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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS GABRIELA GORGES PARLA: DIÁLOGOS CORPORAIS MOVIDOS POR SENSAÇÕES FLUENTES EM IMPROVISAÇÃO NATAL/RN 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS

GABRIELA GORGES

PARLA: DIÁLOGOS CORPORAIS MOVIDOS

POR SENSAÇÕES FLUENTES EM

IMPROVISAÇÃO

NATAL/RN

2018

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GABRIELA GORGES

PARLA:

Diálogos corporais movidos por sensações fluentes em improvisação

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas

da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial à

obtenção do título de Mestre em Artes Cênicas.

Orientadora: Profª. Drª. Patrícia Garcia Leal

Natal/RN

2018

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Gorges, Gabriela. Parla : diálogos corporais movidos por sensações fluentes emimprovisação / Gabriela Gorges. - 2018. 144 f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grandedo Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programade Pós-Graduação em Artes Cênicas, Natal, 2018. Orientadora: Prof.ª Dr.ª Patrícia Garcia Leal.

1. Emoções. 2. Sentidos e sensações. 3. Dança. 4. Expressãocorporal. 5. Parla. I. Leal, Patrícia Garcia. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 793.3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRNSistema de Bibliotecas - SISBI

Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Elaborado por Ively Barros Almeida - CRB-15/482

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Dedico esta pesquisa a Solange Gameiro (in memoriam) que por muitos dias

permaneceu em meus pensamentos enquanto escrevia páginas desse texto,

abriu asas de seus filhos e precisou deixar que voassem sozinhos. A esse

exemplo de mulher, toda a minha gratidão por ter sido parte fundamental de

minha dança.

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AGRADECIMENTOS

A todas as energias de luz que sempre me acompanham.

Ao meu pai Patrício Gorges e minha mãe Indiamara Gorges que sempre estiveram dispostos

a fazer de tudo para que meus desejos de crescimento fossem realizados, sempre com muito

incentivo, cuidado, carinho e amor.

À minha irmã Natália Gorges, meu lindo presente, por me apoiar em tudo, sempre muito

prestativa e presente.

À minha noiva Larissa Paraguassú, por me acompanhar e segurar minhas mãos com todo

seu cuidado e compreensão, sempre incentivando e estando à disposição com esse amor

transbordante.

À minha orientadora Patrícia Leal, sempre doce e carinhosa, por toda atenção, cuidado e

orientação à pesquisa.

À banca examinadora Karenine Porpino e Rosa Primo, pelas contribuições e

acompanhamento. Em especial, à professora Karenine Porpino, que acompanhou a pesquisa desde o

seu início, quando ainda era uma ideia para a escrita do TCC.

Aos meus professores que, indireta ou diretamente, ajudaram no desenvolvimento da

pesquisa, formação artística e pessoal.

À Universidade Federal do Rio Grande do Norte, pelo espaço de crescimento e formação.

À turma do Chafurdo que fez da rotina motivo de muitas risadas, todos sempre dispostos a

ajudar da melhor forma possível, pude encontrar artistas e pesquisadores cheios de vida.

Às minhas conversantes Júlia Vasques, Larissa Paraguassú, Margoth Lima e Thaíse Galvão

por mergulharem tão intensamente em minhas propostas, sempre com muita verdade e

disponibilidade. Agradeço por todo apoio, que além de grandes artistas, são pessoas que carrego

para a vida toda.

Ao irmão de alma que o mestrado me deu, Iego José, que esteve sempre ao meu lado nessa

jornada.

Ao André Rosa, por sempre, organizada e carinhosamente, estar disposto a colaborar com o

trabalho.

Ao Juarez Moniz, por seu poder de encorajamento e palavras afetuosas.

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À Escola de Dança do Teatro Alberto Maranhão e Cia. de Dança do Teatro Alberto

Maranhão, em nome de Wanie Rose, por ceder o espaço para a realização da pesquisa, sempre

apoiando seus bailarinos e professores. Espaços de aprendizagem mútua.

Aos integrantes da CDTAM, companheiros e amigos de arte, que em muito contribuíram

para o andamento da pesquisa e minhas reflexões diárias.

A todos aqueles que tornaram possível a realização e vivência dessa pesquisa.

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Mergulho em consciência, um silenciar antecedente de uma reposta. Pergunto-me

para iniciar na sorte do acaso. Meditar o sentir em memórias, o agora, o fluxo.

Liberdade de escolha, assunto, atmosfera. Diálogos em intimidades pela

mobilidade dos fluidos, suas líquidas levezas inundam lentamente. Conversas

molhadas.

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RESUMO

A presente pesquisa teve por objetivo investigar, perceptiva e sensivelmente, as sensações,

sentimentos e emoções (DAMÁSIO, 2011; LABAN, 1978; LEAL, 2012) como meios potentes para

a criação em dança, considerando o processo histórico, cultural e pessoal do indivíduo. Para tanto, a

pesquisa, de cunho participante, (BORGES; BRANDÃO, 2007) contou com investigações

laboratoriais realizadas em grupo, com a participação de cinco artistas, denominadas conversantes,

buscando diálogos corporais fundados na sensibilidade que, por sua vez, desencadeiam construções

dramatúrgicas envolvidas por memórias, afetos e percepções. Dentre conversas, o trabalho artístico

Parla compartilha suas experiências laboratoriais ao público. A escrita-diário (OLIVEIRA, 2015)

aparece como registro de experiências conectadas ao íntimo, pessoal, afetivo, que se apresenta,

informalmente, intrinsecamente, ligado à uma escrita que possa ser mais próxima da dança. Sendo o

laboratório propulsor da pesquisa, tomamos como referência o afeto de Antonin Artaud

(CAETANO, 2012; QUILICI, 2002, 2012), com seu poder transformador em meio aos

relacionamentos e o acaso (OSTROWER, 2013; SALLES, 2008), como possibilidade criativa capaz

de despertar o inédito. A prática meditativa tem como foco e concentração a improvisação em

dança, considerada como técnicas a partir dos conceitos de Mara Guerrero (2008) e Patrícia Leal

(2012a), proporcionando liberdade à exploração de movimentos, encontrando características

significativas como a fluidez, apoiada nos estudos de fluência de Rudolf Laban (1978), por Ciane

Fernandes (2001, 2006, 2007), Lenira Rengel (2001) e Patrícia Leal (2012a), associada à liquidez

dos fluidos de Zygmunt Bauman (2001). Logo, pesquisar a importância de uma dança, que parte de

si sem negar ou separar o próprio sentir, contribui para a construção de uma arte que expressa o

humano, investigando a desestruturação de paradigmas cristalizados de pensar a dança existente

mesmo nos dias de hoje.

Palavras-chave: Sentir. Fluidez. Criação em Dança. Conversa Corporal. Parla.

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ABSTRACT

The present research aims to investigate, perceptually and sensibly, the sensations, feelings and

emotions (DAMÁSIO, 2011; LABAN, 1978; LEAL, 2012) as potent means for the creation in

dance considering the historical, cultural and personal process of the individual. Therefore, the

participatory research, (BORGES; BRANDÃO, 2007) has laboratory investigations carried out in a

group with participation of five artists called conversational, searching for body dialogues based on

sensitivity that trigger in dramaturgical constructions involved by memories, affections and

perceptions. The daily writing (OLIVEIRA, 2015) appears as a record of experiences connected to

the intimate, personal, affective, that presents itself informally, intrinsically, linked to a writing that

may be closer to the dance. Being the laboratory that propels the research we take as reference the

affection of Antonin Artaud (CAETANO, 2012; QUILICI, 2002, 2012) with his transforming

power amidst relationships and chance (OSTROWER, 2013; SALLES, 2008) as a creative

possibility capable of awakening the unprecedented. The meditative practice as focus and

concentration dance improvisation considered as techniques from the concepts of Mara Guerrero

(2008) and Patrícia Leal (2012a), providing freedom to the exploration of movements, finding

significant characteristics such as fluency supported in the studies of fluency of Rudolf Laban

(1978) by Ciane Fernandes (2001, 2006, 2007), Lenira Rengel (2001) and Patrícia Leal (2012a)

associated with the Liquidity of Zygmunt Bauman (2001) fluids. Searching for the importance of a

dance that part of itself without denying or separating one's own feelings contributes to the

construction of an art that expresses the human, investigating the destructuring of crystallized

paradigms of thinking the dance existing even today.

KEYWORDS: Feeling. Fluidity. Creation in Dance. Body Talk. Parla.

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LISTA DE IMAGENS

Imagem 1 Cena final desenhada 27

Imagem 2 Golpe 30

Imagem 3 Gesto de ―tapar‖ 32

Imagem 4 Cena final 34

Imagem 5 #foratemer 35

Imagem 6 Primeiramente For a Temer 35

Imagem 7 Carta 36

Imagem 8 Continuação da Carta 37

Imagem 9 Última Carta 38

Imagem 10 Querendo almoçar comida de verdade 39

Imagem 11 Macarrões 41

Imagem 12 Pizza! 41

Imagem 13 Fotografia do pirulito 42

Imagem 14 Universo 45

Imagem 15 Sei lá... Com sono 47

Imagem 16 Balançar de bumbum 49

Imagem 17 Mulheres 51

Imagem 18 Mulheres conversantes 55

Imagem 19 Só alegria com vocês 56

Imagem 20 Abraços observados 59

Imagem 21 Giros 60

Imagem 22 Boneca Gabi e bone Thaíse 61

Imagem 23 Boneca Júlia 62

Imagem 24 Vitrine de bonecas/Fotografia descongelada 63

Imagem 25 Residência artística Improcesso 3 90

Imagem 26 Performance Poesia e Perfume 91

Imagem 27 Ponto Morto 103

Imagem 28 Parla (ABRACE) 128

Imagem 29 Parla (ABRACE) 129

Imagem 30 Parla (ABRACE) 130

Imagem 31 Parla (Semana de Licenciatura em Dança) 134

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

CAPÍTULO I – DIÁRIOS DANÇADOS 22

Temerosa 24

Tranquila, de bem com a vida 25

Sentindo 26

Em desequilíbrio 28

Golpe 30

Querendo almoçar comida de verdade 31

Envolvida por amo 43

Sei lá... Com sono 47

Mulheres 51

Nona conversa 52

Só alegria com vocês 56

CAPÍTULO II – CONVERSAS: OS ASSUNTOS PERMEADOS 65

Transformações constantes: entre afetos e percepções 65

Experiências meditativas 72

Repetição e processo ininterrupto 76

A importância do registro: diários 81

Diálogos improvisativos 83

A Conversa Corporal 103

CAPÍTULO III – LÍQUIDA FLUIDEZ SENTIDA 106

Bauman e a dança: relações entre sociedade líquida e o fluido mover 113

O diálogo dos acasos 121

Processo de construção cênica e experimentos públicos: Parla 124

CONSIDERAÇÕES CONTÍNUAS 135

REFERÊNCIAS 139

ANEXOS

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INTRODUÇÃO

A presente pesquisa teve como objetivo geral investigar, perceptivamente e sensivelmente,

as sensações, sentimentos e emoções (DAMÁSIO, 2011, 2012; LABAN, 1978; LEAL, 2012a,

2012b) como meios potentes para a criação em dança, considerando o processo histórico, cultural e

pessoal do indivíduo. Especificamente: (1) identificar características e questões intensificadas pelo

procedimento da Conversa Corporal e pelo grupo participante da pesquisa em laboratório de

criação; (2) destacar a importância de diários de bordo para documentação, criação e escrita

acadêmica; (3) discutir a improvisação e técnicas de dança na contemporaneidade; (4) traçar

conexões entre o fator fluência em Rudolf Laban e os fluidos e líquidos em Zygmunt Bauman e a

dança; (5) proporcionar diálogos corporais e textuais através da dança; e (6) desenvolver a

construção artística cênica do trabalho Parla.

Para tanto, foi necessário investigar de que forma os sentimentos e emoções afetam a

fluência dos movimentos a partir do que é sentido no momento de experimentação. Para dialogar

sobre fluência ancoramo-nos nos estudos do movimento de Rudolf Laban (1978) a partir também de

autores como Ciane Fernandes (2006, 2001), Patrícia Leal (2012a) e Lenira Rengel (2001), trazendo

este fator do movimento como apoiador da expressão de sentimentos e emoções, entrecruzando com

as ideias de fluxo de Zygmunt Bauman (2001, 2007) inerente aos líquidos que fluem por sua

natureza.

O termo Parla, escolhido como título da dissertação e da experiência cênica, faz um convite

aos diálogos. Palavra utilizada no idioma italiano, apresentando o significado de troca de ideias,

palavras, uma conversa, falar. A presente pesquisa, então, se encontra disponível a reflexões,

discussões, troca de ideias, energias, de forma a dialogar com autores, artistas, leitores, mundo.

Aqui, propõe-se um entrelaçar das mais variadas falas, que se somam ao desenvolvimento da

pesquisa e percepções sobre a vida. Há escuta, fala, conversa.

A pesquisa proposta dá continuidade ao trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso

de Licenciatura em Dança pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), em 2015,

intitulado Conversa Corporal: um diálogo através de procedimento metodológico de criação em

dança, que dialogou com autores como Alleoni (2013), Almeida (2012), Faria (2011), Krischke

(2014), Leal (2009), Leite (2005), Oliveira (2014), Porpino (2009) e Rengel (2005 e 2001) sobre a

criação em dança, improvisação, Contato Improvisação; a criação como educação e

desenvolvimento artístico e profissional, descrevendo um procedimento metodológico de criação,

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desenvolvido por mim, através de influências em referências práticas vivenciadas em cursos,

workshops e aulas.

Tais experiências foram vividas na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN),

durante as disciplinas oferecidas pelo curso de Licenciatura em Dança: Composição Coreográfica,

com a Professora Maria de Lurdes Barros da Paixão, Dança e Educação, com a Professora

Karenine de Oliveira Porpino, Corpo e Movimento, com o Professor Maurício Motta, junto ao

projeto de extensão (Com)tatos e Improvisações, coordenado pelo Professor Sávio de Luna, na Cia.

de Dança do Teatro Alberto Maranhão (CDTAM), na qual estou integrada atualmente, sob a direção

de Wanie Rose; em residências artísticas, durante Encontro Nacional de Dança Contemporânea do

Rio Grande do Norte, com a Professora Vanessa Macedo e minhas primeiras experiências com a

dança na cidade de Jaraguá do Sul/SC, com o Balé da Cidade de Niterói do Rio de Janeiro

(GORGES, 2015).

A importância da experiência é fundamental para nosso próprio crescimento, todas essas

vivências, apontadas dentre tantas outras inúmeras, que fruem tanto no âmbito artístico quanto além

dele (sem querer dissociar vida e arte, mas apenas apontando as especificidades da experiência que

se interligam) têm seu papel essencial para a construção do ser que me compõe e que se desdobra

em, minhas criações e reflexões:

[...] a melhor coisa que pode acontecer a um artista é a existência de outros artistas.

Sempre crescemos com as experiências e realizações de outros artistas e enriquecemos

espiritualmente com sua obra. Assim ganhamos maior liberdade para criarmos nossa

própria obra individual (OSTROWER, 2013, p. 270, grifo do autor).

Jorge Larrosa (2002) reflete a experiência como algo diretamente ligado ao indivíduo.

Diariamente, muitos acontecimentos passam, porém, quando nada nos toca não vivenciamos uma

experiência, a experiência nos atravessa e, de alguma forma, vivenciamo-la quando algo acontece

em nós. Ao nos atravessar, tem a capacidade de nos formar e transformar.

A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto de

interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para

pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e

escutar mais devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,

suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da

ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os ouvidos, falar sobre o que nos

acontece, aprender a lentidão, escutar aos outros, cultivar a arte do encontro, calar muito,

ter paciência e dar-se tempo e espaço (LARROSA, 2002, p. 24).

Enquanto sujeitos da experiência, diz-se do lugar onde os acontecimentos sucedem, uma

área sensível aos afetos, um campo receptivo e que dá espaço ao que chega. O sujeito da

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experiência é definido por sua passividade e disponibilidade, passividade não no sentido entre a

oposição de ativo e passivo, mas refere-se a ―[...] uma passividade feita de paixão, de padecimento,

de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade

fundamental, como uma abertura essencial‖ (LARROSA, 2002, p. 24).

Logo, a transformação própria concerne apenas ao sujeito da experiência que se propõe

abertamente às oportunidades, e Larrosa (2002) ainda relaciona a experiência à paixão, pois, não é

possível aproveitar a experiência como consequência de uma lógica de teorias de possibilidade da

ação, de uma reflexão de si enquanto agente, mas sim, da reflexão de si enquanto sujeito passional,

capaz de se apaixonar.

O saber da experiência não é relacionado ao saber de informação, o saber de coisas é

adquirido na maneira em como respondemos aos acontecimentos da vida e como atribuímos sentido

ao que nos toca. Não se versa sobre a verdade, mas do sentido ou sem-sentido do que nos sucede

(LARROSA, 2002).

Segundo Larrosa (2002) o saber da experiência é finito, diz respeito ao indivíduo em sua

existência; é pessoal, particular, subjetivo. Podemos encarar um mesmo acontecimento, mas nunca

a mesma experiência, por ser singular e de impossível repetição. Dizer ou aprender da experiência

do outro não é possível, pois cada um tem a capacidade apenas de falar de si e do seu saber.

Portanto, o conceito de experiência, entendido através de Larrosa (2002), concerne aos

aspectos que compõem a experiência da qual discorremos durante todo esse texto, a experiência que

é única, correspondente a cada sujeito, vivida por suas particularidades e seus sentidos e sem-

sentidos. Assim como, sua experiência, ao ler-me, difere da de outro leitor, desdobrando-me em

várias possibilidades experienciais, em que, a cada nova oportunidade em reler essa dissertação, me

perceberá diferente, tanto como lhe encontrará e sairá de nosso relacionamento transformado.

O termo Conversa Corporal, aqui utilizado, foi escolhido para dar nome ao procedimento

metodológico de forma que significasse um diálogo entre corpos dançantes que se dá de maneira

fluída e significativa, com interação entre duas ou mais pessoas, por meio da improvisação

impulsionada por temas norteadores, provocativos para a criação.

A palavra conversa, para o presente contexto, refere-se a um diálogo entre duas ou mais

pessoas, que se dá através do movimento, em uma troca de pensamentos, ideias e interação como

forma de comunicação. O movimento aqui entendido é como todas as possibilidades de troca em

diálogo, seja o corpo que se move dançando, o corpo que se move pela voz, o corpo que se move

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em música, dentre outras possibilidades. Conversa, portanto, é o termo utilizado para esta pesquisa,

designando os encontros em laboratórios ou experimentos públicos através da Conversa Corporal.

A Conversa Corporal,então, dialoga com aquele que experimenta através de movimentos

corporais, trocando energias, histórias e sensações através de temas, partindo da improvisação para

a construção de trabalhos coreográficos, também já experimentados em exercícios de aula. Thereza

Rocha (2016) comenta a respeito do diálogo e sobre o diálogo entendido na dança, dizendo que:

Quem dialoga de fato, e não simplesmente monologa, está mais ocupado em ouvir do que

falar. É uma porosidade que se desdobra necessariamente em novos estados de corpo. No

caso da dança, são outras qualidades interpretativas e uma infinidade de outras

possibilidades de composição que aparecem a partir de um gesto dançado fabricado no

―entre‖ do diálogo, do colaborador (ROCHA, 2016, p. 104).

Ao entender essa escuta como parte essencialmente importante ao diálogo, a proposta da

Conversa Corporal assemelha-se à concepção de dança pelo Contato Improvisação, prática essa

que surgiu no início dos anos 70, nos EUA, a partir das pesquisas do bailarino Steve Paxton, que

por sua vez, tinha como intuito a descoberta de uma interação entre corpos.

O ideal no Contato Improvisação é um íntimo e sincero diálogo entre duas pessoas por

meio da interação entre seus corpos (...) no Contato Improvisação a ênfase é dada às

percepções internas do indivíduo, usando mais a propriocepção do que a visão. (LEITE,

2005, p. 101-103)

Annie Suquet (2008) ainda explica que o Contato Improvisação é

[...] uma forma de dança fundada sobre a troca de peso entre parceiros: uma dança da

―partilha gravitária‖ [...], essa técnica, que seu criador qualifica de ―forma perceptiva‖, põe

no seu coração o sentido do tato. Dos cinco sentidos tradicionais, o tato é, com efeito, o

único que comporta uma reciprocidade imanente: não se pode tocar sem ser tocado. Se é

necessário que haja um mínimo de duas pessoas para que se crie uma dança-contato, o

número de participantes não é limitativo. Todas as superfícies do corpo, exceto as mãos,

podem servir para tocar o parceiro e ser mobilizadas como apoio para abandonar seu

próprio peso ou acolher o do outro. [...] Da ―troca das massas em movimento‖ decorrem

variações de pressão e de força de impulsão que, por sua vez, modulam os ritmos, os

acentos, as dinâmicas dos movimentos. As formas resultantes são complexas, fugazes,

impossíveis de se premeditar, dado que nascem da ação como tal. Daí a noção de

―composição instantânea‖, reivindicada por Paxton. Submetido a uma turbulência gravitária

fora do comum, o bailarino de contato acaba desenvolvendo novas modalidades adaptativas

(SUQUET, 2008, p. 533-534).

Assim como no Contato Improvisação, a Conversa Corporal necessita de, no mínimo, dois

corpos para que aconteça, não havendo uma limitação de conversantes. Porém, não

obrigatoriamente, tais corpos devem estar em contato através do sentido do tato, os diálogos

ocorrem independentes da distância, e o contato pode ser feito também através de outros sentidos.

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Suquet (2008) ressalta, ainda, que movimento e estado emocional não se dissociam durante a

prática, e o cuidado com o outro é fundamental:

A mobilização do peso [...] é indissociável da textura afetiva do indivíduo, pois a ação

reflexiva dos músculos gravitários responde as mutações do estado emocional e vice-versa.

Os pressupostos da dança-contato, portanto, estão longe de serem anódinos. Implicam uma

visão poética, mas também política, da relação ao outro (SUQUET, 2008, p. 535).

A autora discorre que a perda de equilíbrio e a queda consentida constituem o fundamento

do Contato Improvisação. Os movimentos em seu centro de gravidade flutuam constantemente em

configurações espaciais, na qual a verticalidade não está tão presente, ―Nessas situações de

desorientação rápida, dá-se um black out da consciência vigil, dando lugar aos comportamentos

reflexos‖ (SUQUET, 2008, p. 534-535, grifo do autor).

Paxton (1987) procurava unir esses comportamentos reflexos a mecanismos de

sobrevivência, como por exemplo, controlar a queda, aprendendo a usar o corpo de forma que se

distribua o impacto horizontalmente, sem agressões. Desvinculando o reflexo do medo, abrem-se

portas ao enriquecimento de possibilidades inéditas. Neste caso, a consciência passa a ser uma

―testemunha serena‖ ao desconhecido, sem bloqueios, capacitando a aprendizagem (SUQUET,

2008).

Assim, segundo Suquet (2008), a consciência em estado de vigília é deixada um pouco de

lado para que os reflexos se coloquem em alerta, não como associação do medo, mas como

possibilidades insólitas, em que não há inibições, desde que a consciência se encontre plácida ao

advento ignoto, acarretando uma maior aprendizagem.

Albernaz e Farina (2009) descrevem o Contato Improvisação como uma dança que não tem

a pretensão em apresentar uma narrativa nem estruturas pré-prontas. O que interessa é a percepção

pelas sensações, que cresce, quando acontece o contato com outros corpos, que escutam uns aos

outros:

O Contact Improvisation se dá através de um diálogo físico entre dois ou mais corpos.

Acontece em silêncio ou acompanhado de música, mas, seja como for, não se dança uma

música, não se ilustra uma narrativa musical ou de outra ordem, dada a priori. Quer dizer,

nessa dança não se encena nenhuma coreografia pré-pronta, não se representa um discurso

gestual, estético ou ilustrativo previamente constituído. Ao dançar, cada corpo estabelece

uma conexão não apenas com seus movimentos e desejos em movimento. É fundamental a

percepção do próprio corpo por meio das sensações que vão surgindo em relação consigo e

o solo. Mas o trabalho não pára aí. Ou melhor, ele adquire outra acuidade, força e

consistência quando entra em contato com outro corpo e entende que os movimentos

podem ser conjuntos; que esses movimentos constituem um espaço a ser habitado e

percorrido, constituem um campo de investigação conjunta. Nesse espaço somos

convocados a desenvolver, digamos, uma escuta. (ALBERNAZ; FARINA 2009, p. 550)

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E ainda:

A dança se gera a partir do encontro dos corpos. Suas velocidades e ritmos se dão na

própria dança. Com o outro. Com as sensações geradas nesse encontro. Certamente que há

movimentos específicos nesta dança. Esses movimentos visam favorecer a fluidez e o

deslizamento dos corpos em contato. Dá-se peso a outro corpo e se oferece escuta aos

movimentos gerados coletivamente. (ALBERNAZ; FARINA 2009, p. 545)

A definição de como a dança acontece durante as práticas de Contato Improvisação,

segundo Albernaz e Farina (2009), está muito próxima a como se dá a Conversa Corporal nos

laboratórios. A escuta dos corpos, mesmo não estando em contato como necessariamente acontece

no Contato Improvisação, desencadeia a criação em harmonia e fluidez, característica inteiramente

presente no Contato Improvisação. Na Conversa, não há movimentos específicos, mas eles são

motivados pelas sensações das provocações e encontro com o outro.

Venho com o objetivo de trazer ao intérprete, que sente e percebe o que acontece com o

corpo em laboratório, a percepção de como seu sentir influência em sua fluência. Os laboratórios

são espaços abertos às experimentações, possibilitam a exploração do corpo e seus desejos

moventes, reflexões, ideias, pensamentos e trocas entre os investigadores. Nossos laboratórios são

organizados em quatro etapas: definição do tema, concentração/meditação, improvisação e

discussão da experiência, explicados, passo a passo, no desenvolvimento da dissertação entre os

conceitos que os fundamentam (Capítulo II).

Nos laboratórios desenvolvidos, geralmente, a fluência é de característica livre e líquida, em

diálogo entre os corpos e os afetos que modificam, interferem, relacionam e acrescentam na dança

de quem experimenta, construindo possíveis dramaturgias aos encontros laboratoriais. O Afeto aqui

é entendido como o poder de afetar, transformar e contagiar, causando efeito aos corpos em meio a

relacionamentos, encontros e interações entre si (CAETANO, 2012; QUILICI, 2002, 2012).

Compartilho uma citação de Durning e Waterhouse (2014), quando expõem sobre seus

interesses, em suas experiências, de conduzir workshops de criação na Alemanha:

Nós estamos particularmente interessados em como o performer está representando a

coreografia, especialmente quando nós começamos a re/considerar que (...) coreografia não

é de longe um conjunto de movimentos predeterminados (ou passos) em uma sequência.

Para nós, o performer está participando de um compromisso (ou responsabilidade)

pensando e percebendo coreograficamente (DURNING; WATERHOUSE, 2014, p. 24,

tradução nossa).

Trago a Conversa Corporal a fim de valorizar o indivíduo que dança, o colocando como

parte primordial para a construção coreográfica e pesquisa em artes cênicas, trazendo a experiência

como elemento de grande importância para impulsionar nossos questionamentos.

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Dialogo com as experiências de cinco conversantes − conversantes é um termo de minha

escolha atribuído à presente pesquisa para denominar e identificar as participantes, que são

criadoras/pesquisadoras/colaboradoras dos encontros laboratoriais, que, por sua vez, desenvolvem,

além da pesquisa, trabalhos como bailarinas/intérpretes/coreógrafas/estudantes em dança, música,

teatro, circo em Cias de dança e projetos autorais.

Diante de inúmeras e diversificadas denominações artísticas, prefiro referir-me às

participantes como conversantes, relacionando-as ao diálogo fluente em dança para esta pesquisa –

Edineide Lima da Silva (Margoth Lima)1, Gabriela Gorges, Júlia Cristine França Vasques (Júlia

Vasques), Thaíse Galvão Marinho (Thaíse Galvão) e Larissa Caroline de Lima Paraguassú (Larissa

Paraguassú) (conversante sonoplasta)2. Brevemente, apresento a seguir uma pequena caracterização

das conversantes, a seber:

Margoth Lima nasceu em 1988, natural de Natal/RN. Teve experiência com dança de rua no

grupo Galera Ativa (1997-2001). É formada em balé clássico pela Escola de Dança do Teatro

Alberto Maranhão (EDTAM) (1999-2005). Participou do Circo Grock (2007-2012). Possui

graduação em Licenciatura em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Atualmente, é

professora de balé clássico na EDTAM e integra a CDTAM, desde 2006.

Júlia Vasques nasceu em 1987, natural de Natal/RN. Participou da Galpão Cia. de Dança

(2006-2008), Grupo de Dança da UFRN (2008), Gaya Cia. de Dança (2010), Grupo BR de danças

urbanas (2009-2012) e Visage (2013-2014). Possui graduação em Licenciatura em Dança pela

UFRN. Atualmente, é professora de danças urbanas na EDTAM, baby class na Escola de ensino

regular Arte de Crescer e integra a CDTAM desde 2009.

Thaíse Galvão nasceu em 1993, natural de Natal/RN. É formada em balé clássico pela

EDTAM (2001-2011). Participou do Grupo Clássico da EDTAM (2008-2012). Integrou a CDTAM

(2012-2016) e a Cia. Gira Dança (2017). É graduanda em Licenciatura em Dança na UFRN.

Atualmente, integra a CDTAM.

Larissa Paraguassú nasceu em 1991, natural de Natal/RN. Tem formação básica em teoria

musical, canto e regência. Graduada em Rádio e TV pela UFRN. Participou do grupo de canto

Coral Harmus (2010-2015). Atualmente, é radialista e compositora de trilhas sonoras para dança e

audiovisual.

1 Entre parênteses nome artístico das conversantes.

2 A divulgação dos nomes, imagens e depoimentos das participantes da presente pesquisa foi autorizada pelas mesmas

em termo de autorização.

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Nasci em 1992, natural de Jaraguá do Sul/SC, mas resido em Natal/RN, desde 2010.

Participei do EDAWO (2007-2009) e E3 Grupo de Dança (2009), ambos de Jaraguá do Sul. Possuo

graduação em Licenciatura em Dança pela UFRN. Atualmente, dou aulas de balé clássico na

EDTAM e integro a CDTAM desde 2010.

Com cunho de pesquisa participante, abordo questões da realidade cotidiana das

conversantes, relacionadas à vida, experiências e interpretações dadas a elas em interações, me

colocando também como objeto de estudo em que o aprendizado é compartilhado (BORGES;

BRANDÃO, 2007).

Realizamos a pesquisa em laboratório com encontros aos finais de semana, uma vez por

semana ou quinzenalmente, de acordo com a disponibilidade das conversantes, com duração

aproximada de 2 horas e 30 minutos, a depender das necessidades de cada encontro, somamos um

total de 10 encontros, no período entre agosto de 2016 a abril de 2017, dispondo como sede

principal a EDTAM.

Como metodologia nos processos laboratoriais, partimos sempre de uma mesma questão

inicial: ―Como me sinto hoje?‖, denominando um tema a ser explorado. A meditação vem como

base de foco e concentração, anteriormente à investigação de movimentos, em que me ancoro nas

experiências junto à orientadora desta pesquisa e professora Patrícia Leal, no componente curricular

Elementos Técnicos e Estéticos da Dança Contemporânea e Seminário de Dissertação II,

oferecidos pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFRN. Anterior ou

posteriormente à realização de qualquer atividade criativa, Leal (2012a) propunha-nos a meditação

em conjunto, a partir de um aroma, geralmente, por 10 minutos, a depender do dia e da evolução da

turma.

Aproximo-me de vivências que contribuem a pensá-la por outras perspectivas dentro da

dança, tendo a meditação como uma possibilidade de potencialização para a criação em dança.

Participo como discente colaboradora do projeto de pesquisa acadêmica ―Pratyahara e Dyana:

percepção e foco nos processos de criação na contemporaneidade‖ (2016-2018), desenvolvido por

Patrícia Leal, integrado ao Grupo de Pesquisa em Corpo, Dança e Processos de Criação –

CIRANDAR, da qual também faço parte, dentro da linha de pesquisa: Pedagogias da cena: corpo e

processos de criação.

No CIRANDAR, também há a pesquisa da Profª. Drª. Karenine Porpino ―Dança, atenção e

práticas meditativas: desdobramentos no campo artístico e pedagógico‖. Além da academia, tenho

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experienciado a prática meditativa em aulas de Yoga, no Centro de Estudos Budistas Bodisatva

(CEBB)3 e na Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis (AMORC)

4.

Como parte do procedimento laboratorial, a pesquisa de movimentos acontece a partir da

improvisação em processos de criação (GUERRERO, 2008), entendida como técnicas de criação e

técnicas de interpretação (LEAL, 2012a). Finalizando o procedimento, abrimos uma roda para

compartilharmos reflexões, discussões, ideias, pensamentos, sensações, construções dramatúrgicas

e de significados, a partir das experiências em improvisação.

A roda de conversa tem como reflexo as experiências nos componentes curriculares prático-

teóricos do programa citado anteriormente, incluindo o componente curricular Poética e Teatro,

ministrado pelo Professor Robson Haderchpek, deste mesmo programa de pós-graduação que me

acolheu.

Para o desenvolvimento da escrita sobre os laboratórios, usufruo de diários de bordo das

conversantes. Tive a experiência da prática da escrita-diário, durante os componentes de Poética e

Teatro, referido anteriormente e Corpo e Movimento, ministrado pelo professor Maurício Motta,

durante o curso de graduação em Dança pela UFRN. Os diários são conhecidos por manterem uma

característica de relatos pessoais em linguagem informal como registro de acontecimentos, de forma

intimista e confidente, próximo à subjetividade e à espontaneidade.

Considero esses diários grandes presentes sensíveis e intensos dançados em letras, desenhos,

poemas, cartas em suas verdades, possuidores de muita importância para registros intensos de

experiências, pois, assim como Caetano (2012) observa, ao trabalhar com diários de bordo para

relatos e descrições de aulas: ―[...] Estes refletem o frescor do vivido corpóreo e constituem uma

extensão do mesmo‖ (CAETANO, 2012, p. 221).

Teço conexões entre as escrituras dos cinco diários, associando, diferenciando, relatando, de

maneira mais íntima e informal, as impressões e sentimentos das conversantes em todas as

conversas, havendo algumas partes digitalizadas, fruindo da escrita e representações à mão, tal qual

no diário original.

O primeiro capítulo é apresentado com uma característica de escrita e estrutura mais

informal em relação aos demais capítulos, por se tratar de escrita-diário, buscando aproximar-se, ao

máximo, da sensibilidade em vivência laboratorial, despertando um lugar de escrita mais intimista,

adentrando a profundeza individual, sensível e memorativa.

3 Para mais informações acesse: http://www.cebb.org.br/.

4 Para mais informações acesse: https://www.amorc.org.br/

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Neste capítulo, as conversas em laboratório são descritas através dos diários de bordo das

conversantes, e estão organizados, conforme algumas relações entre as impressões e discussões

dançadas. Apresento a escrita-diário como primeiro capítulo pela própria questão cronológica da

presente pesquisa – os conceitos e reflexões desenvolvidos partiram das necessidades emergidas,

durante os laboratórios, a fim de que as experiências pudessem se tornar o fio condutor da pesquisa.

Em todo o primeiro capítulo, procurei a diferenciação das escritas entre as conversantes por

cores, na qual pude ressaltar o posicionamento de cada uma, de maneira a enfatizar suas

singularidades. O preto como fundo proporciona a intimidade, anunciando a escrita de um diálogo

menos formal, como um mergulho em nossas percepções, uma imersão para dentro de nossos

corpos, o aconchego de uma luz mais baixa, o adentrar dos sentimentos.

Na fotografia analógica, através dos filmes fotográficos, em seu processo delicado,

primeiramente, é preciso obter um negativo, para posteriormente, chegar a uma cópia em papel. A

luminosidade surge na medida em que as cores das letras dão lugar às percepções, então, parlo aqui

sobre uma dança que emerge do sentir. O que não significa que o contrário não possa ser realizado,

ou que exclui-se outras possibilidades, mas que esta, dentre tantas infinitas, pode ser uma

possibilidade potente dos múltiplos diálogos em dança.

No segundo capítulo, abordo assuntos provindos das etapas do laboratório. Para dialogar

sobre afeto, a partir dos estudos de Antonin Artaud, trago Quilici (2002, 2012) e Caetano (2012),

conceitos sobre percepção através de Ostrower (2013) e Suquet (2008). A meditação (MEHTA,

2012) em seus diversos estudos a partir da visão do Rosacruz (HEINDEL, 1909), budista

(SAMTEN, 2001) e yogue (WULLSTEIN, 2009; YOGANANDA, 1946), relacionando a prática da

pesquisa aos estudos de Leal (2012a).

Para refletir sobre repetição, aproximo-me de Fernandes (2007), ilustrando o intenso

trabalho de Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro. Discuto sobre o constante processo de um

trabalho/pesquisa artística através de Salles (2008), em quem me ancoro também para discorrer

sobre o registro de um trabalho artístico e sua importância, especificando os diários de bordo em

diálogo com Oliveira (2015). Abordo, ainda, conceitos sobre improvisação, principalmente, a partir

de Leal (2012a), relacionando às definições de Guerrero (2008).

Como experiências a partir da improvisação, exemplifico a Jam Session: momento cênico

em movimento e o Improcesso: diálogos dramatúrgicos em improvisação, ambos projetos de

extensão coordenados por Patrícia Leal e, atualmente, desenvolvidos na UFRN. Trago o despertar

sensível, abordado a partir dos autores Duarte Júnior (2004) e Tibúrcio (2005), proporcionado pela

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liberdade fundamentada em Bauman (2001) e Salles (2008), bem como, discuto a importância de

técnicas menos tradicionais e rigorosas em relação à estética da virtuose em suas pedagogias

cristalizadas, tornando a individualidade histórica, cultural e social invisível embasada em autores

como Vianna (1990), Miller (2011), Fernandes (2006), Geraldi (2007) e Launay (2010).

No terceiro capítulo, abordo conceitos sobre sentimentos e emoções, ancorada aos estudos

de Damásio (2011, 2012), trazendo também para este diálogo, Leal (2012b). Relaciono a fluidez

líquida de Bauman (2001) com a fluência de Laban (1978), a partir de Leal (2012), Fernandes

(2006) e Rengel (2001), caracterizando a fluência da Conversa Corporal pela leveza (BAUMAN,

2001).

Correlaciono a dança e sua fluidez aqui pesquisada com a sociedade líquido-moderna, nas

obras Modernidade Líquida (2001) e Vida Líquida (2007) de Zygmunt Bauman. Converso com as

autoras Salles (2008) e Ostrower (2013) sobre os acasos de uma criação artística, característica

presente nos trabalhos do artista e coreógrafo Merce Cunningham (AMORIM; QUEIROZ, 2000;

GIL, 2001; SUQUET, 2008).

Finalizo com os processos de construção cênica e sua importância (LANCINE; NÓBREGA,

2010; ROCHA, 2016; SILVA, 2016; TIBÚRCIO, 2016), relatando o processo de construção do

trabalho desenvolvido para esta pesquisa intitulado Parla e suas duas primeiras experiências em

público vivenciadas na IX Reunião Científica da ABRACE: Diversidade de Saberes As Artes

Cênicas em diálogo com o mundo e na IX Semana de Licenciatura em Dança da UFRN: A cena em

ação na dança.

A presente pesquisa inquieta-se por questões que não têm a finalidade em serem respondidas

como algo final e absoluto, mas que possam proporcionar e se desdobrar em mais questionamentos,

quais sejam:

O que impulsiona a mover-me? É possível criar sem necessariamente recorrer ao

virtuosismo estético, tendo como base técnicas de dança pré-definidas? Qual o significado e a

importância da experiência na dança/vida do indivíduo? Como posso potencializar o que pulsa no

corpo através da dança? A improvisação pode ser um meio ao desenvolvimento da autonomia?

Assim sendo, Thereza Rocha (2016) considera que a dança dita contemporânea tem uma

predisposição filosófica, um pensar como sinônimo de questionar. Pois, a dança elabora outras

maneiras de conhecer, necessitando da interrogação acerca de definições, modos de fazer e

princípios de realização. ―Para caminhar para o fim, um fim que se desvia todo o tempo de sua

própria finalidade, voltemos ao princípio e lá/aqui, no princípio, novamente perguntas serão

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encontradas‖ (ROCHA, 2016, p. 23). Encontrando então, aqui nesta pesquisa, respostas possíveis,

dentre tantas outras existentes, e que poderão ainda surgir, visto que as perguntas nutrem a pesquisa

acadêmica e artística em sua continuidade.

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CAPÍTULO I – DIÁRIOS DANÇADOS

[...] quem somos nós, quem é cada um de nós senão uma

combinatória de experiências, de informações, de

leituras, de imaginações? Cada vida é uma enciclopédia,

uma biblioteca, um inventário de objetos, uma

amostragem de estilos, onde tudo pode ser continuamente

remexido e reordenado de todas as maneiras possíveis.

(Ítalo Calvino)

Bom dia, boa tarde, boa noite ou boa madrugada. Vamos iniciar um

mergulho em experiências sensíveis, escritas em diários que a cada

conversa foram tornando-se mais e mais intimistas, pois foi assim que

encontramos melhores formas de expressar, nos papéis, a dança que

sentimos. Não temos a intenção em descrever formalmente, você pode

interpretar da sua forma, costurar conexões à sua maneira, então, sinta-

se ser convidado a imergir nessa mistura de sentires singulares em

profundas experiências dançadas. Pode começar percebendo como se sente

hoje e deixar que isso interfira em seu modo de ler-nos. Ah! Os diários

são separados por conversas, a cada conversa, informo a vocês a data em

que aconteceu, portanto, as escritas se deram no mesmo dia, mês, ano das

conversas.

Como nossas escritas estão entrelaçadas em um único diário, cada

conversante corresponderá a uma cor, por exemplo, toda vez que ler algo

com a fonte de cor branca, estará lendo minhas escrituras no diário:

Gabriela Gorges

Júlia Vasques

Larissa Paraguassú

Margoth Lima

Thaíse Galvão

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Antes de iniciar as conversas, vale aqui destacar a sintonia do

grupo. Cheguei a Natal/RN em 2010, até então, sempre morei em minha

cidade natal Jaraguá do Sul/SC. Logo que me mudei, comecei a participar

das atividades da CDTAM, onde já faziam parte da Cia. as conversantes

Júlia e Margoth. Margoth integra a CDTAM, desde 2005 e, em 1999, iniciou

seus estudos na EDTAM. Júlia faz parte do elenco, desde 2009 e, em 2008,

começou a frequentar a EDTAM. Thaíse ingressou na CDTAM, em 2012, mas

começou a estudar dança na EDTAM, desde 2001. Entre o convívio diário de

ensaios, aulas, processos coreográficos, viagens, espetáculos e projetos;

criamos um círculo de amizade muito forte, pois além de colegas de

trabalho, construímos laços afetivos duradouros.

A CDTAM passou a fazer parcerias com o Coral Harmus, em 2011, coral

do qual Larissa fazia parte. Além dos eventos em parceria, Larissa

compartilha sua vida comigo, desde 2012.

O grupo foi escolhido exatamente pela intensa afinidade, tanto na

vida pessoal quanto na “profissional” por assim dizer, afinidade entre

nossas danças. Trabalhamos juntas por muitos anos e meu desejo era de

compartilhar a ideia dessa pesquisa com um grupo que tenho apreço.

Pois bem...

Temerosa

07 de agosto de 2016.

Cada um de nós só pode falar em nome de suas próprias

experiências e a partir de sua própria visão de mundo.

(Fayga Ostrower)

Primeira conversa! Hoje estão presentes as conversantes Júlia e

Margoth. Para nossa primeira experiência, me coloquei apenas como

condutora, precisava observar de fora, um fora, porém dentro, como mais

ou menos iria tomar o rumo dos laboratórios e como os corpos responderiam

às minhas propostas.

Em resposta à nossa pergunta dos sentires – Como me sinto hoje? –

escrevemos: 1. Eu me sinto eufórica e ansiosa, mas cautelosa... 2.

Temerosa. 3. Velha. E o sentir sorteado foi o 2. Temerosa, o meu. Nossa

pesquisa aconteceu então, a partir do tema temor, tendo como espaço a

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sala do meu apartamento. Afastei os móveis e coloquei alguns objetos no

corredor para que pudéssemos ter o maior espaço possível. Contamos com

sons ambientes produzidos por minha cadela Chuva – Chuva é seu nome, caso

não tenha ficado claro, as pessoas geralmente se espantam quando

perguntam - e Anna Vitória, filha de Margoth, que ainda muito pequena

precisa acompanhar nossos laboratórios.

Observando o desenrolar da pesquisa de movimentos, percebi que o

tema deixava alguns movimentos executados pelas conversantes mais

precisos e diretos, com o foco do olhar mais objetivo e com ar de

preocupação.

Essa palavra me traz sensações e vontades totalmente opostas ao

mesmo tempo. Um dos meus maiores medos é a solidão, então, eu temo ficar

sozinha, porém, quando estou com um sentimento negativo dentro de mim, eu

fujo do mundo e me isolo em mim. O temer a solidão me faz querer me

isolar e, ao mesmo tempo, querer desesperadamente colo, e foi isso que a

palavra “temor” me trouxe hoje.

Um mix de sentimentos nasceu ao me deparar com o tema de hoje [...]

trabalhar nesse momento com a Júlia me trouxe uma tranquilidade e

segurança, acho que eu consegui sentir bem o que o corpo dela me falava.

Com a presença de Anna Vitória, percebi que nós três nos

encontrávamos um pouco receosas, se por acaso, em algum momento, a

pequena precisasse de algo, durante o laboratório, em especial a mãe

Margoth, por estar ainda em seus primeiros meses de vida.

[...] “temerosa”, acho que as três estavam, mas à medida que

avançavamos, consegui controlar o real temor para conseguir trabalha-lo,

perceber que a presença da Anna já não me assustava, pude deixar passar

para o corpo, mas a timidez ainda me segurava [...].

Acredito que por ser o primeiro contato com o laboratório referente

a essa pesquisa, e em um espaço não tão habitual à prática da dança,

percebi as duas conversantes um pouco acanhadas para uma maior entrega.

Porém, o que não impossibilitou seu acontecimento.

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Tranquila, de bem com a vida

14 de agosto de 2016.

[...] o sabor não está na boca nem na fruta, mas no

encontro da boca com a fruta. O encontro é, assim, a

dissolução das fronteiras e o início do sabor.

(Luana Menezes de Oliveira)

Nossa segunda conversa aconteceu com as mesmas conversantes do

anterior, porém, desta vez, participei me movendo junto à conversa das

outras conversantes. Os sentires escritos foram: 1. Aflição. 2. Em união.

3. Tranquila, de bem com a vida. Sorteamos o 3. Tranquila, de bem com a

vida. Então, nos concentramos na tranquilidade em nossa sede habitual, a

EDTAM.

Durante a concentração, consegui relaxar, o corpo foi se afundando

no chão e em meus pensamentos projetava imagens de minha cama e a

televisão ligada em meu quarto, na companhia de minha noiva. Júlia relata

que foi transportada para a praia de Pititinga, uma árvore cheia de

frutos (principalmente azeitona) e o peito de Afonso.

Ao iniciar a conversa, me senti mole, preguiçosa, como um gato

dorminhoco, minha vontade era deitar e me esparramar nos corpos das

conversantes. A movimentação era lenta e preguiçosa, era tudo desprendido

e brincante.

O corpo estava mais relaxado, zerada a mente em uma viagem vazia,

isso faz com que meu corpo demore a reagir e essa é sua reação, então,

fui buscando apoio nas meninas e foi nascendo o movimento a partir delas

e, logo mais, percebi um corpo reagindo, querendo retomar o comando dele

mesmo.

Leveza, preguiça, tranquilidade, alegria e descontração deram ar

aos movimentos. A tranquilidade afetou o meu mover para a lentidão, havia

leveza e sinuosidade em continuidade. Parecia que a conversa fluía na

“mesma língua”, os estados tomavam conta dos corpos.

Hoje minha sensação, durante a conversa, foi a de querer me

conectar de alguma forma com os dois indivíduos que estavam ali comigo.

Era como se fossem duas pessoas que tinham uma grande intimidade entre si

e eu estivesse em busca dessa conexão. Na realidade, fiquei meio presa às

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sensações e sentimentos que tive, durante a preparação para a conversa

[...].

Mesmo sentindo que a conversa caminhava pelo mesmo rumo, Júlia

descreve que suas memórias, de certa forma, aprisionaram sua comunicação

com as demais, sentindo-se desconectada do assunto.

Sentindo

21 de agosto de 2016.

Quanto mais unificadamente diverso, dispersadamente atento,

Estiver, sentir, viver, for,

Mais possuirei a existência total do universo,

Mais completo serei pelo espaço inteiro fora.

(Álvaro de Campos)

Terceira conversa. EDTAM. Hoje Thaíse conversou conosco também e o

ambiente sonoro foi criado por Larissa. Larissa utilizou como

instrumentos a castanhola, escaleta, o triângulo e a própria voz. Para

nossa questão inicial, saíram: 1. Ansiosa. 2. Em família. 3. Exausta. 4.

Sentindo. A provocação sorteada foi a 4. Sentindo.

Durante a concentração, ficamos de mãos dadas, acredito que essa

troca energética, através das mãos, fez com que elas ficassem em

destaque, durante o laboratório, querendo sempre encontrar umas às

outras, inclusive, o primeiro movimento, que foi realizado por Thaíse,

foi com a mão.

Mesmo que sem o contato físico com as participantes, o afeto foi

incrível. Os pés delas me guiaram em diversos acordes. As mãos e suas

intensidades, me fizeram criar um elo.

Os movimentos eram lentos e contínuos, me remetiam a banhos,

limpezas, purificações. A mão que lava e cura. Despedidas e encontros em

meio a devoções e trocas energéticas. O ir que nunca irá, pois os olhos

sempre se encontrarão.

[...] a sensação de encontro era visível, a despedida foi mágica,

uma sensação de uma bola de energia deixada no espaço, onde nós ocupamos,

atraiu Chuva (cadela de Gabi). Precisei trazer minha cadela Chuva, pois

há pouco tempo, tinha acabado de fazer uma cirurgia de castração, não

poderia deixá-la sozinha em casa...

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Ao final, nós nos distanciávamos, deixando o centro vazio, Chuva se

dirigiu ao centro, onde permaneceu até que finalizássemos a cena.

Imagem 1 - Cena final desenhada

Fonte: Desenho feito em diário de bordo, Margoth Lima(2016)

Em outras percepções, o olhar e a energia são muito fortes e

influenciam muito. Durante a pesquisa, tive sensações quase que

adversas. Leveza e peso ao mesmo tempo, de flutuar e manter pés no chão,

também ao mesmo tempo, sentimento de perda e encontro, ancestralidade.

[...] me leva para um movimento mais leve e devagar, com peso, com mais

clareza e cinestesia. A sensação era de leveza, fluidez.

Trabalhar com o tema, sentindo transportou-me para o sentir-se

viva, a lentidão que me proporciona sentir a pele, o toque, a energia,

deixando cada palavra dançada ser dita e compreendida.

A entrega, o “deixar sentir” fez com que o improviso fosse mais

“consciente”, sem perder o prazer do improviso, que é se deixar levar.

Utilizei três instrumentos: triângulo, escaleta e castanhola, todos eles,

cada um com sua particularidade, teve sua fluência de forma muito

sentida. O triângulo e a escaleta com a dinâmica mais contínua, sem tanta

marcação e as castanholas, sentindo a percussão do corpo das bailarinas.

As sensações que me regeram.

As sensações foram de sintonia, cumplicidade, leveza, um sentimento

de paz interior, de confiança, de compartilhamento e a emoção de ouvir e

sentir todo o ambiente.

Percebi que estava sendo constantemente afetada pelo gesto das

conversantes, as acompanhava e “imitava”, utilizava acentos dados por

elas e movia em outras partes do corpo.

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Tudo estava dominado de exaustão [...] estar aqui com esses quatro

seres me enchia de paz e alegria, esse conforto me retirou a exaustão e

uma energia começou a transitar entre nós, a música suave e calma

conduzia meus movimentos [...].

Com essa conversa, comecei a ressaltar o que já vinha a perceber em

outros trabalhos com a dança/artes, muitas experiências, que vivemos,

afetam não só nosso mover, enquanto seres dançantes e artistas, mas

nossas vidas. Passamos a pensar diferente, sentir mais, perceber mais,

dialogar mais de todas as formas.

As sensações foram de “ligação”, como se cada nota que eu tocasse

fosse parte do que eu via, respirava e sentia. [...] A emoção fazia parte

da sintonia de tudo com os instrumentos. A música de Larissa criou um

clima flutuante e de espiritualidade. Suas notas eram desdobramentos dos

movimentos dançados.

Com certeza, esse tema nos atravessou de forma muito significativa,

uma conversa repleta de sentires e sentidos em construção poética. Leves

percepções de fortes energias. Tomadas por fluidos afetos.

Em desequilíbrio

28 de agosto de 2016.

Vou levando assim que o acaso é amigo do meu coração

quando fala comigo quando eu sei ouvir.

(Rodrigo Amarante)

Em nossa quarta conversa, estavam presentes as conversantes Júlia,

Larissa, Margoth e eu. Tivemos entre as respostas: 1. Em desequilíbrio.

2. Estranha, murcha, um pouco feliz e um pouco triste. 3. Honestamente

não sei. Trabalhamos com o desequilíbrio em um espaço na Cidade da

Criança. A CDTAM participou como convidada em um evento no local, no

mesmo dia. Aproveitamos para fazer a pesquisa, antes do evento, ao som

ambiente, incluindo Anna Vitória, pássaros, testes de microfone, pessoas

falando, entre outros sons.

Apesar do contato muito próximo com a natureza e pelo ambiente

tranquilo que o lugar nos proporciona, pareceu que a concentração faltou,

literalmente, foi um encontro desequilibrado, nada se fixava, entrava,

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harmonizava, mas, aconteceu. O local diferente não me influenciou, na

realidade nem lembrei onde estava.

Percebi que o desequilíbrio não se apresentou de forma física nos

corpos, veio muito mais na construção e na Conversa Corporal. Vou tentar

ser mais clara... Destaco sentimentos de incerteza e indecisão, tinha a

impressão de que o mundo girava e nada ficava no lugar. No início me

senti perdida, mas essa sensação se transformou em uma busca por outro

ser que pudesse me ajudar a encontrar essa movimentação.

Os movimentos eram circulares e desenhando círculos no espaço,

sempre saíamos e retornávamos aos círculos. Para mim, a conversa foi

difícil, parecia que os corpos não se entendiam e não correspondiam. Foi

um diálogo de desentendimentos, diferente do encontro anterior, as

palavras não foram tão bem escutadas e sentidas. O tema desequilíbrio nos

afetou além de corpos que se desequilibram em um caminhar por exemplo.

Hoje foi extremamente complicado, sensação de descontentamento,

fatores externos agindo de forma agressiva, acabou acontecendo de forma

descartável, os movimentos não fixavam em meu corpo, eu interagi, mas não

tenho certeza se era o que eu queria, eu acreditava que o ambiente seria

a favor, mas o interno estava forte!

Cheguei vazia e achava que era por isso que estava difícil do

movimento chegar, porém percebi que o grupo todo estava do mesmo jeito.

Acho que quando as três perceberam que estavam no mesmo barco procuraram

se apoiar uma na outra e o que era um desequilíbrio se transformou em um

balanço.

Hoje percebemos que a conversa fluiu de uma maneira diferente,

consequentemente fez com que os corpos se deparassem em um momento

difícil ao entendimento e ao fluir.

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Golpe

11 de setembro de 2016.

Imagem 2 - Golpe

Fonte: Acervo Pessoal (2016)

Acabamos em morte?

Ou os corpos tomados por silêncio são

corpos que guardam explosões?

A voz se cala?

O corpo não para

Suas histórias respiram

Impregnadas na pele de quem vive

O chão das cinzas

Que já foram azuis

Nossa quinta conversa, voltamos a experimentar na EDTAM, nossa sede

habitual. Os sentires revelados do dia foram: 1. Exaustão. 2. Feliz. 3.

Golpe. 4. Mais leve e sem saber como reagir a isso. 5. ?. Dentre os

sentires escritos, sorteamos o “golpe”.

Ao escrever meu sentir “feliz”, acessei uma sensação de dever

cumprido do dia anterior, o que fez eu me sentir muito bem.

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Primeiramente, eu inicio toda uma conversa comigo mesma, antes de

chegar ao espaço de pesquisa, tentando esvaziar a mente, em busca de um

verdadeiro sentimento, então, hoje, minha mente chegou vazia.

[...] acessei as misturas corporais. Não significando limitação.

Preciso da “não limitação” para mover. Preciso da mistura das sensações

para fazer disso, som. Pode ser que a delimitação de uma palavra traga,

de certa forma, um bloqueio para outros caminhos. O incrível é que não

senti isso ainda, pelo contrário.

Hoje, após um ano bem complicado, me senti leve depois de uma boa

notícia (finalmente). Então, há tempos não me sentia como me sinto hoje:

leve, mais tranquila. Porém, sem saber o que fazer com essa sensação,

desacostumada com a falta de aperreio. Para mim, esse foi o golpe que

levei hoje: algo bom que apareceu sem avisar, repentinamente, depois de

meses duvidosos.

GOLPE LEMBRA PASSADO E LEMBRA O PRESENTE, SERÁ QUE VAI FAZER PARTE

DO FUTURO? E eu como vou reagir? Como isso vai mudar o meu dançar? Tema

difícil!

Para mim, durante nossa concentração, o golpe parecia estar meio

confuso em minha cabeça. Em um primeiro momento, imagens de golpes de

artes marciais projetavam em minha mente (lembranças de 10-15 anos atrás,

quando praticava e estudava para minha formação em Tae Kwon Do), mas,

depois se confundiam com golpes políticos, golpes entre pessoas, golpes

da vida.

[...] ao receber nossa palavra de hoje, “GOLPE”, muitos sentimentos

invadiram minha mente e para não acontecer um conflito, me detive a

pensar o que era golpe? Como poderia começar um? O que eu precisava para

fazê-lo? Então, pensei que tudo se começa em uma mente vazia, que ao

estar só, começa a articular planos e tentar achar aliados, a manipulação

é sempre o melhor caminho para o sucesso [...].

“Golpe” [...] Tão atual, tão doloroso, me faz sentir força, luta

que não se perde com a sensação fúnebre ou, até mesmo, massacrante.

Utilizei sons que me faziam ir ao “combate” de um “golpe”, sem perder a

força de lutar.

Iniciei a conversa, pousando as mãos nos olhos de Margoth, um

sentimento de repreensão me impulsionou a mover. Percebi que, no decorrer

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do laboratório, o gesto de “tapar” se tornou algo característico do dia,

seja tapando os olhos, a boca ou os ouvidos.

Imagem 3 - Gestos de "tapar"

Fonte: Acervo pessoal (2016)

Havia certa densidade no ar, mais uma vez, a lentidão se manifesta

fortemente em manipulações umas com as outras em que, apesar da

densidade, horas sentia conforto. A música, criada por Larissa, me

proporcionava essa densidade.

Apesar da palavra “golpe” ser bem forte e, em geral, trazer consigo

uma ideia de brigas e revoltas, para mim, trouxe acalanto e uma

respiração tranquila. Quando começamos a nos mover, a minha ideia era de

lutar contra um golpe, um golpe de falta de humanidade, falta de respeito

e de amor. Mas, lutar do jeito que sei lutar, sem alarde, sem barulho, de

dentro para fora, aos poucos. Horas, eu era opressora e outras oprimida

[...]. Mas, a oprimida que sabe desoprimir, que luta levando a paz para a

guerra e não mais violência. Nas horas que fui opressora, foi apenas para

depois desoprimir o outro.

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A impressão que tive, durante a experimentação, foi de estar em um

campo, dividindo o espaço com pessoas queridas, mas que presavam por

sobrevivência. O tema nos proporcionou várias janelas, a vontade de

improvisar não cessava, a vontade era de conversar mais e mais.

Ao contrário do nosso último encontro, tínhamos muito que falar,

tanto que também foi complicado “fechar” uma movimentação. Toda vez que

parávamos, ao retornar, surgiram coisas novas, muitas [...] Brotavam

feito flores na primavera [...] E, pelo menos para mim, todas muito

importantes, não queria me desfazer de nenhuma. E quando, na repetição,

por um motivo ou outro, essa flor não aparecia, parecia que faltava uma

parte. Não queria fazer gestos grandes, super dançantes, para mim, era

muito mais importante comunicar do que embelezar.

Nossas intenções eram claras e entendidas umas pelas outras, nos

afetávamos e respondíamos os corpos em uma harmonia em densidade. A

conexão entre as participantes estava tão intensa, que não ouvi, em

momento nenhum em que estávamos trabalhando, o pagode que está rolando ao

vivo no prédio da frente. Ao começar, havíamos comentado que o pagode que

tocava no espaço de uma escola de samba, do outro lado da rua, poderia

atrapalhar nosso laboratório, em função também da música, que Larissa

proporciona durante as experimentações. Porém, nossa conexão aconteceu

tão intensamente que apenas nos demos conta que a música continuava no

fim da investigação.

Hoje, senti uma ligação muito forte com a Galvão. No começo, quando

falamos do que estávamos sentindo, achei que sentiria essa conexão com a

Gabi, pois estávamos mais próximas com relação aos sentimentos, mas no

processo, me liguei muito a Galvão. Talvez tenhamos funcionado como um

imã: forças opostas se atraindo.

Nas movimentações, havia cuidado. Algo muito significativo para mim

foi o final que encontramos, um final, que, na realidade, não conseguia

ser final. Mas, a sensação que guardo em mim, agora, é a das flores, que

nascem entre rochas, que brotam na primavera, que são mais fortes do que

aparentam (como essas pessoas lindas com quem trabalhei). E o final, para

mim, foi isso: um jardim descansando.

No final do laboratório, as quatro se encontraram deitadas no chão,

uma ao lado da outra, e assim permanecemos, por alguns minutos, paradas,

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até entendermos que tinha acabado para poder retomar o que foi

investigado.

Os corpos, que se moviam, me fizeram sentir como se fosse jardim

flutuante querendo brotar em meio ao caos. Posso dizer que o golpe que

vivemos hoje, foi um golpe que não é carregado por armas, mas um golpe

munido por flores.

Imagem 4 - Cena final

Fonte: Acervo pessoal (2016)

[...] em nossa terceira repetição, fui invadida por um sentimento

maior impulsionado por lembranças, porquê? Eu não comecei a misturar quem

eu sou com um tema que traz o medo e o medo me retrai, imagens que eu

quero apenas como fantasia! Tentei buscar conforto, meus olhos buscavam

um olhar e não achava, então, voltei ao tema, trazida de uma viagem,

perdi a noção do tempo, do espaço, e quando vi, estava deitada e imóvel

[...] Acordei e pensei: e agora, não sei o que aconteceu, fiz algo no

início, mas agora, foi uma confusão na minha mente, não consegui dominar

minha mente! Em relação às minhas amigas, estranhamente, me senti só e

como se eu não as reconhecesse! Estranho [...]

Diria que, sentir o “golpe” tão forte assim, faz do meu som um

grito em sintonia com as vozes caladas.

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Imagem 5 - #foratemer

Fonte: Desenho feito em diário de bordo, Larissa Paraguassú (2016)

Imagem 6 - Primeiramente Fora Temer

Fonte: Escrita feita em diário de bordo, Thaíse Galvão (2016)

Em virtude da situação política da qual o Brasil se encontra, Fora

Temer aparece no diário de bordo de Larissa e Thaíse, relacionando com o

golpe político vivido no país. Vale ressaltar a coincidência da data de

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hoje com o tema, por se tratar de uma data, da qual relembramos o

acidente acontecido nos Estados Unidos ao atentado às torres gêmeas, um

golpe de ódio que reverberou por todo o mundo.

Acredito não caber aqui, trazer trechos das impressões de Thaíse

para este dia, como faço habitualmente, entrelaçando com os diários de

bordo das outras conversantes, pois, diferente das outras conversas,

Thaíse escreve em forma de uma carta direcionada a mim. Então, apresento,

na íntegra, a carta escrita à mão sobre o golpe que a atravessou hoje:

Imagem 7 - Carta

Fonte: Escrita em diário de bordo, Thaíse Galvão (2016)

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Imagem 8 - Continuação da Carta

Fonte: Escrita em diário de bordo, Thaíse Galvão (2016)

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Imagem 9 - Última parte da Carta

Fonte: Escrita em diário de bordo, Thaíse Galvão (2016)

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Querendo almoçar comida de verdade

09 de outubro de 2016.

Imagem 10 - Querendo almoçar comida de verdade

Fonte: Acervo pessoal (2016)

Bom dia!! Comida, ai que tema delicioso, adoro

comer, mas é meio frustrante pensar em comida

que não vai comer, ai ai ai adorava os bolinhos

de feijão verde que o papai fazia, mas nada se

compara a um bom churrasco e como é sofrido

quando chega alguém querendo aquela comida que

você quer comer só, e quando a gente quer

compartilhar e não tem ninguém afim. Mas, a

melhor sempre é a comida do outro, isso é

impressionante que a do outro é mais saborosa!!

Em nossa sexta conversa, fomos envolvidas por: 1. Acalmar. 2. Jai

guru deva om (Deixe seu melhor florescer). 3. Plugada. 4. Querendo

almoçar comida de verdade. 5. Vazio. Sorteamos o sentir 4. Querendo

almoçar comida de verdade. Hoje, estávamos distantes em assuntos, em

sentimento, o que nos traz diversidade e leveza. O sentir escolhido foi

meu. Antes de iniciar a pesquisa, conversava com minha irmã e meu pai por

WhatsApp no celular, meu pai perguntou se eu estava almoçando direito,

logo me deu aquela vontade de comer e vieram à tona as lembranças das

comilanças de quando morava na casa de meus pais.

E que fome [...] Dificilmente, consigo ser produtiva com fome. Além

de fome, estava calor, além de calor e fome, tinha Anna Vitória com fome

e calor kkkk [...] Anna Vitória, filha de Margoth, esteve hoje no

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encontro, permaneceu ao lado de Larissa, que se revezava entre

laboratoriar com a guitarra e cuidar de nossa pequena mascote.

“Que coisa mais difícil”, foi o que pensei, quando Margoth leu o

papel sorteado. Eu toda concentrada na filosofia budista e tenho que me

concentrar em comida... Sei nem o que fazer.

Gente, que tema engraçado, a priori, fiquei me perguntando o que

poderia acontecer, vim, quando começamos a fazer, me vieram muitas

lembranças, acho que a música de Larissa e Anna Vitória me levaram para a

infância. Me lembrei do café da manhã, pra sair pra escola, da merenda,

no intervalo da escola, do almoço em casa com minha mãe, era tão bom e eu

não sabia, estar à mesa, repartir, compartilhar deste momento é tão

sagrado. Vieram, muito forte também, as tardes em casa, quando não tinha

balé, que eu ficava assistindo desenhos e o seriado “Menino Maluquinho”

que convivia com seus pais e falava da rotina, ah!!

Esse tema me transportou para a casa dos meus pais, o almoço em

casa com a família reunida, ou então, os almoços feitos pela minha avó

materna em sua casa, ou ainda, os almoços fora de casa, em restaurantes.

Minha vontade, naquela hora, era de poder voltar ao tempo, me transportar

para a casa dos meus pais, voltar à infância. Senti-me leve, foi uma

experiência divertida e com muita fome.

Então, Gabriela pede para fechar os olhos e se concentrar no tema

sorteado e, a primeira coisa que me veio à cabeça, foi um brigadeiro.

Quem disse que brigadeiro não é comida de verdade?! Ora se não é!

Alimenta mais que o bucho... Faz carinho na barriga, enche o corpo de

felicidade, satisfaz a alma.

Os cabelos de Júlia mais pareciam macarrões em minhas mãos e o

coque feito no cabelo de Margoth se transformou em um pequeno bolo de

chocolate, o qual eu moldava freneticamente. Minhas mãos carregavam uma

bandeja daquelas que são usadas por garçonetes e garçons, mas para mim,

estava vazia, meu primeiro impulso foi exatamente a imagem da bandeja.

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Imagem 11 - Macarrões

Fonte: Acervo pessoal (2016)

Tentei me conectar várias vezes com todas, mas, hoje, foi bem

difícil. Tentei ir mais pelo lado sensorial, mais precisamente o cheiro,

e aí, quando me conectava com o cheiro de uma macarronada do cabelo de

Júlia, Anna Vitória pede leite. Era o mesmo que ter a comida na boca e

não conseguir engolir. Mas, foi bom até porque teve vezes que até Anna

Vitória quis tocar a guitarra. Acho que o problema era minha fome mesmo.

Vou até parar de escrever.

Imagem 12 - Pizza!

Fonte: Desenho e escrita feito em diário de bordo, Larissa Paraguassú (2016)

O som da guitarra tornou as cenas mais cômicas.

Thaíse me proporcionou nos imaginarmos dentro da tradicional

história infantil de João e Maria, colocávamos doces no chão, para

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lembrar, o caminho de volta para casa, até rememorarmos uma fotografia

que fizemos há alguns anos atrás com um pirulito:

Imagem 13 - Fotografia do pirulito

Fonte: Acervo pessoal (2014)

Então, Margoth se transforma em chocolate. Nossa, como amo

chocolate! Vou dando mordidinhas em seu corpo. Ao final, me senti de fora

de um complô de amigas escondendo doce de mim, talvez por que eu coma

muito? Pensei, em minha infância, nunca estive no lugar daquela criança

pidona, da qual seus amigos escondem os doces e os brinquedos. Foi um

lugar novo acessado por mim. Lancei-me nas propostas das conversantes e

construíamos uma narrativa, bem, pelo menos, dentro de minha imaginação.

O dia está mais claro, o vento mais fresco e os sorrisos fáceis.

Isso me deixa com dificuldade em ouvir meu corpo, fazer movimentos de

dentro para fora!!! E ainda mais, pensando em comida!!!.

Brincar com as meninas, hoje, me fez refletir que tem coisas que

não tem preço, almoçar de verdade para mim seria sim a comida (arroz,

macarrão, feijão), mas seria muito mais, o almoço em família que faz

tempo que não existe.

E o que mais me alimenta? É só aquela comida que ponho na boca,

mastigo e engulo? Nããão mesmo! As energias me alimentam, o amor, o

cuidado, a gentileza, o carinho... E então, percebi que o que é melhor

para mim, me alimenta, me sacia.

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Sofia! Em uma aula, a sapeca da Sofia se levanta de onde estava

sentada, corre até mim e me dá uma suave mordida. Logo em seguida, diz

toda sorridente: Tia, você é meu petisquinho! Me alimentou.

Margoth, Gabi, Larissa, Anna e Tatá me alimentam, então, vou

prepará-las para depois ingerir, e assim, o fiz.

Por fim, hoje, o encontro, que inicialmente mostrava um ar de

comicidade, nos fez questionar o que é comer comida de verdade, refletir

sobre o que realmente nos alimenta. Transportamo-nos a um lugar de

saudade familiar, recheado de momentos bons, que nos completam ainda mais

e das experiências que nos tornam quem somos.

Hoje, fui para um lugar de saudade e reflexão, muito obrigada meninas.

Saudade de cozinhar.

Envolvida por amor

04 de dezembro de 2016.

Colo que acalma, acolhe e esquenta a

partir do estômago. Nem sempre vem dos

braços, às vezes, surge de um olhar que

envolve e te traz pra você. E você se

percebe, se mapeia e transforma em

visível o que estava guardado.

O amor e suas várias faces. Às vezes,

vem explícito em um beijo, às vezes,

disfarçado em um chocolate, às vezes,

fantasiado de uma ligação.

O amor e suas várias faces.

O amor e suas várias formas.

Às vezes, arde, mas às vezes, cala.

Sétima conversa. Encontramo-nos afetadas por: 1. Com vontade de

nada. 2. Costura-sono-amor-felicidade. 3. Envolvida por amor. 4. O cachê.

5. Retorno. Durante o sorteio, o papel escolhido foi o 3. Envolvida por

amor.

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Novamente, o tema foi proposto por mim. Apesar das loucuras do dia-

a-dia, senti uma harmonia causada pelo amor que me envolvia dentro de

casa. Ao escrever, me voltei às energias que permaneceram do dia anterior

e as do dia, até o momento da conversa.

Hoje, está sendo um dia iluminado e esse tema descreve tudo o que

eu estou sentindo. Sorteamos o tema “envolvida por amor” e que ótima

escolha. Logo hoje, trouxe meu violão preferido que me envolve de amor,

desde 2007. Nossa, que tema lindo o de hoje, o tema foi no sorteio como

de todas as vezes, e saiu essa poesia de Gabriela Gorges.

Ao me concentrar percebi que o vento que adentra a sala me toma de

amor todos os dias, por vezes, sem nem reparar.

Amor...

JÚLI A M ARGOTH

GALVÃ O

LA R ISSA

Antes mesmo de começar, já havia notado Júlia um pouco distante,

triste [...] Senti que abraçá-la iria fazer com que esquecesse o que

estava deixando a energia dela sumir.

Durante todo o laboratório, minha preocupação foi mandar amor para

Júlia. Senti que estava tomada por uma emoção de momentos pelos quais

estava passando. Acredito que todas nós fomos afetadas pela emoção de

Júlia, fazendo com que todo o cuidado e atenção estivessem voltados à

ela.

Quando iniciamos e a Júlia deixou suas lágrimas virem à tona,

pensei um pouco que deveria, de alguma forma, passar esse amor que estava

sentindo para ela, porém, eu não queria ser intrometida, “às vezes nós

não queremos”, então, acho que nós três, eu, Thata e Gabi, meio que

pedindo permissão a envolvemos e tentamos compartilhar esse amor, hoje,

nós estávamos mais delicadas, pois nós queríamos a envolver num lindo

sentimento, sem desviar a atenção para outro espaço, mas sem deixar de

lado o “nós”.

Quando sentei no chão, de uma forma confortável, e me fixei em Jú,

comecei a tocar os acordes que me envolvem [...] Lembrei de quando ganhei

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o meu violão e, quando caiu as lágrimas de Jú, eu senti, nas cordas,

recordações, de quantas vezes chorei, tocando músicas que, no final, me

confortavam.

Começamos em pé, as quatro, fechamos os olhos e respiramos três

vezes fundo, ao abrir os olhos, não conseguia olhar para Júlia, pois já

sentia que a mesma estava emocionada e como sou uma manteiga derretida,

pensei que iria chorar também. Bom, então, comecei a olhar para nossos

pés, e pensei, nossa, quantas marcas, quanta vida, quanta história, que

caminhada, eles percorreram, nos carregar, principalmente, nós,

bailarinas, quanto amor. No entanto, Julinha se emocionou e começou a

chorar, confesso que, na hora, fiquei sem reação, e as meninas, Gabi e

Margoth, logo a abraçaram, e eu fiquei no meio e também a abracei, eu

queria lhe dizer a frase que estava na sua blusa “A força esteja com

você”.

Incrivelmente a frase na blusa de Júlia condizia muito com o que

ela precisava naquele momento.

Imagem 14 - Universo

Fonte: Escrita e desenho em diário de bordo, Margoth Lima (2016)

Depois, saímos caminhando pela sala abraçadas, as quatro, em

direção à janela e me veio muito a imagem de irmãs, achei lindo. Depois,

abracei Julinha e comecei a mexer no seu cabelo, como a nossa mãe mexe,

quando ainda somos adultos, quando pedimos colo, quando precisamos de um

cafuné, também quis fazer uma trança, porque Júlia me traz muito a figura

de uma criança linda, calma e doce. Me senti tão forte ali, como se eu

tivesse lhe protegendo e as meninas também. Depois, as meninas deitaram

como se estivéssemos numa cama, dentro de um quarto e ficássemos olhando

para o teto e refletindo.

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Thaíse trança os cabelos de Júlia, me transporto à infância. Tomei-

me de carinho, apenas por observa-las. Encontro-me deitada no chão com

Margoth, lembranças são acessadas imediatamente, quando dormimos uma ao

lado da outra, durante as viagens, que o trabalho com a dança nos

proporciona, Margoth tem a mania de tirar minhas meias com os pés, toda

manhã, acordava sem minhas meias e isso acontecia, geralmente, em lugares

frios. Muitas lembranças lindas me vieram à cabeça, me fazendo ter a

certeza da amizade linda, que eu e minhas companheiras construímos!

Estamos prontas para nos apoiarmos, como um casamento, na alegria e na

tristeza, na saúde e na doença, até que o destino nos separe! Obrigada

Gabi, Thata, Júlia e Larissa.

No final, Juju me contava um segredo e a gente compartilhava, dava

as mãos e dizia, estamos juntas envolvidas por amor, amor ao próximo.

Tanto tempo convivendo juntas, que não tem como não ter um carinho,

afeto, amor.

Muitos abraços, mãos sutis, sutis, porém, fortes. Carinhos,

cheiros, CHEIROS, fui tomada pelo cheiro de Margoth, do início ao fim,

gostaria de repousar minha cabeça em seu ombro e ficar por ali [...]

Sinto leveza, amor, paz interior, amizade, companheirismo [...]

Tudo o que sentia, acarretava no mínimo de esforço e movimentos,

queria apenas sentir tudo o que envolvia o ambiente. Ao som do violão,

proporcionado por Larissa, poderia apenas estar deitada com elas,

sentindo o vento nos cabelos, o sol que penetra a sala e o amor que nos

envolve.

O AMBIENTE me MOVE, a NATUREZA me MOVE, o VIOLÃO me MOVE, o CHEIRO

me MOVE, a EMOÇÃO de Júlia me MOVE, o AFETO entre nós me MOVE.

Me senti leve, plena hoje. Sinto que consegui entregar o que

gostaria.

No final do laboratório,o mais uma vez, percebo, vívida em meu

corpo, a ideia do quanto essas conversas representam mais do que uma

pesquisa em dança, me transbordam de amor, cumplicidade e trocas lindas.

Sorte de Jú, pôde tirar do “sem vontade de nada” um “envolvida por

amor”.

Hoje para Julinha,

“Como estrelas são lá no céu, nosso amor é teu Rapunzel”

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Sei lá... Com sono

18 de fevereiro de 2017.

Imagem 15 - Sei lá... Com sono

Fonte: Acervo pessoal (2017)

Meu corpo pede, aclama

Minha mente não permite

Meus olhos tentam

Minha razão a impede

E, aos poucos, percebo que os comandos

não respondem

Ah! O sono

Tão bom, tão fácil e tão difícil

Mas sempre prazeroso!!!

Passado o período de férias de final de ano, voltamos aos nossos

laboratórios, iniciando o ano de 2017, em nossa oitava conversa, porém,

sem a presença de Larissa e sua música. Hoje, nos definimos por: 1.

Direção. 2. Em conflito interno. 3. Não existe amor em SP. 4. Sei lá...

Com sono. Sendo o último o sorteado da vez.

Ao escrever como me sentia (em conflito interno), percebi uma

energia de renovação proporcionada pelo meu aniversário, no dia anterior,

por estar entrando em um novo ciclo e recebendo boas energias, ao mesmo

tempo em que, me sentia preocupada com minha cadela Chuva, que

apresentava indícios de depressão, motivo pelo qual Larissa não esteve

presente no encontro, uma das mamães precisava ficar com ela em casa, já

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que eu precisava estar presente, Larissa ficou. Algo brigava por dentro,

havia um conflito, parte de mim reluzia, outra se preocupava.

Voltamos das férias, já com uma carga física muito intensa. Estamos

apenas na segunda semana, porém, o corpo já está bem cansado. Hoje é um

SÁBADO e eu tive que acordar às 5h30 de uma manhã muito chuvosa, então,

não estou boa de raciocínio... Não sei como me sinto hoje, só sei que

estou sonolenta.

Antes de dar início ao nosso laboratório, na parte da tarde do dia,

todas nós estávamos presentes pela manhã na EDTAM para uma reunião anual

da direção, professores, alunos e responsáveis, a respeito do ano letivo

na escola. Voltamos das férias para as atividades da CDTAM, que sempre

são muito intensas, além desse trabalho com a Cia., todas estão

envolvidas em outras atividades, ao longo dos dias, o que acarreta um

cansaço físico grande.

Retornando aos nossos encontros, o tema sorteado de hoje foi o de

Julinha, e era sobre o que? Sono, de fato, era o que estava e estávamos

sentindo.

“Sono” há muitas questões nele, em um momento, você o tem e em

outro, desaparece [...] O cansaço corporal às vezes nos faz senti-lo mais

rapidamente, mas quando estou com muito sono, não consigo dormir, isso me

deixa furiosa, ando de um lado para o outro, tentando e buscando algo que

só vou alcançar, quando os olhos se fecharem! Hoje, o sono está em meu

corpo, talvez por ter dormido pouco ou não!!!

O sono passou a ser algo rotineiro em meu dia-a-dia, chego a me

sentir estranha, quando não estou acompanhada pela sonolência. Ao deitar

para me concentrar, olho o teto da sala, imediatamente, a linda imagem do

teto da sala de Debi Irons toma conta de meus pensamentos: seu estúdio de

dança tem a arquitetura de um templo maçônico, bem no centro da sala, no

teto, há um círculo que fica mais profundo, dentro desse círculo tem

estrelas pintadas, ao fechar os olhos, me transportei a uma noite de céu

estrelado, estou deitada em um chão de gramado ao lado de Larissa.

Quase não tive vontade de me mover, como imaginei Larissa ao meu

lado, que foi o impulso para me movimentar, imediatamente, me virei para

abraçar Júlia, preguiçosamente, me movia em seu corpo, de um lado a

outro, e assim, fiz no corpo de todas.

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Ao deitar no chão, eu fui acalmando e não querendo levantar. Fui

tomada de preguiça. Gabi começou a se movimentar: fez uma “conchinha”

virada para mim, sem pensar, fiz outra “conchinha”, dando as costas para

ela. Afonso e eu fazemos isso todas as noites, ele me agarra e puxa para

perto dele. E isso me transportou para várias fases da minha vida e de

como eu dormia em cada uma delas. Quando bebê, por exemplo, minha mãe me

colocava de barriga para baixo, pegava no meu bumbum, balançava-me e

cantarolava até eu dormir. Se por algum motivo, ela não fizesse isso, eu

mesma deitava, levantava meu bumbum, balançava ele e cantarolava até

dormir. Teve a fase que eu me mexia mais que tudo. Outra que dormia toda

“arreganhada”. Hoje, durmo agarrada com meu amor, em uma cama de

solteiro, mal podendo me mexer.

Imagem 16 - Balançar de bumbum

Fonte: Acervo pessoal (2017)

Também lembrei da volta para casa de ônibus [...] A cabeça pesando

e eu tentando controlá-la. [...] a forma de dormir, deitar, de chamar,

acordar, dormir junto, todas estas imagens vieram naturalmente.

Estar com Larissa em dia de preguiça é meu momento preferido, tenho

a mania de cheirar suas axilas, fiz essa ação nos dois braços de todas.

Thaíse teve uma reação parecida com a de Larissa, fechar os braços

rapidamente para que eu não consiga cheirar.

Movimentos com as mãos no rosto, especialmente, na região dos

olhos, foram os mais característicos do dia para mim. Hoje não veio muita

movimentação, para mim, trouxe mais cenas [...]. De fato viajei, para

mim, foi bem sonolento e difícil em relação ao tema, não surgiu muita

coisa, mas foi bem legal de fazer.

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Thaíse balança as pernas freneticamente. Lembranças. França, 2014.

A primeira viagem da qual dividimos o mesmo quarto. Toda noite, quando

finalmente estávamos deitadas, cada uma em sua cama, prontas para

descansar, observava Thaíse com o celular na mão e as pernas balançando.

Pensava comigo: onde desliga a bateria dessa menina?

Mas, durante a conversa quase que ele tomou o meu corpo, talvez por

esquecer as preocupações do momento e todo o início tranquilo e, então, o

corpo começa a reagir com os tiques, são tantos [...] O que faz lembrar

meu tique nervoso no pé, se o sono estiver atingido o “nível mais alto”

em meu corpo, começo a sentir algo estranho no pé, algo que nunca

consegui definir, é tão estressante que sinto a necessidade de balançá-lo

com a esperança de que passará mais rápido.

Então, me coloco no papel da chata, quero que todas acordem! Bora!

Precisamos ensaiar! Muitas vezes, praticamente todos os dias, acordo com

dificuldade em sair da cama. Ah! Como é bom dormir até você querer

acordar, sem despertador, ditando a hora de levantar, mas, uma voz em

minha cabeça diz: acorda, você precisa ensaiar! As conversantes

respondiam ao meu impulso com certo desconforto.

Eu estava em uma espécie de transe pensando nisso, quando Gabriela

começou a bater no chão e isso me irritou muito, por ter me “acordado” do

momento. Sempre fico de muito mau humor, quando me acordam. Thaíse

começou a me cutucar, o que também me deixou irritada.

Sinto-me em casa com amigas, noite de pijama, sem hora para dormir

e acordar, a única preocupação seria assistir vários filmes, comer muita

pipoca e brigadeiro. Cenas assim se repetiam muito, durante minha

adolescência. [...] a sensação era que éramos todas amigas, primas ou

irmãs, com muito sono, querendo cochilar em paz [...].

A preguiça tomava conta, mas também, havia ternura e incômodo. O

tema proporcionou a lentidão, pausas e uso do peso ao se entregar ao chão

e aos outros corpos. Acolhimento.

Senti sua falta, Larissa.

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Mulheres

12 de março de 2017.

Imagem 17 - Mulheres

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

FLORES

Algumas serão espera na janela

Outras, precipitação

Chuvas, primavera ou verão

Verão a outra face, o preto no branco ou

a desilusão

Várias formas, vários cheiros, vários

sabores

E é isso que é lindo de verdade

Essa diversidade multicor

Unidas pela voz, pela igualdade e a

liberdade de ser diferente

Poder ser forte, poder ser frágil, poder

ser mulherzinha... Poder!

Ser saudade, ser exemplo, ser aprendiz,

ser flor que resiste a tudo, ser-humano.

Ser sendo, nem pior nem melhor, apenas

plena.

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Nona conversa.

Hoje enfatizamos: 1. Combate. 2. Doente. 3. Mulheres. 4. Saudades

das minhas férias de verão e 5.

MARIA, MARIA

Ao escrever, no papel, o meu sentir, logo pensei na gripe que

estava se manifestando em meu corpo, minhas gripes são daquelas que

derrubam, de precisar ficar de cama. Então, doente foi a palavra que, no

momento, me definia.

Sorteamos o terceiro tema – Mulheres. Uau! Que palavra forte!

Viajei por vários espaços, pessoas, sentimentos [...] Meu primeiro

movimento teve como impulso a força da mulher, a força que ela mostra em

sua história.

O tema foi escrito por mim e sorteado, então, mergulhamos nesse

universo chamado “Mulheres” e foi perfeito, com cinco mulheres.

O tema de hoje caiu como uma luva, realmente. Passamos por uma

semana que teve o Dia Internacional da mulher, imagina a quantidade de

hipocrisia que vimos. Florzinhas, chocolatinhos etc., etc. de pessoas e

homens, principalmente, que não sabem o tamanho de nossa grandeza.

FORÇA!

FORÇA! Delicadeza, cuidado, carinho, proteção. MÃE. Ventre.

MARIA, MARIA

MARIA, MARIA

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Certa vez, um de meus primeiros professores de dança disse: “mulher

é algo tão perfeito!” Eu em minha cabeça concordei. Escolhi para amar e

dividir minha vida com outra mulher, me completo enquanto mulher com

outra mulher.

Cheiro...

Cabelos...

Universo, sistema planetário, estrelas, lua.

É sutil, calmo, tranquilo, tem cuidado e amparo.

Nossa, que cabelos lindos têm Margoth. Às vezes, gostaria de ter

cabelos assim, para sentir como é [...] PODER.

Margoth e sua energia materna, poderia ficar horas em seus braços,

em suas mãos, difícil se desligar dela.

Olhos fechados, Thaíse e seu conhecer, tocar, sentir, autoconhecer.

Que saudades de dançar com você!

VENTRE, MÃE, VERMELHO, Júlia.

Não me canso de olhá-las a mexer em seus cabelos.

MARIA, MARIA

MARIA, MARIA FORÇA

Fui tomada por força, sentimento maternal, delicadeza, era uma

mistura, dualidade de sensações. Mulher é isso, é tudo. Estabeleci uma

conexão muito forte com Margoth, talvez por essa sensação materna, quem

sabe estivesse precisando. Além do mais, a capacidade de gerar um ser

dentro de seu próprio corpo e pari-lo, para mim, é o que há de mais

lindo, intenso, forte e potente em uma mulher.

Peguei carona com Thaíse em sua movimentação articulada e, nos

círculos que faziam Margoth e Júlia, ao redor de Thaíse, que permanecia

no centro da sala de olhos fechados, durante toda a experimentação, no

fim, tudo se voltava a ela.

Começamos num círculo sentadas, de olhos fechados, a pedido de

Gabriela, depois a mesma pediu para quem quisesse abrisse os olhos, eu

preferi ficar de olhos fechados o tempo todo. Iniciei uma sequencia no

chão, sentada ainda, utilizando só dos braços e do tronco, para mim, eu

falava de dores, dor no corpo, dores do tempo, dores da alma, as dores

das mulheres, depois, eu passava pelas pernas das meninas como se elas

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compartilhassem comigo destas dores, elas giravam ao meu redor e eu

sentia a energia para levantar. Ao levantar, eu fazia a mesma sequência

em cima e depois pausava, até encontrar alguém para abraçar e ao tocar

nesta pessoa, eu sentia as dores dela também, mas ao bailar, essas dores

iam aliviando, elas passavam por mim, eu continuava a dançar, só depois,

eu tentava encontrá-las, ia ao som delas, da respiração, e reconhecia o

corpo, o cabelo e o cheiro das três, tentava fazer a mesma sequência,

utilizando o corpo delas como apoio, no final, repetia a sequência só

mais uma vez.

Estar de olhos fechados é se entregar (confiança); em vários

momentos, eu colocava as mãos para frente e aberta como uma forma de paz,

me lembrei muito das mulheres na ditadura na linha de frente.

Larissa, ao cantar a música MARIA, MARIA, de Milton Nascimento,

despertava em mim a vontade de acelerar o movimento, a canção me enchia

de força que acarretava na aceleração. Sua voz era suave, seu ritmo não

era acelerado, mas a letra me afetou, de tal forma, que era como se fosse

minha voz ali gritando, defendendo, lutando.

Quando fala sobre “mulher”, sempre me veem a cabeça a música

“Maria, Maria”, acho tão forte quanto todas nós somos. Pensei em começar

com acordes da música, mas depois pensei o quanto seria “óbvio” e, ao

mesmo tempo, me faria ficar presa naquela música. Mudei, optei por me

deixar levar, e aí me vi em acordes e notas que eu havia experimentado

esses dias, que me fez suspirar e é essa sensação que a essência da

mulher me faz: SUSPIRAR. Suspiro por saber o quanto batalhamos para ser

quem somos, para trabalhar no que queremos, para conquistarmos respeito,

para ter, mostrar que, além de toda a beleza, somos fortes! E não teve

como fugir, “Maria, Maria” veio de novo à mente, e dessa vez, não deixei

escapar. Cantei à Capela, como uma oração mesmo.

Nossa conversa hoje foi pela manhã. Nossa! Mulheres odeiam acordar

cedo, hoje, durante o processo, senti muita vontade de falar, mas não o

fiz.

Nós, mulheres, somos muito diferentes, por dentro e por fora, tem

as tímidas, as delicadas, felizes, amargas, tristes, rancorosas, fofas,

as que gostam de brigar, entre outras e fisicamente também, mas então,

porque uma palavra nos coloca todas de um lado? Podemos ser tudo isso,

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mas existe uma coisa que todas têm: precisamos sempre de alguém para

confiar, e quando isso acontece, nos entregamos de corpo e alma [...]

Essas mulheres, hoje, aqui presentes, Larissa, Thaíse, Júlia, Gabi

e eu, somos muito diferentes, viemos de lugares diferentes, mas pensamos

parecido, quando falamos de liberdade, é bom estar com elas, pois sei que

elas são o que defendem! Tenho medo de mulheres que defendem a liberdade,

mas criticam as escolhas das outras mulheres, então, você pode ser livre,

mas eu não? Tudo isso veio na minha mente, durante a conversa, mas sei

que não falei, porém, elas sabem de tudo isso [...] Elas sabem que nossos

olhares trocados no laboratório são de amor, de confiança e de que sempre

nos apoiaremos, essas mulheres aqui presentes despertam minha admiração,

por isso, adoro olhá-las e ver nossas diferenças físicas e perceber que

isso não importa, somos amor por dentro, somos MULHERES.

MARIA, MARIA

Imagem 18 - Mulheres conversantes

Fonte: Desenho e escrita em diário de bordo, Margoth Lima (2017)

MARIA, MARIA

Na imagem 18, Margoth retrata, em desenho, as cinco mulheres

conversantes da pesquisa, destacando os cabelos que, para ela, mais

retratam nossas diferenças. Na ponta do lado esquerdo, ela mesma, do seu

lado Júlia, ao centro Thaíse, do lado direito de Thaíse eu e na ponta do

lado direito do desenho, Larissa.

Hoje, foi um encontro de questionamentos, de entrega e confiança.

Energias femininas. Deixar-se fluir pela música. Ser mulher, ser mãe, ser

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filha; ser menina, garota, mulher. Observar, cuidar, perceber. Sentir.

Viver as diferenças.

Hoje, e TODOS OS DIAS, eu sonho que possamos ser uma MARIA com mais

respeito, mais igualdade e mais AMOR!

Que sorte a minha, ter quatro mulheres tão intensas, aqui, comigo, hoje!

MARIA, MARIA

Só alegria com vocês

02 de abril de 2017.

Imagem 19 - Só alegria com vocês

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

Talvez a geografia pessoal seja apenas a lembrança da

infância, ou um desejo de voltar no tempo.

(Ana Miranda)

Em nossa décima conversa, optamos por nos reunirmos em um espaço

alternativo, escolhemos o Parque das Dunas ou popularmente conhecido como

Bosque dos Namorados. Nos papéis: 1. Ansiedade. 2. Insônia. 3. Oposta.

Indisposta. Cargas positivas e negativas. Contrária de antes. 4. Só

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alegria com vocês. 5. Tentando não desacreditar. Sorteamos o sentir 4. Só

alegria com vocês.

Escrevi como meu sentir, a ansiedade, desejava que a pesquisa

acontecesse logo, estava preocupada com a hora, pelo fato de ter a

consciência que de lá, deveríamos ir a outro compromisso, com hora

marcada. Estava acontecendo um espetáculo infantil, antes de começarmos,

fiquei confusa com as pessoas falando, som alto, gente fazendo fotos.

E tudo já começou meio incerto, por causa do lugar que é público.

Me preocupei, a princípio, se as meninas iriam conseguir se concentrar.

Mas aconteceu, talvez pelo tema, mas fluiu.

Bom dia! Hoje foi um dia diferente, nos reunimos em um lugar

diferente, lindo e cheio de harmonia.

O tema sorteado foi meu, e foi uma alegria, porque eu escrevi essa

frase, justamente, porque é sempre incrível estar com estas quatro

mulheres, e como sempre, eu não tenho nenhuma ideia para o tema, é sempre

quando chego, que eu escolho. E, dessa vez, não foi diferente, ao ver,

conversar, estas quatro mulheres me passam muita força, verdade,

honestidade, inspiração, já entrei no bosque abraçada com a Mar e ouvindo

ela dizer que eu sempre vou estar com elas, me deu saudade e me deu um

sentimento de pura felicidade, estar hoje aqui, dessa amizade, sintonia,

processo.

No caminho para cá, senti o quanto minha energia estava diferente

da de Tatá. Completamente oposta. Oposta também da minha própria energia,

à qual carreguei durante boa parte da semana passada. Então, Margoth

chegou e deu para sentir, antes mesmo dela entrar no carro, o quanto a

energia que ela estava trazendo, se assemelhava com a minha. Parei para

refletir a respeito: não era, que a minha energia estivesse ruim, apenas

entrava em oposição com a de Thaíse, que estava em total expansão. Quando

Tatá sorteou seu próprio papel, eu pensei: Ih... Total conflito. Não que

eu não me sinta alegre em nossas conversas (pelo contrário), só que eu

estava em uma situação muito individual para pensar no coletivo.

O mais positivo dos temas foi sorteado. Começo a pensar que são os

temas que nos sorteiam e não nós, que os sorteamos, como se o que

precisássemos vivenciar, naquele momento, seria o que o papel que era

escolhido nos proporcionasse.

Pássaros, vento, crianças, pessoas.

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O canto dos pássaros durante a concentração me fez lembrar a casa

de minha avó, o terreno cheio de árvores, plantas e flores nas casas

vizinhas, o cheiro do amanhecer, a luz do sol e a preguiça acompanhada do

acordar, estar de pijama, tomar achocolatado, assistindo desenho animado

na televisão da sala com minha madrinha. Lembrei-me também de café, algo

que me traz muita alegria e dependência.

Realmente, por vezes, me decepciono com tantos acontecimentos, mas

se tem algo que me estimula a continuar são minhas amizades. Se estiver

com essas mulheres, provavelmente, estarei tendo bons momentos.

Essa iniciação conduzida pela Gabi é superimportante, é nela em que

eu tento me transportar para o tema, a me desprender de outro sentimento.

(XILOFONE)→ Deu vontade de usar. [...] Depois de uma noite inteira

acordada, resolvi hoje fotografar e fazer vídeo, porque eu sabia que não

iria render como gostaria, por falta de descanso.

Então começamos, não precisou de música, só o canto dos pássaros, a

voz das pessoas falando, longe ou perto, depois o lugar lindo, aberto, em

contato com a natureza e com as pessoas, principalmente com as crianças.

Risos, sorrisos e um abraço para começar. Thaíse compartilhava sua

alegria, através de seus abraços, me impulsionando também a abraçar.

Gostaria de perpassar meu abraço por todas, mas senti que deveria

permanecer em Margoth. Mesmo sem seu corpo, perdurei com a sensação de

seu abraço.

No começo, eu não consegui me segurar e comecei a abraçar, porque

para mim, o abraço faz dois ser um só, então, eu abracei uma por uma,

depois repeti sozinha o formato dos abraços, depois, eu observei Gabi com

Mar, e abracei Mar, pelo meio, como se buscasse colo, proteção, como se

eu tivesse me escondendo de algo, e ela abraçava Gabi e eu para cuidar.

E hoje, ganhar um abraço da Thaíse e da Gabi foi muito necessário,

esse abraço arrancou de mim lágrimas de desabafo presas dentro de mim, e

assim, pude mergulhar nessa alegria que é estar com vocês!!! Olhar,

sorrir, abraçar [...] Coisas tão simples e que me fazem feliz, eu adoro

compartilhar alegrias, momentos e saber que é de verdade... Viver o agora

com amor e acredito no poder dessa palavra, acredito que quando alguém

diz que ama é que há verdade no que se transmite, não me imagino falando

que amo, sem ser verdade, essa pequena palavra mexe profundamente

comigo!!

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Começamos com a respiração e lembrei o quanto, às vezes, é

importante se afastar para ter outra visão das coisas e de si. Então, foi

o que fiz: virei telespectadora da nossa conversa, de nossas trocas, de

nossas relações... Mas, ao mesmo tempo, eu estava ali com elas, dentro

daqueles abraços da Gabi no ar, do caminhar de busca da Margoth e da

dança dos abraços de Tatá. Fiquei me vendo ali, de fora, dentro de cada

abraço dado e prestando atenção nas formas, intensidades e tempos. E

então [...] Coincidência ou não, nos abraços, encostamos nossos corações

(símbolo universal do amor), comprimimos nossos externos um no outro

(símbolo de todos os sentimentos fortes para mim). Acho que é por isso

que um abraço acalma tanto, porque há essa real junção de emoções [...] E

as emoções são as coisas mais verdadeiras que carregamos em nós.

Imagem 20 - Abraços observados

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

#Obs: pela segunda vez tive vontade de já começar escrevendo.

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Então, senti vontade de me fazer presente através do corpo. E fui.

E tudo começou a virar uma grande brincadeira, como acontecia quando

éramos crianças e encontrávamos nossas melhores amigas.

Margoth tira a sua xuxinha de cabelo para prender o meu, ah, que

bom! Estava incomodada com ele. Agora me sinto Anna Vitória (filha de

Margoth).

Brincamos. Ai! Que frio na barriga, estou naquele brinquedo

horrível de parquinho de criança que fica girando. Horrível, mas era o

primeiro que eu brincava ao chegar ao parque.

Imagem 21 - Giros

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

Recordei de estar girando na varanda de casa com minha irmã, até

não aguentar mais, cair no chão e sentir tudo rodar, para então, pegar

uma faca da cozinha e encostar-se à testa. Tínhamos a teoria de que essa

técnica fazia você voltar ao normal.

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Depois, foi lindo, a gente girando, foi aí que ficou mais forte a

imagem da criança para mim, depois, veio muito irmãs brincando e depois

como se fossemos bonecas.

Imagem 22 - Boneca Gabi e boneca Thaíse

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

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Thaíse e eu somos bonecas, daquelas que você dá corda e ela sai

fazendo coisas, caminha, dança, fala, canta, gira, pula. Ficava encantada

com esses brinquedos na infância. Até que Júlia decide nos ajeitar para

nos expor em uma vitrine. Então, o jogo vira, Júlia se transforma na

boneca e passamos a manipulá-la.

As gargalhadas, as trocas de olhares e falavam muito mais que as

palavras, o querer mexer no cabelo da outra, porque era lindo e você

queria ter uma boneca assim. E eu tive minhas bonecas. A Tatá, minha

boneca modelo nacional, do pernão e bundão. A Margoth, minha primeira

boneca negra do cabelão. Gabi, minha boneca do cabelo mega liso. Gabi ≠

Margoth.

Imagem 23 - Boneca Júlia

Fonte: Acerva pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

Mexer no cabelo é sempre forte, me traz memória e saudade, foi como

se a gente tivesse, sim, voltado ao tempo, na infância, naqueles retratos

de família, como se a gente tivesse descongelado uma foto.

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Imagem 24 - Vitrine de bonecas/Fotografia descongelada

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Larissa Paraguassú (2017)

Complô! Pela segunda vez, sou a excluída! As meninas se juntam de

um lado para olhar para mim, provavelmente, estão caçoando de meu cabelo.

Sai daqui Júlia! Deixe meu cabelo do jeito que está! Lá vem ela

correndo atrás de mim, querendo desfazer o penteado que Margoth fez em

meu cabelo. Então, o ridicularizo mesmo, o arrumo do jeito que odeio,

separo no meio e arrumo a franja toda para frente.

Maria Cecília. Lembro-me do quanto minhas experiências quando

criança foram fortes e significativas. A artista circense no tecido,

jamais esqueci, foi a primeira vez que fui ao circo assistir a um

espetáculo, era passeio de escola, encantei-me com sua beleza e

virtuosidade ao bailar em tal altura com um tecido rosa, seu figurino

brilhava, minha boca boquiabria e o desejo de ser como ela atravessou. Ao

retornar à sala de aula, a professora de artes passou como atividade

desenhar o que você mais gostou do espetáculo, logicamente desenhei com o

maior número de detalhes possíveis, a moça e seu tecido, que tanto me

afetaram naquele dia. Não sabia o que seria do futuro, mas já tinha a

certeza de que gostaria de ser artista.

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Maria Cecília nos assistiu de fora, durante todo o tempo, E nos

envolvemos tanto, nos encriançamos tanto, que a pequena Cecília se

identificou e quis brincar também, quando sentiu que era confiável

adentrar o espaço em que experimentávamos, a pequena criança faz a sua

dança. Sua vontade de dançar conosco era tamanha que a avó, sempre que

cogitava ir embora, fazia a garotinha chorar. Talvez, neste dia, possamos

ter sido o impulso de uma grande artista. Seguimos sua dança pura e

sincera.

No final, tivemos uma surpresa linda e parecia um sinal, foi

emocionante ver uma criança de 1 ano e 10 meses parar para apreciar e nos

presentear com a sua dança, com a sua pureza e, principalmente, com a

alegria.

Hoje, não tenho tantas coisas mais “internas” para falar, a não ser

a participação de Maria Cecília, uma criança de, pelo menos, um ano que

assistia cada movimento das meninas e ficou hipnotizada, talvez pelos

movimentos terem remetido a coisas infantis. Fiquei encantada com a

entrega da criança, que sem pensar, já chamou a avó, que a acompanhava,

para ficar mais perto das meninas. E no encontro, as meninas resolveram

fazer os movimentos de Cecília que mostrava os pés loucos para dançar.

CRIANÇA É UMA COISA MÁGICA!

Hoje, não foi apenas um dia de alegria, foi um dia de amor e esse

amor foi notado, pelo externo, por quem tem pureza no coração, um pequeno

ser a nos observar, nos fez ainda mais feliz! Uma criança, a nos admirar,

se juntou a nós e nos tragou para outro momento, com mais amor e carinho.

O dia de hoje nos remeteu muito a brincadeiras e crianças. Percebi

que fizemos uso da repetição de movimentos em vários momentos e mantive

um bom diálogo, especialmente, com Margoth, acredito que talvez por ter

me conectado melhor com a mesma, logo no início da conversa.

Hoje, cheguei com o coração aflito e saí leve, feliz, com

energia!!! Obrigada por hoje.

Acho que precisamos voltar a ser criança com mais frequência.

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CAPÍTULO II – CONVERSAS: OS ASSUNTOS PERMEADOS

Iniciamos nossas conversas sempre com uma questão inicial: Como me sinto hoje? Escolhi

esse tipo de provocação por querer trabalhar com algo que nos afete. Como me sinto hoje, reflete,

em grande parte, de minhas atitudes ao longo do dia, a forma que caminho, que me dirijo às

pessoas, o que como, o que visto, o que produzo, como danço, o foco de nossa atenção se volta ao

corpo. Mesmo não percebendo, a sensação corporal é contínua, pois se trata de um estado geral do

corpo e não de partes específicas. Essa sensação contínua é o que nos possibilita responder à nossa

questão provocativa criativa.

Damásio (2012) aponta ainda que a pergunta ―Como se sente?‖ é mais complexa de ser

respondida do que um ―Como vai?‖, a qual pode ser respondida sem mencionar seu estado corporal

e pode ser dita, de forma superficial e cordial. Se não existisse essa sensação, não saberíamos

responder como nos sentimos; seriam percepções soltas e isoladas e não uma sensação integrada do

corpo em sua totalidade, o que causaria uma conturbação muito maior.

Antes de entrarmos na descrição do procedimento da Conversa Corporal, convém

dialogarmos sobre o afeto entendido nesta pesquisa. O afeto está presente não só em nossos

laboratórios, mas na pesquisa como um todo, seu percurso constantemente em afetação; o percurso

da construção da pessoa que sou hoje é diferente daquela que iniciou a pesquisa, que em meio a

leituras, escritas, laboratórios, danças, processos, aulas, conversas, orientações, envolvidas de

sentimentos e emoções, desses encontros e relacionamentos que cutucam, movem, transformam,

renovam, modificam e alimentam a nova Gabriela que encontro a cada momento.

Transformações constantes: entre afetos e percepções

Cassiano Quilici (2012), ao falar de Antonin Artaud, entende que a palavra ―afeto‖ conota a

questão de causar efeito: ―Ela não designa apenas a qualidade de uma experiência, mas um poder, o

―poder de afetar‖, uma força que atua no e através do ator [lê-se também artista cênico5], e depois

em relação ao espectador‖ (QUILICI, 2012, p. 136). Há uma essência de transformação, um poder

de contágio, a qual acontece tanto nos artistas durante o processo investigativo, como,

posteriormente, durante a experiência cênica e com o espectador.

5 Apesar dos estudos de Antonin Artaud se referirem diretamente ao ―ator‖, entende-se que são relevantes também às

pesquisas relacionadas ao artista cênico de modo geral.

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O espectador não desempenha apenas um lugar de ―assistir‖, de ―presenciar‖ algo, mas

envolve-se com o trabalho, afetando-o, fazendo com que esse poder de contágio cause algum efeito,

deixando o espaço cênico modificado, com suas reflexões, suas leituras, suas sensações, carregando

consigo o rastro da experiência, pois: ―[...] mais do que comunicar algo, o teatro [a arte] pode

mobilizar e desencadear forças, trazendo à tona e redirecionando o que foi recalcado pela ordem

cultural‖ (QUILICI, 2002, p. 98). Abrindo-se ao novo.

Patrícia Caetano (2012), ao citar o teatro da crueldade de Antonin Artaud, discorre sobre o

corpo dos afetos disponível às transformações em suas possibilidades de refazer-se novo, a cada

instante e ser capaz de refazer o espectador em suas relações artísticas:

No contexto do teatro da crueldade, o artista cênico é aquele que coloca o seu corpo à

disposição de desfazimentos dos automatismos socioculturais, no intuito de refazê-lo em

sua potência afetiva, comunicante, polivalente, metamórfica e extasiante. Este corpo dos

afetos, um corpo vivido em suas intensidades, vibrações, limiares e mutações energéticas,

provavelmente transformará a estética de seu fazer artístico. Uma estética não mais

determinada à parte da matéria-corpo expressiva. Uma estética que não toma o corpo como

mera alegoria formal para fins previamente determinados. Mas sim, uma estética da carne

que toma o corpo como matéria-prima de seu exercício. Uma estética atenta aos possíveis

do corpo enquanto carne inteligível/sensível. Uma estética que escuta esse sujeito-corpo-

autônomo que se auto organiza e determina direções expressivas. Uma estética que quer

abalar o espectador através da/na carne intensiva por meio de um choque sensível e direto.

(CAETANO, 2012, p. 142)

O corpo, em sua totalidade, expõe-se constantemente aos afetos que são decorrentes dos

relacionamentos que traçam com o ambiente, se torna quase impossível querer fazer invisível esse

campo afetivo, reflete-se na construção e organização do indivíduo e, consequentemente, na

pesquisa, reflexão, desenvolvimento de suas criações. Tomar consciência de seus afetos é tomar

consciência de sua própria mutação.

Um encontro com outra pessoa, uma leitura, objetos, uma comida que ingerimos, uma

música que toca, o espaço que nos encontramos, gera alguma reação corporal, corporal não somente

no sentido físico, mas como citado acima, em sua totalidade, desencadeando em várias novas

possibilidades de um eu, as interações tem grande responsabilidade por essa propagação (SALLES,

2008).

Porpino (2014) reflete sobre as relações que estabelecemos com o mundo e sua importância

à dança e à arte em que nos debruçamos. Nessa perspectiva, compreende a dança como um

conhecimento de si, em que as experiências em seus afetos contribuem significativamente ao

desenvolvimento do artista da dança, para o qual as emoções, tão singulares, diferenciam a dança de

qualquer outro movimento, uma vez que:

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[...] a dança, como toda arte, parte das relações que o homem estabelece com o mundo, de

suas sensibilidades diante da vida e, por que não dizer, das emoções que recrutam o sentido

dado pelo pensamento às ações corporais. Nesse sentido, o ato de dançar pode ser

compreendido como um ato de conhecimento de si mesmo [...]. A imersão no presente, na

emoção que emana de suas próprias experiências reflete-se na ampliação das capacidades

expressivas do dançarino, seja para criar seu próprio movimento, seja para dar sentido ao

movimento supostamente criado por outro, pois só posso me expressar a partir do

movimento dado quando sou eu mesmo, quando posso reconhecer minha própria emoção

ao executar um movimento (PORPINO, 2014, p. 50).

Neste momento, por exemplo, me conscientizo do quanto minha disposição espacial

interfere em minha forma de escrever e refletir. Na maioria das vezes, sento-me no quarto menor do

apartamento, em frente à mesa que está posicionada para a janela, e dela tenho a visão ampla de

árvores que envolvem a área e os prédios. O vento que mobiliza a dança verde e a música produzida

pelas folhas das árvores com participações especiais dos pássaros que, por vezes, me visitam, com

sua graça, me põe a sentir essa dança da natureza, enquanto movimento as palavras de meu texto.

Então, o afeto acontece a partir de nossos relacionamentos, encontros e interações com o

mundo. Sobre interação, Cecília Salles, em seu livro ―Redes da criação: construção da obra de arte‖

(2008), ao pesquisar a rede, que constitui tudo o que envolve um processo de criação, determina a

interação, os relacionamentos como uma das importantes propriedades à construção criativa:

A interatividade é, portanto, uma das propriedades da rede indispensável para falarmos dos

modos de desenvolvimento de um pensamento em criação. Em nossas preocupações

relativas à construção dos objetos artísticos como objetos de comunicação, essas interações

devem ser especialmente observadas, pois as indagações recaem sobre esse pensamento,

que se constrói nas inter-relações, ou seja, [...] o processo de criação está localizado no

campo relacional. É importante pensarmos no ato criador como um processo inferencial, no

qual toda ação, que dá forma ao novo sistema, está relacionada a outras ações de igual

relevância, ao se pensar o processo como um todo. Estamos, assim, tomando inferência

como um modo de desenvolvimento do pensamento ou obtenção de conhecimento novo a

partir da consideração de questões já, de algum modo, conhecidas. O destaque está na visão

evolutiva do pensamento que enfatiza as relações entre elementos já existentes (SALLES,

2008, p. 26).

Assim como nós estamos expostos aos afetos, nossa arte também se relaciona e se comunica

com o meio em sua história e cultura numa troca de informações:

Devemos pensar, portanto, a obra em criação como um sistema aberto que troca

informações com seu meio ambiente. Nesse sentido, as interações envolvem também as

relações entre espaço e tempo social e individual, em outras palavras, envolvem as relações

do artista com a cultura, na qual está inserido e com aquelas que ele sai em busca. A criação

alimenta-se e troca informações com seu entorno em sentido bastante amplo. Damos

destaque, desse modo, aos aspectos comunicativos da criação artística (SALLES, 2008, p.

32).

O artista e seu trabalho se envolvem por tudo o que os entorna e os relacionamentos com o

entorno constituem os dois, assim, criador e criação se afetam. Conscientizar-se disso é se

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autoconhecer, conhecer seu processo, uma autocriação, pois ―[...] no sentido de que ele não sai de

um processo do mesmo modo que começou: a compreensão de suas buscas estéticas envolve

autoconhecimento‖ (SALLES, 2008, p. 65).

Para que haja essa conscientização, é preciso o aguçamento perceptivo de seus afetos: ―O

afeto é apreendido corporalmente na medida em que o ator [artista cênico] desenvolve a percepção

das pequenas mutações das sensações expressas [...]‖ (QUILICI, 2002, p. 98). Entraremos, então,

no campo perceptivo.

Com a intenção em trabalharmos, impulsionadas pelo sentir, partimos do princípio de que o

sentimento é percepção, e essa percepção é necessária ao artista, àquele que dança. Perceber-se é

perceber o outro, o espaço, os sons, os detalhes, o mundo. A percepção é vital não apenas ao

movedor da arte, mas a todos os seres. O desenrolar da pesquisa com a pergunta inicial pode

desencadear alterações desse sentir, ocorrendo como consequência, mas, seu objetivo não está em

tal finalidade, e sim, perceber/sentir impulsionados por uma questão.

Trago então, esse próprio sentir como potência criativa para a cena, o que nos impulsionará

a dançar e fluir. Conscientizando-me do que me afeta, neste momento, e aceitando o que sinto como

parte primordial de minha dança. Transpareço a individualidade, não apenas do mover, mas

também, aquilo que transpira por entre os poros, órgãos, pensamentos e tudo o que nos preenche

enquanto seres humanos. O reflexo do corpo, então, não se apresenta apenas enquanto estrutura

corporal física, mas psíquica, emocional, carregado por histórias e memórias que modificam o

próprio corpo e o espaço a cada experiência que agrega o ser. Não se faz necessária uma segregação

entre dança e indivíduo, o indivíduo é a dança e a dança é o indivíduo.

(...) o ato de dançar pode ser pensado como ato no qual o indivíduo pode refazer-se a cada

momento em que se dança, e assim criar suas próprias poéticas. Cabe ao artista e ao

professor de dança buscar estratégias ou modos de pensar o dançar e seu ensino que sejam

capazes de levar o indivíduo a encontrar esse estado sensível, de reconhecimento de si

enquanto dança, a partir do qual é possível criar seu próprio movimento em conexão com o

mundo. (PORPINO, 2016, p. 200)

Conectar-se consigo é uma forma de conectar-se com o mundo, partindo do pressuposto de

que o ser humano é um mundo por habitá-lo e transformá-lo. Perceber como me sinto sensibiliza o

corpo a essa conexão e a então, como destaca Porpino (2016), criar suas próprias poéticas através da

dança, a qual pode ser compartilhada e ressignificada com outros artistas, como proponho com a

Conversa Corporal. O corpo de ontem não será o mesmo de hoje, há uma constante transformação

que atravessa a dança dos corpos, que se refazem e recriam abertos à sensibilidade individual.

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A percepção dos afetos tange o momento de criação, aguçar a percepção é necessário

durante todo o procedimento da Conversa Corporal. Fayga Ostrower (2013) entende que ―Perceber

significa a apreensão de conteúdos e conotações, tentar saber o sentido das coisas. Esse sentido se

refere à própria experiência de vida e surge em função de nossa autopercepção e da participação

ativa no viver‖ (OSTROWER, 2013, p. 184). Pela percepção é possível traçarmos conexões e

construir dramaturgias, pois ao dialogarmos corporalmente, mantemos pulsante a experiência e nos

autopercebemos diante da vida.

Por se tratar de vida, Annie Suquet (2008), em seus estudos, explica que a percepção não

acontece de forma mecânica no corpo, mas como uma conexão consigo e com o que o rodeia,

através da intenção e desejo, voltando-se para o mundo. ―Um componente afetivo filtra sem cessar

o exercício da percepção. É esse componente que colore e interpreta o trabalho da sensação para

organizá-la em uma paisagem de emoções‖ (SUQUET, 2008, p. 514). Movidas pelas emoções e

sentimentos, as conversantes relacionam-se através de suas conexões com o espaço, pelas

interações que traçam umas com as outras. Entregar-se, sim, mas, uma entrega atenta à tudo.

Suquet (2008) explica que um dos fundadores da neurofisiologia, o inglês Charles Scott

Sherrington, em 1906, atribuiu ao termo ―propriocepção‖ o conjunto dos comportamentos

perceptivos que afluem para a cinestesia – sentido do movimento, entrelaçando informações visuais,

táteis, musculares e articulares, que são modulados pelo sistema neurovegetativo, que regula o fluxo

sanguíneo, a respiração entre outros ritmos fisiológicos profundos. ―O sensível e o imaginário nele

dialogam com infinito refinamento, suscitando interpretações, ficções perceptivas que dão origem a

tantos outros corpos poéticos‖ (SUQUET, 2008, p. 516).

A autora comenta, ainda, sobre as investigações do bailarino americano Merce Cunningham,

em que ele ―pressente que o movimento é antes de tudo uma questão de percepção: para descobrir

potencialidades cinéticas inéditas, deve-se em primeiro lugar subverter a esfera perceptiva‖

(SUQUET, 2008, p. 531). Ou seja, ao ampliarmos o campo de percepção, abre-se espaço a novas

descobertas.

Ostrower (2013) afirma também que a percepção não acontece de forma mecânica, pois, ao

entendermos, como um ato mecânico, falsificamos a percepção, saindo de sua realidade. Ao

apreender um acontecimento, interpretamo-lo imediatamente, vivenciando nossa interpretação. Na

relação dos mundos exterior e interior ao nosso corpo, nossas respostas à vida e seus fenômenos vão

além de simples reações, pois há uma ação imaginativa, podendo ser um ato opcional. A percepção

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corresponde também ao momento da condição humana em sua realização através da percepção do

―eu‖, na qual é possível olhar para si e vivenciar seus desejos, e, então se fazer escolhas,

E qualquer resposta nossa há de encerrar intuitivamente uma tomada de posição. Em todas

as interpretações que fazemos, os pensamentos se enlaçam com emoções e sentimentos de

autoafirmação, e também com intenções. É sobremodo significativo que o termo ―perceber‖

seja sinônimo de ―compreender‖. O referencial somos nós mesmos, tentando esclarecer

melhor o sentido de nosso ser e nos compreender. Daí o conhecimento maior sobre o

mundo levar a um conhecimento maior de nossa identidade (OSTROWER, 2013, p. 61-62).

Segundo a mesma pesquisadora, a percepção, além de conhecimento, encerra um constante

(re)conhecimento, oferecendo um (re)encontro ―[...] da pessoa consigo mesma, com sua experiência

anterior. É o referencial de cada um‖ (OSTROWER, 2013, p. 184). Aprendemos a perceber,

relacionar e compreender os acontecimentos á nossa volta, desde o começo de nossas vidas, e

assim, continuamente, por intermédio das situações e novas experiências. O ato de perceber não

pode ser separado por categorias lógicas e não lógicas, é resultante de uma síntese integradora,

abarcando níveis intelectuais ―[...] de análise e organização dos estímulos em contextos e

componentes [...]‖ (OSTROWER, 2013, p. 184) e afetivos ―[...] de sentimentos de ser [...]‖

(OSTROWER, 2013, p. 184).

Mas, não só de associações se dá o (re)conhecimento. Como expõe Ostrower (2013), as

associações apontam o curso de nossa compreensão. A atual percepção e a memória de anteriores

vivências se interligam, no entanto, o que nos motiva são os conteúdos e valores da experiência.

Podemos viver uma experiência milhares de vezes, porém, ao reconhecer, a vivenciamos

diferentemente, e, nossas visões de mundo e o contexto da vida se modificam, pois:

Todo ato de percepção, por mais instantâneo que seja, deixa como lastro um novo momento

de realização, de transformação interior. Talvez os próprios valores se transformem, porque

nós mesmos nos transformamos. Assim a percepção encerra também um contínuo processo

de conscientização. O que sempre significa, como substrato, um saber intuitivo de vida e

morte. Esse saber vem do âmago da consciência. (OSTROWER, 2013, p. 185).

Essa conscientização, em processo contínuo, contém o ato de sentir, de perceber, de se pôr

em atenção. Thereza Rocha (2016) localiza esse ato de percepção como o desenvolvimento de uma

noção de presença particular de si e do movimento próprio, na qual, o corpo permite-se dizer de sua

experimentação, um dizer próprio vinculado ao movimento. ―Assim, a dança não é produto do

corpo que a antecede, mas produção de corpo que lhe corresponde‖ (ROCHA, 2016, p. 62).

Portanto, a questão de início dos laboratórios requer uma atenção mais delicada,

movimentamos percepções íntimas e profundas de cada indivíduo, e as acessamos para responder a

questão impulsionadora; se é que possam ser escritas em um papel, como uma tentativa de extrair

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os impulsos nos quais se manifestam. Fayga Ostrower (2013) comenta que: ―Ao criar, o artista não

precisa teorizar a respeito de suas vivências, traduzir os pensamentos e as emoções em palavras. Ele

tem mesmo que viver a experiência e incorporá-la em seu ser sensível, conhece-la por dentro‖

(OSTROWER, 2013, p. 45-46).

Dificilmente, conseguiremos expor em um papel, exatamente, o que sentimos, no momento,

pois circulam energias que, por vezes, não conseguimos explicar ou expressar, mas somos capazes

de aproximar as coisas então conhecidas, para que possam ser reconhecidas por outros sujeitos.

Passamos esse sentir para o papel em uma palavra ou frase curta, de forma a sortearmos um

sentir para ser trabalhado, especificamente, naquele dia. A palavra serve como um estímulo não

óbvio, como por exemplo, se for sorteado o sentir frio de alguém, não serão realizados gestos que

remetam ao frio, como esfregar as mãos no corpo para ―aquecer‖, cada corpo responderá ao frio,

conforme o seu entendimento sobre a provocação, talvez o meu frio possa não ter nenhuma relação

com o que você imagina sobre o frio. Portanto, cada intérprete se apropria do seu frio e o apresenta

da forma que lhe é acessado.

Após ser determinado o nosso tema pelo sorteio dos sentires, fazemos uma pequena

concentração, em conjunto, sobre o que iremos trabalhar. De olhos fechados, a concentração

consiste, a partir do tema, em atrair pensamentos, situações que farão a pessoa alcançar tal estado

corporal, acessando pessoas que provocam esse sentir, percebendo por qual motivo o corpo se

encontra assim, naquele momento, as lembranças que remetem àquele tema, entre outras questões

que a conversante venha a perceber que seja importante concentrar-se, nesse momento, de maior

introspecção. Permanecem-se em concentração por aproximadamente 5 minutos.

Esse momento concentrativo, tem como grande influência minhas experiências em práticas

meditativas, junto ao projeto de pesquisa acadêmica, desenvolvido por Patrícia Leal ―Pratyahara e

Dhyana: percepção e foco nos processos de criação na contemporaneidade‖ (2016-2018), integrado

ao grupo de pesquisa CIRANDAR e, para além da academia, em práticas no espaço de Centro de

Estudos Budistas Bodisatva (CEBB), Antiga e Mística Ordem Rosae Crucis (AMORC) e práticas

de Yoga. Convém aqui explicar, brevemente, acerca da meditação fundamentada nesses espaços e

sob a visão de pesquisa de Leal (2012a).

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Experiências meditativas

A concentração realizada em nossos laboratórios não corresponde aos procedimentos de

meditação, tais quais, estarão apresentados nos conceitos dos autores neste tópico, entendemo-la

como uma adaptação que contribui à dança, e no caso desta pesquisa, especialmente, aos processos

de criação em dança, assim como, o objetivo da meditação, em seus diferentes espaços de prática,

não corresponde ao mesmo fim da concentração na Conversa Corporal, como veremos a seguir.

Rohit Mehta (2012), em Ciência da Meditação, explana que a meditação é a percepção do

intervalo, onde a visão do todo é propiciada. O intervalo implicaria dizer que acontece, quando um

pensamento cessa e outro ainda não tenha começado, é aí que o intervalo se dá, em momento

atemporal. Atemporal por não ter extensões no tempo, não pode ser retratado, delimitado.

Conforme cita o autor, quem experiencia esse intervalo, realmente vivencia a meditação.

Segundo o astrólogo e fundador da Fraternidade Rosacruz, Max Heindel (1909), em

Conceito Rosacruz do Cosmos, a meditação é o meio de união entre as naturezas superior e inferior,

que se consolida pela contemplação e eleva o espírito através da adoração. Antecedente à

meditação, é necessário ter praticado a concentração que ―[...] consiste em efocar o pensamento

num só objeto. É o meio pelo qual construímos uma imagem clara, objetiva e vivente da forma,

acerca da qual desejamos adquirir conhecimento‖ (HEINDEL, 1909, p. 269). No caso da Conversa

Corporal, o foco delimitado é o tema sorteado, e a partir dele, perceber seus desdobramentos.

Após muitas práticas de concentração na Rosacruz, parte-se para a meditação, que é

designada como ―[...] o exercício pelo qual seguimos a história desse objeto, pondo-nos em relação

com todos os pormenores a ele relativos e ao mundo em geral‖ (HEINDEL, 1909, p. 269). Ou seja,

a etapa em que o conhecimento sobre o objeto, inicialmente focado, é adquirido. Podemos

relacionar essa etapa aos desdobramentos que o tema na Conversa Corporal nos propõe, pois é o

momento em que nos colocamos em relação com o sentir através dos pensamentos, situações,

provocações, pessoas, motivos e lembranças.

Segundo Heindel (1909), a concentração e a meditação se relacionam de uma ―[...] maneira

mais profundamente imaginável, com as coisas. Conduzem a um estado mais elevado, penetrante e

sutil de desenvolvimento [...]‖ (HEINDEL, 1909, p. 269), um estado referente à ―alma das coisas‖,

chamado de contemplação.

A contemplação por fim,

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[...] consiste simplesmente em mantermos o objeto ante a visão mental e deixar que a alma

dele nos fale. Repousando tranquilamente num divã ou na cama - não de modo negativo,

mas completamente alerta - esperamos a informação que virá com certeza, se já alcançamos

o devido grau de desenvolvimento. Então a Forma do objeto parece desvanecer-se,

passamos a ver unicamente a Vida em atividade. A Contemplação ensinar-nos-á tudo

relativamente ao aspecto da Vida, assim como a Meditação nos ensinou tudo sobre a Forma

(HEINDEL, 1909, p. 269-270).

São seguidas as etapas, para que, ao chegar à contemplação, o conhecimento almejado não

necessite de esforços do pensamento e imaginação. Conforme seu desenvolvimento, a informação

chegará naturalmente, então, a forma do objeto deixa de se tornar um objetivo para que a vida, a

―alma‖ do objeto, passe a ser então focada.

Segundo Lama, budista brasileiro, Padma Samten (2001), no livro Meditando a vida, os

adeptos ao budismo meditam com a procura na estabilidade do corpo para benefício próprio e de

todos os seres, disciplinando e observando o corpo. A primeira etapa consiste em atentar a três

âncoras:

Na primeira âncora, o fato de sentar-se imóvel quebra barreiras que interferem à ação de

imobilidade, a falta dela significa dizer que o corpo se encontra agitado, praticar a imobilidade

implica em discipliná-lo, tornando-o indiretamente mais pacífico. Estando imóvel, o foco fica mais

limitado, há menos objetos e situações que possam tirar a atenção (SAMTEN, 2001). A

―imobilidade‖ também utilizada, durante a concentração da Conversa Corporal, possibilita essa

pacificação do corpo, abrindo-o à observação de um tema e percebendo o que ele significa para

você mesmo.

A segunda âncora corresponde às energias internas do corpo e à respiração. Uma respiração

serena e silenciosa. Na terceira âncora, foca-se a respiração e a experiência serena, a prática de

repousar tranquilo (SAMTEN, 2001).

Para não ocorrer deambulação aleatória do pensamento, escolhe-se um objeto para focalizar,

pois, sem isso, as energias, os impulsos vagueiam também. Na primeira etapa da meditação,

abstraem-se os movimentos externos ao corpo, e apenas foca-se na respiração e imobilidade,

mantendo a serenidade. Então, começa-se a ver além da forma – ventos internos, amor, energias,

compaixão. (SANTEM, 2001).

Em nossos laboratórios, foi possível sensibilizar, através da concentração, o corpo em

relação ao espaço, pondo-se em um momento de serenidade, em que o movimento maior foi o da

respiração, aguçando os sentidos às percepções que, por vezes, passam despercebidas, como por

exemplo, a brisa que adentra a sala da EDTAM, em suas inúmeras e amplas janelas, as notas

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emitidas pelos instrumentos de Larissa ou o som do movimento das árvores e pássaros, o cheiro da

madeira no chão da sala, ou o cheiro de natureza no Parque das Dunas e da Cidade, a energia que

circula entre as conversantes em disposição circular.

Na segunda etapa, busca-se a consciência desses ventos internos, limpeza dos automatismos

do corpo e perturbações energéticas, doenças e desequilíbrios, harmonizando e estabilizando,

levando à equanimidade (SAMTEN, 2011).

Conscientemente, trabalham-se os obstáculos e aumenta-se o foco em concentração,

apagando toda ligação interna ou externa em repouso unifocado e sereno. Como há uma identidade

pessoal, agindo sobre toda a ação, diz-se de uma meditação ―impura‖, mais a frente, a meditação

―pura‖ surge, da qual não há o bloqueio da ação sensorial, o corpo se encontra em completa atenção

e concentração, imperturbavelmente, com foco nas ocorrências de todas as direções (SAMTEN,

2001).

Segundo Irani Wullstein (2009), em sua tese ―Yoga, Meditação e Silêncio‖, no Yoga, a

meditação,

[...] conduz o homem, por meio de um processo progressivo de auto-disciplina e

purificação da mente, ao caminho da suprema libertação. As agitações da mente, que

existem em diferentes graus e sutilezas, vão progressivamente cessando. Ela se torna mais

tranquila, após um longo tempo de prática de meditação silenciosa. Este processo, embora

pareça muito simples, não o é, devido às fortes tendências presentes em cada um de nós

(WULLSTEIN, 2009, p. 193).

De modo gradual, a meditação conduz a anulação dos condicionamentos, traz de volta a

autonomia. Ao se dedicar à prática; a predisposição, tendências e preconceitos vão se libertando,

alcançando um estado desamarrado de flutuações, até atingir a ―Cosmo-experiência‖

(WULLSTEIN, 2009). Esse processo de libertação de condicionamentos está muito relacionado à

etapa posterior à concentração da Conversa Corporal: a improvisação, que nos possibilita a

autonomia e liberdade, contribuindo ao desprendimento rigoroso de predefinições e estruturações

codificadas, porém, sobre isto, discutiremos mais afundo posteriormente.

Na pesquisa de Leal (2012a), Pratyahara e Dhyana são propostas a partir de fundamentos do

yoga, trazido por um dos tradicionais textos indianos – yoga-sutras de Patânjali. Contextualizando

sinteticamente, o iogue hindu Paramahamsa Yogananda (1946) – primeiro mestre indiano que viveu

no Ocidente – no livro Autobiografia de um iogue, explica:

O sistema de ioga de Patânjali é conhecido como Senda óctupla. Os primeiros passos. 1.

yâma, conduta moral, e 2. niyâma, observâncias religiosas. Yâma compreende: evitar

ofender ou prejudicar os outros, falar a verdade, não roubar, conservar a castidade e não

ambicionar o que é alheio. As prescrições de niyâma são: pureza de corpo e de mente,

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contentamento em todas as circunstâncias, autodisciplina, estudo de si mesmo

(contemplação) e devoção a Deus e ao guru.

Os passos seguintes são: 3. ásana (posição correta); a coluna vertebral deve manter-se ereta,

e o corpo firme, em posição confortável para a meditação - 4. pranayâma (controle de

Prana, correntes vitais sutis); e 5. pratyahára (retirar dos objetos exteriores os cinco

sentidos; abstração).

Os últimos passos são formas de ioga propriamente dita: 6. dhárana (concentração), manter

a mente numa só idéia; 7. dhyâna (meditação) e 8. samádhi (experiência superconsciente).

Esta Senda óctupla de Ioga leva à meta final de Kaiválya (O Absoluto), em que o iogue

experimenta a Verdade, acima e além de toda compreensão intelectual (YOGANANDA,

1946, p. 206).

Voltando à pesquisa de Leal (2012), focaremos nos passos 5 - pratyahara e 7 – dhyana do

sistema de ioga de Patânjali, adaptados pela autora à processos de criação:

De acordo com a interpretação de Mehta (1995), pratyahara significa ato de recolhimento,

também pode ser traduzido como abstração, como um processo de eliminação. É o lugar de

encontro entre o mundo exterior e o interior, e para que esse processo possa acontecer é

preciso ser capaz de eliminar o supérfluo, permanecendo apenas os aspectos relevantes de

uma situação (LEAL, 2012a, p. 84, grifo do autor).

―Pratyahara envolve todo o processo de percepção; os sentidos como transmissores de

sensações ao cérebro, que processa e transforma essas sensações em percepção‖ (LEAL, 2012a, p.

84, grifo do autor). Mas, para que isso ocorra, é necessário a não intervenção antecipada da mente.

Os sentidos têm liberdade e flexibilidade, reeducando-os, já que é comum a interferência e

julgamento da mente, antes da completa ação perceptiva, perdendo a iniciativa dos sentidos (LEAL,

2012a).

Dhyana ou processo meditativo pode também ser traduzido como atenção, ―Dhyana é o

processo de observação do fluxo de pensamentos, sem interrupção, julgamentos ou identificações‖

(LEAL, 2012a, p. 86, grifo do autor). Uma atenção sem esforço em relaxamento da ação, um

repouso no presente voltado ao nosso centro (LEAL, 2012a).

Leal (2012a) aproxima-se dessas propostas em seu trabalho com os sentidos. Em

pratyahara, a aproximação se dá ao procurar o reconhecimento do primeiro movimento pela

percepção dos sentidos, dessa forma, busca a ampliação da consciência relacionada ao movimento,

como uma maneira de não se envolver com os bloqueios, distorções e julgamentos anteriores ao

processo perceptivo, de forma consciente:

Busco o melhor desenvolvimento de sentidos tão esquecidos como o olfato e o paladar,

focalizando-os totalmente, compreendendo totalmente os movimentos decorrentes desta

percepção sem negar a memória, os processos mentais, as lembranças que ocorrem, mas

simplesmente focalizando a memória na percepção, sentindo de forma concentrada essa

percepção e seus movimentos (LEAL, 2012a, p. 85).

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A focalização da percepção no ponto de origem do movimento contribui à reeducação dos

sentidos, para a proposta metodológica de Leal (2012a), essa focalização se aproxima de dhyana. O

objetivo final, em seu trabalho, não é a meditação, mas sim, a criação, porém, a autora entende

pratyahara e dhyana conjuntamente para facilitar a compreensão da utilização dos sentidos e à

necessária atenção em sua proposta. Nesse sentido: ―O intérprete se abre à percepção dos sentidos e

pode observar seu fluxo de pensamentos sem se envolver com eles, focalizando o movimento

decorrente da percepção dos sentidos‖ (LEAL, 2012a, p. 86).

Nos laboratórios, é necessário o recolhimento de pratyahara, dando maior relevância a

situações que poderão ser trabalhadas nos encontros. Mantendo a atenção de dhyana percebendo os

pensamentos ao mesmo tempo em que o corpo repousa e direciona a observação interna.

Nas experiências com a concentração da Conversa Corporal, o grupo percebeu ser

extremamente necessária essa etapa do procedimento, pois, prepara o corpo para o que vem a

seguir, sendo um momento de repouso e calmaria do corpo, em que se tem a oportunidade de

refletir sobre o tema, antes de explorá-lo. Além do que, possibilita a conexão consigo mesmo, com

os outros corpos e energias que nos envolvem naquele instante, aflorando a percepção e a

generosidade à escuta do(s) corpo(s). Mais uma vez, destaco essa etapa, não como uma prática fiel

meditativa, mas sim, como uma capacidade em amoldar suas características às práticas relacionadas

à dança e, especificamente, para esta pesquisa, potencializar os processos de criação.

Aos poucos, os olhos se abrem e o corpo começa a se mover, passamos a atentar-nos

também aos outros corpos para dialogar. A observação interna não é deixada de lado, neste

momento, mas passamos a dar espaço também às percepções correspondentes ao ambiente em que

nos encontramos: corpos que dialogam no mesmo espaço; sons, música, ruídos e o que o corpo

toca, vê e sente.

Repetição e processo ininterrupto

O ―start‖ investigativo é dado por uma pessoa que é respondida pelas outras, e assim

sucessivamente, construindo um diálogo constante entre os corpos que se mantêm em fluxo através

da improvisação. Ao mesmo tempo em que, a pesquisa de movimentos acontece, Larissa cria o

ambiente sonoro junto com as conversantes, utilizando de instrumentos variados e voz, conversando

também na cena.

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Sem tempo definido para acabar, a pesquisa em laboratório caminha, até o momento, em que

as conversantes e a condutora percebem que não tem mais para onde evoluir e, então, rememorar o

que foi criado, revisitando os caminhos traçados, os movimentos desenhados, a conversa que foi

proporcionada, porém, sem necessariamente repetir fielmente o que foi produzido, mas fazendo da

repetição uma forma de atualização, renovação, releitura, descartando o que de fato não teve muito

sentido ou não foi tão importante para o diálogo, proporcionando a conversa a se manter sempre

fluida.

Compartilho da ideia de repetição apresentada por Rosa Hércoles (2011): ―[...] o aprendizado

só é possível quando o corpo está exposto à repetição. Contudo, não se trata de uma ideia de repetição dentro

de parâmetros mecanicistas, mas sim, de um tipo de repetição que não descarte sua possibilidade de

atualização‖. (HERCOLES, 2011, p. 28).

A repetição é parte constituinte da dança. Ciane Fernandes (2007) na obra Pina Bausch e o

Wuppertal dança–teatro: repetição e transformação, escreve sobre os processos de criação e

espetáculos realizados por Pina Bausch e o Wuppertal, analisando o recurso da repetição,

característica presente nas obras da artista. Antes de entrar na repetição utilizada pela alemã e a

repetição dos laboratórios da Conversa Corporal, convém comentar brevemente sobre a repetição

na dança:

Em sistematizadas técnicas de dança, como o balé clássico e muitas formas de dança

moderna, a repetição é parte do treinamento e do processo criativo. Durante anos na vida

dos dançarinos, a repetição diária dos exercícios e de sequências de movimento pré-

estabelecidas é um método básico para o aprendizado técnico. Durante o processo criativo

de peças de dança, a repetição é usada por alguns coreógrafos como um instrumento formal

de composição, conectando movimentos e frases de movimentos. A repetição é também

usada por muitos coreógrafos para ensinar a sequência aos dançarinos, que repetem os

movimentos com seu criador e depois sozinhos, para memorizá-los. Deste modo, a

repetição é usada pelo professor de dança, pelos coreógrafos, ou pelo próprio dançarino,

para construir ou rearranjar e confirmar vocabulários de movimento no corpo dançante.

(FERNANDES, 2007, p. 46)

Nos ensinos mais tradicionais de dança, a repetição é muito presente, diariamente, o

exercício da memorização é realizado durante as repetições de sequências, que fazem parte da

evolução da aula e apreensão do aluno. Nos processos de criação a repetição pode ter a finalidade

de ser usada como ferramenta para a construção de cenas e frases de movimento e também como

forma de memorizar e aprimorar o que foi construído.

Fernandes (2007) considera a repetição como fundamental a qualquer aprendizado social,

apoiada em uma disciplina, que tem como base, ciclos de repetição organizados e fragmentados

temporalmente, influenciando as maneiras pessoais de expressão e percepção. Bausch utiliza desse

aprendizado pela repetição social, como forma de inversão, com o intuito de lançar novas

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percepções e expressões com olhares críticos, criticando, inclusive, também, a repetição como

método de disciplina social em relações de poder.

Nas práticas tradicionais tecnicistas, como o ballet clássico, podemos observar

rotineiramente a repetição do início ao fim da aula, assim como também, durante os ensaios para

algum espetáculo:

Numa tendência igualmente positivista, o balé desenvolveu-se como um sistema de

repetições para promover o domínio do corpo humano, apagando suas ―falhas‖ e tornando-

o tecnicamente e expressivamente ―perfeito‖ [...] A repetição coloca bailarinos

supostamente perfeitos como imperfeitos e doentes, o que então passa a ser associado como

o normal e até cinicamente louvável. (FERNANDES, 2007, p. 108).

Dependendo da metodologia de ensino e da maneira com que a execução da repetição é

realizada, as ―falhas‖, que tentam ser apagadas, podem se tornar crônicas e a ―perfeição‖, tão

almejada por bailarinos e professores, é mais difícil de ser alcançada. Por vezes, o que é ensinado

como ―ideal‖ em dança acaba priorizando mais o produto final e menos o processo, no qual, o

produto deve estar o quanto mais aproximado dos desejos do coreógrafo, como diz Fernandes

(2007),

O treinamento dos dançarinos, em aulas ou ensaios, é apenas um meio que não deve ser

exposto. Na apresentação final, mostram suas incríveis habilidades, que parecem inatas ou

decorrentes do talento pessoal, quando de fato resultantes da disciplina repetitiva. A peça é

preparada para uma plateia, mas esta dependência não é incluída e explorada na

coreografia. Este é o caso da maioria das formas técnicas de dança, clássica ou moderna.

(FERNANDES, 2007, p. 126-127)

Acredito que grande parte da pesquisa em dança se faz durante os processos criativos e seu

desdobramento se dá com a apreciação estética do público e a experiência dos intérpretes,

proveniente desse encontro com os apreciadores. Tanto processo quanto o momento da apreciação

são de igual importância, sendo o produto parte do processo e vice-versa.

Além do aprimoramento técnico, de início, a repetição colocava a dança como algo à parte

das sensações e personalidade dos bailarinos, e era vista como uma representação (FERNANDES,

2007). Para a Conversa Corporal, colocamos as sensações e o intérprete como ênfase para um

processo de criação, sem descartar seus desejos e sentimentos, mas trazendo-o como peça

fundamental ao trabalho.

Jussara Setenta (2008), ao refletir sobre a repetição na performatividade, define-a como

reformulação, como citação: ―[...] a citação é trabalhada para deslocar ações ―soberanas‖ e diminuir

seus ―efeitos‖ além de desconsiderar ―seu poder‖. A repetição, na forma de citação, faz com que se

constitua a possibilidade de se fazer diferente, de reconfigurar aquela marca já existente‖

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(SETENTA, 2008, p. 102). Neste caso, a citação corrobora para a diferença e renovação de

identidades artísticas.

Para os processos criativos, Fernandes (2007) nos apresenta exemplos de repetições formais:

As repetições formais incluem: A exata repetição de uma frase de movimento

(―Obsessiva‖); a repetição de uma cena com sutis diferenças (―Alternada‖); a repetição do

mesmo evento em diferentes contextos (―Intermitente‖); a repetição de eventos previamente

separados, agora simultaneamente na mesma cena (―Longo Alcance‖). (FERNANDES,

2007, p. 43)

Durante nossos laboratórios, podemos determinar a repetição utilizada como ―Alternada‖, a

partir de Fernandes (2007). Repetimos as cenas construídas sem nos preocuparmos com exatidão,

permanecemos dentro da ideia inicial, geralmente, sem grandes modificações, mas, com liberdade

para propostas.

Para os trabalhos de Pina Bausch, Fernandes (2007) aponta o uso de repetições ―Obsessivas‖

e ―Alternadas‖ que intensificam os movimentos de maneira a transformar suas formas e fazer surgir

outros significados, antes atribuídos, trazendo a repetição como sinônimo de mudança, sem

confirmar ou negar o que suscitou, mas, desorganizando gestos técnicos e sociais, posto que

ressignificam histórias e fragmentam experiências.

Bausch os guia na manipulação e transformação de suas próprias histórias. E esta

experimentação estética pode continuar quando a peça já está em cartaz (...). Não há

necessariamente uma separação entre processo criativo e produto final – sendo ambos

marcados pela repetição e transformação das histórias pessoais dos bailarinos. De fato, as

peças estão em constante processo. (FERNANDES, 2007, p. 52).

Assim como Bausch não propõe uma separação entre processo de criação e produto final,

mas sim, um processo constante, a Conversa Corporal caminha por essas ruas. A partir de nossas

experimentações, surgiu o trabalho artístico Parla com o intuito de ser levado para cena, um

trabalho que está em constante processo e investigação, não temos a presunção em estruturar e

fechar, mas de permitirmo-nos sempre nos mover, conforme nossos desejos, com a ideia de

liberdade.

O sociólogo Zygmunt Bauman (2001), em sua obra Modernidade Líquida, discorre sobre a

incompletude de se tornar algo ou alguém dentro de uma sociedade, essa sensação de inacabamento

mantém a liberdade em contínua construção: ―Estar inacabado, incompleto e sub determinado é um

estado cheio de riscos e ansiedade, mas seu contrário também não traz um prazer pleno, pois fecha

antecipadamente o que a liberdade precisa manter aberto‖ (BAUMAN, 2001, p. 81).

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Compartilho da opinião deste autor, no que diz respeito aos riscos e ansiedades,

relacionando a ideia de um trabalho artístico em continuidade, na qual uma obra inacabada e aberta

pode estar exposta, as possibilidades podem dar certo ou errado. Mas, passo a me questionar o que é

certo e o que é errado na dança, essas definições perdem o sentido neste enfoque. Com a sensação

de liberdade ao mover, conseguiremos acesso ao trabalhar em aberto.

Para melhor compreendermos essa visão em relação a uma obra inacabada, Salles (2008)

explica tal concepção processual dos trabalhos, apontando que:

Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o

inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse - seja um romance, urna

peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico - como uma possível

versão daquilo que pode vir a ser ainda modificado. Tomando a continuidade do processo e

a incompletude que lhe é inerente, há sempre uma diferença entre aquilo que se concretiza e

o projeto do artista que está por ser realizado. Sabemos que onde há qualquer possibilidade

de variação contínua, a precisão absoluta é impossível. Nesse contexto, não é possível

falarmos do encontro de obras acabadas, completas, perfeitas ou ideais. A busca, no fluxo

da continuidade, é sempre incompleta e o próprio projeto que envolve a produção das

obras, em sua variação contínua, muda ao longo do tempo. O que move essa busca talvez

seja a ilusão do encontro da obra que satisfaça plenamente. (SALLES, 2008, p. 20)

Podemos encontrar o processual, não apenas em trabalhos artísticos, mas em tudo aquilo que

se pretende desenvolver, buscando sempre a atualização e evolução, a mudança e a disponibilidade

a novas leituras e formas de refletir sobre o objeto em questão. Afinal, a ideia inicial dificilmente se

manterá fiel, até o fim, se estiver exposta aos relacionamentos causados pelos encontros que, de

certa forma, interferem e ramificam as linhas de pensamentos.

A fluidez só é possível se, de fato, deixarmos fluir, transformar-se, assim como, na natureza

da vida, nossos corpos se transformam com o decorrer dos anos; tanto no sentido estrutural, quanto

no sentido intelectual e sensível. Portanto, ―Não se trata de uma desvalorização da obra entregue ao

público, mas da dessacralização dessa como final e única forma possível‖ (SALLES, 2008, p. 21).

Há uma beleza sem igual em trabalhar com corpos tão disponíveis e sem medo de arriscar,

talvez a beleza da dança para os bailarinos esteja nas oportunidades em experimentar, poder usar o

que o corpo lhe oferece e o corpo não só como algo material/físico, mas um corpo que sente,

percebe e transborda em vida.

O dançarino é um corpo inteligente e crítico, capaz de mover-se e falar, praticar e teorizar,

sem evitar o que parece contraditório. A dança e a vida não consistem em descobrir e

afirmar a Verdade, mas em questionar e jogar com os sistemas que a pré-definem. Antes de

tudo, Bausch nos faz confiar em nossos corpos, entendendo e escutando suas ambíguas e

mutáveis formas de conhecimento. (FERNANDES, 2007, p. 142)

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Cito, uma vez mais, Ciane Fernandes (2007) ao escrever sobre o sensível trabalho de Pina

Bausch que usufrui da inteligência dos corpos, corpos que não somente executam e pretendem

chegar à ―perfeição‖ de passos e técnicas, mas corpos que têm potencial criativo, potencial esse que

é explorado através de suas histórias, memórias e sentimentos, com a liberdade em questionar e

apresentar a vida a seus apreciadores.

A importância do registro: diários

Após esse procedimento de repetição, durante o laboratório, escrevemos, nos diários de

bordo, as sensações, sentimentos e emoções que foram acessadas, naquele momento em diálogo,

registrando de que forma esse acesso influenciou o mover e, consequentemente, na conversa com as

demais, como se deu o afeto entre as conversantes, o que foi acessado ao escrever o que se sente, o

que impulsiona a mover e outras percepções, que cada uma julgasse importante ser escrito,

desenhado ou qualquer outra forma possível ou encontrada para comunicar o que foi

experimentado.

Salles (2008) aponta a importância de documentos como anotações em diários,

correspondências, notas de viagem, biblioteca – citando alguns exemplos para a observação das

relações que envolvem os artistas em suas conexões de criação:

Os documentos registram muitos momentos de intensidade, nos quais relações ficam claras:

ele tudo olha, recolhe o que possa ser de interesse, acolhe e rejeita, faz montagens,

organiza, ideias se associam, formas alternativas proliferam e pesquisas integram a obra em

construção. Enfim, um turbilhão de possibilidades interativas (SALLES, 2008, p. 40).

Os diários de bordo são importantes registros para a pesquisa e documentação dos

laboratórios, é parte significativa ao guiar a pesquisa e análise dos sentires. É possível perceber

intensidades e profundezas em que os corpos permitem-se mergulhar, pois aqui encontrei a

possibilidade em fazer relações entre os diários, organizá-los em um só. Esses registros, muitas

veze, são capazes de rememorar detalhes não correspondentes somente ao movimento físico, mas

ao movimento carregado por memórias, afetos e histórias, que, por vezes, o registro em vídeo não

consegue captar, pois ―Seus relatos, desse modo, trazem de volta a experiência múltipla e vívida

que alimentou toda a reflexão‖ (SALLES, 2008, p. 16).

Porpino (2014) reflete que os diários são capazes de registrar narrativas escritas em suas

possibilidades de imersão sensível da experiência. Sua perspectiva de narrar, porém, não é

observada como apenas a descrição de fatos ou informações, mas de também, ―[...] expressar as

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circunstâncias nas quais uma situação foi vivida e compartilhada para ali colocar a vida do narrador

[...]‖ (PORPINO, 2014, p. 48).

Luana Menezes de Oliveira (2015) aborda o corpo enquanto um corpo-diário, pela

capacidade natural de registrar experiências, memórias e toda a vivência histórica que aquele corpo

carrega consigo mesmo, sendo o diário de bordo uma extensão da vida em suas experiências,

[...] é importante compreender que os diários, assim como toda escrita de si, é sempre uma

leitura do acontecido por quem o viveu e foi atravessado por ele. As escritas de si são

sempre interpretações sobre o vivido, pois são filtros que dão cor, som, textura e sabor a ele

(OLIVEIRA, 2015, p. 28).

O diário, como sendo um material autobiográfico, abarca não apenas a descrição da

realização de fatos acontecidos, tal qual implica, emocionalmente, os fatos. Despertamos, dentre as

experiências, diversas sensações que, por sua vez, se tornam memórias ou as revisitamos, o que, a

cada dia (re)constrói o que somos.

O material autobiográfico abarca o vivido, o sentido, o experimentado, não apenas aquilo

que o ator efetivamente realizou, mas tudo aquilo que se realizou nele, tudo que leu,

observou, julgou, tudo que o afetou e atravessou. Nesse sentido, o material de criação está

incrustado no corpo, compondo-o e fazendo dele o corpo que é. Tudo que vivemos,

sentimos e experimentamos está no corpo que somos. Tanto que, por vezes, o corpo

somatiza processos emocionais e psicológicos, sendo a somatização justamente uma forma

de comunicação dos registros emocionais ancorados no corpo (OLIVEIRA, 2015, p. 28,

grifo do autor).

Oliveira (2015) revela o diário composto por elementos diversos, justamente por não ter a

pretensão de serem feitas grandes correções e planejamentos, mas visto como uma escrita fluida e

corrente, e reforça como todo corpo de algo e como toda escrita, apresenta suas fissuras, rabiscos,

pausas e silêncios.

Assim como na própria pesquisa laboratorial, as escritas nos diários não tinham a intenção

em seguir linhas de pensamento ou responder a questões fixas, deveriam acontecer de forma fluida,

da maneira em que cada experiência vinha à tona às conversantes, e como elas gostariam de

expressar suas vivências nos papéis.

Dessa forma, o diário nos proporciona essa autonomia e liberdade de escrita.

Um outro aspecto que envolve a criação é que a continuidade do processo, aliada a sua

natureza de busca e de descoberta, leva-nos a encontrar formulações novas, trazidas por

este elemento sensorial do pensamento, ao longo de todo o processo. Sob esta perspectiva,

todos os registros deixados pelo artista são importantes, na medida em que podem oferecer

informações significativas sobre o ato criador. A obra não é fruto de uma grande ideia

localizada em momentos iniciais do processo, mas está espalhada pelo percurso. Há criação

em diários, anotações e rascunhos (SALLES, 2008, p. 36).

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Podemos perceber, então, os diários como parte do trabalho criativo, sendo ele próprio,

também, criação, mesmo não sendo apresentados literalmente à cena como foi o caso de Desnude

de Oliveira (2015), além de serem elementos de orientação compositiva, por si só, já são criações.

Finalizamos, abrindo a discussão em roda, a fim de trocar as experiências daquele encontro,

aproximando percepções que tiveram relações, as adversidades, diferenças entre as respostas

corporais e similaridades. Como aponta Leal (2012) ―A percepção é única e acontece de acordo

com a história, a memória e o relacionamento do individual com o coletivo, do corpo com o mundo,

do eu com o outro‖ (LEAL, 2012, p. 124).

O que nos interessa são as singulares percepções que entram em contato com o outro e o

mundo, e o mais importante é perceber os inúmeros desdobramentos, a partir de um tema em

comum, e utilizado ao mesmo tempo, mas que estão abertos aos afetos, sendo importante essa troca

de percepções para a construção de sentido e experiências de vida em compartilhamentos de dança,

uma dança que atravessa os corpos.

Diálogos improvisativos

Apresento a improvisação como forma de diálogo em dança, aproprio-me dela para o

florescer das criações da presente pesquisa, sendo passo primordial do procedimento da Conversa

Corporal. Para tanto, trago ao diálogo a abordagem da pesquisadora Patrícia Leal (2012a), em seu

livro Amargo Perfume: a dança pelos sentidos que desmistifica equívocos comuns correspondentes

ao pensar sobre improvisação, até mesmo, dentro da própria área da dança, ainda relacionando,

preconceituosamente, o termo a algo feito sem preparação. O que é um engano, uma vez que, para

improvisar, requeremos de dispositivos mais complexos,

[...] para improvisar em dança é preciso colecionar ampla experiência motora, capacidade

de conexão e transformação dos movimentos e muita técnica. A improvisação requer do

bailarino mais habilidade e experiência profissional do que para executar uma estrutura

coreográfica fechada. Isto porque a estrutura exige o aprendizado de movimentos

previamente definidos, já a improvisação exige muito mais repertório, vocabulário de

movimentos e capacidade de lidar com a criação e a interpretação no momento de sua

execução, transformando, renovando e descobrindo, a cada instante, novos caminhos. A

improvisação pode conter estruturas estabelecidas, mas elas se concretizam no momento da

cena, transformando-se continuamente. (LEAL, 2012a, p. 57)

O bailarino necessita dispor de amplo repertório de movimentos; saber lidar com o

imprevisível e a capacidade de compor, em tempo real, procurando novos meios de se reinventar e

criar, estando em concomitante investigação e disposição para novas possibilidades de criação.

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Meyer; Mundim e Weber (2013) ressaltam que a improvisação não faz uso desse

vocabulário de movimentos, de forma a imitar ou copiar tal qual o seu repertório. Há pesquisa

profunda para descobrir possibilidades que criam acontecimentos e motivam imagens. Até mesmo o

que é costumeiro ao corpo, podemos nos perceber transformados, se houver um trabalho em

ressignificar o que já nos é habitual.

Partindo da elucidação de que para improvisar é imprescindível ter conhecimentos, Leal

(2012a) compara com a música, em que no jazz, a improvisação é encontrada como elemento

característico, explanando que o músico deverá entender profunda e detalhadamente sobre música

em seus componentes harmônicos, de escalas, ritmo, métrica entre outros elementos, para, então,

poder transitar entre possibilidades em suas escolhas improvisacionais. Do mesmo modo, se dá na

dança,

[...] para improvisar, devemos conhecer o movimento, suas possibilidades dinâmicas e

qualitativas de expressão, sua estruturação em relação ao espaço, suas possibilidades de

fraseado e variações em complementaridade, antagonismo, acumulação... Consciência

corporal, consciência das estruturas do corpo e sua organização, amplo conhecimento da

história sociocultural em que este corpo está inserido e as implicações que isto traz na

construção simbólica também são fundamentos à improvisação. (LEAL, 2012, p. 59)

Para tanto, o ato de improvisar não diz respeito somente ao conhecimento de suas

possibilidades espaciais, do movimento e suas qualidades e dinâmicas e diversidade de variações

expressivas, mas também, à consciência do corpo em seus aspectos anatômicos, históricos e

culturais que afetam o mover corporal.

Ademais, a improvisação exige presença, estar presente no momento. Para tal, necessita de

uma entrega, já que tudo acontece em ―tempo real‖. E para saber agir, durante essas situações

emergentes da improvisação, demanda-se tempo e dedicação, perceber quando, como e o que

proporcionarei e que técnicas fundamentam-me. Sendo que a percepção ocorre no ato, no agora, no

presente, durante o fazer e o pensar, estando aberto às possibilidades em manter, mudar e transitar

entre ações e propostas (MEYER; MUNDIM; WEBER, 2013).

Propor-me a vivenciar a improvisação equivale a estar em constante pesquisa, em que a

percepção e atenção são parte fundamental para trabalhar com os relacionamentos, seja com outros

corpos e ambiente, tudo o que corresponde ao seu entorno (RAMOS; SILVA, 2015). Ramos e Silva

(2015) apontam que a improvisação em dança, de um modo geral, tem direcionado seus estudos em

três maneiras de trabalho específicas: ―[...] como proposta de formação de bailarinos; [...] como

técnica de atuação individual ou coletiva; [...] como poética de criação da cena‖ (RAMOS; SILVA,

2015, p. 142).

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Ao abordar a improvisação enquanto técnica corporal, Leal (2012a) defende a improvisação

não como técnica, mas técnicas, as quais são integradoras de preparação corporal, interpretação e

criação, considerando-os aspectos unidos, mas que podem ser evidenciados, com maior ênfase, nos

diferentes processos, de acordo com cada momento, porém, sem nunca separá-los.

Por exemplo, na exploração e seleção de movimentações para a criação, a improvisação é

utilizada como meio criativo. Neste caso temos ênfase na criação. Na seleção de material

pode-se verificar a dificuldade de realização de alguns movimentos, assim a improvisação

pode servir como recurso investigativo, trabalhando a espacialidade do movimento, suas

qualidades, ações. Da mesma maneira, quando colocado em cena, o material criativo em

improvisação enfatiza o aspecto interpretativo, ou seja, da execução criativa dos

movimentos em cena. (LEAL, 2012, p. 58)

Vale ressaltar que compartilhamos da ideia de técnica, pensada aqui, de acordo com a

definição de Jussara Miller (2011): ―[...] como processo de investigação e não apenas como o

resultado almejado de habilidades, há a possibilidade de clarificar que técnica tem movimento e que

não se fecha em si [...]‖ (MILLER, 2011, p. 150). Portanto, não necessariamente, ao trabalhar uma

técnica, precisamos nos apoiar em ensinamentos fechados, objetivando alcançar aptidões esperadas,

mas como uma possibilidade de pesquisa e formas de refletir sobre a dança.

Nos procedimentos investigativos da Conversa Corporal para esta pesquisa, encontramos os

três aspectos definidos por Leal (2012a) – preparação corporal, interpretação e criação – realmente

interligados, mas pode-se observar que a ênfase é dada à criação, investigando movimentos com

propósito criativo.

Além dos aspectos que integram as técnicas de improvisação, a prática se dispõe a várias

finalidades: ―[...] como recurso de exploração de movimentos para uma composição coreográfica,

como recurso investigativo de um tipo de movimento para desenvolvimento interpretativo, como

resultado artístico final.‖ (LEAL, 2012a, p. 61). Sendo a experiência da improvisação uma

potencializadora de diversos aspectos, tais como:

[...] ampliação do vocabulário corporal e de estudos de movimento; o desenvolvimento da

‗flexibilidade‘ em relação aos processos de criação; a ampliação da percepção sensível do

nosso entorno (espaço, tempo, direção, fluxo, etc.); a escuta das possibilidades de relação

com o outro; a autonomia para assumir certas ‗posições políticas‘ e posturas frente a

diferentes tipos de situações (RAMOS; SILVA, 2015, p. 142).

Como a Conversa Corporal acontece, decorrente dos relacionamentos estabelecidos, durante

a pesquisa em improvisação, faz-se importante ressaltar apontamentos sobre o coletivo, para tanto,

Ramos e Silva (2015) exprimem:

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Ao trabalhar as técnicas de preparação para improvisação entendemos que os

procedimentos de improvisação permitem ao praticante ampliar a capacidade de atenção e

de tomada de decisões, levando-o a escolhas de movimentos a partir das relações que

estabelece com o instante imediato vivenciado. O sujeito passa a tomar decisões sobre uma

obra artística e, ao mesmo tempo, observar a si e a todo o entorno que faz parte daquele

instante criativo. As ações individuais colaboram com as ações coletivas, o sujeito e o

grupo se mesclam, se sintonizam, em experiências artísticas conjuntas sem, contudo, anular

e/ou desconsiderar as singularidades. As experiências particulares dialogam gerando um

material onde a engenhosidade da obra surge proporcionalmente a expansão da

generosidade dos criadores, que se destituem da autoria individual e acolhem a coletiva.

Nesse sentido, improvisar é construir conhecimento, é desenvolver sabedoria, é estabelecer

uma conexão perceptiva e sensível com o espaço ao seu redor, explorando as

potencialidades do espaço e dos seres numa conexão entre corpo e ambiente (RAMOS;

SILVA, 2015, p. 145).

A improvisação nem de longe se apresenta como algo simplório ao fazer dança, a percepção

com o todo e a sensibilidade devem estar constantes nas conversas entre o grupo. A singularidade

não deixa de existir, mas abrimos espaço para a construção coletiva, em que o inverso também é

possível, por isso, a importância em saber agir diante das tomadas de decisões.

Mara Guerrero (2008) aponta propostas de uso gerais de improvisação: a improvisação sem

acordos prévios e a improvisação com acordos prévios, sendo esta última subdividida em duas

classes: a improvisação em processos de criação, da qual os artistas experimentam antes da

apresentação pública; e a improvisação com roteiros, possuidora de condições, regras e acordos

prévios em suas possibilidades, durante a improvisação.

Segundo a autora, na improvisação sem acordos prévios,

Os arranjos ocorrem somente no ato de sua apresentação pública. Trata-se de composições

imprevistas, que contam com revisões acerca das relações habituais da dança. Nas

improvisações sem acordos prévios o processo é desvelado ao público, visto que, não há

ensaios ou pré-definições sobre desenvolvimentos das ações e composições. Esse tipo de

improvisação depende das escolhas realizadas em tempo real. É garantida autonomia de

todos os artistas envolvidos na composição, visto que todos decidem simultaneamente seu

desenvolvimento e formato em tempo real. (GUERRERO, 2008, p. 1-2)

A cena e seu processo de desenvolvimento se dão no ato da apresentação ao público, não há

ensaios e acordos sobre as possibilidades abarcadas durante a improvisação, tudo é realizado em

tempo real. Guerrero (2008) aponta a Jam Session como uma forma de improvisação sem acordos

prévios, é realizada com encontros abertos a artistas e não artistas que se interessem pela prática da

improvisação. Há ainda a Jam em grupos restritos, que conforme a autora ―[...] ocorre entre artistas

que se conhecem, mas não necessariamente treinam ou dançam juntos, e têm a intenção de

experimentar situações nessa configuração‖ (GUERRERO, 2008, p. 2-3).

Relaciono essa proposta à técnica de interpretação definida por Leal (2012a):

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[...] quando utilizada como fim, seja em jam sessions ou como resultado expressivo

valorizando a capacidade em manter uma cena em improvisação, por meio da interpretação

cênica, lidando com a materialidade do movimento, o relacionamento com o público e a

dramaturgia do espetáculo no momento de seu acontecimento (LEAL, 2012, p. 63, grifo do

autor).

A técnica de interpretação está presente em Parla, uma vez que mantemos a cena em

improvisação, construindo sua dramaturgia, em tempo real, e tratando do relacionamento com o

público. Na improvisação com roteiros, segundo Guerrero (2008):

Os roteiros servem como parâmetros, definindo: desenvolvimento da improvisação; e/ou

tipos de movimentos; e/ou relações entre dança e outras linguagens; e/ou relações entre

artistas; e/ou relação com público; etc. São restrições pré-determinadas a serem agenciadas

durante apresentação, mantendo autonomia do artista sobre a composição. (GUERRERO,

2008, p. 4)

Há definições pré-estabelecidas entre o grupo, antes da realização da improvisação

correspondente às relações apontadas pela autora, os caminhos e tipos de movimentos a serem

explorados em seu desenvolvimento,podendo ser correlacionada à técnica de preparação corporal,

que segundo Leal (2012) é: ―[...] utilizada para ampliação de repertório, vocabulário, bem como

ampliação das possibilidades qualitativas e espaciais dos movimentos.‖ (LEAL, 2012, p. 63).

Chego então à proposta de improvisação em processos de criação, cabível a possibilidade

de improvisação, entendida em nossa pesquisa, durante os laboratórios da Conversa Corporal:

Trata-se de processos de criação que contam com improvisação como fomentadora de suas

investigações. Esses processos ocorrem no período anterior à apresentação da dança, são

experimentos realizados entre artistas, durante ensaios, que posteriormente se formalizarão

em composições. (GUERRERO, 2008, p. 3)

No caso da Conversa Corporal, inicialmente, nossas investigações se formalizariam em

composições, mas no decorrer das experiências, entendemos a necessidade do trabalho manter-se

em improvisação, mesmo em apresentações públicas. A proposta definida por Guerrero (2008), de

improvisação em processos de criação, pode ser associada com a técnica de criação, indicada por

Leal (2012a): ―[...] utilizada como meio para dar forma ao processo criativo, por exemplo, na

experimentação e seleção de material coreográfico.‖ (LEAL, 2012a, p. 63). No contexto da Jam

Session, comporta técnica de criação e interpretação, concomitantemente, assim como em Parla.

Leal (2012a) aponta ainda possibilidades de uso da improvisação, podendo ser ―[...] mais ou

menos estruturadas. Com condução ou sem condução externa. Com a definição de um percurso

estabelecido coletivamente ou por meio de uma direção.‖ (LEAL, 2012a, p. 61). Para isso, a

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pesquisadora corrobora com alguns possíveis formatos de definições de improvisação, propostos

por Blom e Chaplin (1988)6:

∙ Contínua alimentação: é quando as instruções são dadas o tempo todo durante o

transcorrer da improvisação por um líder numa contínua estimulação aos participantes.

∙ Pré-estruturada: é a improvisação em que todas as informações são dadas antes do seu

início, o que pode ser feito por um líder ou pode ser decidido em grupo.

∙ Demonstração: é quando o líder demonstra uma qualidade de movimento, uma forma

inicial, uma frase, que motiva a investigação de todos na improvisação.

∙ Conteúdo e estrutura aberta: neste formato a ideia é abrir espaço à livre exploração do

movimento, bem como das maneiras de organizá-lo. Podendo ou não ter um líder ou

observador, sendo em grupo ou solo... (LEAL, 2012a, p. 61)

Podemos relacionar os formatos de ―contínua alimentação‖, ―pré-estruturada‖ e

―demonstração‖ como ―improvisação com acordos prévios‖, já que nestas definições são dadas

instruções, antes ou durante a improvisação e, ―conteúdo e estrutura aberta‖ associam-se à

―improvisação sem acordos prévios‖, por estar o espaço aberto à investigação e suas formas de

organização livremente.

Leal (2012a) exemplifica o formato de ―conteúdo e estrutura aberta‖ em encontros de

improvisação, como também é apontado por Guerrero (2008) as Jams Sessions em ―improvisação

sem acordos prévios‖. Entretanto, Leal (2012a) chama a atenção para este formato como exigente

de intérpretes mais experientes e maduros: ―[...] com iniciantes corre-se o risco do esvaziamento de

recursos técnicos e do conteúdo expressivo, da falta de padrão para um sólido desenvolvimento do

movimento.‖ (LEAL, 2012a, p. 62). Percebe-se que, pela proposta do formato, não disponibilizar de

fios condutores para nortear as improvisações como nos demais formatos, exige-se mais da

criatividade, maior acesso aos recursos técnicos e expressivos e ao vocabulário de movimentos

particular.

Na UFRN, dispomos de um projeto de extensão permanente que foi fundado na

Universidade Federal da Bahia (UFBA), em 2010: Jam Session: momento cênico em movimento7,

que possui a coordenação da professora Patrícia Leal, em encontros mensais abertos à comunidade

acadêmica e artística da cidade e interessados na experiência. As Jams propõem, através da

improvisação em tempo real, pesquisa, criação e dramaturgia. Além dos participantes, o público

também tem livre acesso para apreciação e participação na atividade. Tive a oportunidade em

participar de alguns encontros, sempre dirigidos por Leal, e, por vezes, o aquecimento ou a proposta

inicial era oferecido por um convidado e para somar à pesquisa de caráter improvisativa, há

6 BLOM, L. A.; CHAPLIN, L. T. The Moment of Movement: Dance Improvisation. London: Dance Books, 1988.

Tradução de Patrícia Leal. 7 A saber, acesse https://jamsessionufrn.wordpress.com/

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encontros em que contamos com a participação de intervenções de outras áreas artísticas, além da

dança. Ao fim, sempre é aberta uma roda de conversa, a fim de trocar as experiências, refletir

pesquisas sobre a dramaturgia e construção de sentidos do dia, que une interpretação e criação ao

mesmo tempo.

Leal, ainda, abre espaço à investigação de pesquisas que possam estar sendo realizadas por

grupos e pessoas para serem experimentadas nos encontros, assim como também, já incorporamos

estudos e criações que foram idealizadas durante componentes curriculares.

Percebi nas Jams Sessions possibilidades inúmeras de pesquisa e criação abertas a qualquer

manifestação do corpo, me sentia livre para poder mover-me da forma que desejasse, poderia

cantar, falar, declamar um poema, recitar a letra de uma música, correr para fora da sala, sentar e

observar cenicamente as construções dramatúrgicas, que se formavam e o que sempre mais me

interessou, foi: dialogar com os corpos ali presentes, dispostos a experimentar, desprendidos de

julgamentos. Sede, sede define os impulsos de meu corpo ao participar dos encontros, buscar novas

possibilidades, encontrar participantes da qual tenho afinidade corporal, descobrir diálogos com

corpos, antes não encontrados, apreciar criações desenvolvidas em tempo real, aproveitar momentos

ímpares. Há uma conversa constante entre corpos, espaço, sonoridade, entre outros elementos.

Além do projeto da Jam Session, dispomos na UFRN de uma residência artística

performática IMPROCESSO: diálogos dramatúrgicos em improvisação, também idealizada e

coordenada pela professora Patrícia Leal. A residência tem por objetivo ―[...] investigar a linguagem

da improvisação e a possibilidade dramatúrgica desta linguagem ancorada numa perspectiva

dialógica‖ (LEAL, 2017b, p. 7). Conta com a participação de professores e alunos de pós-graduação

e graduação da UFRN, artistas da cidade e de fora. Alicerçada ao Improcesso está a ―Dança pelos

sentidos‖ de Leal (2012a), como continuidade à pesquisa, a partir de seus percursos metodológicos,

articulando os sentidos da percepção e em desdobramento do projeto da ―Jam Session: momento

cênico em movimento‖ mencionado a cima (LEAL, 2017b). As apresentações públicas, derivadas

da residência, são denominadas de Jam Sense. A diferença entre a Jam Session e a Jam Sense é que,

nesta última, a construção de sentidos em suas possibilidades dramatúrgicas encontra-se melhor

arquitetada. A Jam Sense propõe uma articulação flexível de sentidos elaborada a partir das

experiências em residência artística.

A residência ocorre durante um intervalo de dois anos, até então, foram realizadas três

edições (2013/2015/2017). Na terceira edição (2017), participei dentro da comissão organizadora e

pude dançar de uma maneira diferente da qual me era costumeira: captando imagens fotográficas e

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em vídeo. Senti-me tão dentro, como se estivesse investigando por movimentos corporais como os

participantes. Desejava que, através das imagens, as pessoas pudessem detectar meu olhar atento

aos detalhes, às intensidades, à poesia dos corpos com o espaço e suas comunicações com as

pessoas que ali paravam ou apenas transitavam em meio a interligações artísticas.

Imagem 25 - Residência artística Improcesso 3

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Gabriela Gorges (2017)

A imagem 25 corresponde à segunda etapa do primeiro dia de experimentações do

Improcesso em sua terceira edição, fazendo uso do espaço de uma das salas de aula do

Departamento de Artes da UFRN (DEART).

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Imagem 26 - Performance Poesia e Perfume

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafa: Gabriela Gorges (2017)

A imagem 26 corresponde ao último encontro da residência a ―Performance Poesia e

Perfume‖, realizada no Parque da Cidade Dom Nivaldo Monte, dentro do Memorial da cidade de

Natal. Nas duas fotografias, improvisei dançando através do sentido da visão por intermédio da

câmera8.

Escolhemos a improvisação para a presente pesquisa laboratorial como uma possibilidade

potente, que por seu atravessamento atinge nossas vidas, histórias e memórias. Nesse sentido,

Guerrero (2008) aponta que, atualmente, muitos artistas optam por realizar seus processos de

criação pela improvisação, surgimento de soluções diversas e inesperadas que são imprevisíveis,

através de estudos e desdobramentos de questões em que o artista tem autonomia em processo.

Ao tratar do processo educacional, Débora Barreto (2008), no livro Dança...: ensino, sentido

e possibilidades na escola, apresenta algumas possibilidades, as quais, chama de atitudes dançantes,

consideradas necessárias a uma formação mais sensível dos alunos, dentre elas, a improvisação

aparece como primeira atitude:

8 Para ter acesso a mais imagens e informações: https://www.facebook.com/Improcesso/; https://vimeo.com/149136749

filme experimental resultante da segunda edição do Improcesso com direção, roteiro, fotografia e som direto de Carito

Cavalcanti e edição e finalização de Levi Herrera Gobetti; LEAL, Patrícia. Improcesso: diálogos dramatúrgicos em

improvisação. Natal: EDUFRN, 2017 livro de referência à primeira realização da residência.

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[...] consiste na liberação da imaginação durante o processo educacional. O improviso é

fundamental para que o indivíduo tome contato e aprenda a lidar com os seus

questionamentos, ideias, pensamentos, fantasias, sonhos e com todo o universo simbólico

que é ele próprio. A atitude de improvisar seria mais que uma problematização, pois

improvisar é uma ―viagem‖ que envolve um olhar do indivíduo que se projeta para dentro e

para fora dele, que o coloca diante das suas inquietações em relação a ele mesmo e ao

mundo. Enquanto improvisa, o vaivém dos sentimentos, pensamentos e ações coloca o

indivíduo diante de sua essência e dos caminhos de sua existência (BARRETO, 2008, p. 46,

grifo do autor).

A improvisação, além de ser uma forte ferramenta aos processos de criação, construção de

cena e práticas em aulas, é de grande valia aos processos educacionais nas escolas. Os educandos

experimentam sua autonomia e liberdade, o que estimula a imaginação e a percepção, sem ter o

intuito em empregar valores técnicos de danças já pré-estabelecidas.

Isabel Marques, no livro Dançando na escola (2007), traz a improvisação em dança como

um lugar onde aprendemos a trabalhar com nossas preferências e gostos pessoais, nossas

necessidades de exploração de movimento e espaço, sempre em conexão com o todo, incentivando

o aluno ao conhecimento de si e o respeito para com os outros, aprendendo a agir conforme as

circunstâncias.

A autora traz questões sobre relações interpessoais envolvidas nos processos de

improvisação: ―[...] quando me colocar? Como? Sou sempre aquele que ―cede‖ às vontades do

grupo, ou aquele que ―impõe‖ as vontades próprias ou aquele que equilibra os dois momentos de

ação?‖ (MARQUES, 2007, p. 50).

A pesquisadora correlaciona as experiências com a improvisação aos papéis que exercemos

na sociedade, sendo de grande importância suas discussões em sala de aula, onde se questiona:

quando e como me colocar em determinadas situações que me deparo no cotidiano? Será que

sempre abro mão ou determino meus desejos ou procuro balancear minhas vontades com as dos

demais? ―Atitudes e escolhas em sala de aula podem gerar insights sobre como vivemos e atuamos

no meio social.‖ (MARQUES, 2007, p. 50).

Minhas experiências (concernentes à experiência dançada por meus movimentos e a

experiência dançada por apreciação estética), em sua maioria, foram as mais intensas e

significativas, tanto por explorações do inusitado, quanto pelo despertar sensível. Sobre o sensível,

João Francisco Duarte Júnior (2004), em O sentido dos sentidos: a educação (do) sensível,

distingue a diferença entre o inteligível (conhecer) e o sensível (saber), na qual o inteligível nas

palavras do autor consiste ―[...] em todo aquele conhecimento capaz de ser articulado abstratamente

por nosso cérebro através de signos eminentemente lógicos e racionais, como as palavras, os

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números e os símbolos da química, por exemplo [...]‖ (DUARTE JÚNIOR, 2004, p. 127). Já o

sensível, que nos interessa para esta pesquisa diz respeito,

[...] à sabedoria detida pelo corpo humano e manifesta em situações as mais variadas, tais

como o equilíbrio que nos permite andar de bicicleta, o movimento harmônico das mãos ao

fazerem soar diferentes ritmos num instrumento de percussão, o passe preciso de um

jogador de futebol que coloca, com os pés, a bola no peito de um companheiro a trinta

metros de distância, ou ainda a recusa do estômago a aceitar um alimento deteriorado com

base nas informações odoríficas captadas pelo nosso olfato. (DUARTE JÚNIOR, 2004, p.

127).

O inteligível (conhecer), portanto, corresponde ao intelecto; o sensível (saber) além de

intelectual está ligado ao organismo como um todo (DUARTE JÚNIOR, 2004). O autor ainda

associa o saber ao sabor: ―[...] saber implica em saborear elementos do mundo e incorporá-los a nós

(ou seja, trazê-los ao corpo, para que dele passem a fazer parte)‖ (DUARTE JÚNIOR, 2004, p.

127).

Na improvisação, saboreamos as oportunidades que nos são descobertas, atentamo-nos às

informações do ambiente, a fim de sermos também ambiente. Envolvemo-nos de afetos,

percepções, desejos, relacionamentos; escuta do corpo, dos corpos e do mundo em um processo

intuitivo. Sendo a intuição também referência do saber sensível:

[...] transcende os limites do pensamento e seus caminhos simbólicos, um processo que se

vale de todas as informações possíveis captadas do mundo por meio do corpo como um

todo e que não chegam a ser inteiramente transformadas em representações abstratas em

nossa mente. (DUARTE JÚNIOR, 2004, p. 127)

A intuição, o sensível, o saber, não corresponde apenas a cálculos programados; é vivido,

experimentado, experienciado, com a oportunidade de transformar e sermos transformados. A

pesquisadora Larissa Tibúrcio (2005) aborda o saber sensível como imprescindível à educação e

construção do ser, do artista e criador:

Ao comportar esse saber sensível, que permite a comunicação entre os sentidos e o

entrelaçamento do sujeito e do mundo, que permite, ao mesmo tempo, a criação ininterrupta

de novas possibilidades de se organizar, o corpo oferece indicadores para pensar em uma

educação que ressalte uma visão não dicotomizada do humano, em que o pensamento brota

da liberdade de invenção desse corpo [...]. Um humano que aprende e ensina criando, um

humano que tem seus canais de comunicação sensorial sempre disponibilizados a

estabelecer relações de troca e a produzir significados para o seu viver (TIBÚRCIO, 2005,

p. 125).

De forma a unir o sujeito ao que habita e a tudo que faz parte de si, disponível a trocas que

contribuem ao seu desenvolvimento se reinventando constantemente, a autora ressalta a importância

do sensível, dizendo que:

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A ambiência sensível do corpo no mito e na dança desvela o universo plástico de um corpo

que se ressignifica ininterruptamente, a sua abertura à inovação, à sua condição mutante, à

sua ruptura com a mecanização gestual, à sua não fragmentação homem-mundo,

pensamento-sentimento. Todos esses aspectos que reúnem o saber recursivo, integrativo e

criativo do corpo são significativos para configurar indicadores para refletir acerca de uma

educação sensível, por tratar-se de uma nova possibilidade de leitura do real, a partir da

linguagem do gesto que nele se inscreve (TIBÚRCIO, 2005, p. 134).

O sensível nos possibilita a sensação de liberdade e, por essa forte sensação tatuada em meu

corpo através da improvisação, adotei-a como caminho de criação na Conversa Corporal. A

liberdade que sinto pode ser explicada nos pensamentos do sociólogo Zygmunt Bauman (2001):

―Libertar-se‖ significa literalmente libertar-se de algum grilhão que obstrui ou impede os

movimentos; começar a sentir-se livre para se mover ou agir. ―Sentir-se livre‖ significa não

experimentar dificuldade, obstáculo, resistência ou qualquer outro impedimento aos

movimentos pretendidos ou concebíveis. [...] Sentir-se livre das limitações, livre para agir

conforme os desejos, significa atingir o equilíbrio entre os desejos, a imaginação e a

capacidade de agir: sentimo-nos livres na medida em que a imaginação não vai mais longe

que nossos desejos e que nem uma nem os outros ultrapassam nossa capacidade de agir

(BAUMAN, 2001, p. 26, grifo do autor).

Trazendo o entendimento de liberdade mais próximo aos estudos de criação, Salles (2008)

comenta que: ―[...] liberdade é a possibilidade de fazer escolhas entre várias possibilidades. A

liberdade não é cerceada; ao contrário, essa possibilidade, praticamente infinita, de se fazer

escolhas, seria um espaço de liberdade, tendo as obras em construção como espécie de atratores do

processo‖ (SALLES, 2008, p. 81-82). Ou seja, não existe impedimento aos múltiplos caminhos, há

possibilidades em que a escolha é um ato liberto.

Minhas experiências com improvisação registraram, em minha memória, uma vontade em

me mover livremente, sem necessariamente me relacionar às técnicas de dança, já pré-estabelecidas

ou executar movimentos de virtuose em grandes saltos, pernas altas, giros ou equilíbrios. Tinha

fome de me expressar, conforme desejasse, sem a preocupação de olhos que primam por

virtuosismo e linhas de estética clássica, sem julgamentos e (pre)conceitos sobre o que pode ser

dança ou não, mas fazer a dança que acredito. Porque acredito em uma dança que vai além de

tecnicismo com conceitos conservadores, pois, como exprime Klauss Vianna (1990, p. 48), em seu

livro A Dança: ―A dança – toda arte – tem elementos internos, subjetivos, pessoais‖, explicando que

a dança não é somente artificial e impostada como, por vezes, somos ensinados a acreditar.

Entro então no assunto sobre técnica(s), no qual o sociólogo e antropólogo francês Marcel

Mauss (1974) identifica como a maneira da qual utilizamos nossos corpos, da seguinte forma:

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Eis uma grande quantidade de práticas que são ao mesmo tempo técnicas corporais e que

são profundas em influências e efeitos biológicos. Tudo isso pode e deve ser observado na

área que lhe é própria, estando ainda centenas dessas coisas por serem conhecidas

(MAUSS, 1974, p. 226).

Dentre essas práticas/técnicas corporais mais comuns são citadas pelo autor, por exemplo, as

técnicas do sono, do repouso, da atividade, do movimento, de cuidados corporais, de comer, de

reprodução, entre outras. A pesquisadora Márcia Strazzacappa (2001), ao observar os estudos das

técnicas corporais de Mauss, comenta que sua maior contribuição às nossas reflexões: ―[...] reside

na compreensão de que as técnicas corporais são resultantes de uma aprendizagem permanente do

homem que o acompanha do nascimento até a morte e que esta aprendizagem é balizada pelos

aspectos culturais na sociedade onde este homem se insere‖ (STRAZZACAPPA, 2001, p. 82).

As técnicas implicam todas as ações que são adquiridas, que se diferenciam, de sociedade

para sociedade, em função de cada cultura, sejam apreendidas durante a infância através da

imitação, de forma quase espontânea (inculturação) ou já na fase adulta (aculturação). (MAUSS,

1974; STRAZZACAPPA, 2001).

Dependendo das experiências e visões sobre a dança que cada bailarino, professor, artista

têm sobre técnica, pode estar vinculada a uma prática cristalizada, exaustiva, repetitiva e rigorosa

como único e eficaz meio a alcançar resultados (MILLER, 2011). Cristalizadas no sentido de uma

prática fundada em padrões de defesa, como explica a pesquisadora Ciane Fernandes (2006, p. 302),

―[...] por serem fixos, ou buscarem uma estrutura estável na rigidez corporal (o que inclui espiritual,

mental, emocional, etc.)‖. Ou seja, são inalteráveis e invariáveis, imaleáveis e inflexíveis.

Apesar de ter ocorrido significativas mudanças na estética e ensino da dança, ao longo dos

anos, ainda é muito comum encontrarmos discursos que defendem certas técnicas como base

essencial à aprendizagem de qualquer outra técnica de dança e formação do dançarino. As técnicas

estão aqui, para podermos usufruí-las, contudo, não há a necessidade em fazer uso delas, de forma

extremamente tradicional, pois dispomos de possibilidades de reinterpretação, reflexão,

desconstrução, reconfiguração, conforme a importância e objetivo; sejam para fins pedagógicos,

estéticos ou criativos (GERALDI, 2007).

Ainda é comum ouvirmos, de artistas e estudantes da dança, a generalização de técnica para

dançar, os discursos se relacionam a somente uma técnica específica, sem que se deem conta de que

a dança é abrangente de várias técnicas. Frequentemente, o balé clássico é erroneamente

classificado como ―técnica-base‖, fazendo das outras técnicas apenas complemento à formação. Há

defensores de uma ordem de conhecimentos para a formação em dança, em que o balé se encontra

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como o início, o aprendiz, não passando pelos ensinamentos da técnica clássica, corre o risco de

passar por um processo menos qualitativo (GERALDI, 2007).

O que se espera de técnica de dança fica ainda muito arraigado à formação de décadas atrás,

do ensino mecanicista da dança formal, que entende a técnica como sinônimo de mais alto,

mais rápido, remetendo-a a superação de limites. É comum, ainda nos dias de hoje, que o

treinamento diário e a formação técnica do bailarino de dança contemporânea se baseie no

balé clássico como obrigatoriedade da manutenção e do aprimoramento técnico corporal.

Aqui, o questionamento não é dirigido ao balé clássico em si, mas à dualidade entre o corpo

físico treinado e o corpo criativo expressivo (MILLER, 2012, p. 55).

Além do mais, o pensamento que exalta o balé clássico, como principal dentro da dança,

fortalece ―a visão do público leigo, que carrega o arquétipo da bailarina cor de rosa na ponta dos pés

e contribui para uma visão conservadora e restrita da dança como área de conhecimento na cena

contemporânea‖ (MILLER, 2012, p. 55-56). O que é comum ainda é o fato de que quando

afirmamos: ―eu danço‖ as pessoas levantarem os braços para o alto com a intenção em mostrar uma

posição tradicional do balé clássico, subirem na meia ponta e fazerem um giro em torno de si

mesmas.

Mesmo em grupos, cujo foco principal do trabalho artístico não é o balé clássico, não é

incomum fazerem uso de técnicas específicas, como treinamento diário, o que não há nenhum

problema, porém, a técnica, na maioria das ocasiões, não está sendo usufruída com intuito

complementar ao trabalho, ao contrário, é vista como mais eficaz ou como única forma de

treinamento, ainda tendo como referência padrões tradicionais de ensinamento (MILLER, 2011;

MUNDIM, 2014).

Entretanto, é certo pensarmos que estar à mercê somente da técnica clássica, por exemplo,

como principal formadora artística e de treinamento cotidiano, estaremos aptos a dançar qualquer

outra técnica ou linguagem da dança? Teremos habilidade suficiente para criar e participar de

processos colaborativos em dança contemporânea? É suficiente para improvisar?

Se todos os dias o bailarino é treinado de forma mecânica a adquirir habilidades corporais,

no momento da criação esse corpo virtuosamente treinado pode não estar disponível ao

pensamento criativo. A ferramenta que ele utilizaria para criar pode não ser a mesma que

ele usa para treinar o corpo em adestramento (MILLER, 2011, p. 157).

Sendo a experiência apenas concernente à cópia através de um modelo de movimentos pré-

estabelecidos, ditados pelo professor, com o objetivo de alcançar a perfeição, não há espaço ao

desenvolvimento criativo, o que interfere no processo de formação do estudante (MUNDIM, 2014),

criando assim, como aponta Klauss Vianna (1990), jogos de egos entre bailarinos, professores e

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coreógrafos, e, sem termos essas barreiras derrubadas, fica cada vez mais difícil o trabalho criativo

e a troca mútua de aprendizado.

Almejam-se resultados instantâneos, tornando o processo da construção do conhecimento

algo superficial, não havendo respeito ao tempo que cada corpo necessita, não ocorrendo a

compreensão de que cada corpo possui um tempo. Encontramos, então, talvez, certo egocentrismo

por parte de alguns pensamentos sobre essa ideia de hierarquizar técnicas, mas, conforme Miller

expõe (2011):

Como toda a herança que temos da dança formal está imantada no nosso corpo, algo que

contraponha isso é capaz de parecer como negação e não dança. Assim, a visão de corpo

permanece com uma abordagem dicotômica e mecanicista, ao contrário de uma abordagem

plural, ou seja, considerando as diversas técnicas e os vários caminhos a serem escolhidos e

trilhados. (MILLER, 2011, p. 153)

Então, pode acabar ocorrendo uma separação entre a técnica capaz de formar o indivíduo

enquanto artista e o artista criativo, pois:

De certa maneira, o trabalho do processo de formação técnica do artista em sala de aula

pode ficar um tanto quanto dissociado da criação, tendo em vista que não entrelaça

processo técnico de aula com o processo criativo. Com isso, a prática diária acaba não

sendo a via para transpor para o palco o que se vivencia em sala de aula (MILLER, 2012, p.

55).

O artista é composto por suas múltiplas experiências, o processo criativo e suas vivências

com a criação fazem parte da construção e formação técnica. Quando não há a vivência criativa,

pude perceber, em algumas de minhas experiências em sala de aula, certa resistência da maioria dos

alunos quanto à prática, o que me parece que existe, talvez, um medo de exposição, de vestir um

papel de ridículo, receio do erro e dificuldade em tentar. Assim como discute Thereza Rocha

(2016):

Como pedir de um intérprete que ele crie, que ele escolha, tendo passado anos de sua vida

em uma sala de aula de dança, alienado dos devires do mundo e dos devires estéticos da

arte, sendo muitas vezes ostensivamente humilhado e desinvestido da intimidade de seu

próprio movimento, fazendo de seu corpo, e de si, um instrumento? Se lhes ensinarmos a

fazer passos e não a escolher, provavelmente estamos roubando-lhes correlativamente, por

mais contraditório que possa parecer, a possibilidade de dançar. Até que ponto estamos

dispostos a admitir o artista-em-formação como um agente autônomo e responsável que

escolhe e decide? Este ponto será o limite vivido futuramente pelo intérprete na assunção

autônoma e criativa de sua responsabilidade em decidir kinestesicamente quando dança

(ROCHA, 2016, p. 52).

As técnicas foram criadas conforme cada desejo de expressão e seus interesses pelo

movimento, são possíveis utilizá-las como complemento, auxílio, facilitadoras de umas as outras de

forma que contribuam para o aprendizado e desenvolvimento técnico com maior primor:

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É por isso que afirmamos que as técnicas de dança específicas servem para se dançar

determinadas danças, ou seja, a técnica da dança clássica para se dançar o clássico, a

técnica da dança moderna para se dançar coreografias baseadas nesta estética, a capoeira

para se jogar capoeira e assim por diante. Não há uma técnica que sirva de base para as

demais técnicas. Embora, é claro que um conhecimento corporal anterior pode facilitar o

aprendizado de uma segunda técnica, sendo-lhe complementar. No entanto, as técnicas só

podem funcionar de base para elas próprias (STRAZZACAPPA, 2001, p. 85).

Silvia Geraldi (2007) discorre sobre certo padrão, que envolve algumas técnicas de dança,

que acabam não considerando as diferenças individuais, que não correspondem somente a questões

biológicas do indivíduo, mas que este corpo encontra-se envolto por processos culturais, históricos,

sociais, educacionais e psicológicos, resultando assim, em seleções e privilégios dos mais ―aptos‖ a

tais técnicas.

Esta situação me faz recordar do início de meus estudos em dança, em que claramente

lembro-me de uma fala de um professor que, na ocasião, ministrava aulas de ensino continuado de

dança contemporânea, balé clássico e jazz, da qual eu participava de todas as práticas. O professor

se vira a uma das alunas, na sala, e diz ao restante da turma: ―para mim, é muito mais fácil fazê-la

dançar‖, com este pensamento, o professor referia-se à estrutura física da bailarina – colo de pé

extremamente avantajado, pernas seladas (em forma de ―X‖), magra, corpo naturalmente propício

às exigências do balé (en dehors9 da articulação coxofemoral e flexibilidade), em resumo, obtinha

―linhas de estética clássica‖.

Mas, sabemos que a dança envolve inúmeras características, de acordo com cada objetivo,

poderia ser que nem todos os alunos, desse professor, possuíssem esse corpo almejado por ele para

ensinar, porém, encontraria em outro aluno, maior musicalidade, em outro, facilidade de expressão,

criatividade para compor, entre outras várias virtudes. Cabe ao professor, dentro de cada

possibilidade e compreensão do aluno, potencializar aquele indivíduo, que independente de sua

estrutura corporal, é um corpo dançante, sem precisar segregar preconceituosamente.

Neste caso, escrevo de um ponto de vista da minha experiência, naquela ocasião, não

entendia porque minha dança se tornaria mais difícil do que da aluna citada, meu corpo atende às

características genéticas familiares, não tinha como modificá-lo para que o professor pudesse me

notar tanto quanto a garota.

Como viemos discutindo, a dança não se resume apenas ao balé clássico, notavelmente, esse

físico característico tem sua importância para a dança clássica, apesar de, particularmente, discordar

em parte. Talvez, se minha vontade fosse aquém desses conceitos, não teria continuado a trilhar

entre o universo da dança, e com o tempo, pude perceber que a dança para mim tem uma

9 Termo francês que significa ―para fora‖ utilizado no ensino do balé clássico.

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importância absurdamente maior que qualquer imagem física apresentada e que isso não diminui

meu trabalho, enquanto artista da dança.

Caso contrário, cairemos sempre na obediência de certos preceitos em relação a ideais

estéticos previamente presumíveis e planejados, mas, podemos ir além de tais limites, pensando a

dança como algo ―[...] em que o ser humano se engaja plenamente de corpo, espírito e emoção.

Mais do que uma maneira de exprimir-se através do movimento, a dança é um modo de existir [...]‖

(VIANNA, 1990, p. 88).

Como dialoga Vianna (1990), somos indivíduos diferentes uns dos outros, é impossível

querer que todos sejam iguais ou dancem igualmente, todos são singulares, portanto ―[...] não existe

receita para se fazer arte ou dança. O professor deve apenas aviar a receita [...], mas essa receita é

pessoal, não serve para todo mundo‖ (VIANNA, 1990, p. 26). O autor ainda metaforiza o professor

parteiro que extrai do aluno o que ele tem a oferecer, mas, deve-se haver cautela, pois, assim como

faz florescer, aborta, mata o artista precocemente.

Isabelle Launay (2010) coletou juntamente com Hubert Godard dez depoimentos de pessoas

de gerações diferentes, entre franceses e americanos, de 22 a 70 anos, formados em várias práticas

corporais e que atualmente trabalham na França. Ao reunir vivências de situações, desses

testemunhos, no universo da dança ressalta o consentimento de um saber de autoridade exercida

pelo professor em sala de aula, no qual ocorre: ―[...] porque os processos não são suficientemente

explícitos, ou são tão onipresentes que eles chegam a lhe inibir toda ação, e porque o contexto

técnico, humano, artístico, histórico, político parece ter se ausentado do estúdio‖. (LAUNAY, 2010,

p. 97).

Ou seja, pouco importa quem é o indivíduo que ali se faz presente em uma sala, e o

professor é detentor absoluto do conhecimento, passados, de forma rigorosa, tal qual lhe foi

ensinado, e assim como relata Vianna (1990, p. 25), ―A sala de aula, dessa forma, se torna apenas

uma arena para a competição de egos, onde ninguém se interessa por ninguém a não ser como

parâmetro para a comparação‖, transformando assim, como o mesmo autor define, os indivíduos em

―professor-guru-onipotente‖ e ―aluno-fiel-subserviente‖ (VIANNA, 1990, p. 101).

Conforme os anos passam, as pedagogias, consequentemente, se modificam, o que para uma

época ―funcionava‖, pode não ser tão funcional agora, as técnicas podem, devem e estão em

constante mutação, de acordo com o período em que nos encontramos, e os corpos que hoje

dançam:

Não podemos aceitar técnicas prontas, porque na verdade as técnicas de dança nunca estão

prontas: têm uma forma, mas no seu interior há espaço para o movimento único, para as

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contribuições individuais, que mudam com o tempo. Essas técnicas continuarão existindo

enquanto existir a dança, enquanto existirem bailarinos. Taglioni e Pavlova não

reconheceriam o balé clássico que se dança hoje em dia – que, na essência, é o mesmo balé

clássico de outros tempos. O balé clássico não é dessa ou daquela forma: o balé clássico

está em movimento e continuará existindo enquanto fizer parte do mundo em que vivemos.

A evolução está em todo lugar e a dança não escapa dessa lei. (VIANNA, 1990, p. 67).

Além do que, deve haver uma atenção maior para com as pessoas e onde estão situadas suas

histórias, cultura; adequar pedagogias, conforme as necessidades de cada lugar, situação e

indivíduos. Precisa-se de uma sensibilidade daquele que media uma experiência artística, pois,

A recusa de toda historicidade na formação do dançarino, a recusa em lhe oferecer

efetivamente uma cultura de ordem mais geral, lhe interdita a possibilidade de saber onde

ele está na nossa história, na história de nossos saberes; a começar pela história das

corporeidades, a história da dança e de suas representações coreográficas, história de seu

próprio corpo e a própria história do seu desejo de dançar. (LAUNAY, 2010, p. 99).

Launay (2010) e Vianna (1990) compartilham a ideia de que o ―ensinar‖ o seu gesto a

alguém, compreender e ―perceber‖ o gesto de outro, não significa transmitir a um ―corpo‖, o

―movimento‖, ou apenas, se limitar ao conceito de que um gesto é simplesmente um gesto (forma).

Há uma dimensão mais profunda aí empregada, o gesto de uma pessoa é compartilhado, munido por

questões inerentes ao indivíduo, que o acompanharam/acompanham, durante sua trajetória, que

consequentemente, ao atravessar outros corpos, se transforma, modifica, altera, preenchido pela

historicidade daquele outro ser. Pois, ―O indivíduo é uma totalidade e não pode ser dividido em

fatores intelectuais, sociais e motores. Eles estão todos interligados‖ (VIANNA, 1990, p. 90-91).

Vianna (1990) ainda explicita que:

Não podemos esquecer que o corpo que queremos exercitar é o mesmo com o qual nos

acostumamos a correr, brincar, amar ou sofrer. Quanto mais levarmos em conta essa

dimensão existencial revelada através do nosso corpo, quanto mais considerarmos as

dúvidas e questionamentos que nascem na relação com o mundo exterior, mais proveitoso

poderá vir a ser o trabalho realizado e tanto mais rico o resultado obtido (VIANNA, 1990,

p. 100).

Apesar de muitas pesquisas defenderem as práticas de dança com interesse maior no

processo de conhecimento, e despertar habilidades importantes à própria dança e ao

desenvolvimento pessoal como a percepção, sensibilidade, criatividade, estimular a diferenciar,

relacionar, questionar, criticar, se sobressalta a ideia da prática com foco no resultado, ou seja, ter

notável rendimento em específicas competências motoras, provindas de uma técnica ligada a

modelos de treinamento corporal específico (GERALDI, 2007).

Recentemente, ao assistir uma aula de balé clássico em um workshop de férias,

recorrentemente, a professora se dirigia a um aluno que iniciava na aprendizagem da mencionada

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técnica, mas, já possuía conhecimentos em danças urbanas. Ela corrigia o aprendiz e comentava em

voz alta, na sala, como um dos responsáveis pelo estabelecimento onde ocorria o evento: ―Nossa!

Como ele tem talento!‖ referindo-se, novamente, como o professor anteriormente citado à estrutura

física, biologicamente propensa ao balé clássico; ―você precisa vir para o balé clássico para ganhar

consciência corporal‖.

De fato, o balé clássico nos permite uma consciência de corpo bastante minuciosa, mas, com

isso, exclui-se a consciência que as danças urbanas proporcionam no corpo, já familiarizado, desse

praticante. Podem ser consciências diferentes ou específicas para cada técnica, porém, não devemos

hierarquizar as danças equivocadamente, novamente, elegendo uma ―técnica-base‖.

Apesar desses pensamentos tradicionais, cada vez mais, especialmente nas produções em

dança contemporânea, os dançarinos estão fazendo parte da criação e construção de movimentos e

ideias, estimulando a autonomia. Por mais completa que possa parecer uma técnica de dança, ela

não dispõe de todas as ferramentas necessárias a todas as habilidades, algumas atribuirão maior ou

menor ênfase em conteúdos determinados. Portanto, se faz importante conhecermos e

conscientizarmo-nos sobre cada proposta das variadas técnicas de dança, para melhor fazer uso e

adequar a cada objetivo a ser trabalhado (GERALDI, 2007), uma vez que:

A pluralidade de técnicas corporais é a consequência da pluralidade de corpos. Não há uma

técnica única que possa servir a todos os corpos, nem um corpo que possa se adaptar a

todas as técnicas. A escolha de uma ou de outra técnica é resultado de um processo de

duplo sentido. De um lado, um ato quase espontâneo onde o indivíduo busca uma técnica

que lhe seja familiar, que se adeque ao seu tipo de movimento. De outro lado, num ato

refletido, este mesmo indivíduo pode escolher uma técnica que não tenha absolutamente

nada a ver com sua maneira de ser, mas justamente a opção é feita com a intenção de se

trabalhar exatamente suas carências, ou seja, a busca do equilíbrio entre suas dinâmicas

(STRAZZACAPPA, 2001, p. 83-84).

A técnica não precisa ser rigorosamente pensada como repetição mecânica, mas como uma

repetição envolta de percepções, sensibilidade, experiências e conhecimentos. É um corpo que,

independente de sua estrutura física, busca vivências a partir de seu histórico e desejos em um

processo que vai além da quantidade, por isso, é qualitativo.

[...] o aprendizado da dança, longe de se resumir ao ensino de passos codificados,

embrenha-se em um campo muito mais amplo de aprendizado que perfaz todo o caminho

de conhecer-se como pessoa e estar aberto para viver uma experiência intensa, seja

harmônica, seja desconcertante. Estar aberto para a dança, nesse sentido, é estar aberto para

conhecer-se, mesmo que em segredo, é estar disponível para tomar consciência do fluxo

energético que faz pulsar a existência, querer conhecer suas intensidades, seus limites e

possíveis entraves ainda a descobrir (PORPINO, 2014, p. 50-51).

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Por fim, é necessário deixar claro que não temos a intenção em apresentar a técnica clássica

(como mais citada ―técnica-base‖) ou as demais técnicas pré-formatadas, como algo desprezível aos

ensinamentos-trocas em dança, ressaltamos a importância que estas técnicas empregam ao fazer e

conhecer artístico-pedagógico, inclusive, tais práticas construíram papéis imprescindíveis ao meu

desenvolver histórico-artístico e fazem parte de meu pensar-fazer diário em dança.

Porém, o que se enfatiza aqui é o cuidado do uso indevido, que afeta e transfigura

aprendizes e profissionais, de forma a perceber que não existe uma técnica que supre todas as

necessidades e que é a mais importante e necessária para dançar. Mas que todas as formas e

expressões são válidas, de acordo com os objetivos, necessidades e trabalhos e, porque não

interdisciplinarizar os diversos conteúdos, de maneira a somar ao crescimento e desenvolvimento da

dança? Sendo a improvisação entendida aqui como técnicas (LEAL, 2012a), em que há muito a

contribuir ao processo de aprendizagem, pedagógico, artístico, profissional, criativo, técnico,

histórico, cultural, sensível, laboratorial, experiencial, vivencial.

Dentro do contexto discutido em nossa pesquisa, improvisar é transgredir, modificar,

quebrar padrões, articular e desarticular, significar e ressignificar, interferir, revirar. Envolver-se

conscientemente, transformar-se e entregar-se ao presente momento, é liberdade em se posicionar e

propor, arriscar, fazer criticamente, descobrir (MEYER; MUNDIM; WEBER, 2013; LEAL, 2012a).

Ou ainda, como escreveu minha colega Ariane Mendes para o livro Improcesso (2017):

Improvisar é mais do que movimentos aleatórios justapostos para exibição visual. É

agregação de conhecimento produzido por meio corporal, por meio de si mesmo, e

adquirido no momento de produção. É estar preparado para ouvir o outro. É dizer o que se

precisa dizer. É se calar quando seu assunto terminar. É saber que você não é o único

responsável pelo andamento das coisas. É saber que não ser o único não desobriga sua

responsabilidade. Enfim, improvisar é aprender a viver. (MENDES, 2017, p. 18)

Ou então, por minhas próprias palavras, improvisar é ir além, se descobrir e encontrar o que

há de mais bonito interna e externamente ao seu corpo, é doar-se, abrir-se ao mundo e deixar que o

mundo se abra a você. É observar, perceber, escutar, dizer, propor e entrar nos diálogos múltiplos.

Ter opinião e autonomia para se aprofundar, ou não, em assuntos que surgem. É desenhar, colorir,

escrever, ler. É dar ―Um ponto, dois pontos, reticências [...] ponto e vírgula [...]‖ (LEAL, 2017a, p.

63). Sentir, saborear, cheirar, tatear, visualizar, ser poesia, ser prosa, ser teoria e prática (LEAL,

2017a; 2012a). Poder ser água, ser ar, ser fogo e terra. Transbordar em vida, matéria, espírito, em

dança. Possibilidades de ser, existir, construir.

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A Conversa Corporal

Na Conversa Corporal, são empregados temas como propostas provocativas condutoras ao

diálogo. Cito o exemplo de um trabalho desenvolvido por mim, em 2014, utilizando o

procedimento, junto com a bailarina Thaíse Galvão, para melhor explicar tema dentro da Conversa

Corporal: escolhemos o tema ‗ponto morto‘ a guiar nosso diálogo, para tanto, refletimos através de

questionamos, por exemplo, sobre o que poderia ser um ponto morto, expomos nossas próprias

interpretações, atribuímos significados ao termo e buscamos situações a um possível estado de

ponto morto em nossos corpos. Nossa pesquisa resultou no trabalho artístico de mesmo título –

Ponto Morto (2014):

Imagem 27 - Ponto Morto

Fonte: Acervo da Cia. de Dança do Teatro Alberto Maranhão. Fotógrafo: Brunno Martins (2015)

As provocações proporcionam certo direcionamento aos corpos em pesquisa pela

improvisação, podendo ser perguntas referentes ao tema delimitado como foi no caso do trabalho

Ponto Morto (2014). Em um dos laboratórios, rememoramos um dia de protesto que participamos

juntas, com mais duas pessoas, na cidade de Natal/RN, um dos momentos, desse dia, ficou muito

marcado em nossas memórias:

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Lado a lado em paredão que se forma, mãos dadas

Somos quatro, mas a força de milhares caminham

Hoje caras pintadas, ontem roupas em tons verde musgo acinzentadas

Intenso e transcendente

Depois da marcha a ciranda.

Esse foi um pequeno registro de minhas lembranças, que encontrei para definir esse

momento que resultou na cena final de Ponto Morto (2014), Thaíse e eu entrelaçamos as mãos e

caminhamos para o fundo, de mãos dadas.

A Conversa Corporal, inicialmente, procurava estruturar trabalhos coreográficos, a partir da

improvisação, com as investigações em laboratório, voltadas para a pesquisa de mestrado, seu

procedimento acabou tendo modificações. Em nossas pesquisas, não temos mais a preocupação em

criar movimentos em sequências fechadas e imutáveis, que em função de exigências e demandas de

trabalho, era preciso que seguíssemos uma linha mais estrutural. Experimentamos, guiados pelos

temas provocativos, rememoramos os caminhos e encontros traçados, percebendo as

movimentações mais características e significantes, mantendo em improvisação ou retomando o que

exploramos de movimentos para serem revividos.

A Conversa Corporal pretende valorizar o potencial criativo de cada intérprete, uma vez que

ainda é muito comum vermos trabalhos já esquematizados, inteira e unicamente, pelo coreógrafo,

repassados para o bailarino e executados por ele, não que essa proposta seja algo inviável, mas,

nesta pesquisa, me identifico com os processos de criação que buscam extrair melhor essa

singularidade de cada um, com jogos que encaminham o intérprete a criar a partir de sua própria

investigação.

Complementando este pensamento, Felipe Oliveira (2014) afirma que:

[...] já que o dançarino através do seu corpo tem a oportunidade de inventar, executar e se

transformar na própria obra de arte, tornando-se simultaneamente criador, criatura e

criação, e não mais se impondo, apenas, como mero corpo ilustrador-reprodutor

coreográfico em cena, pois através de um ato que não permite diferenciar o que é arte e o

que é vida, o dançarino se transforma simultaneamente em sujeito, objeto e trajeto de arte.

(OLIVEIRA, 2014, p. 2 e 3)

Essa singularidade potencializada em laboratórios transparece o sentir as respostas, a

energia, as relações que se constroem entre as pessoas, por se tratar de suas diversidades, deixando

o desenvolvimento do processo de acordo com o que é oferecido pelas diferentes personalidades,

compostas por histórias, memórias, emoções e experiências.

A improvisação dentro da Conversa Corporal, inicialmente, se encaixava no formato de

―contínua alimentação‖, definida, segundo Blom e Chaplin (1988), citada por Leal (2012a), já

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definida no item ―improvisação dialogada‖: o condutor do trabalho apontava direcionamentos, nada

estruturado, porém com possíveis caminhos a serem seguidos.

As provocações poderiam ser sugestões de movimentações, usando partes do corpo ou em

relação ao outro e ao espaço, como: usar a cabeça, fazer algum movimento com as pernas, saltar,

mover o braço do outro, correr pelo espaço. Porém, a maneira como o intérprete usaria a cabeça ou

como iria saltar, cabia a sua própria escolha. As provocações auxiliavam para um possível caminho,

que o intérprete poderia seguir e utilizar.

Com as modificações em seu procedimento, a improvisação pode melhor ser definida,

segundo o formato dos autores em ―pré-estruturada‖: ao sortear um tema – o sentir de uma pessoa –

este serve de informação consentida pelo grupo, antes do início da improvisação, que provocará a

construção poética da cena.

Desenvolvi alguns trabalhos coreográficos com a Conversa Corporal, entre os anos de

2013-2015, na Cia. de Dança Luíza Bandeira em Jaraguá do Sul/SC – Desabotoe (2013) e Casos

(2015) –, na Cia. de Dança do Teatro Alberto Maranhão em Natal/RN – Chuva Fina (2013),

Children’s Dance e Chorinho Árabe, dentro do espetáculo Todas as Cores (2014) e Ponto Morto

(2014) –, e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – Femme (2013). Experiências das

quais tive a oportunidade de desenvolver a Conversa Corporal, com corpos diversos, cada um com

sua singularidade, intensidade e formas de mover, abertos a novas experiências, trocando histórias e

emoções, a fim de construir trabalhos através da conversa entre corpos (GORGES, 2015).

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CAPÍTULO III – LÍQUIDA FLUIDEZ SENTIDA

A pesquisa partiu pela percepção, durante a realização das conversas corporais sobre o fluxo

constante, a movimentação que é sempre fluida, com a característica de fluência livre, que é

alcançada, talvez pelas sensações, sentimentos, emoções acessadas e provocadas por um tema em

comum, que é afetado pelo mover do outro, pelo espaço, sonoridade e energia.

Leal (2012b) afirma que os sentimentos nos permitem a percepção dos acontecimentos do

corpo, a cada instante em que dançamos ―[...] e nessa constante reatualização sobre os estados

corporais estão importantes materialidades possíveis à arte de dançar‖ (LEAL, 2012b, p. 131),

alcançando uma escuta mais direta em relação ao corpo, aos corpos e ao espaço, ampliando a

consciência, ―[...] sentimento permite perceber desde sensações de tensão nos músculos,

desconforto por desequilíbrio até sensações de pele, músculo-esqueléticas, sensação de velocidade,

pressão, entusiasmo, bem-estar, fadiga‖ (LEAL, 2012b, p. 149).

A autora encontra em Damásio (2011) uma definição de sentimento ―[...] como a

consciência de estados corporais provocados, por exemplo, por emoções‖ (LEAL, 2012b, p. 135).

As emoções, segundo Damásio (2011), possuem como parte essencial os impulsos e motivações.

Damásio (2012) aponta que a emoção, enquanto sua essência, como um acervo de modificações no

estado do corpo, levadas em órgãos através das terminações das células nervosas controladas pelo

sistema cerebral, responde aos pensamentos provindos de algo ou alguém.

A origem da palavra ―emoção‖ corresponde a ―movimento para fora‖, fazendo com que

muitas mudanças do estado do corpo possam ser percebidas por outra pessoa, como a expressão

facial, a cor da pele e postura corporal, porém existem outras alterações que só são possíveis de

serem percebidas pelo que sente o próprio corpo. Portanto, a emoção constitui as alterações do

corpo, que resultam em um estado emocional, em função de respostas dispositivas à combinação de

um processo avaliatório, sendo a percepção dessas modificações, o sentimento (DAMÁSIO, 2012).

Segundo o autor, a essência de um sentimento é a percepção dos pensamentos sobre

acontecimentos específicos acompanhados continuamente, percebendo as mudanças no estado

corporal. Se na emoção, o conjunto de alterações no estado corporal se associa a imagens mentais,

ao sentir uma emoção, experienciamos essas alterações em justaposição com as imagens mentais.

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Trazendo para a improvisação, Leal (2012b) ressalta os sentimentos de fundo como

recorrentes nas práticas, que dizem respeito a estados de fundo como cansaço, prazer, energia,

angústia, entre outros. Nos laboratórios, podemos identificar estes estados de fundo das emoções de

fundo, que se tornam sentimentos de fundo por tomarmos consciência destes, como por exemplo, a

euforia e a ansiedade que aparecem no primeiro encontro, aflição no segundo, a exaustão no

terceiro, o sono no oitavo e a indisposição no último.

Nem todos os sentimentos proveem de emoções, esses sentimentos são os sentimentos de

fundo, que possivelmente são mais constantes, ao longo da vida. São estados do corpo que

acontecem entre as emoções, quando não estamos excitados pela emoção, o sentimento de fundo dá

a imagem da perspectiva do corpo (DAMÁSIO, 2012).

Nos sentimentos de fundo, podemos encontrar os sentimentos primordiais que dão origem a

todos os outros sentimentos, os sentimentos primordiais são ―Reflexos espontâneos do estado do

corpo vivo‖ (LEAL, 2012b, p. 136). Aproximando da propriocepção, há a percepção de si mesmo, o

chamado sentimento de si que demanda maior capacidade reflexiva dos sentimentos, desenvolvendo

―[...] uma possibilidade de cognição a partir do sentimento [...]‖ (LEAL, 2012b, p. 136) – o

sentimento do sentimento (LEAL, 2012b).

Os sentimentos de fundo podem ser identificados nos laboratórios, quando, por exemplo, a

conversante Margoth Lima, no último encontro, comenta ter iniciado sua conversa, percebendo um

estado de aflição e, conforme deixou afetar-se pelos estados das demais, esse estado transformou-se

em energia, felicidade e leveza.

As emoções são desencadeadas por imagens de objetos, percepções táteis, olfativas, sons,

acontecimentos que ocorrem naquele instante ou que já aconteceram e são recordados, entre outros

tantos desencadeamentos. Quando percebemos uma emoção em andamento, designamos de

sentimentos emocionais (DAMÁSIO, 2011). Dessa forma, Damásio (2011) explica ainda que

[...] as emoções constituem ações acompanhadas por ideias e certos modos de pensar

[portanto como sentimento consiste em perceber] os sentimentos emocionais são

principalmente percepções daquilo que nosso corpo faz durante a emoção, com percepções

do nosso estado de espírito durante esse mesmo lapso de tempo (DAMÁSIO, 2011, p. 142).

O autor explana que um dos modos de gerar um sentimento emocional ocorre, quando uma

emoção modifica o estado do corpo, como foi no caso do sétimo encontro em que Júlia Vasques

deixa lágrimas caírem, alterando o estado do seu corpo tomado por tristeza, considerada uma

emoção universal, como também, a surpresa, o medo, nojo, raiva e alegria, universais, porque são

fáceis de serem identificadas nas mais variadas culturas.

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Além das emoções universais e de fundo, há identicamente as emoções sociais como a

admiração, compaixão, orgulho, embaraço, inveja, vergonha, ciúme, culpa e desprezo, que ―[...]

incorporam princípios morais e formam um alicerce natural para os sistemas éticos‖ (DAMÁSIO,

2011, p. 162). Exemplificando com nossa pesquisa, cito o mesmo encontro mencionado

anteriormente, no qual, as conversantes encontraram-se, em compaixão para com Júlia, desejando

acalentá-la.

As emoções, de fato, são importantes ao vivenciar dançante, assim como, explana Porpino

(2014), elas diferenciam os movimentos daqueles compreendidos como apenas a função de

utilidade estética:

Poderíamos dizer que o movimento se transforma em dança quando é possível viver no

presente a emoção que o alimenta, que o diferencia de outro movimento qualquer utilitário

ou estetizado a partir de referências estéticas que estão além do entendimento de quem

dança (PORPINO, 2014, p. 50).

Fluímos nos laboratórios com a intenção de movermo-nos, guiadas pelos sentimentos e

emoções, desdobrando diálogos criados através da percepção que parte do interior. Leal (2012a),

Fernandes (2006) e Rengel (2001) ressaltam que a fluência expressa emoções e sentimentos,

demonstrando a precisão dos movimentos que são manifestados pela emoção; o ―como‖ realiza-se

um movimento.

A fluência faz parte de um dos fatores do movimento, incluindo também, o espaço, peso e

tempo, que caracterizam o esforço ou expressividade, consistente em um dos maiores fundamentos

de Rudolf Laban para a compreensão do movimento, sendo base da Eukinética10

. O esforço para

Laban não vem com o objetivo de intensificação de forças para a realização de algo, mas sim, de

expressividade. Trata-se de uma expressão que parte de uma atitude interna e se concretiza

externamente (LEAL, 2012a), sendo a fluência ―[...] o primeiro fator a se desenvolver, constituindo

a base para todos os outros‖ (FERNANDES, 2006, p. 122).

Segundo Rengel (2001, p. 71), em seu Dicionário de Laban, a fluência pode ser livre ou

controlada: ―mais ou menos integrado (liberado) ou mais ou menos fragmentado (contido)‖. Sendo

assim, ―A fluência se refere à tensão utilizada para deixar o movimento fluir [liberado] ou para

controlá-lo, restringi-lo [contido]‖ (LEAL, 2012a, p. 67). Não associando apenas ao relaxamento

(livre), enquanto uma qualidade boa, e à tensão (controlado), enquanto qualidade ruim

(FERNANDES, 2006).

10

Além da Eukinética, em seus estudos coreológicos Laban aborda também a Corêutica e a Labanotação.

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Na Conversa Corporal, a fluência livre apresenta-se mais evidente durante as

experimentações, porém, o que não impossibilita o uso da fluência controlada, que por sua vez,

também aparece, mas com menos frequência, a depender do tema e o que tal provocação causa em

cada conversante em seus afetos.

A fluência para Rudolf Laban desempenha ―um papel bastante importante em toda a

expressão pelo movimento, pois que estabelece relacionamentos e entra em comunicação por via de

sua corrente interna e externa‖ (LABAN, 1978, p. 124). E ainda aponta o fluxo do movimento como

aspecto do fator fluência: ―O fluxo é continuação normal do movimento, como a de uma corrente

fluente, podendo ser mais ou menos controlado‖ (LABAN, 1978, p. 88), ―O fluxo tem

principalmente a ver com o grau de liberação produzido no movimento, não importando se este é

considerado do ponto de vista de sua dualidade subjetiva-objetiva ou dos contrastes de ser ―livre

na‖ – ―livre da‖ fluência do movimento‖ (LABAN, 1978, p. 124).

A psiquiatra e discípula de Laban, Dra. Judith Kestenberg (1977), segundo Fernandes

(2006), determinou três atributos, os denominados Atributos do Fluxo, conforme sua análise das

nuances no fluxo do movimento em suas mudanças. A intensidade, como primeiro atributo, ―[...]

define o grau relativo de concentração de fluxo na produção da qualidade‖ (FERNANDES, 2006, p.

316) e não pode ser medida em quantidade; ela é a mudança que pode ser observada em três graus:

neutra, média e extrema de suas qualidades expressivas.

O segundo atributo, referente às mudanças quantitativas aparentes, no fluxo em sua

continuidade, contém duas características: a flutuante, correspondente às ―[...] várias mudanças na

qualidade do fluxo [...]‖ (FERNANDES, 2006, p. 316) e a constante, concernente à qualidade

permanente do fluxo. O último atributo tange a ―[...] duração das mudanças na qualidade do fluxo

[...]‖ (FERNANDES, 2006, p. 316) que pode ser gradual ou abrupta.

O fluxo presente na Conversa se trata de uma movimentação sem ―freios‖, mesmo quando

há pausa, ou movimentos singelos, pequenos e lentos, existe uma continuidade, como se não

parasse, um círculo, sem pontas. O sociólogo Zygmunt Bauman (2001), na obra Modernidade

Líquida, descreve que a fluidez é qualidade inerente aos líquidos e gases da qual os líquidos são

uma variação de fluidos que tem como propriedade característica o fluxo.

Sobre os fluidos o autor aponta que:

O que todas essas características dos fluidos mostram, em linguagem simples, é que os

líquidos, diferentemente dos sólidos, não mantêm sua forma com facilidade. Os fluidos, por

assim dizer, não fixam o espaço nem prendem o tempo. Enquanto os sólidos têm dimensões

espaciais claras, mas neutralizam o impacto e, portanto, diminuem a significação do tempo

(resistem efetivamente ao seu fluxo ou o tornam irrelevante), os fluidos não se atêm muito a

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qualquer forma e estão constantemente prontos (e propensos) a muda-la; assim, para eles, o

que conta é o tempo, mais do que o espaço que lhes toca ocupar, espaço que, afinal,

preenchem apenas ―por um momento‖. Em certo sentido, os sólidos suprimem o tempo;

para os líquidos, ao contrário, o tempo é o que importa. Ao descrever os sólidos, podemos

ignorar inteiramente o tempo; ao descrever os fluidos, deixar o tempo de fora seria um

grave erro. Descrições de líquidos são fotos instantâneas, que precisam ser datadas.

(BAUMAN, 2001, p. 8)

Na Conversa Corporal, assim como os líquidos apontados por Bauman, não há formas

engessadas. Acredito que há desenhos que se formam no espaço, como aqueles ―desenhos cegos‖

que fazíamos em aulas de Educação Artística, durante o Ensino Fundamental: lápis na mão, olhos

fechados, e a ponta do lápis/corpo delineia a folha/espaço, sem a preocupação em formas

geométricas ou imagens, visualizadas no cotidiano, abre espaço para o corpo/lápis fluir sobre o

espaço/folha, despertando o abstrato e o subjetivo. Posteriormente, o desenho pode ser colorido,

pois, assim como afirma Bauman (2001), os fluidos estão prontos às mudanças e os corpos fluidos

da Conversa Corporal estão disponíveis às modificações em seus desenhos dançados.

Podemos relacionar a liquidez em Bauman (2001) com os estudos de Laban. Laban (1978)

explica que a sensação de fluir do movimento está ―relaciona à facilidade de mudança, tal como

ocorre no movimento de uma substância fluida. Quando vai sendo atenuada a sensação da

continuidade do fluir, pode-se falar talvez de uma ―pausa‖, na qual percebemos ainda a

continuidade, embora já mais controlada‖ (LABAN, 1978, p. 124-125). Os dois autores apontam

essa capacidade de mudança, de não se ater sempre à forma associando-a aos fluidos.

A pesquisadora Ciane Fernandes (2001, p. 8) faz a observação de que ―Nossos corpos, assim

como o próprio planeta, são majoritariamente líquidos. Todas as estruturas do corpo humano são

irrigadas e conectadas por líquidos em movimento (Forma Fluida)‖, líquidos esses que possuem

papéis importantes na constituição anatômica corporal, formando a maior parte das estruturas,

contribuindo para a fluidez natural do ser humano.

Forma Fluida é um dos termos técnicos, utilizados no Sistema Laban de Análise de

Movimento. Bonnie Bainbridge Cohen – fundadora da School for Body-Mind Centenring (BMC) –

desenvolveu estudos sobre a Forma Fluida em que o corpo se relaciona consigo mesmo, a partir dos

líquidos corporais, respiração, órgãos e voz. (FERNANDES, 2001). Mesmo associados, a Forma

Fluida se difere do fator de movimento fluxo. Além da Forma Fluída, há a Forma Direcional e a

Forma Tridimensional. Mas, para essa pesquisa, não nos deteremos nessas outras Formas.

A Forma Fluida pode ser observada com freqüência na natureza, em um animal lambendo

sua pata, nos infinitos microorganismos líquidos da terra e das águas, como o plancton, na

fluidez da água dos rios e dos mares, na seiva das árvores, no petróleo acumulado nas

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profundezas da terra, na consistência da lama. E nossos corpos são, por sua vez, tão fluidos

quanto o próprio planeta que habitamos. (FERNANDES, 2001, p. 15)

A fluidez está cotidianamente presente, vivemos em um mundo que possui características

fluidas, em grande parte dos elementos, que constituem a natureza da Terra, assim como, o ser

humano que, é parte inerente desta natureza, que também é composto por fluidos, pois participamos

de uma experiência fluida, mesmo que inconsciente.

A Forma Fluida corresponde ao relacionamento do corpo com você mesmo, o movimento

acontece, a partir da respiração, líquidos corporais, voz e órgãos em uma submersão de si,

explorando o volume interno corporal através da inter-relação entre as partes do corpo que o

constituem (CAETANO, 2012; FERNANDES 2006).

A fluidez e o grau de sua intensidade no movimento corporal são ensejados em função dos

líquidos corporais correspondentes ao ―[...] sangue, linfa, líquido conectivo, líquido sinovial, líquido

cefalorraquidiano, etc.‖ e pelos órgãos: ―[...] estômago, intestino, fígado, pulmões, coração, etc.‖

(FERNANDES, 2006, p. 124). Segundo Patrícia Caetano (2012), os líquidos corporais ―[...]

possibilitam as experimentações do sentir e a eclosão das sensações não referenciadas a

experiências prévias‖ (CAETANO, 2012, p. 390).

Em minhas experiências com a Conversa Corporal sempre foi notada essa fluidez do

movimento, mesmo ela tendo uma característica mais estrutural, com a finalidade de obter um

produto artístico. Estrutural aqui vem com o sentido de memorizar, passo a passo, sequências

criadas para serem reproduzidas em coreografia. Em depoimentos, os participantes costumavam

dizer que fluía, que era simples de encaixar os movimentos e manter tudo ligado, costurado, em sua

maioria, a unanimidade da percepção da fluidez era muito forte. Novamente, trago Bauman (2001)

para compreender melhor essa facilidade, tão evidente na fluidez:

Os fluidos se movem facilmente. Eles ―fluem‖, ―escorrem‖, ―esvaem-se‖, ―respingam‖,

―transbordam‖, ―vazam‖, ―inundam‖, ―borrifam‖, ―pingam‖; são ―filtrados‖, ―destilados‖;

diferentemente dos sólidos, não são facilmente contidos – contornam certos obstáculos,

dissolvem outros e invadem ou inundam seu caminho. Do encontro com sólidos emergem

intactos, enquanto os sólidos que encontraram, se permanecem sólidos, são alterados –

ficam molhados ou encharcados. (BAUMAN, 2001, p. 8)

Como explicita o autor, para os fluidos não há dificuldades, maneiras não faltam para

poderem fluir. Independente de obstáculos, que apareçam, encontram meios para seguir em fluxo.

Associada à fluidez, em nossos laboratórios, encontramos a leveza como característica constante,

durante a Conversa Corporal.

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A leveza está frequentemente presente nas percepções das conversantes, pois mesmo

quando os temas eram mais densos, havia sensação de leveza na movimentação. Para tanto, volto ao

sociólogo Zygmunt Bauman (2001) que associa a leveza aos fluidos:

A extraordinária mobilidade dos fluidos é o que os

associa à ideia de ―leveza‖. Há líquidos que, centímetro cúbico por centímetro cúbico, são

mais pesados que muitos sólidos, mas ainda sim tendemos a vê-los como mais leves, menos

―pesados‖ que qualquer sólido. Associamos ―leveza‖ ou ―ausência de peso‖ à mobilidade e

à inconstância: sabemos pela prática que quanto mais leves viajamos, com maior facilidade

e rapidez nos movemos. (BAUMAN, 2001, p. 8-9)

O autor comenta que há líquidos que são mais pesados que alguns sólidos, talvez a ideia de

peso, que descrevemos nos diários, seja ―pesos leves‖ pela fluidez do mover que os tornam leves,

através da facilidade que os fluidos têm em adaptar-se às situações.

Na presente pesquisa, a Conversa Corporal já não acontece tanto a preocupação em

estruturar, como nos trabalhos analisados para o TCC, mas trabalhar em cima dos temas, mantendo

a improvisação em fluxo, por mais tempo, aonde percebemos que tornou bastante potente o diálogo

fluído. A não preocupação com a estrutura não significa que não há um caminho a ser percorrido,

ele existe, porém, sem obrigatoriamente de ter que reproduzir exatamente o que foi feito, em

primeira investigação. O intérprete sabe que precisa passar por ali e mover, talvez, o braço, porque

seu movimento acontece em diálogo com outros corpos, mas esse braço pode ser movido de outra

forma, com outra qualidade ou outra dinâmica, por exemplo.

O trabalho, a partir da improvisação, dá autonomia ao intérprete para criar e estar aberto às

situações que surgem, ao longo do laboratório, atentar-se às dificuldades, ao outro, e se sentir livre

para a exploração de movimentos, sem pré-julgamentos e delimitações sobre ―certo ou errado‖.

Escutar o seu corpo, o que ele deseja produzir naquele instante, assim como, escutar os outros

corpos para manter o diálogo que vai sendo construído.

As conversantes se encontram constantemente afetadas, além do movimento que é

impulsionado em função de um tema determinado, o corpo do outro influencia igualmente o seu

mover em determinados momentos, por vezes, você reproduz o gesto do outro, repetindo, ou o

tendo como referência; o espaço em que se pesquisa interfere, os sons criam certa atmosfera.

―Paradoxalmente, o plano de experiência preexiste ao sujeito, mas o sujeito sempre o cria e recria

em sua capacidade de composição de afetos, e ao recriá-lo se compõe em outro sujeito.‖

(FERRACINI; TROTTA; BRAGA, 2012, p. 193).

O indivíduo transforma-se conforme deixa ser afetado, somando, agregando, substituindo

através da experiência, tornando, a cada segundo, o mesmo indivíduo, um diferente. Ou seja, trago

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minhas propostas de movimento com a finalidade de trocar com outra pessoa, ao estar aberta a

novas propostas, e ser atravessada pela movimentação de outros me faz sentir modificada pelos

afetos que criam e recriam a experiência.

Bauman e a dança: relações entre sociedade líquida e o fluido mover

Mas se não pode errar, também não se pode saber se se está certo. Se não há

movimentos errados, não há nada que permita distinguir um movimento

como melhor, e assim nada que permita reconhecer o movimento certo entre

as várias alternativas – nem antes nem depois de fazer o movimento.

(BAUMAN, 2001).

No decorrer deste tópico, correlaciono a sociedade líquida e fluida, discutida por Zygmunt

Bauman, tendo como base os livros de sua autoria Modernidade Líquida (2001) e Vida Líquida

(2007), com aspectos da dança, discutidos nos itens anteriores da pesquisa. Como a dança, que

viemos experimentando, se mostra caracteristicamente fluida e líquida, fez-se necessário tecer a

aproximação com alguns pontos de estudo do sociólogo sobre o mundo liquefeito.

Antes de discorrermos sobre o assunto principal desde tópico, cabe uma breve apresentação

do referido autor, que permeia entre os conteúdos dessa dissertação. O sociólogo e filósofo polonês

Zygmunt Bauman (1925-2017) teve início de sua carreira na Universidade de Varsóvia, ocupando a

cátedra de sociologia geral. Em 1968, foi afastado por seus livros e artigos censurados. Reconstruiu

sua carreira no Canadá, Estados Unidos, Austrália e Grã-Bretanha, onde, nesta última, tornou-se

professor titular de sociologia na Universidade de Leeds, por vinte anos, desde 1971. Em 1989,

recebeu o prêmio Amalfi e, em 1998, o prêmio Adorno. Antes de seu falecimento, em 09 de janeiro

de 2017, aos 91 anos, foi professor emérito das universidades de Leeds e de Varsóvia. Somam-se

mais de 50 obras de sua autoria.

A "vida líquida" e a "modernidade líquida" estão intimamente ligadas. A "vida líquida" é

uma forma de vida que tende a ser levada à frente numa sociedade líquido-moderna.

"Líquido-moderna" é uma sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros

mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e

rotinas, das formas de agir. A liquidez da vida e a da sociedade se alimentam e se

revigoram mutuamente. A vida líquida, assim como a sociedade líquido-moderna, não pode

manter a forma ou permanecer em seu curso por muito tempo (BAUMAN, 2007, p. 7).

Zygmunt Bauman (2001) explica que a expressão cunhada pelos autores do Manifesto

comunista, há mais de um século atrás, ―derreter os sólidos‖, se referia a titulação dada do espírito

moderno à sociedade, sociedade essa demasiadamente resistente e estagnada para mudanças,

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congelada em sua habitualidade. O espírito moderno só o poderia ser, derretendo os sólidos

―dissolvendo o que quer que persistisse no tempo e fosse infenso à sua passagem ou imune a seu

fluxo‖ (BAUMAN, 2001, p. 9). O intuito não era exterminar os sólidos, mas abrir espaço para

novos e aprimorados sólidos em uma solidez, confiante de um mundo administrável. ―Os primeiros

sólidos a derreter e os primeiros sagrados a profanar eram as lealdades tradicionais, os direitos

costumeiros e as obrigações que atavam pés e mãos, impediam os movimentos e restringiam as

iniciativas‖ (BAUMAN, 2001, p. 10).

Acredito que assim como na sociedade proposta por Bauman, na dança, ―derreter os sólidos‖

seria justamente desatar as amarras sobre visões que, em certas ocasiões, não comportam mais

alguns ideais artísticos e educacionais, como foi assim discutido anteriormente, rever conceitos

sobre o corpo que dança, se realmente existem corpos que ―nasceram‖ com o privilégio para a

dança, ou se a dança é capaz de abranger os infinitos biótipos corporais independente de técnicas

específicas.

Derreter os sólidos, para mim, seria abrirmo-nos para a reflexão sobre a dança. Vejo-a como

um leque de possibilidades, e é preciso derreter nossa solidez, a cada instante, para que possamos

permitir que novos outros líquidos adentrem, adequem, moldem, inundem, revirem o corpo em sua

totalidade, pois assim como a presente pesquisa propõe, o corpo que ali se move, reflete, sente,

percebe, é o corpo de um indivíduo, que carrega consigo toda sua bagagem de vida.

Mais precisamente, no ambiente líquido-moderno a educação e a aprendizagem, para terem

alguma utilidade, devem ser contínuas e realmente por toda a vida. Nenhum outro tipo de

educação ou aprendizagem é concebível; a "formação" dos eus ou personalidades é

impensável de qualquer outra forma que não seja uma reformação permanente e

eternamente inconclusa (BAUMAN, 2007, p. 155, grifo do autor).

Inconclusa dentro de nosso contexto pesquisado, como abordado anteriormente, não está

apresentado como uma ideia negativa em seu significado, mas vem com o sentido de

disponibilidade, estar aberta para a reformulação, recriação, reflexão, modos de repensar o que

atualmente nos foi exposto, descoberto, pesquisado, formulado, é também ativar o acesso à contínua

reciclagem.

As pessoas da sólida sociedade tinham a sua ―liberdade‖, no sentido de poderem se realocar

em um novo nicho, de forma que se adaptassem, ou seja, ―seguindo fielmente as regras e modos de

conduta identificados como corretos e apropriados para aquele lugar‖ (BAUMAN, 2001, p. 14).

Segundo o autor, o que é mais próximo da realidade de hoje, são os padrões não ―dados‖ e

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―autoevidentes‖, e, por terem muitas configurações, se chocam e contradizem, não tendo mais o

poder de imposição e limitação,

E eles mudaram de natureza e foram reclassificados de acordo: como itens no inventário

das tarefas individuais. Em vez de proceder a política-vida e emoldurar seu curso futuro,

eles devem segui-la (derivar dela), para serem formados e reformados por suas flexões e

torções. Os poderes que liquefazem passaram do ―sistema‖ para a ―sociedade‖, da

―política‖ para as ―políticas da vida‖ – ou desceram do nível ―macro‖ para o nível ―micro‖

do convívio social (BAUMAN, 2001, p. 15).

As regras existem com o intuito de estipular certa ordem, mas, como seres pensantes e

capazes de refletir e questionar, pode-se rever se tais condutas realmente são corretas e apropriadas,

tanto em nosso convívio social como em nossas metodologias de ensino para a dança e formação

artístico/profissional/estética. Na sociedade líquida, como cada vez mais a dança na

contemporaneidade prevê, não há exatamente padrões dados, impositivos e limitativos, na qual os

artistas gradualmente vão buscando alternativas, pesquisando modos outros de fazer/ensinar dança.

Nossa sociedade então, individualizada e privatizada atribui a responsabilidade,

principalmente, aos indivíduos. Os padrões se tornaram liquefeitos, maleáveis; a forma não se atem

por tempo indeterminado; dar forma é mais fácil que manter, diferente dos sólidos ―Manter os

fluidos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo - e mesmo

assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável‖ (BAUMAN, 2001, p. 15). A modernidade

líquida produziu profunda mudança na condição humana, fazendo-nos repensar sobre conceitos

antigos, isso também se estende à contemporaneidade em que vivemos atualmente.

Desde a dança moderna, o indivíduo começou a ganhar espaço, então, não era mais

necessário apenas expressar histórias que, por vezes, não faziam parte da realidade daquele povo. A

dança foi tornando-se também liquefeita, no sentido em que pudemos perceber, que é maleável aos

corpos que a procuram, não somente a forma se apresenta como mais importante. A liquidez nos

proporciona a mudança.

Segundo Bauman (2007), entender-se, enquanto um indivíduo, implicaria em dizer

compreender-se ―[...] um ser ímpar, a única criatura feita (ou, como Deus, autoconstruída) desta

forma peculiar; tão profundamente única, que a singularidade não pode ser descrita por meio de

palavras que possam ter mais de um significado‖ (BAUMAN, 2007, p. 26).

[...] "indivíduo" (tal como o átomo da físico-química) se refere a uma estrutura complexa e

heterogênea com elementos notoriamente separáveis mantidos juntos numa unidade

precária e bastante frágil por uma combinação de gravitação e repulsão de forças

centrípetas e centrífugas num equilíbrio dinâmico, mutável e continuamente vulnerável. A

ênfase recai mais fortemente no auto-refreamento desse agregado complexo — e na tarefa

de reduzir os recorrentes choques entre elementos heterônomos e trazer uma certa harmonia

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a essa estonteante variedade. Também recai na necessidade de realizar essa tarefa dentro do

agregado com as ferramentas internamente disponíveis. Hoje em dia, "individualidade"

significa em primeiro lugar a autonomia da pessoa, a qual, por sua vez, é percebida

simultaneamente como direito e dever. Antes de qualquer outra coisa, a afirmação "Eu sou

um indivíduo" significa que sou responsável por meus méritos e meus fracassos, e que é

minha tarefa é cultivar os méritos e reparar os fracassos (BAUMAN, 2007, p. 30-31, grifo

do autor).

Para o mesmo autor, uma das manifestações mais sinceras dessa singularidade humana seria

nossos sentimentos e emoções:

E assim ouvimos com especial atenção as agitações internas de nossas emoções e de nossos

sentimentos. Esse parece ser um procedimento sensato. Os sentimentos, diferentemente da

razão, neutra, imparcial e compartilhada universalmente, ou pelo menos "compartilhável",

são meus e apenas meus, e não "impessoais". Como não podem ser transmitidos numa

linguagem "objetiva" (pelo menos não totalmente, não para a plena satisfação nossa e de

nossos ouvintes) nem ser compartilhados com outras pessoas de modo completo, sem

resíduos, os sentimentos parecem o hábitat natural de tudo que é totalmente privado e

individual. Inerentemente subjetivos, são o próprio epítome da "singularidade" (BAUMAN,

2007, p. 27-28).

Como vimos nos tópicos anteriores, os grandes norteadores da pesquisa cênica são os

próprios sentimentos e emoções das conversantes, pois assim como expõe Bauman (2007), são

correspondentes a cada um, só podem ser sentidos da forma que se dão naquele instante,

individualmente, e enfatizam a singularidade e subjetividade pessoais.

Na modernidade fluida, o ser humano não é mais definido pelo ser social e orientado por

normas sociais, é ele próprio, indivíduo, que não se limita apenas em princípios universais. ―As

instituições sociais estão mais que dispostas a deixar à iniciativa individual o cuidado com as

definições e identidades, e os princípios universais contra os quais se rebelar estão em falta‖

(BAUMAN, 2001, p. 33). Não existem mais limites ao ser humano, sem serem suas próprias

limitações herdadas ou adquiridas, suas aptidões, valentia e persistência. Se assim pensarmos

também a dança, sem limites, menos segregaríamos, e nos livraríamos de preconceitos e visões

antigas.

Nas palavras do sociólogo, ser moderno significa

[...] ser incapaz de parar e ainda menos capaz de ficar parado. Movemo-nos e

continuaremos a nos mover [...] por causa da impossibilidade de atingir a satisfação: o

horizonte da satisfação, a linha de chegada do esforço e o momento da autocongratulação

tranquila movem-se rápido demais. A consumação está sempre no futuro, e os objetivos

perdem sua atração e potencial de satisfação no momento de sua realização, se não antes.

Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num Estado de constante

transgressão [...] (BAUMAN, 2001, p. 40-41).

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Seu conceito de ser moderno abrange a dança líquida, a incapacidade de ficar parado não

vem aqui com o sentido de movimentação incessante e veloz, mas, da pesquisa constante e

renovação, estar em ininterrupção para as transformações.

Tanto na modernidade leve e fluida, quanto na sólida e pesada de Bauman, estendendo

também à contemporaneidade; a individualização é fatal, porém o que se é dito é tomado como

verdade e passam a acreditar naquilo, contraposições e riscos são ocasionados socialmente,

contudo, a responsabilidade e a necessidade em encarar é que são individualizados.

[...] se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e

industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não

aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque não se esforçaram o suficiente para

encontrar trabalho ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se não estão

seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não são

suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e

dominar, como deveriam, as artes da autoexpressão e da impressão que causam

(BAUMAN, 2001, p 47).

A individualização nos dá a liberdade e autonomia a crer ou não nas propostas que a vitrine

social nos expõem todos os dias, a dança na contemporaneidade nos permite trilhar os caminhos que

se mostram mais fluidos a cada um.

Bauman (2001) discorre também sobre a liberdade de tornar as pessoas indiferentes e afirma

que o indivíduo é um adversário do cidadão. Sendo o cidadão aquele ―[...] que tende a buscar seu

próprio bem-estar através do bem-estar da cidade [...]‖ (BAUMAN, 2001, p. 49) e o indivíduo

aspira a ser ―prudente em relação à ―causa comum‖, ao ―bem comum‖, à ―boa sociedade‖ ou à

―sociedade justa‖‖ (BAUMAN, 2001, p. 50). Os interesses comuns só têm sentido quando

satisfazem seus próprios interesses e o que confiam ao ―poder público‖ é sua atenção aos ―direitos

humanos‖:

[...] que permita que cada um siga seu próprio caminho, e que permita que todos o façam

―em paz‖ – protegendo a segurança de seus corpos e posses, trancando criminosos reais ou

potenciais nas prisões e mantendo as ruas livres de assaltantes, pervertidos, pedintes e todo

tipo de estranhos constrangedores e maus (BAUMAN, 2001, p. 50).

A individualização traz a liberdade para experimentar, mas também, de encarar as

consequências, a autoafirmação e o controle das situações sociais que podem tornar a autoafirmação

possível ou não, o que se apresenta como principal contradição da fluida modernidade, ―[...]

contradição que, por tentativa e erro, reflexão crítica e experimentação corajosa, precisamos

aprender a manejar coletivamente‖ (BAUMAN, 2001, p. 52). A improvisação, como foi possível

percebermos em nossas investigações, trouxe essa liberdade individual, experimentar e saber lidar

com as consequências das situações motivadas. A autonomia e a possibilidade de escolha são

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ressaltadas, ao encararmos as tomadas de decisões de uma criação em tempo real, e dessa

individualidade, aprender a construir coletivamente.

A fase sólida e pesada da sociedade moderna tinha como autoconsciência o fordismo11

.

Caracterizava-se pelas grandes fábricas, força de trabalho densa e máquinas pesadas. O pesado

capitalismo tinha compulsão por tamanho e volume, assim como, por fronteiras resistentes e

impenetráveis. Podemos relacionar o trabalho pesado, dessa fase sólida social, com a repetição

mecânica exaustiva, discutida anteriormente, a compulsão pela perfeição, do mais como sinônimo

de qualidade.

Hoje, como assemelha o autor, o capitalismo ―[...] viaja leve – apenas com a bagagem de

mão, que inclui nada mais que pasta, telefone celular e computador portátil. Pode saltar em quase

qualquer ponto do caminho, e não precisa demorar-se em nenhum lugar além do tempo que durar

sua satisfação‖ (BAUMAN, 2001, p. 76). Entretanto, o trabalho conserva-se tão imobilizado quanto

antes, porém, o lugar em que pensava fixar-se para sempre não mantem sua solidez, ―[...] buscando

rochas, as âncoras encontram areias movediças‖ (BAUMAN, 2001, p. 77).

Ao encontrarmos essa leveza, em nossa pesquisa laboratorial, a repetição não se dá de forma

sólida e investigamos, conforme nossas satisfações e percepções de criação em tempo real. ―A

leveza e a graça acompanham a liberdade - de movimento, de escolha, de deixar de ser o que se é e

de se tornar o que ainda não se é‖ (BAUMAN, 2007, p. 12).

Em um mundo repleto de oportunidades, poucas são as coisas preestabelecidas, definitivas,

irreversíveis e finais, para que as possibilidades permaneçam sem finitude, não poderão ser

solidificadas. É ideal que continuem fluidas e líquidas para não excluírem as novas possibilidades.

A consciência de que o jogo continua, de que muito ainda vai acontecer, e o inventário das

maravilhas que a vida pode oferecer são muito agradáveis e satisfatórios. A suspeita de que

nada do que já foi testado e apropriado é duradouro e garantido contra a decadência é,

porém, a proverbial mosca na sopa. As perdas equivalem aos ganhos. A vida está fadada a

navegar entre os dois, e nenhum marinheiro pode alardear ter encontrado um itinerário

seguro e sem riscos (BAUMAN, 2001, p. 81-82).

Correlacionando à Conversa Corporal, entendemo-la como uma gama de possibilidades em

aberto, várias oportunidades de pesquisa e construções estão à disposição dos corpos conversantes,

não há predefinições quanto a movimentos, tanto menos irreversíveis e finais. Quando nos

dispomos a conversar, nos disponibilizamos a adentrar o universo infinito da capacidade

11

Segundo Alain Lipietz, o fordismo foi um modelo de industrialização, acumulação e regulação. Ainda mais do que

isso, uma visão de mundo (BAUMAN, 2001).

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exploratória dançante. E mantemo-nos no ideal líquido e fluído para permitir os novos

acontecimentos.

No mundo das vastas possibilidades é quase impossível experimentar todas, portanto, é

preciso estabelecer prioridades, dispensar algumas opções ou abandonar, ―A infelicidade dos

consumidores deriva do excesso e não da falta de escolha‖ (BAUMAN, 2001, p. 82). A dúvida

gerada, então, em ter a certeza de que as escolhas foram coesas, ou da melhor forma possível,

permeia entre as reflexões dos indivíduos. A tomada de decisão na dança permeia pela ação

decisória da sociedade líquida, logo, é fundamental optar por uma das infinitas opções, e perceber

quando me coloco, como e onde me colocar.

O capitalismo leve não acabou de uma vez por todas com as autoridades que ditam as leis e

nem se tornaram dispensáveis, mas, permitiu a coexistência de inúmeras autoridades de maneira

que nenhuma se manteria, por muito tempo, e estivesse em posição de exclusividade. ―As

autoridades não mais ordenam; elas se tornam agradáveis a quem escolhe; tentam e seduzem‖

(BAUMAN, 2001, p. 83).

Essa posição tornou-se cada vez mais comum na dança atualmente, os bailarinos situam-se

como coreógrafos dos próprios trabalhos e das companhias e grupos das quais integram,

coreógrafos constroem trabalhos artísticos em colaboração conjunta a seu grupo de pesquisa,

bailarinos que são também diretores, produtores, cenógrafos, figurinistas, designers e todas as

ferramentas constituintes de uma obra. A segregação autoritária é cada vez mais incomum,

distribuindo as tarefas e dando autonomia a todas as partes.

Com o advento da gama de possibilidades da modernidade fluida, a durabilidade passou a

ser trocada pela transitoriedade, dispondo levemente das coisas, abrindo espaço para outras também

transitórias e de uso instantâneo. Logo, podem ser substituídas ou descartadas pelos novos e

aperfeiçoados pelos que estão em oferta. Porém, a noção de progresso, na modernidade fluida, não é

temporária e transitória, levando eventualmente e com rapidez a um estado de perfeição, ―[...] mas

um desafio e uma necessidade perpétua e talvez sem fim, o verdadeiro significado de ―permanecer

vivo e bem‖‖ (BAUMAN, 2001, p. 169-170).

[...] o ingrediente crucial da mudança múltipla é a nova mentalidade de ―curto prazo‖, que

substituiu a de ―longo prazo‖. Casamentos ―até que a morte nos separe‖ estão

decididamente fora de moda e se tornaram uma raridade: os parceiros não esperam mais

viver muito tempo juntos. De acordo com o último cálculo, um jovem americano com nível

médio de educação espera mudar de emprego 11 vezes durante sua vida de trabalho – e o

ritmo e frequência da mudança deverão continuar crescendo antes que a vida de trabalho

dessa geração acabe. ―Flexibilidade‖ é o slogan do dia, e quando aplicado ao mercado de

trabalho augura um fim do ―emprego como o conhecemos‖, anunciando em seu lugar o

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advento do trabalho por contratos de curto prazo, ou sem contratos, posições sem cobertura

previdenciária, mas com cláusulas ―até nova ordem‖. A vida de trabalho está saturada de

incertezas (BAUMAN, 2001, p. 185).

Na modernidade liquefeita, ao invés do casamento, é preferível o ―viver junto‖, supondo a

questão da transitoriedade, na qual, o rompimento poderá vir a acontecer a qualquer momento,

quando o desejo ou a necessidade desaparecem.

Se manter-se juntos era uma questão de acordo recíproco e de mútua dependência, o

desengajamento é unilateral: um dos lados da configuração adquiriu uma autonomia que

talvez sempre tenha desejado secretamente mas que nunca havia manifestado seriamente

antes‖. (BAUMAN, 2001, p. 187, grifo do autor).

A transitoriedade, em sua brevidade, parece eterna, nossos vizinhos, a família, colegas de

trabalho dificilmente serão permanentes, tendo em vista sua fluidez. A permanência não tão

encontrada na modernidade líquida, faz com que agir a ―longo prazo‖ não tenha mais tanta

credibilidade, provavelmente, nos depararemos, nos dias que se seguem, com nossa vizinhança,

colegas de trabalho diferentes ou mudados. Na Conversa Corporal, estamos sempre em transição,

momentos em que se formam, podem não ocorrer por muito tempo, tendo em vista que agimos

conforme nossos desejos, fazendo com que a liquidez siga sua correnteza.

A escolha de um grupo, possuinte por afinidades e afetividades, colabora a essa correnteza a

fluir. Anos de trabalho compartilhados ajudam a entender melhor corporalmente as conversantes

que dialogam e assim interferir, quando preciso, e escutar sempre que necessário, no decorrer e

percorrer dos assuntos.

Num ambiente líquido, imprevisível e de fluxo rápido, precisamos, mais do que nunca, de

laços firmes e seguros de amizade e confiança mútua. Afinal, os amigos são pessoas com

que podemos contar quando precisamos de compreensão e de ajuda no caso de tropeçarmos

e cairmos, e no mundo que habitamos até mesmo os mais rápidos surfistas e os mais

lépidos skatistas não estão seguros quanto a essa eventualidade (BAUMAN, 2007, p. 142).

Enquanto a modernidade sólida preocupava-se com a conformidade e condições de

obediência da humanidade, a modernidade líquida promove a liberdade e autonomia, a

autoconsciência, compreensão e responsabilidade individual, assim como, a dança fluida de nossas

conversas.

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O diálogo dos acasos

Não captaríamos, nesses estranhos acasos, ecos de nosso próprio ser

sensível?

Fayga Ostrower

A Conversa Corporal em suas investigações laboratoriais e o trabalho cênico Parla

possuem como característica o acaso. Em função do sorteio de um tema, as conversantes apenas

ficam cientes de sua provocação, minutos antes da improvisação, na qual, todos os acontecimentos

são realizados em tempo real. Salles (2008) aponta que o acaso desperta ―seu dinamismo criador em

meio à continuidade - gera novas possibilidades de obra na perspectiva temporal do processo

criador‖ (SALLES, 2008, p.133).

Conecto, então, a fluidez e a ideia de organismos líquidos em suas adaptabilidades como

facilitadores dessa continuidade em criatividade do acaso. Como a dança acontece ―aqui e agora‖, é

necessário que o corpo pense e aja com mais rapidez, não no sentido veloz do mover, mas de estar

aberto ao leque das possibilidades e saber tomar decisões.

Fayga Ostrower (2013), em Acasos e criação artística, nos convida a refletir o acaso, não

apenas como meras coincidências ou incidentes imprevistos, mas como algo, além disso,

significativo e movedor da imaginação: ―Pensando bem, até parecem uma espécie de catalisadores

potencializando a criatividade, questionando o sentido de nosso fazer e imediatamente

redimensionando-o. Talvez contenham mensagens, propostas nossas endereçadas a nós mesmos‖

(OSTROWER, 2013, p. 21).

Nunca se trata, então, de acontecimentos aleatórios, no sentido de não estarem relacionados

com a pessoa que os percebeu. Antes, pelo contrário, devemos entender que, embora jamais

os acasos possam ser planejados, programados ou controlados de maneira alguma, eles

acontecem às pessoas porque de certo modo já eram esperados. Sim, os acasos são

imprevistos, mas não são de todo inesperados – ainda que numa expectativa inconsciente

(OSTROWER, 2013, p. 25).

Essa expetativa alumbrará questões inspiratórias, não somos passíveis aos estímulos,

somos receptivos, a partir de algo existente potencialmente, encontrando no acaso uma ocasião para

se manifestar concretamente. Portanto, são as pessoas que vão ao encontro dos acasos, ao

procurarem a realização de suas potencialidades. Acasos esses que são próprios de cada um. O

próprio viver é a fonte da criatividade e experiência artística, sendo os acasos caracterizados como

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momentos de intensidade existencial, elevada, e a criatividade aliada à sensibilidade do ser,

complementando-se (OSTROWER, 2013).

Embora os acasos representem momentos em si específicos, tanto nas circunstâncias em

que ocorrem como nas referências íntimas à pessoa que os percebe, mesmo assim eles

haverão de transcender essa especificidade, reportando-se, ulteriormente, a vivências gerais.

Sempre levam nossa imaginação a intuir, além do fenômeno particular, um estado de ser

geral e de equilíbrio, ritmos de vida. (OSTROWER, 2013, p. 31).

O coreógrafo Merce Cunningham, a partir dos anos 50, introduziu o uso do acaso como

elemento originador da construção coreográfica de seus trabalhos, esse procedimento era

denominado por ele de chance operation, na qual:

Frases coreográficas, previamente compostas, seriam submetidas a sorteios, através do I

Ching, de moedas e de outros meios, para decidir em qual ordem elas se sucederiam, qual o

padrão rítmico e sua duração, para quantos e quais bailarinos seriam atribuídas essas frases,

e como distribuir tudo no espaço. Cunningham utilizou o procedimento até construir

sequências específicas para diferentes partes do corpo, e através da chance operation,

estabelecer como elas se articulavam entre si, o que se tornou uma fonte de desafios de

coordenação motora (AMORIM; QUEIROZ, 2000, p. 88-89).

Através desse sistema de organização pelo acaso, Cunningham percebe, pelos sorteios, um

caminho para desestruturar a forma que o corpo prevê movimentos, acontece o rompimento dos

códigos tradicionais das possibilidades corporais (GIL, 2001).

Ele põe de certo modo a ―assinatura corporal‖ à prova, procurando conseguir desviar os

movimentos da sua propensão a se organizar sempre segundo as mesmas escolhas

inconscientes [...] Cunningham convoca precisamente os jogos de azar para perturbar os

circuitos perceptivos. Trata-se de impelir o sistema nervoso a inspirar-se em ―graus de

liberdade‖ latentes, a fim de atualizar potencialidades motoras não percebidas. (SUQUET,

2008, p. 531-532).

Essas latências, citadas por Suquet (2008), são identificadas pelos acasos, como explica

Ostrower (2013), e encontram num acontecimento imprevisto a oportunidade em sua realização, e

isso só é possível se, de fato, estivermos prontos e disponíveis aos acontecimentos.

O acaso, então, desvia o artista um pouco de sua zona de conforto, de seu local conhecido,

que inconscientemente retorna sempre que necessário, fazendo o corpo encontrar capacidades

outras, passadas despercebidas, não exploradas. Isso é possível porque ―Há no ser de cada pessoa

certas áreas de sensibilidade, a partir das potencialidades latentes, que serão ativadas pelos

acontecimentos, transformando-se em enfoques para os próprios acontecimentos‖ (OSTROWER,

2013, p. 25).

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Quando ocorrem, os acasos nos revelam a existência, por assim dizer, de analogias ocultas

entre fenômenos. Sua descoberta pode nos surpreender num primeiro instante, mas ela

assume imediatamente a forma de uma nova lógica, de um novo modo de entender as

coisas. Assim os acasos iluminam espaços vivenciais que se abrem à nossa mente e, à

medida que os ocupamos, o mundo vai se ampliando para nós (OSTROWER, 2013, p. 30).

Segundo a autora, o acaso inspirador, intuitivo e luminoso é uma ampliação do real, uma

experiência quase mística ao se deparar com suas profundezas, sensibilidade e inteligência. São

momentos de muita mobilização, podem trazer sensação de felicidade, mas também, de inquietação.

Há novas convocações de possibilidades, ainda não realizadas, atraindo sua realização.

Nos acasos, é possível reconhecer, de uma vivência, sua essência, seu profundo sentido. Em

nossa memória, os aspectos irrelevantes são retirados do evento, assim, a variação de conteúdos

expressivos podem interligar-se na imaginação, uma vez que:

Para os processos criativos, é indispensável que as experiências tenham sido abstraídas em

puros significados. Evocadas, poderão ser assimiladas nas feições de matérias das mais

diversas (físicas ou psíquicas), assumindo suas formas características e, em novos padrões

expressivos, enriquecendo a sensualidade da própria linguagem. Desse modo, os acasos se

identificam com os momentos de inspiração (OSTROWER, 2013, p. 286).

Ostrower (2013) comenta que os acasos são surpreendentes; carregados de um

conhecimento novo. Porém, essa inovação só é possível a partir de um contexto existente, de nossas

expectativas. Com isso, os acasos tem o poder de reformular a memória em sua continuidade.

É como se janelas se abrissem sobre novos horizontes do possível. Então poderão entrar

acasos significativos, evocando emoções e ideias que nos fazem reavaliar os fenômenos.

Nesses momentos, a pessoa atinge uma profunda interiorização e o pleno poder de refletir

sobre si. Os acasos acontecem em estranhas coincidências. Eles nos acenam. E nós já

sabemos do que se trata: uma nova compreensão de coisas que no fundo sempre existiram

em nós (OSTROWER, 2013, p. 303).

Os acasos assim se apresentam como interessantes meios de descobertas, de percorrer dentre

as possibilidades e a sensação do novo. Perceber significados outros de vida, despertando outras

emoções, convocando novas informações e permitindo formas diferentes de compreender uma

experiência. Possibilitam um mergulho interior em reflexão própria. Os acasos estão ali, apenas

esperando a oportunidade de expressar um conjunto de opções na qual nos disponibilizamos a

vivenciar.

Encontramos nos acasos, em Parla e todo seu procedimento investigativo, um meio de nos

abrirmos às experiências, deixando seu fluxo escorrer por entre os pingos, chuvas, correntezas e

dilúvios, por intermédio de nossos afetos, ao abarcar a totalidade do ser sensível e constituinte de

emoções e sentimentos.

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Processo de construção cênica e experimentos públicos: Parla

O processo de criação é o exercício da linguagem dança. O corpo do artista, em sua potência

criativa, liga-se à sua singularidade e experiências, esse corpo cria, portanto, sua própria linguagem

(SILVA, 2016). Rocha (2016) associa o processo ao tempo, como se lidássemos com algo infinito,

infinitamente desdobrável, estar sempre nos ―entres‖: ―Um tempo imensurável pelo relógio, tal

como nos acostumamos a dividi-lo. E já o dividimos de tal modo que nos esquecemos de que se

trata apenas de uma convenção, e não da verdade do tempo‖ (ROCHA, 2016, p. 59). A autora

explica que o tempo também é processual em sua natureza, aliado a ideia de,

[...] uma espiral e não uma linha progressiva na direção de um infinito à frente (futuro) [...].

O tempo do/no corpo não coincide necessariamente com o tempo cronológico, tal como

convencionamos. São múltiplas temporalidades, modos distintos de perceber o tempo no/do

corpo. E isso já é quase uma dança (ROCHA, 2016, p. 59).

Nossas percepções, acerca do trabalho artístico, têm grande importância no que compete a

compreendermos a nós mesmos, em função de nossas ações, perante um processo de criação e sua

gama de relacionamentos, constroem-se novos lugares, novas possibilidades criativas,

compartilhando e trocando experiências (LACINCE; NÓBREGA, 2010).

Após nossas dez conversas em laboratório para a experimentação da pesquisa, foi

preciso pensar como seria levado o trabalho para a cena. A princípio a ideia constituía em utilizar o

material levantado, durante a investigação laboratorial, tecendo construções coreográficas, a partir

dos dez temas explorados. Tal concepção ocorreu no primeiro dia do processo de construção, na

EDTAM, mas percebemos que fugia completamente do que até então havíamos vivido.

Como afirma Larissa Tibúrcio (2016), os processos criativos se mostram como espaços

frutíferos à formação daqueles que vivenciam, é um lugar de escolha, definição de percursos,

refazimentos, de rever perspectivas, da descoberta de modos de expressão e avivamento da

sensibilidade:

O ato criativo nos põe em contato com o imprevisível e o inusitado. Muitas vezes,

delimitamos um percurso, e este vai sendo alterado e reordenado no decorrer da construção

coreográfica. A criação abriga idas e vindas, trajetos que quase sempre vão se definindo no

porvir de cada experimentação (TIBÚRCIO, 2016, p. 147).

Por que, então, não transportar o laboratório, tal como é para a cena? Contudo, ao discutir

sobre a possibilidade levantada, entendemos que deveria haver um cuidado maior, pois, haveria

pessoas para a apreciação. Era preciso aguçar ainda mais a percepção, notar quando a energia da

cena poderia estar caindo; em que momentos realmente se faria necessário entrar ou sair da cena;

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quando seria possível intervir com o público e saber lidar com as diversas respostas; como iniciar e

como finalizar, afinal, optar pela improvisação, como norteadora da construção cênica, em tempo

real, é entrar em um campo de riscos, ativando a escuta, respeito, responsabilidade e

disponibilidade.

Assim sendo, em nossa próxima conversa experimental, como fim cênico, sentamos para

dialogar sobre como levaríamos o laboratório para a cena. Como já explicitado anteriormente, o

procedimento da Conversa Corporal, sabemos que, de início, respondemos à questão ―Como me

sinto hoje?‖ Decidimos, portanto, que no início da cena, as conversantes Gabriela, Júlia, Margoth e

Thaíse, questionariam os apreciadores como se sentiam, naquele dia, entregando-os um papel e uma

caneta para responderem a pergunta, e posteriormente, dobrar o papel para que a resposta não fosse

vista e depositassem seus papéis no pandeiro que a conversante Larissa passaria para colocarem.

Feito isso, as conversantes escreveriam suas respostas, Thaíse sortearia um papel do pandeiro e

leria, em voz alta, para que todos pudessem estar a par da resposta escolhida, que

consequentemente, seria nosso tema.

Normalmente, em nossos rituais de sorteio em laboratório, reúno todos os papéis, misturo e

jogo-os para cima a fim que uma das conversantes pega um papel. Como faríamos isso e os papéis

continuariam espalhados pelo chão, optamos por utilizar papéis coloridos (verde, laranja, rosa,

amarelo), que dariam um diferencial estético e composição à cena.

Seguimos à próxima cena. Delimitado o tema, sentaríamos em círculo, como de costume,

para prosseguir com a concentração. Estipulamos a escaleta como instrumento que Larissa tocaria e

identificaríamos um sinal para podermos abrir os olhos e dar início à improvisação em dança. O

sinal seria uma pausa de quatro tempos, seguida de uma sequência melódica, diferente da qual

iniciou a meditação. Originalmente para os laboratórios, a concentração tem duração aproximada de

cinco minutos, pensando no público, diminuímos para uma média de 2 minutos, a fim de que não se

tornasse muito cansativo.

A terceira cena – a improvisação teria seu acontecimento, conforme os laboratórios, de

forma livre, estando atentas às percepções levantadas, contendo apenas dois acordos prévios: o tema

e a finalização. Larissa também, livre para improvisar com os instrumentos que desejasse, apenas

usaria o violão, como último instrumento, nosso sinal de finalização. Ao ouvirmos o som do violão,

saberíamos que a cena precisaria ser encaminhada para seu encerramento. Assim que todas

finalizassem, Larissa permaneceria por mais alguns instantes tocando o instrumento e a conversa

estaria finalizada.

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Realizamos a primeira experimentação por esse viés no Parque das Dunas, imaginando o

público à volta. Naquele dia, nossas respostas foram: 1. Calor. 2. Extrato do tempo quase memória.

3. Na expectativa. 4. Tempo. 5. Um muito mais de compaixão. Sendo sorteado como tema ―Extrato

do tempo quase memória‖, de Thaíse. O objetivo neste tópico não mais é relatar, através dos

diários, como aconteceu a conversa, mas procurar explicar como se deu o processo da construção

cênica.

Ao pensarmos, durante a experimentação, em nós, a respeito de nossos desejos, enquanto

intérpretes e criadoras, mas também do possível público ao nosso redor, percebemos atraí-lo,

mesmo não sendo nosso propósito inicial. Duas crianças repetiam alguns movimentos das

conversantes, enquanto uma adulta estava a nos observar e a observá-las. As crianças despertaram

um lugar de comoção entre nós, diretamente, relacionamos ao nosso tema, a um passado, ao tempo,

à memória. A adulta, interessada em nossa movimentação, foi ao nosso encontro, procurando sanar

sua curiosidade e expor suas percepções.

Após tudo planejado sobre o trabalho, dividido em três cenas, com alguns acordos, foi

preciso refletir sobre questões relacionadas ao figurino, elementos cênicos e maquiagem. Sugeri,

então, em relação ao figurino e maquiagem, seguir a linha da própria pesquisa: liberdade e

autonomia de escolha, conforme seu sentir do dia. Cada conversante estaria livre para determinar

qual roupa e cor gostaria de usar segundo seus desejos, como se sentia; a única imposição seria a

informação escrita; não usaríamos nada que desviasse a atenção, por assim dizer, do público, que

não fosse o movimento dos corpos. O mesmo se daria com a maquiagem, cada conversante poderia

usar o que quisesse ou mesmo nada, desde que não houvesse exageros, que possivelmente, também

poderiam desviar do objetivo.

Nossos elementos de cena – os instrumentos (violão, escaleta, triângulo, gaita e castanhola –

utilizados pela conversante Larissa; e outros instrumentos de percussão – que poderiam ser

utilizados pelo público) estariam dispostos por cima de um tapete vermelho.

A estreia do trabalho intitulado PARLA aconteceu, no dia 28 de setembro de 2017, dentro da

programação da IX Reunião Científica da ABRACE: Diversidade de Saberes As Artes Cênicas em

diálogo com o mundo. Como espaço nos foi sugerido o belo hall de entrada do auditório da Reitoria

da UFRN.

Estávamos turbilhonadas por toda dúvida, ansiedade e nervosismo que acompanham uma

estreia e nosso primeiro contato oficial com uma plateia. Ajeitamos o tapete com os instrumentos,

em um largo corredor, que dava do hall para fora da reitoria. Eram muitas pessoas espalhadas pelo

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espaço, nos distribuímos com os papéis e canetas para a realização de nossa primeira cena, que

talvez não tenha ocorrido, o momento em que imaginávamos, pois, a dispersão das inúmeras

pessoas não contribuía para que aquela nossa primeira ação fosse realmente entendida como uma

cena.

Com isso, acabamos nos atrapalhando, nossas respostas nos papéis, que fariam parte da cena

também, acabaram se tornando imperceptíveis e nos desorganizando um pouco e deixando o tempo

mais corrido. Nem todas as pessoas dobravam os papéis e depositavam no pandeiro, muitas

entregavam do mesmo jeito que receberam, apenas com a resposta e acabamos tendo que dobrá-los

e colocá-los no instrumento. Como éramos poucas, para tantos pesquisadores, contamos com a

ajuda de alguns participantes do PIBID de dança da UFRN que, na ocasião, ajudavam na

organização do evento.

Durante esta etapa de questionamento, gostaria de destacar um acontecido. Perguntei a um

garoto como se sentia, ao sorrir para mim, afirmou que já havia escrito, mas que gostaria de

responder novamente, pois, de sua resposta anterior até aquele momento, seu corpo havia mudado,

já havia se relacionado com outras pessoas, ocasionando outras conversas, e seu encontro comigo,

também moveu outros afetos, portanto, sua percepção corporal havia se modificado. Assim como

para mim, nosso encontro me alterou, pude me perceber respirando mais tranquila e confiante.

Tendo coletado os sentires, resolvemos usar o espaço de forma que as pessoas pudessem

notar melhor o que estava acontecendo. Com o auxílio de um de nossos amigos, Iego José se propôs

a nos ajudar e subir uma escadaria, jogar os papéis do alto, de forma que criassem uma breve chuva

de papéis coloridos, caindo por cima de nós. De fato, chamou a atenção das pessoas e, aos poucos,

começou a se formar um círculo em volta de nós.

Como combinado, Thaíse sorteou um papel que continha: ―Eu me sinto bem‖, anunciou em

voz alta, mas poucas pessoas tiveram a oportunidade de ouvir. Dentre os numerosos papéis

continham respostas como: 1. Incomodad@. 2. Capaz. 3. Cansada. 4. Me sinto feliz, sereno, pleno,

inteiro. 6. Leve, talvez pelo amarelo que trouxe sorrisos, alguns amarelos. 7. Cansado. 8. Me sinto

perdido, injustiçado, irado e atordoado! 9. Um dia lindo que a chuva semeadura, traz colheita e

união, Evoé!!! 10. Feliz, sei lá... 11. Turbulências. 12. Em processo de cura. 13. Deusa. 14.

Abraçada. 15. Com sono, mas muito pensativa. 16. Distanciada.

Iniciamos a concentração no hall, e depois, demos inicio à improvisação, e aos poucos, nos

dirigimos ao corredor, onde estavam os instrumentos e permanecemos até a finalização da cena.

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Imagem 28 - Parla (ABRACE)

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafo: Eduardo Vianna (2017)

A imagem 28 corresponde ao início da improvisação, é possível notar a disposição escolhida

para a concentração, neste momento, ainda no hall e no local em que caíram os papéis coloridos.

Mesmo não havendo uma escolha antecipada dos figurinos, é possível traçar semelhanças, o uso do

preto é visível em uma peça de cada conversante, o azul nas peças de Larissa e Thaíse, o amarelo

em Júlia e Margoth, e a cor cinza em Gabriela e Margoth.

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Imagem 29 - Parla (ABRACE)

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafo: Eduardo Vianna (2017)

Na imagem 29, podemos visualizar o corredor em que foi desenvolvida a maior parte do

trabalho, ao lado das conversantes Gabriela e Thaíse, o tapete vermelho com os instrumentos. A

fotografia relembra a cena final.

Pudemos notar a resistência do público, em alguns momentos, para adentrar o espaço e

interagir diretamente conosco, mas as pessoas, que se dispuseram, proporcionaram agradáveis

diálogos. ―Nada restará ao público, a não ser a desconcertante assunção de seu próprio

desaparecimento como sujeito-espectador e correlativo reaparecimento como motivo da

composição – suas expectativas, seu lugar, seu papel no regime da representação‖ (ROCHA, 2016,

p. 43). O público, então, se torna parte da construção cênica e o desenrolar das criações são

impulsionadas pela conversa instaurada, o público transforma-se em conversante.

Inicialmente, pensamos que os instrumentos estariam dispostos para que o público pudesse,

além de conversar em improvisação dançada, conversar pelos instrumentos também, porém, não

houve nenhuma iniciativa, o que acarretou, na ação, partir de nós. Larissa e algumas conversantes

distribuíram instrumentos entre os apreciadores, que, de início, meio timidamente, arriscavam fazer

algum som. Uns passavam o instrumento adiante, outros devolviam, outros permaneciam até o fim

com o mesmo instrumento.

Houve respeito ao perceber, quando apenas uma ou duas conversantes precisavam estar em

cena e no momento em que a cena necessitasse de todas as conversantes. Nossa primeira

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experiência pública, mesmo um pouco conturbada, foi realizada em diálogos envoltos de amor pelo

acaso de sentir-se bem.

Imagem 30 - Parla (ABRACE)

Fonte: Acervo pessoal. Fotógrafo: Eduardo Vianna (2017)

Nossa segunda conversa em experimento público aconteceu no dia 26 de outubro de 2017,

dentro da programação da IX Semana de Licenciatura em Dança da UFRN: A cena em ação na

dança, na qual, Parla dividiu a noite com o trabalho Interconexões com a coordenação de Patrícia

Leal, seguido de um bate-papo com o público.

Para esse segundo experimento, em conversa com a orientadora da pesquisa Patrícia Leal e

com o grupo de conversantes, sentiu-se a necessidade de algumas modificações no trabalho

artístico. Parla é entendido como um trabalho em constante criação, aberto às mutações, assim

como Ostrower (2013), afirma que os processos de criação abarcam processos de transformação, no

qual, seus desdobramentos geram novas características, portanto, ―[...] toda forma artística será

forma gerada num processo de transformação‖ (OSTROWER, 2013, p. 222), nosso trabalho

artístico precisou de algumas transformações em sua estrutura.

Antes dividido em três cenas, dobramos para seis, ao rever mais acordos prévios. A primeira

continuaria com o questionamento da pergunta ao público e o sorteio do tema. A segunda também

permaneceria na concentração, ainda com a escaleta, definindo e dando a deixa para o início da

improvisação, permanecendo o instrumento por um tempo. A terceira aconteceria com a mudança

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de instrumento, na qual seria a deixa para a evidência de apenas uma conversante, não importando

qual fosse. No caso, uma de nós seguraria a cena sozinha, enquanto as outras observariam.

A quarta cena, com a troca de instrumento, seria o momento de evidenciar Larissa e sua

música, todas as outras iriam ao seu encontro a observá-la, podendo fazer movimentos mínimos e

pequenos, se assim desejassem. A quinta cena, trocando de instrumento, viria a interação com o

público, em que distribuiríamos instrumentos e convidaríamos as pessoas para adentrarem o espaço

conosco. E para finalizar, permanecemos com a ideia do violão, como deixa para a finalização da

cena.

Como foi possível notar, o motivo de todas as trocas de cena tornar-se-iam as mudanças de

instrumentos, não definimos quais instrumentos (a não ser o início e fim), assim, Larissa poderia

fruir de seus desejos musicais dançados, como também, não se definiu qual conversante seria

evidenciada na terceira cena e nem quais e quantas pessoas poderiam ser convidadas a adentrar o

espaço cênico diretamente. Apesar dessa predefinição, de acordos cênicos, foi mantida a liberdade,

caso fosse percebido que algo não funcionasse ou sentíssemos a necessidade de realizar outros

caminhos, em função do melhor diálogo entre nós, conversantes e apreciadores.

Porém, desta vez, não seria possível a presença da conversante, Thaíse Galvão, que devido a

seu trabalho junto ao Gira Dança, precisou ir a uma viagem para fora do estado. Portanto, sentimos

a necessidade de um laboratório apenas com as quatro conversantes que estariam dialogando, na

Semana de Licenciatura em Dança.

Laboratoriamos no Parque das Dunas, seguindo nossos acordos prévios, tal qual combinado

para as mudanças da próxima conversa pública. Para a resposta dos sentires, escrevemos: 1.

Carregando... 2. Esperançosa. 3. Renovando-me, transmutando, em estado de metamorfose e

borboletiando. 4. Satisfeita. Sorteamos o meu sentir: Carregando...

De fato, a conversa desenrolou-se como se estivesse o tempo todo carregando, como se não

completasse, faltasse. Além do mais, havia muita movimentação no parque, especificamente, no

local onde trabalhávamos. Pessoas passando e montando equipamentos, algumas indo a nosso

encontro para conversar. No término, ainda permaneci com esse sentimento de carregamento,

insatisfação.

Em nossa reestreia, na Semana de Licenciatura, a noite teve início com o trabalho

Interconexões e, logo após Parla. O evento aconteceu no Teatro Jesiel Figueiredo (Teatrinho) do

Departamento de Artes da UFRN. Para tanto, nos dispomos sentadas separadamente entre as

cadeiras destinadas ao público, onde permanecemos, nesta condição, durante o trabalho coordenado

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por Leal. As cadeiras ficaram próximas às paredes, como se formassem um círculo e haviam

algumas distribuídas pelo centro. A professora Laura Figueiredo estava responsável pela

iluminação. O tapete com os instrumentos ficou posicionado em um canto do teatrinho, em uma

brecha, entre as cadeiras que estavam no círculo, um pouco mais à frente do público.

Assim que finalizou Interconexões, o público aplaudiu e os intérpretes-criadores sentaram

aos seus lugares, iniciamos nossa conversa. Ainda sentadas, primeiramente questionamos às

pessoas, que se sentavam ao nosso lado. Lembro-me de me virar para o garoto do meu lado e

indagar: Posso te fazer uma pergunta? Percebi-o encabulado, olhou para o outro lado para ter

certeza de que a pergunta, que eu fazia, realmente fosse para ele. Então complementei: É para você

mesmo a pergunta! Ele olhou novamente para mim e, mais uma vez, em dúvida, perguntou: Eu? E

novamente, eu afirmei. O garoto não havia se dado conta que teria iniciado outro trabalho artístico e

que a pergunta fazia parte da cena. Conforme me virava, a outras pessoas e, concomitantemente, as

outras conversantes, realizavam a mesma ação, entendemos que ali se iniciava outra proposta

cênica; andando pelo espaço e indo ao encontro de várias pessoas. Assim, coletamos os sentires que

circulavam pelo teatrinho naquela noite.

Desta vez, a questão visivelmente fez parte da cena, diferente da primeira experiência cênica

e ocorreu, conforme havíamos planejado: as pessoas respondiam, dobravam seus papéis e

depositavam no instrumento que Larissa passava para reuni-los. Para finalizar as respostas, cada

uma das conversantes, em seu tempo, sentou-se no chão e deu sua resposta também em cena.

Para esta experiência, decidimos que o sorteio seria feito por uma pessoa da plateia, então,

me dirigi a um homem e perguntei se ele gostaria de sortear um dos papéis, aceitando meu convite,

expliquei que jogaríamos os papéis para cima e ele pegaria apenas um, abriria e leria o que estaria

escrito e, assim sorteamos o tema: ACHO QUE BOM!

Dentre outras respostas, pudemos encontrar as seguintes: 1. Foi bem dinâmico, a parte

enfileirada foi um pouco perturbadora pela diversa quantidade de sons em volume alto. 2. Feliz. 3.

Ansiosa. 4. Triste. 5. Com Saudade... 6. Me sinto invadida por uma saudade enorme daquele mar. 7.

Colorida. 8. Eu estou com a adrenalina bastante elevada! 9. Dolorida. 10. Ok não sei! 11. Pensativo.

12. Estou cansado, chapado então tá tudo ótimo. 13. Um pouco cansado, mas feliz com os últimos

acontecimentos. 14. Leve. 15. Indecisa. 16. Inseguro, acuado, cansado, preocupado, porém grato e

esperançoso. 17. Incompleto. 18. Com fome. 19. Feliz, porém inseguro. 20. Um pouco culpado,

também confuso, mas feliz. 21. Poderosa. 22. Angustiado! 23. Trêmula. 24. Meu dia foi muito

cheio, mas me sinto feliz, porém, após a apresentação senti medo. 25. Me sinto com a sensação de

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dever cumprido! 26. Estou me sentindo bem, animada e com preguiça ao mesmo tempo. 27.

Apaixonada. 28. Grato por tudo! 29. Cansada. 30. Ansiedade. 31. Me sinto bem. 32. Muito cansado,

vó. 33. Alegre, satisfeito, realizado, obrigado.

Partimos para a segunda cena. Concentramo-nos no centro do espaço, dispostas em um

círculo sentadas, onde também demos início à improvisação, a partir do tema ―acho que bom‖. Na

terceira cena, ao perceber o desenrolar do diálogo instaurado, Margoth e eu nos sentamos a observar

Júlia que em pé, dançava ao som do triângulo de Larissa. Então, senti vontade de dar continuidade à

cena de Júlia e tomei como base seus movimentos, conversando ao seu lado, Margoth, após

observar nós duas, fez o mesmo e instauramos um cânone com base na movimentação do solo de

Júlia.

Aos poucos, nos dirigimos ao tapete onde Larissa se encontrava, me deitei à sua frente, e

assim, as conversantes também se aconchegaram. Larissa suavemente trocou seu triângulo pela

gaita, dialogando na quarta cena. A leveza mais uma vez pairou pelo ar.

Fez-se um pequeno silêncio e, na quinta cena, distribuímos alguns instrumentos pela plateia,

que passavam por outras mãos e criavam nosso ambiente sonoro percussivo. A fim de convidar o

público a dançar diretamente na cena conosco, me dirigi a uma garota que estava sentada pelo

centro, fiz algumas movimentações me apoiando em seu corpo, mas percebi que não estava disposta

a aprofundar uma conversa comigo, aos poucos, me distanciei, permaneci sozinha pelo espaço até

encontrar um corpo familiarmente, já conhecido pelo meu: Ana Vieira, ou como eu a conheço:

Aninha. Já a tinha avistado antes, silenciosamente pensei: que saudades de dançar com Aninha! O

desejo antes pensado realizou-se, quando Aninha aceitou meu convite e pude brincar e dançar com

ela, mais uma vez em cena, despertando sorrisos e enchendo minha saudade. Atravessei o espaço

com ela, Aninha convidou outro corpo: André Rosa que então dialogou comigo e, já se sentindo em

casa, ficou à vontade pela cena, dialogando com as outras conversantes também.

Puxei outro corpo próximo a mim: Maxs Lima, que logo também ficou à vontade com todos

em cena. Ao escutarmos o som do violão de Larissa, nos atentamos a sexta cena, nossa finalização.

Aos poucos, deixamos as pessoas da plateia que conversavam conosco – o que não impossibilitou

de André e Maxs permanecerem em diálogo juntos na cena – Júlia, Margoth e eu nos juntamos até

nos separarmos e sentarmos entre a plateia, deixando Larissa e o violão darem as últimas notas.

Após essa experiência, Margoth desejou responder nossa pergunta novamente, pegou um

papel do monte e uma caneta, anotando seu sentir como resultado dos diálogos daquela noite: Meu

coração está alegre, meu corpo treme de nervoso e minha alma canta na calmaria.

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Imagem 31 - Parla (Semana de Licenciatura em Dança)

Fonte: Acervo pessoal (2017)

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CONSIDERAÇÕES CONTÍNUAS

Com a realização desta pesquisa, foi possível perceber a importância para os corpos de uma

experiência concernente, não apenas de uma prática diária por repetições mecânicas, que muitas

vezes, tornam-se duras e afetam a construção do conhecimento, mas poder trazer, como principal

impulso, o que nos afeta diariamente, fazer uso do que sentimos como potência para a criação em

dança.

Pôde-se observar a repetição a partir de Fernandes (2007), como um recurso de

aprimoramento técnico, criação e, evidentemente, presente nas obras de Pina Bausch, como

transformação.

A dança, que corresponde ao indivíduo, é repleta de memórias, mergulhos à intimidade e

percepções sensíveis aos desejos que podem ter a possibilidade de serem externados através da

exploração livre de movimentos, de forma que a experiência venha a ser proporcionada pela

improvisação.

Improvisação em dança é entendida, a partir de Leal (2012a), como a técnicas de criação,

interpretação e preparação corporal que, nem de longe, corresponde ao pensamento do senso

comum, como algo sem preparo, mas sim, uma possibilidade potente na dança, em que o

conhecimento é necessário à sua experimentação. É importante perceber que estar presente no

momento e a entrega, são essenciais às emergências e permeiam as experiências com a

improvisação.

É pensar um corpo líquido, capaz de fluir em diálogos que não apenas dizem respeito à fala,

mas faz uma conversa que está aberta a todas as possibilidades corporais. Ouvir é preciso, assim

como, o Contato Improvisação nos proporciona a experiência da escuta do(s) corpo(s).

Sendo, portanto, os diários importantes documentos capazes de exprimir a experiência

íntima e sensível, de forma mais próxima, à dança investigada, registrando e propondo outro

caminho para uma escrita que possa ser inserida também dentro das diretrizes acadêmicas. Afinal,

contraditório talvez fosse defender uma dança que não precisasse necessariamente de uma

metodologia imutável, dentro de padrões antigos, não correspondentes ao momento atual e moldar a

escrita sobre essa dança dentro de uma caixinha formal, sem poder desviar de alguns formatos.

Perceber também, o diário como uma extensão da experiência, ou ainda, como Oliveira (2015) nos

proporcionou, é pensá-lo como ―corpo-diário‖.

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Os afetos concernentes, aos nossos encontros, não apenas estão relacionados à arte, mas, aos

relacionamentos da vida que constroem, segundo por segundo, os indivíduos em seus poderes de

afeto e disponíveis às transformações. Como foi possível perceber, ao conversar com Quilici (2012)

e Caetano (2012), os afetos possuem uma força atuante no artista e em quem compartilha a

experiência em refazimentos de si através de suas relações artísticas. Portanto, a interação

observada em Salles (2008), é uma das propriedades importantes para o processo de criação.

Que possamos imergir cada vez mais em experiências essas, que são únicas e particulares do

indivíduo e, realmente ser, como Larrosa (2002) explica, o sujeito da experiência, que é tocado em

cada vivência, e estarmos abertos à transformação com o saber da experiência que nos constrói

continuamente. Assim como o é a singularidade de nossas emoções e sentimentos, que, nessa

pesquisa, encontraram um espaço imprescindível ao mover e comover a dança.

É preciso perceber, como um ato de autoconhecimento e conscientização, é imprescindível à

criação, à dança, à vida, pois, assim como se pode observar através de Ostrower (2013), o ato de

perceber resulta de uma síntese integradora, correspondente a níveis afetivos e intelectuais.

Entre esses importantes discernimentos, é fundamental perceber a concentração – adaptação

de experiências meditativas para a dança/criação – não apenas como uma possibilidade de auxílio à

preparação e criação artística e ampliação do ser, mas como também uma possibilidade cênica.

Foi possível compreender em Damásio (2011, 2012) que a emoção constitui modificações

do corpo, resultando em um estado emocional que, quando experimentadas se tornam sentimentos.

Mas, como nem todos os sentimentos proveem de emoções, tratando-se da improvisação em dança,

Leal (2012b) destaca os sentimentos de fundo como recorrentes nas práticas, que não derivam de

emoções, pois, são estados que acontecem entre as emoções e são mais constantes ao longo da vida.

E, em se tratando de sentimentos e emoções, pudemos notar em Laban (1978) o fator de

movimento fluência e expressá-lo, caracterizando-o pelo ―como‖ se realiza um movimento, que

pode ser livre ou controlada, no qual o fluxo do movimento é um aspecto da fluência. Foi possível

traçar um diálogo entre os estudos de Laban (1978), com a fluidez característica dos líquidos

variantes de fluídos que tem como propriedade o fluxo, a partir das reflexões de Bauman (2001),

pois ambos ressaltam a capacidade de mudança proporcionada pela fluidez, na qual, a leveza,

percebida durante as conversas, é associada à mobilidade dos fluidos.

É preciso, cada vez mais, o despertar da sensibilidade em seu poder de afloração da arte, em

sua maravilhosa intensidade. É preciso deixar fluir a sensibilidade, banhar as terras para que

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possamos residir em um mundo mais sensível e, como o diálogo com Duarte Júnior (2004) propôs,

saborear e incorporar os elementos do mundo em cada um nós.

Liberdade. Liberdade para sermos quem somos. Os corpos em suas diversidades precisam

dançar, independente de físicos predefinidos como perfeitos, afinal, vimos que a não perfeição se

torna mais interessante, faz não cessar a busca ininterrupta dos desejos. Fazendo com que essa

liberdade nos proporcione a autonomia e poder de escolha, deixando os processos em contínuos

processos, para que seu desenvolvimento não cesse e a procura da arte, que arrepia, esteja sempre

presente. Pois, como observado em Salles (2008), foi possível entender, que o inacabamento não

desvaloriza o trabalho que é compartilhado com o público, mas, desse modo, desmistificamos a

ideia do trabalho como algo final e sem possibilidade de atualização.

Dançar pelo acaso é se abrir ao novo, imprevisível, inesperado, deixar fluir as

possibilidades, desapegar e viver uma nova sensação, um novo sentir, uma nova emoção, que em

afetos múltiplos, modifica o corpo que dança. Os processos em suas construções artísticas

apresentam-se como importantes experiências, não só ao artista, mas à vida que passa a ser refletida

por outros olhares. Através de Ostrower (2013), compreendeu-se que os acasos não são apenas

incidentes imprevistos ou meras coincidências, mas algo significativo e capaz de mexer com a

imaginação. Cunninghan, por sua vez, percebeu no acaso um meio de desestruturação da maneira

que o corpo antecipa movimentos.

Logo, a produção do trabalho artístico – Parla – carrega a intenção de partilha da pesquisa

em laboratório com o público, entendendo-o como um estudo em constante processo e pesquisa,

assim como esta dissertação, constantemente aberta a novos questionamentos, disponíveis a tantos

outros diálogos, que alimentam e constituem a base motivadora da pesquisa. E, nossas vivências

com a Conversa Corporal, tanto nos laboratórios, como nos experimentos públicos, foram

imprescindíveis a essa continuidade da pesquisa e construção artística, o horizonte das

possibilidades estará sempre presente, enquanto deixarmos os afetos nos transformarem.

Acompanhando o texto dissertativo, disponibilizo o vídeo de alguns momentos do

laboratório, da segunda e terceira experiência pública de Parla e uma edição do trabalho adaptado

para a dissertação, como forma de documentação e possibilidade de pesquisa ao leitor. Contudo,

compreendemos Parla como uma experiência em tempo real, as movimentações apresentadas não

são estruturadas e possivelmente não serão realizadas da mesma maneira em outros experimentos

públicos. Por fim...

Conversar, para mim, tornou-se sinônimo de amar.

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E você, como se sente após esse nosso diálogo?

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ANEXOS

ANEXO A – Registro videográfico dos laboratórios da Conversa Corporal

https://youtu.be/0V_DCnsV1A8

O link acima dá acesso ao registro em vídeo de trechos dos laboratórios da Conversa Corporal,

desenvolvidos para esta pesquisa, filmados em 2016 e 2017 na Escola de Dança do Teatro Alberto

Maranhão, Parque da Cidade Dom Nivaldo Monte e Parque das Dunas. Filmagem e edição: Larissa

Paraguassú.

ANEXO B – Registro videográfico do segundo experimento público de Parla

https://youtu.be/LScbaasGQhE

O link acima dá acesso ao trecho do experimento público do trabalho Parla, durante a IX Semana

de Licenciatura em Dança da UFRN: A cena em ação na dança, filmado em 26 de outubro de

2017, no Teatro Jesiel Figueiredo (Teatrinho). Iluminação: Laura Figueiredo. Filmagem: Eliamary

Christiane. Edição: Larissa Paraguassú.

ANEXO C – Registro videográfico de Parla

https://youtu.be/rRtEXHJrne0

O link acima dá acesso a trechos de Parla filmados para a documentação dessa pesquisa, em 07 de

fevereiro de 2018, no Parque das Dunas. Filmagem: André Rosa. Edição: Larissa Paraguassú.

ANEXO D – Registro videográfico do terceiro experimento público de Parla

https://youtu.be/S_f1C0EDHuM

O link acima dá acesso a trechos do experimento público do trabalho Parla, filmado em 26 de

fevereiro de 2018, no hall do prédio anexo do Departamento de Artes da UFRN. Filmagem:

Indiamara Gorges e Jéssyca Paraguassú. Edição: Larissa Paraguassú.