se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão

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Guardar as sementes para utilizar no plantio quando a chuva chegar. Esta tem sido a alternativa de muitas famílias camponesas do semiárido brasileiro para se adaptarem ao clima e continuarem vivendo e produzindo nesta região. Os bancos de sementes comunitários são cada vez mais acolhidos e coordenados coletivamente pelas comunidades do semiárido fornecendo estocagem e troca constante de solidariedade. Não só por isso os bancos existem. Outro objetivo é garantir a tradição das sementes crioulas e também a autonomia do pequeno agricultor. Há mais de duas décadas, na comunidade de Piedade, no município de Várzea Nova, a 400 km de Salvador, BA, a família de João Pedro Alves de Souza (57), sua esposa, Marizélia Joaquino de Souza (43 anos) e seus cinco filhos, Marcelo, Juliana, Daniela, Joice e Mateus, vem mantendo a tradição familiar de armazenar sementes e ao mesmo tempo multiplicando esta prática na sua região. O retorno ao campo Pedro serviu ao exército durante cinco anos, mas queria mesmo era voltar para o campo, não no intuito de trabalhar para latifúndio e sim na mesma atividade do pai, agricultor e com isto conquistar sua autonomia. Movido pela fé em Deus e na esperança de alcançar o seu desejo, voltou para a casa dos pais e logo quando chegou, em 1980, já plantou roça e teve uma boa colheita. Desde então, disse que nunca perdeu uma roça, pois aprendeu com a natureza e na participação em eventos, como planejar o tempo certo de plantar para não perder tempo e nem roça. Seu Pedro desde que voltou aprendeu a participar de associações e sindicatos e com isto teve muito trabalho e conquistas. Casou-se e com sua família intensificou o seu ofício. O agricultor e outras pessoas lutaram e conquistaram a titulação de terras do município de Várzea Nova e constituíram bancos de sementes comunitários em seu município; Também presidiu o sindicato de trabalhadores rurais de Várzea Nova, esteve entre os fundadores da Cooperativa de Crédito do Piemonte da Diamantina, hoje ASCOOB, que deu origem a COFASPI, e neste período conquistou e participou de muitos espaços. Multiplicador de sementes O banco de sementes é o tesouro da família. Foi no seu retorno à vida no campo que sentiu a necessidade de manter uma tradição familiar, guardar as sementes. Com esta organização nunca ficaram sem sementes e sem alimentação, mesmo em períodos mais escassos de chuva. Isto só foi possível porque aprenderam com a natureza e o saber popular a conservar as sementes que estocavam, a planejarem e a organizarem a plantação de acordo com o período de chuva. O armazenamento era feito em ocos de umburanas chamados de “barricas”, depois em “paios” feitos de tijolos. “A maior perda da região é quando a gente não planejava, não guardava semente e ficava doido correndo atrás das sementes depois de chuva”, conta Seu Pedro. Com a estocagem também promovem um resgate de variedades locais e aumentam a diversidade com as de outras regiões. São sementes repassadas de geração a geração, que adquiriu com o avô e que Bahia Ano 5 | nº 165 | setembro | 2011 Várzea Nova- Bahia Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas “Se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão?” 1 A família: Seu Pedro, Juliana, Mateus, Joice, Marcelo e D. Marizélia

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Page 1: Se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão

Guardar as sementes para utilizar no plantio quando a chuva chegar. Esta tem sido a alternativa de muitas famílias camponesas do semiárido brasileiro para se adaptarem ao clima e continuarem vivendo e produzindo nesta região. Os bancos de sementes comunitários são cada vez mais acolhidos e coordenados coletivamente pelas comunidades do semiárido fornecendo estocagem e troca constante de solidariedade. Não só por isso os bancos existem. Outro objetivo é garantir a tradição das sementes crioulas e também a

autonomia do pequeno agricultor. Há mais de duas décadas, na comunidade de

Piedade, no município de Várzea Nova, a 400 km de Salvador, BA, a família de João Pedro Alves de Souza (57), sua esposa, Marizélia Joaquino de Souza (43 anos) e seus cinco filhos, Marcelo, Juliana, Daniela, Joice e Mateus, vem mantendo a tradição familiar de armazenar sementes e ao mesmo tempo multiplicando esta prática na sua região.

O retorno ao campoPedro serviu ao exército durante cinco anos, mas queria mesmo era voltar para o campo, não no intuito de trabalhar para latifúndio e sim na mesma atividade do pai, agricultor e com isto conquistar sua autonomia. Movido pela fé em Deus e na esperança de alcançar o seu desejo, voltou para a casa dos pais e logo quando chegou, em 1980, já plantou roça e teve uma boa colheita. Desde então, disse que nunca perdeu uma

roça, pois aprendeu com a natureza e na participação em eventos, como planejar o tempo certo de plantar para não perder tempo e nem roça.

Seu Pedro desde que voltou aprendeu a participar de associações e sindicatos e com isto teve muito trabalho e conquistas. Casou-se e com sua família intensificou o seu ofício. O agricultor e outras pessoas lutaram e conquistaram a titulação de terras do município de Várzea Nova e constituíram bancos de sementes comunitários em seu município; Também presidiu o sindicato de trabalhadores rurais de Várzea Nova, esteve entre os fundadores da Cooperativa de Crédito do Piemonte da Diamantina, hoje ASCOOB, que deu origem a COFASPI, e neste período conquistou e participou de muitos espaços.

Multiplicador de sementes O banco de sementes é o tesouro da família. Foi no seu retorno à vida no campo que sentiu a

necessidade de manter uma tradição familiar, guardar as sementes. Com esta organização nunca ficaram sem sementes e sem alimentação, mesmo em períodos mais escassos de chuva. Isto só foi possível porque aprenderam com a natureza e o saber popular a conservar as sementes que estocavam, a planejarem e a organizarem a plantação de acordo com o período de chuva. O armazenamento era feito em ocos de umburanas chamados de “barricas”, depois em “paios” feitos de tijolos. “A maior perda da região é quando a gente não planejava, não guardava semente e ficava doido correndo atrás das sementes depois de chuva”, conta Seu Pedro.

Com a estocagem também promovem um resgate de variedades locais e aumentam a diversidade com as de outras regiões. São sementes repassadas de geração a geração, que adquiriu com o avô e que

Bahia

Ano 5 | nº 165 | setembro | 2011Várzea Nova- Bahia

Boletim Informativo do Programa Uma Terra e Duas Águas

“Se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão?”

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A família: Seu Pedro, Juliana, Mateus, Joice,Marcelo e D. Marizélia

Page 2: Se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão

guardam para não se acabarem, “a nossa semente ainda é a semente resistente, é uma semente que a gente não pode perder de vista, é uma semente forte”, diz Seu Pedro.

Com esta experiência familiar, em 1988, através da Associação Comunitária Casa dos Lavradores (ACCL) lutaram para constituir bancos de sementes comunitários, para que outras pessoas também pudessem estocar sementes em grande quantidade de forma justa e com a garantia de conservação necessária. Neste período, acontecia um processo de estímulo e de formação para a constituição destes bancos coletivos, foi quando conseguiram os silos. Este benefício trouxe muitos outros para as famílias do município de Várzea Nova e inovou ao implantar uma administração coletiva de estocagem de

sementes necessárias para o plantio. Para o filho Marcelo, “tá claro que a gente quer viver é no campo e o que nós precisarmos fazer para ajudar ao movimento e os outros, a gente vai fazer”.

Com o armazenamento e a produção conseguem garantir a subsistência da família. A produção é em excesso, “a gente produz a nossa alimentação, a do plantio e o excesso a gente comercializa para outras pessoas na feira”, complementa o agricultor.

Além do banco de sementes, a família diversificou e ampliou suas atividades no campo, através de um sistema de produção baseado na Agroecologia, e uniu criação animal, cabra, ovelha, gado de leite, aos cultivos consorciados de abóbora, feijão, mandioca, batata, andu, gergelim, milho, entre outros

“Com certeza o semiárido é possível. Nós somos o exemplo disso. É só planejar sua terra, esperar a primeira chuva e plantar. Esta é a base da sustentabilidade de fazer o seu banco de sementes”, ensina seu Pedro. Para a esposa Marizélia quem vive no semiárido tem que saber guardar, “se a gente não guardar como é que a gente vai viver neste sertão?”, questiona.

Para a filha Juliana, guardar a semente é o que a família acredita, “a gente tem a necessidade de guardar e cultivar uma coisa que a gente tenha uma garantia”, argumenta. Marcelo acrescenta que os frutos que colhem são do próprio esforço, “tudo que a gente tem aqui foi Deus quem deu e a nossa luta, não recebemos nada de graça”.

Caatinga preservadaNa propriedade, seu Pedro, mantém uma área

preservada de caatinga e conhece todas as plantas e o seu valor nutricional e medicinal. Se orgulha de ter esta reserva, pois a considera de extrema importância para o desenvolvimento equilibrado da fauna e da flora da região em que mora.

Neste espaço também extrai o mel das abelhas, mandassaia, munduri, cupieira, Orobó e abelha italiana, que se acomodam espontaneamente nos troncos de umburanas e outras árvores. Mantém sementes de árvores nativas para repassar, por exemplo, para o horto florestal que existe na cidade de Jacobina. É uma troca, “eles plantam e passam um pouco das mudas para a gente”, garante Pedro.

Tudo que faz é porque acredita que é possível viver no semiárido, “quem tem terra e água tem vida”, afirma Pedro. Este é o mesmo pensamento dos filhos. Para Marcelo, “o caminho é o cooperativismo, a economia solidária e Agroecologia para mudar esta realidade que tá aí”, conclui.Fazem questão de deixar claro que não é o dinheiro que move a luta pela preservação da natureza, dos valores da família, da autonomia do trabalhador rural e pela conquista da igualdade social. Fazem tudo isto no intuito, de “criar e constituir comunidade de resistência e superação”, explica o filho primogênito, Marcelo.

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Na caatinga preservada as abelhas se acomodam nos troncos das árvores

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As sementes são os tesouros das família: Juliana, Seu Pedro e Marcelo na casa de sementes