gabriela na moqueca ou do lugar amadiano da … · ah, que delícia a banana da terra! essa fruta...

7
1 GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA MULHER À PERSPECTIVA CIBORGUE Rafael Siqueira de Guimarães 1 Resumo: Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre a intervenção-performance Moqueca Ciborgue, realizada no ano de 2016 em Ilhéus, Bahia. A obra reflete sobre o imaginário sulbaiano a partir da experiência de seu autor. Dentre o que está explicitado, uma questão primordial é a relação entre a representação da Gabriela, de Jorge Amado, como pilar construtivo da estagnação e manutenção do perfil coronelista. Ao performar uma Gabriela-outra, ciborgue, pelo olhar do estrangeiro que chega, questiona-se, na transformação também que proporciona a Moqueca em feitura-fritura, este lugar. Mais que crítica, apresenta uma oura agenda, abrindo para uma ressignificação, por parte do público que assiste e participa, já que a obra percorreu lugares importantes da cidade e que compõem o imaginário nordestino/sulbaiano: a feira, a praça, a casa de Jorge Amado patrimônio cultural, o comércio, a tenda do teatro, o terminal de ônibus. Na figura da Gabriela, que se desfaz e se transmuta, faz-se ciborgue, transbordando a outros possíveis, afirmando outras pós-mulheres. Palavras-chave: Performance. Imaginário Sulbaiano. Literatura Amadiana. Ciborgue. “Moqueca Ciborgue” é um experimento, uma aterrisagem nas terras sulbaianas, que promove um encontro gastronômico e afetivo pelas ruas da cidade. É sobre chegar nessa terra e se encontrar com a gente daqui. Ao mesmo tempo que propõe um diálogo afetivo, também busca refletir sobre a cidade, sobre como é viver na região. Nesta experiência, provoca-se os sentidos pelo olfato e pelo paladar: uma moqueca é elaborada enquanto se desenrolam as ações no espaço público e as pessoas são convidadas a experimentá-la, agora preparada por um estrangeiro que chega, um estrangeiro ciborgue, que se monta e se remonta por aqui. Propus a realização de uma cartografia desses espaços. Para isso, me baseio no conceito de cartografia, como proposto por Deleuze e Guatari (1995), que se apropria deste termo da geografia para usá-lo como uma prática do conhecer. Um método sem forma fixa que considera o caráter processual do seu objeto de estudo e se deixa afetar por ele. A este respeito nos fala Cynthia Farina: A cartografia tem uma série de particularidades. É um método que não se aplica, mas se pratica. Quer dizer, não há um conjunto de passos abstratos, a priori, a serem aplicados a um objeto de estudo, pois a cartografia é um método em processo de criação, coerente com a processualidade daquilo que investiga. Nesse sentido, trabalha- 1 Performer, psicólogo, ativista e produtor cultural. Professor da Universidade Federal do Sul da Bahia.

Upload: leanh

Post on 20-Jan-2019

216 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

1

GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA MULHER À

PERSPECTIVA CIBORGUE

Rafael Siqueira de Guimarães1

Resumo: Este trabalho tem o objetivo de refletir sobre a intervenção-performance Moqueca

Ciborgue, realizada no ano de 2016 em Ilhéus, Bahia. A obra reflete sobre o imaginário sulbaiano a

partir da experiência de seu autor. Dentre o que está explicitado, uma questão primordial é a relação

entre a representação da Gabriela, de Jorge Amado, como pilar construtivo da estagnação e

manutenção do perfil coronelista. Ao performar uma Gabriela-outra, ciborgue, pelo olhar do

estrangeiro que chega, questiona-se, na transformação também que proporciona a Moqueca em

feitura-fritura, este lugar. Mais que crítica, apresenta uma oura agenda, abrindo para uma

ressignificação, por parte do público que assiste e participa, já que a obra percorreu lugares

importantes da cidade e que compõem o imaginário nordestino/sulbaiano: a feira, a praça, a casa de

Jorge Amado patrimônio cultural, o comércio, a tenda do teatro, o terminal de ônibus. Na figura da

Gabriela, que se desfaz e se transmuta, faz-se ciborgue, transbordando a outros possíveis, afirmando

outras pós-mulheres.

Palavras-chave: Performance. Imaginário Sulbaiano. Literatura Amadiana. Ciborgue.

“Moqueca Ciborgue” é um experimento, uma aterrisagem nas terras sulbaianas, que promove

um encontro gastronômico e afetivo pelas ruas da cidade. É sobre chegar nessa terra e se encontrar

com a gente daqui. Ao mesmo tempo que propõe um diálogo afetivo, também busca refletir sobre a

cidade, sobre como é viver na região. Nesta experiência, provoca-se os sentidos pelo olfato e pelo

paladar: uma moqueca é elaborada enquanto se desenrolam as ações no espaço público e as pessoas

são convidadas a experimentá-la, agora preparada por um estrangeiro que chega, um estrangeiro

ciborgue, que se monta e se remonta por aqui.

Propus a realização de uma cartografia desses espaços. Para isso, me baseio no conceito de

cartografia, como proposto por Deleuze e Guatari (1995), que se apropria deste termo da geografia

para usá-lo como uma prática do conhecer. Um método sem forma fixa que considera o caráter

processual do seu objeto de estudo e se deixa afetar por ele. A este respeito nos fala Cynthia Farina:

A cartografia tem uma série de particularidades. É um método que não se aplica, mas se pratica. Quer dizer, não

há um conjunto de passos abstratos, a priori, a serem aplicados a um objeto de estudo, pois a cartografia é um

método em processo de criação, coerente com a processualidade daquilo que investiga. Nesse sentido, trabalha-

1 Performer, psicólogo, ativista e produtor cultural. Professor da Universidade Federal do Sul da

Bahia.

Page 2: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

2

se com um modo de fazer pesquisa que se inventa enquanto se pesquisa, de acordo com as necessidades que

surgem, de acordo com os movimentos do campo de estudo em questão (FARINA, 2008, p. 10).

Como apontam Deleuze e Guattari (1995), a figura do pesquisador é decisiva, porque é através

de seus afetos, percepções, visão de mundo – e sem dissimular uma pretensa neutralidade – que se

produz o conhecimento. Sem se ater a modelos explicativos da realidade, nem a um plano a ser

executado, a cartografia exige do pesquisador a habilidade de estar atento aos fatos no momento em

que eles acontecem. Uma prática totalmente ancorada na experiência, que se renova de acordo com a

necessidade, pois diz respeito a campos de estudo vivos e mutáveis. Não desenhar mapas fixos, não

estar preso apenas ao registro e análise de dados, mas estar atento aos encontros.

Neste sentido, a pesquisa-criação que aqui exponho é feita a partir de um mapa perceptivo,

portanto subjetivo, de minha vivência no sul da Bahia. Com estes mapas, fui construindo outros, por

meio do entendimento do imaginário aqui presente: o imaginário amadiano, de Gabrielas e de

coronéis. Escolhi lugares do espaço de transeuntes, lugares por onde passam as pessoas, para pensar

minha performance. Escolhi a imagem da estátua de Jorge Amado, o calçadão comercial, o terminal

urbano de ônibus e a feira do Malhado.

Sob o olhar atento de “Amado”, como o chamava durante a ação performática, dizia:

“Por que tudo aqui é Gabriela? Mulher, essas mulheres aqui. Filhas dessa herança escravocrata, coronelista.

Por que sofrem tanto essas mulheres? Por que nasceram assim? Será isso, Amado? Cadê você agora para me

explicar isso? Não tive tempo o suficiente ainda para estar contigo, só conheço aí suas tantas casas, tantas

homenagens a você, Jorge. Tão bonitas suas residências.”

Page 3: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

3

Figura1. Moqueca Ciborgue sob o olhar de “Amado”. Foto de Clovis Lunardi.

Dali, digo à cidade, que são muitas cidades, que me encontrei aqui com muitas outras

heranças:

“Sabem de que é essa moqueca? Uma moqueca de banana da terra. Me encontrei com outra república de bananas

aqui. Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente.

Tão versátil, né?

Uma banana-ciborgue, como eu. Doce e salgada, sou daqui e de acolá.”

Assim, anunciava logo que o que eu fazia era mesmo uma moqueca, uma moqueca de banana

a ser compartilhada com as pessoas. A mesa posta desde o início, o público colocando-se ainda como

plateia, mas num lugar político sendo ocupado desde o início, pela zona de encontro da cidade.

A separação entre potencia politica da obra de arte e a tematizacao de assuntos sociais

enconramos em Ranciere (2010), que relativiza a passividade atribuida ao espectador que contempla

uma obra por conta de seu trabalho ativo de interpretacao, de ressignificação. Segundo o autor, a arte

nao e politica porque representa estruturas sociais, mas porque configura formas de relacoes espaco-

temporais que determinam experiencias especificas:

Page 4: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

4

Porque a politica, bem antes de ser o exercicio de um poder ou uma luta pelo poder, e o recorte de

um espaco especifico de “ocupacoes comuns”; e o conflito para determinar os objetos que fazem ou

nao parte dessas ocupacoes, os sujeitos que participam ou nao delas, etc. Se a arte e politica, ela o e

enquanto os espacos e os tempos que ela recorta e as formas de ocupacao desses tempos e espacos

que ela determina interferem com o recorte dos espacos e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do

privado e do publico, das competencias e das incompetencias, que define uma comunidade politica. (RANCIERE, 2010, p.46).

Figura 2. Preparando a mesa, na Feira do Malhado. Foto de Clovis Lunardi.

Concordando com Quijano (2005), quando falo de “nova república das bananas”, não estou

falando somente sobre a formação social do Brasil, mas dando o entendimento de quenão fomos

capazes, na América Latina, de percebermos a nós mesmos, por conta de nossas formações históricas

que foram fruto de uma construção surgida do processo colonizador. A colonialidade do poder

eurocentrada nos configurou como imagens com pouca semelhança, mas que tentam se enquadrar

aos modelos europeus. Daí advém todo o nosso interesse e esforço em promover ciências nascidas

desde as matrizes eurocêntricas aos nossos espaços cotidianos e, no caso dos regionalismos literários,

criamos lugares e pessoas excêntricas, mas que reproduzem o processo colonizador, aqui a figura do

coronel e da Gabriela.

Page 5: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

5

Aqui a tragédia é que todos fomos conduzidos, sabendo ou não, querendo ou não, a ver e aceitar aquela

imagem como nossa e como pertencente unicamente a nós. Dessa maneira seguimos sendo o que não

somos. E como resultado não podemos nunca identificar nossos verdadeiros problemas, muito menos

resolvê-los, a não ser de uma maneira parcial e distorcida (QUIJANO, 2005, p. 130).

Nas profundezas do inconsciente europeu elaborou-se um emblema excessivamente negro, onde estão

adormecidas as pulsões mais imorais, os desejos menos confessáveis. E como todo homem se eleva em

direção à brancura e à luz, o europeu quis rejeitar este não-civilizado que tentava se defender. Quanto a

civilização europeia entrou em contacto com o mundo negro, com esses povos selvagens, todo mundo

concordou: esses pretos eram o princípio do mal” (FANON, 2008, p. 161).

Proponho, ao fim da performance de rua, por meio de uma brincadeira com uma

metralhadora de brinquedo, mais do que uma guerra, mas um reencontro lúdico com nossas histórias.

Enaltecendo o papel da banana na moqueca, que é somente de banana e não de peixe, evidenciando

o poder, a gentileza e a ludicidade da banana da terra, desta TERRA, termino por dividir a moqueca

com o público.

“Quem precisa de vingança?

Eu preciso de moqueca.

Eu queria que aqui não fosse mais uma colônia.

Ainda é.”

Page 6: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

6

Figura 3. A metralhadora na feira do Malhado. Foto de Clovis Lunardi.

Referências

DELEUZE, G. ; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. Tradução: Aurélio

Guerra Neto; Célia Pinto Costa. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FARINA, C. Arte e formação: uma cartografia da experiência estética atual. 31 Reuniao Anual da

ANPED, 2008, Caxambu MG. Constituição brasileira, Direitos Humanos e educação. Caxambu MG

: Armazém das Letras Gráficas e Editora Ltda., 2008. v. 1. p. 35-36.

QUIJANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: E. Lander (Org). A

colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas . Buenos

Aires: Colección Sur Sur, 2005, p. 118-142.

Page 7: GABRIELA NA MOQUECA OU DO LUGAR AMADIANO DA … · Ah, que delícia a banana da terra! Essa fruta que não é nem muito doce, nem é salgada, nem é ácida somente. Tão versátil,

7

RANCIÈRE, J. Politica da Arte. Urdimento. Trad.: Monica Costa Netto. Florianopolis; n.15, p.45-

59, out. 2010.

GABRIELA IN MOQUECA OR THE WOMAN'S AMADIAN PLACE TO CYBORG

PERSPECTIVE

Abstract: This work aims to reflect on the intervention-performance Moqueca Ciborgue, held in

2016 in Ilhéus, Bahia. The work reflects on the Sulbaiano´s imaginary from the experience of its

author. Among what is explicit, a primary question is the relationship between the representation of

Gabriela, by Jorge Amado, as a constructive pillar of stagnation and maintenance of the cocoa

farmer profile. When performing a Gabriela-other, cyborg, by the look of the incoming foreigner, it

is questioning, in the transformation that also provides to Moqueca in making-fry, this place. More

than criticism, it presents a different agenda, opening for a resignification, by the public that attends

and participates, since the work toured important places of the city and that make up the

Northeastern / Sulbaiano imaginary: the market, the square, the house of Jorge Amado cultural

heritage, commerce, the theater tent, the bus terminal. In the figure of Gabriela, who falls apart and

transmutes, she becomes a cyborg, overflowing with other possible ones, affirming other post-

women.

Key-words: Performance, Sulbaiano´s imaginary, Amadian literature, cyborg.