gente como a gente

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‘Gente como a gente’ O conceito de homem anatomicamente moderno Permitam-me começar com uma pergunta um tanto cômica. Por que o homem de Cro-Magnon não andava de bicicleta? Apresento em primeiro lugar a resposta que sem dúvida parece óbvia: não é que lhe faltassem os pré-requisitos anatômicos para tal proeza, simplesmente ele viveu numa era muito anterior a que algo tão engenhoso e complexo como uma bicicleta tivesse sido desenvolvido. E mesmo que tivesse, considerando-se a natureza do terreno e o modo de subsistência predominante, uma bicicleta provavelmente teria sido muito pouco útil para ele. Em outras palavras, embora ele estivesse biologicamente preparado para subir no selim, as condições culturais para que andar de bicicleta fosse uma opção viável ainda estavam ausentes. Eu pretendo mostrar, entretanto, que esta resposta está seriamente equivocada, e que a busca por uma alternativa mais satisfatória obriga a uma revisão fundamental das nossas noções mais básicas de evolução, de história e mesmo da própria humanidade. Em especial, quero argumentar que a ideia de “homem anatomicamente moderno”, o pivô em torno do qual giram todas essas outras noções, é uma ficção analítica cuja principal função é encobrir uma contradição situada no cerne da biologia evolutiva moderna. O homem de Cro-Magnon, descoberto por Louis Lartet na vila de Les Eyzies, França, em 1868, adquiriu a aura de “moderno” prototípico, embora não seja de modo algum o mais antigo representante de seu tipo no registro fóssil. Comparado a seus predecessores os Neandertais “arcaicos” e, ainda antes, o Homo erectus esse tipo era reconhecivelmente diferente: uma espécie de homem, como escreveu William Howells, “inteiramente como nós” (1967: 240). Na paleoantropologia contemporânea, os Cro-Magnons são incluídos, juntamente com todas as populações humanas subsequentes e atuais, no táxon subespecífico único Homo sapiens sapiens. E a implicação dessa categorização é que, ao menos no que diz respeito a seus dotes biológicos, estes indivíduos do Paleolítico Superior estavam dentro do espectro de variação da subespécie. Se tivessem nascido em nosso tempo, e crescido em uma sociedade como a nossa, eles seriam sem dúvida capazes de fazer todas as coisas que nós fazemos: ler e escrever, tocar piano, dirigir, andar de bicicleta e assim por diante. Ou seja, eles tinham o potencial para fazer todas essas coisas, um potencial que, contudo, permaneceu irrealizado no decurso de sua existência.

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Relação humanos e não humanos

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  • Gente como a gente O conceito de homem anatomicamente moderno

    Permitam-me comear com uma pergunta um tanto cmica. Por que o

    homem de Cro-Magnon no andava de bicicleta? Apresento em primeiro lugar a

    resposta que sem dvida parece bvia: no que lhe faltassem os pr-requisitos

    anatmicos para tal proeza, simplesmente ele viveu numa era muito anterior a que

    algo to engenhoso e complexo como uma bicicleta tivesse sido desenvolvido. E

    mesmo que tivesse, considerando-se a natureza do terreno e o modo de

    subsistncia predominante, uma bicicleta provavelmente teria sido muito pouco til

    para ele. Em outras palavras, embora ele estivesse biologicamente preparado para

    subir no selim, as condies culturais para que andar de bicicleta fosse uma opo

    vivel ainda estavam ausentes. Eu pretendo mostrar, entretanto, que esta resposta

    est seriamente equivocada, e que a busca por uma alternativa mais satisfatria

    obriga a uma reviso fundamental das nossas noes mais bsicas de evoluo,

    de histria e mesmo da prpria humanidade. Em especial, quero argumentar que a

    ideia de homem anatomicamente moderno, o piv em torno do qual giram todas

    essas outras noes, uma fico analtica cuja principal funo encobrir uma

    contradio situada no cerne da biologia evolutiva moderna.

    O homem de Cro-Magnon, descoberto por Louis Lartet na vila de Les

    Eyzies, Frana, em 1868, adquiriu a aura de moderno prototpico, embora no

    seja de modo algum o mais antigo representante de seu tipo no registro fssil.

    Comparado a seus predecessores os Neandertais arcaicos e, ainda antes, o

    Homo erectus esse tipo era reconhecivelmente diferente: uma espcie de

    homem, como escreveu William Howells, inteiramente como ns (1967: 240). Na

    paleoantropologia contempornea, os Cro-Magnons so includos, juntamente com

    todas as populaes humanas subsequentes e atuais, no txon subespecfico

    nico Homo sapiens sapiens. E a implicao dessa categorizao que, ao menos

    no que diz respeito a seus dotes biolgicos, estes indivduos do Paleoltico Superior

    estavam dentro do espectro de variao da subespcie. Se tivessem nascido em

    nosso tempo, e crescido em uma sociedade como a nossa, eles seriam sem dvida

    capazes de fazer todas as coisas que ns fazemos: ler e escrever, tocar piano,

    dirigir, andar de bicicleta e assim por diante. Ou seja, eles tinham o potencial para

    fazer todas essas coisas, um potencial que, contudo, permaneceu irrealizado no

    decurso de sua existncia.

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  • Eu gostaria de retornar agora caracterizao de Howells dos Cro-Magnons

    como gente inteiramente como ns, com o propsito, nesta etapa do argumento,

    de apresentar o que acredito ser a posio ortodoxa na antropologia atual. Poder-

    se-ia objetar que eles no eram de modo algum como ns. Afinal de contas, no

    viviam em cidades, liam livros, escreviam monografias cientficas, tocavam piano

    ou dirigiam carros. A este tipo de objeo, duas rplicas surgem imediatamente.

    Uma delas salientar que a objeo se baseia numa viso estreita e etnocntrica

    de quem somos ns, uma viso que excluiria uma grande proporo da prpria

    humanidade contempornea. Ao se comparar populaes do Paleoltico Superior

    conosco, a referncia deveria ser a humanidade em sua distribuio global,

    independentemente de variaes culturais. A outra resposta qualificar o sentido

    em que se diz que essas populaes foram modernas. Este no deveria ser

    confundido com o uso convencional na antropologia social e cultural, em que a

    modernidade geralmente associada a alguma noo de sociedade Ocidental

    urbano-industrial. Eles eram como ns biologicamente, mas no culturalmente.

    O que separa os humanos anatomicamente modernos de trinta mil anos

    atrs (e anteriores) de seus descendentes contemporneos, de acordo com a

    teoria ortodoxa, um processo no de evoluo, mas de histria ou, como diriam

    alguns, de evoluo cultural em lugar de biolgica. Isto no sugerir que com o

    advento dos modernos a evoluo de nossa espcie tenha literalmente

    estancado. Mudanas ocorrem continuamente, mas so relativamente pequenas,

    nada que se compare s transformaes verdadeiramente colossais das formas de

    vida quem aconteceram aparentemente em ritmo crescente no curso da histria

    humana. Se, e em que sentido, essas transformaes podem ser consideradas

    progressivas uma questo debatida com vigor: no obstante, parece haver uma

    concordncia geral de que a histria da cultura tem sido marcada por um

    incremento cumulativo na escala e complexidade de seu componente tecnolgico.

    Contudo, o processo histrico de complexificao da esfera tecnolgica da cultura

    no foi apenas possibilitado por uma constituio biolgica estabelecida no

    Paeloltico Superior; ele tambm no afetou essa constituio. O veculo a motor

    uma inveno moderna, mas o homem atrs do volante permanece uma criatura

    biologicamente equipada para a vida na Idade da Pedra!

    Desse modo, no que se refere a sua biologia bsica, ciclistas no so

    diferentes de pedestres, e os pedestres de hoje no so diferentes de seus

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  • predecessores do Paleoltico Superior. em geral aceito que a locomoo bipedal

    uma caracterstica humana universal, cuja evoluo implicou um conjunto

    especfico de adaptaes anatmicas (Lovejoy 1988). Andar de bicicleta, em

    contraste, uma habilidade adquirida, cujo aparecimento foi relativamente tardio

    em algumas, mas no em todas, as populaes humanas. Embora seu advento

    tenha sido condicionado por uma longa cadeia de circunstncias de inveno e

    difuso (da descoberta da roda manufatura de tubos de ao), bem como de

    modificao ambiental (a construo de estradas e trilhas), ele no suscitou

    nenhuma reconfigurao da anatomia humana. Em sua estrutura e propores,

    afinal, a bicicleta foi concebida para se ajustar a um corpo humano que j havia

    evoludo para andar, e sua funo mecnica essencial converter a movimentao

    bipedal em rotativa.

    Isto nos reconduz resposta convencional para a pergunta do incio. A

    razo pela qual o homem de Cro-Magnon no andava de bicicleta no tem

    absolutamente nada a ver com biologia. Ou seja, a razo histrica, no evolutiva.

    A mesma distino2 em geral invocada para explicar por que os produtores de

    ferramentas do Paleoltico Superior trabalhavam com pedra lascada em vez de

    complexos equipamentos mecnicos ou eletrnicos. E se absurdo postular uma

    linha direta de continuidade desde as primeiras ferramentas de pedra at o

    maquinrio moderno, ento igualmente absurdo postular uma progresso

    anloga da locomoo quadrpede para a locomoo em duas rodas. E isto

    porque a transio entre andar sobre quatro ou sobre dois ps pertence

    evoluo, enquanto a transio se quiserem de dois ps a duas rodas pertence

    histria.

    Andar e pedalar

    Creio que esta pode ser considerada uma representao justa da viso

    ortodoxa. Quero mostrar agora por que eu penso que ela est errada. Comeo

    lanando um novo olhar sobre o contraste entre andar e pedalar. Supe-se

    comumente que andar algo com que nascemos, enquanto andar de bicicleta

    um produto da enculturao; em outras palavras, presume-se que a primeira uma

    habilidade inata, enquanto esta adquirida. Mas o fato que crianas recm-

    nascidas no andam. Elas tm que aprender a andar, e a ajuda de pessoas mais

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  • velhas, j competentes nessa arte, invariavelmente mobilizada nesse

    empreendimento. Em resumo, andar uma habilidade que emerge para cada

    indivduo no curso de um processo de desenvolvimento, por meio do envolvimento

    ativo de um agente a criana em um ambiente que inclui educadores

    qualificados, alm de uma variedade de objetos de apoio e um certo tipo de terreno

    (Ingold 1991: 370). Como podemos continuar sustentando que a habilidade de

    andar vem, por assim dizer, pr-embalada no biograma humano? certo que a

    ampla maioria das crianas humanas aprende a andar, e mais, que elas o fazem

    num perodo definido bastante curto.

    Assim, embora o beb no exatamente aterrisse no mundo sobre dois ps,

    ele dotado de uma agenda interna de desenvolvimento que garante que ele ir

    andar ereto no devido tempo, desde que certas condies estejam presentes em

    seu ambiente.

    Esta ltima ressalva absolutamente fundamental. Crianas privadas do

    contato com cuidadores mais velhos no aprendem a andar alis, sequer

    sobreviveriam, e esta a razo pela qual todas a crianas que sobrevivem

    efetivamente andam, a menos que incapacitadas por acidente ou doena. Pode-se

    projetar um cenrio futuro no qual as necessidades humanas de locomoo seriam

    inteiramente supridas por veculos sobre rodas, ou imaginar a vida sob condies

    de ausncia de gravidade no espao csmico, em que o andar desapareceria.

    Tais cenrios so reconhecidamente fantsticos, mas imagin-los serve para

    reforar meu ponto de que a capacidade para a locomoo bipedal s pode ser dita

    inata quando se pressupe a presena das condies ambientais necessrias para

    o seu desenvolvimento.

    Falando estritamente, portanto, o bipedalismo no pode ser atribudo ao organismo

    humano a menos que o contexto ambiental entre na especificao do que o

    organismo .

    Com este ponto em mente, passo agora de andar a pedalar. As crianas s se

    tornam proficientes em andar de bicicleta, assim como em caminhar, por meio de

    um processo de aprendizagem em que a assistncia de adultos em geral

    necessria. Em comparao com caminhar, porm, as condies para o

    desenvolvimento da capacidade de andar de bicicleta so bem mais restritivas.

    Obviamente, ningum pode aprender a pedalar sem ter uma bicicleta, e o ambiente

    tambm deve incluir ruas ou trilhas em que se possa transitar em duas rodas. Em

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  • sociedades industriais contemporneas essas condies esto to ubiquamente

    presentes que nossa tendncia pensar que natural que crianas a partir de

    certa idade sejam capazes de andar de bicicleta, assim como so capazes de

    caminhar. Em outras sociedades, em contraste, as bicicletas podem ser raras ou

    estar completamente ausentes, ou o terreno pode ser bastante imprprio para seu

    uso. E assim a habilidade de pedalar tem uma distibuio muito mais limitada que a

    de andar.

    Contudo, esta uma diferena de extenso, no de princpio. Se andar inato no

    sentido

    e apenas no sentido em que, dadas certas condies, deve emergir no curso

    do desenvolvimento, ento o mesmo se aplica a andar de bicicleta. E se pedalar

    adquirido, no sentido em que sua emergncia depende de um processo de

    aprendizado inscrito em contextos de interao social, ento o mesmo se aplica a

    caminhar. Em outras palavras, to errado supor que pedalar dado de modo

    exgeno (independentemente do organismo humano) quanto supor que andar

    dado de modo endgeno (independentemente do ambiente). Tanto andar quanto

    pedalar so competncias que emergem nos contextos relacionais do envolvimento

    da criana em seu ambiente e, portanto, so propriedades do sistema de

    desenvolvimento constitudo por essas relaes.

    Ademais, essas competncias so literalmente incorporadas, no sentido em

    que seu desenvolvimento implica modificaes especficas, neurolgicas e

    musculares, e at mesmo em caractersticas anatmicas bsicas. Embora as

    crianas geralmente aprendam a andar antes de pedalar, as modificaes

    suscitadas por andar de bicicleta no so simplesmente acrescentadas a uma

    anatomia, por assim dizer, pr-fabricada para caminhar. O corpo humano no

    pr-fabricado para coisa alguma, ao contrrio, sofre contnuas mudanas ao longo

    do ciclo de vida medida em que impelido ao desempenho de tarefas diversas.

    Com efeito, as presses e esforos recorrentes da vida cotidiana no afetam

    apenas o desenvolvimento relativo de diferentes msculos; deixam tambm suas

    marcas no prprio esqueleto. Transportar cargas na cabea afeta os ossos da

    parte superior da coluna; agachar-se fora os joelhos, o que resulta em marcas na

    patela; tambm andar de bicicleta, sem dvida, deixa vestgios. claro que a

    bicicleta foi projetada para uma criatura j acostumada locomoo bipedal, de

    modo que andar de bicicleta no requer nenhum grande reajustamento da

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  • anatomia humana. Os ciclistas continuam podendo andar a p, e duvidoso que

    mesmo o observador mais perspicaz possa distinguir um ciclista de um no-ciclista,

    a menos que os ponha prova. Mas se nenhum nefito consegue manter o

    equilbrio e a coordenao numa primeira tentativa, ningum jamais desaprende a

    andar de bicicleta. Esses fatos indicam que o exerccio das habilidades sensoriais e

    motoras necessrias para andar de bicicleta deixa uma impresso anatmica

    indelvel, pelo menos na normalmente invisvel arquitetura do crebro.

    De fato, esta concluso sustentada por pesquisas neurolgicas recentes

    que mostram, como relatam Kandel e Hawkins, que nossos crebros esto

    constantemente mudando em termos anatmicos, inclusive quando aprendemos

    (1992: 60). luz dessas consideraes talvez no seja absurdo, afinal, situar a

    emergncia, respectivamente, de andar e pedalar no interior do mesmo processo

    geral de evoluo isto , de uma evoluo dos sistemas de desenvolvimento que

    sustentam essas capacidades. E uma vez que introduzimos o contexto ambiental

    de desenvolvimento em nossa especificao do que um organismo , segue-se

    que um ser-humano-no-ambiente-A no pode ser a mesma espcie de criatura que

    um ser-humano-no-ambiente-B. Assim, o homem de Cro-Magnon era de fato uma

    criatura muito diferente do ciclista ou motorista urbano de hoje. Ele no era como

    ns nem mesmo biologicamente. Ele pode ter se parecido conosco

    geneticamente, mas isso outra questo. De que maneira a biologia veio a ser

    identificada com a gentica um problema na histria das ideias ao qual voltarei

    mais adiante; por ora suficiente dizer que tal identificao j est implcita na

    noo de que cada indivduo dotado de sua constituio biolgica no momento

    da concepo. Antes de discutir essa noo de modo mais detalhado, eu gostaria

    de examinar uma rea na qual surgem questes muito prximas s suscitadas em

    minha comparao entre andar e pedalar, mas que tem sido palco de controvrsias

    muito mais srias: a evoluo da linguagem.

    Fala e escrita

    Reconhece-se em geral que o homem de Cro-Magnon, como um paradigma

    da modernidade anatmica, possua uma capacidade plenamente desenvolvida

    para a linguagem. Ele podia falar to bem quanto voc ou eu. Mas no podia ler

    nem escrever. Comeo com a comparao entre a fala e a escrita porque ela

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  • oferece o paralelo mais bvio com a comparao entre andar e pedalar. De acordo

    com a viso ortodoxa, a capacidade para a linguagem um universal humano, algo

    que todos ns recebemos como parte de uma constituio biolgica comum

    estabelecida no Paleoltico Superior, se no antes (No me preocupo aqui com os

    debates relativos a datao). A escrita, em contraste, uma tecnologia da

    linguagem que surgiu de modo independente em vrias partes do mundo como

    resultado de eventos especficos de inveno e difuso, e que mesmo hoje de

    modo algum compartilhada universalmente.

    A capacidade para a linguagem, ento, um produto da evoluo; a

    capacidade de ler e escrever, um produto da histria. A primeira considerada

    inata, a segunda adquirida. A incapacidade do Cro-Magnon de ler e escrever,

    assim como sua incapacidade de andar de bicicleta, no tem nada a ver com sua

    biologia. O que ocorre que, na poca em que ele viveu, os desenvolvimentos

    culturais que culminaram na inveno dos sistemas de escrita ainda no haviam

    seguido seu curso.

    Eu penso que esta viso errada, pelas razes que j expus. Bebs

    humanos no nascem falando, assim como no nascem andando. Sua aptido

    para a linguagem se desenvolve, atravs de uma srie de estgios razoavelmente

    bem definidos. O apoio de cuidadores capazes de falar, e a presena no ambiente

    de um conjunto rico e altamente estruturado de caractersticas significativas so

    essenciais para o desenvolvimento normal da linguagem.

    Como essas condies esto quase invariavelmente presentes, a imensa

    maioria das crianas aprende a falar sem dificuldade, e as excees so aquelas

    cujo desenvolvimento obstado por alguma outra limitao. As condies que

    devem ser preenchidas para que uma criana aprenda com sucesso a ler e

    escrever so, naturalmente, muito mais restritivas. Com efeito, quais so essas

    condies um tema de intensos debates, especialmente em crculos

    pedaggicos. Uma vez que as habilidades e prticas de escrita so de fato

    extremamente diversas, nada tendo em comum alm da representao grfica de

    palavras, as condies necessrias para sua aquisio so, com toda a

    probabilidade, igualmente variveis (Street 1984). Mas isto no afeta meu

    argumento principal, a saber, que a escrita no acrescentada, pela

    enculturao, a uma constituio humana biologicamente preparada para a fala.

    Em vez disso, tanto a habilidade de falar quanto a de escrever emergem num

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  • processo contnuo de modificao corporal, envolvendo tanto uma sintonia fina de

    habilidades vocais auditivas e manuais-visuais como as mudanas anatmicas

    correspondentes no crebro, um processo que ocorre nos contextos de

    engajamento do aprendiz com outras pessoas e objetos diversos em seu ambiente.

    Ambas as capacidades, em suma, so propriedades de sistemas de

    desenvolvimento.

    Sem tomar partido na controvrsia sobre se os assim chamados humanos

    arcaicos, tipificados pelo homem de Neanderthal, podiam falar, h considervel

    acordo entre os paleoantroplogos modernos de que esta capacidade ao menos

    em sua forma plenamente desenvolvida no era compartilhada por homindeos

    pr-humanos mais antigos como o Homo erectus e o Homo habilis. A questo a

    que precisamos responder, porm, a seguinte: de que maneira, e se, a

    incapacidade de falar desses primeiros homindeos difere da incapacidade de ler e

    escrever dos caadores-coletores do Paleoltico Superior? Para recordar uma

    distino que introduzi anteriormente4, no contexto de uma comparao entre as

    capacidades tcnicas de chimpanzs e as de humanos caadores-coletores, como

    podemos justificar a atribuio das primeiras a uma incapacidade inata, enquanto

    estas so atribudas ausncia de condies histricas? Se o homem de Cro-

    Magnon, caso vivesse no sculo XX, seria capaz de dominar as habilidades da

    escrita, por que o Homo erectus, se tivesse vivido no

    Paleoltico Superior, no poderia ter tido o domnio da linguagem?

    Uma questo de certo modo comparvel surge no contexto da pesquisa

    sobre as capacidades lingusticas dos grandes smios, especialmente dos

    chimpanzs. Criados em condies naturais isto , sem contato significativo

    com humanos , os chimpanzs no aprendem a falar. Pesquisas recentes,

    contudo, indicam de modo convincente que chimpanzs criados em um ambiente

    humano, no convvio com cuidadores que falam, so capazes de adquirir

    espontaneamente uma competncia lingustica sinttica e semntica equivalente

    de crianas pequenas (Savage-Rumbaugh e Rumbaugh 1993). Isto prova que, ao

    contrrio das expectativas, os chimpanzs e, por analogia, os primeiros

    homindeos tm ou tiveram uma capacidade para a linguagem, ainda que

    limitada? Devemos acreditar que, graas ao legado de sua ancestralidade comum

    com os humanos, tal capacidade pr-instalada, como um dote hereditrio, na

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  • mente de cada chimpanz individual, aguardando simplesmente circunstncias

    ambientais propcias para vir tona?

    Penso que no, porque a prpria questo se baseia numa falsa premissa, a

    saber, que a capacidade para a linguagem algo cuja presena ou ausncia pode

    ser atribuda a indivduos de uma espcie, a despeito dos contextos ambientais de

    seu desenvolvimento. Com efeito, no faz nenhum sentido perguntar se

    chimpanzs ou homindeos tm ou tiveram linguagem, como se ela estivesse

    programada de antemo dentro deles. A definio biolgica de espcie depende da

    possibilidade de uma especificao independente de contexto: um chimpanz um

    chimpanz, Pan troglodytes, seja ele criado entre outros chimpanzs ou entre

    humanos, na floresta ou no laboratrio. Mas o chimpanz-em-um-ambiente-de-

    outros-chimpanzs no de forma alguma o mesmo tipo de animal que o

    chimpanz-em-um-ambiente-de-humanos: a este ltimo pode ser atribuda uma

    capacidade rudimentar para a linguagem que falta ao primeiro. Esta capacidade,

    como assinalou Dominique Lestel, o resultado de um processo de

    desenvolvimento situado no contexto peculiar da comunidade hbrida humano-

    animal estabelecida para os fins da pesquisa sobre a linguagem de grandes smios

    (Lestel 1998: 13). E embora este contexto possa parecer deveras excepcional, no

    obstante verdade que qualquer processo de desenvolvimento deve envolver um

    organismo em relaes que atravessam as fronteiras dos agrupamentos

    taxonmicos convencionais. Segue-se que se possvel mostrar que uma

    capacidade como a linguagem surge como uma propriedade emergente de um

    sistema de desenvolvimento composto por essas relaes, ento ela no pode ser

    atribuda a uma espcie. (Inversamente, atribuir linguagem a espcies

    automaticamente ter que recorrer a uma viso inatista que envolve alguma forma

    de pr-instalao neural que viria miraculosamente pronta.)

    A noo de capacidade para a linguagem em si mesma profundamente

    problemtica. A explicao ortodoxa, que atribui esta capacidade aos humanos

    anatomicamente modernos, requer que ela seja claramente distinguida, como um

    universal humano, da capacidade de falar esta lngua e no aquela. A competncia

    de algum em sua lngua materna tida como um produto da enculturao, no

    algo dado como parte de sua constituio biolgica como membro da espcie

    humana. Mas as crianas humanas no nascem com um programa inato (um

    dispositivo de aquisio da linguagem) para assimilar um programa adquirido (na

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  • forma de regras de sintaxe de uma lngua particular). E isto porque, quaisquer que

    sejam os dispositivos utilizados no processo de aquisio da linguagem, eles

    mesmos precisam ser formados num contexto de desenvolvimento que o mesmo

    que aquele no qual a criana aprende a lngua da sua comunidade. No existem,

    em outras palavras, dois processos distintos e sucessivos o primeiro envolvendo

    a pr-instalao do crebro para a linguagem, o segundo provendo um contedo

    sinttico e semntico especfico , porque ao aprender a falar da maneira como

    as pessoas em seu entorno falam, e com a assistncia e o apoio ativo delas, que

    as conexes neurolgicas que garantem a competncia lingustica da criana so

    forjadas. Consequentemente, falantes de lnguas diferentes, expostos em estgios

    crticos de desenvolvimento a padres distintos de estimulao acstica, em

    ambientes diversos, tambm iro diferir nos aspectos de sua organizao neural

    envolvidos na produo e interpretao de enunciados verbais. Em suma,

    somente pela separao artificial dos aspectos mais gerais e mais particulares de

    um sistema total de desenvolvimento, no interior do qual emergem as habilidades

    da fala, que a linguagem pode ser identificada como uma capacidade universal,

    em contraposio capacidade de falar uma lngua e no outra. E, nesse sentido,

    falar muito parecido com andar. No entanto, como Esther Thelen e seus

    colaboradores mostraram numa srie de estudos sobre o desenvolvimento motor

    infantil, no existe uma essncia do andar que possa ser isolada do desempenho

    da prpria ao em tempo real (Thelen 1995: 83). Logo, falar de locomoo

    bipedal ou de linguagem como atributos universais, distintos das mltiplas

    habilidades de andar e falar tal como efetivamente utilizadas na vida cotidiana de

    comunidades humanas, reificar o que , na melhor das hipteses, uma abstrao

    analtica conveniente.

    Alm disso, falar, assim como andar, uma realizao do organismo

    humano como um todo, no simplesmente a expresso comportamental de um

    mecanismo cognitivo instalado no organismo, para o qual serviria de veculo. Andar

    e falar so, na expresso de Mauss, tcnicas do corpo (1979 [1934]: 97-123). Ns

    trazemos estas tcnicas conosco, conforme o modo como nossos corpos foram

    formados em e atravs de um processo de desenvolvimento.

    O corolrio desta concluso, porm, muito radical. invalidar, de uma vez

    por todas, a presuno profundamente arraigada de que as diferenas de lngua,

    postura corporal e assim

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  • por diante, que somos inclinados a chamar de culturais, sejam sobrepostas a um

    substrato pr-constitudo de universais biolgicos humanos. No podemos mais

    nos contentar com a noo superficial de que todos os seres humanos comeam

    (biologicamente) iguais e terminam (culturalmente) muito diferentes. Consideremos,

    por exemplo, esta formulao de Geertz: Um dos fatos mais significativos a nosso

    respeito pode ser, finalmente, que todos ns comeamos com o equipamento

    natural para viver milhares de espcies de vidas, mas terminamos por viver apenas

    uma espcie (1973: 45)6. Meu argumento, contraGeertz, que os seres humanos

    no so naturalmente pr-equipados para nenhum tipo de vida; em vez disso, o

    equipamento que possuem se constitui, por meio de um processo de

    desenvolvimento, medida em que eles vivem suas vidas. Este processo no

    seno aquele pelo qual eles adquirem as competncias apropriadas para o tipo de

    vida particular que levam. Aquilo com que cada um de ns comea , pois, um

    sistema de desenvolvimento. Segue-se que as prprias diferenas culturais uma

    vez que elas emergem no processo de desenvolvimento do organismo humano em

    seu ambiente so biolgicas. Antes de examinar as consequncias dessa

    concluso, preciso recuar um passo para mostrar como biologia e cultura foram

    separadas. Com isso, voltarei reconsiderao da noo de dotes biolgicos.

    O genoma e o gentipo

    Como j indiquei, supe-se que os humanos anatomicamente modernos

    sejam biologicamente dotados no apenas do bipedalismo, mas tambm de

    inmeros outros atributos, da linguagem a capacidades cognitivas e motoras

    sofisticadas, frequentemente agrupados na rubrica geral de capacidade para a

    cultura. Permitam-me lembrar-lhes do comentrio de Lieberman7 segundo o qual, a

    despeito de todos os monumentos ao avano tecnolgico humano que grassam a

    paisagem, os indivduos de hoje so essencialmente dotados da mesma

    constituio biolgica de seus predecessores de trinta mil anos atrs. Esse dote,

    ento, deve ser legado aos indivduos a cada gerao sucessiva,

    independentemente dos contextos ambientais diversos nos quais eles crescem

    como pedestres ou ciclistas, como fabricantes de ferramentas de pedra ou

    operadores de mquinas, como caadores-coletores ou citadinos, e assim por

    diante. Em outras palavras, trata-se de uma especificao do organismo humano

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  • independente do contexto, conferida a todo e qualquer membro da espcie no

    momento da concepo.

    Na biologia moderna, o termo tcnico para tal especificao independente

    do contexto gentipo. Em contraste, para caracterizar a forma que o organismo

    efetivamente assume em termos de sua morfologia exterior e de seu

    comportamento, tal como se revela em um contexto ambiental concreto

    especificar seu fentipo. Uma premissa fundamental da teoria evolutiva, em sua

    atual roupagem neo-darwiniana, que somente as caractersticas do gentipo, e

    no as do fentipo, so transmitidas atravs das geraes. Nesse princpio se

    baseia a diviso convencional entre ontogenia e filogenia, ou entre

    desenvolvimento e evoluo. Enquanto desenvolvimento se refere ao processo

    pelo qual, na histria de vida do indivduo, o gentipo inicial realizado na forma

    concreta de um fentipo ambientalmente especfico, evoluo diz respeito

    mudana gradual, ao longo de um grande nmero de geraes sucessivas, do

    prprio gentipo.

    Figura 1 Representao esquemtica da distino ortodoxa entre evoluo e

    desenvolvimento. G1 G4 so gentipos sucessivos ligados em uma sequncia

    ancestral-descendente. P1 P4 so os respectivos fentipos gerados sob

    condies ambientais E1 E4. As setas verticais representam um percurso

    filogentico intergeracional, as setas horizontais representam processos

    ontogenticos circunscritos a cada gerao.

    Mais exatamente, a frequncia dos elementos constitutivos do gentipo em

    populaes de indivduos que sofreria mudana evolutiva, atravs de um processo

    de variao pela seleo natural. Para fazer essa teoria funcionar, preciso haver

    um veculo que sirva para transportar os elementos da especificao formal do

    organismo a saber, os traos genticos de um local de desenvolvimento a

    outro, anunciando o incio de um novo ciclo de vida. Com a descoberta do DNA,

    acreditou-se que tal veculo, h muito tempo previsto, tinha sido afinal encontrado.

    A molcula de DNA formada por uma cadeia muito longa de bases

    nucleotdicas (em torno de trs bilhes nos seres humanos, dentro dos vinte e trs

    cromossomos de cada clula do corpo), cada uma das quais de um tipo entre

    apenas quatro possveis. Essa molcula tem duas propriedades crticas. Primeiro,

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  • ela est associada a uma cadeia complementar que, tal como um negativo

    fotogrfico, fornece o modelo para um processo de replicao qumica que resulta

    na sntese de novas cadeias de DNA com exatamente a mesma sequncia de

    bases do original. Em segundo lugar, segmentos da molcula, de comprimento da

    ordem de dez mil bases, orientam a sntese de protenas especficas cuja

    composio determinada pela sequncia linear de bases no segmento

    correspondente. Essas protenas, por sua vez, so os componentes fundamentais

    do organismo vivo. Assim, o complemento total de DNA na clula, tambm

    conhecido como genoma, codificaria em sua sequncia de bases uma

    especificao completa do organismo ao qual a clula pertence.

    Para explicar essa codificao, os geneticistas frequentemente recorrem

    linguagem da teoria da informao (Medawar 1967: 56-7). O genoma, dizem,

    carrega uma mensagem que, traduzida aproximadamente, significa construa um

    organismo de tal-e-tal tipo isto , conforme as especificaes formais do

    gentipo. Mas, de fato, a teoria da informao, tal como desenvolvida nos anos de

    1940 por Norbert Wiener, John von Neumann e Claude Shannon, empregava a

    noo de informao num sentido especializado que tem pouco a ver com o modo

    como o termo comumente entendido isto , para se referir ao contedo

    semntico de mensagens trocadas entre emissores e receptores. A informao,

    para esses tericos, no tinha qualquer valor semntico; ela no significava nada.

    Nos termos deles, uma sequncia aleatria de letras poderia ter o mesmo contedo

    informacional que um soneto de Shakespeare (Kay 1998: 507). Este ponto,

    entretanto, perdeu-se inteiramente para os bilogos moleculares que, tendo

    compreendido que a molcula de DNA poderia ser considerada como uma forma

    de informao digital no sentido tcnico da teoria da informao, saltaram

    imediatamente para a concluso de que ela se constitui como um cdigo com um

    contedo semntico especfico.

    Entretanto, o ponto no se perdeu para os prprios tericos da

    comunicao, que repetidamente alertaram para a confuso entre o sentido tcnico

    de informao e seu correlato genrico, e assistiram consternados consagrao

    das metforas de mensagem, linguagem, texto e assim por diante numa biologia

    aparentemente intoxicada com a ideia do DNA como um livro da vida.

    O resultado dessa confuso foi que o modelo terico da informao, tal

    como reencarnado no contexto da cincia biolgica, passou a girar em torno de

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  • mensagens e sua transmisso. uma exigncia do modelo, assim concebido, que

    a mensagem a ser transmitida seja primeiramente fragmentada em seus elementos

    constitutivos mnimos de significado, cada um dos quais ento representado, de

    forma codificada, num meio fsico apropriado. Na comunicao verbal, por

    exemplo, diz-se que os conceitos so representados por combinaes distintas de

    sons (no caso da fala) ou de traos grficos (no caso da escrita). Nesta forma

    fsica, eles so apreendidos por um receptor que, por meio de um processo inverso

    de decodificao, recupera os significados originais e os combina para reconstituir

    a mensagem. No caso da transmisso gentica, os elementos mnimos de

    significado corresponderiam a caracteres ou traos, cada um deles representado

    por um segmento de DNA com uma sequncia de bases distinta. Assim como o

    signo lingustico compreendido como a unio entre um conceito particular e um

    padro sonoro particular, o gene veio a ser concebido como a unio entre um trao

    particular e o seu segmento correspondente da molcula de DNA.

    Figura 2 Uma representao esquemtica da analogia entre genes e palavras

    como signos.

    Deixo para mais tarde a questo de at que ponto este modelo de

    transmisso de informao descreve de forma adequada o que ocorre mesmo no

    discurso verbal ordinrio. Por ora basta dizer que o modelo est fundado em uma

    separao ontolgica entre mente e mundo. Com efeito, esta separao

    intrnseca prpria noo de informao em seu sentido original ideia de que a

    forma introduzida nos contextos de interao do mundo real. Supe-se que a

    mensagem ou instruo a ser transmitida preexista na mente do emissor e seja

    traduzida em um meio fsico a partir de um conjunto de regras de codificao

    inteiramente independentes dos contextos nos quais ela emitida ou recebida.

    claro que o modo como uma mensagem, uma vez recebida, ser interpretada,

    pode depender da situao, mas a prpria mensagem deve ser especificada de

    forma no ambgua. Da mesma maneira, se devemos supor que o genoma

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    GlauciaSticky NoteDualista

  • transporta informao codificada de um contexto de desenvolvimento a outro,

    ento a mensagem isto , a especificao genotpica deve preexistir a sua

    representao no DNA e conectar-se a ele por meio de regras de codificao

    independentes do contexto. Em outras palavras, deve ser possvel ler cada

    elemento do gentipo cada trao contido em determinado segmento de DNA,

    independentemente das condies locais de desenvolvimento. Contudo, assim

    como uma mensagem recebida pode ser interpretada de modo diferente em

    circunstncias diferentes, tambm o gentipo ser materializado de diferentes

    maneiras conforme o contexto ambiental, conduzindo s variaes observadas na

    forma fenotpica.

    Figura 3 A relao entre mensagem, veculo e interpretao (acima) e seu anlogo

    no domnio biolgico (abaixo).

    O problema inerente a esse tipo de explicao pode ser colocado sob a

    forma de uma questo simples: onde est o gentipo? Onde, em outras palavras,

    est a especificao formal que de acordo com o modelo seria importada com o

    genoma para o contexto de inaugurao de um novo ciclo de vida, como um dote

    biolgico? Podemos admitir que o organismo recm-concebido vem a existir com

    seu complemento de DNA; tomado em si mesmo, porm, o DNA no especifica

    nada. Afinal, ele apenas uma molcula, e uma molcula consideravelmente

    inerte. Na realidade, o DNA nunca existe em si mesmo, exceto quando isolado

    artificialmente no laboratrio. Ele existe dentro de clulas, que so partes de

    organismos, eles prprios situados em ambientes mais amplos. E somente em

    virtude de sua incorporao na maquinaria viva da clula que as molculas de DNA

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  • tm os efeitos que tm. Sozinhas, elas no produzem cpias de si mesmas nem

    constroem protenas, muito menos organismos inteiros (ver Lewontin 1992: 33,

    para uma exposio excepcionalmente lcida deste ponto). Logo, o DNA no um

    agente, mas um reagente, e as reaes particulares que ele pe em movimento

    dependem do contexto total do organismo no qual ele est situado. somente

    pressupondo tal contexto que podemos dizer para que qualquer gene particular

    (Ingold 1991: 368). Dito de outro modo, a maquinaria celular que l o DNA, e

    essa leitura parte integrante do prprio desenvolvimento do organismo em seu

    ambiente. No existe, portanto, decodificao do genoma que no seja em si

    mesma um processo de desenvolvimento; no existem atributos de forma que no

    sejam originados no interior desse processo; no existe uma especificao do

    organismo que seja independente do seu contexto de desenvolvimento.

    Assim, retomando a questo proposta acima onde est o gentipo? , s

    pode haver uma resposta: na mente do bilogo. O gentipo, eu diria, o produto

    das tentativas dos bilogos de escrever um programa ou algoritmo do

    desenvolvimento do organismo, na forma de um sistema coerente de regras

    epigenticas. Essas regras so derivadas por abstrao das caractersticas

    observadas no organismo, de maneira anloga ao modo como um linguista

    derivaria as regras da sintaxe, por abstrao, a partir de uma amostra de

    enunciados registrados uma analogia explicitamente reconhecida na noo de

    biograma. Ademais, o mesmo truque aplicado: como diz Bourdieu (1977: 96),

    ao se transferir ao objeto de estudo a exterioridade da relao do observador para

    com ele, esse objeto aparece como um simples veculo para um sistema

    interiorizado de princpios racionais, uma espcie de inteligncia instalada no

    corao do organismo, dirigindo sua atividade a partir de dentro. Assim como o

    linguista considera a fala como a aplicao de estruturas sintticas localizadas na

    cabea dos falantes, o bilogo considera o desenvolvimento e o comportamento do

    organismo como tendo sua fonte generativa em um biograma inato. Em ambos os

    casos aspectos de forma, abstrados dos contextos em que eles surgem, so

    convertidos em elementos de um programa que supostamente precede e governa

    os processos de sua produo. Como uma explicao da gnese da forma, a

    circularidade deste argumento no requer mais nenhuma elaborao.

    Nada ilustra melhor a transferncia, para o organismo, dos princpios da

    relao externa do observador para com ele, que o destino do prprio conceito de

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  • biologia. Referindo se inicialmente aos procedimentos envolvidos no estudo

    cientfico de formas orgnicas, a

    biologia veio a ser vista como uma estrutura de princpios racionais literalmente

    um biologos

    supostamente situada nos prprios organismos, e orquestrando sua construo.

    Para qualquer organismo particular, este bio-logos , naturalmente, o gentipo.

    Aqui reside, pois, a explicao para a identificao, assinalada acima, entre

    biologia e gentica. Em ltima anlise, esta identificao trai um logocentrismo

    que a biologia compartilha com todo o empreendimento da cincia natural

    Ocidental: o pressuposto de que os fenmenos manifestos do mundo fsico so

    obra da razo. Mas a razo que a cincia v em operao neles a sua prpria,

    refletida no espelho da natureza.

    Forma e desenvolvimento

    Se os organismos no recebem sua forma, com o genoma, como um dote

    biolgico, ento como explicar a estabilidade da forma atravs das geraes? A

    resposta est na observao de que a vida de qualquer organismo inaugurada

    com muito mais que seu complemento de DNA. De um lado, como aponta

    Lewontin, o DNA est contido em um vulo que, antes mesmo da fertilizao, est

    equipado por meio do seu prprio desenvolvimento com os pr-requisitos

    essenciais para promover o crescimento futuro. Ns herdamos no apenas genes

    feitos de DNA, mas uma intrincada estrutura de maquinaria celular feita de

    protenas (Lewontin 1992: 33). De outro, esse vulo no existe no vazio, mas em

    um ambiente j estruturado. A vida comea, pois, com o DNA, em um vulo, em

    um ambiente. Ou, como Oyama coloca sucintamente, de modo muito literal, o que

    transmitido ou disponibilizado na reproduo um genomae um segmento do

    mundo (1985: 43, nfase minha). Juntos eles constituem um sistema de

    desenvolvimento, e no funcionamento dinmico desse sistema nas interaes

    complexas entre componentes internos ao organismo (incluindo o genoma) e

    situados alm de seus limites que a forma gerada e mantida (Ho 1991: 346-7).

    Segue-se que nenhum componente particular como o DNA pode ser

    privilegiado como aquele que contm a forma que os outros expressam, uma

    vez que a prpria forma uma propriedade emergente do sistema total que

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  • consiste nas relaes entre eles. Uma mudana em qualquer componente do

    sistema, seja no genoma ou em algum aspecto do ambiente interior ou exterior ao

    organismo, na medida em que altera os parmetros de desenvolvimento, pode

    produzir uma mudana significativa na forma; as possibilidades de mudana,

    porm, no so ilimitadas, restringem-se gama de formas que podem ser

    geradas pelas propriedades da organizao dinmica do sistema. Desse modo, a

    explicao para a estabilidade intergeracional da forma no se encontra na

    fidelidade da replicao do DNA, mas nas potencialidades de auto-organizao de

    todo o campo de relaes no qual o desenvolvimento ocorre (Goodwin,1988).

    importante precisar em que esta concluso difere daquilo que

    geralmente aceito na biologia evolutiva. A questo de saber se os organismos so

    determinados por sua natureza [nature] ou por seu desenvolvimento [nurture], pela

    constituio inata ou pelo condicionamento ambiental, h muito foi declarada

    obsoleta, tendo dado lugar a uma perspectiva interacionista segundo a qual cada

    organismo, em qualquer momento de seu ciclo de vida, o produto de uma

    complexa e contnua interao entre fatores genticos e ambientais. Naturalmente,

    argumentase, os organismos assumem aparncias diferentes em ambientes

    diferentes. Pressupe-se, contudo, que essas diferenas ambientalmente induzidas

    revelam to somente o potencial de variao daquilo que essencialmente o

    mesmoorganismo, e que apenas as diferenas atribuveis modificao gentica

    atestam a mudana evolutiva do prprio organismo. E precisamente nesta

    pressuposio, com seu privilgio implcito do genoma como o verdadeiro portador

    da forma orgnica, que se permitiu que repousassem as distines convencionais

    entre gentipo e fentipo, e entre evoluo e desenvolvimento.

    Para a teoria ortodoxa, estas distines so crticas. Evoluo, como vimos,

    referir-se-ia a mudanas intergeracionais no gentipo; desenvolvimento,

    traduo, em cada gerao, do gentipo no fentipo (ver Figura 1). Isto no dizer

    que esses processos sejam concebidos como no estando relacionados.

    Reconhece-se, por um lado, que as circunstncias do desenvolvimento na

    medida em que incidem na replicao gentica podem exercer uma influncia na

    evoluo e, por outro, que o gentipo modificado pela evoluo que estabelece a

    programao para o desenvolvimento (Hinde 1991: 585). Mas a teoria exclui

    qualquer possibilidade de que a prpria histria de vida do organismo possa

    constituir uma parte intrnseca do processo evolutivo. Da perspectiva evolutiva, no

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  • o que os organismos fazem, mas as consequncias reprodutivas de sua atividade

    que so significativas. Consideraes relativas a agncia e intencionalidade no

    tm lugar na explicao evolutiva: so atribudas aos mecanismos imediatamente

    envolvidos na efetivao de estratgias cuja lgica ltima j est estabelecida pela

    seleo natural. Por essa razo, habitual se falar dos organismos como locais

    onde a evoluo ocorre, mas no como agentes da mudana evolutiva. Diz-se

    assim que as mudanas acontecem em, mas no so ocasionadas por populaes

    de organismos.

    Mas se a forma, como eu argumento aqui, no uma propriedade dos

    genes, e sim de sistemas de desenvolvimento, para explicar a evoluo da forma

    precisamos entender como estes sistemas so constitudos e reconstitudos ao

    longo do tempo. Vimos que aquilo que um organismo inicialmente recebe de seus

    predecessores inclui, alm de sua carga de material gentico, o ambiente no qual

    este material est disposto. Essa disposio configura relaes especficas

    inscritas na forma em desenvolvimento. medida em que se desenvolve, porm, o

    organismo tambm contribui, por meio de suas aes, para as condies

    ambientais, no apenas para o seu prprio desenvolvimento posterior, mas para o

    desenvolvimento de outros organismos de seu prprio tipo e de tipos diferentes

    com os quais ele se relaciona. Ele pode faz-lo diretamente, por sua presena

    imediata no ambiente de outro, ou indiretamente, na medida em que suas aes

    conservam, modificam ou transformam o ambiente da experincia de outro. Por

    exemplo, a criana humana pode crescer cercada por pais e irmos, em uma casa

    construda h muito tempo por predecessores que ela nunca conhecer. Contudo,

    todas essas pessoas, e sem dvida muitas outras mais, desempenham ou

    desempenharam sua parte no estabelecimento das condies para o

    desenvolvimento da criana. Inversamente, medida em que ela cresce e seus

    poderes de agncia se expandem, ela ir contribuir por seu turno para as

    condies de desenvolvimento de seus prprios contemporneos e sucessores.

    No que se refere aos seres humanos, usual falar do processo pelo qual as

    pessoas de cada gerao conformam, atravs de suas aes, os contextos nos

    quais seus sucessores vivero, como histria. Meu ponto, porm, que a histria

    humana no seno uma parte de um processo que acontece em todo o mundo

    orgnico (ver Ingold 1990: 224). Neste processo, os organismos figuram no como

    os produtos passivos de um mecanismo a variao sujeita seleo natural

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  • situado fora do tempo e da mudana, mas como agentes ativos e criativos, ao

    mesmo tempo produtores e produtos de sua prpria evoluo (Ho 1991: 338). E

    isto porque cada organismo no apenas se desenvolve num campo mais amplo de

    relaes, como tambm contribui atravs de sua atividade para a perpetuao e a

    transformao desse campo. Assim, o que ele faz ao longo da sua vida no

    consumido na reproduo de seus genes, mas incorporado aos potenciais de

    desenvolvimento de seus sucessores. No pode haver, portanto, nenhuma

    separao entre ontogenia e filogenia, desenvolvimento e evoluo. A ontognese,

    longe de ser acessria mudana evolutiva, a prpria fonte a partir da qual o

    processo evolutivo se desdobra.

    Para prevenir qualquer possvel mal-entendido, deixem-me ser claro em

    relao ao que estou defendendo. Eu no nego a existncia do genoma ou sua

    importncia como um regulador do processo de desenvolvimento. Tambm no

    nego que mudanas podem ocorrer e ocorrem na composio do genoma, como

    resultado da mutao, recombinao e replicao diferencial de seus segmentos

    constituintes atravs das geraes. O que eu nego, porm, que o genoma

    contenha uma especificao da forma essencial do organismo, ou de suas

    capacidades para a ao e, portanto, que um registro de mudana gentica seja

    em qualquer sentido equivalente a uma explicao de sua evoluo. Boa parte da

    mudana gentica ocorre sem nenhum corolrio ao nvel da forma ou do

    comportamento; inversamente, transformaes morfolgicas e comportamentais

    significativas podem ocorrer sem quaisquer mudanas correspondentes no

    genoma. Vimos que, uma vez que os organismos, em suas atividades, podem

    modificar as condies de desenvolvimento das geraes subsequentes, sistemas

    de desenvolvimento e as capaciades neles especificadas podem continuar a

    evoluir sem exigir nenhuma mudana gentica. Em nenhum lugar isto mais

    evidente que na evoluo da nossa prpria espcie. A fim de explicar como a

    mudana pode ocorrer na ausncia de modificao gentica significativa, a teoria

    evolutiva ortodoxa teve que conceber uma segunda via, a histria da cultura,

    sobreposta base de uma herana gentica resultante da evoluo. Contudo, uma

    vez que se reconhece que as capacidades se constituem no interior de sistemas de

    desenvolvimento, ao invs de serem transportadas com os genes como um dote

    biolgico, podemos comear a ver como as dicotomias entre biologia e cultura, e

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  • entre evoluo e histria, podem ser descartadas. Esta a questo da qual passo

    a me ocupar.

    Biologia e cultura

    Comeo retomando a comparao entre andar e pedalar. A locomoo

    bipedal, de acordo com a teoria ortodoxa, parte da constituio biolgica humana

    ou seja, tida como uma propriedade do gentipo anatomicamente moderno.

    Vimos, porm, que o gentipo o produto dos esforos dos bilogos para atribuir

    as capacidades do organismo a um programa interno, que consistiria num conjunto

    de regras ou algoritmos capazes de gerar respostas apropriadas sob quaisquer

    circunstncias ambientais. Se a capacidade de andar compete ao gentipo, ento

    deve ser possvel compreender o andar como expresso de um programa desse

    tipo, desenvolvido pela seleo natural e introduzido com o genoma em diversos

    contextos de desenvolvimento. O que fazer com a capacidade de andar de

    bicicleta? pouco provvel que se possa aprender alguma coisa sobre as origens

    e o desenvolvimento dessa capacidade por meio do exame de mudanas nas

    frequncias de genes entre os ciclistas! Admite-se consensualmente que andar de

    bicicleta no faz parte do gentipo humano e, por essa razo, no se considera em

    geral que tenha evoludo no sentido biolgico. Contudo, andar de bicicleta

    claramente uma habilidade que, em algum sentido, transmitida de uma gerao a

    outra. No pode, portanto, ser atribuda ao fentipo, uma vez que os caracteres

    fenotpicos no so transmitidos atravs das geraes.

    Para acomodar o tipo de transmisso no-gentica que parece estar em

    operao aqui, prope-se frequentemente que, em populaes humanas, um

    segundo modo de herana opera em paralelo com a gentica. Os seres humanos,

    como afirma Durham, esto de posse de dois grandes sistemas de informao, um

    gentico, o outro cultural (1991: 9). A capacidade de andar de bicicleta, ento,

    estaria compreendida em um anlogo cultural do gentipo um culturtipo

    [culture-type] (Richerson e Boyd 1978: 128) cujos elementos ou traos

    constitutivos se encontrariam igualmente codificados em meios simblicos. Este

    modelo de enculturao se baseia exatamente nas mesmas premissas expostas

    acima em relao transmisso gentica. Ele pressupe que a mensagem

    cultural que o indivduo recebe de seus coespecficos preexiste a sua

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  • representao simblica, que a mensagem pode ser lida dessa representao por

    meio de regras de decodificao independentes do contexto, e que essa leitura

    precede a aplicao do conhecimento cultural recebido nos cenrios da prtica.

    Desse modo, uma distino clara tem que ser traada entre a transmisso

    intergeracional da informao cultural e sua expresso na carreira de cada

    indivduo, exatamente paralela distino que a teoria ortodoxa da biologia

    evolutiva traa entre a transmisso dos elementos que constituem o gentipo e a

    concretizao deste ltimo, na vida de cada organismo, sob a forma do fentipo. A

    primeira dessas distines tem sido feita convencionalmente por meio de um

    contraste entre aprendizado individual e social.

    Figura 4 Aprendizado individual e social. As setas verticais representam a

    transmisso intergeracional da informao

    cultural pelo aprendizado social na sequncia ancestral-descendente C1 C4. As

    setas horizontais representam

    os processos de aprendizado individual atravs dos quais, em cada gerao, os

    esquemas culturais recebidos so

    traduzidos em comportamento (B1 B4) em condies ambientais dadas (E1

    E4). Comparar com a Figura 1.

    Aprendizado individual, aqui, refere-se ao modo como o comportamento

    adquirido, tal como a morfologia, atravs da direo ambiental de um

    desenvolvimento que culmina no fentipo maduro. Sob este aspecto, cada

    organismo aprende por si mesmo, pela experincia, e o processo de aprendizado

    coextensivo a sua prpria vida. O aprendizado social, por outro lado, refere-se

    transmisso, atravs das geraes, de um corpo de conhecimentos culturais sob a

    forma de uma tradio. Esta tradio consiste no no prprio comportamento, mas

    em um sistema de esquemas planos, receitas, regras, instrues (Geertz 1973:

    44)10 para ger-lo. No caso de andar de bicicleta, por exemplo, o que um

    indivduo adquire de outros mais experientes so os elementos de um programa,

    anlogo ao programa codificado geneticamente que supostamente assegura a

    competncia em andar, e que concretizado por meio da prtica e da experincia

    em um ambiente. Note-se como esta diviso entre os componentes sociais e

    individuais do aprendizado efetivamente divorcia a esfera de envolvimento do

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  • aprendiz com outrem dos contextos do seu engajamento prtico no mundo. Ela

    pressupe que o que passado adiante, no aprendizado, uma especificao

    para o comportamento independente do contexto, e que tal especificao est

    disponvel para transmisso, em forma codificada, fora das situaes de sua

    aplicao. Em conformidade com isso, acredita-se que a estabilidade

    intergeracional da forma cultural reside na fidelidade com que esta informao

    replicada de uma mente a outra.

    Como uma descrio do que acontece quando se aprende a andar de

    bicicleta, ou, alis, na aquisio de qualquer outra habilidade prtica, isto

    altamente artificial. Primeiro, porque a arte de pedalar como alis a de andar

    desafia a codificao em termos de qualquer sistema formal de regras e

    representaes. Mesmo que fosse possvel criar um programa para andar de

    bicicleta, pouco provvel que uma criatura dotada de tal programa, e equipada

    com uma mquina para pedalar, fosse capaz de adquirir a destreza do praticante

    competente. Alm disso, a assistncia dos adultos necessria acima de tudo para

    fornecer demonstrao e apoio isto , para criar situaes nas quais o aprendiz

    tenha oportunidade de pegar o jeito por si. O mesmo verdadeiro no aprendizado

    da linguagem, descrito adequadamente como um processo de reinveno dirigida

    (Lock 1980) no qual a contribuio dos adultos no ambiente da criana fornecer

    interpretaes contextualmente especficas de suas emisses vocais, que

    conduzem a criana descoberta de como as palavras podem ser usadas para

    exprimir significados. A contribuio de cada gerao para a seguinte, pois, no

    so regras e esquemas para a produo do comportamento apropriado, mas as

    condies especficas de desenvolvimento nas quais os sucessores, crescendo

    num mundo social, adquirem suas prprias habilidades e disposies incorporadas.

    Palavras e atos, naturalmente, so cheios de significado, e em qualquer

    situao de aprendizado o nefito ir ouvir o que as pessoas dizem e assistir ao

    que elas fazem. Mas no existe nenhuma leitura de palavras ou atos que no seja

    parte da orientao prtica do prprio nefito ao seu ambiente. Palavras ditas, por

    exemplo, tomadas em si mesmas, no servem, assim como os genes, para alguma

    coisa. Elas no introduzem significado nos contextos de interao, como requer o

    modelo de transmisso de informao. Em vez disso, e novamente tal como os

    genes, elas retiram seus signficados dos contextos de atividades e relaes nos

    quais elas esto em uso. Desse modo, a cultura, como um corpo de conhecimento

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  • tradicionalmente transmitido, independente do contexto, codificado em palavras ou

    outros meios simblicos, no pode existir em parte alguma exceto na mente do

    observador antropolgico. Ela derivada por abstrao do comportamento

    observado, exatamente da mesma forma que o bilogo deriva o gentipo por

    abstrao das caractersticas observadas do organismo, e o linguista deriva uma

    gramtica do registro de enunciados. E, pelo mesmo artifcio que j observamos

    nos campos da lingustica e da biologia, imagina-se que esta abstrao esteja

    implantada nas mentes dos prprios atores, como a fonte geradora de suas

    condutas.

    Na direo oposta, argumentei que, quer nossa ateno se volte a andar ou

    pedalar, falar ou escrever, fabricar ferrramentas ou operar mquinas, o que as

    pessoas fazem no pode ser compreendido como expresso comportamental de

    um programa interno, mas somente como atividade intencional do organismo

    humano inteiro em seu ambiente. Assim, para reiterar minha concluso precedente,

    no h nenhum fundamento em distinguir capacidades para a ao devidas

    biologia daquelas devidas cultura. verdade que h coisas que os seres

    humanos podem fazer que so aparentemente impossveis para quaisquer outras

    criaturas, mesmo que tenham sido criadas em um ambiente humano. E razovel

    supor que esses potenciais no teriam emergido se no fosse por certas mudanas

    no genoma que poderiam, em princpio, ser rastreadas em populaes ancestrais.

    Mas o genoma, sozinho, no especifica nenhum tipo de capacidade. Desse modo,

    buscaremos em vo uma capacidade para a cultura, cuja emergncia evolutiva

    teria marcado o que algumas vezes chamado de revoluo humana. E isto

    porque no existe tal coisa, separadamente das capacidades diversas de seres

    humanos que crescem em diferentes ambientes. Essas diferenas de experincias

    de desenvolvimento, como mostrei, so incorporadas anatomicamente, de modo a

    fazer de cada um de ns um organismo de um tipo diferente.

    Evoluo e histria

    Onde ficam os Cro-Magnons nisso tudo? Sua entrada em cena realmente

    marcou o surgimento de gente inteiramente como ns? claro que no somos de

    modo algum perfeitos; no obstante observa Howells no injusto dizer que o

    Homo sapiens parece ter concludo o progresso humano que o Pleistoceno deixara

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    GlauciaSticky NoteDa mesma forma???A cultura apenas uma abstrao???

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    GlauciaSticky NoteAndar de bicicleta seria uma atividade intencional do organismo em seu ambiente. Ele parte de uma perspectiva interacionista.

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  • inacabado (1967: 242). Em outro sentido, contudo, o progresso humano mal tinha

    comeado. Estes dois sentidos de progresso correspondem, como vimos, ao que

    costumeiramente distinguido como evoluo e histria. Esta uma distino que,

    em geral, no seria feita para qualquer outra espcie. Em outras palavras, assume-

    se que no pode haver mudanas cumulativas ou progressivas nas capacidades

    comportamentais de espcies no-humanas que no estejam ligadas a mudanas

    evolutivas em suas formas essenciais, especficas da espcie. Por essa razo,

    ningum acha necessrio falar, por exemplo, dos chimpanzs anatomicamente

    modernos ou de elefantes anatomicamente modernos. O que o conceito de

    modernidade anatmica faz, com efeito, reconhecer um sentido alternativo em

    que as pessoas podem ser modernas, mas to somente para coloc-lo alm dos

    limites, como algo que no interessa ao estudioso da evoluo biolgica humana.

    Este segundo sentido de modernidade, contudo, fundado como em um

    compromisso com a supremacia da razo, est contido no prprio projeto da

    cincia contempornea e sustenta sua pretenso de ser capaz de fornecer uma

    explicao autorizada das operaes da natureza. Eis a contradio a que me

    referi no incio. O processo histrico, que pretensamente eleva a humanidade a um

    nvel de existncia superior ao puramente biofsico, tido pela cincia como aquilo

    que fornece a plataforma a partir da qual seus praticantes que, claro, so tambm

    seres humanos podem lanar suas declaraes de que os humanos so apenas

    mais uma das espcies da natureza (Foley 1987).

    As razes da contradio precedem consideravalmente o surgimento da

    teoria evolutiva em sua forma moderna darwiniana, remontando a um dualismo

    bsico no pensamento do sculo XVIII entre natureza e razo. Em seu Systema

    Naturae de 1735, Lineu reconheceu o estatuto do homem como uma espcie no

    interior do reino animal, sob a designao Homo.

    Diferentemente de todas as outras espcies animais, contudo, no era por suas

    caractersticas fsicas que ele deveria ser conhecido. Com efeito, Lineu declarou

    sua enorme dificuldade em encontrar qualquer critrio definitivo pelo qual os seres

    humanos pudessem ser distinguidos anatomicamente dos grandes primatas, e

    acabou optando por apresentar a distino humana sob a forma de uma

    recomendao: Nosce te ipsum (conhece por ti mesmo). em sua sabedoria,

    pensava Lineu, no em sua forma fsica, que o homem difere essencialmente dos

    macacos. Em virtude de nossa singular faculdade intelectual da razo, somos os

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  • nicos seres que podem buscar conhecer, pelos nossos prprios poderes de

    observao e anlise, que tipos de seres ns somos. No h cientistas entre os

    animais.

    Os grandes tericos da evoluo social e cultural do sculo XIX homens

    como Edward Tylor e Lewis Henry Morgan situaram suas narrativas do progresso

    humano num quadro igualmente dualista. Enquanto todas as espcies animais

    eram ordenadas, conforme sua forma fsica, em uma cadeia do ser culminando na

    humanidade, supunha-se que esta ltima havia sido singularmente dotada pelo

    Criador com uma conscincia incorprea que, atravs da histria, tem avanado

    progressivamente sob a direo de suas prprias leis de desenvolvimento, nos

    limites de um corpo que no sofreu alterao (Ingold 1986: 58-60). Desse modo,

    todos os seres humanos eram tidos como iguais em sua natureza essencial e

    potenciais de desenvolvimento, mas supunha-se que as populaes diferiam no

    grau em que esses potenciais haviam sido realizados na passagem da selvageria

    civilizao. Com a publicao, em 1871, de The descent of man de Darwin, a

    doutrina do potencial humano comum ou, como era ento conhecida, da unidade

    psquica da humanidade foi posta em questo, desafiada pela ideia de que

    diferenas interpopulacionais na escala de civilizao poderiam ser atribudas a

    variaes anatmicas, sobretudo no tamanho e complexidade do crebro. Thomas

    Huxley chegou ao ponto de declarar que a superioridade do europeu em relao ao

    selvagem portador de um crebro supostamente pequeno no era diferente, em

    princpio, da superioridade do selvagem em relao ao macaco portador de um

    crebro ainda menor. Sucedeu-se um perodo de racismo desenfreado do qual a

    antropologia s comeou a se recuperar na segunda dcada do sculo XX. E ela o

    fez reafirmando a universalidade da natureza humana, e insistindo em que

    quaisquer que sejam as diferenas entre populaes quanto a suas caractersticas

    biolgicas, elas no tm nenhuma consequncia para a histria e para o

    desenvolvimento cultural.

    Com efeito, quando se assume que a constituio biolgica dos organismos

    humanos dada como um dote gentico, no possvel escapar do racismo a

    menos que a variao cultural seja desconectada da biolgica. Claramente, no h

    nenhum fundamento factual para a crena raciolgica de que diferenas culturais

    tm uma base gentica. Meu ponto, porm, que, ao virar as costas ao dogma

    racista, a teorizao subsequente sobre a evoluo humana reconstituiu a viso do

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  • sculo dezoito em todos os seus aspectos essenciais. Mais uma vez os seres

    humanos aparecem de forma dual, de um lado como uma espcie da natureza, de

    outro como criaturas que de modo nico entre os animais conquistaram uma tal

    emancipao do mundo da natureza a ponto de fazer dela um objeto de sua

    conscincia. verdade que, diferentemente de Lineu, os estudiosos

    contemporneos da evoluo humana so capazes de apontar com alguma

    preciso um conjunto de caractersticas anatmicas pelas quais os seres humanos

    podem ser distinguidos no apenas de primatas no-humanos atualmente

    existentes como tambm de seus antepassados homindeos pr-humanos. Estas

    so as caractersticas diagnsticas para o reconhecimento da modernidade

    anatmica. Mas humanos deste tipo reconhecivelmente moderno no evoluram

    como cientistas, muito menos com uma teoria pr-fabricada da evoluo. A cincia

    e suas teorias so tidas amplamente como produtos de um processo cultural ou

    civilizacional muito distinto do processo da evoluo biolgica: um crescimento

    cumulativo do conhecimento que manteve inalterada nossa natureza bsica.

    Temos assim dois continua distintos, um evolutivo, conduzindo de formas

    pongdeas e homindeas ancestrais at oHomo sapiens sapiens anatomicamente

    moderno, o outro histrico, conduzindo do nosso passado presumido de

    caadores-coletores at a cincia e a civilizao modernas (Ingold 1998: 89-93). A

    interseo desses continuaconfigura um ponto de origem, sem paralelo na histria

    da vida, quando nossos ancestrais se encontravam no limiar da cultura e, pela

    primeira vez, viram-se face a face com o significado.

    CULTURA

    HISTRIA -- Cientistas ocidentais

    EVOLUO BIOLGICA -- Cro-Magnons

    Australopitecneos-- Origem dos humanos modernos

    H. Habilis

    H. Erectus

    Neandertais

    Figura 5 A origem da verdadeira humanidade, concebida como situada na

    interseo entre o continuum da evoluo biolgica, desde as formas ancestrais

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  • pongdeas e homindeas at os humanos anatomicamente modernos, e o

    continuum da histria da cultura, desde a caa e a coleta do Paleoltico at a

    cincia e a civilizao modernas.

    Acredita-se que este ponto marca a emergncia do que por vezes

    chamado de verdadeira humanidade (ver, por exemplo, Botscharow 1990: 64), ou

    a chegada, nas palavras de Howell, da nova espcie nossa espcie de

    homem (1967: 242). Este tipo de homem, equipado anatomicamente para a vida

    como caador-coletor, possua uma mente que o capacitaria, no devido tempo, a

    raciocinar como um cientista. O homem de Cro-Magnon, ao que parece, tinha todo

    o potencial biolgico necessrio para fazer dele um cientista: seu crebro era to

    grande,e to complexo, como o de Einstein. Mas o tempo ainda no havia

    chegado, em sua poca, para que esse potencial pudesse vir tona. Distendida

    entre os plos da natureza e da razo, epitomizada, respectivamente, pelas figuras

    contrastantes do caador-coletor e do cientista, encontrar-se-ia toda a histria da

    cultura humana, uma histria que teria se desenrolado nos parmetros de uma

    forma corporal essencialmente estvel. E essa forma, que todos os homens

    supostamente recebem como um dote biolgico comum, a despeito de

    circunstncias culturais ou histricas, nada mais , naturalmente, que o gentipo do

    homem moderno.

    Tal como na doutrina da unidade psquica do sculo XVIII, diz-se que o

    gentipo humano embora configurado pela seleo natural e no por interveno

    divina estabelece uma base universal para o desenvolvimento cultural. Como

    uma representao ideal da forma essencial da humanidade, o humano moderno

    , em si mesmo, uma criatura do pensamento Ocidental moderno. Ele (ou ela)

    concebido como uma sntese de tudo o que um ser humano poderia ser, um

    compndio de capacidades universais abstradas das mltiplas formas de vida que

    efetivamente apareceram na histria, e retroprojetadas no passado Paleoltico

    como um conjunto de potenciais de desenvolvimento geneticamente inscritos, que

    sustentariam sua realizao. Desse modo, o curso da histria aparece como o

    desdobramento progressivo das capacidades latentes de nossos ancestrais,

    fixadas biologicamente na evoluo ainda antes do incio da histria. H certa

    ironia aqui. Os bilogos, que h muito tempo cooptaram a noo de evoluo para

    descrever o processo que Darwin havia originalmente chamado de descendncia

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  • com modificao, tm sido severos em sua crtica aos cientistas sociais que

    continuaram a usar a noo, com referncia histria humana, em seu sentido

    original de desenvolvimento progressivo. No entanto, esta viso da histria humana

    como a atualizao gradativa de potenciais inatos est implcita em sua prpria

    teoria!

    Argumentei que a distino entre evoluo e histria, tal como estabelecida

    na viso ortodoxa, no pode ser sustentada. Vista como um processo pelo qual as

    pessoas, em suas atividades, modelam os contextos de desenvolvimento para

    seus sucessores, a histria reaparece como a continuao, com outro nome, de um

    processo de evoluo que est em curso em todo o mundo orgnico. No Dezoito

    Brumrio, Marx escreveu que os homens fazem sua prpria histria, mas no a

    fazem como querem; no a fazem sob circunstncias de sua escolha e sim sob

    aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo

    passado13 (Marx 1963 [1869]: 15). exatamente da mesma maneira que os

    organismos em geral fazem sua prpria evoluo. No existe, portanto, um ponto

    de origem no qual a histria comeou; nenhum momento de emergncia da

    verdadeira humanidade. Logo, no precisamos de uma teoria para explicar como

    os macacos se tornaram humanos, e de uma outra para explicar como (alguns)

    homens se tornaram cientistas. A evoluo humana no terminou com a chegada

    dos Cro-Magnons, prosseguiu at o presente embora agora a chamemos de

    histria. Procurei mostrar que as diversas formas e capacidades que emergiram

    neste processo no so nem dadas de antemo como uma dotao gentica, nem

    transmitidas como componentes de um corpo separado de informao cultural; so

    antes geradas em e atravs do funcionamento dinmico de sistemas de

    desenvolvimento constitudos em virtude do envolvimento dos seres humanos em

    seus diversos ambientes.

    Para os humanos, assim como para quaisquer outros organismos, tal

    envolvimento uma condio inescapvel de existncia. Eu acredito que

    precisamos reformular inteiramente o modo como pensamos sobre evoluo,

    tomando esta condio de envolvimento como nosso ponto de partida. A teoria

    ortodoxa, que atribui a mudana evolutiva a modificaes subjacentes no gentipo,

    requer que os seres humanos sejam completamente especificveis,

    independentemente dos contextos relacionais de seu desenvolvimento. Mas uma

    tal especificao, como mostrei, existe somente na mente do observador e,

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  • portanto, introduz uma diviso entre mente e mundo, ou entre razo e natureza,

    como um a priori ontolgico. Na verdade, no existe nenhuma forma essencial da

    humanidade, especfica da espcie, nenhuma maneira de dizer o que um humano

    anatomicamente moderno independentemente das mltiplas maneiras que os

    humanos efetivamente se tornam (Ingold 1991: 359). Essas variaes de

    circunstncia de desenvolvimento, no de herana gentica, fazem de ns

    organismos de tipos diferentes. Desse modo, minha concluso de que as

    diferenas que chamamos culturais so de fato biolgicas no traz consigo

    nenhuma conotao racista. Ao reenquadrar o ser-humano-em-seu-ambiente,

    podemos prescindir de uma caracterizao da humanidade em termos da

    especificao da espcie, assim como da oposio entre espcie e cultura. As

    pessoas habitam um mundo, no porque suas diferenas so sustentadas por

    universais da natureza humana, mas porque elas esto inseridas juntamente com

    outras criaturas em um campo contnuo de relaes, em cujos desdobramentos

    toda diferena gerada.

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