gerhard berger - na reta de chegada

245

Upload: rodrigo-felix

Post on 22-Nov-2015

224 views

Category:

Documents


100 download

TRANSCRIPT

Na reta de chegada

http://groups.google.com/group/digitalsourceNa Reta de Chegada

Gerhard BergerPREFCIOGerhard um piloto dotado de uma incrvel simpatia, o que eu considero totalmente justificvel. Na verdade, ele dono de um grande corao e quase humano demais para a Frmula 1.Ele tambm mais sensvel do que o pblico jamais pode ter percebido. Este livro, com certeza, mostrar pontos interessantes desse seu lado.Apesar de catorze anos na Frmula 1, ele no perdeu nada de sua alegria de viver. Ao contrrio, suas constantes brincadeiras e sua vivacidade trouxeram mais vida a esse espetculo. Ele sempre conseguiu se divertir em nosso meio; sua natureza, um misto de robustez de garoto do campo e de irreverncia tipicamente tirolesa, certamente colaborou muito com isso.E uma coisa muito importante: em seus dias inspirados, no havia quem conseguisse suplantar Gerhard Berger.A impresso que tenho, neste momento, que nosso circo voador acaba de perder um de seus mais rpidos e carismticos atores, um de seus personagens mais marcantes. Sem ele, alguma coisa estar faltando na Frmula 1. Por isso, acredito que Na Reta de Chegada representa a largada para algo totalmente novo, uma narrativa feita a partir do centro da arena que moldou sua vida.Niki Lauda1

AR CARREGADO

O sentimento mais intenso que me impulsionou atravs dos anos foi a impacincia ardente de um jovem piloto, vido por tudo o que existisse de belo, impressionante ou excitante. Havia uma dose de loucura, tambm. Meu lema era: Aproveite tudo ou voc vai ficar velho e descobrir que no viveu a vida.

Hoje no tenho mais esse medo de subitamente envelhecer e descobrir no ter vivido. Sou jovem. Tive experincias incrveis e ainda terei muitas mais. S que, quando um perodo de sua vida chega ao fim, ele adquire uma intensidade especial: exatamente como estar na reta de chegada.Gerhard BergerDois jovens atraentes saram do prdio principal da Ferrari, em Maranello, e caminharam at o estacionamento. Ambos eram especialistas muito bem remunerados, cujo desempenho afetaria, com toda a certeza, o sucesso global da empresa. Para dar partida nova temporada, o presidente da companhia havia acabado de lhes dirigir um pequeno discurso, com o objetivo de motiv-los e conscientiz-los da gravidade do momento: uma queda violenta nas vendas de carros de luxo, presso para reduzir o oramento destinado s corridas e uma necessidade urgente de bons resultados. Uma imagem diferente e brilhante na Frmula 1 infundiria novo flego aos negcios da companhia como um todo. Em resumo:Precisamos que vocs empreguem todo o talento, fora e determinao possveis para obter um sucesso incontestvel em seus trabalhos.Era o primeiro dia de atividades do ano, o primeiro teste de pista da temporada. Depois do recado do presidente, o diretor esportivo tambm disse algumas palavras de incentivo, pedindo aos dois homens que levassem tudo muito a srio.Eles entenderam. S faltavam duas semanas para a primeira corrida, no Brasil. Havia um futuro brilhante pela frente.

Jean Alesi e eu caminhamos at o estacionamento da diretoria, procurando um carro que pudssemos usar para ir da fbrica at a pista de Fiorano, a cerca de mil metros dali. Havia somente Lancias e Fiats, e um dos Lancias era obviamente para ns, pois estava com a chave na ignio.Duas vagas mais frente, vi um belo Lancia Integrale; por alguma razo, gostamos mais dele que do outro, e a chave tambm estava na ignio. Assim, escolhemos este.Quem vai dirigir?Alesi se ofereceu, e tive o pressentimento de que ele poderia comear o ano de forma muito ambiciosa. Possivelmente, mostraria logo seus talentos de campeo no caminho para Fiorano. Por via das dvidas, puxei meu banco totalmente para trs, porque as pernas ficam mais fortes quando esticadas, e coloquei o cinto de segurana.No tnhamos vencido muitas corridas nos ltimos tempos, mas ramos timos pilotando em conjunto, isto , Alesi no acelerador e Berger no freio de mo.Jean cruzou o porto de sada feito um louco, acelerando o bastante para entrar derrapando na primeira curva direita, enquanto eu o auxiliava com o freio. Ele estava com o p na tbua, e o freio, que eu havia puxado at o fim quela altura, pouco ajudou a diminuir a velocidade do Lancia. Soltei a alavanca e ele continuou acelerando o mximo. O porto de Fiorano estava aberto e Alesi conseguiu outra derrapagem controlada, cinematograficamente perfeita graas ao freio. O Integrale deslizou, elegantssimo, sobre as quatro rodas.Subitamente, uma das rodas da frente ganhou aderncia e, agindo como um piv, nos levou a um dos mais graciosos movimentos que um carro capaz de executar: uma capotagem simultnea para o lado e para a frente.Percebemos que estvamos em pleno ar, Jean mais do que eu, pois no estava usando o cinto de segurana. O carro rolou para a frente e para o lado ao mesmo tempo e no havia mais nada que pudssemos fazer a no ser gritar e rir feito bobos. A, o Integrale aterrissou com uma fora incrvel sobre o prprio teto, deslizando a toda para trs at se chocar contra o muro com um enorme estrondo. Alesi estava completamente torto, com os joelhos para fora da janela; o teto tinha se achatado e nossos narizes estavam entre os bancos, a uns dez centmetros um do outro. Havia fumaa e leo vazando por todos os lados e eu comecei a entrar em pnico, pensando que o fogo poderia nos atingir. No havia como nos livrarmos sozinhos nossas cabeas estavam presas entre o teto afundado e o freio de mo.Tnhamos quase conseguido chegar ao destino. Praticamente aterrissamos aos ps dos mecnicos que estavam esquentando nossos carros de Frmula 1. Eles nos puxaram pelas estreitas aberturas das janelas, com vapor saindo de todos os lados e o carro tossindo e silvando.O espetculo foi ainda maior quando a ambulncia chegou. Durante 25 anos, sempre houve uma ambulncia em todos os testes, com dois mdicos que, por 25 anos, nada tiveram para fazer. Raramente algum saa da pista em Fiorano, ainda mais porque as reas de escape so muito largas. Eles estavam naturalmente extasiados por finalmente serem necessrios, correndo o mais que podiam para nos tirar do carro e colocar na ambulncia.Eu logo avisei que estava bem, porque s havia esfolado minhas costas, mas eles viram alguma chance de trabalhar de verdade em Jean, que tinha sangue escorrendo na cabea e nas pernas e alguns cacos de vidro cravados no joelho.Diante de tudo isso, Alesi disse: melhor eu cair fora e ir para casa. E eu? Poderia fazer todo o teste sozinho?Claro, Jean, sem problemas. Vou pr o capacete j, j e fazer todo o trabalho.Os mecnicos desviraram o Integrale destrudo, varreram uma pilha de cacos de vidro e secaram as vrias poas de leo e gua. Depois, empurraram os restos do carro para um canto e os cobriram.Alesi j havia ido embora e eu cumpria minhas voltas no Frmula 1. Quando voltei aos boxes para meus primeiros ajustes, Montezemolo e Jean Todt estavam chegando.Eu no sabia se eles j tinham sido informados sobre o acidente. Os mecnicos estavam muito ocupados, trabalhando. Todt ficou parado a meu lado. Perguntei, preocupado:Voc j ficou sabendo?Fiquei sabendo o qu?Ento voc no soube de nada? preciso levar em conta que a gramtica sofre um pouco quando um francs e um tirols conversam em ingls.No, o que voc quer dizer?Ento voc no sabe que o carro tombou?O que voc quer dizer com o carro tombou?Eu disse: , o carro tombou.Todt examinou cuidadosamente o Frmula 1, que os mecnicos continuavam regulando.Por favor, o que voc quer dizer com o carro tombou?Contei ento que Jean e eu tnhamos vindo em um Lancia e que o carro subitamente travou e rolou.O que voc quer dizer com o carro rolou?Bem, Jean e eu vnhamos um pouco rpido, o carro de repente travou e capotou.Jean Todt insistiu: Ok, Gerhard, eu entendi que o carro travou, mas o que voc quer dizer com capotou?.Ele aterrissou sobre o teto.Jean me examinou da cabea aos ps.Voc se machucou?No.E Jean?No muito.Como, no muito?Ele cortou a mo com vidro e foi para casa porque no se sentia bem.Finalmente ele entendeu o ocorrido e ficou furioso. Furioso porque tinha dois idiotas como pilotos, que duas semanas antes da primeira corrida da temporada quase tinham conseguido se matar, os dois de uma vez. Ele me passou um sermo, dizendo que achava que ramos mais inteligentes do que isso e tudo o mais que um pai diria a seus estpidos filhos. Tentei parecer o mais arrependido possvel.De repente, ele parou e disse:E onde est o carro?Eu disse que estava logo adiante e, ao chegar, ele viu os restos metlicos cobertos por uma lona. Ento, levantou a lona e pareceu realmente abalado.Foi quando eu percebi que tnhamos acabado com o carro dele, Jean Todt. E claro que me senti pssimo, mas, antes que pudesse me explicar, tive de colocar meu capacete s pressas para terminar os testes.Houve um receio terrvel de que a imprensa descobrisse o que fizemos e de que isso abalasse a imagem da empresa, mas essa foi uma das raras ocasies em que todo mundo na Ferrari ficou de bico calado.

2

IMPULSOIncio de outono, o que nos remete ao A1-Ring. Um vero escaldante fazia o novo e magnfico autdromo parecer ainda mais grandioso. J era hora de a ustria ter de volta seu Grande Prmio, depois de um intervalo de dez anos. Os 100 mil espectadores e um mar de bandeiras e faixas me faziam lembrar um tempo em que tudo o mais parecia irrelevante, desde que se tivesse um p direito forte para apertar o pedal at o cho.Quem imaginaria que um piloto, um dia, usaria um engano nos dados do computador como desculpa por largar na dcima oitava posio? Quando a regulagem bsica est errada, no h refinamento que leve a uma soluo. Quase chorei, pois havia imaginado alguma coisa maravilhosa para essa despedida de meus fs no tenho medo de confessar. Naquela noite, me surpreendi pensando: Eu gostaria de correr no GP da ustria mais uma vez; talvez devesse.... Bobagem, disse Berger a Berger. Esquea isso de uma vez.Entrevista coletiva no Hotel Imperial, em Viena. No consigo ou no quero preparar um pronunciamento. Continuo tendo dificuldades para dizer claramente: Foi isso a, gente. Quer dizer, o momento me afetou de verdade afinal, isso era tudo o que importava em minha vida.Deixando de lado a grande deciso e como eu tinha chegado a ela, esquecendo as estatsticas de meus sucessos e oportunidades perdidas, houve alguns pontos naquele dia que vieram tona para os reprteres e amigos que nos roubaram a ateno.Uma nica pessoa Bernie. engraado logo ele se tornasse assunto de discusso em um dia to sentimental. Creio que isso mostra o quanto eu valorizava o palco que Bernie Ecclestone montou no s para si mesmo, mas tambm para o esporte como um todo. Foi essa moldura voltada para o mercado e sua fora aparente que valorizaram o que fazemos na pista e fora dela, e isso no apenas financeiramente.

Outro tpico foi a razo de eu nunca me ter tornado campeo mundial. Seja l o que eu possa ter dito no passado, eis aqui minha verso mais nova e aperfeioada:Primeiro de tudo, demorei a reconhecer a seriedade do automobilismo de ponta de hoje. Levei muito tempo para entender a importncia dos detalhes em meu sistema de trabalho, incluindo o treinamento fsico. Meu talento interferiu nisso, porque, sendo naturalmente rpido e tendo bons reflexos, dava para ganhar corridas sem fazer nada adicional como em Suzuka e Adelaide em meus primeiros tempos na Ferrari. Era difcil me convencer de que tinha de correr a p dez quilmetros por dia e treinar coisas secundrias, como pit stops.Em segundo lugar, acho que tive uma formao diferente da gerao que se pode chamar de Schumacher Kids. Todos esses caras adquiriram uma enorme experincia antes de chegar Frmula 1. A mais importante vem do kart, no qual Michael Schumacher, por exemplo, comeou com 4 anos de idade. O processo de aprendizado o mesmo das categorias superiores, e os garotos aprendem a prestar ateno aos detalhes. Esses meninos j sabem que um centsimo de milibar de presso faz diferena para acertar bem seus karts antes mesmo de seu primeiro dia na escola. Essa gerao do kart, da qual Alexander Wurz tambm faz parte, automaticamente leva vantagem em um esporte que veio a ser dominado pelos computadores. Nenhum talento natural ir venc-los simplesmente por ser rpido.Terceiro, nunca tive muita sorte na escolha do momento certo para mudar de equipe apesar de, intencionalmente, colocar esse problema em ltimo lugar. Afinal, em 1990, entrei na equipe McLaren e subi em um carro que poderia fazer de um piloto o campeo mundial. Foi o que aconteceu depois com Ayrton Senna. No entanto, eu tinha apenas despertado naquele tempo, e foi minha primeira experincia na vida real.Hoje eu saberia fazer as coisas melhor, mas no quero que parea que sinto pena de mim mesmo. Na fase em que os novos pilotos tinham seus karts, eu me divertia com o esqui e todo o tipo de aventuras com que sonham os meninos e adolescentes deste mundo. Tive uma infncia fantstica e, graas a ela, a alegria, os reflexos, a coragem e a habilidade que deram impulso a minha vida como piloto de corridas.

Uma das crianas se deitava, atravessada na rua coberta de neve, fingindo-se de morta. O carro parava e o motorista saltava imediatamente. O que aconteceu? Tudo bem, eu s escorreguei e ca. Enquanto o motorista voltava a seu lugar, pulvamos de trs do banco de neve, com as mochilas nas costas, e nos agachvamos, pendurados com as mos enluvadas no pra-choque, em um ponto invisvel para ele. Quem chegasse em terceiro ou quarto lugar tinha de se posicionar atrs do escapamento e acabava com um furo no casaco. Deslizvamos sobre a sola dos sapatos e, como o motorista no imaginava que nos levava a reboque, chegava a uns 80 km/h. O nico problema eram as tampas de bueiros, pois o calor vindo de baixo derretia a neve. Como no podamos v-las se aproximando, dvamos com elas sem nenhum aviso e, s vezes, tudo o que sobrava era um par de luvas pendurado no pra-choque. Quando a neve permitia, voltvamos diariamente para casa desse jeito, o que nos servia como motivao para ir s aulas.

Bem no comeo, havia o esqui. Onde eu morava, as crianas ganhavam seus primeiros esquis por volta dos 3 anos de idade, e suas mes tinham direito a algumas horas dirias de descanso.Entre dezembro e maro, em meus dias de escola, eu chegava em casa, jogava os livros em um canto e saa para esquiar. Minha procura pelas grandes emoes comeou muito cedo. Adorvamos pular do telefrico. E, se, por exemplo, quatro garotos cassem fora ao mesmo tempo, os mais velhos eram jogados para o alto de seus assentos, balanando em um arco de cinco metros. Isso que era exploso!Houve uma poca em que transformamos o esqui em um esporte mais do que radical. Andvamos pelas florestas e despenhadeiros, muitas vezes sem nos preocupar se a queda do outro lado seria de cinco ou de quinze metros. No dava para decidir como aterrissar at ter pulado. s vezes, acabvamos pendurados em um barranco, jogvamos os esquis para baixo e descamos atrs deles.Correr de bicicleta tambm era muito legal. Pegvamos nossas bicicletas pretas, estilo militar, que no tinham freios de mo, s o de pedal, subamos uma montanha e pedalvamos ladeira abaixo o mais rpido possvel. A corrente tinha uma tendncia a escapar nessas horas e, portanto, o freio deixava de funcionar. Tudo o que conseguamos fazer era uma ou duas curvas e dizer adeus.A transio do esqui para os motores no se deu at perto de meus 14 anos e, mesmo assim, eu estava interessado principalmente em motocicletas. Eu no era f dos esportes motorizados. Tinha uma vaga idia de quem era Rindt, mas no acompanhava o que acontecia.Tudo o que me fascinava era a velocidade pura, um pouco de tecnologia e a habilidade de controlar uma mquina.Tnhamos uma empilhadeira em casa e eu passava o dia tentando andar com ela em apenas duas rodas. Tambm descobri o que um trator de esteiras capaz de fazer. Um tpico jogo de pacincia para mim, aos 13 anos, era estacionar carretas de marcha a r, o que realmente difcil de fazer, pois o volante tem de ser virado ao contrrio. s vezes, eu acordava s cinco da manh e treinava estacionar caminhes at a hora do caf. Ou derrapar, no BMW de meu pai.Houve outras coisas, que hoje eu no recomendaria a ningum. Por volta dos 18 anos, corramos com hotrods absurdamente envenenados. No caminho para o lago Aachem, que era nossa pista habitual, subamos quatro ou cinco vezes por noite e, enquanto algum se certificava da ausncia da polcia, os corredores apareciam de todos os lados. Era quase um vcio, todas as noites, depois do trabalho. Era comum haver trs ou quatro de ns correndo lado a lado ainda posso ver e ouvir como era: um em cima do outro, inclinados, todo esse barulho, e, subitamente, vejo a roda de um dos caras sumir debaixo dele e acelero ainda mais.Quando eu tinha 18 anos, minha Kawa envenenada chegava a 270 km/h. Andando a essa velocidade em uma auto-estrada por um bom tempo, os pneus se expandiam tanto que acabavam roando nos pra-lamas. Essa sensao era o suficiente para mim.Meu livro Grenzbereich (O Limite), publicado em 1989 pela Editora Orac, de Viena, descreve meus primeiros anos. No quero contar novamente aqueles tempos anos do Alfasud e da Frmula 3, o maravilhoso perodo pilotando os carros da BMW e como cheguei Frmula 1 com a ATS, a Arrows e o velho e bom Benetton verde.Mas no posso escrever este livro sem mencionar trs personagens daquela poca, porque cada um deles, de maneiras muito diferentes, me deu certo impulso que me move at hoje.Helmut Marko me escolheu dentre uma massa annima de jovens pilotos e me perguntou se eu gostaria de me transformar em algum. Ele o maior dos analistas de corridas; nunca aprendi tanto com ningum. No entanto, tambm era difcil, agressivo e pouco diplomtico. Ele me transmitiu certa dureza que, mais tarde, me ajudaria a negociar com Enzo Ferrari, Ron Dennis e Bernie Ecclestone. E, como agente, um prncipe entre todos os personagens estranhos que andam por a hoje em dia.Burghard Hummel era um gnio em matria de relacionamento: conhecia tudo e todos, e ainda assim. Ele tambm um idealista, capaz de mover montanhas com sua f. A partir de determinado momento, deixei de precisar de sua intercesso, mas sua viso psicolgica sobre a natureza de um piloto foi de grande ajuda para mim. Amigos como ele pem qualquer um no caminho certo.Especialista em corridas incrivelmente sensvel, Dieter Stappert, que foi diretor da BMW na hora certa, acreditou em mim e me impulsionou. Era, alm disso, muito divertido, uma caracterstica de meu crculo de amigos.Conto isso de novo em outra parte deste livro: engraado que o que me projetou das ilimitadas diverses de minha juventude motivao em minha carreira profissional tenha sado das predies de meus professores. Eles cansaram de repetir mais intil criatura do baixo vale do rio Inn: Berger, voc nunca ser alguma coisa na vida. De l para c, j fui recebido pelo papa e no vi meu professor de religio por l.

3

A FERRARI E O COMENDADOR

1987, 1988, 1989No primeiro captulo, contei o que Alesi e eu aprontamos com o carro de Jean Todt em Fiorano. Em essncia, aquilo foi apenas uma loucura de duas crianas grandes, mas tambm teve a ver com a atmosfera geral de entusiasmo no seio da Ferrari. O que quero dizer que, em uma equipe inglesa, qualquer pessoa sairia pelo porto principal da empresa de forma completamente diferente at mesmo Alesi procederia de outra maneira.S em 1997 a equipe de corridas da Ferrari adquiriu a frieza de atitudes que se costuma esperar dos ingleses. (E so os ingleses que estabelecem os padres na Frmula 1, com toda a sua influncia internacional.)Os primeiros tempos na Ferrari, dos quais posso falar, ainda estavam longe de ser conspurcados pela nova objetividade de um Ross Brawn. No mximo houve algumas tentativas de chegar a isso. Como piloto, seria bom ter os dois lados: a doce insanidade que nos entusiasma e, ao mesmo tempo, uma atitude clnica e sensata voltada mais avanada tecnologia contempornea.Em 1987, quando entrei na Ferrari, uma equipe como a liderada por Schumacher seria impensvel. O Comendador jamais teria permitido que um piloto se tornasse mais importante do que a marca. A Ferrari era um imprio com estruturas oficiais, por um lado, e secretas, por outro, e os pilotos, simples soldados com um trabalho a executar o Departamento de Acelerao.Originalmente, a Ferrari era o nico fabricante verdadeiro na Frmula 1; em comparao, os outros no passavam de manobristas de estacionamento (e era assim que Enzo Ferrari gostava de cham-los). Foi por isso que Niki Lauda se destacou tanto nos anos 70: em vez de se deixar envolver pela poltica interna da Ferrari, ganhou influncia como piloto a ponto de conseguir fazer uso dos recursos tecnolgicos superiores da equipe. O lado tcnico sempre dependeu do lado poltico, de maneira que, se um piloto quisesse fazer com que algo acontecesse, tinha de entrar no jogo.As coisas se complicavam ainda um pouco mais devido ao hbito da Ferrari de manter tudo em segredo desde o incio. Meu primeiro encontro com Enzo Ferrari em 1986 foi assim o diretor de corridas, Piccinini, me colocou dentro de seu carro e me fez ficar agachado ao chegar, para que ningum me visse. Chegamos ento ao escritrio particular do Velho em Fiorano, a famosa casa com persianas vermelhas. Eu deveria substituir Stefan Johansson como piloto, tornando-me companheiro de equipe de Michele Alboreto.No escritrio, todas as cortinas estavam fechadas. No incio, achei que era para deixar as coisas em segredo, mas depois descobri que Enzo Ferrari gostava de manter sua sala escura permanentemente; tudo de que precisava era uma luminria de mesa.Com quase 90 anos, ele no evocava a figura bondosa de um av; s conseguamos ver a expresso dos seus olhos, quando ele, ocasionalmente, retirava os culos escuros.Piccinini serviu de intrprete. Ferrari foi direto ao ponto: se chegssemos a um acordo naquele dia, eu teria condies de assinar imediatamente? Quando eu disse que sim, eliminei a possibilidade de voltar atrs, dizendo qualquer coisa do tipo eu gostaria de falar primeiro com meu agente.O que voc espera da Ferrari em primeiro lugar?Que a engenharia funcione.Aqui voc ter o melhor engenheiro que existe.Mas s existe um.Ento estamos falando da mesma pessoa.Foi assim que fiquei sabendo que a Ferrari j tinha conseguido contratar John Barnard, que estivera com a McLaren at ento. Tambm ficou claro que a Ferrari estava gastando muito dinheiro, pois Barnard era conhecido no meio como um homem que valia qualquer preo e que, com certeza, o pediria. A, passamos para a parte mais difcil: o que eu pensava quanto a meu preo?Como determinar o valor de um piloto que mal tinha duas temporadas na Frmula 1 no passado e ainda no ganhara nada? De qualquer forma, depois de Senna, eu era o mais rpido de todos. A Benetton no queria me deixar ir embora e a McLaren e a Williams tinham me feito boas propostas. Quanto eu estaria disposto a dar de desconto legendria Ferrari?Humm... claro que eu vinha remoendo aquele momento h dias. E eu j tinha a informao de que, nas negociaes com Niki Lauda, dez anos antes, houvera uma grande discusso, com o Comendador irritado e o contador, Delia Casa, sentado com uma calculadora, convertendo dlares em liras.Mas Enzo Ferrari no tinha mais energia para dar shows. Alm disso, eu fui razovel: 1,2 milho de dlares, pedi com voz firme, e ele disse sim foi bem simples. Ento ele quis uma opo para o segundo ano, por dois milhes de dlares. Na hora, pareceu timo. (Depois, me senti terrivelmente mal pago e minha vingana foi pedir cinco milhes para o terceiro ano. Isso foi em fevereiro de 1988, quando Ferrari estava realmente muito fraco para opor resistncia. Mesmo assim, ele se saiu com um grande comentrio: Bem, temos sorte de que Berger s tenha vencido duas corridas para ns no ano passado, ou ele nos tiraria a camisa).De qualquer forma, eu fui o ltimo piloto a ser escolhido pessoalmente por Enzo Ferrari.

No aspecto tcnico, 1987 foi um ano de baixa presso nos turbocompressores (a presso j tinha sido limitada), o que implicou uma reduo no consumo de combustvel e uma maior difuso no esquema tcnico das equipes. A Ferrari era um exemplo clssico: John Barnard montou nosso avanado posto tecnolgico na Inglaterra, Harvey Postlethwaite dirigia o trabalho tcnico dirio em um carro comeado por Gustav Brunner, Marco Piccinini era o diretor de corridas e, acima de todos, reinava Enzo Ferrari, cujo filho, Piero Lardi, ainda no podia ser chamado de Ferrari (at ento reservado memria do falecido filho legtimo de Ferrari), apesar de estar profundamente envolvido na poltica interna.Uma parte do grupo tentava apoiar Barnard. Eu era um de seus partidrios, ao contrrio de Alboreto, a quem nunca cheguei a me ligar muito.No cenrio da Frmula 1, a Williams-Honda era, de longe, a fora dominante e seus pilotos tampouco demonstravam alguma fraqueza. Afinal, eles eram Nelson Piquet e Nigel Mansell.Primeiro, eu estava feliz por estar na Ferrari; segundo, eu era muito ingnuo; e, terceiro, no entendia italiano. No entanto, eu estava muito mal preparado para o jogo poltico interno da Ferrari. Tudo o que eu tinha a meu favor eram minha natureza despreocupada e minha rapidez, que era um pouco demais para meu caro colega Alboreto. Por outro lado, ele era muito mais bem articulado em Maranello.Assim, chegamos impressionante histria de como meu motor foi programado para render menos e fazer Michele Alboreto parecer ser melhor. Isso no uma criao da mente imaginativa de um piloto desconfiado foi comprovado h algum tempo. Os responsveis foram demitidos, pois a sabotagem no foi ordenada de cima aconteceu nos escales intermedirios, movidos por propinas dadas por um conde italiano que era patrocinador de Alboreto. Esse era o tipo de coisa que acontecia na Ferrari!No incio, ficamos a ofegantes quatro segundos atrs da Williams; at o fim da temporada, a diferena diminuiu e eu cheguei a farejar minha primeira vitria na Ferrari, porm estraguei tudo. (Dei uma rodada em Estoril. Mas o que isso importa se foi naquele fim de semana que conheci Ana?).Enzo Ferrari escreveu uma carta para mim. Ele no era muito de escrever, de modo que foi algo especial. Seu estilo poderia ter sido usado meio sculo antes, correspondendo-se com Tazio Nuvolari, com a diferena de que, naquele tempo, no seria to generoso com um segundo colocado. Traduzir estragaria o som do italiano:

Caro Berger,Ho admirato e sofferto Ia su bella corsa. Bravo! Sara per la prossima volta, perche lei merita una grande soddisfazione di cui la Ferrari ha bisogno e per la quale di noi tutto lavoriamo.Cari salutti, Ferrari, Maranello, 22 settembre 1987.O poderoso Ferrari-turbo parecia feito sob medida para mim: tinha um timo equilbrio, mas s se conseguiam aqueles dcimos de segundo a mais se realmente fosse forado. Um verdadeiro carro de guerra, com o qual eu me afinava perfeitamente. A equipe sentiu o que acontecia e, de repente, comecei a ganhar os motores mais potentes.Vencer as duas ltimas corridas do ano, Japo e Austrlia, pareceu um lgico preldio de que o Campeonato Mundial logo seria meu. No retrospecto, h outra interpretao: as vitrias do final da temporada de 1987 se destacam como o monte Matterhorn sobre o panorama daqueles anos.

Harvey Postlethwaite declarou: Berger fez duas corridas magnficas, muito parecidas entre si: ele tirou tudo do carro no incio, para demolir os outros, e, duas horas mais tarde, o levou linha de chegada em perfeitas condies motor, pneus e cmbio. Lembrava Lauda, com a nica diferena de que Gerhard pode ser um pouco mais rpido que Niki (apesar de, quela altura, ele j estar aposentado havia dois anos).Por que nem eu nem a Ferrari conseguimos transformar o sucesso de 1987 em um trampolim para grandes feitos hericos e para o ttulo mundial que desejvamos tanto?Sejam quais forem as razes, nossos engenheiros descansaram sobre os louros durante o inverno e, quando acordaram na primavera, estvamos anos-luz atrs do melhor pacote da Frmula 1: a McLaren-Honda.Enzo Ferrari morreu em 7 de agosto de 1988 e aqueles que sabiam das coisas j previam o que aconteceria: sua morte foi mantida em segredo. As pessoas cochichavam que o Ingegnere( estava morto, mas, oficialmente, ningum sabia. S depois do sepultamento o mundo foi autorizado a lamentar sua morte e, aps um ms, a dignidade e a importncia de Enzo Ferrari foram reverenciadas em uma missa fnebre na catedral de Mdena.Os mais velhos gostam de repreender a mim e meus contemporneos porque no demonstrvamos interesse em nossa histria. Lauda nunca foi expert na histria da Ferrari, eu mal tinha noo dos triunfos de Juan Manuel Fangio e nem adianta perguntar a Michael Schumacher em que ano um gato preto cruzou o caminho do sr. Ascari na pista de Monza. H gente que se inflama com o conhecimento de fatos sobre a Ferrari, pessoas que dariam o brao direito para sentar em um Frmula 1 da Ferrari ou para ver Enzo Ferrari assoar o nariz. Aqueles de ns que tnhamos passe livre para o paraso s estvamos interessados no aqui e agora. O contexto histrico no nos fazia tremer.Assim, Enzo Ferrari era apenas um componente de minha vida diria, de quando almoava com Piero Lardi, Piccinini e Alboreto, que tagarelavam em italiano at que algum me perguntasse algo e eles traduzissem para um e outro.Acredito que o Comendador tenha se mantido no controle at o inverno de 87/88. Ele no tinha mais nada a fazer do que receber mensagens e resultados por telex e ler jornais na sala dos fundos em Fiorano, alm de dar murros na mesa durante as reunies dirias. Seus ataques de raiva ainda eram levados a srio. Afinal, ele tinha viso suficiente para deixar algum como Barnard fazer seu trabalho na Inglaterra. Do ponto de vista italiano, isso era admitir uma fraqueza tcnica ou de estrutura, mas Enzo Ferrari no se considerava bom demais para isso.Na primavera de 1988, aps seu nonagsimo aniversrio, mal voltamos a v-lo. Ele no pde nem mesmo receber o papa em sua visita Ferrari s conversou com ele por telefone.Quando fui apresentado ao papa, ele conversou comigo em alemo. O que mais curti foi me lembrar de meu antigo professor de religio, que estava entre aqueles que diziam: Berger, voc nunca ser alguma coisa na vida.O papa abenoou os carros que iriam para o GP do Canad; infelizmente, nenhum deles chegou ao final da corrida.Alguns bigrafos dizem que a sade de Enzo Ferrari deteriorou-se em 1988 devido, em parte, m performance de seus carros de corrida. O fato que a Ferrari entrou em uma era de depresso, daquelas em que a reputao anterior no ajuda em nada. A Honda tinha transferido suas fichas da Williams para a McLaren e a maneira como os novos carros passavam por ns era realmente embaraosa. Alm do mais, o fato de eles terem Prost e Senna como pilotos era quase uma covardia.Entretanto, a turma de Postlethwaite conspirava contra a turma de Barnard, e a Ferrari no conseguia fazer um motor capaz de se igualar ao da Honda. Na poca, o limite de presso no turbo era de 2,5 bares e os japoneses foram brilhantes em aproveitar ao mximo a situao. Simplificando: eles conseguiam mais performance com a mesma quantidade de combustvel e, quando tentvamos acompanh-los, ficvamos sem gasolina.Houve dezesseis corridas em 1988. A McLaren-Honda venceu quinze e, por dez vezes, conquistou o segundo lugar.Essa srie humilhante de derrotas da Ferrari, que chegou quase a corroer a alegria de toda a Itlia, teve uma nica exceo. Aconteceu em Monza, quatro semanas depois da morte do Comendador, o que deu ao fato um significado quase mstico.

Passada a metade da prova, olho para o grande placar com o posicionamento e vejo meu 28 em segundo lugar, depois do 12, de forma que Prost deve ter sado. Problemas tcnicos para a McLaren, quem diria! Subitamente, me vem uma imagem de pesadelo: e se Senna tiver problemas tambm e abandonar e eu no tiver gasolina suficiente e Alboreto vencer? Isso a ltima coisa de que preciso, especialmente aqui, em Monza. A liderana de Senna vai diminuindo e a grande dvida se ele vai at o fim, ou se est se poupando, ou se gastou demais nas primeiras voltas e vai acabar ficando a seco. como um jogo de xadrez a distncia com trs participantes: estou alcanando Senna e Alboreto est se aproximando de ns dois. O que Senna est pensando? Ele chega a perder trs segundos em uma volta deve se sentir muito seguro, mas, depois desta temporada, compreensvel. At agora, ramos ns que ficvamos sempre sem gasolina, no a McLaren. De qualquer forma, sigo dando tudo, a diferena de 26 segundos caiu para 11, faltam seis voltas. Mas Alboreto est s a dois segundos e meio atrs de mim. O pesadelo fica mais real, eu no posso acreditar, meu companheiro de equipe no pode ter mais combustvel do que eu. Estou em cima do previsto, mas no sei quanto a ele. Provavelmente, ele est com alguma folga, de modo que talvez eu tenha de enfrent-lo com menos presso no turbo, o que pode ser delicado. Michele andou bem todo o fim de semana, nos treinos s ficou trs dcimos atrs de mim, quando o normal mais de um segundo.Faz algum tempo que no olho para minha placa nos boxes, ela fica muito longe, ainda bem que h a grande torre com o posicionamento. Quatro voltas para o final, oito segundos: eu sei que pode dar certo, mas tenho de ultrapassar Senna quando chegar a hora e isso um problema por si mesmo.Mas ainda no penso to longe: mais presso, frear mais tarde, no afrouxar, nada de erros, um olho no espelho retrovisor. Onde est meu companheiro? Ele no se aproximou mais na ltima volta, ento deve estar com pouco combustvel tambm. A multido est enlouquecendo, tem gente pendurada em cima da cerca, provavelmente gritando desesperadamente, acenando. claro que no se v nada, apenas faces borradas.Duas voltas mais, apenas cinco segundos. Passando a linha de chegada, vejo Senna entrando, depois poeira, bandeiras amarelas repentinamente, e ento? Concentrao total, freios, reduzida, virar esquerda, quem est parado l? Vermelho, branco e vermelho parados em cima da lavadeira, um capacete amarelo Senna, e ele est me olhando dentro dos olhos. Adiante, a direita, h um Williams atravessado.As bandeiras amarelas continuam depois, mas esto sendo agitadas apenas pela excitao, pelo menos parece ser isso.Rodada de Senna, provavelmente tocado por Schlesser; eu grito dentro de meu capacete, no posso deixar de rir. Estou me lembrando de Estoril l, fui eu que rodei e joguei fora minha vitria.Monza explode com bandeiras da Ferrari por todos os lados. Voc est guiando em um tnel de bandeiras amarelas, s no se entusiasme demais, fique frio, olhe bem para a frente e no para as bandeiras. Onde est Alboreto? Uns 300 metros atrs. Preciso andar direito.Nunca esquecerei as duas ltimas voltas. Cada fibra de meu corpo est tensa, eu tento desesperadamente no olhar para os tifosi delirantes esquerda e direita, passo pelos boxes mais uma vez, mais uma volta. A ltima volta medida em dcimos, meu marcador de combustvel indica 10, perfeito para mais uma volta completa, 5 depois da Lesmo, Alboreto um pouco mais prximo. Chegando a Parablica, h um retardatrio e a 270 km/h mal tenho trs dcimos de segundo para decidir: se eu passo antes da curva, ganho tempo. Ou no devo me arriscar e deixo para passar na sada? Mas e se Alboreto estiver to perto que possa passar de viagem por mim? Melhor me espremer antes da Parablica, ser supercuidadoso, felizmente ele est prestando ateno, 200 metros mais, agora posso acreditar na vitria, agora poderia chegar l em ponto morto.Na linha de chegada, o marcador indica 1. Eu poderia dar mais um dcimo de volta acelerando, mas para uma volta da vitria o suficiente.As cenas seguintes so indescritveis. Encalorado e suado como estou, sinto arrepios pelo corpo todo, a ovao transbordando por cima de ns, os fs pulando as cercas, no meio da pista, danando como russos, alguns ajoelhados no asfalto.Passo pelo pdio como em um transe. Deixo as coisas acontecerem, estou incrdulo, porque nem nos sonhos mais delirantes poderia imaginar esse tipo de entusiasmo. Muitos sonham guiar na Frmula 1 para a Ferrari, eu mesmo sonhei. Mas s vencendo em Monza pela Ferrari possvel compreender o que se tinha sonhado.Analisando objetivamente, minha vitria foi um presente resultante da quebra de Prost e da rodada de Senna. Nigel Roebuck, da revista inglesa Autosport, viu dessa maneira: Foi um presente, mas para o homem certo, na hora certa, no lugar certo.O jornalista e escritor americano Brock Yates tirou as seguintes concluses sobre Monza na brilhante biografia Enzo Ferrari, Vida e Lenda:Que comovente, brilhante e maravilhosa vitria para a Ferrari em seu prprio terreno! Depois da bandeirada, Berger afundou em um mar de bandeiras vermelho, amarelo e negro e de entusiasmados tifosi. Uma faixa dizia: Ferrari, ns o seguimos em vida, ns o seguimos na morte. No calor da vitria, Marco Piccinini predisse uma nova era para a Ferrari. Nesse breve e empolgante momento em Monza, as massas incansveis estavam absolutamente convencidas de ter assistido a uma ressurreio. Para a equipe da Honda, que no tinha sequer passado pelo perigo de ser vencida naquela temporada, essa vitria da Ferrari deve ter parecido uma certa ameaa, apesar de eles terem continuado a dominar o esporte amplamente pelos dois anos seguintes. Talvez Piccinini e sua viso de uma nova era estivessem certos, mas, mesmo assim, seria apenas uma verso um pouco melhorada dos velhos tempos. Porque Enzo Ferrari, o ltimo dos grandes tits do automobilismo, se foi para sempre. Ningum ocuparia seu lugar.

A verdade que estvamos no meio do declnio que foi a temporada de 1988, na qual Monza foi uma solitria e, por isso mesmo, magnfica estrela cadente. De qualquer forma, a era turbo estava chegando ao fim e John Barnard tinha gasto os dois anos anteriores trabalhando no motor aspirado para 1989.Ainda faltava a ltima corrida dos turbos, o GP da Austrlia, em Adelaide. Eu poderia esquecer a possibilidade de repetir a vitria do ano anterior nossos problemas de consumo nos colocavam em desvantagem, comparados com a Honda, e eu j estava fora da luta pelo Campeonato Mundial (enterrado em terceiro, atrs da dupla da McLaren-Honda, Senna e Prost). Alboreto tambm no tinha quaisquer esperanas (em quinto no campeonato, ele sabia que a Ferrari o estava substituindo por Mansell). Como nossa equipe no conseguia chegar a nenhuma soluo tcnica decente, decidimos ultrapassar todo mundo e dar um show at que ficssemos sem gasolina e pudssemos, ento, ir para casa. claro que nossa estratgia era segredo, ao menos para a maior parte das pessoas. Isso, pelo menos, me permitiria pegar o melhor vo para a Europa, o que, em outras circunstncias, no seria possvel.Depois do treino, encontrei meu amigo (e irmo de sangue, segundo alguns boatos e brincadeiras) Barry Sheene. Barry foi um legendrio piloto de motocicletas ingls da dcada de 80 e havia se mudado para a Austrlia, onde trabalhava como locutor do Canal Nove, a estao de televiso que apresentava os programas de esportes mais importantes. Ele queria uma dica para seu comentrio da manh e perguntou como seria a corrida.Eu reservei o helicptero para as 2h45, para poder pegar o vo da Lufthansa.Mas a corrida no termina at...Exato.Assim, meu amigo Barry conseguiu se mostrar muito bem informado, um senhor dos bastidores. Os especialistas falaram sobre uma disputa entre Prost e Senna; apenas Barry Sheene apostou em Gerhard Berger, que estava em uma forma extraordinria e andaria a velocidades impressionantes, e no se surpreenderia se ultrapassasse at a superior McLaren-Honda...Dos que estavam a minha frente no grid, Alain Prost sabia o que eu tinha preparado, pois Alboreto, frustrado por estar sendo despedido, tinha-lhe revelado nosso plano. Mas, de incio, eu deveria superar Ayrton Senna, que no teria idia da situao quando, na segunda volta da corrida, deparasse pelos espelhos um Ferrari chegando de repente. O duelo que tivemos, at mesmo tocando as rodas, foi um grande espetculo para a assistncia. Depois dessa ultrapassagem, tive de alcanar Prost, que nesse meio tempo havia escapado frente. De novo, outra grande performance para o pblico. Alain provavelmente estava rindo quando passei voando a sua frente.Andei mais algumas voltas acelerando tudo, deixando os competidores na poeira, e comecei a pensar em meus planos de luta. Como deveria coroar o final?Cheguei a dois carros retardatrios; o que estava mais frente era o Ligier azul de Ren Arnoux. Era perfeito, pois Arnoux era um dos pilotos mais inoportunos, do tipo que nunca olhava nos retrovisores e estava sempre no caminho de algum. Assim, passei pelo primeiro carro e por Arnoux tambm, em uma s manobra um tanto ambiciosa em que o pneu traseiro do Ligier entrou em minha frente, uma pequena batida, acabou, finito.Profundamente desapontado e deprimido, Gerhard Berger, o brilhante lder do GP da Austrlia, no deu entrevistas. Ele partiu sem esconder o desapontamento. Vimos o piloto da Ferrari embarcando no helicptero. Mas jamais esqueceremos a corrida que o jovem Gerhard Berger fez hoje. Como eu avisei, senhoras e senhores, este um piloto srio... Barry Sheene, Canal Nove.

Meu novo companheiro de equipe para 1989 foi Nigel Mansell. Seis anos mais velho que eu, era quase como de outra gerao.Se eu no havia tido problemas em lidar com Alboreto, que era considerado muito veloz e tinha muito poder poltico dentro da equipe, naturalmente no teria medo de Nigel. Ao contrrio, at pensei que poderamos nos tornar bons amigos, pois eu gostava bastante dele, socialmente. E a badalao que ele fez sobre sua famlia causou uma primeira impresso calorosa e amigvel. Mais tarde essa atitude acabou me incomodando, pois ele fazia um tremendo alarde sobre isso, sempre dedicando cada vitria a algum e contando histrias melosas sobre eles.O que acabou transparecendo foi que Nigel era extremamente solitrio e desconfiado, o oposto de seu jeito aberto e amigvel. Pode ter sido um desapontamento, mas isso no era problema para mim; alm do mais, eu no precisava me preocupar com disputas internas. Mansell, ao contrrio, j tinha passado por companheiros como Piquet ele era um elefante ferido.Depois da morte do Comendador, a Fiat tornou as coisas um tanto confusas na Ferrari. Estivemos no caminho certo por algum tempo (com um diretor tcnico chamado Cappelli), mas as coisas voltaram a se confundir, dessa vez na direo errada (com o diretor ttico Cesare Fiorio). O novo carro de John Barnard era realmente brilhante, porm o trabalho dirio era muito relaxado, alm de termos um problema com o motor um tanto familiar: na nova categoria dos 3,5 litros, os Hondas eram mais uma vez mais fortes.A temporada de 1989 comeou com aquela estranha corrida no Rio. Durante os treinos, nada funcionou: tivemos problemas com motores vazando, correias do ventilador despedaadas, alternadores enlouquecidos e o boxe da Ferrari parecia uma caixa de ferramentas para montar circuitos eltricos. Nem Nigel nem eu tnhamos conseguido dar mseras cinco voltas consecutivas. Estava tudo to mal que Fiorio pensou em no nos deixar encher os tanques. Com eles pela metade, poderamos pelo menos dar uma impresso de rapidez... at que o inevitvel acontecesse.No fim das contas, largamos normalmente, a srio, e eu me envolvi no que Lauda costumava chamar de uma coliso intil: uma dura dividida com Senna em que nenhum dos dois tiraria o p, e eu fiquei para trs. Empacotei minhas coisas no boxe e fiquei esperando que o carro de Mansell fosse recolhido, mas ele continuava na pista. E, quando Prost teve problemas, Nigel venceu o Grande Prmio sua primeira corrida pela Ferrari!Eu estaria mentindo se dissesse que fiquei feliz com isso esqueam sobre a Ferrari, o esprito de equipe e similares. Para ser honesto, no h nada mais importante em nosso esporte do que bater o companheiro de equipe. Primeiro, necessrio vencer internamente. Toda essa conversa sobre desde que nosso time vena para consumo externo. Na verdade, o piloto cruza os dedos para que o outro tenha uma falha espetacular no motor ou, ainda melhor, que saia da pista sem se machucar, claro , e esse o verdadeiro limite. A verdade que se ri por dentro quando se v o companheiro preso na barreira de pneus. E preciso abrir caminho para o topo; esta a razo por que sempre falsa a afirmao: Estou feliz pelo sucesso dele.Pela primeira vez, agora, havia um companheiro com o qual eu tinha de me preocupar. Ele no s era forte e rpido: tinha a boa sorte de conseguir um comeo realmente explosivo.No quero sugerir que foi um excessivo esprito de combate que me levou a sofrer o pior acidente de minha vida. Na verdade, foi um spoiler dianteiro quebrado que o provocou. Por coincidncia, aconteceu em uma fase particularmente competitiva: a segunda corrida de 1989, o GP de San Marino, em mola.

No h tempo vara errar depois da largada: tenho de passar logo pelo Williams de Patrese para que Mansell no escape. Na chicane antes da linha de largada, eu freio perto do Williams e acelero rpido para me manter prximo, no vcuo, no vcuo, no vcuo... Vou passar depois da prxima reta.Tomo a leve curva para a esquerda depois dos boxes de forma um pouco diferente do normal, no entre o meio e a parte interna, mas mais para fora, para sair do vcuo de Patrese e ultrapassar.Viro o volante para a esquerda e, no mesmo instante, h uma estranha vibrao frente, direita. Giro o volante e o carro no responde, tento de novo e no funciona. Piso no freio, ele mal diminui a velocidade, e ento eu vejo o muro. Oh, no, preciso ver se consigo alterar um pouco o ngulo. Tento de novo, nada funciona. Nada pode me ajudar agora, ento tiro as mos do volante, coloco-as nos ombros e espero.Lembrei-me de tudo no hospital. A distncia at o muro me pareceu uma longa reta (eu me assustei quando a vi no ano seguinte e percebi a que distncia ridiculamente pequena ela est para um carro andando a 280 km/h. E, pensando um pouco mais e fazendo alguns clculos, a uma velocidade de 80 metros por segundo, so s 40 at o muro, meio segundo). impressionante como tudo me veio mente ao mesmo tempo: Merda, quebrou a suspenso na frente; no, no est quebrada na frente, mas a roda est no ar. Ento, deve ter quebrado alguma coisa do lado esquerdo e a eu tento corrigir; se ao menos o ngulo de impacto pudesse ser melhorado um pouco.... Mas, em minha memria, no tenho a impresso de as coisas acontecerem em cmera lenta; na verdade, minha maior recordao de uma velocidade mortal, mesmo assim com espao para tantos pensamentos.H alguns movimentos que o piloto tem tempo para executar, como tirar as mos do volante o que no bem um reflexo, mas um refinamento adquirido sobre seus reflexos normais (ele sabe que quebrar as mos e os braos no impacto). No fim, fiquei orgulhoso por ter feito tudo direito.E havia, tambm, um movimento apropriado a fazer com o pescoo, mas no consegui execut-lo. Ao rodar e perceber que vai bater de traseira, o piloto deve levantar a cabea at o impacto acontecer, para proteger o pescoo. Em meu caso, comecei a rodar depois do primeiro impacto e, quando o segundo veio, minha cabea estava inclinada para a frente. Foi por isso que meu pescoo foi atingido to fortemente.Devo minha sobrevivncia rapidez do socorro e, acima de tudo, inacreditvel resistncia do monocoque de fibra de carbono e construo robusta projetada por John Barnard.Barnard o maior fantico por segurana da Frmula 1. Pensei que o mundo ia acabar, disse ele mais tarde. Sabia que Gerhard no cometeria um erro naquela curva, de forma que, quando voc v o carro com o piloto ainda l dentro e ele no est se movendo, tudo desaba dentro de voc. Tem de ser um defeito do carro e, a, voc pensa: Meu Deus, ser que eu fiz alguma coisa no projeto sem prever todas as conseqncias?. Se um piloto fosse seriamente ferido em um de meus carros e por causa de um erro de construo, eu teria de abandonar o trabalho imediatamente. Um erro desses me deixaria totalmente impotente.Por um lado, posso aliviar os receios de Barnard: se o piloto entra de frente em um muro a 280 km/h e nem sequer machuca as pernas, o construtor no precisa ficar se culpando de nada. Por outro, porm, havia alguma razo para acreditar que foi um detalhe de construo que causou o acidente.Um dos spoilers dianteiros do meu Ferrari havia quebrado dentro do encaixe; foi por isso que o carro perdeu a fora aerodinmica na frente e no podia ser dirigido. Na poca, as regras exigiam que as aletas laterais fossem completamente rgidas, no podiam ceder. Isso quer dizer que todo o aeroflio ficava sob tenso quando as aletas laterais raspavam as lavadeiras. O fato de que ele pudesse quebrar bem compreensvel, porque a fibra de carbono no dobra. Ao mesmo tempo, raspar nas lavadeiras e submeter o aeroflio dianteiro a impacto aps impacto era a ordem do dia no deveria provocar uma catstrofe. Se uma vez em cada mil isso acontecesse, porm, alguma coisa estava errada.De qualquer forma, as autoridades esportivas reagiram prontamente a meu acidente: a partir de ento, as aletas laterais no precisaram mais ser rgidas.Os bombeiros chegaram como um relmpago. As chamas estavam bem altas, mas vinham apenas do combustvel que havia vazado dos condutos. O tanque de segurana havia funcionado perfeitamente.Sid Watkins, famoso neurologista e verdadeiro anjo da guarda da Frmula 1, chegou ao local em menos de um minuto. Ele se lembra: Os bombeiros tinham acabado de apagar o fogo. Berger ainda estava no carro. A situao parecia perigosa, porque a grama ao redor do carro estava ensopada com o combustvel que havia vazado. Os bombeiros e eu o tiramos do carro. Eu abri seu visor e confirmei que ele podia respirar. O tirante estava to apertado que deu um trabalho para conseguir cort-lo. A, ele voltou a si e comeou a reagir contra nossa ajuda. Subitamente, temi que ele escapasse e fugisse do socorro e, por isso, sentei em seu peito e dois bombeiros seguraram suas pernas para que ele no conseguisse mais se debater.Desde ento, o Professor e eu nos tornamos bons amigos, mas eu tenho minha verso da histria contra a dele:

Sinto um solavanco e desperto. Onde estou? Em frias. Estou em frias. Algum tenta enfiar alguma coisa em minha boca, eu no quero, tenho medo de me sufocar. Eu me defendo. Fique deitado, diz algum em ingls. No se mova, voc sofreu um acidente. Meu capacete sempre difcil de tirar, eu sei disso. Eu continuo com ele? No sei. Olho para minhas mos, minhas luvas sumiram. Bolhas, falta pele, a carne viva est mostra. Tudo di. No consigo me mexer. Patrese. Eu queria ultrapass-lo. Devo ter tido um acidente ali. Uma dor terrvel em minhas costas, devo estar todo queimado. Nunca vou andar em um desses carros de novo. No preciso, s isso. No se deve apostar a prpria vida.Meu pai j estava esperando no pequeno hospital do paddock. Depois, ele me contou que minha primeira frase foi: Estou bem, mas nunca mais vou subir nessas merdas de carros de novo.Meus ferimentos foram uma brincadeira, considerando a seriedade do acidente: mos queimadas, esterno trincado e uma costela quebrada (incidentalmente resultante dos bravos esforos de Sid Watkins, pelo menos o que ele diz).

Heinz Lechner e Willy Dungl fizeram um trabalho fantstico cuidando de minhas queimaduras, e eu perdi apenas uma corrida. Se antes eu j no estava em condies espetaculares, agora meu dficit era ainda maior e eu no conseguiria disputar com Nigel Mansell (para no mencionar Senna e Prost eles e seus McLarens estavam em uma categoria diferente). Nigel era um urso, muito melhor do que eu ao exercer a fora inacreditvel que os Ferraris exigiam para movimentar o volante naquela poca. E, independentemente disso, a Ferrari estava experimentando uma impressionante srie de defeitos e em onze corridas consecutivas no consegui marcar um nico ponto no campeonato.Comecei a sentir, de novo, que o tempo estava se escoando. S os cus sabiam quando e se a Ferrari comearia a fazer carros confiveis novamente. Entretanto, uma guerra civil era travada na McLaren entre Alain Prost e Ayrton Senna. Prost no sentaria em um McLaren em 1990, qualquer que fosse o resultado do conflito. Eu era, visivelmente, a primeira opo para Ron Dennis, e ns j estvamos conversando h semanas. Cancelei minha opo para um novo contrato de trs anos com a Ferrari.Pela metade da temporada, tnhamos um acordo firmado: Alain Prost e Gerhard Berger trocariam de lugares.Apesar de a Ferrari estar, logicamente, colocando todas as suas fichas em Mansell, eu estava ficando cada vez mais rpido. A, Nigel deu o melhor de si e venceu na Hungria. Obtive minha doce revanche em Estoril: foi uma corrida estranha, em que eu disparei na frente no incio, perdi presso em um pneu e, subitamente, me vi duelando com Mansell. Ele passou de sua posio no pit stop e voltou ao lugar de r. Tomou uma bandeira preta, desclassificao automtica, mas decidiu ignor-la ou realmente no a viu. O acidente que se seguiu incendiou a imaginao dos observadores de estrelas da Frmula 1: Mansell jogou Senna e a si mesmo para fora da pista, uma grande vantagem para Alain Prost, que liderava o campeonato.Para mim, a vitria em Estoril levantou a dvida sobre se eu no estaria deixando a equipe certa no momento errado. Mas, no final das contas, essa questo seria uma ocorrncia constante durante minha carreira.

4

PILOTAGEMO que se passa em seu corao, em sua cabea, em sua alma?J me perguntaram mil vezes: Gerhard, o que voc sente quando correi. E eu sempre dou respostas que, na realidade, no dizem nada a ningum. Ningum quer ouvir que tudo se transformou em uma questo de trabalho.No entanto, assim mesmo. O trabalho, hoje, ofusca tudo. At mesmo aquelas sensaes que vm naturalmente da emoo de andar depressa. Mas isso no quer dizer que essas sensaes no existem.Acontece que eu tenho de trabalhar por todo um fim de semana de corrida para senti-las. O banal e o sublime, definitivamente, convivem lado a lado. Da mesma forma que o esprito de luta e o cansao da tarde sobrevm ao piloto.Contagem regressiva.Nunca durmo muito bem nos finais de semana de corrida. Ainda por cima, tenho de me levantar s seis. Harry, que tem uma segunda chave, entra no quarto antes disso. Harry Hawelka me acorda, por assim dizer, com uma massagem nos ps. Nada de especial, s uma forma de estimulao geral.Uma chuveirada e estou a caminho da pista. O desjejum durante a reunio da equipe tcnica, s 7h30, quando Harry me traz um ch de camomila e duas fatias de po com gelia. A, vou para o motor-home, coloco o uniforme e espero pelo aquecimento. O treino sempre comea com uma volta de verificao e uma rpida checagem de todas as peas.O treino de aquecimento dura meia hora e, ao final, vamos direto para uma segunda reunio tcnica, na qual dou minhas impresses sobre o carro e a pista. Os engenheiros, auxiliados pelos dados da telemetria, fazem os ajustes necessrios e depois uma verificao final. Somos chamados para a reunio dos pilotos, que dura mais ou menos um quarto de hora. O diretor de prova discorre sobre as particularidades da pista e nos aconselha a no bater uns nos carros dos outros. Todos os pilotos sobem em um caminho, do uma volta na pista e acenam para os fs. E, ento, de volta para a equipe. Uma ltima reunio tcnica quantos pit stops e assim por diante. meio-dia e estou exausto. No que me diz respeito, o dia podia terminar por a.Eu me estico em um canto do motor-home e caio no sono instantaneamente. A 1h15 acordo, aos pedaos.Harry me serve um caf expresso com duas gotas de uma substncia amarga e vermelha, um desses remdios caseiros de Montana, para que o caf no me embrulhe o estmago. E a ele vem com aquele leo japons fedorento, apesar de dizer que na verdade no fede, apenas cheira a hortel. frio e refrescante; o corpo parece estar em uma sala arejada, com todas as janelas abertas.Em cerca de 15 minutos, o velho cansado e alquebrado se transforma em um duro e bem-disposto guerreiro. A, os principais grupos de msculos so aspergidos; parece que eles vo congelar, mas apenas um spray italiano refrescante que embebe a pele e funciona como um analgsico preventivo. Pelo menos, dessa forma, no sentirei nenhuma dor muscular na primeira hora de corrida, nem dor no pescoo, nem nas costas, nem na plvis. Levo o carro posio de largada, vou fazer pipi mais uma vez e pulo de volta o muro dos boxes. L vamos ns.

Kyalami, de volta a meus tempos de BMW. Era assim que ele chegava do alto da elevao: primeiro aparecia s uma nuvem preta os motores eram regulados para queimar uma mistura muito rica naquela poca e o turbocompressor aquecido fazia o ar esquentar e estremecer. No era possvel ouvir nada, pois o motor turbo era muito mais silencioso do que os atmosfricos, nem tampouco enxergar o carro. Era s o ar ondulando, a certeza de que algo vinha chegando. E a o nariz do Brabham aparecia e Piquet relampejava a 1.200 cavalos. Eu repito: relampejava eu mal podia resistir de emoo, era impressionante.

Mnaco, presente: classificao. Tudo acontece ao mesmo tempo guiar, Monte Carlo, o agito e a sofisticao, o espetculo e um lugar em que o piloto avaliado no s por seu tempo de volta, mas pela elegncia com que o obteve: quem mais rpido ao acelerar, tangencia os muros mais suavemente, pilota mais agressivamente na descida do Tip-Top Bar. Na hora da verdade, claro que o piloto no dar importncia a esse jri que o avalia nem aos engenheiros com sua telemetria, que mais tarde apontaro um trao e diro: Preste bem ateno quilo, seu manaco. Contudo, de alguma forma, percebe-se que toda a insanidade acumulada pr-programada.Na sada da Sainte Dvote sobe-se a longa reta do Casino.A subida acaba em uma grande ondulao, e pode-se escolher entre aliviar o acelerador imediatamente antes ou mant-lo apertado, entrando na curva do Casino a 250, freando e escorregando para fora ao mesmo tempo. Aliviando alguns metros antes, tudo transcorrer de maneira mais suave e limpa, mas a telemetria mostrar ao piloto que ele estava morrendo de medo. De certa maneira, a deciso entre entrar a toda ou no na ondulao uma disputa de fora entre o piloto e o carro.Mesmo andando feito louco, deve-se sair da curva bem certinho, porque a primeira parte do Casino como o ato de abertura para um grande espetculo e, se o piloto estragar as coisas no comeo, no ter como corrigir. Ento, anda-se de quarta marcha lindamente rumo ao lado esquerdo; necessrio ir bem por fora, praticamente na porta do Hotel de Paris. o lugar perfeito para calcar o acelerador, tomando a curva direita no gs, com as rodas escorregando. Assim, pode-se manter a acelerao na sada, ao longo da barreira de proteo, em uma derrapagem controlada. Um ligeiro movimento no volante endireita o nariz do carro e mergulha-se a toda a velocidade na curva para o Tip-Top.

O som do motor desperta emoes em mim?Normalmente, no.E fora do carro?Acho que j aconteceu.Por exemplo?Quando o motor novo de Alesi foi ligado pela primeira vez. Eu estava sentado no muro do boxe e disse: Uau, ele soa muito bem!. Meu engenheiro concordou: Sim, eu posso ouvir l do fundo dele. Ento, pensei comigo: Meu Deus, que cara de sorte!.Encontrar momentos que me provoquem sensaes est ficando cada vez mais difcil com o passar do tempo.O que continua to bom como sempre o ato de dar a partida e esquentar os motores. O uf-uf dos jatos de gasolina mandados pelo computador para o motor frio continua me dando arrepios. E, naquele tempo, havia uma maravilhosa integrao de rudo com cheiro. A medida que as mquinas eram aceleradas, tudo recendia a leo de competio e havia o odor provocado quando ele pingava sobre o motor quente. At as gotas frias e secas tinham seu cheiro. Hoje no h mais leos que cheirem a corrida como naquele tempo, quando era possvel respirar fundo e ter a certeza: Estou em casa.O som dos motores continua excitante, mas apenas como pano de fundo. Para um piloto, a voz de seu prprio motor se transforma apenas em uma cpsula de rudos e vibraes. H poucas nuances das quais possvel extrair algum prazer, entre elas, talvez, o staccato tipo metralhadora, no momento de reduzir trs ou quatro marchas.O estrondo, normalmente assassino, do prprio motor s suportvel graas aos tampes de ouvido (earplugs) e, com o capacete por cima de tudo, o que sobra um rugido abafado e vibraes. Guiar sem proteger os ouvidos seria correr o risco de ficar surdo.Grande Prmio do Canad, 1989, Montreal. Eu, em meu Ferrari, na segunda fila do grid, Prost e Senna frente, em seus McLarens. O sinal indica trs minutos, dois minutos, eu coloco o capacete, um minuto, bandeira verde para a volta de apresentao, meu motor liga e eu me dou conta de algo estranho imediatamente. Alguma coisa est errada. Arranco e, na primeira curva, descubro: esqueci meus earplugs.O motor j soa to alto na volta de apresentao que seria um absurdo imaginar poder agentar uma corrida inteira, a um regime de giros real. Para no falar que eu ficaria surdo para o resto da vida.Entro nos boxes? Pego os tampes e largo no fim do grupo? Nem quero pensar no que eu ouviria de Fiorio! Eu passaria por idiota.Levo o carro para o grid de largada como se nada estivesse acontecendo, vrum-vrum, espero pela luz vermelha, vrum-vrum-vrum, e, antes que ela fique verde, levanto os braos no ar sinal que indica que h problemas no carro e a largada tem de ser adiada, para no haver o risco de os carros baterem uns nos outros. E, claro, eu apago o motor.Imediatamente, o diretor de prova levanta a bandeira vermelha, cancelando a largada. Todos os mecnicos correm para seus carros, especialmente os meus, apressados pela expectativa de encontrar um problema srio. Eu no podia falar nada pelo rdio sempre h algum na escuta. O primeiro mecnico chega e pergunta para dentro de meu capacete o que h de errado. Eu peo que d partida no motor e encontre um jeito esperto de me passar os tampes.Devemos ser cuidadosos, pois todo mundo olha para meu carro e para mim. No entanto, temos tempo suficiente, porque, no caso de comear tudo de novo, todos os pilotos descem de seus carros e h um atraso de dez minutos. O mesmo atraso para 96 estaes de televiso e 400 milhes de espectadores, tudo porque o sr. Berger, infelizmente, esqueceu de proteger seus ouvidos.Os mecnicos da Ferrari desviam a ateno para o motor, tirando a carenagem e remexendo um pouco por baixo, enquanto sento no muro do boxe e, de alguma forma, algum pe alguma coisa em minha mo e eu consigo colocar meus earplugs.Relembrar os rudos bons me traz mente o Ferrari V-12 (at 1995), que produzia um som sem igual e maravilhoso a certas rotaes, um barulho ainda mais alto do que as outras feras. E era possvel sentir o que havia de especial nesse rugido mesmo com o capacete e os tampes de ouvido.Bem no fundo de minha memria h os turbos novamente (at 1988). Eles no apenas aqueciam seu corao por fora, como quando Nelson Piquet chegava do alto da colina em Kyalami; a sensao que se tinha ao guiar um deles era tambm mais intensa do que um com motor atmosfrico. O barulho todo, rudo mais vibrao, era menor do que o de hoje afinal, as rpm eram bem menores. Mas o silvo tinha algo de venenoso que deixava o piloto realmente ligado. O murmrio de um turbo de 1,5 litro tinha mais agressividade do que o troar de qualquer 3,5 litros aspirado.

A rea mais desapontadora para os sentidos a velocidade pura. Um piloto de Frmula 1 honesto jamais ir romance-la: a velocidade apenas uma funo de seu trabalho e no h nada de impressionante ou excitante nisso. A velocidade, para mim, se tornou to rotineira que eu s posso explicar a diferena entre 120 e 320 km/h em termos de um trao no mapa da telemetria. Velocidade o pano de fundo de seu trabalho, to normal quanto a escrivaninha para quem trabalha em um escritrio.Um jornalista no se satisfez com isso e disse: Os pilotos devem ter alguma coisa como um boto para cmera lenta; o filme passa em uma velocidade totalmente diferente para vocs do que para o resto de ns, quando voc fala de chegar a 300 km/h no fim de uma reta.Eis o que eu respondi: O que faz a diferena entre um piloto de talento e uma pessoa normal so as atitudes bsicas. Todo o resto uma questo de hbito. Meus sentidos e reaes so mais bem sincronizados do que os de um no-corredor, mas isso no quer dizer que eu entro nas curvas em cmera lenta. Claro que existe o chamado efeito auto-estrada: quando dois Porsches esto andando juntos, um na frente do outro, a 220 km/h, nenhum deles perceber que o outro est andando incrivelmente rpido e cada um deles ter tempo mais do que suficiente para reagir a uma manobra do outro (desde, claro, que ele no apronte uma e freie s por maldade).Fora isso, eu s tive experincias em cmera lenta em situaes realmente extremas eu as menciono em vrios pontos deste livro.A acelerao de um carro de corrida semelhante velocidade o extraordinrio no precisa ser enfeitado. Ir de zero a 100 em dois segundos e meio achata qualquer um, no d para respirar, d medo de o crebro sair pelo escapamento... Mas, depois de passar por isso milhares de vezes, parece normal.Quando tive de ficar fora de trs corridas em 1997 por ter adoecido e voltei para os primeiros testes em Monza, fiquei totalmente fascinado pela acelerao do carro, que era incessante. Eu fiquei realmente assombrado, chegando a pensar que era demais para mim. Mas, depois de meio dia, eu j estava dizendo para o cara do motor: D uma olhada, h uma falha a 14.300 rotaes, e a 16.000 no est dando tudo o que pode. Eu j podia apreciar de novo as sutilezas de 5 cavalos a mais ou a menos.

A grande estrela, quando se fala das sensaes na Frmula 1, a frenagem. um negcio to violento que pode levar loucura at mesmo pilotos experientes.Com as ltimas verses de freios de carbono, ficou impossvel para a mente humana calcular as distncias de frenagem, independentemente de treinamento. A distncia de frenagem nada tem a ver com a experincia de um piloto, apenas uma determinada quantidade matemtica na qual ele tem de acreditar. preciso superar constantemente os prprios instintos, pois olhos e crebro ficam dizendo: No vai dar.A frenagem, no entanto, o nico lugar em que ainda se pode ganhar tempo de verdade. Para espremer mais alguns dcimos de segundo, o piloto tem de modificar seus pontos de frenagem. Ele depende tanto de um ponto fixo que no sobra espao para mudanas repentinas.Corri no GP em Estoril, em 1994, e no dia seguinte, logo de manh, tivemos testes particulares da Ferrari. Eu ainda estava meio sonolento, andando abaixo da velocidade mxima na reta, provavelmente a uns 250. Eu ando, ando e, de repente, estou no meio de uma curva sem ter freado. Naturalmente, voei direto para a areia e o gramado que havia depois. E fiquei me perguntando: O que foi que aconteceu?.A faixa da Marlboro que estivera pendurada ali todo o fim de semana tinha desaparecido e, com ela, meu ponto de referncia para frear... pelo menos em minhas condies de sono.Houve outro caso em que minha circulao no estava funcionando totalmente, em 1994. Assustados pelos acidentes de Imola, abrimos os olhos e comeamos a enxergar vrios pontos que potencialmente ofereciam riscos e a nos apavorar com maior ou menor intensidade. Havia, por exemplo, um ponto em Barcelona no qual o piloto muito provavelmente morreria se voasse para fora da pista. Argumentei fortemente a favor da instalao de uma chicane naquele lugar. Nem mesmo a FIA se empolgou, pois o mximo que podia ser feito ali era colocar uma chicane idiota, uma coisa horrorosa para ser feita em primeira marcha, que quebraria o embalo da reta anterior, feita em quinta marcha. Ruim para o espetculo, ruim para os espectadores, ruim para quem gosta de pilotar, mas estvamos seriamente preocupados com a segurana e eu me mantive na linha de frente, pedindo que fosse instalada.Conseguimos o que queramos: uma chicane fechadssima na reta mais rpida de Barcelona.No primeiro treino na pista reformulada, Berger ansiosamente foi o primeiro a sair dos boxes. Pensando comigo mesmo que precisava de um pouco de adrenalina para acordar melhor, fiz a curva em quinta marcha a pleno acelerador, mas no havia mais uma reta no final dela. L estava a chicane pela qual eu havia brigado to desesperadamente e, claro, eu no tinha a menor condio de faz-la. Pulei por cima da lavadeira, abri um sulco pelo gramado, ricocheteei por cima da caixa de brita e consegui contornar a chicane. E, como meu carro era o nico que tinha entrado na pista, todas as cmeras estavam em cima de mim, com todo mundo me vendo ao vivo pelos monitores dos boxes. Quando cheguei l, todos morriam de rir.De volta frenagem. O processo, em si, no uma manobra nada harmnica deve-se esquecer tudo sobre prazer sensorial durante as corridas. Tirar o p do acelerador, pisar no freio, virar o volante, tudo junto em um nico e violento ato, tudo acontecendo brutal e simultaneamente.No incio, possvel apertar o freio com fora, como se fosse uma frenagem gradual, com ABS (freios antibloqueio, banidos da Frmula 1), porque a 300 km/h a aderncia muito grande devido aerodinmica. Mas, a 150 km/h, a fora aerodinmica bem menor e, a 60, praticamente inexistente. Por isso tudo, o grau de aderncia muda e o piloto tem de ajustar a presso que faz no pedal de acordo com ela. Apesar de toda a violncia da manobra, preciso ter muita sensibilidade. A arte de frear a carta mais importante que um piloto pode jogar na Frmula 1.H muito trabalho de ajuste envolvido. Existem pastilhas de freio de todas as espessuras e consistncias e, em um nico final de semana, o cilindro do freio pode ser trocado trs ou quatro vezes. possvel regular os freios para no bloquearem na fase final da frenagem, mas nesse caso no se consegue um bom desempenho na primeira fase. Portanto, resta tentar encontrar a interao ideal entre o acerto e a prpria sensibilidade do piloto uma operao um tanto complexa.Em qualquer situao, a desacelerao to violenta que mal se consegue mexer os dedos para trocar as marchas.Como exemplo, vamos pegar uma reta de alta, em sexta marcha, e um cotovelo (hairpin). No instante em que se freia tudo, preciso achar a rotao correta para engatar a quinta marcha. Os motores de hoje em dia so controlados para no ultrapassar o limite de rotaes, mas isso s quer dizer que eles no permitem que o piloto engate uma marcha se estiver a uma rotao muito elevada. Se a troca estiver programada para 17.000 rpm ou menos e eu tentar a 17.300, no consigo engatar: ele no me permite. Mas, nessa fase, se o piloto no contar com o motor para ajudar a frear, no conseguir, e ele ento freia de novo e, freneticamente, tenta mais uma vez engatar a quinta quando atinge a rotao correta.Eu s uso as indicaes do conta-giros do painel durante testes e treinos. Na corrida em si, oriento-me pela indicao da luz vermelha que sinaliza a troca para a marcha superior: o primeiro sinal, 300 giros antes; o segundo, no limite de rotaes. Cada vez que comeo a reduzir, preciso confiar na sensibilidade, mas o dedo que deve tocar na alavanca de reduo que fica atrs do volante mais lento do que a ao de frenagem: no consigo trocar as marchas antes do tempo, s tenho de contar as trocas. Antes, quando havia sete marchas, isso era muito delicado, pois tudo acontecia em centsimos de segundo. Era necessrio um ponto de referncia, e eu tinha um alarme instalado no painel para indicar a entrada da terceira marcha.Frear nas curvas rpidas um assunto parte. Como a maioria dos carros de hoje tem apenas dois pedais (a embreagem eltrica, acionada automaticamente), muitos pilotos s freiam com o p esquerdo. Na Benetton, encontrvamos dificuldade para posicionar os pedais e, com a embreagem convencional, eu usava o p esquerdo somente para a clssica freada feita enquanto o p direito continua acelerando. Os freios puxam o carro para o cho, abaixando o nariz alguns milmetros e influenciando a aerodinmica e a aderncia. Eles podem estabilizar a direo nas curvas mais rpidas.Em outras palavras: freando com o p esquerdo, eu consigo deslocar a fora aerodinmica criada pelo chassi. Fao isso em curvas realmente velozes em que no possvel ir a toda a velocidade, como a que fica antes da chicane da linha de chegada em Suzuka.De todas as foras envolvidas no ato de pilotar, eu tenho dois amigos especiais que desempenham um papel importante em minha qualidade de vida em certos finais de semana: a fora centrfuga e o esforo para mover o volante.Combater a fora centrfuga intil. No entanto, o piloto tenta evitar que seu corpo, apesar da presso interna sofrida, seja levado pela fora centrfuga. Para isso, tudo tem de estar estabilizado: mos no volante, torso bem apertado pelos cintos de segurana, quadris e costelas encostados no banco e cabea e pescoo incrustados em blocos de espuma plstica feitos sob medida presos nas laterais. No h nada a fazer com a maneira como os ps saltam (no s na Eau Rouge, em Spa), e o joelho do lado de fora da curva bate. Mas a fora centrfuga mais brutal durante as frenagens: o corpo atirado contra os cintos de segurana como se estivesse batendo em uma parede.

A luta contra a dureza do volante depende tambm das condies internas do cockpit. Quanto mais perto do volante o piloto ficar, melhor poder usar a fora de seus braos e ombros. Quando os monocoques passaram a ficar mais e mais estreitos, acabei me encontrando em uma situao precria em meu Ferrari de 1989. No havia como usar a fora de minha musculatura superior pelos ombros e braos; tudo tinha de ser feito com os pulsos. Isso provoca muito estresse em um msculo localizado entre o polegar e o indicador e, apesar de t-lo exercitado bastante na ginstica, houve corridas em que tive de diminuir o ritmo por causa da dor que sentia nas mos. A natureza deu a Mansell braos e mos muito mais fortes e ele, evidentemente, levava vantagem sobre mim nesse aspecto.No tempo em que carregvamos 200 quilos de combustvel conosco, era ainda mais difcil esterar e freqentemente ocorriam inflamaes nos grupos de msculos afetados. Muitos pilotos novos no conseguiam agentar, pois nunca tinham experimentado foras como essas na Frmula 3. Quando algum experimenta pela primeira vez uma direo hidrulica, como aconteceu comigo na Benetton, em 1997, acha que est no cu. H uma enorme diferena entre contar ou no com esse recurso. Na verdade, chega a ser desleal ter uma direo assistida e correr contra algum que no a tenha.No h razo alguma para acreditar que a preciso da direo possa ser reduzida com um pouco de servo-assistncia. A preciso nada tem a ver com a fora empregada para virar o volante e a sensibilidade que um piloto de Frmula 1 precisa ter pode ser focalizada em usar o volante da melhor maneira possvel.

A habilidade necessria para guiar um Frmula 1 , logicamente, a soma de vrias qualidades, incluindo agressividade, reflexos, boa viso, resistncia fsica, antecipao, conhecimento tcnico, experincia, estratgia e disciplina.E, ao fim de tudo, deve haver um instinto arraigado que leve o piloto a tentar salvar um carro que parece ser causa perdida. Controle do carro uma expresso ridcula para definir esse territrio que vai alm dos limites normais, mas ns, pilotos, costumamos chamar assim.Supercontrole do carro coisa para gnios e no necessariamente uma caracterstica de pilotos de sucesso que chegaram a ser campees mundiais. Essa dose extra de instinto s entra em jogo quando o limite j foi ultrapassado e o piloto tem de resgatar o carro de uma situao qual, para comear, no deveria ter chegado. por isso que acho que Senna foi o maior artista de todos, pois tirava o mximo do ltimo milsimo de segundo do lado de c do limite, mas quase nunca passava para o outro lado. Atualmente, acredito que Schumacher quem chega perto disso.Para mim, Gilles Villeneuve, nos anos 80, e Jean Alesi, hoje, so exemplos tpicos de pilotos com essa overdose genial de controle sobre o carro.S consegui superar Alesi na mdia das tomadas de tempo de classificao durante cinco temporadas porque a f em sua habilidade especial o levava freqentemente ber den Hfn (expresso austraca para alm do limite). por isso que no havia uma s corrida, especialmente na chuva (sensacional em 1995, em Suzuka!), em que se pudesse esquec-lo. Ou ele saa da pista por si mesmo, ou outro piloto nunca conseguiria ultrapass-lo de qualquer forma, em dias como aqueles ningum precisava se dar ao trabalho de tentar super-lo.O estilo de um piloto de Frmula 1 algo que preocupa mais os fs e os jornalistas do que a ele mesmo. At onde posso perceber, continuo guiando da mesma forma como sempre guiei, mas h muita gente que acredita que evolu de um manaco at me tornar um piloto suave e harmnico. Para mim, isso mostra minha preguia crescente: quero fazer as curvas com a menor correo possvel.Se dividirmos o tpico Guiando no Limite em categorias, teremos saindo de traseira, ou sobreestero (quando a parte de trs empurra para fora da curva), e saindo de frente, ou subestero (quando a dianteira tenta seguir em linha reta).Michael Schumacher com seu estilo de guiar influenciado pelo kart um caso tpico de sobreestero: ele guia com a traseira solta, como se diz na gria das corridas. Bons pilotos de kart normalmente aceleram muito cedo, fazendo a traseira escorregar para fora na sada da curva. Se isso se tornar parte da natureza do piloto, ele conseguir fazer com facilidade; acho que hoje inimaginvel pensar em uma carreira de piloto sem pelo menos dois anos de experincia no kart. Quando eu era menino e adolescente, no havia essa necessidade, mas quase todos os pilotos de 20 e poucos anos da Frmula 1 de hoje cresceram andando de kart.Da mesma forma como h diferentes estilos de pilotagem, podem ser encontrados carros com caractersticas equivalentes. Em outras palavras, h carros que possuem a traseira mais solta e outros que so levados pelo nariz. Essas caractersticas derivam do projeto inicial do carro ou podem ser influenciadas pela aerodinmica ou pelas alteraes mecnicas (suspenso). Um carro que sai de frente tem mais aderncia no eixo traseiro; no limite, ele tender a seguir reto e ser mais fcil de corrigir (acelerando mais tarde, virando mais o volante) do que um que sai de traseira.H tambm um processo psicolgico que se reflete em cada tendncia. Um carro que sai de traseira manda um sinal de perigo-voc-pode-frear-e-virar-e-derrapar-de-traseira. No caso de um carro subesterante, o risco sair da pista e perder algum tempo, mas sem pr tudo em perigo. Sair de frente a opo mais segura, um pouco mais fcil de controlar, especialmente em todo o decorrer de uma corrida.Sempre me senti mais confortvel com um carro neutro. Mas, se tiver de escolher, prefiro muito mais aquele que subesterce ao que sai de traseira.A melhor sensao que j tive pilotando no aconteceu na Frmula 1, mas em 1985, em um BMW 635 Cup da equipe Schnitzer. O carro era enorme e talvez tivesse tudo a ver com o amor que os Schnitzer e a BMW devotavam ao automobilismo. Eles me davam a impresso de ter construdo o carro a meu redor. Eu estava sempre ansioso por entrar nele, e o carro parecia saber por si mesmo para onde eu queria que ele fosse. Ns nos entrosamos tanto que ningum conseguia me superar com um 635. O mesmo que acontecia com o Porsche ningum conseguia ser mais rpido com um 956 do que Stefan Bellof.O momento mais emocionante com o 635 aconteceu em Brnn, na antiga pista de corrida, que parecia ter sido feita para mim. O desafio mais irresistvel era atravessar o vilarejo depois da linha de chegada com o p no fundo um S que normalmente era tomado a 260 km/h e percorrido em quarta. Em uma fantstica oportunidade, consegui fazer tudo velocidade mxima, em quinta, todo o S, esquerda-direita-esquerda-direita. No preciso de muito para ficar feliz o mais importante para mim foi que as velhinhas que assistiam das janelas das casas no viraram a cabea imediatamente para ver o prximo carro. Pude ver pelo espelho que elas continuavam olhando para mim. E, de repente, quando as cabeas sumiram e no surgiram de novo at eu poder olhar novamente pelo espelho, tive certeza: Berger, desta vez voc foi mesmo rpido.

5A CONVIVNCIA COM SENNAMcLaren, 1990, 1991, 1992

Para a Frmula 1, sua morte foi como se o sol tivesse cado do cu.Senna tinha 21 anos de idade quando apareceu pela primeira vez em minha vida; eu tinha 22.Foi no final da temporada de 1981, quando ele venceu a corrida da Frmula Ford em Hockenheim. Durante o ano seguinte, eu ouviria trechos de conversas em que se comentava que, na Inglaterra, havia duas estrelas em minha faixa de idade. Uma era Senna; a outra, Martin Brundle. Nada que me impressionasse, eu s estava preocupado comigo mesmo e em descobrir como colocaria o mundo a meus ps, comeando pela Frmula 3 alem.A veio minha primeira temporada internacional e eu de vez em quando me encontrava com Senna. Uma vez, inocentemente, cheguei a perguntar para ele sobre sua regulagem para Silverstone. Ele me deu uma longa e amistosa resposta, e acho que foi a nica vez em sua vida que revelou a verdade sobre o acerto de seu carro para algum.Passado algum tempo, eu estava na corrida de Frmula 3, em Monte Carlo, e Senna j corria na Frmula 1, com a Toleman. Eu caminhava na pista e o encontrei, andando de bicicleta. Ele parou, conversamos, perguntei sobre como era estar na Frmula 1 e ele me deu uma resposta agradvel. Tivemos boas impresses um do outro.Um ano depois, 1985, eu tambm j estava na Frmula 1, com a Arrows. Senna pilotava um Lotus, uma categoria de carro completamente diferente, e nossos caminhos raramente se cruzavam. Eu no o considerava especialmente veloz, apesar de ser evidente que ele era um dos mais talentosos.Em 1986, com a Benetton, eu j havia me tornado to rpido que tnhamos de entrar em contato Senna prestava especial ateno s coisas que de alguma forma se colocassem em seu caminho e, eventualmente, atrapalhassem seus planos.Em 1987, eu guiava um Ferrari, que, na maioria das situaes, era superior ao Lotus. No entanto, Senna no conseguia aceitar o fato de um carro inferior transform-lo em um piloto mais lento do que qualquer outro isso, provavelmente, no existia para ele. Havia apenas Senna, e todos os outros deveriam ficar atrs dele. Uma vez, em Jerez, ele conseguiu dar a melhor largada, mas no tinha o carro mais rpido. Uma coluna de seis ou sete carros se formou atrs dele, inclusive o meu, todos querendo passar. Com uma pilotagem defensiva feroz, andando em ziguezague a maior parte do tempo, ele conseguiu segurar todo mundo. A coluna ficou mais e mais impaciente e, no fim das contas, em uma manobra mais desesperada, eu sa da pista. No final da prova, Senna, sentindo-se culpado, veio conversar comigo sobre o que tinha ocorrido. Na verdade, no havia o que comentar: ele aproveitou ao mximo a situao, portanto, meus parabns! Naquela poca, ele pouco se importava com a ttica de corrida; sua nica estratgia era: Eu quero ficar na frente e no vou deixar ningum me ultrapassar.Uma vez, eu estava tentando faz-lo frear, nossos pneus se tocando, e ele ficou para trs, o que no foi especialmente excitante de meu ponto de vista. J que tinha de ser algum, por que no ele? S depois de muito tempo eu descobri o quanto era importante para Senna ser ultrapassado em uma reta. Ele at mesmo me procurou, depois da prova, para dizer que certamente voc percebeu que, se eu no tivesse tirado o p no ltimo instante, teramos batido violentamente e sado da pista, etc. E eu pensei comigo que, claro, teramos sado da pista, pois isso o que acontece quando o outro piloto no desiste; tinha de ser daquele jeito. Mas eu apenas ri e disse que parecia ser aquilo mesmo.Passamos a conversar com mais freqncia e, quando ganhei as ltimas duas corridas de 1987, Suzuka e Adelaide, estvamos bastante emparelhados no que dizia respeito ao desempenho.Em 1988, ele mudou de equipe, guiou para a McLaren e tornou-se campeo pela primeira vez. Eu fiquei em terceiro, pela Ferrari.Em 1989, no Brasil, colidimos de novo e eu sa da prova. De qualquer maneira, foi um ano fraco para a Ferrari e, a meu ver, no havia razo para considerar Senna um piloto melhor do que eu. Foi por isso que no vi problema em me juntar a ele na McLaren em 1990, substituindo Prost.Alain Prost e Ayrton Senna se odiavam sincera e profundamente. Desconsiderando diferenas em termos de nacionalidade, cultura e personalidade, as exigncias da luta pelo primeiro lugar eram suficientes para lev-los a excessos emocionais.Essas presses existiam em nveis diferentes dentro da equipe, na Frmula 1 e perduraram por toda aquela poca. Foi uma coliso entre dois gigantes que, normalmente, teriam aparecido de forma mais bem distribuda ao longo dos anos, em perodos dominados cada vez por um piloto. Houve a era Lauda, a era Prost e a era Senna, mas, enquanto a transio entre Lauda e Prost foi mais ou menos suave, Prost e Senna se sobrepuseram na menor zona de tempo concebvel. Prost, duas vezes campeo mundial, ainda tinha seus melhores anos pela frente. Ele no estava de forma alguma em uma fase de declnio, o que teria tornado a transio de um mestre para outro bem mais fcil.Nelson Piquet, sem dvida, foi outro grande campeo dos anos 80, mas acho que a principal linha de transferncia do domnio da categoria se deu entre Lauda, Prost e Senna.Prost tinha aprendido de Lauda as manhas da Frmula 1 moderna e tcnica. Niki tinha descoberto que s possvel superar supertalentos como Ronnie Peterson com a cabea. Prestando ateno s coisas, pensando muito e descobrindo por que as coisas eram como eram, ele conseguiu ir bem mais longe. E Prost foi o primeiro a receber lies de Lauda, aprendendo como as coisas funcionavam.Ento, Senna se juntou a Prost na McLaren em 1988 e conseguiu se inserir na continuidade da transio entre Lauda e Prost. A seu imenso talento ele conseguiu juntar proveitosamente a transferncia de conhecimentos mais importante da Frmula 1.Depois de uma coliso em alta velocidade em Estoril, em 1988, o duelo Senna-Prost evoluiu para o terrorismo psicolgico e durou toda a temporada de 1989, prejudicando muito a qualidade de vida dos dois, especialmente a de Prost, que era mais velho. Por isso, em 1990, ele deve ter achado tentadora a possibilidade de comear tudo de novo na segunda melhor equipe. Seu estilo metdico de trabalho poderia assegurar que mesmo um grupo sem comando como a Ferrari voltasse trilha do sucesso. Eu, por outro lado, no poderia oferecer muito mais Ferrari do que meu talento, caso renovasse meu contrato. Eu s lucraria se fosse para a melhor equipe, a McLaren.Foi assim que ocorreu a troca de Prost por Berger entre a Ferrari e a McLaren para o campeonato de 1990. Senna/Berger de um lado, Prost/Mansell de outro. Em nossos calcanhares vinham, em seguida, a Benetton-Ford (Piquet/Nanini) e a Williams-Renault (Boutsen/Patrese).Eu era ingnuo, descuidado e estava feliz quando me tornei colega de Senna. As boas vibraes que sentamos um do outro s facilitaram as coisas para mim. Nossos apartamentos em Monte Carlo ficavam prximos eu e ele costumvamos sentar em seu terrao e gostvamos de falar sobre dinheiro, na realidade com uma freqncia surpreendente. Na poca, eu ganhava quase o mesmo que ele, o que me dava tranqilidade.Nossa primeira corrida na mesma equipe foi em Phoenix; eu consegui a pole e me senti o mximo.A corrida em si foi totalmente diferente. Alesi na frente, eu em segundo, Senna logo atrs de mim e uma situao estpida: eu era simplesmente muito grande para o carro, no conseguia achar uma boa posio para me acomodar, Senna em cima de mim e a sensao de que eu tinha de segur-lo. Assim, guiei no limite, desgarrei e acabei em uma barreira de pneus.Mais tarde, examinando aqueles tempos, percebi que Senna tinha perdido inicialmente meio segundo quando eu sa da pista, mas, ainda assim, conseguiu passar Alesi e ganhar a corrida de forma incontestvel. Quer dizer, ele ps uma presso mortal em cima de mim no momento certo, uma presso que nem ele conseguiria agentar por muito tempo. Esse tipo de timing combinava perfeitamente com seu espetacular esprito de combate.Naquele momento, tomei tudo como uma derrota pessoal e, pela primeira vez, concedi a Senna o status que o mundo do automobilismo j lhe tinha dado. Ao mesmo tempo, adquiri um respeito por ele que tornou tudo muito mais difcil para mim.Logo em seguida houve a corrida em sua casa, no Brasil, o que reacendeu minhas esperanas. Ele ganhou na classificao, mas, na corrida, Prost com seu Ferrari deixou ns dois na poeira. Eu estava mais uma vez sentado em uma posio nada confortvel, cada troca de marchas era um problema, mas Senna tinha acertado mal seu carro e eu consegui segur-lo no terceiro lugar.A houve aquele duelo maluco pela pole position em Imola, um passando frente, o outro melhorando, vai e vem, vai e vem. Estvamos sentados nos carros, esperando o final da classificao, e ele soltou o cinto de segurana, desceu e veio at meu carro. Bateu em meu ombro e disse: Isso est comeando a ficar perigoso, e ns dois rimos. De qualquer forma, largamos juntos na primeira fila em Imola, ele na pole position e, depois, liderando at sair da prova com uma roda quebrada. Mas eu no consegui impedir que Patrese vencesse e isso, provavelmente, derrubou meu moral ainda mais.E, ento, Monte Carlo!Quarta corrida, nova derrota.At a Rascasse, o computador mostrava que eu estava mais rpido do que Senna. Um erro estpido ao frear, e ele passou frente, conseguiu a pole e ganhou a corrida. De certa forma, isso no deveria causar espanto, pois ele era um gigante naquela pista, era sua pista. Mas o que aconteceu foi que ele cresceu alm da realidade em minha mente e, assim, as coisas comearam a se empilhar, umas sobre as outras. Ele se tornou mais e mais forte, e eu, mais e mais fraco.

Na metade da temporada, tive de admitir que ele era melhor do que eu. Talvez fosse por sua experincia de ter pilotado karts desde cedo, como depois ocorreria com Schumacher, mas isso no importava: ele tinha algo mais do que eu e eu queria aprender.Essa fase de aprendizado foi boa para mim, mas definitivamente no ajudou em nossa competio homem a homem, pois simplesmente impossvel derrotar o prprio mestre.O que eu precisava aprender com ele poderia ser dividido em trs reas.Primeira: ele prestava muito mais ateno do que eu nos assuntos tcnicos, tendo, portanto, mais conhecimentos e sendo mais bem-sucedido em suas regulagens.Segunda: fisicamente, apesar de sermos igualmente velozes, ele ac