formação de professores alfabetizadores em contexto de htpc

Upload: lucy-simoes

Post on 15-Jul-2015

418 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

Lucy Conceio Simes

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

MESTRADO EM LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

SO PAULO 2009

PONTIFCIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO PUC-SP

Lucy Conceio Simes

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

MESTRADO EM LINGSTICA APLICADA E ESTUDOS DA LINGUAGEM

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para a obteno do ttulo de Mestre em Lingstica Aplicada e Estudos de Linguagem, sob a orientao da Profa. Dra. Angela Brambilla CavenaghiThemudo Lessa

SO PAULO 2009

BANCA EXAMINADORA

________________________________ ________________________________ ________________________________

"O nascimento do pensamento igual ao nascimento de uma criana: tudo comea com um ato de amor. Uma semente h de ser depositada no ventre vazio. E a semente do pensamento o sonho. Por isso os educadores, antes de serem especialistas em ferramentas do saber, deveriam ser especialistas em amor: intrpretes de sonhos." (Rubem Alves)

Dedico este trabalho:

A Deus, por tudo. Principalmente por colocar em minha vida pessoas to especiais.

Aos meus pais, pelo amor imensurvel e por tamanha demonstrao de afeto. Minha referncia de vida. Agradeo a presena constante em minha vida, a incansvel parceria nos momentos difceis e a grande ajuda na criao dos meus filhos, durante as minhas inmeras ausncias, em virtude da longa jornada de trabalho e estudos.

Aos meus filhos Stefany e Juan, em quem eu encontrei conforto e carinho. Agradeo a compreenso de vocs em cada pedido de companhia no atendido, porque eu estava envolvida com a pesquisa. Que vocs sejam felizes e cresam buscando inspirao nos valores dissiminados por seus avs.

Ao meu amor, amigo e companheiro, por me incentivar a fazer o mestrado, cujas palavras de apoio foram de fundamental importncia para que eu prosseguisse buscando a realizao dos objetivos. Muitssimo obrigada pela cumplicidade.

s pessoas que acreditam que possvel construir uma sociedade em que todos possam ter as mesmas oportunidades.

AGRADECIMENTOS

Secretaria da Educao do Estado de So Paulo, pelo apoio financeiro que viabilizou esta pesquisa. Profa. Dra. Angela Brambilla Cavenaghi Themudo Lessa, por ter me ensinado que a rigidez cientfica pode ser acompanhada de afeto e amizade. Pelas palavras encorajadoras e por me fazer acreditar que eu seria capaz de ir adiante. Sou-lhe grata pelas muitas discusses e pelos conflitos que me levaram a buscar respostas e me permitiram crescer como pesquisadora. Aos amigos, pelas palavras de conforto e pelos grandes ensinamentos. Em especial ao Aparecido, pelas oportunidades profissionais que me proporcionou, dentre elas o convite para atuar no ensino superior. Aos professores e aos alunos que tive oportunidade de conhecer, ao longo da minha profisso, com os quais aprendi a ter esperana de que o mundo pode ser melhor do que hoje. Mnica, mais do que uma auxiliar de assuntos domsticos e relacionados aos filhos, deume provas infindveis de sua amizade. Muitas vezes abriu mo de seus projetos pessoais para me oferecer ajuda. Desejo um dia poder retribuir tamanha dedicao. Profa. Dra. Maria Ceclia Camargo Magalhes, que me fez tomar gosto pela pesquisa crtica de colaborao e cujas aulas me fizeram refletir sobre o meu papel como professora e formadora. Profa. Dra. Alice Yoko Horikawa, pelo afinco com que leu meu trabalho, trazendo valiosssimas contribuies. Aos Amigos do grupo de pesquisa, em especial: Miriam, Rubens, Jane, Gleiciane e Patrcia, pelas conversas acadmicas e pelos almoos descontrados, tambm. Aos Professores do LAEL, que favoreceram que eu refletisse criticamente sobre o meu papel como lingista aplicada. H um pouquinho de cada um aqui. Aos Participantes da pesquisa, por terem permitido o meu crescimento como formadora.

Patrcia, Dona Marina, Marilda, Luiza e Sonia, da Instituio de Ensino Santa Izildinha, pela grande colaborao para que eu pudesse realizar este trabalho. Marasa, pela ajuda com o ingls. grande amiga Hiloko, pelos grandes ensinamentos acadmicos e da vida.

RESUMO

Este trabalho enfoca a formao de professores alfabetizadores, em contexto de HTPC, sob a perspectiva da reflexo crtica. Esta pesquisa tem por objetivos investigar quais so os temas abordados pelos professores alfabetizadores, em discursos sobre suas prticas, e analisar como a pesquisadora-formadora contribui para o desenvolvimento desses professores alm do seu prprio. O contexto da pesquisa uma escola pblica da rede estadual de ensino, localizada na Zona Leste da cidade de So Paulo. Participam da pesquisa 15 professores, o diretor, a vice-diretora, o professor coordenador pedaggico e a pesquisadora-formadora. Trata-se de uma pesquisa crtica de colaborao (Magalhes, 1994a, 1998, 2007), em que a linguagem utilizada como um espao de negociao e reflexo para a anlise das escolhas dos professores (Liberali, 2004). A partir da descrio, discusso e explicao dos conceitos que esto presentes na ao do professor, avalia-se a pertinncia e a relevncia dessas aes para se entender o papel do educador em determinado contexto scio-histrico-cultural (Vygotsky, 1934/1991, 1930-33/2007). So analisados os contedos temticos (Bronckart, 2007) e a qualidade das interaes de seis encontros de HTPC (Kerbrat-Orecchioni, 1943/2003), para constatar quais so os temas predominantes nas discusses e observar se a pesquisadora-formadora consegue promover espaos para a re-significao desses temas (Vygotsky, 1934/2000). Os dados revelam que a pesquisadora parece ter iniciado as bases para a reflexo crtica, como formadora. H fortes indcios que ela vem transformando suas aes, medida que as analisa e as confronta com as teorias que sustentam a linguagem da reflexo crtica.

Palavras-chave: formao de professores, alfabetizao e letramento, reflexo crtica, ensinoaprendizagem

ABSTRACT

This work focuses the education of Literacy Teachers, in HTPC (meetings for teacher education) context, under the critical reflexive perspective. The objectives of this research are to investigate what themes are tackled by Literacy teachers on their discourses about their practices, and to analyze how the formative-researcher contributes to these teachers development. The context of the research is a state public school located in the East side of So Paulo. Fifteen teachers, the principal, the vice-principal, the pedagogical coordinator and the formative-researcher took part in this research. This is a criticalcollaborative research (Magalhes, 1994a, 1998, 2007), in which language is taken as place of negotiation and reflection to analyze teachers choices (Liberali, 2004). Considering the description, discussion and explanation of the concepts which are observed on teachers actions, their pertinence and relevance are evaluated in order to understand the educators role in a determined socio-historic-cultural context (Vygotsky, 1934/1991, 1930-33/2007). The thematic contents (Bronckart, 2007) and the interaction of six HTPC meetings are analyzed (Kerbrat-Orecchioni, 1943/2003) to make sure what themes are predominant through these discussions and also to observe if the formative-researcher is able to promote the realm to these themes resignification (Vygotsky, 1934/2000). Data shows that the researcher seems to have established grounds for critical reflection, as a formative one. There are evidences that she has been changing her actions, while she analyzes and confront them to the theories that support the language of critical reflection. Key-words: teachers formation, literacy and letramento, critical reflection, teachinglearning process.

LISTA DE QUADROS

Quadro 1. Sntese dos encontros de HTPC....................................................................................... Quadro 2. Perfil profissional dos 19 professores que participaram dos encontros de HTPC........................................................................................................................... Quadro 3. 1 Contedo temtico Alfabetizar implica saber em que fase de aquisio da escrita est a criana para faz-la atingir o nvel alfabtico.......................... Quadro 4. 1 Excerto da anlise da interao..................................................................................... Quadro 5. Sntese dos contedos temticos e temas que emergiram das realizaes lingsticas dos professores, durante os encontros de HTPC......................... Quadro 6. 2 Contedo temtico Os professores ensinam conforme aprenderam.......................... Quadro 7. 3 Contedo temtico: O horrio (condies de trabalho) do professor no favorece o processo de ensino e aprendizagem.......................................................... Quadro 8. 4 Contedo temtico - difcil mudar a rotina................................................................ Quadro 9. 5 Contedo temtico Formar professores refletir sobre a prtica luz da teoria....................................................................................................................... Quadro 10. 6 Contedo temtico O professor no tem formao contnua................................... Quadro 11. 7 Contedo temtico O professor no consegue transpor a teoria desejada para a prtica..................................................................................................... Quadro 12. 8 Contedo temtico Alfabetizar contato com as letras, as slabas, as frases e pequenas produes de textos........................................................................ Quadro 13. 9 Contedo temtico A cartilha foi importante no ensino tradicional....................................................................................................................... Quadro 14. 10 Contedo temtico - Ensino de lngua consiste em ensinar os smbolos e a ortografia.................................................................................................... Quadro 15. 11 Contedo temtico - O ensino de lngua toma como ponto de partida a leitura de mundo.............................................................................................. Quadro 16. 12 Contedo temtico - Alfabetizar considerar a lngua um produto cultural............................................................................................................................. Quadro 17. 13 Contedo temtico - Alfabetizar ensinar como a lngua funciona........................................................................................................................... Quadro 18. 14 Contedo temtico - Os diferentes dialetos so ligados a diferentes culturas........................................................................................................... Quadro 19. 15 Contedo temtico - A lngua culta serve para insero social, para ser um verdadeiro cidado.................................................................................................... Quadro 20. 16 Contedo temtico - A classe dominante determina o nvel de linguagem.............. Quadro 21. Contedo temtico - A aprendizagem deve ser um processo completo.......................... Quadro 22. 18 Contedo temtico - Ensinar transmitir conhecimento.......................................... Quadro 23. 19 Contedo temtico - O professor no se sente preparado para alfabetizar determinados alunos................................................................................................. Quadro 24. 20 Contedo temtico Alfabetizar requer pensar no tempo (de maturao) do aluno Quadro 25. 21 Contedo temtico - Alfabetizar s moldar........................................................... Quadro 26. 22 Contedo temtico - O trabalho de Paulo Freire se pauta pela dimenso da alfabetizao emancipatria......................................................................................

52 54 58 60 63 64 65 66 67 68 69 70 71 71 73 74 74 75 76 77 78 78 79 80 82 83

Quadro 27. 23 Contedo temtico - A linguagem medeia a interao entre o indivduo e seu entorno social............................................................................................................ Quadro 28. 2 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 29. 3 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 30. 4 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 31. 5 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 32. 6 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 33. 7 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 34. 8 Excerto da anlise da interao................................................................................... Quadro 35. 9 Excerto da anlise da interao...................................................................................

84 90 93 95 96 98 100 101 103

LISTA DE TABELAS

Tabela 1. Participao dos falantes em nmero de turnos..................................... Tabela 2. Participao dos falantes em nmero de palavras..................................

86 87

LISTA DE GRFICO

Grfico 1. Participao da pesquisadora-formadora em nmero de turnos e palavras....... 88

SUMRIO

INTRODUO......................................................................................................... 1 FUNDAMENTAO TERICA..................................................................... 1.1. Alfabetizao e letramento............................................................................. 1.1.1 Alfabetizao e Letramento no Brasil.............................................. 1.2 Teorias de ensino-aprendizagem: a trade professor-aluno-conhecimento..... 1.2.1. Behaviorismo.................................................................................. 1.2.2. Inatismo........................................................................................... 1.2.3 Interacionismo piagetiano................................................................ 1.3 Teoria scio-histrico-cultural ....................................................................... 1.3.1 Funes psicolgicas superiores...................................................... 1.3.2 Desenvolvimento e aprendizagem na concepo de Vygotsky....... 1.3.3 Construo de significados: conceitos espontneos e conceitos cientficos......................................................................................... 1.3.4 Zona proximal de desenvolvimento................................................. 1.4. A linguagem................................................................................................... 1.4.1. Vygotsky: signo e instrumento....................................................... 1.4.2. O dialogismo de Bakhtin................................................................. 1.5. Formao de professores crtico-reflexivos................................................... 1.6 HTPC (Hora de Trabalho Pedaggico Coletivo)............................................ 1.7 A linguagem da reflexo crtica......................................................................

1 9 9 13 19 20 21 21 22 23 25 26 27 28 29 32 34 38 41

2 METODOLOGIA DE PESQUISA....................................................................... 46 2.1 Tipo de Pesquisa............................................................................................. 2.2 Contexto de Pesquisa...................................................................................... 2.2.1 A Escola e a comunidade................................................................. 2.2.2 Os encontros nas HTPCs.................................................................. 2.3 Participantes.................................................................................................... 2.3.1 Professores ...................................................................................... 2.3.2 Equipe de gesto.............................................................................. 2.3.3. Pesquisadora.................................................................................... 2.4.Instrumentos.................................................................................................... 2.5 Procedimentos para coleta e tratamento de dados........................................... 2.6 Procedimentos e categorias para a anlise de dados....................................... 2.7. Garantia de credibilidade............................................................................... 3 ANLISE E DISCUSSO DOS DADOS............................................................ 3.1. Temas desenvolvidos nas HTPCs.................................................................. 3.1.1 Tema: trabalho do professor............................................................ 3.1.2 Tema: Formao de professores...................................................... 3.1.3 Tema: Alfabetizao........................................................................ 3.1.4 Tema: Variao Lingstica ............................................................ 3.1.5 Tema: Ensino-aprendizagem............................................................ 3.1.6 Tema: Letramento............................................................................ 46 47 48 51 53 53 54 55 56 56 57 60 62 62 64 67 70 75 77 83

3.1.7 Tema: Linguagem............................................................................ 3.2 Distribuio dos turnos de fala........................................................................ 3.3 Anlise das interaes..................................................................................... 3.4 Sntese dos resultados .................................................................................... CONSIDERAES FINAIS................................................................................... REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS.................................................................... ANEXOS....................................................................................................................

84 85 89 104 107 111 118

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

1

INTRODUO

[...] o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminaes de raa, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e no de afirmao orgulhosa ou de lamentao puramente cavilosa. Paulo Freire

Um sonho. Um desejo. A crena de que esse mundo pode ser menos feio. Um longo percurso. Poucos motivos para continuar na profisso. Muitas perguntas ainda sem respostas. Uma nica certeza: minha colaborao necessria. Faltam recursos, sobram desafios. Atuar na escola pblica, na atualidade, parece exigir de ns cada vez mais o enfrentamento de riscos e incertezas. O mundo ps-moderno move-se em velocidade supersnica, parecendo menor e compactado, em virtude dos meios de comunicao e das prticas de globalizao. A escola, ao contrrio, lenta e, em muitos casos, est caminhando na velocidade do carro de boi (Celani, 2004, p. 41). Essa instituio parece, regra geral, estar voltada ao passado, seguindo os mesmos mapas e patinando na incerteza. A grande questo que se coloca : como reconstruir a partir dos velhos modelos? Segundo Celani (2004), em lugar de se abandonar velhos padres, determinados por prticas que no foram contestadas, porque fazem parte da tradio da escola, h a necessidade de se aceitar as contradies de sala de aula, inerentes a sua imprevisibilidade. importante que se recorra s inmeras escolhas disponveis, oferecidas pelas contribuies da cincia e da tecnologia. Percorrer outros caminhos, correr riscos e incertezas. nisso que consiste a criatividade. preciso olhar de outro modo para as mesmas coisas. A educao brasileira tem passado por muitas e grandes transformaes nas ltimas dcadas. Isso trouxe como resultado um aumento significativo no nmero de pessoas que tiveram acesso escola. Elevou-se o nvel mdio de escolarizao da populao. No entanto, todas essas mudanas parecem no ter sido suficientes do ponto de vista da equidade de oportunidades a que todos os cidados merecem ter acesso. Um olhar mais atento s questes da alfabetizao brasileira possibilitar abord-la sob duas ticas diferentes: como prticas de sucesso e como prticas de fracasso. O sucesso poder ser atribudo s polticas de democratizao do ensino, que ampliou consideravelmente o acesso e a permanncia da populao de 7 a 14 anos na escola.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

2

Ao analisarmos as questes scio-histricas relacionadas ao processo da alfabetizao brasileira, poderamos pensar, a princpio, que h motivos para otimismo, haja vista a ampliao de projetos polticos voltados democratizao do ensino, sobretudo do ensino fundamental. De acordo com Gracindo (1995), essas polticas pblicas compreendem que o ensino fundamental de grande importncia para a construo de uma educao de massas, em que devem ser assegurados o acesso e a permanncia de todos. Esses projetos polticos trouxeram como resultado um aumento significativo de acesso e permanncia da populao de 7 aos 14 anos na escola: na dcada de 1980, 80,9% dos alunos nessa faixa etria estavam na escola e, no ano de 2000, esse nmero subiu para 96,4%, segundo dados do MEC/INEP1. Entretanto, preciso questionar como os sistemas de ensino vm sendo configurados no pas e em quais condies saem esses alunos que permanecem esses oito anos na escola. Cabe, ainda, questionar se as oportunidades educacionais e as condies estruturais de ensino-aprendizagem acompanharam esses indicadores (Gracindo, 1995). Se avaliarmos a qualidade dessa educao, inevitavelmente, constataremos que h um quadro de fracasso. Essa democratizao, que teve incio a partir dos anos 70, fez com que a escola lidasse com um grande nmero de crianas com culturas e escolhas lingsticas diferentes daquelas propostas pela escola. Isso era devido s suas condies de vida, o que acabaria implicando em dificuldades na aprendizagem, de acordo com esse modelo de escola pensado pela e para a elite (Gracindo, 1995). A linguagem oral dessas crianas estava bastante distante da lngua escrita e, regra geral, elas tinham pouca ou nenhuma oportunidade de vivenciar os usos da escrita e de conviver com pessoas que valorizavam o aprendizado da escrita. A respeito dessas dificuldades, Weisz (2009) chama-nos a ateno para o fato de que h um grande desperdcio do dinheiro pblico com a repetncia no primeiro ano de escolaridade e cita os ndices do IBGE, que revelam os 56,6% de reteno em 1956 e os 41% em 1996. Segundo a autora, h duas maneiras de explicar esse fenmeno: uma cientfica e uma de senso comum. A primeira, diz respeito s chamadas teorias do dficit, em que se responsabilizou o aluno pelo seu prprio fracasso. De acordo com essas teorias, a aprendizagem dependeria de pr-requisitos cognitivos, psicolgicos, lingsticos, perceptivomotores, etc. Foram criados, ento, exerccios de estimulao, conhecidos como exerccios de prontido, para "curar o fracasso, como se ele fosse uma doena" (Weisz, 2009, p.225). Dessa

1

Fonte: Geografia da Educao Brasileira, MEC/INEP, 2002.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

3

forma, acreditava-se que as crianas fracassavam porque no dispunham de habilidades prvias. A segunda explicao para os problemas da alfabetizao, especificamente brasileira e sem fundamentao cientfica, relacionou o fracasso desses alunos pobreza, pois se acreditava que eles no aprendiam porque tinham fome. A culpa era em grande parte atribuda famlia, ou porque no alimentava as crianas, ou porque no lhes dava ateno e afeto. Tambm os governantes acreditaram que a fome era a principal causa do fracasso escolar, uma vez que impossibilitava que os alunos aprendessem. Isso levou as polticas pblicas a terem sua ateno voltada ao Programa da Merenda Escolar (Weisz, 2009). Essa iniciativa representou um dos maiores programas sociais do pas. Porm, conforme j tinham alertado vrios pesquisadores da rea mdica, o problema se manteve e as crianas continuaram com dificuldades para aprender, pois a fome no era o nico problema existente. A propsito dos problemas relacionados alfabetizao brasileira, Soares (2004) afirma que as avaliaes so realizadas por meio de diferentes perspectivas, a partir de diferentes reas do conhecimento, que abordam essa questo de maneira independente, ignorando as demais. Buscam-se explicaes para o problema a partir de questes relacionadas ao aluno, ao contexto social, ao professor, ao mtodo, ao material didtico, ao meio ou ao prprio cdigo. Por se tratar de um processo complexo, de acordo com a autora, as questes relativas alfabetizao precisam ser avaliadas levando-se em considerao uma multiplicidade de perspectivas, em que haja a colaborao das diferentes reas do conhecimento e de uma pluralidade de enfoques, para uma melhor compreenso desse fenmeno que envolve atores e seus contextos culturais. Para avaliar esse complexo processo que a avaliao, preciso considerar, tambm, a questo ideolgica. Nesse sentido, no se pode perder de vista que a educao institucionalizada um mecanismo de normalizao e controle, que opera por meio de mecanismos diretos de controle social (Gentili & Silva, 1995). Nesse sentido, os autores chamam a ateno para fato de que o pensamento neoliberal, no campo educacional, tende a transformar questes polticas e sociais em questes tcnicas. Isso implica que os problemas sociais e educacionais no sejam tratados como questes polticas, como resultado e objeto de lutas em torno da distribuio desigual de recursos materiais e simblicos de poder, mas como questes tcnicas de eficcia/ineficcia na gerncia e administrao de recursos humanos e materiais (Gentili & Silva, 1995, p. 18). Nessa linha de raciocnio, todos os problemas enfrentados no cotidiano das escolas por professores e estudantes passam a ser vistos como: o resultado da m gesto e do desperdcio

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

4

dos recursos por parte dos poderes pblicos; a falta de empenho dos professores e administradores educacionais; a falha dos mtodos e a inadequao dos currculos. Ento, busca-se, como soluo para as questes tcnicas, polticas que contemplam apenas solues tcnicas. De acordo com Gentili & Silva (1995), nesse ponto que est inserido o discurso sobre a qualidade e a gerncia da qualidade total, para onde se convergem as presentes propostas neoliberais e a hegemonia do discurso construtivista em educao. Dessa forma, a Qualidade Total em Educao e o Construtivismo Pedaggico acabariam sendo combinados, de modo a produzirem identidades individuais e sociais ajustadas ao clima ideolgico e econmico do triunfante neoliberalismo (Gentili & Silva, 1995, p. 19). Em decorrncia disso, esconde-se o verdadeiro motivo do deplorvel estado da educao pblica: existe um conflito entre os propsitos imediatos de acumulao e os propsitos de legitimao. Segundo os autores, a escola pblica encontra-se nessa situao no em virtude de gerenciar mal os seus recursos, ou em virtude de mtodos e currculos inadequados, mas porque ela no tem os recursos que lhe so devidos. Isso acontece porque a populao atendida por essas polticas pblicas est relegada a uma posio subordinada em relao classe dominante. No que as questes tcnicas meream ser desconsideradas, mas no podem ser avaliadas fora do contexto de falta de recursos e de poder. Se a qualidade existe, est restrita a alguns e passa a ser considerada como sinnimo de riqueza. Desse modo, os objetivos da estratgia neoliberal no se restringem apenas em voltar a educao institucionalizada para as necessidades da indstria ou organizar a educao para o mercado, mas eles tambm tero como foco reorganizar o interior da educao conforme os prprios esquemas de organizao do processo de trabalho, para atingir os objetivos empresariais do lucro e da expanso. Como conseqncia disso, regra geral, as desigualdades e as injustias da estrutura de poder existentes continuam sendo reproduzidas nas salas de aula. Portanto, no basta que se tenha acesso e permanncia nas escolas. preciso que ns, os educadores, no nos rendamos a essa ofensiva e que[...] criemos e recriemos nossas prprias categorias, que definamos e redefinamos as metforas e as palavras que nos permitam formular um projeto social e educacional que se contraponha quelas definidas e redefinidas pelo lxico e pela retrica neoliberal. (Gentili & Silva, 1995, p. 28).

Os autores defendem que preciso que assumamos nossa identidade como trabalhadores culturais envolvidos na produo de uma memria histrica, em que sujeitos

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

5

sociais criam e recriam o espao e a vida sociais (Gentili & Silva, 1995, p. 28). Isso porque no campo educacional h um entrecruzamento de relaes que conectam memria e histria, pedagogia e poltica, poder e cultura. Desse modo, se no ocuparmos nosso lugar e assumirmos a responsabilidade que nos cabe no campo educacional, fatalmente entreg-loemos a foras que o moldaro, conforme seus prprios interesses e objetivos. Esses objetivos no esto, necessariamente, voltados aos objetivos de justia e igualdade, em que seja possvel um melhor futuro para todos e no apenas para uma minoria que vem sendo favorecida ao longo da histria. Em decorrncia disso, a sociedade clama por professores que reflitam criticamente sobre o seu papel e suas escolhas. Nesse sentido, os programas de formao de professores no podem restringir-se formao de meros transmissores de metodologias. preciso ir alm, isto , ter como tnica a reflexo crtica que os impulsione busca de uma educao emancipatria. Entende-se por educao emancipatria aquela que propicia situaes de aprendizagem que problematizam a realidade a partir de uma perspectiva scio-histricocultural e estimulam a curiosidade dos alunos, no sentido de que eles as compreendam e busquem solues para os problemas que vivem, de acordo com as necessidades e urgncias do grupo social ao qual pertencem (Horikawa, 2001). a partir dessa convico que pesquisadores do Programa de Lingstica Aplicada (LAEL), da PUC-SP, vem norteando suas aes. Pode ser citado como exemplo o Programa de Ao Cidad (PAC). Desde 2002, sob a coordenao da Prof Dr Maria Ceclia Camargo Magalhes, pesquisadores vm desenvolvendo trabalhos de interveno no contexto da escola pblica a partir das questes de linguagem. As aes do PAC tm sua centralidade na linguagem e na sua articulao com outras reas do saber, tais como Educao, Sociologia e Psicologia. Esse programa de extenso procura desenvolver a cidadania como a condio daqueles que no aceitam simplesmente o que lhes oferecido, mas que desejam, tambm, construir seus prprios direitos e deveres de forma interdependente (Freire, 1970 e 2000; Lessa, Liberali & Fidalgo, 2005) 2. Em virtude de sua especificidade, o trabalho desse grupo de pesquisadores difere das vrias propostas dos programas de formao oferecidos aos professores da rede pblica, como o caso dos seguintes programas: PROFA (Programa de Formao de Professores Alfabetizadores), Letra e Vida, Ler e Escrever. Tratarei, brevemente, sobre esses programas no captulo terico.

2

http://www.pucsp.br/pos/lael/siac/programa.html. Acesso em 10/03/2009.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

6

Os programas de formao aos quais os professores alfabetizadores tm acesso, regra geral, parecem no utilizar a linguagem numa perspectiva crtica, que os levem ao questionamento de suas prprias aes. Dessa forma, esta pesquisa tem como objetivos: a) investigar quais so os temas abordados pelos professores alfabetizadores em discursos sobre suas prticas, a partir de um programa de formao de professores em contexto de HTPC3 (Hora de Trabalho Pedaggico Coletivo), que tem como paradigmas a reflexo crtica e o trabalho colaborativo; b) contribuir para que os participantes da pesquisa re-signifiquem os temas abordados durante os encontros de HTPC. Este trabalho surgiu a partir de um Projeto de Ao (Anexo I) que, apesar de no ser o foco deste trabalho, foi de fundamental importncia, pois acabou acenando para o projeto de interveno. O Projeto de Ao foi desenvolvido com alunos do 3 ano do curso de Pedagogia de uma faculdade particular, localizada na Zona Leste de So Paulo, onde trabalho como professora de Metodologia de Alfabetizao. Esse projeto teve como objetivos favorecer a prxis dos alunos da Pedagogia e o processo de alfabetizao e letramento de quarenta alunos de uma escola pblica da regio, onde tambm atuo como professora de Lngua Portuguesa. Na escola pblica, havia vrios alunos de 5 a 8 srie que no tinham se apropriado da leitura e da escrita. Isso demandou iniciativas para reverter essa situao, uma vez que os professores especialistas que atuavam com esses alunos encontravam dificuldades para ensinar os contedos de suas disciplinas aos alunos que no sabiam ler. Durante o Projeto de Ao, os alunos de Pedagogia da IES aplicaram um diagnstico de produo de texto aos alunos da escola pblica, cujos resultados remeteram a vrios questionamentos: Por que eles no aprenderam a ler e escrever? Quais prticas estariam sendo desenvolvidas pelos professores alfabetizadores? Quais concepes sobre ensino de lngua teriam esses professores?

3

No captulo terico, ser abordado este assunto.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

7

Foram tais questionamentos que me levaram ao programa de Lingstica Aplicada e Estudos de Linguagem da PUC-SP, para fazer o mestrado na linha de pesquisa em Linguagem e Educao. Pertence a essa linha de pesquisa o grupo de Incluso Lingsticas em Cenrios de Atividades Educacionais (ILCAE)4, do qual fao parte. Este trabalho tem relao direta com o grupo ILCAE, pois nasce da necessidade de incluir socialmente, por meio da linguagem, alunos que ainda no se apropriaram da leitura e da escrita e que esto, portanto, margem da sociedade. Esta pesquisa est inserida em Lingstica Aplicada Crtica, rea do conhecimento de carter interdisciplinar que procura problematizar ou criar inteligibilidade sobre questes que envolvem a linguagem, considerando aspectos sociais e polticos. Moita Lopes (2006, p. 20) diz que tal abordagem interdisciplinar da Lingstica Aplicada permite que ela seja considerada como Lingstica Aplicada mestia ou nmade. Assim como esse autor, compreendo a Lingstica Aplicada contempornea [...] como lugar de ensaio da esperana (2006, p. 104). Esperana de que sejam abertas alternativas sociais, com base na e com as vozes dos professores alfabetizadores da escola pesquisada. Duas perguntas norteiam a pesquisa: Quais so os temas abordados pelos professores alfabetizadores em discursos sobre suas prticas? Como a pesquisadora-formadora contribui para a re-significao dos temas abordados? No captulo 1, so apresentados os conceitos tericos que nortearam a pesquisa. Como referenciais tericos apio-me na concepo interacionista de linguagem e nos conceitos de ensino-aprendizagem e mediao, pautados em Vygotsky (1934/2000, 1934/1991 e 193033/2007); na concepo de dialogismo, de Bakhtin (2006); no conceito de alfabetizao e letramento, tendo como referncia Soares (2003 e 2004), Kleiman (1995/2006), Ferreiro (1989) e Tfouni (2006). J para o ensino de lngua, como objeto de estudo, fao a opoO Grupo ILCAE (Incluso Lingstica em Cenrios de Atividades Educacionais) tem por objetivo (1) promover espaos de discusso de questes relativas a cenrios educacionais, (2) produzindo e divulgando conhecimento na rea de Lingstica Aplicada, em sua interface com a Educao e a Psicologia. Seu foco principal est na incluso de todos os participantes, internos e externos escola pela discusso da linguagem produzida em espaos escolares. Mais especificamente, o grupo desenvolve pesquisas cujos temas sejam: Ensino-Aprendizagem de Lnguas Materna e Estrangeira (incluindo a discusso sobre o espao de LIBRAS), Necessidades Educativas Especiais (NEE) e a Formao do Professor para o trabalho com a diversidade. Para o grupo, NEE engloba desde dificuldades de aprendizagem decorrentes de necessidades fsicas, psicolgicas, mentais, comportamentais (violncia, liberdade assistida), emocionais, at a superdotao, sempre enfocando a questo da linguagem que pode incluir ou manter em estado de excluso as pessoas envolvidas. Em outras palavras, pelo questionamento da linguagem utilizada na, com e para a escola que o grupo espera problematizar o status quo e promover espaos de transformao da escola e formao cidad. http://www.pucsp.br/pos/lael/docs/7_Forum_ILCAE.doc . Acesso em 17/11/2008.4

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

8

pelas contribuies dos autores Luiz Carlos Cagliari (2002 e 2004) e Mendona & Mendona (2007). A formao do professor reflexivo est embasada nos referencias tericos de Freire (1970), Smyth (1992), Magalhes (1994a, 1998, 2007) e Liberali (2004, 2008), autores que atribuem reflexo crtica um papel fundamental para promover a transformao na educao. No segundo captulo, apresento detalhadamente a metodologia adotada, o contexto da pesquisa, os instrumentos de gerao de dados, a explicitao das atividades desenvolvidas nas HTPCs e a descrio dos participantes. Trata-se de uma pesquisa crtica de colaborao, definida por Magalhes (2007) como um processo partilhado de avaliao e questionamento dos objetivos, das escolhas e das compreenses, que possam relacionar as teorias e as prticas scio-histrico e culturalmente constitudas na escola. No terceiro captulo apresento a anlise e discusso dos dados coletados. Com o objetivo de tentar responder a minha primeira pergunta de pesquisa, busco subsdio terico nos estudos de Bronckart (2007), escolhendo a categoria de contedo temtico para fazer um levantamento dos temas discutidos pelos professores, em discursos sobre suas prticas. Para responder a minha segunda pergunta de pesquisa, fao a anlise lingstica por meio dos estudos da anlise da conversao, de Kerbrat-Orecchioni (2006), em que procuro analisar a qualidade da interao a partir das manifestaes lingsticas da polidez. Para interpretao, recorro s aes da reflexo crtica propostas por Smyth (1992) e linguagem da reflexo crtica, de Liberali (2008). Por ltimo, teo as consideraes finais, em que apresento as contribuies e as limitaes desse trabalho.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

9

1 FUNDAMENTAO TERICA Neste captulo apresento os referenciais tericos que embasam este trabalho. A princpio, exploro os conceitos de alfabetizao e letramento, na viso de autores como: Ferreiro & Teberosky (1989), Cagliari (2002, 2004), Soares (2003, 2004), Kleiman (1995/2006), Tfouni (2006), A primeira parte do captulo de cunho histrico das prticas de alfabetizao e letramento no Brasil, uma vez que ela necessria para situar o contexto de estudo desta pesquisa. Depois disso, explicito a influncia da Psicognese da Lngua Escrita e do construtivismo como mtodo nas prticas brasileiras de alfabetizao. A seguir, fao um breve percurso pelos paradigmas de ensino-aprendizagem, considerando a trade professor-aluno-conhecimento, em relao s questes de letramento e alfabetizao. Ento, destino a ateno para a linguagem. Nesse sentido, dois autores merecem destaque para a compreenso da linguagem como instrumento e objeto: Vygotsky (1930-33/2007) e Bakhtin (2006). Chamo a ateno para a escrita como prtica social, por meio dos estudos de Vygotsky (1930-33/2007) sobre signo e instrumento. Apresento, ento, a formao de professores, fazendo uma distino entre reflexo tcnica, reflexo prtica e reflexo tcnica, tendo como referncia Schn (2000), Freire (1970), Dewee (1933/2002), Smyth, (1992), Magalhes (1994a, 1998, 2007) e Liberali (2004, 2008). Diferencio os programas de formao, regra geral, desenvolvidos com os professores alfabetizadores da rede pblica estadual, daqueles que tm com base a reflexo crtica, paradigma escolhido para o programa de formao desenvolvido pela pesquisadoraformadora. Finalmente, chamo a ateno para a Hora de Trabalho Pedaggico Coletivo (HTPC) como um importante espao para o exerccio da reflexo crtica, no processo de formao de professores.

1.1. Alfabetizao e letramento

[...] Aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se , antes de mais nada, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, no numa manipulao mecnica de palavras, mas numa relao dinmica que vincula linguagem e realidade. (Paulo Freire)

Segundo Tfouni (2006), h uma relao de produto e processo entre escrita, alfabetizao e letramento, mas nem sempre os estudiosos consideram-nas como um conjunto.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

10

Nesse sentido, enquanto os sistemas de escrita so um produto cultural, a alfabetizao e o letramento seriam processos de aquisio desses sistemas escritos. Kleiman (1995/2006), afirma que a palavra letramento ainda no est dicionarizada em decorrncia da complexidade e variao dos diferentes estudos que abrangem o assunto. Segundo a autora, esses assuntos so, ao mesmo tempo, incipientes e vigorosos. Incipientes, em virtude da crescente marginalizao de grupos sociais que no conhecem a escrita. Vigorosos, devido ao fato de as pesquisas procurarem unir a teoria, a busca de descries e as explicaes sobre esse fenmeno, cujo interesse social a transformao da realidade. De acordo com Kleiman (1995/2006), a palavra letramento comeou a ser utilizada no meio acadmico para distinguir o impacto social da escrita dos estudos de alfabetizao, nos quais era dado destaque s competncias individuais ao uso e prtica da escrita, exceo feita aos sentidos que Paulo Freire (2003) construiu sobre alfabetizao, em virtude do carter emancipatrio, que o autor atribuiu ao ato de conhecer. Na viso de Freire (Freire, 1970), o homem, tornando-se humano, capaz de perceber a conseqncia de sua ao sobre o mundo nos diferentes contextos histricos. Nesse sentido, a educao poltica e as aes de educar podem tanto domesticar quanto libertar, uma vez que nenhuma educao neutra; estar sempre a servio do interesse de determinado grupo social. Segundo o autor, uma proposta pedaggica nunca contemplar o interesse de todos os grupos sociais, isto , ficar a favor de algum e contra algum. Nesse sentido, segundo Freire (1976), h duas possibilidades de conceber a educao: a Educao Bancria e Tradicional e a Educao Popular e Libertadora. A Educao Bancria e Tradicional concebe os educandos de maneira isolada do mundo, recipientes vazios a serem preenchidos de contedos por algum que sabe mais e tem como papel adaptar os indivduos ao modelo poltico-econmico em vigor. Ao contrrio, a educao popular e libertadora concebe os educandos como sujeitos que constroem seus conhecimentos, a partir de suas histrias de vida e do contexto ao qual pertencem, e tem como objetivo a transformao da realidade. A Educao Popular prioriza o dilogo nas relaes de ensinar e aprender, de maneira a romper com as relaes estabelecidas em que somente um ensina, defendendo uma perspectiva horizontal na relao professor-aluno, de forma que todos aprendam e tambm ensinem. Ela tem como princpio que os educadores respeitem e valorizem as experincias dos educandos. O autor enfatiza que de suma importncia que os educadores aprendam a amar e a acreditar na capacidade dos educandos, os quais podem transformar a realidade, com alegria e esperana, que so o alimento do sonho.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

11

Na concepo freireana, a alfabetizao tem como pressuposto incorporar a leitura de mundo dos educandos como ponto de partida para a leitura da palavra, em que saber ler e escrever implica a capacidade de elaborar projetos e de organizar espaos de participao que atendam s reais necessidades das classes populares, ou seja, uma alfabetizao que leva ao empoderamento. Segundo o autor a leitura de mundo vem antes da leitura da palavra, o que implica que a criana muito antes de ler a palavra, l o mundo que a rodeia, procurando criar sentidos para ela. Nesse sentido, torna-se mais significativo utilizar uma frase que faa parte do repertrio de um determinado grupo, pois ela se torna mais autntica e favorece que os membros desse grupo sejam capazes de levantar hipteses para, depois disso, fazer a leitura da palavra. Freire (2003) chama a ateno para o fato de que a ao de ler deve ser compreendida de maneira mais ampla, uma vez que ela caracterizada pelas relaes que o indivduo mantm com o mundo que o rodeia. Ele afirma queO processo de aprendizagem na alfabetizao de adultos est envolvida na prtica de ler, de interpretar o que lem, de escrever, de contar, de aumentar os conhecimentos que j tm e de conhecer o que ainda no conhecem, para melhor interpretar o que acontece na nossa realidade (Freire, 2003, p. 48).

O ato de ler implica, portanto, numa melhor compreenso da realidade, o que criar a possibilidade de transform-la. Nesse sentido, em virtude de sua dimenso poltica, a concepo de alfabetizao de Paulo Freire difere das demais apresentadas pelos estudiosos do assunto. A princpio, os estudos sobre letramento consideram tambm o desenvolvimento social que acompanhou a expanso dos usos da escrita desde o sculo XVI. Dentre eles:[...] a emergncia do Estado como unidade poltica, a formao de identidades nacionais no necessariamente baseadas ema alianas tnicas e culturais, as mudanas socioeconmicas nas grandes massas que se incorporaram s foras de trabalho industriais, o desenvolvimento das cincias, a dominncia e padronizao de uma variante de linguagem, a emergncia da escola, o aparecimento das burocracias letradas como grupos de poder nas cidades, enfim, as mudanas polticas, sociais, econmicas e cognitivas relacionadas com o uso extensivo da escrita nas sociedades tecnolgicas. (Heath, 1986; Rama, 1980 apud Kleiman, 1995, p. 16)

Paulatinamente esses estudos foram sendo ampliados e o foco voltou-se para descrever as condies do uso da escrita para investigar como e quais eram os efeitos das prticas de letramento em grupos minoritrios ou em sociedades no industrializadas que comeavam a

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

12

integrar a escrita como uma tecnologia de comunicao dos grupos que sustentavam o poder (Kleiman, 1995/2006, p. 16). Falando de outro modo, nesse momento os estudos estavam voltados no mais para os efeitos universais do letramento, mas para estabelecer uma correlao entre as prticas socioculturais dos diversos grupos que usavam a escrita. Kleiman (1995/2006, p. 19) define hoje letramento como [...] um conjunto de prticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simblico e enquanto tecnologia, em contextos especficos, para objetivos especficos (cf. Scribner e Cole, 1981). As idias da autora esto presentes na Proposta Curricular do Estado de So Paulo Ensino Fundamental, Ciclo I (So Paulo, 2008), cujas prescries colocam em evidncia a importncia de a escola ser responsvel pela criao de um ambiente em que sejam propostas situaes de prticas sociais que usem a escrita, de maneira que os alunos tenham acesso e interajam com textos de diferentes gneros. Isso favorece que eles construam as capacidades necessrias participao em situaes sociais que estejam imersas na cultura escrita. Esse documento coloca em evidncia, ainda, que ler e escrever vai alm de juntar letras, decifrar cdigos e que[...] a lngua no um cdigo: um complexo sistema que representa uma identidade cultural. preciso ler e escrever para interagir com essa cultura com autonomia, inclusive para modific-la, do lugar de quem enuncia, e no apenas consome (So Paulo, 2008, p.1).

Nesse sentido, o letramento vai alm do mundo da escrita, conforme a escola o concebe. Apesar de ser essa instituio um dos espaos mais importantes para o letramento, tem considerado a aprendizagem de lngua apenas como processo de aquisio de cdigos, competncia individual que determinar ou no o sucesso e, conseqentemente, a promoo. Paralelamente, outros espaos de letramento mostram distintas orientaes de prticas sociais de leitura e escrita, dentre eles podem ser citados: a famlia, a igreja e a rua como lugar de trabalho (Kleiman, 1995/2006). Corroborando as idias de Kleiman (1995/2006) e Tfouni (2006), Teberosky e Tolchinsky (1995/2006) afirmam que as diferenas entre quem sabe ou no ler e escrever vo muito alm das questes da alfabetizao - englobam aspectos sociais e econmicos, sendo que regies, grupos de pessoas analfabetas vo coincidir com misria e marginalizao. As autoras atribuem escrita um papel de suma importncia para a maioria das instituies sociais que regram a vida comunitria, as quais so responsveis pelo estabelecimento da identidade, a escolarizao e a transmisso da herana.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

13

A seguir, fao um breve percurso histrico para compreender como foram sendo desenvolvidas as prticas de alfabetizao na sociedade brasileira. Depois disso, investigo a repercusso que os estudos de Ferreiro & Teberosky (1989) tiveram nas prticas de alfabetizao nas escolas do Brasil. 1.1.1 Alfabetizao e Letramento no Brasil As mudanas sociais e econmicas pelas quais tem passado a sociedade brasileira vm promovendo novas propostas metodolgicas de alfabetizao. No entanto, essas mudanas no implicaram uma total ruptura com o passado, em que um dos liames entre passado e atualidade pode ser percebido pela manuteno da explorao das slabas nas prticas dos professores alfabetizadores (Correa, 2003). De acordo com a autora, as novas propostas pedaggicas para a aprendizagem da leitura e da escrita, por mais que pretendessem romper com os modelos antigos, continuaram a se basear em experincias passadas e que foram marcadas por eles, mesmo que tivessem a pretenso de rejeit-los. A slaba sempre esteve presente ou no centro ou na periferia dos mtodos de alfabetizao, em virtude da grande importncia atribuda a essa unidade da palavra, o que pode ser confirmado pela histria da escrita. Desse modo, dos trabalhadores braais elite intelectual brasileira, todos aqueles que sabem ler e escrever hoje, foram submetidos aos mtodos tradicionais que do importncia slaba. At metade do sculo XVIII, os professores alfabetizadores utilizavam o mtodo sinttico, que parte do fonema e da slaba, para que o aluno aprenda a palavra. Nesse modelo, segue-se uma ordem de complexidade, segundo o ponto de vista do professor: primeiro se aprende a letra, depois a palavra, a frase e, finalmente, o texto. Depois desse perodo at o sculo XX, surgiu um movimento inverso, partindo de elementos significativos: a palavra, a frase, o texto. Desse modo, a palavra se segmenta em unidades menores e somente tem importncia a correspondncia entre o som e o sentido. Isso se manteve ao longo de sculos at que surgiu uma abordagem, cuja base era o som das letras na qual o aluno aprendia a distinguir as diferenas e semelhanas grficas e sonoras entre as letras. Isso muda a partir do sculo XVII, depois da aprendizagem das letras do alfabeto, o aluno passava a aprender as slabas, sem antes fazer a juno de b+a= ba. Isso eliminou a perda de tempo que havia em relao ao mtodo fnico, em que o aluno precisava soletrar, separadamente, cada uma das letras e, somente depois disso, a slaba. Essas prticas duraram at a primeira metade do sculo XX.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

14

Da segunda metade do sculo XX em diante, comeam a ocorrer mudanas na concepo de alfabetizao, provocadas pelas contribuies da Psicologia, da Lingstica e da Sociolingstica. Dentre as contribuies dessas reas de conhecimento, desvenda-se a distino entre decifrao e leitura e se percebe que o aluno comea a se alfabetizar muito antes de chegar escola. Ele passa a ser visto como sujeito da aprendizagem. Nesse contexto, os estudos de Emlia Ferreiro marcam uma linha divisria na histria da alfabetizao brasileira (Correa, 2003). Segundo o olhar de Cagliari (2002) todas essas mudanas vm contribuindo para uma generalizada confuso no processo de alfabetizao: mtodo sinttico, analtico, fnico, global, ldico, psicopedaggico, semitico, construtivista e lingstico, entre outros. Como resultado disso, um nmero acentuado de professores no consegue distinguir o que vale e o que no vale, o que certo e o que duvidoso, o que verdade e o que engodo (Cagliari, 2002:33). Os professores alfabetizadores tornam-se incapazes de avaliar questes relativas alfabetizao, sejam elas relativas a pacotes educacionais, ou pertinentes a alunos que no aprendem o que eles ensinam. Cagliari (2002) defende que se um professor no capaz de avaliar com preciso se um mtodo bom ou ruim, ele est mal preparado para o exerccio de sua funo. Essa falta de competncia pode ser atribuda s escolas de formao, aos pacotes educacionais e at mesmo ao comodismo do prprio professor, que no procurou estudar por iniciativa prpria assuntos relacionados Pedagogia, Metodologia e Psicologia. O professor precisa, ainda, procurar compreender sobre o que so linguagem oral e linguagem escrita, os seus usos. Em sntese, a formao do professor alfabetizador dever apoiar-se em slidos e profundos conhecimentos de lingstica e dos sistemas de escrita, aos quais devero ser somados conhecimentos pedaggicos, metodolgicos e da Psicologia. Somente quando dosarem o equilbrio desses conhecimentos que as escolas de formao de professores alfabetizadores estaro, de fato, preparando profissionais com os conhecimentos necessrios para reverter a alfabetizao e o processo escolar, que se encontram seriamente comprometidos. A propsito das aes escolares, Cagliari (2002) afirma que as prticas de alfabetizao, regra geral, ainda se apiam na cartilha, pois independentemente de os professores utilizarem a cartilha, recorrem a atividades elaboradas a partir dela, ou seja, continuam com o mtodo da cartilha. Outros professores abandonaram os antigos mtodos, mas no tm clareza de como alfabetizar. Segundo o autor, apesar de muitos professores no estarem aptos a avaliar qual mtodo bom para alfabetizar, crescente o nmero de professores que est se dedicando ao prprio objeto de estudo e ensino: a linguagem, ou seja,

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

15

ensinar o alfabeto, as relaes entre letras e sons, os diferentes sistemas de escrita que temos no mundo em que vivemos, a ortografia esto voltando a ter importncia na alfabetizao (Cagliari, 2002, p. 34). Corroborando as idias de Cagliari, Weisz (2004) afirma que a metodologia de ensino que traz a cartilha supe a acumulao, em que o aluno capaz de aprender tudo tal e qual lhe ensinado. Esse ensino voltado cpia, ao ditado, memorizao e ao reconhecimento das famlias silbicas de maneira mecnica e, somente depois disso, priorizada a leitura compreensiva. Segundo a autora, nesse modelo de ensino, primeiro eles precisam fazer barulho com a boca diante das letras para, depois, poder aprender a ler de verdade e a produzir sentido diante de textos escritos (Weisz, 2004: 58). A alfabetizao tem significado para a escola um verdadeiro pesadelo e no um processo de construo de conhecimento, de certa maneira, fcil de realizar. Isso por que, de acordo com Cagliari (2002)Enquanto a alfabetizao escolar ficou presa autoridade de mestres, mtodos e livros, que tinham todo o processo preparado de antemo, constatou-se que muitos alunos que no trabalhavam segundo as expectativas dos mestres, mtodos e livros eram considerados incapazes e acabavam de fato no conseguindo se alfabetizar. (Cagliari, 2002, p. 32)

O autor salienta que outros problemas na alfabetizao podem ser atribudos ao fato de os rgos da administrao pblica interferirem muito no trabalho escolar, por meio de regras da burocracia, de normas pedaggicas e pacotes educacionais de acordo com as tendncias pedaggicas em moda. Outro agravante o fato de as escolas de professores para o magistrio no conseguirem cumprir seu papel, que dar formao necessria aos futuros alfabetizadores. A influncia da Psicognese da Lngua Escrita Soares (2004) afirma que, nos pases desenvolvidos, foi considerado um problema relevante a constatao de que a populao no dominava as habilidades necessrias s prticas sociais de leitura e escrita, mesmo depois de alfabetizada. Isso implicou que fosse dada uma ateno diferenciada ao fato, independente de questes relativas alfabetizao. No Brasil, isso aconteceu a partir de um processo inverso: as habilidades para o uso social da leitura e da escrita so vinculadas aprendizagem do cdigo, implicando que alfabetizao e letramento fossem mesclados. Isso gerou muita confuso e tem levado perda da

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

16

especificidade da alfabetizao, um dos problemas que poderia justificar o fracasso na alfabetizao das crianas no Brasil. De acordo com Soares (2004), quando os estudos sobre a Psicognese da Lngua Escrita, de Emilia Ferreiro, chegaram ao Brasil, mudou-se o foco de como se ensina para como se aprende. Ao reconhecer as contribuies trazidas pela perspectiva psicogentica alfabetizao, ao possibilitar a compreenso do percurso que a criana faz sobre a descoberta do sistema alfabtico, Soares (2004, p. 11) explicita que houve alguns equvocos e a m compreenso sobre esses estudos. Isso implicou uma desinveno da alfabetizao e um apagamento do objeto em construo, ou seja, ao priorizar a concepo psicolgica da alfabetizao, negligenciou-se a concepo lingstica: fontica e fonolgica. Outra concepo equivocada, de acordo com a autora, que haveria incompatibilidade entre o paradigma psicogentico e mtodos de alfabetizao, remetendo a uma conotao negativa da palavra mtodo, associando-a aos paradigmas tradicionais de mtodos: sintticos, analticos, fnico, global etc. Esses equvocos podem ter contribudo para que o processo de letramento obscurecesse a alfabetizao enquanto processo de aquisio do sistema convencional da escrita alfabtica ortogrfica. Esse novo paradigma representou uma mudana radical para a rea da alfabetizao, pois alterou a concepo quanto ao processo de construo da representao da lngua escrita. Nessa concepo, no se considera mais que a criana dependa de estmulos externos para que possa se apropriar da escrita. Ela passa a ser vista como um sujeito ativo, que pode construir e reconstruir, a partir de sua interao com a lngua escrita. Ao contrrio dos mtodos tradicionais, esse novo paradigma considera as deficincias e as disfunes, apontadas pelos mtodos tradicionais, como erros construtivos. No entanto, esses avanos de valor indiscutvel, implicaram tambm alguns equvocos e inferncias falsas, que remeteram perda da especificidade do processo de alfabetizao (Soares, 2004). Dentre as inferncias equivocadas em relao a esse novo paradigma, a autora chamanos a ateno para o fato de que, de acordo com o paradigma conceitual psicogentico, no h lugar para mtodos de alfabetizao. Soares (2004) afirma, ainda, que a mudana do foco das atenes para como a criana constri hipteses sobre o sistema da escrita teve como conseqncia que o objeto do conhecimento em questo fosse relegado ao segundo plano. De acordo com a autora, ao se privilegiar a faceta psicolgica da alfabetizao, obscureceu-se sua faceta lingstica fontica e fonolgica (2004, p.11). Outro equvoco diz respeito ao pressuposto de que bastaria que as crianas convivessem intensamente com os materiais escritos, que circulam em suas prticas sociais, para que elas se alfabetizassem. Dessa forma,

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

17

os estudos sobre letramento obscureceram o processo de aquisio do sistema convencional da escrita alfabtica e ortogrfica. Tambm os autores Mendona e Mendona (2007) afirmam que h muitos equvocos na compreenso dos estudos de Ferreiro e Teberosky (1989). Essa concepo, adotada pelos sistemas pblicos mais importantes do pas, teve intrpretes que compreenderam equivocadamente a Psicognese da Lngua Escrita. Como resultado disso, eles orientaram seus seguidores a abandonarem as tcnicas silbicas de anlise e sntese tradicionais, substituindo-as por novas prticas: a didtica do nvel pr-silbico. Dessa forma, houve muito empenho em transformar o construtivismo e a Psicognese num mtodo revolucionrio. Em decorrncia disso, foram divulgadas concepes que no eram de Emlia Ferreiro que, inclusive geraram constrangimento autora. Dentre as inferncias equivocadas, os autores citam as seguintes: - confuso na definio de alfabetizao e letramento. Isso fez com que se desse muita nfase ao letramento, perdendo-se a especificidade da alfabetizao; - orientaes para colocar o aluno em contato direto com textos. Essa iniciativa tem como objetivo contextualizar o trabalho com texto e dizem respeito ao processo de letramento, no de alfabetizao. Parecem faltar conhecimentos lingsticos para o trabalho com a alfabetizao, em que h a necessidade de que o aluno compreenda quantas e quais letras so necessrias para se escrever as palavras. Outros conhecimentos tambm devem ser construdos, como: a composio silbica, a separao das slabas, a segmentao das palavras dentro de um texto, a ortografia, aspectos referentes estrutura do texto, o uso de letras maisculas e minsculas, etc (Mendona e Mendona, 2007, p. 58); - prioridade aos suportes de texto, de maneira a trabalhar com a realidade e os interesses dos alunos. Nessa proposta, houve o predomnio da literatura infantil, em detrimento ao trabalho com rtulos, embalagens, receitas culinrias, panfletos, embalagens, etc. Os autores questionam o fato de que as crianas de determinadas classes sociais poderiam no ter acesso a esse gnero textual priorizado, sendo que essa proposta poderia forjar a contextualizao; - os alunos aprendem a escrever s de ver o professor escrevendo na lousa. Esse procedimento orienta que o professor leia o texto, o aluno ouve e reconta-o. Depois disso, o professor desenvolve um trabalho de escriba, anotando na lousa o texto elaborado oralmente pelos alunos. Essa orientao parece desconsiderar toda a complexidade que envolve a escrita: conhecimentos lingsticos de fonologia e

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

18

fontica, sistemas grficos e ortogrfico, pontuao, concordncia, aspectos que envolvem a produo textual, etc; - no precisa ensinar, a criana aprende sozinha. O professor considerado um mediador e h ausncia de sistematizao no trabalho com alfabetizao. No h clareza de seu papel de professor. Ele apenas realiza questionamentos a partir do interesse dos alunos; - pedir que o aluno escreva do seu jeito. Essa pseudo-escrita causa estranheza ao professor e implica uma distncia muito grande entre esse tipo de escrita pr-alfabtica e a escrita alfabtica; - o professor no pode corrigir o aluno. Ferreiro e Teberosky (1989) sugerem que o professor no oferea resposta direta ao aluno, quando ele perguntar como se escreve determinada palavra. Quando questionado, o professor deveria devolver o questionamento ao aluno, induzindo-o a refletir sobre o objeto do conhecimento com o qual trabalha. A inferncia equivocada dessa orientao remeteu compreenso de que proibido corrigir, que no se deve usar a caneta vermelha para apontar os erros dos alunos; - preconceito contra a slaba. Apesar de saber da necessidade de se explorar a slaba, o professor no o faz por medo do coordenador e/ou supervisor de ensino; - o sujeito que constri seu conhecimento. A est o maior equvoco na compreenso dos estudos relacionados ao construtivismo e Psicognese, talvez o maior responsvel pelo fracasso na aprendizagem da leitura e da escrita. As orientaes apontam na direo de que o professor no pode intervir. Ele apenas realiza diagnsticos, mas no faz intervenes para que o aluno avance de um nvel a outro. A esse propsito, Cagliari (2004, p. 22) afirma que a escola moderna perdeu o fio da meada e precisa comear a tecer de novo o ensino da lngua. Segundo o autor, ao ensinar portugus, no se deve fazer disso um campo de prova de teorias ou hipteses psicolgicas, pedaggicas, ou seja l o que for. Na verdade, o aluno precisa compreender como a lngua funciona: o que uma lngua, suas propriedades, seus usos, o comportamento dos indivduos e da sociedade em relao aos usos lingsticos, nos mais diversos contextos e situaes de suas vidas. Nesse sentido, Oliveira (2002) afirma que o construtivismo no tem assegurado sucesso nas prticas de alfabetizao. Segundo o autor, elas

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

19

[...] sugerem que se trata de uma concepo e de um modelo de processo de alfabetizao que foi demonstrado como superado e incongruente com as evidncias disponveis. Dizendo com toda clareza as propostas construtivistas de alfabetizao so inconsistentes como o corpo de evidncia terica e emprica disponvel. (Oliveira, 2002, p. 79)

O autor chama-nos a ateno para o fato de que as pesquisas existentes, que abordam experincias de professores que trabalharam com a alfabetizao de crianas em condies especiais, os depoimentos sem fundamentao de autoridades cientficas, ou mesmo os discursos polticos no podem ser aceitos como fontes seguras de evidncia. Elas deveriam se pautar em estudos baseados em pesquisadores independentes, considerar os resultados obtidos ao longo do tempo e consistir numa amostragem que oferecesse uma vasta gama de aplicaes, em distintas circunstncias. A propsito dessas pesquisas, o autor faz referncia a alguns estudos baseados em tcnicas de observao e questionrios que foram aplicados a 123 professores alfabetizadores, avaliados pelos superiores como profissionais de alto desempenho. Os resultados desses estudos apontaram para o fato de que os professores pesquisados no se restringiam a um nico mtodo, mas norteavam suas prticas a partir de escolhas metodolgicas de acordo com as necessidades de cada um dos seus alunos. Ou seja, esses professores no se limitaram a expor seus alunos a textos em seus portadores autnticos. Nesse sentido, o autor afirma que o construtivismo no chega a ser um mtodo de ensino ou de alfabetizao. No entanto, ele tem representado uma importante contribuio para a educao como movimento social e, para que seja respeitado e respeitvel, h a necessidade de que seus adeptos faam uma reviso de suas posies. 1.2 Teorias de ensino-aprendizagem: a trade professor-aluno-conhecimento H inmeros estudos e distintas concepes sobre ensino e aprendizagem em teorias diversas, que tambm podem ser chamadas de correntes epistemolgicas, em que vo mudando os papis do professor. Dessa forma, torna-se importante fazer um breve percurso a respeito dessas correntes para melhor compreender quais concepes tm norteado as escolhas pedaggicas dos professores e, conseqentemente, definido os papis por eles exercidos. Nesse sentido, apresento os principais paradigmas de ensino que vm norteando o processo de ensino-aprendizagem: o behaviorismo, o inatismo e o interacionismo piagetiano para, a seguir, discutir a Teoria Scio-Histrico-Cultural (TSHC).

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

20

1.2.1 Behaviorismo Giusta (1985) afirma que o conceito de aprendizagem surge de investigaes empiristas em Psicologia, as quais se baseiam no pressuposto de que todo conhecimento emerge da experincia. Conforme esse modelo, o sujeito seria considerado uma tbula rasa, um recipiente vazio, uma folha em branco. Dessa forma, fatores externos ao indivduo que determinam as caractersticas individuais, em que aprendizagem e desenvolvimento se confundem, ocorrendo simultaneamente. A aprendizagem entendida como mudana de comportamento, que se relaciona instalao de novas respostas ou supresso de respostas antigas. De acordo com esse modelo, grande parte dos comportamentos do ser humano aprendida e construda na relao do sujeito com o ambiente. Outro pressuposto do behaviorismo que tanto os comportamentos normais quanto os anormais so aprendidos e que esse padro de normalidade social. Desse modo, normal tudo aquilo que o grupo aceita como tal e anormal aquilo que a comunidade assim o considera. Nesse sentido, o desenvolvimento est atrelado aprendizagem, uma vez que ocorre por meio de processos de alteraes comportamentais, em que ela indica os padres de comportamentos que aparecem no quadro do desenvolvimento. Desse modo a aprendizagem que sustenta o desenvolvimento. Pautado nesses estudos, o behaviorismo tem em Skinner seu principal representante. Milhollan e Forisha (1972) afirmam que Qualquer estmulo um reforador, se aumenta a probabilidade de uma resposta. Nesse sentido, ao professor cabe o papel de controlar para que possam ser atingidas as respostas de um determinado comportamento desejado, pois ele e o contedo so centrais. As aulas so expositivas, apresentadas numa seqncia linear, em que o acerto premiado e o erro, punido. Valoriza-se a repetio como soluo para assegurar a aprendizagem. J o aluno tem um papel passivo, em que s responde se for perguntado, no participa das decises, considerado manipulvel, pois pode ser moldado e repetir modelos determinados pelo professor. Ele tem como atribuies: receber, escutar, escrever e repetir as informaes passadas pelo professor, tantas vezes quantas necessrias, at que o contedo que o professor passou seja acumulado em sua mente. Ele questiona raras vezes e pouco criativo. De acordo com Weisz (2004, p. 55), O modelo tpico da cartilha est baseado nisso.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

21

1.2.2 Inatismo O professor centralizador cede lugar ao professor auxiliar do aluno. Isso porque, de acordo com esse modelo, no h ensino. O aluno no considerado um recipiente vazio, mas aquele cujo saber inato e precisa ser trazido conscincia, organizado e/ou recheado de contedo. Esse modelo fundamenta-se na filosofia racionalista, idealista e apriorista, elaboradas por Ren Descartes, Malebranche, Espinoza, Leibniz, Wolff e Kant, e tem como convices que o ser humano traz em sua herana gentica o conhecimento j programado. O lingista Noam Chomsky um nome extremamente expressivo desse modelo, cuja teoria defende que h um sistema autnomo de gramtica formal que determinado, em princpio, pela faculdade da linguagem e seus componentes universais (Correa, 1999). O Inatismo de Chomsky defende a idia de que o ser humano dotado de uma gramtica inata que vai tomando forma medida que se desenvolve. Nesse sentido, segundo os estudos de Chomsky, a criana tem uma gramtica universal (GU) inata, a qual ativada e trabalha a partir de sentenas (INPUT), que ter como resultado a lngua qual a criana estar exposta. A criana escolher dentre uma srie de regras, aquelas que funcionam ou no na lngua por ela utilizada e excluir aquelas que no tiverem nenhum papel. Assim, o inatismo se ope ao behaviorismo ao entender que o ser humano j nasce com o aparato fsico e biolgico necessrio para se comunicar por meio da lngua. Nesse sentido, o professor abre mo das intervenes no processo de aprendizagem do aluno e perde de vista o que constitui a essncia da ao docente. Dessa forma, o caminho equivocadamente escolhido o do laissez-faire, o que corresponde a deixar fazer: o aluno aprende por si mesmo. Cabe ao professor a mera tarefa de fornecer ao aluno o material lingstico de que ele necessita para sua atividade analtica. 1.2.3 Interacionismo piagetiano Rompendo com os estudos que desconsideram a ao do sujeito, Piaget (18961980/2007) teve como foco estudar o sujeito epistmico, a partir da observao de seus filhos e de muitas outras crianas. Essa observao o levou a perceber que as aes das crianas no se organizavam aleatoriamente. Nesse sentido, duas questes mereceram a ateno de Piaget: as estruturas mentais orgnicas so necessrias, embora no sejam suficientes para o ato de conhecer; o indivduo depende ainda das trocas do organismo com o meio: o sujeito que constri o conhecimento a partir da interao como o meio fsico e social.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

22

Segundo Piaget (1896-1980/2007), a construo do conhecimento decorre de aes fsicas ou mentais sobre os objetos, que provocam desequilbrio a partir da construo de mediadores partindo da zona de contato entre o prprio corpo e as coisas, eles progrediro ento, cada vez mais, nas duas direes complementares de exterior e interior, e dessa dupla construo progressiva que depende a elaborao solidria do sujeito e dos objetos (Piaget, 1896-1980 /2007, p. 8). De acordo com os estudos piagetianos, aprender independe do ensinar, pois depende do desenvolvimento mental e emocional de cada aluno. O professor um facilitador, cujo papel o de propor desafios e problemas, provocar desequilbrios e estimular. O aluno o agente do processo: observa, participa, compara, relaciona, analisa, experimenta, levanta hipteses e somente aprende porque se desenvolve biologicamente. Segundo Piaget (18961980/2007), esse desenvolvimento da criana passa por diferentes estgios de aprendizagem: nveis sensoriomotores (0 a 2 anos), pensamento pr-operatrio (2 a 6 ou 7 anos), operaes concretas (7 a 11-12 anos) e operaes formais (11-12 anos). Para esse modelo, o papel do professor conhecer bem o aluno para promover-lhe desequilbrios e desafios. Ter tambm o papel de mediador, investigador, orientador, coordenador e pesquisador, sendo necessrias a observao dos comportamentos dos alunos, a elaborao de perguntas e a promoo de dilogos. J o aluno, diferentemente do modelo anterior, ter um papel extremamente ativo e observador: experimenta, compara, relaciona, justape, levanta hipteses, encaixa, argumenta, analisa, ou seja, deve encontrar a soluo para os problemas propostos pelo professor. Nesse paradigma, a aprendizagem ocorre de maneira individual, ao contrrio do que ser proposto por Vygotsky, cujo foco de ateno se volta para o social, conforme pode ser observado, a seguir. 1.3 Teoria scio-histrico-cultural Becker (2003), ao se referir aprendizagem, afirma que se por um lado Piaget considerou que ela ocorria de forma individual, Vygotsky, por outro, dirigiu sua ateno ao desenvolvimento das funes cognitivas, que consideram a interao social como um fator crucial para o desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano (Vygotsky, 1934/1991). Essa interao no se restringe apenas a uma relao direta sujeito-objeto, mas, ao contrrio, por meio de uma relao dialtica: sujeito-meio histrico. Dessa forma, torna-se de relevante importncia recorrermos teoria scio-histrico-cultural para definirmos, ento, o paradigma de ensino-aprendizagem que norteia este trabalho.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

23

A teoria scio-histrico-cultural (TSHC) tem em L. S. Vygotsky, psiclogo russo, seu principal representante. Apesar de seus estudos terem sido desenvolvidos durante os anos 30, sua teoria somente chega ao Ocidente a partir dos anos 80 e 90, em virtude da situao de isolamento da Unio Sovitica em relao aos centros de produo cientfica norteamericanos e europeus (Jcome, 2006). A TSHC tem como objetivo caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e, a partir dessas caractersticas, formular hipteses de como elas se formaram ao longo da histria humana e se desenvolveram ao longo da vida, ou seja, a partir das relaes que estabelece com os outros que todo homem se constitui como ser humano. Desse modo, ao contrrio de Piaget, que considerou que a aprendizagem ocorria de forma individual, Vygotsky, dirige sua ateno ao desenvolvimento das funes cognitivas, que consideram a interao social como um fator crucial para o desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano (Vygotsky, 1934/1991). Nesse sentido, ele volta sua ateno para o desenvolvimento das funes psicolgicas superiores. 1.3.1 Funes psicolgicas superiores Vygotsky dedicou-se ao estudo das funes psicolgicas superiores ou processos mentais superiores, ou seja, aos mecanismos superiores mais complexos tpicos do ser humano, os quais envolvem o controle consciente do comportamento, a ao intencional e a liberdade do indivduo em relao s caractersticas do momento e do espao presentes. (Oliveira, 2003, p. 26). As funes psicolgicas superiores referem-se a mecanismos intencionais, a aes conscientemente controladas e a processos voluntrios, que possibilitam ao sujeito a independncia em relao ao momento e ao espao presentes. So exemplos das funes psicolgicas superiores a ateno, a lembrana voluntria, a memorizao ativa, o pensamento abstrato, o raciocnio dedutivo e a capacidade de planejamento, etc. J as funes psicolgicas elementares so determinadas pela estimulao ambiental e so reguladas por processos biolgicos. Segundo Vygotsky (1930-33/2007)

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

24

Podem-se distinguir, dentro de um processo geral de desenvolvimento, duas linhas qualitativamente diferentes de desenvolvimento, diferindo quanto a sua origem: de um lado, os processos elementares, que so de origem biolgica; de outro, as funes psicolgicas superiores, de origem scio-cultural. A histria do comportamento da criana nasce do entrelaamento dessas duas linhas. A histria do desenvolvimento das funes psicolgicas superiores seria impossvel sem um estudo de sua pr-histria, de suas razes biolgicas e de seu arranjo orgnico. As razes do desenvolvimento de duas formas fundamentais, culturais, de comportamento, surge durante a infncia: o uso de instrumentos e a fala humana. Isso, por si s, coloca a infncia no centro da pr-histria do desenvolvimento cultural (Vygotsky, 1930-33/2007, p. 52).

Com esses estudos, Vygotsky (1930-33/2007) oferece uma nova abordagem psicologia, cujas idias centrais so: a) as funes psicolgicas tm um suporte biolgico, uma vez que so produto da atividade cerebral; b) o funcionamento psicolgico tem como fora fundante as relaes sociais entre o indivduo e o mundo exterior, que se desenvolvem dentro de um processo histrico, em que a relao do homem com o mundo mediada por sistemas simblicos. Uma forte ligao com os postulados marxistas explica a importncia que Vygotsky atribui aos instrumentos na atividade humana, levando-o busca de compreender as caractersticas do homem por meio do estudo da origem e do desenvolvimento da espcie humana. Esses estudos tm como referncia o surgimento do trabalho e a formao da sociedade humana, uma vez que o trabalho, por meio da ao transformadora do homem sobre a natureza, os une e cria a histria e a cultura humanas. Os postulados bsicos do marxismo incorporados por Vygotsky so:[...] o modo de produo da vida material condiciona a vida social, poltica e espiritual do homem; o homem um ser histrico, que se constri atravs de suas relaes com o mundo natural e social. O processo de trabalho (transformao da natureza) o processo privilegiado nessas relaes homem/ mundo; a sociedade humana uma totalidade em constante transformao. um sistema dinmico e contraditrio, que precisa ser compreendido como processo em mudana, em desenvolvimento; as transformaes qualitativas ocorrem por meio da chamada sntese dialtica onde, a partir de elementos presentes numa determinada situao, fenmenos novos emergem. Essa exatamente a concepo de sntese utilizada por Vygotsky ao longo de sua obra. (Oliveira, 2003, p.28)

Nesse sentido, no trabalho que desenvolvida a atividade coletiva que resulta em relaes sociais e na utilizao de instrumentos. Esses instrumentos so elementos interpostos entre o trabalhador e o objeto de seu trabalho, de modo a aumentar as possibilidades de transformao da natureza. Por exemplo, ao utilizar um machado, o homem cortar melhor uma rvore do que se utilizar apenas as prprias mos.

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

25

1.3.2 Desenvolvimento e aprendizagem na concepo de Vygotsky Vygotsky (1933/1994) no somente teve seu foco de ateno voltado ao desenvolvimento humano como tambm para o aprendizado, buscando estabelecer relaes entre um e outro. Segundo o autor, as teorias mais expressivas que tiveram como objeto de estudo a relao entre desenvolvimento e aprendizagem na criana podem ser agrupadas em trs categorias: o primeiro grupo defende que o processo de ensino e o processo de aprendizagem so independentes; o segundo, que aprendizagem desenvolvimento; j o terceiro busca a conciliao dos dois primeiros. As teorias que concebem ensino e aprendizagem como processos independentes pressupem a aprendizagem como resultado de um processo exterior que ocorre de maneira paralela ao processo do desenvolvimento, sem modific-lo. Pode ser citada como exemplo a teoria piagetiana, cujos estudos abordaram o desenvolvimento do pensamento da criana separadamente do processo de aprendizagem, em que somente depois de atingir determinada etapa, a partir da maturao de determinadas funes, a criana poderia adquirir determinados hbitos e conhecimentos propostos pela escola. Nesse sentido, o processo educativo est limitado a seguir a formao mental. O segundo grupo de teorias concebe que aprendizagem desenvolvimento e a elegem em primeiro plano no desenvolvimento da criana, que entendido como leis naturais que devem ser consideradas pela escola. De acordo com Vygotsky (1933/1994, p. 105), nesses estudos O desenvolvimento est para a aprendizagem como a sombra para o objeto que a projeta. Dessa forma, os dois processos ocorrem simultaneamente, diferentemente do modelo anterior em que a maturao vem antes da aprendizagem. Na tentativa de conciliar os pontos de vista dos modelos anteriores, o terceiro grupo, tome-se como exemplo os estudos de Koffka, concebem o processo de desenvolvimento independente do processo de aprendizagem, em que um coincide com o outro; apesar de se tratarem de processos conexos, tm naturezas distintas e so reciprocamente condicionados. Se, por um lado, o processo de maturao prepara o processo de aprendizagem, por outro, o processo de aprendizagem estimula e faz avanar o processo de maturao. Isso implica uma interdependncia dos dois processos, cuja interao resultar em desenvolvimento. Isso passa a atribuir um maior valor ao papel da aprendizagem para o desenvolvimento da criana, remetendo a questionar quais matrias deveriam ser ensinadas, o que rendeu muitos estudos. Afastando-se dos trs modelos anteriores, Vygotsky (1933/1994) prope um novo paradigma: existe um processo de desenvolvimento parcialmente definido pelo processo de

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

26

maturao do organismo individual, inerente espcie humana, mas os processos internos de desenvolvimento somente so despertados a partir do aprendizado, que ocorre por meio do contato do indivduo com determinado ambiente cultural. Desse modo, se um indivduo nasce numa sociedade grafa e ali continuar isolado, no aprender a ler e a escrever, pois seus processos de desenvolvimento internos no sero despertados; isso somente seria possvel num ambiente scio-cultural em que a escrita estivesse presente. Oliveira (1992) afirma que os estudos de Vygotsky so influenciados pelo monismo de Espinosa e se opem perspectiva dualista, em que h a cises como corpo e alma, pensamento e linguagem, material e no material. Em decorrncia disso h uma viso holstica de ser humano, por meio da qual se prope a busca de uma abordagem em que a pessoa seja concebida de uma maneira globalizante, sem separar cognitivo e afetivo, ou seja, o intelectual e o afetivo se unem. 1.3.3 Construo de significados: conceitos espontneos e conceitos cientficos Vygotsky (1933/1994, p.109) parte do pressuposto de que a aprendizagem da criana comea muito antes de ela chegar escola, que sempre h uma pr-histria, mas chama a ateno para o fato de que essa instituio no continua diretamente o desenvolvimento prescolar e pode desviar seu curso ou tomar uma direo contrria. Nesse sentido, Newman e Holzman (1993/2002) recorrem aos estudos de Vygotsky para afirmar que os conceitos so formados a partir de uma atividade sociocultural e histrica e que esse fato explica o desenvolvimento mental da criana. Esses autores afirmam que o desenvolvimento dos conhecimentos espontneos e conhecimentos cientficos, apesar de seguirem rotas diferentes, mantm entre si uma profunda conexo. Os conhecimentos espontneos dizem respeito ao contato direto das crianas com as coisas, que lhes so explicadas pelos adultos. Depois de passar por um processo de desenvolvimento, que elas sero capazes de ter a percepo consciente dessas coisas. Os conceitos cientficos, ao contrrio, comeam sem que haja um contato direto da criana com os objetos reais, sendo que os ambientes escolares, por meio da colaborao entre professor e aluno, possibilitam a aprendizagem sobre esses conceitos. Desse modo, a relao estabelecida entre o conceito e o objeto mediada pelas relaes entre conceitos. Newman e Holzman (1993/2002) recorrem, ainda, aos estudos de Vygotsky para explicar que o desenvolvimento dos dois tipos de conceitos citados anteriormente ocorrem numa determinada criana

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

27

relativamente no mesmo nvel e que no possvel separar em seu pensamento os conceitos adquiridos na escola daqueles adquiridos em casa. De acordo com Vygotsky (1933/1994), essa maneira de conceber o aprendizado, como condio para o despertar de processos internos do indivduo, estabelecer relao entre o desenvolvimento da pessoa e sua relao com o ambiente scio-cultural em que est inserida. Essa situao de organismo depende do suporte de outros indivduos de sua espcie para se desenvolver plenamente. Falando de outro modo, o conhecimento ser construdo na interao entre pessoas (interpessoal) e, somente depois disso, haver uma reconstruo interna (intrapessoal). Esses processos interativos acontecem ao longo da vida e possibilitam que o ser humano v aprendendo e se modificando. Desse modo, nada existe no sujeito sem estar antes no social, o que explica a importncia atribuda por Vygotsky ao papel do outro social. Isso implica conceber o ser humano em constante construo e transformao, por meio das interaes sociais, o que lhe permite sempre partilhar novos significados no contexto em que vive, em que ele influencia e influenciado ao mesmo tempo. Segundo Vygotsky (1934/1991), o aluno um ser histrico, social e poltico, est inserido numa classe social, num determinado contexto scio-cultural e tem no outro as referncias e as informaes que lhe possibilitam questionar, formular, construir e reconstruir o espao que o rodeia. O autor dirigiu sua ateno ao desenvolvimento das funes cognitivas, que consideram a interao social como um fator crucial para o desenvolvimento e a aprendizagem do ser humano. Essa interao no se restringe apenas a uma relao direta sujeito-objeto, mas, ao contrrio, por meio de uma relao dialtica: sujeito-meio histrico. Corroborando os estudos de Vygotsky, Wertsch (1998) afirma que os significados so construdos num amplo contexto social, histrico e cultural, no se restringindo ao contexto imediato. Dessa maneira, a construo dos significados realizada num contexto mais abrangente, no dependendo apenas das prticas momentneas e locais, e tem como referncias os nossos valores e as nossas crenas. A propsito das interaes sociais, Vygotsky (1930-33/2007) desenvolveu o conceito de zona proximal de desenvolvimento, que discutido, a seguir. 1.3.4 Zona proximal de desenvolvimento De acordo com os estudos de Vygotsky (1930-33/2007), o conceito de zona proximal de desenvolvimento (ZPD) consiste na distncia entre o nvel de desenvolvimento real, em que a criana consegue resolver problemas por iniciativa prpria e o nvel de desenvolvimento

Formao de professores alfabetizadores em contexto de HTPC

28

proximal, a capacidade que ela apresenta em resolver problemas com a ajuda de um parceiro mais experiente. Esse parceiro mais experiente pode ser o professor, a me, um colega de classe ou um irmo mais velho. Disso decorre a grande importncia atribuda interao, uma vez que, de acordo com as teorias de Vygotsky (1930-33/2007), a mediao simblica desempenha um papel de suma importncia na interao social e, em virtude disso, no desenvolvimento cognitivo humano, em que a linguagem medeia a interao entre o indivduo e seu entorno social. Quando interage com os demais membros da comunidade, o indivduo incorporar de forma ativa a cultura, construindo conhecimento. Dessa forma, a linguagem funciona como um elemento mediador que permite a comunicao entre indivduos, de modo a estabelecer significados compartilhados por um determinado grupo cultural, levando-os percepo e interpretao dos objetos, eventos e situaes do mundo que os rodeia. Simultaneamente, esses indivduos so influenciados e influenciam o contexto do qual fazem parte (Vygotsky,1934/2000). Segundo esse modelo, o professor tem o papel de agente mediador, em que a linguagem utilizada como ferramenta psicolgica. O professor ainda intervm e auxilia o aluno para que ele possa construir e reelaborar seu conhecimento, fato que o levar ao desenvolvimento. Nesse sentido, o professor tem a responsabilidade de criar ZPDs para que os alunos se apropriem dos conceitos socialmente adquiridos, que so o resultado de experincias anteriores. Dessa forma, o aluno no apenas um sujeito da aprendizagem, mas algum que aprende, por meio da interao com o outro, aquilo que produzido pelo seu grupo social, sejam os valores, a linguagem ou o conhecimento propriam