. Na Vita deste, Vasari relata ter sido Niccol Vespucci a indicar o artista a Ludovico Capponi para a decorao de sua clebre capela em S. Felicita. 36

    Cf. Trevor-Hoper [1976/1991:11-52] e Marques [2004:77-98]. Salvo meno em contrrio, as citaes da correspondncia de Vasari so feitas a partir da edio Le Opere di Giorgio Vasari con nuove annotazioni e Commenti di Gaetano Milanesi. Volume VIII, Florena, 1885, reimpresso de 1906, contendo as Lettere edite e inedite di Giorgio Vasari, pp. 227-515.

  • xiii

    ministrados por Pierio Valeriano37 aos dois Medici bastardos sobre os quais repousavam as esperanas da famlia: Alessandro (1510-1537), futuro duque de Florena, e o talentoso Ippolito, de quem Vasari se torna um protg e amigo at sua morte em 1535. Na Vita de Francesco Salviati, Vasari recorda esta experincia:

    Entrementes, no deixando o estudo das letras, Vasari, por ordem do cardeal, ocupava-se todo dia durante duas horas com Ippolito e Alessandro de Medici, sob Pierio, mestre deles e muito competente.

    Umberto Baldini sublinha agudamente a importncia do ensinamento de Pierio Valeriano para Vasari, que de sua expertise dos hierglifos teria aprendido as equivalncias entre objetos, figuras e conceitos, tais como apareciam enunciadas em um texto alexandrino de Horapolo em cuja nova redao o prprio Valeriano estava ento empenhado38. A bagagem literria que trazia de Arezzo somada aos benefcios advindos da convivncia com os crculos cultivados de Niccol Vespucci devem ter possibilitado a Vasari extrair um enorme proveito de seu treino metdico por trs anos com um humanista excepcional como Valeriano, cultor ademais do toscano, em cuja controvrsia ele intervm com autoridade. Tal frequentao continuar em Roma, em 1532, em especial nas reunies acadmicas promovidas por Claudio Tolomei. Basta ler as primeiras cartas conhecidas de Vasari, de 1532 e 1533, a personagens do calibre de Niccol Vespucci, Ottaviano de Medici, Paolo Giovio, Ippolito de Medici e Pietro Aretino, para se dar conta de que seu comando da sintaxe e do lxico no so, bem longe disso, o de um aprendiz. Alm disso, se excetuarmos Michelangelo e talvez o compatriota Leone Leoni (1509-1590), nenhum artista do sculo XVI possui em to alto grau os dotes de escritor de Vasari.

    Uma pouco notada passagem desta Vida de Michelangelo demonstra de modo cabal este excepcional desempenho na esfera das letras. Anexa a uma carta datada de 19 de setembro de 1554 (BR:MCXCVII), Michelangelo envia a Vasari o clebre soneto de sua velhice Giunto gi il corso dela vita mia (Girardi 285). O bigrafo reproduz o poema e prossegue:

    Vasari respondeu-lhe com uma breve carta (...) e com um soneto rimado de modo correspondente ao que Michelangelo lhe enviara.

    No raro no sculo XVI esse gnero de exerccio potico, mas ele evidentemente supe um virtuosismo a que se tem acesso apenas aps um longo e intenso treinamento na arte da versificao. errneo, portanto, considerar Vasari como um pintor que se aventura na esfera das letras, como ele mesmo se qualifica em suas captationes benevolentiae de praxe39. Na realidade, em sua infncia e adolescncia seu treinamento foi, em termos de rigor, continuidade e mtodo, mais literrio que artstico. At 1530, isto , at os 19 anos, Vasari, como ele prprio relembra em sua autobiografia, quase no havia tocado nas cores (ancorch io non avessi quasi ancor tocco colori). Ainda

    37 Giovannni Pietro Dalle Fosse (1477-1558), chamado Pierio Valeriano, amigo de Egidio da Viterbo,

    tradutor de Luciano e comentador de Catulo em Roma, mais conhecido por suas duas obras, Hieroglyphica (ed. 1556), suma sobre a simblica egpcia (contendo uma passagem sobre o non-finito michelangiano), e De litteratorum infelicitate, um dilogo iniciado na atmosfera deprimente de Roma em 1529, inacabado e publicado apenas em 1620. Cf. Gouwens [1998:35,147] e Gaisser [1999], Introduo. Sobre Valeriano, vide infra as notas 621, 705 e 714 do Comentrio. 38

    Cf. Baldini [1994:11]. Sobre o Horapollo, cf. Boas [1951/1993]. 39

    Por exemplo, na Conclusione della Opera agli Artefici et a Lettori da edio das Vite de 1550: No porque espere ou me prometa o nome de historiador ou de escritor, no que jamais pensei, sendo minha profisso pintar, no escrever.

  • xiv

    que, oito anos depois, sua Natividade de Camaldoli seja louvada em epigramas latinos por Fausto Sabeo (outro indcio da familiaridade do artista com eruditos de primeira grandeza)40, a verdade que at os 29 anos, em 1540, data aposta sobre sua ambiciosa41 Ceia de S. Gregrio para o refeitrio do convento de S. Michele in Bosco em Bolonha, a proficincia de Vasari nas letras ainda supera seu cabedal como pintor. preciso insistir sobre este ponto: nos anos 1540, Vasari no transita para as letras. Permanece nelas, enquanto desenvolve paralelamente seus dotes de pintor e arquiteto42.

    Roma Clementina

    A expulso dos Medici e o restabelecimento da Repblica florentina em maio de 1527 leva o tio de Vasari, Don Antonio, a cham-lo de volta a Arezzo, onde, sobrevinda em 24 de julho a morte do pai, vitimado pela crudelt della peste, ele deve assumir o sustento da famlia. Exceto por uma fuga para Pisa em outubro de 152943, sob a ameaa dos soldados imperiais de Filiberto dOrange, que avanam sobre Arezzo em sua marcha para Florena44, e por uma breve estada em Florena nesse mesmo perodo, os 48 registros das Ricordanze, de outubro de 1527 a dezembro de 1531, confirmam o melanclico relato que Vasari faz a Niccol Vespucci de seu ostracismo aretino45:

    e alm de me ter de refugiar nos bosques a pintar santos para as igrejas do campo, por no se poder como sabeis, habitar na cidade [de Arezzo], chorava, percebendo como mudara minha situao da comodidade de que desfrutava quando ele [meu pai] estava vivo, para a incomodidade sofrida aps sua morte. At que voltei, aqui em Roma, a servir o grande Ippolito de Medici. (...) E ora vejo este senhor ainda mais empenhado em animar e apoiar, no s a mim, que sou uma sombra, mas a quem se engenha e esfora por aprender toda sorte de virtude.

    As mencionadas estadas em Pisa e em Florena em 1529, seu encontro em Arezzo com Rosso em 1528, que lhe ajuda com desenhos e conselhos46, sua participao em Bolonha na decorao dos arcos do triunfo para a coroao de Carlos V em 1530 e uma

    40 Veja-se a autobiografia: messer Fausto Sabeo, uomo letteratissimo et allora custode della libreria del

    Papa, fece, e dopo lui alcuni altri, molti versi latini in lode di quella pittura. 41

    Ambio manifesta no apenas na complexidade compositiva e no acabamento mais refinado, mas em incurses arqueolgicas na representao da arquitetura. Assim, Vasari escreve nas Vite di Fra Giocondo e di Liberale [da Verona]: Giovanni [Carotto] desenhou todas as plantas das antiguidades de Verona, e os arcos triunfais e o Coliseu, desenhos revistos por Falconetto, arquiteto verons, para adornar o livro das Antiguidades de Verona, escrito segundo esses desenhos por messer Torello Saraina, que o publicou. E Giovanni Caroto enviou-me-o a Bolonha onde eu ento decorava o refeitrio de San Michele in Bosco (...) para que dele me servisse, como o fiz em um daqueles quadros. 42

    Cf. Barocchi [1984:117]: Tambm no plano literrio, Giorgio [Vasari] tinha mritos, decerto maiores que os de Pontormo, [Battista] Tasso, Sangallo e Tribolo, sendo j conhecido como correspondente ativo e apreciado. E nota a versatilidade com que enfrenta gneros diversos em sua atividade epistolar. Tambm Rouchette [1959:19] insiste na solidez de sua formao no mbito das letras, e Pozzi e Mattioda [2006:3] no hesitam em afirmar que Vasari era bem mais que um artista que sabe segurar em uma pena: era um artista que havia feito estudos robustos e se atualizava tambm no que poderamos chamar cultura geral. 43

    Cf. Ricordanze 27: Recordo como no dia 4 de outubro de 1529, fugi dos soldados que vinham assediar Forena (...) e fui a Pisa e pus-me a trabalhar com Piero di Marcone, ourives florentino, por 14 grossi ao ms, mais as despesas, acordando-nos em 28 grossi. 44

    Francesco degli Albizzi, comandante de uma fora de dois mil soldados da Repblica florentina retirara-se de Arezzo em pnico ao anncio da capitulao de Cortona, deixando Arezzo merc dos imperiais, que ocupam a cidade em 18 de setembro de 1529. 45

    O relato substancialmente reiterado na autobiografia e na Vita de Francesco Salviati. 46

    Cf. Vasari, Vita di Rosso, autobiografia, e Franklin [1994:229-261].

  • xv

    viagem de trabalho ao monastrio de Monte Oliveto so os nicos eventos que se destacam nesse obscuro interregno, terminado em 1531 quando o cardeal Ippolito de Medici, desejando que ele [Vasari] fizesse algum fruto na arte e t-lo junto a si, ordenou a Tommaso de Nerli, seu comissrio em Arezzo, que o enviasse a Roma47.

    A Roma em que o jovem de 20 anos vinha viver estava ainda ferida pelo Saque de 1527, pela inundao do Tibre de 7 de outubro de 1530, quando o rio atinge as escadarias da baslica de So Pedro, destri vrias pontes, cerca de 600 casas e palcios, trazendo de volta a peste48. A nica fora simblica em torno da qual a cidade podia se reerguer, Clemente VII, s retorna de Viterbo em outubro de 1528, aps 17 meses de ausncia. Mas suas j parcas energias diminuem ainda mais com a grave enfermidade que o acomete em 8 de janeiro de 1529, e que os mdicos, no dizer de Berni, s fazem piorar49. Mesmo recuperado a partir de maro, o foco de sua atividade at ao menos finais de 1530 no ser a revitalizao de Roma, mas a reconquista de Florena republicana, em troca da qual entrega a Carlos V o que lhe resta de poder e riquezas50, selando uma aliana que inclui o casamento (efetivado em 1536) da filha natural deste, Margarita de ustria51, com Alessandro de Medici, seu filho (formalmente, filho natural de Lorenzo de Medici, duque de Urbino)52.

    Isto posto e malgrado o impacto da barba lutuosa e encanecida do papa53, Roma no entende adot-la. A corte cardinalcia, conclamada a voltar Urbe pela encclica de outubro de 1528, mostra-se pronta a retomar seu ritmo e modos de vida. Vida de corte, reunies literrias e libertinagem entrelaam-se inextricavelmente. Funda-se em 1531 a Accademia de Vignaiuoli cujo ttulo j um programa e que congrega, na residncia do mantuano Uberto Strozzi (sobrinho de Baldessare Castiglione e proprietrio de fragmentos do carto da Batalha de Cascina de Michelangelo), literatos como o prelado Ludovico Beccadelli, Giovanni della Casa, que acabara de adquirir seu ttulo de clrigo, Agnolo Firenzuola, Francesco Maria Molza e Francesco Berni54. Conserva-se uma carta

    47 Cf. Vasari, Vita di Francesco Salviati e autobiografia.

    48 Cf. Gregorovius [1859-72/1973:III,2566].

    49 Francesco Berni, Rime (XXXVIII): Sonetto a Papa Chimente VII Malato. No incio de seu De

    Litteratorum infelicitate [1529/1999:81], Piero Valeriano refere-se aos vos rumores acerca de sua morte (obitu vanis rumoribus). 50

    Alm de ceder ao imperador, no tratado de Barcelona, ratificado em 29 de junho de 1529, a investidura no reino de Npoles, Clemente concorda em pagar a guerra contra Soliman na Hungria com um quarto dos proventos da Igreja, tal como o fizera o papa Adriano VI (1521-1522), outrora preceptor de Carlos V. Clemente VII ilude-se com as concesses de momento do imperador, que em 21 de abril de 1531 declara nulas as pretenses romanas sobre Modena, Reggio e Rubiera. Sobre os termos desse tratado, veja-se Guicciardini [1537-40/1975:III,922-965]. 51

    Em 1529, Margarita de ustria, a futura Madama de que o Palazzo Madama (sede atual do Senado da Itlia) e a Villa Madama em Monte Mario tero o nome, tem ento apenas 7 anos. Viva de Alessandro, casa-se em 1538 com Ottavio Farnese (1524-1586), dedicatrio dos Elogia de 1546 de Paolo Giovio. 52

    Sobre Alessandro e Clemente VII, vide infra as notas 419, 469 e 470 do Comentrio. 53

    Clemente VII retorna a Roma com a barba crescida e embranquecida, signo dos sofrimentos a ele infligidos pelo Saque. Assim se faz representar em diversos retratos de Sebastiano del Piombo, inclusive sobre ardsia, material alusivo perenidade, como o so os retratos da Galleria Nazionale de Parma, do Museu de Npoles e do Getty Museum, 105,5 x 87,5 cm, inv. 92.PC.25. Solicita, alm disso, a Michelangelo, que ajude Bugiardini a retrat-lo com idntico aspecto, como se deduz de duas cartas de Sebastiano ao escultor, de 22 de julho (BR:DCCCXX) e de 3 de outubro de 1531 (BR:DCCCXXVIII). Por essas cartas, sabe-se que Sebastiano realizou diversas verses desse retrato barbado do papa. Alm das verses de Parma, Los Angeles e Npoles, um retrato desse tipo, sempre de Sebastiano, encontra-se no Kunsthistorisches Museum de Viena, leo sobre tela, 92 x 74 cm, cf. Lucco [1980:117]. 54

    Cf. G. Manganelli, Premessa a Giovanni della Casa, Galateo [1977/1988:6], que cita a respeito dessa brigata de poetas uma carta de Beccadelli, mais tarde autor de uma clebre biografia de Petrarca, alm de arcebispo de Ragusa na Dalmcia. Sobre Uberto Strozzi, ver infra o texto de Vasari e a nota 192.

  • xvi

    de Giovanni Mauro dArcano, secretrio do cardeal Cesarini, a Gandolfo Porrino, secretrio de Giulia Gonzaga, relatando uma noitada oferecida em 1531 aos poetas por Giovanni Antonio Muscettola, regada a vinho de Pontano, presentes Umberto Gambara, bispo de Tortona e Giovanni Tommaso Sanfelice, bispo de Cava55. O fasto de Roma era garantido, sobretudo, pelo primo em segundo grau de Clemente VII, o jovem e impulsivo Ippolito de Medici (1511-1535), recm-nomeado cardeal, cuja virilidade mundana apontava para um renovado clima de magnificncia. Poeta e msico talentoso, tradutor de Virglio, amante rgio de Giulia Gonzaga e promotor de caadas e festas suntuosas, Ippolito o emblema da recuperao da grande corte de Roma, na qual mantinha, segundo Vasari, infiniti virtuosi, molti scultori e pittori56. Para ele, Vasari faz (perdidas) pinturas de tema mitolgico, entre as quais uma Vnus com as Graas, um stiro libidinoso espreitando Vnus e as Graas, terminando em junho de 1532 uma imensa tela de mais de 5 metros (lunga dieci braccia) representando uma Bacanal com uma batalha de Stiros, obra que d a seu protetor, por ser alegre e cmica, sumo prazer (per essere gioiosa e ridicula, ha dato sommo piacere al cardinale). De pouco efeito , assim, o Harpcrates, signo do silncio introspectivo, que Vasari lhe pinta, a pedido de Clemente VII, per esempio del cardinal nostro57.

    Na realidade, malgrado suas feridas estarem ainda abertas, a Roma que Vasari v recupera-se a uma imprevista velocidade. Restauravam-se ou reconstruam-se aos poucos os palcios atingidos pelos incndios e depredaes do Saque, como o magnfico palcio da Via Papale que Baldassare Peruzzi (1481-1536) projeta em 1532 para Piero Massimo, hoje conhecido como Palazzo Massimo alle Colonne. Simultaneamente, seus irmos, Angelo e Luca Massimo, encomendam a Giovanni Mangone e a Antonio da Sangallo, o Jovem seus palcios ao lado e em frente da obra-prima de Peruzzi58. No Vaticano, Montorsoli realizava neste mesmo ano ou em 1533 as integraes do brao direito e do antebrao esquerdo do Apolo do Belvedere59. Roma voltava a atrair artistas como Francesco (Cecchino) del Salviati, que se hospeda desde 1531 no Palcio de seu protetor, o cardeal Giovanni Salviati, de quem tomar o nome. Mas a Urbe atrai tambm artistas do norte da Europa. Entre 1530 e 1532, Michiel Coxie trabalha a afresco em duas capelas de S. Maria dellAnima, igreja da nao alem, e Maarten van Heemskerck a permanece entre 1532 e 1536, estada de que os famosos desenhos de Berlim, representando esculturas antigas no contexto dos palcios romanos desses anos, so o testemunho mais precioso60. Philibert de LOrme, atrado mais tarde pela arquitetura florentina de Michelangelo61, encontra-se em Roma em 1533, aos 19 anos, e a permanece at 1536, protegido pelos Farnese, por Marcello Cervini e pelo cardeal Jean du Bellay. Ainda vivo Clemente VII, outro francs explora, com de

    55 Homem de confiana de Carlos V e amigo de Paolo Giovio, que o faz um dos interlocutores de seu

    Dialogus de viris litteris illustribus (1527), Muscettola membro de uma ilustre famlia napolitana. Sobre esta noitada e a carta em questo, cf. Price Zimmermann [1995:116]. 56

    Cf. Vasari, Vita di Alfonso Lombardi Ferrarese, di Michelagnolo da Siena e di Girolamo Santacroce Napoletano scultori e di Dosso e Battista pittori ferraresi. 57

    Carta a Ottaviano de Medici de 13 de junho de 1532. Para os quadros citados, veja-se tambm a autobiografia. 58

    Cf. Frommel [2007:152]. 59

    Sobre Giovanni Angelo Montorsoli (1507c.-1563), escultor muito estimado por Michelangelo e a quem Vasari dedica uma biografia muito elogiosa, vide infra o texto e as notas 395, 414, 421, 422, 449, 457, 462 e 741 do Comentrio. Sobre a restaurao do Apolo, cf. Vasari, Vita de Montorsoli e Brummer [1970:50]. 60

    Cf. Dacos, in Dacos, Meijer [1995:22-25]. 61

    Cf. Guillaume [1987:279-288].

  • xvii

    LOrme, as runas romanas: Rabelais, cujo Gargantua, publicado em 1534, acusa o estudo metdico da arquitetura romana62.

    De resto, mesmo no sendo um mecenas comparvel a Leo X, Clemente VII no renuncia a certas iniciativas no mbito da arquitetura e das artes em geral, principalmente no que se refere restaurao de numerosas igrejas63. Giovanni da Udine restaura em 1531 os mosaicos da abside de S. Pedro, Jacopo Sansovino trabalha em S. Giovanni dei Fiorentini, Cellini brilha na casa da moeda do papa64 e Sebastiano del Piombo, que, segundo Lodovico Dolce65, restaura ento as Stanze de Rafael, agraciado com a rentvel sinecura de Bullarum plobator, desenvolvendo ento uma atividade de retratista, essencial para a vida da corte. No apenas Sebastiano, mas tambm Vallerio Belli Vicentino chamado a Roma por Giovio e o cardeal Salviati, onde desenvolve importante atividade de retratista, realizando inclusive o retrato de Clemente VII66. Em Marselha, em 1533, as npcias de Catarina de Medici com o segundo filho de Francisco I, Henrique (1519-1559), ento duque dOrlans (e a partir de 1547 Henrique II, rei de Frana), oferecem ao papa a ocasio de lhe encomendar em incios de 1532 um de seus presentes de npcias, o famoso cofre em prata dourada decorado com 21 relevos em cristal de rocha, representando cenas da vida de Cristo, hoje em Florena, Museo degli Argenti67. Por sua iniciativa, a Universidade restaurada e vrios eruditos comeam a retornar cidade. Roma comea a reordenar-se simbolicamente sob a gide do Arcanjo Miguel, como notou Chastel68, e ainda sob o pontificado clementino, em 1533, que se retoma o projeto dos afrescos michelangianos da Capela Sistina, os quais, como lembra Vasari, incluam ento no apenas o Juzo Final, mas ainda, na parede oposta da Capela, outro triunfo do Arcanjo Miguel: a Queda dos Anjos Rebeldes69.

    A segurana, o conforto material e os estmulos intelectuais e artsticos que o cardeal Ippolito proporciona a Vasari em Roma, desde incios de 1532, so excepcionais70. nico Medici, ao lado de Ottaviano, com quem Michelangelo entretm relaes de amizade na idade adulta, Ippolito ento um dos mais refinados mecenas de Roma71. Mesmo quando parte como legado papal para a Hungria, no comando de suas tropas na guerra contra os turcos (junho de 1532), o cardeal deixa-o aos cuidados de seu maggiordomo, Domenico Canigiani. Obcecado pela ideia de mostrar a seu protetor

    62 Cf. Blunt [1958:15-28].

    63 Cf. Pastor [1895-1915:X, 350-354].

    64 Em 16 de abril de 1529, Cellini nomeado pelo papa: mestre das impresses da casa da moeda, com

    remunerao de 6 scudi ao ms. Cf. La Vita, I, xlv, ed. cit., p. 105. 65

    Cf. Dolce [1557/1960]: E tendo os soldados partido [do saque de Roma] e o papa Clemente retornado, desgostoso que to belas cabeas permanecessem arruinadas, as fez repintar por Sebastiano. 66

    Cf. Vasari, Vita di Valerio Vicentino. 67

    Veja-se a propsito a carta de Pietro Bembo a Belli de 12 de maro de 1532, na qual se refere Cassetta Medici como j terminada, apud Gasparotto [1996:186] e Cox-Rearick [1995:389-391]. Vide infra a nota 473 do Comentrio. 68

    Cf. Chastel [1983:248-304]. 69

    Sobre esses afrescos, no executados, vide infra o texto de Vasari e as notas 275 e 464, 465 e 466 do Comentrio. 70

    Como o asseguram suas cartas a Vespucci e a Ottaviano de Medici, de 8 de fevereiro e 13 de junho de 1532. inverossmil a passagem de Cellini (La Vita I,lxxxvi) em que se jacta de ter hospedado Vasari (Giorgietto Vassallario, como ele o chama pejorativamente) em Roma, t-lo mantido e o ter em seguida introduzido na casa de Ippolito. Cellini tenta vingar-se da calnia que imputa a Vasari, sob presso de Ottaviano de Medici, segundo a qual ele teria dito desejar ser o primeiro a tomar de assalto as muralhas de Florena, ao lado dos republicanos. Sobre as tumultuadas relaes de Vasari com Cellini, cf. Calamandrei [1952:195-214] e vide infra as notas 742 e 755 do Comentrio. 71

    Sobre Ippolito e suas relaes com Michelangelo, vide o poema Girardi 85 e infra o texto e as notas 386, 470, 686 e, sobretudo, 672 do Comentrio.

  • xviii

    progressos tangveis no desenho, o artista vara as noites, untando-se os olhos para espantar o sono com leo de lamparina, o que quase lhe custa a vista, salva pelos cuidados mdicos de Paolo Giovio72.

    Antes de partir, Ippolito recomenda Vasari a Alessandro de Medici73, que o manter em Florena at 1537, data de seu assassinato. Desde logo, apropria-se em finais de 1532 da primeira pintura conservada de Vasari, hoje na Casa Vasari em Arezzo, pintada originariamente para o cardeal: o Cristo levado ao sepulcro, obra em que se acusa a frequentao de Bandinelli, um estudo detido da Deposio74 de Sansepolcro de Rosso Fiorentino e, sobretudo, do Cristo da Piet romana de Michelangelo.

    O projeto de retornar a Florena para passar o vero, a chamado de Alessandro, malogra quando, debilitado talvez pelo esforo, o artista contrai malria aps o dia 13 de junho de 1532. A crise converte-se em febre quart, no sem antes quase o matar, como matara seu irmo de 13 anos na peste de Florena de 1530. De Arezzo, onde se recolhera aos cuidados da me, Vasari escreve em 4 de setembro a Paolo Giovio, que havia transmitido ao cardeal Ippolito o rumor de sua morte, pedindo-lhe que a desmentisse75. Anexa carta, um desenho alegrico destinado a divertir o cardeal representa uma alegoria intitulada A rvore da Fortuna, na qual se encontra a nica aluso quela Roma ruinosa de Clemente VII76, e talvez a nica stira poltica e dos costumes em geral nascida da pena de Vasari. Do alto de sua rvore, a Fortuna vendada deixa cair ao acaso seus frutos sobre diversos animais que encarnam a fauna humana77:

    e cai o reino papal sobre a cabea de um lobo, e ele vive e administra a Igreja com aquela sua natureza; tal como uma serpente, o Imprio envenena, destri e devora os reinos, e faz com que todos os povos seus percam as esperanas.

    Ao final da carta, Vasari envia suas saudaes aos amigos meus de vossa academia. Prisioneiro com o papa em Castel SantAngelo em 1527, e em seguida hspede de Vittoria Colonna em Ischia, Giovio retorna a Roma com o retorno de Clemente VII para se tornar conselheiro do cardeal Ippolito desde sua nomeao em 1529. Lder de um impressionante entourage de homens de letras, Giovio participa como protagonista de um cenculo nascido das cinzas da velha Academia romana de Angelo Colocci e de Johann Kritz, desbaratada pelo Saque de 152778. Trata-se de um sodalcio que continuar a existir de modo substancialmente inalterado aps a morte de Clemente VII (1534) e de Ippolito (1535), posto que as mesmas personagens sero absorvidas na rbita de Paulo III e de seu homnimo neto, Alessandro Farnese (1520-1594), feitos papa e cardeal em 1534. Dele participam Francesco Maria Molza79, Francesco Berni

    72 Carta a Ottaviano de Medici de 13 de junho de 1532: volendo cacciare il sonno dagli occhi, mentre

    disegnavo la notte, me gli ugnevo con lolio della lucerna; che, se non fussi stato la diligenza e medicina di monsignor Iovio, facevo scura la luce mia innanzi a chiuder gli occhi al sonno della morte. 73

    Mesma carta: mha lassato Sua Signoria Reverendissima una lettera cost al signor duca Alessandro 74

    As relaes com Rosso foram notadas por Baldini [1994:12]. Vasari no pinta, contudo, seu Cristo nu, como o fizera Rosso em sua Deposio para a Confraternit di Santa Croce em Sansepolcro, nudez considerada muito indecente pelo bispo de Sarsina em 1583. Cf. Franklin [1994:164]. 75

    A recordao da malria retorna na autobiografia. 76

    A oposio entre a Roma ruinosa de Clemente VII e a Roma novata de Paulo III (1534-1549), a Roma dos Farnese, delineia-se nestes termos no discurso fnebre de Paulo III pronunciado por Roncolo Amaseo em 1549. Cf. Arasse [1986:50-59]. 77

    Carta a Paolo Giovio de 4 de setembro de 1532. O texto dessa carta de Vasari a Paolo Giovio, seminal na histria da iconografia italiana da Fortuna, parcialmente transcrito infra na nota 427 do Comentrio. 78

    Cf. Price Zimmermann [1995:115]. 79

    Poeta de Modena, mais conhecido por sua vida dissoluta e por suas dottissime Stanze sul ritratto della Gonzaga a partir do retrato de Giulia Gonzaga por Sebastiano del Piombo, pintado em junho de

  • xix

    (1497-1536)80, Giovanni della Casa, Gabriele Cesano e Claudio Tolomei, entre outros. Tambm Vasari o frequenta no primeiro semestre de 1532 e continuar a faz-lo quando, de retorno a Roma em 1540, e antes mesmo de sua viagem a Veneza em 1542, foi introduzido no convvio da corte. J na carta de fevereiro de 1532 a Vespucci, Vasari anuncia, orgulhoso, o benefcio da proteo de Paolo Giovio, secundada pela de seus secretrios, Gabriele Cesano (1490-1568) e Claudio Tolomei (1492-1556), dois dos maiores eruditos da corte de Ippolito:

    Os meus protetores so monsenhor Giovio, M. Claudio Tolomei e o Cesano, que, por serem nobres e virtuosos, favorecem-me, amam-me e educam-me como a um filho.

    Jurista de formao, epistolgrafo abundante e admirado, Claudio Tolomei81 ser importante para Vasari possivelmente pelo exemplo de sua lngua, mas tambm, no incio dos anos 1540, por introduzi-lo na leitura de Vitrvio, foco das atividades de sua Accademia della Virt82.

    Sob Alessandro (1533-1536)

    Na carta a Ottaviano de Medici de junho de 1532, Vasari queixa-se do desorientamento e do desnimo que lhe causa a ausncia de Ippolito. Colhido em julho (ou finais de junho) pela malria que o obriga a deixar Roma por Arezzo, ele retorna (aps um brevssimo interregno em Roma em novembro) em finais de 1532 atribulada Florena, onde o chamara o duque Alessandro. De l, ainda em dezembro de 1532, Vasari escreve a Ippolito na esperana de retornar ao seu convvio to logo o cardeal voltasse para Roma. O cardeal est j de retorno a Roma em 1533, mas no chama Vasari para no afrontar Alessandro, que agressivamente se apropriara em finais de 1532 do Cristo levado ao sepulcro, dedicado ao cardeal, e determinara que permanecesse a seu servio83. Vasari no Cellini, que em incios de 1535 retornara a Roma desafiando a ordem expressa de Alessandro84. Resta-lhe, portanto, servir ao duque que o confia a Ottaviano de Medici (1482-1546)85, figura paternal para o artista,

    1532 (coleo Earl of Radnor) , Molza (1489-1544) um amigo de Vasari, de Varchi e de Michelangelo, sendo ao que parece o primeiro a louvar por escrito seu Juzo Final, antes mesmo de seu trmino em 1541, vide infra a nota 500 do Comentrio. Suas relaes com Ippolito so mencionadas por Giovio em uma passagem de seu Dialogo dellimprese militari e amorose: (...) del poeta Molza, modenese, il qual fu molto amato e largamente beneficato cos dal prefato [Ippolito de] Medici come da questo Farnese. 80

    De retorno a Roma em 1532, Berni vive brevemente no squito de Ippolito. Dos poemas reunidos nas Rime, os de nmero 56, 57 e 58 (S'i' avessi l'ingegno del Burchiello) so dedicados ao cardeal. 81

    Para Claudio Tolomei (1492-1556), ardoroso defensor da Repblica de Siena e amigo de Michelangelo, conforme atestam Vasari e Ascanio Condivi [1553], vide infra o texto de Vasari e a nota 680 do Comentrio. Cf. Croce [1945:II,66]. 82

    Cf. Pagliara [1986:67], Rubin [1995:94]. 83

    Em uma carta a Antonio di Pietro Turini, um amigo de seu pai, de maro de 1534, Vasari afirma que o duque: mi ha chiesto al cardinale per suo (pediu-me ao cardeal). 84

    La Vita I, lxxxi-lxxxii [1566/1973:175-177]. 85

    Ottaviano di Lorenzo di Bernardetto de Medici (1482-1546) tesoureiro (depositario) de Alessandro. No nascido no ramo ducal, a ele se liga ao casar-se com Francesca Salviati (vide nota sucessiva), filha de Jacopo Salviati e de Lucrezia de Medici, filha de Lorenzo il Magnifico (1449-1492). Ottaviano , portanto, sobrinho do papa Leo X, tambm ele filho de Lorenzo il Magnifico e primo em segundo grau de Alessandro. Com Francesca Salviati, ter um filho, Alessandro (1535-1605), papa Leo XI. Cf. Bracciante [1984:1-29].

  • xx

    a ponto deste se definir seu figliuolo em sua autobiografia e, na Vida de Andrea del Sarto, fanciullo e creatura di messer Ottaviano. O tesoureiro dos Medici de fato um vigoroso protetor dos artistas em Florena, compadre de Michelangelo como afirma Vasari em sua biografia do mestre, alm de colecionador refinado86, proprietrio de um perdido carto juvenil de Leonardo da Vinci87 e apreciador de Pontormo, a quem ele encomendara os afrescos de Poggio a Caiano e de quem possui o retrato de Cosimo, nos Uffizi88.

    Em sua carta a Ippolito, Vasari diz ser bem tratado por Alessandro, que o acomoda confortavelmente e trata-o com familiaridade, pois, como visto, tivera-o por condiscpulo nos cursos dirios de Pierio Valeriano, entre 1524 e 1527. Temperamento lbrico, destitudo de interesses elevados, odiado em Florena por seus malfeitos89 e pela violncia de seus esbirros Alessandro Vitelli, Alessandro Corsini, entre outros , Alessandro retratado por Vasari entre 1533 e 1534 segundo o modelo michelangiano do retrato do altivo Giuliano na Sacristia Nova, mas a partir de um programa muito diverso90, elaborado pelo prprio artista e descrito em detalhe em uma carta a Ottaviano de Medici, no-datada, mas de 1534. Ela merece ser citada extensamente, pois define de uma vez por todas a nova postura do artista diante do Prncipe que vinha surgindo nesses anos, da qual Vasari faz-se paradigma:

    Esforo-me em trabalhar e aprender quanto possvel, para no ser menos grato a Alessandro Medico que Apeles ao magno Macednico. Eis, aqui, o significado do quadro. As armas brancas, lustrosas, so como o espelho do prncipe, que assim deve ser para que seus povos possam nele se espelhar nas aes da vida. Armei-o todo, deixando mostra apenas a cabea e as mos, desejando mostr-lo preparado por amor da ptria a toda e qualquer defesa pblica e privada. Senta-se mostrando o poder e tendo em mos o cetro do domnio todo em ouro, para reger e comandar como prncipe e capito. Tem atrs de si, por ser passado, uma runa de colunas e edifcios alusivos ao assdio da cidade de 1530, atravs da qual se v por uma brecha aberta uma Florena que, contemplada atentamente, d sinal de seu repouso, envolta que est em uma atmosfera toda serena. A cadeira redonda sobre a qual se senta, no tendo nem incio nem fim, mostra o seu reinar perptuo. Aqueles trs corpos cortados, trs por cada perna, nmero perfeito, so seus povos que, guiando-se segundo a vontade de quem acima os comanda, no tem braos nem pernas. Essas figuras convertem-se embaixo em uma pata de leo, parte do signo de Florena. H a uma mscara embridada por certas faixas que representa a Volubilidade, desejando-se com isso mostrar que aqueles povos instveis esto ligados e imobilizados pelo castelo construdo e pelo amor que os sditos tm por Sua Excelncia. Aquele pano vermelho posto sobre o assento onde esto os corpos cortados, mostra o sangue derramado daqueles que se

    86 Ottaviano possua, segundo Vasari, obras de Lorenzo di Credi, Fra Bartolomeo, Andrea del Sarto,

    Bugiardini, Andrea Schiavone, Rustichi, Alfonso Lombardi e o famoso retrato de Leo X por Rafael, alm de uma cpia por Tribolo da Madona da Capela Medici de Michelangelo (vide infra nota 416 do Comentrio), conservadas em sua bellissima villa di Campi e em sua residncia, onde mantinha molte altre pitture moderne fatte da eccellentissimi maestri. Sobre sua casa, estabelece-se a Compagnia dello Scalzo, que reunia artistas florentinos, pois Ottaviano entendia daquele ofcio e era amigo e protetor de todos os artistas de nossas artes, deleitando-se mais que outros em ter suas casas adornadas com obras dos mais excelentes. Vejam-se as Vidas de Fra Bartolomeo, Lorenzo di Credi, Andrea del Sarto, Sebastiano del Piombo, Battista Franco e Giovan Francesco Rustichi. Cf. Bracciante [1984:29-91]. 87

    Representando o Pecado Original, preparatrio de uma tapearia destinada ao rei de Portugal (D. Afonso V ou D. Joo II?), jamais, entretanto, tecida. Cf. Vasari, Vita de Leonardo da Vinci., 88

    Para as relaes de Ottaviano com Pontormo, cf. Berti [1973:94] e Costamagna [1994:42,150]. Ottaviano encomenda a Pontormo (ou a Bronzino) o retrato de sua esposa, Francesca Salviati, hoje no Stdelsches Kunstinstitut de Frankfurt. Para a atribuio a Bronzino, cf. Costamagna [1994:296]. 89

    Cf. Capponi [1875/1876:III,327-29] e De Armas [1982:172-179]. Vide infra as notas 419, 469 e 470 do Comentrio 90

    Sobre a associao entre a ideia de Vida Ativa e a esttua de Giuliano de Medici, duque de Nemours, na Sacristia Nova, executada entre 1525 e 1526 (mas terminada nos detalhes por Giovanni Angelo Montorsoli em 1533), vide infra o texto da biografia e a nota 422 do Comentrio.

  • xxi

    insurgiram contro a grandeza da ilustrssima casa dos Medici; e uma parte dele, cobrindo uma coxa do armado, mostra que tambm estes de casa Medici tiveram seu sangue derramado na morte de Giuliano e nas feridas de Lorenzo, o Velho. (...). O elmo que no traz na cabea, mas no cho, a eterna paz, que, procedendo da cabea do prncipe por seu bom governo, mantm os povos seus cheios de alegria e amor. Eis, Senhor meu, o que souberam fazer meu pensamento e minhas mos (...).

    O retrato do Museo Mediceo em todos os sentidos inferior aos de Pontormo em Chicago e Philadelfia, pintados aps setembro de 153491. Mas no h mais desabrido elogio do absolutismo poltico em toda a literatura poltica do sculo XVI que o que souberam fazer o pensamento e as mos de Vasari nesta obra e nesta carta a Ottaviano. O Alessandro de Vasari parece, ironicamente, uma resposta a Maquiavel, que, como se ver adiante, detectava na incapacidade florentina de superar seus conflitos internos em prol de uma estvel unidade poltica, o problema histrico maior de sua cidade e da Itlia. Essa incapacidade levou Florena a uma nova situao histrica da qual Alessandro o signo, e Vasari, o maior intrprete.

    Compatibilizar sua prpria servit em relao aos Medici com o entusiasmo sagrado que nele suscita a altivez de Michelangelo em face dos Medici, e em particular de Alessandro, ser uma das maiores habilidades de que dar prova, mais tarde, o bigrafo. Tanto mais porque Vasari no podia ignorar que Michelangelo, nos ltimos quatro anos, fora submetido clandestinidade para fugir morte pelas mos de Alessandro Corsini, por ordem do duque Alessandro (agosto de 1530), sofrendo em seguida o saque e a depredao de sua casa, alm de extorses, censura de sua correspondncia e condies de trabalho prximas escravido, que o levam ao esgotamento fsico e nervoso92. Ademais, como informa adiante a biografia, recusara-se com risco de tremendas retaliaes a fazer ou mesmo a supervisionar o projeto to acalentado por Alessandro, o castello de que fala Vasari acima, isto , a Fortezza di San Giovanni Battista, ou Fortezza da Basso, realizado por Antonio da Sangallo o Jovem93, masmorra dos republicanos na qual Filippo Strozzi se suicidaria como novo Cato de tica em 153894.

    Em sintonia com sua construo conceitual e visual do perfeito tirano, Vasari termina em 1534 no Palazzo di Via Larga95 a decorao em estuques e grisailles iniciada por Giovanni da Udine, ainda sob Leo X, com as imprese de gluomini e signori di quella casa illustrissima. Nos arcos inferiores da abbada, deixados vazios por Giovanni da Udine, Vasari, por encomenda do duque96, completa a srie dos Medici ilustres com quatro cenas (perdidas) da vida de Jlio Csar, alusivas magnanimidade

    91 Alessandro faz-se representar a de preto, em sinal de luto pela morte de Clemente VII, ocorrida em

    setembro de 1534. Na autobiografia, Vasari lembra da dificuldade encontrada em imitar o brilho dos metais da armadura, sendo aconselhado por Pontormo que lhe recomenda abandonar a pintura dal vero, pois a biacca ser sempre menos lcida que o ferro. 92

    Trs poemas de Michelangelo desses anos (Girardi 51, 52 e 53) refletem pensamentos suicidas. Vide infra as notas 421, 448, 449 e 450 do Comentrio. 93

    Vide infra a nota 547 do Comentrio. 94

    Vasari condensa seu desprezo pelos republicanos em uma carta a Pietro Aretino de 15 de julho de 1534, laudatria da Fortezza da Basso: estes so similares ao tio apagado na gua, que no comeo produz fumaa e calor e, exposto ao ar, com o tempo se anula. Vide infra as notas 224 e 470 do Comentrio. 95

    A residncia dos Medici, hoje Palazzo Medici-Riccardi, sede da Prefeitura, em Via Cavour. Vide infra as notas 56, 374 e 402 do Comentrio. 96

    Carta a Antonio di Pietro Turini de maro de 1534: desejando [o duque] que eu permanea aqui a pintar uma sala no palcio dos Medici. Vide infra a nota 376 do Comentrio

  • xxii

    do perdo do papa aos republicanos, virtude tipicamente cesariana97. Com essa decorao nascia algo de novo na histria de Florena. De fato, desde o Ad Petrum Paulum Histrum dialogus de Leonardo Bruni98, Florena e seus litterati haviam cultivado sentimentos preponderantemente hostis a Csar, o que explica por que a cidade no admitira em suas paredes a figura de Csar como Imperator, presena frequente, ao contrrio, nos ciclos pictricos das cortes da Itlia setentrional, na tradio literria do De viris illustribus99. A primeira representao de Csar, o afresco representando Presentes e Tributos prestados a Csar de Andrea del Sarto, ocorre apenas em 1519-1521 na villa de Poggio a Caiano, no por acaso um espao fora da cidade, destitudo de ostensividade poltica e protegido pela ambiguidade da pietas familiar. De modo que a introduo do imperador no palcio dos Medici em Florena devia ser sentida pelos republicanos como uma simblica travessia do Rubico. Era pelas mos de Vasari que Csar finalmente entrava em Florena, em 1534, instalando-se, ironicamente, no espao projetado por Michelangelo, que transformara uma loggia pblica de canto do palcio em uma sala fechada com duas janelas inginocchiate, conforme se l adiante na biografia100. Um signo e silentio de que Michelangelo recebe mal esses afrescos, que ele ainda teve tempo de conhecer antes de sua definitiva transferncia para Roma em finais de setembro de 1534, uma passagem do segundo dos Dilogos de Roma de Francisco de Hollanda na qual, ao discorrer sobre que obras h em Itlia famosas de pintura, o artista menciona esses afrescos de Giovanni da Udine, calando-se sobre os de Vasari que os completavam: Em Florena, minha ptria, nos paos dos Mdicis h obra de grutesco de Joo de Udine; e assim por toda Toscana.

    Embora viva ento em Florena, decerto em contato regular com Ottaviano de Medici, Michelangelo, quase sexagenrio, no entretm qualquer relao pessoal com o jovem Vasari, ento com apenas 22 ou 23 anos. Uma passagem da autobiografia trai essa falta de familiaridade. Vasari escreve ter tido acesso Sacristia Nova atravs de Ottaviano e ainda assim apenas quando Michelangelo encontra-se em Roma, o que ocorre diversas vezes entre 1532 e 1534:

    tive a oportunidade, por meio de tal senhor [Ottaviano], de entrar na sacristia nova de San Lorenzo, onde esto as obras de Michelangelo, tendo ele naqueles dias viajado a Roma.

    Como se depreende de uma passagem das Cene (I, 8) de Antonfrancesco Grazzini, Il Lasca, o acesso Sacristia era ento controlado por Michelangelo101. Outro indcio da ausncia de contatos entre o artista e o bigrafo: desde 1533, Vasari est em frequente

    97 Vita di Giovanni da Udine: Giorgio [Vasari] a pintou histrias dos feitos de Jlio Csar, aludindo a

    Giulio cardeal, que a tinha encomendado. Vejam-se tambm a autobiografia, a carta a Turini de maro de 1534 e a carta a Pietro Aretino, tambm de 1534, na qual Vasari detm-se mais na descrio dos quatro afrescos e pela qual se sabe que lhe enviara o carto de uma das cenas. 98

    Cf. Bruni [1401/1952: 41-99]. Do Ad Petrum Paulum Histrum dialogus de Leonardo Bruni (1401) ao Dialogi di Donato Giannotti de Giorni che Dante consum nel cercare lInferno e Purgatorio (1539-1546), a fortuna histrica de Csar entre os florentinos objeto de controvrsias. 99

    Tradio que afunda razes no sculo XIV e que se mantinha viva na poca de Vasari. Ainda em 1531, por exemplo, Dosso Dossi prope ao cardeal Bernardo Cles a decorao da Libraria de seu Magno Palazzo em Trento, com uma srie de 18 Viris Illustribus, executada pelos Dossi em 1532, mas no concluda at 1549. O programa decorativo do forro dessa Biblioteca definido por Erasmo e por Johannes Eck, o Cochlaeus. E entre 1537 e 1538, Tiziano pinta para Federico Gonzaga a srie de 12 Imperadores romanos, hoje conhecida atravs das cpias executadas em 1561 por Bernardino Campi. 100

    Sobre a loggia pblica transformada por Michelangelo em espao privado do palcio, vide infra as notas 374, 375 e 376 do Comentrio, a autobiografia e as cartas a Turini e Aretino j mencionadas. 101

    Vide infra nota 414 do Comentrio.

  • xxiii

    contato epistolar com Pietro Aretino, mas somente em meados de 1535, quase um ano depois da partida de Michelangelo para Roma, que se permite enviar a seu conterrneo dois desenhos dos Capitani da Sacristia Nova102.

    Morte e transfigurao (1537 - 1539)

    Em 10 de agosto de 1535, Ippolito de Medici morre em Itri, no Lcio meridional, a caminho de Gaeta, de onde deveria zarpar para a Tunsia para encontrar Carlos V, prestes a reconquist-la dos turcos. Segundo a documentao disponvel, a causa mortis no a malria, mas o veneno, a ele administrado por Giovan Andrea da Castello a mando do duque Alessandro. A perda imensa para Vasari, que a ela se refere em termos tocantes em sua autobiografia103. Aps a morte de Clemente VII em setembro de 1534, a de Ippolito encerrava o longo mecenato dos Medici em Roma, tornando mais exclusivos os laos de Vasari com Florena, ao menos at 1537.

    Desembaraado de Ippolito, porta-voz dos republicanos que o haviam eleito para represent-los junto a Carlos V, Alessandro consolida seu poder. No apenas agraciado, em Npoles, com o favor do Imperador no processo que lhe movem os republicanos, mas dele obtm nessa mesma ocasio que v a Florena e autorize enfim suas bodas com sua filha natural, Margarita de ustria, celebradas em 19 de junho de 1536. Os dois eventos tinham fora decisiva na legitimao da nova Florena ducal e era essencial preparar condignamente a cidade tanto para a entrada do imperador quanto para a de sua filha. Segundo Vasari104, o duque o indica aos quatro responsveis pelo programa de tais cerimnias Luigi Guicciardini, Giovanni Corsi, Palla Rucellai e Alessandro Corsini como diretor artstico dos aparatos, posio invejvel para um forasteiro, que o torna alvo da cabala dos artistas locais e mesmo de Bertoldo Corsini, provedor geral do duque. A responsabilidade era imensa, os prazos eram crticos105 e o resultado punha em jogo a sorte do artista em Florena.

    Em 29 de abril de 1536, Carlos V entra em Florena106. O melhor relato da recepo artstica que o aguardava do prprio Vasari, em uma longa carta a Pietro Aretino escrita no dia seguinte107. Interessa aqui apenas recordar a passagem em que, tudo pronto na manh desse mesmo dia, ele pode enfim dormir um momento sobre uma ramagem improvisada na igreja de San Felice, mezzo morto dalle fatiche, aps cinco noites passadas em claro. O duque, j a caminho de seu encontro com o imperador, detm-se, maravilhado, diante da mencionada fachada de San Felice e manda chamar Vasari:

    102 Conforme a carta de agradecimento de Aretino de 15 de julho de 1535, (ed. Camesasca/Pertile [1526-

    1554/1957:I,24]), vide infra a nota 415 do Comentrio. 103

    Vide infra a nota 672 do Comentrio. 104

    Sobre ambos os aparatos, ver a Vita di Tribolo, a autobiografia de Vasari e suas cartas a Raffael dal Borgo e Pietro Aretino, de 15 de maro e 30 de abril de 1536, respectivamente. 105

    A 45 dias da entrada de Carlos V, Vasari declara a Raffael dal Borgo no ter ainda formado uma equipe, desertado que fora pelos artistas florentinos, em nmero de 20. Na autobiografia, esclarece que lhe competia: desenhar todos os arcos e outros ornamentos para aquela entrada (...) alm das bandeiras grandes do castelo e da fortaleza (...) a fachada com funo de arco triunfal feita em S. Felice in Piazza, com 40 braas de altura por 20 de largura; e ao lado a decorao da porta em S. Pietro Gattolini, obras todas grandes e superiores s minhas foras. 106

    O imperador permanece em Florena at 4 de maio, quando, antes de partir, visita a Sacristia Nova para apreciar as esculturas de Michelangelo. 107

    Aretino responde a essa carta em 7 de junho, cf. Camesasca/Pertile (ed.) [1526-1554/1957:I, 25].

  • xxiv

    rindo, fez-me chamar imediatamente e quando me apresentei, sonolento, pateta, esgotado e atnito, disse ele essas palavras em presena de toda a corte: a tua obra, meu Giorgio, at aqui a maior, mais bela, melhor compreendida e mais rapidamente terminada que as de todos esses mestres. Por ela vejo o amor que me tens e por essa homenagem o duque Alessandro no tardar em te reconhecer esses e outros trabalhos. E tu dormes, bem agora que hora de estar desperto?; e segurou-me a cabea com uma mo e, aproximando-a de si, beijou-me a testa, e partiu. Senti meus espritos agitados, que antes me haviam por causa do sono abandonado. Assim, a lassido fugiu dos membros afadigados, como se eu tivesse me repousado por um ms. Este ato de Alessandro no foi menor em liberalidade que o de Alexandre quando deu a Apeles as cidades, os talentos e sua amada, Campaspe.

    O relato bem atesta a velha familiaridade entre o artista e seu mecenas, a confiana crescente que o duque vinha nele depositando e, sobretudo, a centralidade de que Vasari comeava a desfrutar no cenrio artstico de Florena. Sua remunerao por esse trabalho foi rgia: 700 scudi, 300 dos quais em detrimento dos demais artistas que nada receberam por no terem terminado sua parte do trabalho. Doze anos aps sua chegada grande cidade como um estrangeiro, um adolescente, um simples aprendiz, nove anos aps a proclamao da repblica que o devolvera ao ostracismo, Vasari consolidava sua cidadania artstica. Estava entre os artistas mais bem pagos de Florena e, sobretudo, desfrutava de uma posio privilegiada em relao ao duque, que o fazia seu mediador em suas delicadas relaes com Pietro Aretino108. Vasari podia, enfim, considerar-se capaz de tener lo campo109. Apenas trs anos atrs, como acima lembrado, ele no tinha sequer acesso s esculturas de Michelangelo na Sacristia Nova, seno por intermdio de Ottaviano de Medici. De forasteiro protegido, passava, agora, a protetor e a mediador em relao aos Medici. Assim, graas a ele que Tribolo, doente e excludo dos trabalhos da Sacristia, reencontra seu lugar ao sol, como narra o prprio bigrafo na Vita desse escultor:

    Tribolo, desanimado, alm de doente, andava contrariadssimo, no vendo nem em Florena, nem fora, como obter algo para si. Mas Giorgio Vasari, que foi sempre seu amigo, amou-o de corao e o ajudou quanto possvel, confortou-o, dizendo que no se perdesse, pois providenciaria para que o duque Alessandro lhe encomendasse algo, mediante o favor do magnfico Ottaviano de Medici, de quem o fizera se tornar um prximo cliente.

    Em setembro de 1536, o prestgio de Vasari e suas relaes na corte de Alessandro so tais que ele se permite a magnificncia de enviar como presente pessoal a Pietro Aretino nada menos que uma cabea de cera e um desenho das mos de Michelangelo110. A mediao entre o duque e Aretino por Vasari deve-se de fato amizade entre os dois aretinos, mas no deixa de confirmar a posio de Vasari como uma sorte de representante de Michelangelo em Florena. No por outra razo, Alessandro consigna ento a seu fiel artista a cpia em terracota da Noite de Michelangelo que

    108 Veja-se a carta de Vasari a Pietro Aretino de 15 de setembro de 1536 (Milanesi, XVIII).

    109 Tanto mais porque, sob Alessandro, o campo da pintura estava livre dos florentinos de maior

    envergadura. Andrea del Sarto morrera em 1530. Rosso estabelecera-se nesse mesmo ano em Fontainebleau. Salviati continuava em Roma; Michelangelo e Jacopino del Conte para l se mudaram em 1534 e 1535. Pontormo e Bronzino, os maiores artistas ento presentes em Florena, estavam absortos na decorao da villa de Careggi (1535-1536). 110

    As duas obras no so identificadas, nem o so seus proprietrios. Veja-se a carta de Vasari a Pietro Aretino de 7 de setembro de 1536: no deixo de vos enviar uma cabea de cera de mo do prncipe e monarca, nico perseguidor da natureza, mais que humano. Nas tratativas para a obteno das duas obras, Vasari vale-se do auxlio do amigo comum, ento de passagem em Florena, o grande retratista Girolamo da Carpi (1501-1556), cf. Pattanaro [2000:23].

  • xxv

    Niccol Tribolo executara em finais de 1534, dando-a a Figiovanni que, por sua vez, a dera a Alessandro111.

    De modo que quando Florena, em 6 de janeiro de 1537, dia da Epifania, sacudida pela notcia de que Alessandro fora na noite anterior assassinado por seu primo distante, Lorenzino112, o mundo de Vasari vacila. Quatro dias depois, em 10 de janeiro, ele escreve em uma carta a seu tio, Antonio:

    Eis, tio honorando, as esperanas do mundo, os favores da fortuna, o apoio advindo da confiana nos prncipes e os prmios de tantas fadigas, findos em um expirar.

    Mais uma vez, um revs sofrido pelos Medici repercutia sobre seu destino. De resto, tambm sobre o de Florena e mesmo da Itlia. O ato atingia o Imperador na figura de seu genro e Lorenzino, novo Brutus113, escreve em princpio de fevereiro uma carta aberta na qual declara estar em vias de embarcar para Constantinopla para solicitar, por recomendao francesa, a interveno de Soliman contra Carlos V na Itlia meridional. O papa Paulo III, que nutria os piores sentimentos em relao aos Medici, abenoa a contratao de mercenrios pelos revoltosos, financiados por Filippo Strozzi. O enfrentamento decisivo entre as foras ducais e republicanas ocorre, como se sabe, em 2 de agosto de 1537, na assim chamada batalha de Montemurlo: Cosimo de Medici, ento com apenas 18 anos, e seu condottiere Alessandro Vitelli, frente de uma fora de 10 mil cavaleiros e infantes, apoiados por mercenrios espanhois e alemes, encurralam e conseguem a rendio das tropas de Filippo Strozzi e de Baccio Valori, assediados no castelo de Montemurlo, nas imediaes de Prato.

    Para Vasari hora de se refugiar de novo em Arezzo, onde ele j se encontra em fevereiro de 1537. natural supor que Florena nesses meses de extrema instabilidade no oferecesse nem boas condies de trabalho, nem segurana para um pintor que, acima de todos, era identificado com Alessandro. Mas seu retorno a Arezzo parece motivado tambm por razes mais interiores. Na realidade, o assassinato de Alessandro marca uma verdadeira transfigurao em sua mentalidade, fazendo nascer um sentimento de culpa em relao a seu fascnio pelas expectativas de ganho e celebridade que, como uma miragem, a vida de corteso lhe oferecia. Na mesma carta ao tio, de 10 de janeiro, ele confessa:

    Percebo, agora que se me rasgou o vu diante dos olhos, que o no temer a Deus, o no reconhecimento de onde me tirou (...), que se eu continuasse nessa dependncia (servit), muito embora conquistasse honra, fama e riqueza para o corpo, dava vergonha e dano minha alma e a fazia infeliz. Agora, portanto, que a morte rompeu as cadeias de minha dependncia j estabelecida com essa ilustrssima casa, resolvo separar-me por um tempo de todas as cortes, tanto das dos prncipes eclesisticos quanto das seculares.

    Em 6 de julho, em uma carta a Niccol Serguidi, o desencanto transformou-se em desapreo e mesmo em rancor contra a experincia da corte, contra as duras

    111 Vide infra a nota 416 do Comentrio

    112 Lorenzino (1514-1548) neto de Lorenzo di Pierfrancesco de Medici (1463-1503) e filho de

    Pierfrancesco (1487-1525) e de Maria Soderini. Pertence portanto ao ramo cadete dos Medici e primo em primeiro grau de Giovanni delle Bande Nere (1498-1526), pa