professores alfabetizadores: o que dizem e o que fazem · para a discussão sobre o papel da escola...

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PROFESSORES ALFABETIZADORES: O QUE DIZEM E O QUE FAZEM Sandra Cristina Oliveira da Silva 1 Sheyla Cavalcante de Arruda 2 Telma Ferraz Leal 3 Resumo Neste artigo, discutimos os resultados de uma pesquisa que analisou as relações entre os discursos de professoras sobre suas opções metodológicas relativas ao processo de alfabetização e as práticas de ensino. A metodologia consistiu da aplicação de um questionário a um grupo de doze professoras, realização de uma entrevista com quatro professoras, e observações de vinte aulas de duas docentes. Os resultados apontaram que havia variação de concepções das docentes sobre alfabetização, predominando, no entanto, a valorização da dimensão do letramento e não da apropriação do sistema alfabético de escrita. Quatro professoras explicitaram o foco no trabalho com unidades linguísticas menores que as palavras. Os resultados evidenciaram, ainda, que havia aproximações entre o discurso e a prática das docentes. Concluímos que a formação continuada de professores alfabetizadores precisa ser conduzida de modo a resgatar as concepções das professoras, na busca de compreendermos suas opções metodológicas. Palavras-chaves: Alfabetização. Letramento. Métodos de alfabetização. 1 Graduada em Pedagogia. [email protected] 2 Graduada em Pedagogia. [email protected] 3 Doutora em Psicologia. tfl[email protected]

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proFEssorEs alFabEtizadorEs: o quE dizEm E o quE FazEm

Sandra Cristina Oliveira da Silva1

Sheyla Cavalcante de Arruda2

Telma Ferraz Leal3

ResumoNeste artigo, discutimos os resultados de uma pesquisa que analisou as relações entre os discursos de professoras sobre suas opções metodológicas relativas ao processo de alfabetização e as práticas de ensino. A metodologia consistiu da aplicação de um questionário a um grupo de doze professoras, realização de uma entrevista com quatro professoras, e observações de vinte aulas de duas docentes. Os resultados apontaram que havia variação de concepções das docentes sobre alfabetização, predominando, no entanto, a valorização da dimensão do letramento e não da apropriação do sistema alfabético de escrita. Quatro professoras explicitaram o foco no trabalho com unidades linguísticas menores que as palavras. Os resultados evidenciaram, ainda, que havia aproximações entre o discurso e a prática das docentes. Concluímos que a formação continuada de professores alfabetizadores precisa ser conduzida de modo a resgatar as concepções das professoras, na busca de compreendermos suas opções metodológicas. Palavras-chaves: Alfabetização. Letramento. Métodos de alfabetização.

1 Graduada em Pedagogia. [email protected] Graduada em Pedagogia. [email protected] Doutora em Psicologia. [email protected]

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introdução

Este artigo, fruto de uma pesquisa de campo realizada em três cidades da Região Metropolitana do Recife (Recife, Igarassu e Paulista), expõe reflexões sobre as concepções e práticas de professoras alfabetizadoras, buscando contribuir para a discussão sobre o papel da escola no ingresso das crianças no mundo da escrita.

Segundo Morais e Albuquerque (2005, p. 69), “a condição de sujeito letrado se constrói nas experiências culturais com práticas de leitura e escrita que os indivíduos têm oportunidade de viver, mesmo antes de começar sua educação formal.”. Ou seja, a escola deve proporcionar a continuidade desse processo de letramento e sua ampliação, associando-o de forma significativa à aprendizagem do sistema alfabético de escrita. Nessa concepção de alfabetização, o professor tem o papel de evitar a desarticulação entre a aprendizagem escolar da escrita e da leitura e a inserção dos estudantes em práticas sociais de uso de diferentes textos. Desse modo, o docente precisa promover situações que favoreçam a aprendizagem da base alfabética e o desenvolvimento de habilidades de produção e compreensão de textos em diferentes esferas sociais de interação.

Observações assistemáticas têm mostrado que não tem sido simples fazer esta articulação. Os resultados de avaliações, a exemplo daqueles apresentados pela Prova Brasil e Provinha Brasil, têm mostrado que os estudantes brasileiros não têm atingido as expectativas de aprendizagem delimitadas nas propostas curriculares dos diferentes sistemas de ensino.

Diante dessa problemática, analisamos os discursos de doze professoras sobre suas opções metodológicas relativas ao processo de alfabetização, sobretudo em relação à realização ou não de estratégias de ensino que articulem essas duas dimensões (apropriação do sistema de escrita e estratégias de compreensão e produção de textos para atender a diferentes finalidades sociais) e investigamos as práticas de duas docentes, a fim de verificar se seus discursos condiziam com as suas práticas.

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Para iniciar as reflexões, é realizado um breve histórico sobre os métodos de alfabetização. No tópico seguinte são feitas considerações sobre a concepção de alfabetização na perspectiva do letramento. Logo após, a metodologia da pesquisa é descrita, seguida das análises dos resultados, organizadas em três tópicos. No primeiro, os questionários aplicados a doze docentes são objeto de atenção, buscando-se identificar quais métodos de alfabetização ou abordagens teóricas são assumidos pelas docentes como subjacentes às suas práticas. No segundo tópico de resultados, as entrevistas de quatro docentes são apresentadas, objetivando-se reconhecer quais concepções as profissionais explicitam ao falarem sobre alfabetização. Depois, são expostos os dados de observações de aula de duas professoras, relacionando tais dados aos relativos às concepções evidenciadas nas entrevistas. Por fim, as considerações finais são apresentadas.

métodos dE alFabEtização: um brEvE histórico.

Diferentes métodos foram adotados para alfabetizar crianças, jovens e adultos ao longo da história. Esses métodos têm sido classificados em três tipos: os métodos sintéticos, os métodos analíticos e os sintético-analíticos, cada um com suas características próprias.

Os métodos sintéticos tiveram seu auge até meados do século XVIII e consistem em partir dos elementos da língua “mais simples”, ou seja, letras, fonemas, sílabas para, a partir da aprendizagem dessas unidades, apresentarem as palavras, frases e textos compostos por esses elementos. Sobre esse assunto, Galvão e Leal salientam que

Propostas de ensino baseadas nesses métodos partem do pressuposto de que a aprendizagem é mais fácil quando se parte das unidades mais elementares e simples (em geral sem sentido), para, em seguida, apresentar unidades inteiras e significativas (2005, p. 18).

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Abordando o mesmo tema, Barbosa afirma que

A instrução procede do simples para o complexo, racionalmente estabelecidos: num processo cumulativo, a criança aprende as letras, depois as sílabas, as palavras, frases e, finalmente, o texto completo. Estabelece-se como regra geral que a instrução não deve avançar no processo sem que todas as dificuldades da fase precedente estejam dominadas (1994, p. 47).

Segundo Ferreiro e Teberosky, os métodos sintéticos partem do seguinte pressuposto

Na aprendizagem, está em primeiro lugar a mecânica da leitura (decifrado o texto) que, posteriormente, dará lugar à leitura “inteligente” (compreensão do texto lido), culminando com uma leitura expressiva, onde se junta a entonação (1985, p. 19).

Podemos citar como exemplos os métodos alfabéticos e os silábicos. Nesses, são realizadas atividades de repetição, em que os alunos têm de memorizar todas as letras e agrupá-las, formando sílabas. Depois de conhecer um conjunto de padrões silábicos, precisam formar palavras e frases. Só posteriormente, é dada atenção aos textos que circulam nos espaços extraescolares.

Dentre outros variantes dos métodos sintéticos, podem ser citados os métodos fônicos. Sobre esses métodos, Roazzi, Ferraz e Carvalho (1996, p. 3) salientam que

Basicamente, trata-se de fazer pronunciar as letras, aprendidas uma de cada vez, de acordo com seu valor fônico, como se pronunciam enquanto unidades das palavras.

Em suma, como já foi dito, os métodos sintéticos seguem uma sequência delimitada por etapas fixas em que o trabalho com as unidades menores da língua (letras, fonemas, sílabas, palavras) precede as situações de reflexão acerca das

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unidades maiores (textos). Textos produzidos especificamente para o processo de alfabetização, cujas finalidades e forma composicional não são comuns nos espaços extraescolares, são recorrentemente usados por profissionais que adotam tal perspectiva metodológica.

Os métodos analíticos, por outro lado, vieram se estabelecer no final do século XX e tiveram grande influência da psicologia genética. Seus defensores acreditavam que as abordagens sintéticas não ofereciam um aprendizado significativo por serem mecânicas, artificiais e não funcionais.

A proposta dos métodos analíticos, sobretudo os globais, é partir do todo, ou seja, das palavras, das frases e dos textos para, posteriormente, analisar os componentes dos mesmos: letras e sílabas. No entanto, também nesta abordagem é comum o uso de textos criados especificamente para o processo de alfabetização, distanciados, portanto, dos que circulam em outras esferas de interação.

Os métodos analíticos trouxeram a inovação de partir das palavras, unidades maiores e que têm sentido para as crianças. No entanto, também é mecânico e monótono, pois se fundamentam, sobretudo, em atividades de memorização de palavras ou pequenos textos.

Nicholas Adams foi o precursor dessa visão global da aprendizagem quando afirmou que “[...] quando se quer mostrar um casaco para uma criança, não se começa dizendo e mostrando separadamente a gola, depois os bolsos, os botões, a manga do casaco. O que se faz é mostrar o casaco e dizer para a criança: “isto é um casaco”. (citado em Barbosa, 1994, p.50). Partindo dessa mesma ideia, Decroly e Degand (1906) citam as abordagens ideovisuais. Ou seja, o processo de aquisição de leitura e escrita é primeiramente visual, partindo do concreto (frases) para o abstrato (letras e sílabas).

Em contraposição aos métodos sintéticos, surgiram abordagens que propunham, desde o início da alfabetização, a presença de atividades em que os aprendizes pudessem debruçar-se sobre as unidades menores e as maiores de forma quase simultânea. As palavras eram decompostas e

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recompostas, para provocar no aluno a tomada de consciência de que o todo se compõe das partes. Nesta perspectiva, havia uma aposta em que os estudantes deveriam ter contato com palavras e/ou pequenos textos desde o início da escolarização e, ao mesmo tempo, analisarem suas partes constituintes.

Os métodos analítico-sintéticos sugerem, desse modo, que a alfabetização se dá por meio dos processos de composição / decomposição de palavras. Galvão e Leal (2005) salientam

Entre as variações do método analítico- sintético, encontramos a Palavração. Com ele, o aluno aprende palavras e depois as separa em sílabas para com estas formar novas palavras (p. 24).

Coutinho (2005) resume de maneira clara a relação entre os três métodos: “embora houvesse divergências entre os três, ambos percebiam a aprendizagem do sistema de escrita alfabética como uma questão mecânica, a aquisição de uma técnica para a realização do deciframento.” (p. 48). Não há, nas perspectivas citadas, ênfase no processo de compreensão dos princípios do sistema alfabético de escrita, ou seja, nenhum dos três propõe um trabalho em que os estudantes precisem pensar sobre o funcionamento do sistema.

Foi através dos estudos sobre a psicogênese da língua escrita, realizados por Emília Ferreiro e seus colaboradores, que o pensamento construtivista mudou as visões a respeito do processo de apropriação alfabética. De acordo com Mortati (2006)

O construtivismo se apresenta não como um método novo, mas como uma “revolução conceitual”, demandando, dentre outros aspectos, abandonarem-se as teorias e práticas tradicionais, desmetodizar-se o processo de alfabetização e se questionar a necessidade das cartilhas (p. 10).

Segundo Ferreiro (1992), a escrita pode ser vista de duas maneiras: “como uma representação da linguagem ou como

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um código de transcrição de unidades sonoras” (p. 10). Nos métodos citados anteriormente, a escrita é vista da segunda forma, como um código, que deve ser memorizado.

Ainda de acordo com a autora, “a invenção da escrita foi um processo histórico de construção de um sistema de representação, não um processo de codificação.” (p. 12). Desse modo, para Ferreiro (1992), a criança também se apropria de um sistema de representação e não simplesmente de um código. A autora acredita que o primeiro passo para saber quais os conhecimentos que o indivíduo apresenta sobre a escrita é analisar os escritos dele, ou seja, é através dessa análise que se podem conhecer os níveis de escrita dos alunos.

Ferreiro (Idem) ainda afirma que “o modo tradicional de se considerar a escrita infantil consiste em se prestar atenção apenas nos aspectos gráficos dessas produções, ignorando os aspectos construtivos.” (p. 18). A partir dos estudos de Ferreiro, as escritas e as aprendizagens das crianças foram vistas de outro ângulo, o que proporcionou um avanço bastante significativo sobre como as crianças se apropriam do sistema de escrita alfabética. Nesta perspectiva, as crianças podem, desde muito cedo, refletir sobre a “lógica” que regula a escrita alfabética, ou seja, os princípios de funcionamento do sistema de escrita. Propõe-se, desse modo, um ensino problematizador, em que os estudantes em interação com a escrita e com seus pares, possam elaborar hipóteses e entender como se dão as relações entre a pauta sonora e o registro gráfico.

No entanto, outro problema pode ser apontado em relação aos métodos de alfabetização citados anteriormente (sintéticos, analíticos e analítico-sintéticos): não havia articulação entre a aprendizagem inicial da escrita e os usos sociais dessa ferramenta cultural. Os textos usados eram “artificiais”, dado que não circulavam em espaços sociais extraescolares. Foram os estudos sobre o letramento que fizeram emergir orientações didáticas acerca do trabalho com textos autênticos no processo de alfabetização, tal como discutiremos adiante.

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a alFabEtização na pErspEctiva do lEtramEnto

Na década de 1980, no Brasil, ganhou grande destaque nos debates sobre educação o termo “analfabetismo funcional”, que indicava que as pessoas sabiam “ler”, porém não compreendiam; e sabiam escrever apenas textos escolares. Para combater tal fenômeno, era preciso entender que ler e escrever são práticas sociais. O termo letramento, de acordo com Soares (1999), é a versão para o Português da palavra de língua inglesa literacy, que é “o estado ou condição que assume aquele que aprende a ler e escrever” (p. 17). O termo letramento, no Brasil, não substitui a palavra alfabetização. Ele aparece associado a ela. Segundo Albuquerque (2005)

Podemos falar ainda nos dias de hoje, de um alto índice de analfabetos, mas não de “iletrados”, pois sabemos que o sujeito que não domina a escrita alfabética, seja criança, seja adulto envolve-se em práticas de leituras e escritas através da mediação de pessoas alfabetizadas, e nessas práticas desenvolve uma série de conhecimentos sobre os gêneros que circulam na sociedade (p. 16).

O sujeito está inserido num mundo letrado. Todos os dias eles têm contato com distintos textos com finalidades diferentes. Mesmo sem nunca ter ido à escola, as pessoas fazem uso da escrita e da leitura através de outras pessoas.

Após o surgimento da concepção de alfabetizar na perspectiva do letramento, foram sendo introduzidos nas salas de aulas diversos gêneros textuais. No entanto, debates vêm ocorrendo até os dias atuais acerca de como abordar os gêneros nas práticas escolares. Santos e Albuquerque (2005) abordam esse assunto da seguinte forma

Sendo a escola lugar específico de ensino-aprendizagem, não é possível reproduzir dentro delas as práticas de linguagem de referência tais quais aparecem na sociedade. Ao entrar no processo de ensino, as situações de produção textual, embora remetendo às situações nas quais tais textos são utilizados nas práticas de linguagem

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na sociedade, apresentam características peculiares à situação de ensino em que estão inseridas (p. 96).

Tal princípio é discutido de modo aprofundado por autores como Dolz e Schneuwly (2004), que defendem que os gêneros textuais, ao serem contemplados nos currículos escolares, sofrem desdobramentos, pois deixam de ser apenas um instrumento de interação e passam a assumir também o status de objeto de ensino.

Como resultado dos estudos do letramento, tem-se assumido que, desde o início da escolarização, é preciso inserir os estudantes em situações em que eles tenham que interagir por meio de textos autênticos, entrando em contato com os diferentes usos sociais da escrita. No entanto, muitos debates têm sido travados no tocante à necessidade, ou não, de abordar a aprendizagem do sistema alfabético de escrita por meio de atividades específicas de apropriação desse sistema. Há, no bojo desse debate, uma idéia de que a simples imersão dos estudantes em situações de leitura e produção de textos já garantiria a alfabetização.

Desse modo, deparamo-nos, atualmente, no Brasil, com pelo menos três modos de encarar a alfabetização

1) Ênfase na aprendizagem do “código”, por meio de métodos silábicos ou fônicos, com pouca atenção aos processos de letramento;

2) Ênfase no letramento, por meio de atividades de leitura e produção de textos, sem atenção à aprendizagem específica do sistema de escrita, que ocorreria como decorrência do próprio letramento;

3) Ênfase simultânea à aprendizagem do sistema de escrita, por meio de atividades de reflexão sobre o funcionamento da base alfabética, e à inserção dos estudantes nas práticas de letramento.

Nesta pesquisa, um dos objetivos era, como apresentado anteriormente, identificar se tais concepções são encontradas entre docentes da Educação Básica e quais as relações entre

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as concepções explicitadas pelas docentes e suas práticas de ensino. Apresentaremos, a seguir, a metodologia usada para tal investigação.

mEtodologia dE pEsquisa

A pesquisa foi realizada através de trabalho de campo em escolas municipais da cidade do Recife e da Região Metropolitana (Igarassu e Paulista). Participaram da primeira fase da pesquisa 12 professoras alfabetizadoras, com idades entre 25 e 49 anos, com formações distintas: uma delas tinha concluído o Magistério; quatro estavam cursando Pedagogia; duas já eram graduadas em Pedagogia; duas eram graduadas em Letras; duas eram graduadas em História; e, por fim, uma graduada em Filosofia. O tempo que lecionavam variava de 2 a 28 anos e o tempo que lecionavam nos anos 1 e 2 do Ensino Fundamental variou entre 1 e 13 anos. Das doze professoras pesquisadas, onze afirmaram participar de formações continuadas.

Três etapas foram seguidas nesta investigação. A primeira etapa consistiu na aplicação de um questionário às professoras, que nos deu suporte para a análise das opções metodológicas das docentes pesquisadas acerca da alfabetização e para a caracterização do grupo investigado. A análise do questionário foi realizada em duas fases: a exploração geral das respostas, para a construção das categorias e a releitura das respostas para aprofundamento das análises, considerando as categorias criadas. Com base na leitura minuciosa, foi realizada a montagem de um quadro com as respostas das docentes que nos ajudou, posteriormente, a realizar as análises.

Sobre as vantagens do questionário, Gressler diz: “provavelmente a maior vantagem do questionário é a sua versatilidade. A maior parte dos problemas que exigem anonimato pode ser pesquisada por meio de questionário, uma vez que o mesmo assegura maior liberdade em expressar opiniões.” (1979, p. 55).

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Baseando-se nas análises dos questionários, foram escolhidas quatro professoras para participar da etapa seguinte da pesquisa. O critério de seleção foi a necessidade de contemplar professoras que explicitassem diferentes opções metodológicas de alfabetização. Assim, as professoras escolhidas tinham as seguintes características:

• Professora 1: disse que adotava a perspectiva do letramento e quando questionada sobre como alfabetizava seus alunos, só listou atividades de leitura e escrita de textos.

• Professora 2: afirmou que o melhor era o construtivismo e que ela o adotava. Citou atividades com textos e com unidades linguísticas menores (palavras e letras), mas com pouca diversidade.

• Professora 3: disse que os métodos tradicionais eram os melhores, mas utilizava um pouco de cada; indicou atividades variadas.

• Professora 4: afirmou que o melhor método era o socioconstrutivismo, mas adotava um pouco de cada; listou atividades com textos e com palavras, evidenciando uma prática diversificada.

Na segunda etapa da pesquisa, foi realizada uma entrevista com as quatro professoras citadas, para que elas pudessem detalhar melhor suas formas de condução do trabalho docente, para, então, aprofundarmos as análises das concepções de alfabetização delas e entendermos melhor as suas práticas.

A entrevista é um instrumento que nos abre um enorme leque sobre o tema pesquisado, pois, diferentemente do questionário, em que os indivíduos organizam suas ideias para responder de forma escrita, na entrevista, as docentes estavam em situação de conversa face-a-face, fato que ajudou a aprofundar suas respostas. Segundo Gressler (1979, p. 61), na entrevista “o entrevistador tem condições de aclarar as questões e encorajar o investigado a fornecer informações mais completas e de observar o que o entrevistado diz e como diz: gestos, expressões faciais, alterações da voz etc.”.

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Na terceira etapa, foram escolhidas duas professoras dentre as quatro que demonstraram concepções diversas sobre alfabetização. As professoras escolhidas foram as que demonstraram opiniões distintas sobre alfabetização. Escolhemos a professora 3, que dizia adotar métodos tradicionais, e a professora 4, por ela ter defendido o socioconstrutivismo.

Foram realizadas dez observações de aulas de cada professora. O período foi de três meses, contando, em média, com intervalos de sete dias entre as observações. Assim como nas entrevistas, as aulas foram gravadas. Após as observações, foram feitos relatórios dessas aulas, onde estavam disponíveis informações sobre as atividades realizadas.

De acordo com Marconi e Lakatos (2007, p. 193), a observação “permite a evidência de dados não constantes do roteiro de entrevista ou de questionários.” Tal procedimento nos mostrou a prática das docentes pesquisadas de forma mais direta, além de nos permitir conhecer as atividades realizadas e as contribuições que as mesmas podiam dar no processo de alfabetização das crianças.

rEsultados

Com os resultados obtidos nos questionários, nas entrevistas e nas observações, pudemos responder algumas indagações feitas no início do nosso trabalho, as quais serão apresentadas nos tópicos a seguir.

As professoras adotam algum método de alfabetização? Qual (quais) método(s) diziam adotar?

Diante das respostas apresentadas pelas docentes no questionário, pudemos categorizá-las em 2 grupos:

• Grupo 1: professoras que disseram adotar um método específico.

• Grupo 2: professoras que disseram usar um pouco de cada método.

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No grupo 1, foram classificadas cinco professoras que disseram adotar um método específico. As cinco citaram abordagens de base interacionista. Três dessas professoras disseram que usavam o “método do letramento” e duas delas, o “construtivismo”. Como sabemos, nem o letramento e nem o construtivismo são propostas metodológicas. No entanto, podemos entender que as docentes identificavam tais abordagens como métodos por conceberem que há determinados princípios didáticos articulados aos pressupostos do construtivismo e às orientações dadas por autores que discutem sobre o letramento.

Diferenças entre essas docentes foram observadas em relação aos tipos de atividades citados para alfabetizar.

As três professoras que disseram usar o “letramento” afirmaram que faziam atividades centradas em textos (leitura e escrita de diferentes gêneros textuais). Uma das professoras acrescentou também a atividade de ditado, mas o foco principal dela era o texto. Tal opção decorre de uma posição sobre alfabetização de que é suficiente proporcionar o contato dos alunos com os textos que eles passam a escrever com autonomia. No entanto, como discutimos anteriormente, tal idéia é oposta ao que defendem autores como Morais e Albuquerque (2005), que mostram evidências de que para que os estudantes dominem o sistema de escrita é importante promover atividades em que eles tenham que pensar sobre o funcionamento da base alfabética. Apenas uma dessas professoras que disse usar o letramento citou também o trabalho com os nomes dos alunos, além de citar tarefas de composição e decomposição de palavras e identificação de semelhanças sonoras e gráficas. Isto é, ela realizava atividades especificamente voltadas para o ensino do funcionamento da base alfabética, embora não enfatizasse tais estratégias didáticas.

As duas professoras que disseram usar o construtivismo afirmaram usar alguns materiais que continham textos, mas pudemos verificar que tais materiais favoreciam reflexões sobre palavras. Uma delas falou que utilizava cartazes e cartões com palavras. Não explicou o que fazia com tais materiais, mas

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usava recursos que possibilitavam análises de palavras. A outra professora também dizia utilizar textos, mas citou atividades centradas em reflexões sobre palavras ao indicar a utilização de listas. Pudemos também inferir alguma preocupação com reflexão fonológica quando a professora afirmou que utilizava muitos poemas infantis, parlendas, quadrinhas, trava-línguas, dentre outros textos que estimulam a tomada de consciência sobre semelhanças sonoras.

Nenhuma das cinco docentes enfatizou atividades diversificadas de composição / decomposição de palavras, ordenação de sílabas ou letras, dentre outras que poderiam ajudar as crianças a compreender mais especificamente o funcionamento do sistema de escrita. Pudemos observar que as docentes apresentaram respostas em que havia atividades pouco diversificadas e baixíssima preocupação com as atividades centradas nas palavras. Nenhuma citou atividades problematizadoras de reflexão sobre unidades menores que as palavras, como as sílabas e letras ou fonemas. Salientamos que os teóricos do construtivismo (como Emília Ferreiro e Ana Teberosky) sugerem que é necessário fazer as crianças pensarem sobre a lógica de construção do sistema. Não há, nas propostas dessas autoras, restrição à utilização de atividades centradas nas palavras e outras unidades, como parecem supor as docentes que dizem utilizar tal perspectiva.

Duas dessas professoras que disseram adotar um método específico foram escolhidas para a fase de entrevista. A professora 1, porque dizia adotar o letramento e afirmava que utilizava apenas textos para alfabetizar. A professora 2, porque dizia adotar o construtivismo e afirmava que usava, além de jornais e outros suportes para o contato com textos, listas e pequenos textos de tradição oral: poemas, trava-línguas, parlendas, dentre outros.

Seis professoras disseram utilizar em sua prática docente um pouco de cada método, sendo, por isso, classificadas no grupo 2, descrito anteriormente.

Apenas uma professora citou métodos sintéticos como sendo os melhores. Ela afirmou que os melhores métodos

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de alfabetização são Casinha Feliz e Se Liga. Os dois citados são embasados em abordagens sintéticas (métodos fônicos e silábicos). Esta professora, apesar de dizer que estes métodos são os melhores, dizia adotar um pouco de cada método. Afirmou também que trabalhava com leitura de textos em sala de aula. Na listagem dos gêneros que ela dizia adotar, foram contemplados textos de tradição oral, como parlendas, trava-línguas e poemas infantis.

Uma das professoras disse que o melhor método é o socioconstrutivismo, mas afirmou que misturava diferentes métodos. Na listagem das atividades citadas por ela, foram variados os tipos de reflexão acerca de diferentes unidades linguísticas: palavras, sílabas, letras... Dada esta variedade citada por ela, ela foi escolhida para participar da fase 2 da pesquisa.

Das quatro professoras restantes, duas afirmaram utilizar em sua prática um pouco de cada método. As atividades citadas pelas duas docentes foram pouco diversificadas. Uma citou apenas o trabalho com leitura e escrita de vários gêneros textuais e ditados variados. A outra citou atividades com gêneros textuais presentes na cultura popular (cantigas de rodas, músicas, quadrinhas, parlendas.) e leitura e escrita do próprio nome.

As outras duas professoras afirmaram utilizar em sua prática docente os métodos tradicionais. Sendo que, uma delas dizia usar também o letramento e a outra, o construtivismo. As atividades citadas pela docente que dizia trabalhar com o letramento consistiam no trabalho com leitura e escrita de vários gêneros textuais, ditados diversificados e atividades com lacunas. Não foram citadas atividades de análise das unidades menores das palavras. Já a professora que dizia utilizar o construtivismo citou atividades diversificadas que além de priorizar os textos, favoreciam a reflexão sobre as unidades menores das palavras.

Nesta fase da pesquisa, pudemos verificar a variação de concepções das docentes, havendo, no entanto, predomínio de um discurso que valorizava mais as atividades de leitura e produção de textos e menos as atividades de apropriação do sistema alfabético de escrita, mesmo quando as professoras

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diziam que preferiam as abordagens mais tradicionais. Escolhidas as quatro professoras, buscamos aprofundar as análises, realizando entrevistas para aprofundar as análises sobre quais eram suas concepções acerca dos métodos que diziam adotar. Trataremos disso no próximo tópico.

Quais concepções as professoras explicitaram sobre os métodos de alfabetização?

Analisando as respostas das professoras sobre os métodos que conhecem e como são eles, obtivemos os seguintes resultados:

A professora 1 disse apenas conhecer o “método” baseado na perspectiva de letramento e que, de acordo com a mesma, é apenas o trabalho com textos e o contato do aluno com a leitura. “Proporcionar ao aluno o contato maior com a leitura”.

As docentes 2 e 4 afirmaram conhecer o Construtivismo e o Montessori, sendo que, a professora 4 ainda citou como métodos tradicionais - o Casinha Feliz e o “Alfa e Beto” - e o método de “Paulo Freire para jovens e adultos”. Salientou que “(...) os métodos na sua maioria visam estabelecer a relação grafofônica das palavras, mas fogem da realidade cultural, social e econômica do aluno.” Nas entrevistas, elas mostraram pouco aprofundamento sobre as perspectivas metodológicas citadas.

A professora 3 disse conhecer apenas métodos baseados na abordagem sintética, o Casinha Feliz, que a professora defendeu que era o melhor. Ela destacou o trabalho de fantoches com letras e fonemas; o Parabéns, conceituado por ela como sendo o trabalho com o “letramento tradicional”; e o Se Liga, que, segundo a professora, trabalha com palavra chave, família silábica e com música.

Podemos concluir, então, que as quatro docentes, apesar de citarem vários métodos, entendiam muito pouco sobre eles. Elas tinham idéias vagas a respeito dos métodos de alfabetização tradicionais e tinham construído uma representação de que o letramento seria um método baseado no trabalho exclusivo com textos.

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As professoras 1, 2 e 4, como já foi afirmado, defendiam que o foco principal do trabalho é o texto, ou seja, a prioridade dada, segundo seus depoimentos, era a dimensão do letramento. A professora 4 salienta que:

(...) a escrita é uma construção conceitual de trajetória e reflexão. No letramento, não há preocupação com a questão motora, a escrita não é tratada como um código. Letrar é familiarizar o aprendiz com diversos usos sociais da leitura e escrita. Letrado é alguém que se apropriou suficientemente da escrita e da leitura a ponto de usá-las com desenvoltura, com propriedade, para dar conta de suas atribuições sociais.

Esta professora foi escolhida para participar da terceira parte da pesquisa, a observação das aulas, por defender enfaticamente o trabalho exclusivo com textos.

A professora 3, como já foi dito, foi a única que defendeu os métodos sintéticos, mas, ao mesmo tempo, afirmou que contemplava tanto o trabalho com textos, quanto o trabalho com unidades menores: letras, sílabas. Por isso, escolhemos esta docente para a terceira parte da pesquisa.

O discurso das professoras alfabetizadoras pesquisadas condiz com a sua prática em sala de aula? Análise das aulas observadas.

A professora 3, na entrevista, dizia que “(...) eu trabalho textos diversificados, trabalho os fonemas, padrões silábicos, o alfabeto que é indispensável para que o aluno aprender a ler e a escrever.”. Isto é, mesmo sem ter domínio conceitual, demonstrava acreditar no princípio de que é necessário trabalhar com textos e com unidades menores que o texto (fonemas, sílabas...). Para essa docente, o trabalho com essas unidades menores caracterizaria os métodos que ela citou no questionário e na entrevista. A professora mostrou evidências de que acreditava que é importante enfocar o texto e outras unidades linguísticas.

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Como já foi dito, a professora salientou que não utilizava apenas um método e, sim, um pouco de cada. Quando perguntada sobre o melhor método, ela afirmou: “junção do Casinha Feliz com Se Liga seria ótimo”, mas não argumentava as razões dessa junção. Na verdade, podemos levantar a hipótese que é justamente porque nestes métodos há atenção às correspondências grafofônicas, que, para ela, seria uma perspectiva tradicional, na qual ela acreditava.

Observando a prática da docente 3, pudemos perceber que a mesma realizava leitura de textos quase todos os dias, no início da aula. Das dez aulas observadas, ela só não realizou a leitura em voz alta para as crianças em três. No entanto, dessas três aulas, apenas uma não envolvia o eixo leitura, que foi a aula que a professora conversou sobre o dia das crianças e propôs uma atividade de produção textual; as outras duas aulas foram iniciadas com atividades envolvendo leitura, uma para a leitura ser realizada pelas crianças em voz alta e outra para que as mesmas escolhessem um livro para ler. Vemos, assim, que ela contemplou em todas as aulas atividades envolvendo textos.

Os gêneros textuais utilizados pela docente foram cantigas de roda, lendas e fábulas, contos. Confrontando o discurso e a prática da professora 3 em relação ao eixo leitura, podemos afirmar que a docente realizava o que dizia realizar. Na entrevista, ela disse que realizava leitura e o trabalho com gêneros textuais. De fato, isso pôde ser constatado.

“com o texto, eu faço as leituras pra eles. Procuro saber deles o que eles já sabem sobre aquela... Se for uma receita ou se for uma narrativa, o que eles já sabem sobre aquilo. Procuro é... falar algumas partes assim, deixando que eles completem pra que eles tenham a oportunidade também de participar ali e de completar.”

Em relação à escrita, a professora propôs somente uma atividade de produção textual, a qual as crianças teriam de

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elaborar um texto sobre o dia das crianças. Não houve indicação do gênero, finalidade ou destinatário para o texto a ser escrito.

Concordamos com Soares (2003) quando ela salienta que na escola pode acontecer a aprendizagem e desaprendizagem da escrita “enquanto aprende a usar a escrita com as funções que a escola atribui a ela, e que transformam em uma interlocução artificial, a criança desaprende a escrita como situação de interlocução real” (p. 73). Assim, essa professora, apesar de ter realizado atividade de elaboração textual, conduziu a atividade de modo desarticulado das práticas sociais de leitura e escrita.

O eixo da apropriação do sistema alfabético também foi contemplado nas aulas observadas. No entanto, não havia diversidade de atividades e as propostas didáticas não ajudavam as crianças a problematizar o funcionamento do sistema de escrita, evidenciando a influência dos métodos sintéticos em sua prática.

Na primeira aula, a professora fez a leitura de todas as letras do alfabeto, trabalhando os fonemas e a memorização dos padrões silábicos. Identificamos, também, o trabalho com ditados. Em duas aulas a professora fez um ditado mudo que foi realizado em grupo, e um ditado comum para a fixação de palavras com BR, CR, DR, FR,VR. Os escritos foram corrigidos pela docente nos dois momentos, sem haver, no entanto, nenhuma reflexão no decorrer da atividade.

Comparando seu discurso com a sua prática, percebemos que havia muitas convergências. Em relação à priorização do eixo da leitura, houve aproximação entre o que ela dizia e fazia. De fato, ela priorizava tal eixo e contemplava diferentes textos nas atividades de leitura. Outra convergência pode ser salientada em relação ao eixo de apropriação da base alfabética. Ela afirmava que os melhores métodos eram os sintéticos e realmente as tarefas que levava para as crianças tinham muita semelhança com as que são utilizadas em perspectivas dessa natureza: eram atividades repetitivas e pouco problematizadoras. Vemos, portanto, que a professora usa um pouco de cada perspectiva citada por ela.

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Da discussão sobre letramento, ela usava a prática de leitura de textos diversificados; dos métodos sintéticos, ela adotava alguns tipos de atividades recorrentes nos manuais que orientam tais práticas. Não havia, no entanto, uma adoção da alfabetização na perspectiva do letramento, pois nesta abordagem, as situações de ensino do sistema de escrita seguem uma orientação mais problematizadora, como foco na aprendizagem sobre o funcionamento do sistema de escrita de modo articulado às atividades de leitura e de produção de textos para atender a diferentes finalidades sociais.

A professora 4, diferentemente da professora 3, afirmou concordar com a perspectiva de alfabetizar letrando. Salientou ainda que o melhor método de alfabetização era o “sócio-construtivismo”, porém, dizia que em sua prática utilizava um pouco de cada método.

Durante o tempo em que foi observada, a docente pareceu demonstrar aproximações entre o discurso e a prática. No questionário, a mesma informou utilizar diferentes recursos para alfabetizar seus alunos e isso foi constatado. A docente selecionava textos de distintos gêneros textuais, como parlendas, contos, receitas, bilhetes, quadrinhos, bulas, cartas, anúncios, horóscopos, entre outros.

O eixo da leitura era trabalhado quase que diariamente. A docente, ao ler histórias, fazia perguntas de antecipação para atiçar a curiosidade dos alunos a respeito do texto e exibia para as crianças a capa do livro, as ilustrações... Durante a leitura, a professora fazia intervenções, a fim de estimular o interesse e a participação das mesmas e após, fazia a interpretação oral do texto. A professora trabalhava também com ordenação de textos e quebra-cabeças de frases e textos.

A professora utilizava os textos, também, em atividades que estimulavam os alunos a fazer a relação grafofônica através de rimas, como foi o caso das parlendas: “Quando é que uma palavra rima com a outra? Quando elas têm o mesmo final, né gente?! Quando elas combinam. Tu, tatu. Tá vendo?”.

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Sobre o trabalho com gêneros, a professora salienta que: “(...) são fundamentais, é... leitura de todos os gêneros e a interpretação dos gêneros, trabalhando a estrutura de cada gênero, mostrando que, que uma carta, um bilhete, uma poesia, uma música... ela diferencia por... cada uma tem um objetivo, uma funcionalidade...”

Em relação à produção de textos, no entanto, havia um afastamento de uma perspectiva do trabalho com gêneros, na medida em que não eram indicados os destinatários e as finalidades dos textos a serem produzidos e nem os suportes onde eles iriam circular.

Em uma das aulas, ela produziu, juntamente com os alunos (texto coletivo), uma história a partir de uma gravura. Durante a construção, a professora pediu para que eles informassem o título que queriam dar à história, o nome dos personagens, em que local estavam e ela registrava tudo no quadro. “- O que eles estão fazendo, onde eles estão? Um é goleiro e o outro é o quê? Digam aí.” ou “- E agora, o que aconteceu?”. Como podemos perceber, o texto era um misto de descrição de imagem e narrativa. Vemos, então, que o eixo de produção de textos foi tratado de um modo bastante similar ao que era proposta em perspectivas centradas em concepções de textos como “tipos abstratos”, apartados dos gêneros que circulam socialmente.

No eixo da aprendizagem da base alfabética, a professora trabalhava com análise de palavras através de atividades com caça-palavras, alfabeto móvel, ditado mudo, construção de palavras a partir de padrões silábicos, bingo de palavras, cópia de textos, produção de rimas. Ela fazia uso, por exemplo, do caça-palavras para mostrar aos alunos que em uma palavra pode conter uma ou mais palavras, além de estudar, também, a correspondência grafofônica,

Assim como no discurso, a professora 4 mostrou que na prática utilizava atividades diversificadas para que as crianças avançassem na compreensão do sistema de escrita alfabética, entendendo o que ele representa. No entanto, apesar de

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trazer para sala de aula um quantitativo considerável de gêneros, percebemos que a docente não trabalhava muito a funcionalidade dos textos estudados.

Analisando o discurso e observando a prática das duas docentes pesquisadas, percebemos que há mais aproximações do que afastamentos entre os discursos proferidos pelas docentes e a prática das duas professoras, contradizendo o senso comum de que as professoras “dizem uma coisa e fazem outra”.

considEraçõEs Finais

Entender os princípios do sistema de escrita alfabética não é tarefa fácil para o aluno, assim como alfabetizar não é uma tarefa fácil para o professor. Por outro lado, aprender a ler e produzir textos não é fácil, como também não é fácil ensinar a ler e produzir textos. No entanto, o docente precisa perceber que a aprendizagem do sistema de escrita ocorre em um período delimitado, ao passo que as habilidades de ler e produzir textos desenvolve-se durante toda a vida do indivíduo. Antes mesmo de entrar na escola, os sujeitos vivem num mundo letrado, mesmo não sendo alfabetizados e após concluírem a educação básica continuam vivendo nesta sociedade e lidando com variadas situações em que os textos escritos circulam.

Cabe ao professor propor, em sala de aula, atividades que ajudem o aluno a se apropriarem do sistema de escrita alfabética e entender o uso do mesmo na sociedade, para que sua prática como docente se assemelhe à maioria dos discursos proferidos por muitos professores, que é alfabetizar para formar cidadãos autônomos nas práticas de escrita e leitura no meio em que vivem.

Das duas professoras, a que mais se aproximou desse modo de conceber a alfabetização foi a professora 4, que desenvolveu atividades de interpretação de textos e atividades problematizadoras de apropriação do sistema de escrita, embora no eixo de produção de textos tenha adotado uma

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perspectiva distanciada desse modo de conceber o ensino da língua. Essa professora, em seu discurso, explicitava a necessidade de promover situações variadas de leitura e escrita de textos, mas dizia que utilizava atividades com unidades menores, aliando diferentes “abordagens”. Na realidade, ela tinha consciência de que lançava mão de orientações didáticas advindas de diferentes perspectivas teóricas.

A professora 1 também tinha essa consciência da necessidade de contemplar atividades de leitura de textos e atividades centradas em unidades menores da língua, mas as influências sobre sua prática em relação à dimensão da apropriação do sistema de escrita era de perspectivas sintéticas, as quais a professores tomava como referência para ajudar as crianças a ter autonomia no uso da escrita.

Em suma, duas principais conclusões podem ser extraídas desse trabalho:

1 – As professoras adotam, no cotidiano da sala de aula, perspectivas teóricas diversas, resultantes, sobretudo, da necessidade de contemplar diferentes dimensões do trabalho com a língua. Não havendo uma perspectiva teórica que auxilie as professoras a garantir a aprendizagem do sistema de escrita e ampliação das habilidades requeridas na interação por meio dos diferentes gêneros textuais, elas lançam mão de orientações advindas de diferentes modelos teóricos.2 – Fortes relações entre o discurso e a prática foram encontradas. Mesmo quando as docentes não explicavam de modo mais claro os pressupostos teóricos das abordagens que diziam conhecer, explicitavam princípios gerais relativos às abordagens teóricas que eram orientadores de suas ações didáticas.

As duas conclusões citadas acima evidenciam que, na formação continuada, é preciso atentar com cuidado ao que dizem as professoras e entender suas escolhas. Há uma mistura teórica que pode ser entendida se buscarmos compreender a complexidade da alfabetização e os limites das abordagens teóricas subjacentes às investigações desenvolvidas por

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pesquisadores. É possível enfocar as diferentes dimensões da alfabetização sem preconceitos, buscando apreender que conhecimentos diversos precisam ser apropriados pelos estudantes e os professores precisam lançar mão das ajudas disponíveis para isso.

Por outro lado, os resultados da pesquisa mostram que é possível, e necessário, promover situações de teorização da prática, pois as próprias docentes buscam articular os princípios que explicitam às suas opções metodológicas. A formação continuada pode ajudar os professores a realizarem escolhas mais conscientes e responsáveis. Não nos pareceu que as professoras simplesmente repetissem atividades, pois havia uma coerência interna nas escolhas metodológicas. É preciso colocar em evidência suas justificativas para as escolhas cotidianas, favorecendo que reflexões teóricas aprofundadas ampliem seus horizontes profissionais.

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alphabEtizEr tEachErs: What thEy say and What thEy do

AbstractIn this article we have discussed the results of a research that analyzed the relations between the teachers’ discourse about methodological options related to the alphabetization process and the teaching practices. The methodology consisted of a questionnaire application to a twelve teacher group, the making of interviews with four teachers, and the observation of twenty classes from two docents. The results have showed that there was variation on the teachers’ concept of alphabetization, predominating, nevertheless, not the valorization of written alphabetic system but the literacy dimension. Four teachers have highlighted the work with linguistic units smaller than words. The results have made still it clear that there have been approximations between docents’ discourse and practice. We have concluded that the continuous formation of alphabetizer teachers needs to be conducted in a way that we can take into account teachers’ conceptions in order of understanding their methodological options.Keywords: Alphabetization. Literacy. Methods of alphabetization.

Data de recebimento: janeiro 2013Data de aceite: abril 2013