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GÊNERO EM DISCUSSÃO: O QUE DIZEM CRIANÇAS E PROFESSORAS SOBRE
BRINQUEDOS NA BRINQUEDOTECA?
Ramão Marques dos Santos Filho 1
Ana Carolina Irineu Pereira 2 Evandro Salvador A. Oliveira 3
Resumo Este trabalho é fruto de uma pesquisa com crianças, realizada na Brinquedoteca universitária, que busca compreender os significados que as crianças constroem sobre as brincadeiras e os brinquedos existentes no interior desse contexto educativo – também conhecido como Laboratório de Ludicidade. Trata-se de uma pesquisa, de abordagem qualitativa, com crianças da Educação Infantil entre 03 e 04 anos. Realizou-se uma oficina, com título “brinquedo de menino, de menina, ou dos dois?”, com o objetivo de analisar como as crianças e professores classificam brinquedos que estão presentes na Brinquedoteca e que fazem parte do cotidiano delas. Como recursos metodológicos, além do caderno de diário de campo e observação participante, a intervenção foi uma estratégia adotada. Com esta oficina, buscou-se compreender questões do universo infantil, de modo a contribuir com o debate sobre a infância, gênero e sexualidade na cultura contemporânea. Dos trinta e quatro objetos/brinquedos presentes na oficina, quinze foram classificados pelas crianças como coisas exclusivamente de meninos, outros quinze foram identificados como instrumentos de meninas e apenas quatro, para elas, podem ser utilizados por meninos e meninas. Para as professoras, onze brinquedos podem ser manuseados por ambos, treze correspondem à meninas e dez pertencem aos meninos. Palavras-chave: Educação Infantil. Brinquedoteca. Cultura Lúdica. Gênero. Introdução
O brincar é um direito inalienável da criança e a brincadeira, na infância, é
importante para o seu desenvolvimento. Na contemporaneidade, sobretudo na
escola, as brincadeiras das crianças tem sido atravessadas pela interferência do
outro/adulto nas culturas lúdicas infantis. Quando as crianças brincam sozinhas e
nos grupos de pares, elas constroem significados e reproduzem ações, advindas do
contato com o outro, da socialização.
1 Graduando em Educação Física pela UNIFIMES. E-mail: [email protected]. 2 Docente Adjunto - UNIFIMES e coordenador do curso de Educação Física; Doutorando em Estudos da Criança
(UMinho – Portugal), Doutorando em Educação (UNIUBE – Uberaba, MG); E-mail: [email protected]. 3 Graduanda em Educação Física pela UNIFIMES. Bolsista PIBIC. E-mail: [email protected]
Assim, não resta dúvida de que têm sido raros os momentos em que nos
deparamos, em contextos educativos como a escola e a Brinquedoteca, com
experiências de crianças que trazem saberes relacionado ao gênero e à
sexualidade, principalmente quando brincam. Trata-se de experiências marcadas
por discursos que remetem aos lugares sociais destinados ao feminino e ao
masculino na cultura contemporânea, bem como às imagens da infância e suas
relações estabelecidas com a vida adulta nesse cenário.
Pautado nessas análises, por meio de um projeto de pesquisa, articulado com
um projeto de extensão que trabalha com crianças, foi desenvolvida uma oficina,
cujo objetivo principal consistiu em observar como as crianças e as professoras
dessas classificam brinquedos de um Laboratório de Ludicidade, sendo de menino,
de menina ou dos dois. Foram selecionados brinquedos de uso contínuo na
Brinquedoteca, para não distanciar da realidade deles, totalizando trinta e quatro
objetos.
A oficina revelou alguns dados importantes, pois observamos que, tanto as
crianças como suas professoras, classificam e justificam que os brinquedos são de
menino, de menina, ou dos dois, principalmente pela cor que possuem.
Observamos, portanto, que ambos os grupos apresentam a concepção de que
aquilo que obtém a cor azul é de menino, e os objetos que possuem a cor rosa é
menina.
Apresentamos, abaixo, o quadro com as ilustrações dos objetos que foram
explorados na oficina desenvolvida.
Quadro 1 – Objetos/brinquedos da oficina lúdica com as crianças e adultos
Fonte: organizado pelos autores
Metodologia
A oficina foi realizada no interior da Brinquedoteca, com as crianças e
professoras da Educação Infantil, no segundo semestre de 20174. Desse modo, os
participantes foram convidados a ajudar a separar os itens dispostos dentro de uma
única caixa (colocando em ambientes distintos o que é só de menino, só de menina
ou dos dois), escolhidos pelos pesquisadores, como exemplo: bonecas, bolas, jogos
coloridos, celular, ursinhos, entre outros – ilustrados anteriormente no quadro 1.
O trabalho é de abordagem qualitativa, mas possui caráter quantitativo em
razão da organização dos dados. Nesta pesquisa, a criança não é vista como objeto
simples de análise, mas como um sujeito que, de maneira ativa, participa e traz à
tona questões, em seus diálogos com o adulto pesquisador, que mobilizam e dão
contornos à pesquisa propriamente dita, conforme aponta a sociologia da infância.
Tomamos a sociologia da infância como um importante suporte teórico, sobretudo
por considerar a reprodução interpretativa e cultura de pares, cunhada por Corsaro
(2011), como um importante conceito nessa pesquisa.
Reconhecemos, portanto, que os saberes, as experiências e os significados
que as crianças atribuem às questões postas no decorrer da pesquisa são tão
relevantes e legítimos quantos os dos adultos, considerando que existem as
singularidades e diferenças. É por isso que compreendemos a criança como um
sujeito cujos significados, experiências e saberes expressam o que vive na infância
4 Vale ressaltar que as crianças e professoras foram convidadas previamente a participar. O projeto
em questão foi submetido ao comitê de Ética, Plataforma Brasil, e possui aprovação e autorização
para realização da pesquisa.
– neste caso, as questões relacionadas ao gênero e às brincadeiras desenvolvidas
na Brinquedoteca –, situada em um tempo e em uma cultura muito específicos.
Dessa forma, calcados na sociologia da infância, pesquisamos com a criança ao
invés de tomá-la apenas como objeto de investigação (JOBIM E SOUZA; CASTRO,
2008).
A oficina, metodologicamente, foi elaborada de modo a acontecer em dois
momentos: primeiro com as crianças e depois com as professoras da turma. Os
pesquisadores iniciaram a oficina com as crianças sem a presença das professoras.
As crianças se acomodaram em uma tapete colorido situado no chão da
Brinquedoteca. Foram retirados os trinta e quatro brinquedos, aleatórios e um por
vez, de uma caixa, e as crianças foram convidadas a responder a pergunta: “o
brinquedo é de menina, de menino ou dos dois?”
Ao retirar cada objeto da caixa e consultar a opinião do grupo de crianças, os
brinquedos foram colocados, um a um, dentro de um bambolê. Haviam três
bambolês no chão, um destinado para cada tipo de resposta: o de menino, o de
menina e o que representava os dois.
Ao final da oficina, pudemos notar que quinze brinquedos foram indicados
pelas crianças que ficassem dentro do bambolê que representava os objetos de
meninos, outros quinze brinquedos foram classificados por elas como sendo
exclusivamente de meninas, e apenas quatro foi direcionado para o bambolê que
representava aquilo que ambos podem manusear e brincar.
A mesma oficina realizada com as professoras das crianças nos permitiram
identificar uma diferença nas respostas. Treze brinquedos foram indicados como
sendo exclusivos de meninas e dez dos objetos dispostos na caixa, para elas, são
de meninos. Por outro lado, onze brinquedos foram elegidos como algo que pode
ser tanto de meninos, quanto de meninas.
Sobre a oficina lúdica com as crianças e professoras
Para a análise dos discursos em torno dessa temática que abarca o universo
infantil e adulto, que circulam nas relações entre as crianças e adultos, como aportes
teórico-metodológicos tem-se os conceitos de dialogismo e alteridade de Mikhail
Bakhtin (19992; 1998). Tal autor, grande referência nos estudos da linguagem, nos
fornecem subsídios para compreender os processos discursivos que ocorrem nas
interações com o outro.
Apropriamo-nos dessa abordagem porque, além de colher as informações
das crianças e adultos sobre os brinquedos na Brinquedoteca (em que eles nos
ajudaram a separar nos bambolês), para organizar em um quadro, os participantes
nos explicaram porque tais objetos e brinquedos foram classificados da forma como
apontaram. Desse modo, os discursos são fenômenos que consideramos e
analisamos no processo da pesquisa.
O gênero é um conceito importante neste trabalho, pois conforme afirma
Louro (1997), é no âmbito das relações sociais que os gêneros se constituem. Não
há uma construção única para se pensar em gênero, ou seja, uma posição natural
ou essencialista que determina como cada gênero tenha que se definir e manifestar.
Por isso, é importante compreendê-lo como um conceito plural, multifacético, aberto
à diversidade como mulheres e homens se veem, se sentem, se comportam, se
relacionam e são representados socialmente.
Quando as crianças brincam na Brinquedoteca nos deparamos com situações
em que as professoras, tomadas pelas questões tradicionais que as atravessam,
culturalmente, interferem nos modos como meninas e meninas conduzem suas
brincadeiras. Na perspectiva dos estudos culturais, abordamos as identidades de
gênero e sexuais como construções sociais e históricas, que se constituem a partir
dos corpos sexuados e os posicionam na prática social, na história e na cultura.
Convém ressaltar que o gênero é um elemento significativo no processo de
constituição identitária, que escapa da fixidez, da cristalização e da permanência,
como defende Scott (1995). Os sujeitos apresentam identidades que são plurais,
múltiplas e contraditórias, como argumentam Bauman (2005) e Suart Hall (2011).
A respeito do conceito de gênero, podemos afirmar, a partir das análises de
Souza (2014, p. 66), que se “trata-se de uma categoria social, construída pela
sociedade e a cultura que busca diferenciar e estabelecer qual o papel de cada um
dos sexos na sociedade. As distinções e definições dos papéis de gênero chegam a
determinar as formas de trabalho mais apropriadas a homens e mulheres e, ainda, o
que se espera em relação à maternidade e paternidade”. Na Brinquedoteca, as
crianças, ao brincar, representam papeis sociais a partir das interações que
estabelecem com o outro e que refletem em suas culturas lúdicas.
Nessa perspectiva, Barbeiro (2014) enfatiza que o problema surge quando o
gênero não condiz com o padrão socialmente aceito pela sociedade. Os papeis
sociais de homens e mulheres já estão definidos. Ou seja, meninos devem ser fortes
e meninas doces e meigas. Conforme afirma a autora, “não podemos pensar o
gênero ou a sexualidade (os “sexos”) como expressões de uma realidade psíquica
ou física que os precede. Fica claro, nesta perspectiva, o reducionismo que existe na
ideia preconcebida de que existem somente dois sexos “normais” e dois gêneros
correspondentes, e que o resto das possibilidades entraria na categoria de um
desvio” (BARBERO, 2014, p. 60).
Nessa perspectiva, quando meninos, por exemplo, brincam com maquiagens,
as professoras interferem e ressaltam que não pode porque se trata de um
brinquedo de menina. Os meninos, nessa concepção de contraditoriedade, deveriam
brincar com as coisas que reforçam a virilidade e a masculinidade, afirmam as
professoras. Por exemplo, a vassoura, para elas, é um brinquedo de menina, não de
menino. Os quadros em anexo apresentam a classificação dos brinquedos (de
menino, menina e ambos) que as crianças e professoras consideram para cada
divisão que foi proposta.
Considerações
Observamos que as crianças, quando brincam no espaço da Brinquedoteca,
utilizam os diversos brinquedos existem no local e, assim, representam, classificam
e significam. O tradicionalismo de algumas professoras aparece nas atividades
lúdicas das crianças, quando o menino, por exemplo, é impedido de brincar com a
maquiagem – que na concepção da professora “é coisa de menina”.
Por um lado, as crianças nos informaram que existe uma diferença
emblemática entre os brinquedos que foram apresentados a elas, pois alguns são
exclusivos de meninos (quinze deles) e outros são para meninas (quinze deles). No
entanto, apenas a máquina fotográfica, a cordinha de pular, a bolha de sabão e o iô-
iô, são brinquedos que podem ser compartilhados por ambos, meninos e meninas.
Por outro lado, as professoras, num esforço de demonstrar que não possuem
raízes que demarcam o binarismo em suas práticas e ações, nos informaram que
dos trinta e quatro brinquedos dispostos, onze deles podem ser manuseados por
meninos e meninas. Notamos que ainda existe uma concepção de que a cor do
brinquedo pode influenciar na questão do gênero e da sexualidade das crianças,
pois para as professoras a bola rosa, máquina fotográfica roxa e rosa, secador de
cabelo, chapinha, vassoura e boneca, a título de ilustração, são brinquedos para
meninas.
Logo, esperamos que com a realização deste projeto outros possam surgir
com intuito de aprofundar sobre a temática ou gerar outras ideias. São as relações
estabelecidas no contexto da pesquisa que nos direcionam para que a investigação
se torne uma intervenção ação, algo que também causa e proporciona impacto no
mundo educacional, valorizado por nós pesquisadores.
Espera-se, portanto, problematizar ainda mais o assunto em questão e
difundir o conhecimento com a comunidade, a família das crianças, os profissionais
da educação e com o mundo das produções acadêmicas, mesmo sabendo que se
trata de um tema que desconforta muitas pessoas, e é tratado como tabu na
infância.
Referências
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992. ______. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 4. ed. São Paulo: UNESP/ Hucitec, 1998. BAUMAN, Z. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. BARBEIRO, G. H. H. Movimentos Sociais e Desigualdades de Gênero. In: Gênero e Diversidade na Escola. Ed. UFMT, 2014. CORSARO, W. A. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011. FELIPE, J. Erotização dos corpos infantis. In: LOURO, G. L.; FELIPE, J.; GOELLNER, S. V. (orgs.). Corpo, gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
FELIPE, J.; GUIZZO, B. S. Erotização dos corpos infantis na sociedade de consumo.
In: Pro-posições. v. 14, n. 3, set./dez., 2003.
HAAL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 11. ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2011.
JOBIM E SOUZA, S.; CASTRO, L. R. Pesquisando com crianças: subjetividade
infantil, dialogismo e gênero discursivo. In: CRUZ, S. H. V. (org.). A criança fala: a
escuta de crianças em pesquisa. São Paulo: Cortez, 2008. p. 52-78.
LOURO, G. L. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista.
8. ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 1997.
SCOTT, J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. In: Educação e Realidade. Porto Alegre: Editora da UFRGS, v. 20, 1995. p. 71-99.
SOUZA, L. L. Gênero no Cotidiano Escolar. In: Gênero e Diversidade na Escola. Ed.
UFMT, 2014.
ANEXO 1 – Tabela referente à oficina com as crianças
OBJETO/BRINQUEDO COISA
DE
MENINA
COISA
DE
MENINO
COISA
DOS
DOIS
SECADOR
X
PATROLA
X
URSO DE PELÚCIA
X
TIGRE
X
CHAPINHA
X
MÁQUINA DE
FOTOGRAFAR ROXA
X
MÁQUINA DE
FOTOGRAFAR ROSA
X
LIVRO DE BICHOS
X
BOLA ROSA
X
BOLA AZUL
X
BONECA
X
CARRINHO JEEP
X
VIOLÃO DE
BRINQUEDO
X
BARCO COLORIDO
X
VASSOURA DE
BRINQUEDO
X
CORDA
X
BARCO
X
RODO DE
BRINQUEDO
X
CAVALINHO DE
BRINQUEDO
X
ROBÔ DE
BRINQUEDO
X
MACACO COM
PRATOS
X
PANDEIRO
X
RAQUETE DE TÊNIS
X
BINÓCULO
X
CELULAR DE
BRINQUEDO
X
FAZ BOLHAS DE
SABÃO
X
PETECA
X
KIT DE
MAQUIAGEM
X
IÔ- IÔ
X
ARMA DE
BRINQUEDO
X
BOLICHE
X
BARBIE
X
COZINHA DE
BRINQUEDO
X
BOLA DE GUDE
X
ANEXO 2 – Tabela referente à oficina com as professoras
OBJETO/ BRINQUEDO MENINA MENINO AMBOS
SECADOR
X
PATROLA
X
URSO DE PELÚCIA
X
TIGRE
X
CHAPINHA
X
MÁQUINA DE TIRAR FOTO
ROXA
X
MÁQUINA DE TIRAR FOTO
ROSA
X
LIVRO DE BICHOS
X
BOLA ROSA
X
BOLA AZUL
X
BONECA
X
CARRINHO JEEP
X
VIOLÃO DE BRINQUEDO
X
BARCO COLORIDO
X
VASSOURA DE BRINQUEDO
X
CORDA
X
BARCO
X
RODO DE BRINQUEDO
X
CAVALINHO DE BRINQUEDO
X
ROBÔ DE BRINQUEDO
X
MACACO COM PRATOS
X
PANDEIRO
X
RAQUETE DE TÊNIS
X
BINÓCULO
X
CELULAR DE BRINQUEDO
X
FAZ BOLHAS DE SABÃO
X
PETECA
X
KIT DE MAQUIAGEM
X
IÔ- IÔ
X
ARMA DE BRINQUEDO
X
BOLICHE
X
BARBIE
X
KIT DE COZINHA DE
BRINQUEDO
X
BOLA DE GUDE
X