berger 2000 cap 2 perspectivas sociologicas opt

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    2A Sociologia como Fonna

    de ConscinciaCASO TENHAMOS SIDO BASTANTE CLAROS NO CAPiTULOanterior, sera possvel aceita r a sociologia como uma preo-cupao intelectual de interesse para certas pessoas. En-tretanto, parar ai seria realmente muito pouco sociolgico.O simples fato de a soc iologia ler surgido como disciplina num certo estgio da histria ocidental nos develevar ,tambm a indagar como possvel a certos indivduos -se ocuparem de sociologia e quais so as prcondies para essa ocupao. Em outras pa lavras, a sociolog ia no uma atividade imemorial ou necessria doesprito humano. Admitindo-se isto, ocorre logicamenteindagar a respeito dos fatores que a transformaram numanecessidade para determinados homens. Na verdade, poss vel que nenhuma atividade intelectual seja imemorialou necessria. No entanto, a relig io, por exemplo, temquase universalmente gerado uma intensa preocupaodurante toda a histria humana, enquanto a elocubraodos problemas econmicos da existncia tem constitudouma necessidade na maioria das culturas humanas. E'evidente que isto no quer d izer que a teologia ou aeconomia, no sent ido contemporneo, sejam fenmenosespirituais universais, mas podemos com plena seguranaafirmar que os seres humanos sempre pareceram dedicarateno aos problemas que hoje constituem o lema dessasdisciplinas. Contudo, nem mesmo isto se pode dizer dasociologia, que se afigura como uma cogitao peculiar-

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    cunstncias que homens argutos so suscetve is deserem motivados para pensar alm das assertivas dessaauloconccpo e, em decorrncia disto, contestar as autoridades. Com muita propriedade, Albert Salomon argumentou que o co nceito de "sociedade" , em seu modernosentido sociolgico, s pde surgir com a derrocada dasestruturas normativas do cristianismo e, mais tarde, doancien rgime. Podemos, ento, conceber a "sociedade"tambm como a estrutura oculta de um edificio, cujachada exterior oculta aquela estrutura. Na cristandademedieval, a "sociedade" era tornada invisivel pela i m p onente fachada religioso-poltica que constituia o mundocomum do homem europeu. Como observou Salomon ,depois que a Reforma destruiu a unidade do c r i s t i a n i smo, a fachada poltica mais secular do Es.ado a b s o ~ u -tista desempenhou a mesma funo. Foi com a desIntegrao do Estado absolutista que se pde enxergaro arcabouo subjacente da "sociedade" - isto , ummundo de motivaes e foras que no podia ser compreendido em termos das interpretacs oficiais da realidade social. A perspectiva sociolgica pode ento sercompreendida em termOS de uma frase coloquial como"olhar por Irs dos bastidores".

    No estaremos muito distantes da verdade se virmos pensamento sociolgico como parte daquilo a queNietzsche chamou de "a arte da desconfiana". Entretanlo, seria um exagero simp lista supor que essa artes tenha existido nos tempos modernos. E' provvel que"olhar por trs" seja uma funo bastante geral da inteligncia, mesmo nas mais primitivas sociedades. O antroplogo americano Paul Radin j nos proporcionou umavivida descri30 do ctico como tipo humano numa cultura primitiva. Dispomos ainda de dados de outras civilizaes, alm das do Ocidente moderno, que revelam formasde conscincia que bem poderiam ser chamadas de protosociolgicas. Poderamos mencionar, por exemplo, Herdoto ou Ibn -Khaldun. Existem inclusive textos do antigo Egito que mostram um profundo desencanto com umaordem poltica e social que adquiriu a reputao de ter

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    sido uma das mais coesas da histria humana, Contudo,com a alvorada da era moderna no Ocidente, essa formade conscincia se intensifica, torna-se concentrada e sistematizada, caracteriza o pensamento de um nmero cadavez maior de homens argutos. No cabe aqui analisarem detalhes a pr' - histria do pensamento sociolgico,assunto no qual muito devemos a Salomon. Nem mesmodaramos aqui uma tabela intelectual dos ancestrais dasociologia, demonstrando suas ligacs com Maquiavel,Erasmo, Bacon, com a filosofia do sc. XVII e com asbelles-lettres do sc. XVIII - isto j foi feito por outros,bem mais qualificados que este autor. Bastar acentuarmais uma vez que o pensamento sociolgico marca oamadurecimento de vrias correntes intelectuais que p0 -dem ser localizadas com toda preciso na moderna histria ocidental.Voltemos afirmao de que a perspectiva sociolgica envolve um processo de ver alm das fachadas dasestruturas sociais. Poderamos traar um paralelo comuma experincia comum das pessoas que moram nasgrandes cidades. Uma das coisas que uma metrpole tmde mais fascinenle a imensa variedade de atividadeshumanas que tm lugar por trs das fileiras de edifciosde uma anonimidade e interminvel semelhana. Umapessoa que viva numa tal cidade muitas vezes se sentir surpreso ou ate chocado ao descobrir as estranhas

    atividades de que alguns homens se ocupam sem alardee em casas que, vistas de fora, assemelham-se a todasas outras de determinada rua. Depois de passar poressa experincia uma ou duas vezes, muitas vezes umapessoa se ver caminhando por uma rua, talvez tarde danoi le, e imaginando o que estar acontecendo sob asluzes brilhantes por trs de cortinas cerradas. Uma famlia comum conversando agradavelmente com convidados? Um a cena de desespero em meio a doena oumorte? Ou uma cena de prazeres depravados? Ta lvezum cullo estranho ou uma perigosa conspirao? As fachadas das casas nada nos podem dizer, nada revelandoseno uma conform idade arquitetnica aos gostos de41

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    algum grupo ou classe que talvez nem mais habite na-quela rua. Por Irs das fachadas escondem-se os mistrios sociais. O desejo de desvendar esses mistrios anlogo curiosidade sociolgica. Em certas cidades su -bitamente atingidas pela calamidade, esse desejo podeser bruscamente realizado. Quem j passou pela expe-rincia de bombardeios em tempo de guerra conhece osrepentinos encontros com insuspeitados (e s vezes inimaginveis) condminos no abrigo antiaereo do edifcio. Ouse lembra de ler visto com espanto, de manh, uma casaatingida por uma bomba durante a noite, cortada aomeio, com a fachada destruda e o interior impiedosamente revelado luz do dia. Entretanto, na maioria dascidades em que normalmente se vive s se pode conheceresses interiores mediante um exerccio de imaginao. Damesma forma, h situaes histricas em que as fachadas da sociedade so violentamente derrubadas e s osmais displicentes deixam de ver que nunca deixou dehave r uma realidade por trs das fachadas. Geralmenteisto no acontece e as fachadas continuam a nos desa-fiar com uma permanncia aparentemente inabalvel.Nesse caso, para se perceber a realidade que as fachadasocultam preciso um considervel esforo intelectual.

    Talvez convenha, em ateno clareza, mencionara lguns exemplos da maneira como a sociologia olha almdas fachadas das estruturas sociais. Tomemos, comoexemplo, a organizao poltica de uma comunidade. Sealgum desejar saber como uma moderna cidade ame-ricana governada, nada mais fcil que obte r as informaes oficiais a respeito . A cidade ter um estatuto,de conformidade com as leis do Estado. Com algumaajuda de pessoas bem informadas, pode-se examinar osvrios documen tos pelos quais a cidade administrada.Pode-se ento descobrir que essa comunidade administrada por um gerente municipal (e no por um pre-feito), ou que filiaes partidrias no figuram naschapas de eleies municipais ou que o governo municipal integra um dist rito de guas regional. Da mesmaforma, lendo-se um jornal, pode-se ficar a par dos pro.

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    blemas polticos, oficialmente reconhecidos, da comunidade. Pode-se ficar sabendo que a cidade planeja anexaruma determinada rea suburbana, ou que ocorreu umaalterao de pos turas para facilitar o desenvolvimento industrial de uma outra rea, ou at mesmo que um dosvereadores foi acusado de trfico de influncia. Tudoisto ainda ocorre ao nvel, por assim dizer, visvel, oficial ou pblico, da vida poltica. Entretanto, s umapessoa irremediavelmente ingnua acreditaria que essetipo de informao lh e proporcione um quadro completoda realidade politica da comunidade. O socilogo deseja-r conhecer acima de tudo a "estrutura informal depoder" (como foi ch amada por Floyd Hunte r, socilogoamericano interessado por esses estudos). que constituiuma configurao de homens e poder que no se encontra descrita nos estatutos e que raramente aparece noSjornais. Talvez o cientista poltico ou o especialista juri-dica achassem muito interessante comparar as leis municipais com as de out ras comunidades. O soci logo estarmuito mais interessado em descobrir a man ei ra como poderosos inleresses influenciam ou mesmo controlam asaes de autoridades eleitas segundo as leis. Esses interesses no sero encontrados na prefeitura, e sim nosescritrios de dirigentes de empresas que talvez nem mesmo se locali zem nessa comunidade, nas manses privadas de um punhado de homens poderosos, talvez nosescritrios de certos sindicatos trabalhistas ou at mesmo,em certos casos, nas sedes de organizaes criminosas.Quando o socilogo se interessa por poder, olhar atrsdos mecanismos oficiais que supostamente regem o podernaquela comunidade. Isto no significa necessariamenteque ele encare os mecanismos oficiais como totalmenteineficientes ou sua definio legal como totalmente ilusria. Entretanto, na pior das hipteses ele insistir emque existe outro nvel de realidade a ser investigadono sistema particular de poder. Em alguns casos elehaver de concluir que procurar o poder real nos lugarespublicamente reconhecidos inteiramente intil.

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    Vejamos outro exemplo. Nos Estados Unidos, as vrias~ e n o m i n a e s protestantes diferem amplamente quantoa. sua chama.da "constituio", ou seja, a definio oficIa! da manC1ra como a denominao governada. Podese falar de uma "constituio" episcopal, presbiterianaou congregaciona! (referindo-se no s denominaesconhecidas por e ~ s e s nomes, e sim s formas de administrao eclesistica compartilhada por vrias denominaes - por exemplo, a forma episcopal partilhadapelos metodisfas, ou a forma congregacional, partilhadapelos congregacionais e pelos batistas). Em quase todosos casos, a "constituio" de urna denominao o resultado de um longo desenvolvimento histrico e se base ianuma premissa teolgica, a respeito da qual os peritosem doutrina continuam a discutir. No entanto, o socilogoque estivesse interessado em estudar a administrao dasdenominaes americanas agiria bem se no se detivessepor muito tempo nessas definies oficiais. Logo descobrir que as questes reais de poder e de organ izaotm pouco que ver Com "constituio" 110 sentido teolgico. Perceber que a forma de organ izao bsica emtodas as denominaes, de qualquer tamanho, e burocrtica. A lgica do comportamento administrativo determinada por processos burocrticos, e s muito raramentepelas conseqncias de um ponto de vista episcopal oucongregacionaJ. Ento, o investigador sociolgico logoenxergar alm da massa de confusa terminologia quedesigna os titulares de cargos na burocracia eclesistica,e _ d ~ n t i f i c a r corretamente os detentores do poder real,nao. noporla que sejam chamados de "bispos", "funcionnos delegados" ou "presidentes de snodo". Ao perceber que a organizao dcnominacional integ ra-se noquadro muito mais amplo da burocracia, o socilogo ser

    c a p ~ z de apreender os processos que OCor rem na organizaao, observar as presses internas e externas exercidassobre aqueles que teoricamente governam a denominao.Em outras palavras, por trs da fachada de "constituio episcopal", o socilogo perceber o funcionamentode uma mquina burocrtica sempre muito parecida em

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    toda parte, quer na Igreja Metodista, numa repartiodo governo federal, na General Molors ou no Sindicatodos Trabalhadores da Indstria de Veculos Automotores.Examinamos outro exemplo, tirado da vida econmica.O gerente de pessoal de uma fabrica prepara com omximo prazer organogramas multicores que supostamen

    te representam a organizao do processo de produo.Cada pessoa tem seu lugar, sabe de quem recebe ordense a quem as transmite, cada equipe conhece seu papelno grande drama da produo. Na realidade, porm, ascoisas raramente correm assim - como sabe todo bomgerente de pessoal. Ao ' esquema oficial de organizaosobrepe-se uma rede muito mais sutil, muito menos visivel, de grupos humanos, com suas lealdades, preconceitos, antipatias e, principalmente, cdigos de comportamentO. A sociologia industrial est entulhada de dadosa respeito do funcionamento dessa rede informal, quesempre existe em vrios graus de acomodao e conflitocom o sistema oficial. De certo modo, a mesma coexistncia de organizao formal e informal encontradaonde quer que grande nmero de homens trabalhem ouvivam juntos sob um sistema disciplinar - organizaes militares, prises, hospitais, escolas - e que remonta s misteriosas ligas que as crianas formam entresi e que s raramente so percebidas por seus pais. Osocilogo ter de mais uma vez tentar furar a cortinade fumaa das verses oficiais da realidade (as do capataz, oficial ou professor) e tentar captar os sinais queso emitidos do "submundo" (os do trabalhador, dosoldado, do aluno).

    Mais um exemplo. Supe-se geralmente nos pases ocidentais (e sobretudo nos Estados Unidos) que homense mulheres se casem porque estejam apaixonados. Segundo um arraigada mitologia popular, o amor umaemoo de carter violento e irresistivel que ataca aoacaso, um mistrio que constitui a meta da maioria dosjovens e muitas vezes de pessoas j no to jovens.Entretanto, assim que se comea a investigar um numerorepresentativo de casamentos, percebe-se que a flecha do

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    valores de classe media, respeitveis, publicamente aprovados. Haver um "problema" se adolescentes dirigemcarrOs roubados, e uma "soluo" se em lugar dissopraticarem esportes no ncleo de assistncia social. Masse mudarmos o quadro de referncia e olharmos a sit uao do ponto de visla dos lideres da quadrilha juvenil,os " problemas" es taro definidos ao inverso. Haver um"problema", para a coeso da quadrilha, se seus membrosforem afastados das atividades que conferem preslfgio quadrilha dentro de seu prprio mundo social, e uma"soluo" se os assistentes sociais desistirem e voltarempara o lugar de onde vieram. Aquilo que constitui um"p roblema" para um sistema social a ordem normaldas coisas para outro, e vice-ve rsa. Lealdade e deslealdade e traio so definidos em termos contraditriospelos representantes dos dois sistemas. Em termos de seusprprios valores, o socilogo poder considerar o mundoda respe itabilidade burguesa como mais conveniente, epor isso poder desejar acorrer em auxlio dos assistentes sociais, missionrios da classe mdia entre osinfiis. Isto, contudo, no justifica a identificao dasdores de cabea do diretor com aquilo que constituios "problemas" do ponto de vista sociolgico. Os "pro-blemas" que o socilogo desejar resolver referem-se auma compreenso da situao social em seu todo, aosvalores e mtodos de ao em ambos os sistemas e maneira como os dois sistemas coexistem no tempo e noespao. Na verdade, como veremos mais adiante, exatamente essa capacidade de olha r uma situao dos pontosde vista de sistemas interpretativos antagnicos que constitui uma das caracteristicas da conscincia sociolgica.Poderamos dizer, portanto, que a conscincia sociolgica seja inerentemente desmistificadora. Com muita freqncia, o socilogo ser levado, pela prpria lgica desua disciplina, a desmistificar os sistemas sociolgicosque estud a. Essa tendfncia no se deve necessariamenteao temperamento ou s inclinaes do socilogo. Naverdade, poder acontecer que o socilogo, ainda quede temperamento acomodaticio e nada propenso a pertur-

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    bar os cmodos pressupostos em que baseia sua prpriaexistncia social, seja forado, por sua atividade, a insultar aquilo que todos sua volta tomam como pontopacifico. Em outras palavras, diriamos que as razes dadesmistificao na sociologia no so psicolgicas e simmetodolgicas. O quadro de referncia sociolg ico, comseu mtodo inerente de procura r outrOS nveis de realidade alm dos definidos pelas interpretaes oficiais dasociedade, traz consigo um imperativo lgico de desmascarar as simulacs e a propaganda com que os homensocultam suas aes reciprocas. Esse imperat ivo desmistificador um a das caracteristicas da sociologia que melhor se ajustam ao esprito da era moderna.A tendncia desmislificadora do pensamento sociolgico pode se r ilu strada de vrias maneiras. Por exemplo,um dos temas principais na sociologia de Max Weber o das conseqncias involuntrias e imprevistas dasaes humanas na sociedade. A obra mais famosa deWeber, "A tica Protestante e o Esprito do Capitalismo ", na qual ele demonstrou a relao entre certas Con-seqncias dos valores protestantes e o surgimento doethos capitalista, tem sido mui tas vezes mal compreendida,exatamente porque seus detratores no entenderam esselema. Observam eles que os pensadores protestantes citados por Weber jamais pre tenderam que seus ensinamentos fossem aplicados de maneira a produzir os resultados econmicos especificas em questo. Especificamente, Webcr argumentou que a doutrina calvinista da predestinao fz com que muita gente se comportasse damaneira que ele chamou de "mundanamente asctica",isto , de uma maneira que se ocupa intensa, sistemticae abnegadamente com as coisas do mundo, sobretudoem questes econmicas. Os crticos de Weber tm observado que nada estava mais distante do esprito de Calvino e de outros mentores da Reforma calvinista. Noentanto, Weber nunca declarou que o pensamento calvinista pretendesse gerar esses padres econmicos. Pelocontrrio, ele sabia que as intenes eram drasticamente diferentes. As conseqncias OCorrem apesar das in-

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    tencs. Em outras palavras, a obra de Weber (e n.ioapenas seu trecho famoso que acabamos de mencionar)proporciona uma imagem vvida de ironia das aes hu-manas. Po r consegu inte, a sociologia de Weber ofereceno suma anti tese rad ical a quaisquer concepes quevejam a Histria corno uma concret izao de idias oucomo fruto dos esforos deliberados de indivduos oucoletividades. Isto no signif ica, absolutamente, que asidias no sejam importantes. Significa apenas que commuita freqncia o resultado das idias muito diversodaquilo que os formuladores das idias planejaram ouesperaram. Tal conscincia do aspec to irOnico da histrialev a moderao, constitui forle antdoto a todos ostipos de utopia revolucionria.. A tendncia desmistificadora da sociologia est implcita em todas as teorias sociolgicas que do nfase aocarter autnomo dos processos sociais. emile Durkheim,por exemplo, fundador da escola mais importante da sociologia francesa, frisava que a sociedade era uma realidade sui generis, ou seja, uma realidade que no podiaser reduzida a fatOres psicolgicos ou de oulra naturezaem diferentes nveis de antise. O efeito dessa insistncia tem sido uma desconside rao lotai de motivos esignificados individuais de vrios fenmenos. E' possvelque iSlo tran sparea COm mais nitidez no conhecido es-tudo de Durkheim sobre o suicdio, onde as intencsindividuais das pessoas que cometem ou tenlam cometersuicdio so inteiramente postas de lado na anlise, emfavor de estatisticas referentes a vrias caractersticassociais dos individuas. Segundo a perspectiva durkheimia na, viver em sociedade significa existir sob a dominao da lgica da sociedade. Com muita freqilncia,as pessoas agem segundo essa lgica sem o perceber.Porlanto, para descobrir essa dinamica interna da sociedade, o socilogo ter muitas vezes de desprezar as res-postas que os prprios atores soc iais dariam a suasperguntas e procurar as explicaes de que eles p r ~prios no se do conla. Es la atitude essencialmentedurkheimiana foi levada abordagem terica hoje cha-

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    mada funcionalismo. Na anAlise funcional, a sociedade anahsada em termos de seus prprios mecanismos comosistema, e que muitas vezes se apresen tam obscuros ouopacos queles que atuam dentro do sistema. O socilogo americano contemporaneo Robert Merlon expressoubem essa abordagem em seus conceitos de funes "ma-nifestas" e "latentes". As primeiras so as funes c o n s ~cientes e deliberadas dos processos sociais, as segundasas funes inconscientes e involuntrias . Assim, a funo"manifesta" da legislao antijogo pode ser suprimir ojogo, e funo " latente" criar um imprio ilegal paraas organizaes de promoverem o jogo clandestino. Misses crists em certas partes da frica tentaram "ma-nifestamente" converter os africanos ao cristianismo masajudaram " latentemente" a destruir as culturas t:ibais,proporcionando condies para rpida transformao social. O controle do Partido Comunista sobre todos ossetores da vida social na Rssia, que visava "manifestamente" a assegurar a manuteno do ethos revolucionrio, criou "latentemente" uma nova classe de acomodadosburocratas sinistramente burgueses em suas aspiraese cada vez menos inclinados ao sacrifcio da dedicaobolchevista. A funo "manifesta" de muitas associaesvoluntrias nos Estados Unidos sociabilidade e contribuio para o bem pblico, e sua funo "Iatenle" conferir smbolos de status aos que delas participam.

    O conceito de "ideologia", central em algumas teoriass o c i o l ~ i c a s , ~ e ~ i ~ servir como outro exemplo para at e n d ~ n c l a desmlsllflcadora que estamos discutindo. Ossocilogos falam de "ideologia" ao se referir a concep-es que servem para justificar os privilgios de algumgrupo. Com muita freqncia, tais concepes destorcemsistematicamente a realidade social, da mesma forma comoum individuo neurtico pode negar, deformar ou reinlerptetar aspectos de sua vida que lhe sejam inconvenientes. Essa perspectiva ocupa lugar central na impor.fante abordagem do socilogo italiano Vilfredo Patetae, corno veremos num capitulo posterior, o conceito de"ideologia" essencial para a abordagem denominada

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    desmistificao, mas que no lhe idntico - seu fascinio com a concepo no respeitavel da sociedade.Em toda sociedade, pelo menos no Ocidente, pode-sedistinguir setores respeilveis e no respeitveis. Nessesentido, a sociedade americana no ocupa posio singu la r. Entretanto, a re3peitabilidade americana possuiuma qualidade particularmente onipresente. E' possvelque isto possa ser atribudo, pelo menos em parte, aosduradouros efeitos colaterais do estilo de vida puritano.E' mais provvel que esteja relacionado com o papelpreeminente desempenhado pela burguesia na formaoda cultura americana. Quaisquer que tenham sido suascausas histricas, no difcil classificar prontamente os

    fenmenos sociais americanos em algum desses dois setores. Podemos perceber a Amrica oficial, respeitvel,representada simbolicamente pela Cma ra de Comrcio,pelas igrejas, escolas e outros centros de ritual cvico.Entretanto, ao lado desse mundo de respeitabilidade existe uma "outra Amrica", presente em toda cidade, pormenor que seja, uma Amrica que tem oulros smbolose que fala outra lngua. E' provvel que essa linguagemseja seu mais seguro rlulo de identificao. E' a linguagem do sa lo de s inuca e do jogo de pquer, dosbares, lupanares c qua rtis. Mas tambm a linguagemque irrompe, com um suspiro de alivio, entre dois vendedores que bebem juntos no carro-restaura nte enquantoseu trem passa por cidadezinhas do Meio Oeste numamanh de domingo, enquanto os pacatos moradores dolugar acorrem aos santurios caiados. E' a linguagemreprimida diante de senhoras e clrigos, e que deve suaexistl!ncia sobretudo transmisso oral entre geraesde Huck leberry Finns (muito embora nos ultimas anosessa linguagem haja ganho lugar em livros dest inadosa excitar senhoras e clrigos). A "outra Amrica" quefala essa linguagem pode ser encontrada em toda parteem que certas pessoas so excludas, ou se excluem, daconvenincia da classe mdia. Encontramo-Ia naq uelesselares da classe trabalhadora que ainda no se encontram muito adiantados no caminho do aburguesamento,

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    nos. cortios, favelas e naquelas reas das cidades que osS O C l l o ~ o s urbanos chamam de " reas de transio". Elase mamfesta poderosamente no mundo do negro american o. Tambm a encontramos nos submundos daquelesqu e. por um motivo ou outro, se afastaram voluntariamente. da burguesia - nos mundos dos hippies, homossex uaiS, vagabundos e Outros "marginais", cujos mundosso mantidos cuidadosamente longe das ruas em que aspessoas decentes moram, trabalham e se divertem tnfam illt (ainda que em algumas ocasies esses mundossejam bastante convenientes para o macho da espcie"pessou decentes" - justamente nas ocasies em queele se enCOntra exultantemente sons famillt).A sociologia americana, aceita desde cedo tanto nosclrculos acadmicos como pelas pessoas ligadas a ativi.dades de bem-estar social, foi logo associada "Amri,ca oficial ", ao mu.nd o dos que tomam as decises, emmvel m ~ ~ a l e n a C l ~ a l . Ainda hoje a sociologia conserva essa hllao respeitvel nas un ive rsidades, nos crculos econm icos e no governo. A designao raramente provoca desagrado, f'xceto por parte de racistas sulistas suficientemente letrados para terem lido as notas de pdepgina da deciso dessegregacionista de 1954. Entretanto, diramos que tem existido uma co rrente importante nasociologia am ericana, que a associa "outra Amrica" delinguagem desabrida de atitudes chocantes, aquele estadode esprito qu e no se deixa impressionar, comover ouenganar pejas ideologias oficiais.

    E s ~ a perspediva marginal no cenrio americano podeser vista com toda clareza na figura de Thorstein Veblen,um dos mais importantes socilogos dos Estados Unidos.Sua prpria biografia constitui exercicio de marginalis-'mo: um temperamento difcil, pol@mico; nasceu numa fa~ e n d a norueguesa na fronteira do Wisconsin; aprendeuIngU!s como uma lngua estrangeira; envolveu-se durantea vida com indivlduos moral e politicamente suspeitos; um migrante de un iversidades; um inveterado sedutor de mulheres alheias. A perspectiva da sociedadeamericana proporcionada por esse ngulo de viso pode

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    maes claro" - isto , afirmaes que representamum consenso to forte que a resposta a qualquer pergunta a seu respeito ser habitualmente precedida pelaexpresso " claro". "Nossa economia de livre iniciativa?" "E' claro!" "Todas nossas decises importantes sotomadas atravs do processo democrtico?" "E' claro!""A monogamia a forma nat ural do casamento?" "E 'claro!" Por mais conservador e conformista que seja osocilogo em sua vida privada, ele sabe que h questessrias a serem levantadas com relao a cada uma dessasafirmaes. Basta essa tomada de conscincia para conduzi-lo ao limiar da no-respeitabilidade.

    Esse tema de no-respeitabilidade da conscincia sociolgica no implica necessariamente numa atitude revolucionria. Estamos dispostos a ir ainda mais longe edizer que a percepo sociolgica refratria a ideologiasrevolucionrias, no porque traga consigo alguma espciede preconceito conservador, e sim porque ela enxerga nos atravs das iluses do status quo atual como tambmatravs das expectativas ilusrias concernentes a possveis futuros, sendo tais expectativas o costumeiro al imento espiritual dos revolucionrios. Em nossa opinio, essasobriedade no-revolucionria e moderadora da sociologia altamente valiosa. O lamentvel, do ponto de vistade uma pessoa, o fato de que a compreenso sociolgica por si s no leva necessariamente a maior tolerncia em relao s fraquezas do gnero humano.Pode-se ver a realidade social com compaixo ou comcinismo - ambas atitudes so compatveis Com lucidez.Entretanto, quer encare compassiva ou cinicamente os fenmenos que estude, em maior ou menor grau o socilogo abandonar os pressupostos no analisados de suasociedade. Quaisquer que sejam suas ramificaes nasemoes e na vontade, a no-respeitabilidade deve continuar sempre como uma possibilidade constante namente do socilogo. Ela poder ser segregada do restode sua vida, obscurecida pelos estados mentais rotineirosda existncia cotidiana ou at mesmo negada ideologi-

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    camen te. Contudo, a respeitabilidade total de pensamentodeterminar invariavelmente a morte da sociologia. Esse um dos motivos pelos quais a verdadeira sociologiadesaparece imediatamente nos pases totalitrios, comobem exemplifica o caso da Alemanha nazista. Por extenso, a compreenso sociolgica sempre potencialmente perigosa aos olhos de policiais e outros guardiesda ordem publica, uma vez que ela tender sempre arelativizar a pretenso de absoluta correo em que taispessoas gostam de repousar o esprito.

    Antes de concluirmos este capitulo, gostariamos deexaminar mais uma vez este fenmeno de relativizaoa que j nos referimos algumas vezes. Diriamos agoraexplicitamente que a sociologia est muito sintonizadacom o carter da era moderna justamente por representar a conscincia de um mundo em que os va lorestm sido radicalmente relativizados. Essa relativizaopassou a integrar de tal forma nossa imaginao quese torna difcil para ns perceber plenamente at queponto foram (e em alguns lugares anda so) fechadase absolutamente compulsrias as cosmovises de outrasculturas. Em seu estudo do Oriente Mdio contemporne o (The Passing of Traditional Society) , o socilogoam ericano Daniel Lerner nos proporcionou uma imagemba stante vvida do que significa "modernidade" comoum tipo de conscincia inteiramente nov o nesses pases.Para o espirito tradicional, um homem o que , ondeest, e se torna impossvel sequer imaginar que as coisaspoderiam ser diferentes. O esprito moderno, em contraste, mv el, participa vicariarnente das vidas de outras pessoas, localizadas em outras partes, imagina com todafacilidade uma mudana de ocupao ou residncia. Assim,Lerner constatou que alguns dos analfabetos que respondiam a seus questionrios no tinham outra reaoseno o riso ao lhes ser perguntado o que fariam se estivessem na situao de seus governantes, e nem sequerconsideravam a pergunta sobre as circunstncias em queestariam dispostos a deixar a aldeia natal. Em outraspalavras, as sociedades tradicionais conferem identida-

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