gênero e planejamento territorial

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    Gnero e planejamento territorial: uma aproximao

    Paula Freire Santoro

    Palavras-chave: gnero, planejamento territorial.

    Resumo

    Esse trabalho parte do pressuposto que, se h desigualdades socioterritoriais, elas so maioresem relao s mulheres. Por isso, o planejamento territorial deve compreender como asmulheres tm participado das decises sobre o territrio; como se relacionam com o espao

    domstico e com o pblico; e como suas reivindicaes foram modificando-se ao longo dotempo, da uma luta por equipamentos por uma luta por direitos. O texto permite resgatarmoso papel do planejamento como expresso do interesse pblico.

    Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.Doutoranda, mestre e graduada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de So Paulo.Urbanista do Instituto Plis desde 2001 e do Instituto Socioambiental desde 2007.

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    Gnero e planejamento territorial: uma aproximao

    Paula Freire Santoro

    Introduo

    Jos Maria Ezquiaga2, ao escrever sobre a crise do planejamento, no final dos anos 90,apontou que a crise poderia ser superada se os planos recuperassem a sua legitimidade social esua dimenso dupla: de instrumento racionalizador das polticas territoriais e expresso de

    interesse pblico. Ao explicitar a necessidade do plano ser a expresso de interesse pblicocoloca como soluo, dentre outras, incorporar a perspectiva de gnero, argumentando queesta amplia o questionamento sobre os conceitos de totalidade e interesse geral presentes nos

    planos.

    O olhar de gnero no planejamento territorial trabalha as demarcaes entre a esfera pessoal ea esfera poltica, o territrio pblico e o domstico, e nesse sentido, advoga peloreconhecimento da diversidade cultural como elemento chave para repensar a planificao.

    No somos todos iguais, h diferenas, e o plano no deve pensar apenas na totalidade, e simestar atento essas diferenas. Nessa direo, por exemplo, Ezquiaga coloca que a

    perspectiva de gnero crtica em relao denominao cidade dormitrio, pois essaexpresso refere-se principalmente aos adultos trabalhadores, mas no significa que socidades dormitrio para as crianas, os idosos, os adultos que trabalham no lugar,

    principalmente mulheres3.

    Esse olhar sobre gnero significaria uma nova sensibilidade urbana que busca incorporarenfoques metodolgicos e as vozes dos coletivos antes excludos. De acordo com o autor, necessrio sair do raciocnio generalista, funcional, quantitativo ou em grande escala, edebruar-se sobre um territrio em uma escala menor, que permite uma maior aproximaocom os grupos sociais.

    Significaria, por exemplo, se pensarmos em uma traduo para o olhar que visa trabalhar adesigualdade de gnero, mudarmos o raciocnio que transforma o plano em um projeto deespaos para abrigar equipamentos como creches (uma abordagem quantitativa) eaprofundarmos um olhar em termos metodolgicos. Olhar sobre gnero deve ser mais do queum olhar que vai trabalhar a desigualdade em termos quantitativos. Efetivamente, pensar adesigualdade de gnero no territrio em um plano vai alm de escrever princpios e diretrizes,

    Trabalho apresentado no XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, realizado em Caxambu- MG Brasil, de 29 de setembro a 03 de outubro de 2008.Digite aqui a filiao institucional do(a) primeiro(a) autor(a).2EZQUIAGA, Jos Mara Ezquiaga. Cambio de estilo o cambio de paradigma? Reflexiones sobre la crisis delplaneamiento urbano. In: Urban, 1997, p. 1-33.3EZQUIAGA, Jos Mara Ezquiaga. Cambio de estilo o..., op. cit., p. 22.

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    ou determinar onde estaro equipamentos, mas tambm, por exemplo, entender o olhardiferenciado das mulheres sobre o espao. As mulheres so sensveis aos lugares abandonados(por questes de segurana que muitas vezes significam uma ameaa maior a elas do que aoshomens); necessidade de lazer para seus filhos; ao transporte com qualidade e emquantidade suficiente para garantir seu espao dentro do espao coletivo. Se extrapolarmos

    para o conceito de funo social da propriedade, poderia dizer que representam um grupo dosmais sensveis sua aplicao.

    Ezquiaga coloca que, para refundar a legitimidade terica da disciplina de planejamento, preciso partir de novas frentes, e dentre elas, destaca a necessidade de concertao dosinteresses plurais presentes na cidade, entendendo por tais interesses, no apenas os atorestradicionais (administrao, associaes de bairros, proprietrios, construtores, promotores...),mas tambm vozes excludas do discurso urbanstico, em especial a mulher e os segmentos de

    populao mais frgeis ou histricamente excludos (como crianas, idosos, negros, minoriasculturais...).

    Busco Ezquiaga para colocar que esse texto visa compreender onde e como o olhar de gnerocruza o planejamento, entendendo que essa abordagem permite resgatarmos o papel do planocomo expresso do interesse pblico, que inclui, mas quer superar, uma primeira aproximaoquantitativa sobre o tema.

    Uma histria contada a partir do olhar de gnero

    necessrio desconstruir a percepo generalizada de que o tema gnero recente nodebate sobre o futuro de nosso territrio, brasileiro, e principalmente sobre o debate urbano.Vrios autores j reclamaram uma mudana de leitura sobre nossa evoluo urbanstica a

    partir do olhar de gnero. Os pesquisadores do tema urbano procuraram nas entrelinhas denossas histrias sobre o mundo pblico sobre o processo de formao das cidades, deurbanizao intensa, de metropolizao, de industrializao, entre outros onde est a entradada mulher, como evoluiu com o tempo. Esses autores ainda desenvolvem a delicada arte de

    partir de uma histria macro para uma micro, a partir da voz aos prprios sujeitos. Hojepodemos afirmar que alguns deles lograram resgatar a histria, sob o olhar de gnero. Soautores como Paulo Garcez Marins4, Maria Odila Leite da Silva Dias5, Luiza MargarethRago6e Tereza de Oliveira Gonzaga7que trataram de dar visibilidade mulher na histria deSo Paulo. Essa visibilidade difcil, pois muitas vezes as prprias informaes produzidassobre a nossa histria no faziam a distino de gnero, nem sempre havia a produo deinformaes que nos permitisse contar histrias a partir de outros olhares.

    4MARINS, Paulo Csar Garcez. Atravs da rtula: sociedade e arquitetura no Brasil (sc. XVII XIX). SoPaulo, Humanitas/Histria Social-USP, 2001.

    5DIAS, Maria Odila Leite da Silva Dias. Quotidiano e poder em So Paulo no sc. XIX. So Paulo, Brasiliense,1984.6 RAGO, Luzia Margareth. Do cabar ao lar: a utopia da cidade disciplinar Brasil 18901930. Rio deJaneiro: Paz & Terra, 1985.7

    GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm mulher: conceituando a metodologia deplanejamento urbano e dos projetos arquitetnicos do ponto de vista de gnero. Tese de doutorado, FAUUSP,julho de 2004.

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    Com uma busca rpida possvel encontrar uma vasta literatura centrada no tema dadesigualdade de gnero, geralmente distante do tema do territrio, prxima das pesquisassobre o trabalho, desigualdades de renda, e uma vasta gama de trabalhos que pretendem

    principalmente impor uma mirada sobre um determinado tema diferenciando homens demulheres, que trabalham a diferena, para chegarem noo de eqidade.

    Posthuma & Lombardi8, por exemplo, mostram que as mulheres podem estar mais e melhorincludas no mercado de trabalho, porque, dentre outras, os empregadores enxergam o papelda mulher como reprodutora (mais ligado ao mbito privado e domstico, para a qual tm que

    pagar direito maternidade, traduzindo-se em mais custos para o empregador) superpondo aimagem da mulher como trabalhadora (definida no mbito das relaes do mercado e

    processo de trabalho). Comegno9 debrua-se sobre diversos dados sobre as mulheresbrasileiras para dizer que essas, no Estado de So Paulo, so predominantemente urbanas,adultas-jovens, dimnuiram o tamanho de suas famlias e vrias so chefes das mesmas; edestaca que so mais discriminadas racialmente que os homens, o que pode ser traduzido emacessos e oportunidades desiguais, gerando formas frequentemente perversas de excluso10.

    H quem investigue o papel das mulheres nas chamadas cidades globais. Sassen11, aoinvestigar o que chama de cidade global, coloca que as mulheres esto emergindo como umator chave na transformao das cidades, naquelas onde h uma grande e evidente transiodemogrfica, onde a maioria dos trabalhadores que vivem e moram na cidade so mulheres,cujos nmeros esto crescendo e, muitas delas negras e (i)migrantes12. Para a autora (cujoenfoque certamente no serve para a maioria das cidades brasileiras), as cidades globais tmtrabalhos que demandam muito e absorvem tempo, o que faz com que os modos usuais decuidar das tarefas de casa no seja o da famlia patriarcal que conhecemos, h uma srie denovos arranjos familiares onde todos so profissionais que cuidam de casa sem umamulher (mulher no sentido de marido e mulher), e como consequncia, estamos vendo o

    retorno do j conhecido servios de classe em todas as cidades globais pelo mundo, feitolargamente por mulheres. Alm disso, o rebaixamento da economia para a informalidade, criaoportunidades para as mulheres de baixa renda e de uma certa forma reconfigura parte dotrabalho e a hierarquia onde as mulheres se encontram como quem cuida da casa. Essastransformaes contm possibilidades, mesmo que limitadas, para a autonomia eempoderamento das mulheres, e no apenas para as mulheres profissionais. Por exemplo,

    podemos perguntar quando o crescimento da informalidade nas economias urbanas avanadasreconfigura alguns tipos de relaes econmicas entre homens e mulheres. Com ainformalidade, vizinhana e cuidar de casa re-emerge como lugar de atividade econmica(Sassen, 2000). Essa valorizao das relaes de comunidade e das atividades de cuidar decasa, dos filhos, j foi percebida, por exemplo, em pesquisas coordenadas por Pedro Abramo,que reconhece as relaes de comunidade como fatos que valorizam o fato de morar na

    8POSTHUMA, Anne Caroline & LOMBARDI, Maria Rosa. Mercado de trabalho e excluso social da fora detrabalho feminina. So Paulo em Perspectiva, 11(1), 1997, p.124-131.9COMEGNO, Maria Ceclia. SPMulheres em dados. In: So Paulo em Perspectiva, 17(3), 2003, pp.91-103.10 COMEGNO, Maria Ceclia. SPMulheres em dados..., op. cit., p.93.11SASSEN, Saskia. Women in the Global City explotation and empowerment. Lola press, 1, 2000. Textoretirado do site http://www.lolapress.org/elec1/artenglish/sass_e.htm em maio de 2007.12

    No caso de So Paulo, por exemplo, se olharmos para a imigrao boliviana que vem trabalhar nas oficinasinformais de costura na rea central, possvel observarmos que a grande quantidade de imigrantes do sexofeminino que, muitas vezes, migra com os filhos.

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    favela e influenciam a deciso de morar na favela (mesmo porque essa ao cooperativa oque permite que a mulher saia ao mercado de trabalho).

    Se por um lado a mulher est mais presente no mercado de trabalho (mesmo que ainda tenhamuito a galgar na competitividade com homens em termos de cargos e salrios), em termos de

    representatividade poltica, no tem aumentado a participao de mulheres comorepresentantes: so poucas conselheiras, vereadoras, deputadas, senadoras, lideres domovimentos sociais, entre outros. H diversos fatores estruturais e culturais que explicam oreduzido acesso da mulher ao poder, reforando a tendncia das funes polticas

    permanecerem no domnio masculino13.

    Mas se o foco cidadania, Eva Blay14destaca que as bases que trabalham para a obteno devotos so constitudas por mulheres; que existem movimentos sociais quase inteiramenteconstitudos por mulheres (como o de Sade da Zona Leste); e que, alis, quase todos osmovimentos de bairro, de vizinhana e comunitrio tm base feminina15.

    O que mais nos interessa nesse texto perceber que as mulheres esto no debate do territrio.Uma pesquisa do Etapas sobre a presena das mulheres no Oramento Participativo domunicpio de Recife (2004) mostrou que 58% dos participantes eram mulheres e asconcluses do trabalho apontam para a necessidade de fortalecer a identidade de gnero na

    poltica de luta pelo direito participao e democratizao, pois apesar da forte presena dasmulheres nas plenrias, 64,3% delas afirmam nunca expressar seu pensamento durante ostrabalhos. Xavier16destaca que a participao no movimento contraditria para as mulheres:se por um lado, enxergam como uma forma de emancipao, alcance de libertade por meio da

    possibilidade de desenvolver suas potencialidades alm das funes domsticas; por outro,mostram que so tidas como traidoras do seu papel na vida domstica, de dona de casa, mede famlia.

    So poucos os nmeros e as pesquisas que diferenciam gnero dentro do movimento social.Paoli17 coloca que a temtica dos movimentos sociais no identifica o gnero de seus

    participantes e tampoco pergunta sobre o carter que o gnero imprime participao, sprticas coletivas. Um olhar para os movimentos a partir de gnero certamente mostraria a

    13Saskia Sassen destaca que, se por um lado as mulheres esto crescendo nas cidades globais, como fora detrabalho para o que chama de servios de classe e servios informais, e esses servios no melhoram suascondies salariais. Por outro, o fato delas estarem no mercado de trabalho e serem reconhecidamenteimportantes atores para a vida pblica, nos movimentos ativistas, e de bairros, certamente far com que se

    perceba uma nova e forte resistncia e mobilizao social em prol da identidade e da cultura. A maiorparticipao das mulheres sugere a possibilidade de que elas possam emergir como atores mais fortificados evisveis e permitam que nessas cidades, se crie um espao com novas potencialidades econmicas, sim, masprincipalmente, com novas possibilidades polticas, que operem polticas de cultura e de identidade, tornando-seum dos espaos mais estratgicos para a formao de identidades e comunidades transnacionais (refere-seclaramente aos imigrantes). SASSEN, Saskia. SASSEN, Saskia. Women in the Global City explotation..., op.cit., 2000.14BLAY, Eva Alterman. Mulheres e movimentos sociais. In: So Paulo em Perspectiva, 8(3), 1994, p.45-47.15BLAY, Eva Alterman. Mulheres e movimentos..., op. cit., p.46.16XAVIER, Iara Rolnik.A mulher no movimento: significados em mutao. Trabalho para a disciplina RelaesSociais de Gnero: Identidade, Diferena e Igualdade, do curso de Cincias Sociais da Universidade de SoPaulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas, 2005. (mimeo)17PAOLI, Maria Celia. As cincias sociais, os movimentos sociais e a questo do gnero. In: Novos EstudosCEBRAP, n.31, out 1991, pp. 107-120.

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    presena e a vitalidade da participao das mulheres, distanciando-se da homogeneizao dasaes promovidas pelos movimentos. Alguns movimentos por moradia, reconhecendo a

    presena feminina em sua base, criaram espaos para o debate de gnero18.

    Esses diversos trabalhos enfatizam que as mulheres so mais afetadas pelas desigualdades

    sociais e que a sua presena frequente associada ao mbito privado e domstico. Essadesigualdade que se d no campo da vida pblica, se expressa tambm na esfera territorial,expresso fsica da vida pblica. Pode-se afirmar que as mulheres tambm so mais afetadas

    pelas desigualdades socioterritoriais. Se, como ns urbanistas sempre afirmamos, nossascidades so desiguais, talvez possamos afinar um pouco esse olhar e afirmar que, sodiferentemente desiguais para homens e para mulheres.

    Da luta por creches luta por direitos

    Terezinha Gonzaga, ao contar a trajetria do movimento de mulheres na luta por creches,aponta essa luta criou uma damanda para que fossem pensados projetos especficos dearquitetura e de localizao onde esses equipamentos eram carentes. Ela conta:

    (...) que a reivindicao por creches [feita pelos movimentos de mulheres] foi extremamentesignificativa, constituiu um sinal de mudana nas relaes sociais de gnero, aprofundando atransformao das relaes familiares que j se verificava havia dcadas, mas que se intensificou namedida em que as mulheres maciamente foram obrigadas a participar do mercado de trabalho, devidoao arrocho salarial que impedia seus maridos ou companheiros de prover sozinhos o sustento dafamlia. (...) E o resultado foi que a rede municipal de creches construda na cidade de So Pauloacabou por cumprir importante papel como um elo estruturador no processo de urbanizao daperiferia19. (grifo nosso).

    Mais uma vez h a associao da mulher esfera privada, tanto que, quando necessita sairpara trabalhar, a responsabilidade, a preocupao e a mobilizao social se d a partir damulher, para que possa ser coberta, nos horrios que sai para trabalhar, pelos servios

    pblicos20.

    Por outro vis, o da educao, Comegno ressalta a importncia dos equipamentos coletivos como creches, escolas para as mes. Estudos mostram que mes instrudas colaboram parademandar e adquirir um nvel de escolaridade mais elevado para os filhos e a autora concluique a possibilidade de deixar os filhos nos equipamentos de ensino permitem que os filhosno constituam entraves ao engajamento da mulher no mercado de trabalho, compartilhando,assim, com toda a sociedade, o direito reproduo, sem punir a mulher no que se refere

    18Um exemplo a Central dos Movimentos Populares, que criou o Setorial de Mulheres, hoje coordenado porMaria das Graas Xavier.19GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., op. cit., p.38.20 Pedro Abramo e a equipe do IPPUR envolvida no projeto O mercado de solo informal em favelas e amobilidade residencial dos pobres nas grandes cidades, mostram, dentre os resultados da aplicao dametodologia junto ao Projeto Favela Bairro no Rio de Janeiro que, nas favelas, com a ausncia de serviospblicos como creches, h uma organizao da comunidade que um dos fatores de escolha por viver naquela

    rede solidria, geralmente composta por mulheres e familiares. Essa rede, atribui relevante valor propriedade.Impacto do Programa Favela-Bairro na Valorizao Imobiliria e na Mobilidade Residencial em Favelas do Riode Janeiro. Ver Abramo, 2003.

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    descontinuidade no trabalho e consequentemente reflexo em sua qualificao,competitividade e qualidade de vida21.

    Pode-se estender a importncia para a mulher da dotao de servios e infra-estrutura pblicatambm por outro vis, o da luta contra a violncia domstica e sexual. Terezinha Gonzaga

    ressalta que, na luta contra a violncia, possvel encontrar a preocupao das mulheres comreas subutilizadas, vazias, na medida que as mesmas so vistas como ameaa suasegurana. A autora coloca que os dados sobre os locais onde acontecem estupros, porexemplo, podem servir para que o poder pblico identifique locais e provenha com infra-estrutura, como iluminao pblica, nibus e outros transportes, e exija, a partir de umafiscalizao mais rigorosa, que os terrenos baldios sejam murados22. Foi uma questesrelativa violncia que promoveu manifestaes de grupos feministas pela criao de umvago de transporte especfico para mulheres nos trens ferrovirios e no metr. Essa opo,adotada no Mxico e em outros pases, mostra como uma demanda generalizada como aqualidade nos transportes pblicos pode ser traduzida sob um olhar de gnero.

    Conseguir obras e servios foi o que mobilizou 36% das mulheres que participaram oOramento Participativo de Recife, de acordo com documento do Etapas de 2004; emsegundo lugar, 31% responderam que queriam ajudar a comunidade. Muitas vezes a

    participao das mulheres nos processos de deciso democrtica tem esse objetivo principal:dotao de infra-estrutura e servios.

    As mulheres entrevistadas por Terezinha Gonzaga23, ao serem inquiridas sobre o sua forma delazer, mostram uma preocupao com o lazer dos outros, antes do seu. Por exemplo, quando

    propem alguma infra-estrutura de lazer esto pensando no apenas nelas, mas nos filhos, nascrianas e jovens. Isso acontece, por exemplo, ao pensar onde e como deve ser uma praa. Aida ao parque transforma-se em uma parte de sua vida domstica, como por exemplo, cuidar

    dos filhos.

    O sobre-trabalho, entenda-se cuidar da casa e da famlia alm de trabalhar, acaba por eliminaroutras formas de lazer e sociabilidade, por falta de tempo e de disposio. Isso se reflete nasentrevistadas de Terezinha, cujo lazer traduz-se em ficar em casa, escutar rdio, ver televiso,ou ir igreja. Parte dessa opo por lazer tambm est relacionada com as dificuldades detransporte, passam horas no translado de casa para o trabalho, do trabalho para a casa e tm

    pouco tempo para o lazer. Os homens tambm so afetados pelos problemas de transporte etm pedido muito de seu tempo para o lazer. E se ambos so afetados pelas agruras urbanas, oque diferencia o peso da responsabilidade cotidiana que a mulher tem a mais sobre a vidadomstica.

    A mulher sofre uma influncia da vida domstica que se traduz muito fortemente na vidapblica. Essa traduo se d tambm atravs da reivindicao de equipamentos e servios emtermos quantitativos e qualitativos. Para que possam trabalhar, participar, querem ter sua vidadomstica resolvida, atravs de servios pblicos ou atravs das relaes de comunidade. Noentanto, o discurso das mulheres frente ao desenvolvimento territorial nos ltimos anos tmmudado significativamente para um forte discurso pela implementao de direitos. Primeiro odireito igualdade perante os homens, reconhecendo as desigualdades de gnero.

    21COMEGNO, Maria Ceclia. SPMulheres em dados..., op. cit., p. 95.22 GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., op. cit., p.39.23 GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., op. cit., p.124.

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    Falar das desigualdades no apenas tratar do problema do ponto de vista do acesso desigual aosespaos e processos das cidades , acima de tudo, reconhecer que as desigualdades entre mulheres ehomens no atravessam a produo e reproduo das cidades, mas so, por princpio, elementosconstituintes das mesmas. Esta uma distino importante, na medida em que se atuamos apenas noplano das desigualdades de acesso estaremos trabalhando os impactos da estrutura na vida dasmulheres o que importante, mas no o suficiente enquanto que ao assumirmos as desigualdades

    de gnero como estruturadoras e dinamizadoras das cidades estaremos enfrentando a questo do podere conseqentemente dos privilgios que os homens tm com a conservao desta estrutura24.

    A luta por direitos uma luta que no se restringe ao tema de gnero, mas um debate enfocado por diversas ONGs, associaes e organizaes da sociedade civil organizada,fruns e redes, entre outros , problematizando mais profundamente questes que antes eramdebatidas de forma muitas vezes quantitativa. Esse discurso, no Brasil, aparece nitidamenteaps a Constituio Federal de 1998, com a incluso de uma srie de direitos, inclusive os quequero aprofundar aqui, como o direito cidade25e o direito moradia, exemplos de direitosque envolvem o territrio onde hoje a mulher est muito presente.

    As mulheres e a moradia: valor de uso

    Edsio Fernandes26ao debruar-se sobre ao direito cidade e moradia enfatiza que devemser consideradas as dimenses de gnero do processo de desenvolvimento urbano naformulao dos programas de regularizao da posse para corrigir desigualdades histrias esociais, e para assim promover o empoderamento das mulheres e dar maior estabilidade scrianas27. E vai alm, frisa que necessrio buscar solues poltico-jurdicas inovadoras queincluem a compatibizao da segurana individual da posse com o reconhecimento de direitossociais moradia e tambm a incorporao de uma dimenso de gnero negada j h muito

    tempo

    28

    .Essa uma referncia onde est implcita a questo da titulao. Existem programas deregularizao onde a poltica desenhada determina que o ttulo de propriedade (ou outros

    24 GOUVEIA, Taciana. Mulheres: sujeitos ocultos das / nas cidades?. s/ data. Retirado do site do FrumNacional de Reforma Urbana http://www.forumreformaurbana.org.br/_reforma/pagina.php?id=1057em maio de2007.

    25De acordo com SAULE JR: O direito cidade, adotado pelo direito brasileiro, o coloca no mesmo patamardos demais direitos de defesa dos interesses coletivos e difusos, como por exemplo o do consumidor, do meio

    ambiente, do patrimnio histrico e cultural, da criana e adolescente, da economia popular. (...) A formatradicional de buscar a proteo dos direitos dos habitantes das cidades nos sistemas legais traz sempre aconcepo da proteo de um direito individual, de modo a prover a proteo dos direitos da pessoa humana nacidade. A concepo do direito cidade no direito brasileiro avana, ao ser institudo com objetivos e elementosprprios, configurando-se como um novo direito humano, e, na linguagem tcnica jurdica, como um direitofundamental. SAULE JR., Nelson. O Direito Cidade como paradigma da governana urbana democrtica.Publicado em 30/03/2005. Retirado do site http://www.polis.org.br/artigo_interno.asp?codigo=28 em maio de2007.26FERNANDES, Edsio. Aspectos jurdicos de los programas de regularizacin de la tenencia de la tierraurbana en Latinoamrica. elaborado para o Curso de Especializacin: Profundizacin en Polticas de SueloUrbano en Amrica Latina, realizado no Panam entre 28 de fevereiro a 11 de maio de 2007. Panam, LincolnInstitute of Land Policy, 2007. (mimeo)27FERNANDES, Edsio.Aspectos jurdicos de los.., Op. cit., p.9 e 15.28FERNANDES, Edsio.Aspectos jurdicos de los.., Op. cit., p.9.

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    documentos que comprovam a posse, como a concesso, usucapio, ttulo de compra e venda,entre outros) deve estar no nome do chefe de famlia. Nesses programas, h uma clara volta idia do homem como chefe, promovendo o que Nelson Saule Jr. chama de a volta do amor

    perdido, quando muitos maridos que abandonaram suas famlias voltam ao lar j h muitotempo, voltam para receber o ttulo de propriedade. Essa tradio de enxergar o homem como

    chefe de famlia encontra justificativa na associao do direito de propriedade ao direito defamlia, que considerava o homem como chefe de famlia29. Fernandes coloca que a estruturafamiliar hoje muito mais complexa e seu desenho no corresponde mais imagem defamlia tradicional desenhada nos cdigos jurdicos do incio do sculo. Mais do queadequarem-se ao fato de que na maioria das vezes o papel da mulher o de chefe de famlia,hoje com o avano da biologia gentica, as legislaes tero que se ajustar a papis cada vezmais difceis de serem classificados: possvel alugar uma barriga, ter filhos a partir deinseminao artificial. preciso repensar a imagem que temos de famlia tradicional econseqentemente, sua relao com o direito de propriedade.

    E tambm na importncia da titulao em termos de autonomia e empoderamento das

    mulheres. Pouco se sabe sobre a magnitude da diferena de gnero em relao propriedade,no entanto, Deere & Lon (2003) mostram que h sensveis diferenas na forma de adquirirterra na Amrica Latina:

    (...) e isso se deve a cinco fatores: preferncia dada aos homens na herana; privilgio masculino nocasamento; vis masculino tanto nos programas comunitrios como em programas estatais dedistribuio de terras; e vis de gnero no mercado fundirio. Todavia, homens e mulheres tendem aadquirir terras de maneiras diferentes: a principal forma das mulheres se tornarem proprietrias porherana, enquanto que o mercado fundirio um meio de aquisio de terras relativametne maisimportante para os homens30.

    E completam, com nfase na propriedade rural:

    (...) que no apenas mais provvel que os homens sejam proprietrios, mas que tambm tendem ater propriedades maiores do que as proprietrias do sexo feminino31.

    Ter terra tambm faz parte de acessar recursos, e manter as mulheres sem terra, mantmantigas formas de dominao dos homens sobre as mulheres. E essa questo se agrava aindamais quando estamos falando de um mundo onde a tendncia do mercado de terras aconcentrao dessas em poucas mos. As polticas do poder pblico, portanto, devem

    procurar ir na contra-mo dessa concentrao: nas mos de poucos, geralmente homens.

    Se nos debruarmos sobre experincias, podemos verificar, primeiro, vrias tentativas deaprovao de projeto de lei contendo a mulher como prioridade, como preferncia, cotas de

    habitao, entre outros. Baseio-me em experincias principalmente na cidade e Estado de SoPaulo32.

    29No me refiro aqui aos critrios do IBGE para definio de chefe de famlia, e sim ao Cdigo Civil.

    30 DEERE, Carmem Diana & LON, Magdalena. Diferenas de gnero em relao a bens: a propriedadefundiria na Amrica Latina. In: Sociologias. Porto Alegre: ano 5, n. 10, jul/dez 2003, p. 102.31DEERE, Carmem Diana & LON, Magdalena. Diferenas de gnero em..., Op. cit., p.103.32O debate sobre o ttulo de propriedade em nome da mulher est envolto na idia de autonomia, mas do que a

    garantia de permanncia com o bem, com a propriedade, em caso de separao, por exemplo. uma deciso quemuda a histria da sociedade patriarcal brasileira, onde o homem era o proprietrio e a mulher subalterna sdecises tomadas por ele para a famlia.

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    Essa preocupao aparece pois as mulheres esto envolvidas e so atores chave no processode regularizao. Um estudo coordenado por Pedro Abramo sobre o mercado de solo informalem favelas e a mobilidade residencial dos pobres, cujo objeto foi o Programa Favela Bairro noRio de Janeiro, mostrou que as mulheres vendem menos suas casas que os homens33. Umahiptese sobre essa concluso que elas no enxergam a moradia como uma mercadoria,

    esto centradas na segurana de sua vida domstica, da famlia. V na moradia valor de uso,mais do que de troca. Nesse sentido, estabelecer a mulher como figura prioritria para receberuma titulao pode significar uma opo na direo de garantir a permanncia na rea,

    preocupao constante dos programas pblicos de regularizao fundiria.

    A mulher, quando participa do mercado de terras est mais preocupada com estabilidade doque com lucratividade. Entrevistas com loteadores do mercado formal elaboradas peloInstituto Plis34mostram que esses do ateno especial s mulheres, pois consideram queessas so as que do a palavra final sobre a compra de um lote. Edsio Fernandes aponta queh pesquisas internacionais que apontam que as mulheres compram mais casas que oshomens. Lutam por estabilidade, por segurana.

    So importantes consumidoras de moradia tambm porque a insegurana de viverinformalmente as afeta de forma constante. Edsio Fernandes tambm comenta que asmulheres so mais afetadas pelo processo de informalidade como um todo e paraexemplificar, traz dados relevantes como: 95% das mulheres do mundo no tm conta

    bancria. Afirma que nas reas ocupadas informalmente, a represso social mais forte nasmulheres, com frequentes ameaas de violncia. Refletindo sobre suas colocaes permiteafirmarmos que uma poltica que trabalha a formalizao atravs da regularizao e seguranada posse est colaborando para diminiuir esse impacto sobre as mulheres.

    Seria reducionista uma viso da mulher apenas como atores que pressionam por

    implementao de infra-estrutura, equipamentos e servios. Esses equipamentos fazem parteda exigibilidade do cumprimento do direito cidade e do direito moradia, entendido em umsentido mais amplo.

    A questo da titulao prioritariamente para as mulheres pode ser entendida a partir da visode que a mulher v na propriedade o cumprimento da funo social e no v a propriedadecomo mercadoria. No quero aqui criar uma oposio entre funo social e mercadoria, massim, entre propriedade que deve estar subordinada a definio de cumprimento de uma funoque interesse coletividade e no apenas ao proprietrio; e propriedade absoluta, onde o

    proprietrio entende que pode fazer o que bem quiser com ela, independentemente dosdesejos da coletividade, e portanto, possvel a existncia de pessoas sem ter onde morar e

    propriedades utilizadas apenas como mercadoria, com proprietrios interessados em lucrarcom a sua valorizao.

    33ABRAMO, Pedro (org.).A cidade da informalidade: o desafio das cidades latino-americanas. Rio de Janeiro:Librera Sete Letras / Fundao Carlos Chagas Filho de Amparo a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, 2003.

    34CYMBALISTA, Renato; SANTORO, Paula Freire; LEONELLI, Gisela (coord.). Urbanization process andland prices in the urban frange of three municipalities in the State of So Paulo. Relatrio final de Pesquisa doInstituto Plis / Lincoln Institute of Land Policy Programa Amrica Latina y Caribe, realizada no 1 semestrede 2007. (final report, maio 2007). Uma hiptese levantada por um entrevistado desse trabalho que asexternalidades de um loteamento so pensadas para agradar s mulheres, que do a palavra final sobre o terreno

    a ser comprado.

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    Isso interessante para refletirmos sobre o direito de propriedade. O direito de propriedade noBrasil pode ser redefinido, ou melhor, relativizado, de acordo com a definio de funosocial da propriedade definido no Plano Diretor municipal. Num raciocnio lgico,

    poderamos ver nas mulheres um ator relevante para fazer com que a propriedade cumpra umafuno social, ou ao menos, como reforadora do combate noo antiga e ultrapassada de

    direito de propriedade absoluto.

    Plano Diretor municipal como espao para o reconhecimento dadesigualdade de gnero

    Seguindo a argumentao anterior, a mulher tem um papel relevante na elaborao de planosdiretores municipais. Considerando que estas esto muito mobilizadas em movimentos sociaisenvolvidos no tema territorial, acredita-se que alguns planos desenvolvidos face luz doEstatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01) j devem ter incorporado um olhar de gnerono processo de construo e no contedo final, embora ainda no se tenha notcia sobre algummonitoramento que estudasse o resultado dos planos a partir de um olhar de gnero.

    Para pensarmos um pouco sobre como a busca da igualdade em gnero pode ser traduzido empropostas para planos diretores, enfoco duas experincias j mapeadas por TerezinhaGonzaga, anteriores ao Estatuto da Cidade: planos diretores dos municpios de Santo Andr-SP e So Paulo-SP. Esses municpios, de acordo com Gonzaga, vm trabalhando edocumentando como, a partir do olhar transversal de gnero, tentaram construir metodologias

    para que esse olhar reflita em aes concretas sobre o territrio.

    De acordo com a autora, o municpio de Santo Andr, na gesto do Prefeito Celso Daniel, doPartido dos Trabalhadores, desenvolveu uma mobilizao de mulheres para que propusessemdiretrizes e aes especficas para o plano diretor, por meio da Assessoria dos Direitos daMulher e de vereadores da Cmara Municipal de So Paulo35. A autora aponta a primazia deSanto Andr:

    A primeira experincia no Brasil a partir da qual o movimento de mulheres passou a discutir a gestoe reordenao democrtica do espao urbano foi um trabalho rduo, realizado em Santo Andr, queculminou com a incluso de um plano setorial no Projeto de Lei do Plano Diretor alis, o nicoPlano Diretor do pas a contemplar a questo especfica da mulher , intitulado Plano Municipal dosDireitos da Mulher, enviado Cmara Municipal daquela cidade em 1991. Este processo representouum grande amadurecimento na discusso de mulher e cidadania36.

    Esse processo se deu a partir de uma comisso de trabalho formada pela Assessoria dosDireitos da Mulher, rgo da Prefeitura de Santo Andr, que envolveu um grupo de mulheresem discusses sobre o tema baseadas em duas perguntas: como cada mulher sente a cidade? Ecomo a cidade expressa seus desejos e sonhos?.

    O documento final mistura questes territorializveis como delegacias de defesa da mulher,creches, centros de atendimento jurdico e social com questes mais amplas relativas aodireito de cidadania sade integral, livre sexualidade, entre outros. O Plano Diretor

    35GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., Op. cit., p.38.36 GONZAGA, Terezinha de Oliveira. A cidade e a Arquitetura tambm..., Op. cit., p.187. A autora esteveenvolvida, junto com o movimento de mulheres, tanto no projeto de Santo Andr-SP como no de So Paulo-SP.

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    municipal incorporou duas das diretrizes do Plano Municipal dos Direitos da Mulher(PMPD): estabelecimento, em todos os setores da administrao, de polticas especficasvoltadas para as mulheres; garantia de representao das mulheres, por intermdio de suasdiversas associaes, nos programas sociais da municipalidade37.

    Outra iniciativa importante, de acordo com Gonzaga (2004, p. 59 e 195-202) foi junto aoPlano Diretor Estratgico de So Paulo. Apesar de pela segunda vez na cidade termos umaprefeita mulher a primeira foi Luiza Erundina e nessa ocasio, governava Marta Suplicy,ambas quando gestoras eram do Partido dos Trabalhadores (PT) a discusso do PlanoDiretor Estratgico junto ao poder Executivo no contou com a participao organizada domovimento de mulheres e do movimento feminista. Essa participao deu-se junto Cmarade Vereadores, atravs de duas vereadoras da Comisso de Defesa da Mulher Flavia Pereirae Lucila Pizani (ambas do Partido dos Trabalhadores) e contou com o apoio do gabinete dovereador Nabil Bonduki (PT), relator do substitutivo e da veredora Tita Dias (PT). Foi

    proposto um captulo especial para as mulheres, junto com a Unio de Mulheres de SoPaulo, ao Plano Diretor de So Paulo, apresentado pelas vereadoras como emenda ao Plano

    Diretor Estratgico, na cidade de So Paulo38

    .

    Para preparar o documento foram feitos debates e uma cartilha com informaes sobre asetapas do plano e algumas reflexes sobre o tema e questes para coleta de informaes. Foiincorporado no Plano Diretor Estratgico:

    Art. 22 As aes do Poder Pblico devem garantir a transversalidade das polticas de gnero e raa,e as destinadas s crianas e adolescentes, aos jovens, idosos e pessoas portadoras de necessidadesespeciais, permeando o conjunto das polticas sociais e buscando alterar a lgica da desigualdade ediscriminao nas diversas reas (Plano Diretor Estratgico do Municpio de So Paulo, 2002)39.

    No processo de elaborao dos planos diretores regionais, outros debates sob o mote Mulher

    e Plano diretor e boletins convidando as mulheres a participarem foram feitos. Umdocumento final contendo propostas referentes a polticas urbanas e sociais de gnero paraquestes de desenvolvimento econmico, de qualidade de vida, das polticas sociais, daquesto fundiria e da acessibilidade (assim denominado) foi elaborado.

    difcil diferenciar que conquistas foram obtidas por essa mobilizao de mulheres, quaisconquistas foram obtidas a partir da participao da sociedade como um todo. Isso porque ametodologia de participao no garantiu a informao sobre que documentos ou colocaesforam contempladas, que permitisse diferenciar as colocaes que tangenciam mais a questoda desigualdade de gnero.

    Exemplifico, Gonzaga40

    coloca como vitria do processo de debates junto ao movimento demulheres, mudanas de zoneamento no sentido de mudar zonas industriais para zonas mistas,criar Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). Ora, essas so bandeiras do movimentosocial, sem distino de gnero.

    37 A gesto que seguiu a do Prefeito Celso Daniel tambm foi do Partido dos Trabalhadores e o temadesigualdade de gnero aparece encaminhado e monitorado pela atual Secretaria de Incluso Social.38GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., Op. cit., p.59.39Retirado do site http://sempla.prefeitura.sp.gov.br/pde/LEI_13430-13.09.02.doc em junho de 2007.40 GONZAGA, Terezinha de Oliveira.A cidade e a Arquitetura tambm..., Op. cit., p. 198.

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    Afinal, qual o diferencial desse olhar? Nas duas experincias foram incorporadas diretrizesrelativas ao reconhecimento da desigualdade e que trabalhem para a garantia da participaodesse grupo. O documento de So Paulo d pistas para um diferencial significativo:estabelecer prioridades em prol da reduo da desigualdade de gnero. Destaco algumas

    partes do documento para essa argumentao:

    Habitao

    - Elaborar programas de subsdios para as mulheres, tendo em vista que, segundo o IBGE, elasrecebem em mdia 70% dos salrios dos homenos (grande parte delas menos que isso),principalmente nas funes que no exigem qualificao para o seu desempenho.

    - Elaborar programas de subsdios para as mulheres que chefiam famlia, a fim de que possam adquiriruma unidade habitacional.

    - Garantir que o ttulo da propriedade ou de concesso real de uso seja feito em nome da mulher.

    - Ampliar a parceria da Secretaria de Habitao com a Secretaria Municipal de Assistncia Social,para que se aumente o nmero de moradias provisrias ou se transformem albergues em moradiasprovisrias.

    - Programa de cortios que atendam especificamente as mulheres, principalmente na regio do Centro.

    Uso do solo

    - Garantia da aplicao da legislao que obriga murar terrenos vazios.

    - Sinalizao dos espaos da cidade, como partques e lugares pblicos, onde possa ocorrer violncia,com oestupros.

    Iluminao

    - Garantia da iluminao pblica.

    (...)

    Gesto

    - Que seja garantia a participao das mulheres nos organismos de represetao, como o oramentoparticipativo, conselhos e conferncias.

    - Participao das entidades de mulheres, nas agncias de desenvolvimento econmico e social.

    - Apoio e fortalecimento das entidades de mulheres (Gonzaga, 2004, p. 200-201).

    Muito do contedo do documento est mais preocupado com polticas que com oplanejamento territorial. E grande parte do contedo no diz respeito espeficamente smulheres, como o caso da garantia de iluminao, programas habitacionais. O que pedido,e deve ser destacado, prioridade de ateno. Esse diferencial de prioridadade tambm estno discurso das cotas para mulheres como representantes nos espaos de participao,

    defendido por diversas instituies junto ao processo de eleio de conselheiros para oConselho Nacional das Cidades. E esse um discurso por direitos igualitrios, reconhecendoque h desigualdade de gnero.

    Algumas consideraes

    possvel fazer algumas consideraes sobre a aproximao do tema planejamento territoriale gnero. Em relao ao planejamento, h algumas questes, que chamaria at mesmo dehipteses, relevantes levantadas pelo texto.

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    Uma primeira que a mulher leva consigo o espao domstico para o pblico, e nesse sentido necessrio exigir do pblico, que este lhe d condies de participar desse espao. Isso setraduziria, no caso do planejamento, em metodologias que garantam essa participao, mastambm servios, equipamentos, que permitam que a vida domstica possa coexistir com a

    pblica.

    Uma segunda, que houve uma mudana de discurso das mulheres, de um discurso em prolde servios e equipamentos, para um reconhecimento da desigualdade estruturante de gneroentre homens e mulheres, que trouxe a luta por direitos. Essa luta no apenas das mulheres,mas dos grupos excludos e desiguais, sejam raciais, imigrantes, culturais, etc. Essadesigualdade de direitos se reflete em desigualdades socioterritoriais e a luta por direitostransps-se luta pelo direito cidade e pelo direito moradia.

    Um parntese necessrio. Essa hiptese de mudana de discurso, tambm pode trazer outrashipteses, uma delas que o discurso no mudou, mas surgiu um novo movimento social.Sero dois movimentos diferentes? O movimento por creches, um movimento

    prioritariamente de mes, essencialmente preocupado com a vida privada; e o movimento demulheres, o de sade, o de moradia, so outras mulheres, que lutam pelo direito cidade. Jesto com outro discurso, o da vida pblica.

    Outro parnteses no menos necessrio. H que se fazer uma aproximao entre movimentosde luta pela reforma urbana e movimentos de mulheres, e possvel dizer que esse umdebate junto ao Frum Nacional de Reforma Urbana (FNRU), vide documentos e debatesanunciados no site da internet do frum e nos encontros anuais41.

    A resposta dos diversos atores envolvidos no planejamento territorial em relao questo dadesigualdade, pode convergir para uma resposta muito parecida com a de outros atores sobre

    os outros tantos temas onde h essa desigualdade: criar regras especiais para mulheres,poltica de cotas, compensatrias. Essa a forma de lidar encarando a desigualdade,procurando trabalhar para diminui-la.

    E tambm uma forma de diferenciar questes de gnero de outras muito dominantes, comopor exemplo, questo de renda. Pensar a redistribuio apenas olhando para o recorte declasse, empobrece o olhar sobre a questo dos direitos. Considerar gnero como questoestruturante no focalizar na mulher, para pensar o direito para todos42.

    Mas isso ainda no acontece no planejamento universalista, totalitrio, que no pensa a partirdas vozes dos excludos43. E nas experincias recentes de planos analisadas nesse artigo,

    mesmo que distantes desse planejamento universalista, Santo Andr e So Paulo, podemosnotar que no estamos criando regras especiais para as mulheres, estamos, principalmente,

    41Taciana Gouveia tem um dos textos publicados no site do FNRU, e reflete sobre o tema: estes so sujeitospolticos que se encontram de modo muito ocasional e bastante espordico. Tal situao provoca umdistanciamento de suas pautas e muitas vezes uma repetio de esforos polticos e de mobilizao que poderiamser evitados, alm de uma espcie de estranhamento mtuo entre estes movimentos.

    42FARAH, Marta Ferreira Santos. Gender and public policies. In:Rev. Estud. Fem., Florianpolis, v. 12, n.1, 2004. Disponvel em: . Acessado em: 22 July 2007. Pr-publicao.43Vide colocaes de Jos Maria Ezquiaga no incio desse texto.

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    dentro das regras para todos, trabalhando no campo de estabelecer diretrizes, desenharprioridades.

    Esse o caminho encontrado para reconhecer e trabalhar a desigualdade de gnero noterritrio, em termos propositivos, mas certamente podemos avanar, criando instrumentos

    especiais para garantir a aplicao das diretrizes e realizao das cotas, criando estmulos oupunies para que as diretrizes se realizem, ou seja, dizendo como fazer cumprir osobjetivos j desenhados no planejamento. E tambm instrumentos e projetos que monitoremesse cumprimento: ser que as leis esto sendo cumpridas? E especialmente, ser que as leisque trabalham para diminuir desigualdades esto sendo tambm cumpridas? O desafio entender o que significa propor diretrizes como buscar reduzir a desigualdade de gnero emtermos socioterritoriais e como traduz-se essa diretriz em instrumentos para fazer o seucumprimento. importante frizar que nesse debate de significado, est tambm a definio dafuno social da cidade e da propriedade, como j foi colocado anteriormente.

    Ainda das experincias levantadas, percebe-se na eleio dos casos a serem estudados por

    Terezinha Gonzaga, uma trajetria do Partido dos Trabalhadores nesse tema. Paraconseguirmos propor polticas mais duradouras, preciso despartidarizar certos temas, queesbarram nessa anlise quase como que criando uma convergncia duvidosa. Participao

    popular, cidadania, gnero, raa, so temas frequentemente associados a um discurso departidos ditos de esquerda. Levanto a hiptese de que isso est mudando, j possvelencontrar outros partidos com instncias focadas nesse tema, e em outros como culturas,imigrao e raa. preciso mape-las, estud-las, desmistificar.

    Nas duas experincias tambm, no foi destacada a preocupao com uma metodologia queincorporasse e trabalhasse para diminuir desigualdades. Se as mulheres esto nos espaos

    pblicos de participao, mas no se manifestam, h muito o que fazer em termos

    metodolgicos para trazer tona o olhar da mulher sobre o territrio. E toda e qualquermetodologia dever incorporar a idia de que a mulher traz nas suas responsabilidades a vidaprivada e a pblica, ao mesmo tempo. E tambm tentar superar a viso de que as mulheresno esto aptas para participar da vida pblica, como prope Gouveia:

    aqui novamente surge a questo da dicotomia geral/especfico e da fragmentao das polticaspblica, na medida em que essas duas faces de uma mesma lgica terminam por criar uma espcieseparao entre os sujeitos polticos considerados aptos para disputarem os sentidos e as orientaesgerais das lutas e polticas e aqueles considerados sujeitos apenas reivindicatrios que atuariam dentrodesta concepo que ainda fortemente dominante na nossa ao poltica apenas a partir de seusprprios interesses para resoluo de carncias especficas.No caso em questo se as mulheres esto abrigadas sob a rubrica de grupos sociais pode-se inferir que

    elas no so consideradas como sujeitos polticos capazes de falar em seu prprio nome, bem comoque sejam capazes de pronunciar um pensar e uma ao sobre a dinmica das cidades. A mnimareferncia feita s mulheres nesses processos polticos reafirma a desigualdade e o seuocultamento como sujeitos44.

    Retomando Esquiaga (1997, p. 9-10) e sua investigao sobre os caminhos do planejamento,ele prope que, metodologicamente, a aproximao com o tema de gnero se d tambm com

    44GOUVEIA, Taciana. Mulheres: sujeitos ocultos das / nas cidades?. s/ data. Disponvel no site do FrumNacional de Reforma Urbana http://www.forumreformaurbana.org.br/_reforma/pagina.php?id=1057 acessadoem maio de 2007.

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    uma mudana de escala de planejamento: do total para o local. Caberia aqui umainvestigao mais aprofundada sobre se isso aconteceu, embora seja corrente percebermos, nocaso do Plano Diretor de So Paulo, que a mudana de escala de interveno que rechaa os

    planos e retoma os projetos urbanos no se aproximou do tema de gnero, ou da desigualdade.As Operaes Urbanas Consorciadas em So Paulo procuram ser espaos que evocam ser

    smbolos de modernidade ou eficincia, sem qualquer vnculo ou preocupao com oenvolvimento de outros atores que no os que tradicionalmente esto interessados nodesenvolvimento urbano imobilirio. Alis, ao contrrio, so projetos que ao revalorizaremimveis, segregam classes sociais e acabam por colaborar para a excluso social.

    H uma mudana de escala, mas no h uma preocupao metodolgica para trabalhar asquestes de desigualdade e buscar a legitimidade social da prtica urbanstica. Essa, atravsde projetos urbanos de espaos para a modernidade, est centrada no tema da desregulaoe da liberao do solo. Se, como vimos, a mulher um ator relevante para enxergar a

    propriedade como uma funo social e no como mercadoria, qual o sentido de investirmosnossa energia de planejadores para planejar para o mercado. Ser que no estamos indo na

    contra-mo do debate de direitos e do combate desigualdade de gnero? De que adiantatermos o discurso que incorpora metodologias para as mulheres participarem se nossoraciocnio de planejamento est centrado em projetos que no refletem em espaos queatendem prioritariamente a esse grupo (e at mesmo trabalham no sentido contrrio)?

    Por fim, ao menos uma concluso possvel: se precisamos fazer cidades mais justas eigualitrias, para pensar numa cidade mais igual, preciso formular polticas que visem acolaborar nessa correlao desequilibrada de gnero. Isso justifica polticas exclusivas ou a

    preocupao com o olhar transversal sob o tema gnero sobre as polticas. Trabalhar a

    equidade significa tratar diferentemente os desiguais, trabalhar no campo da diferena.