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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE BELAS ARTES Gabriela Córdova Christófaro CONVIVÊNCIA E ALTERIDADE NO PROCESSO DE CONHECIMENTO EM DANÇA: a abordagem de Marilene Martins no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea Belo Horizonte 2018

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Page 1: Gabriela Córdova Christófaro...À Andréia Bernardon, pela competência para cuidar do meu corpo cansado e dolorido. Aos amigos Serginho, Marise e Raquel, pelos momentos de afeto,

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

ESCOLA DE BELAS ARTES

Gabriela Córdova Christófaro

CONVIVÊNCIA E ALTERIDADE

NO PROCESSO DE CONHECIMENTO EM DANÇA :

a abordagem de Marilene Martins no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea

Belo Horizonte

2018

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Gabriela Córdova Christófaro

CONVIVÊNCIA E ALTERIDADE

NO PROCESSO DE CONHECIMENTO EM DANÇA :

a abordagem de Marilene Martins no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para o título de Doutor em Artes. Linha de pesquisa: Artes e Experiência Interartes na Educação Orientadora: Profa. Dra. Mariana de Lima e Muniz

Belo Horizonte

Escola de Belas Artes da UFMG

2018

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À Marilene Martins.

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AGRADECIMENTOS

À Profa. Dra. Mariana de Lima e Muniz, por acolher a pesquisa, por orientar-me com cuidado

e rigor, pelo seu companheirismo.

Aos professores e funcionários do Programa de Pós-Graduação em Artes, pela atenção e

disponibilidade, em especial à Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro, que muito instigou esta

pesquisa na disciplina Metodologia de Pesquisa, por ela ministrada.

Aos professores e funcionários do Departamento de Fotografia, Teatro e Cinema, da

EBA/UFMG.

Aos professores do curso de Dança, em especial à Profa. Dra. Ana Cristina Carvalho Pereira,

Profa. Dra. Anamaria Fernandes Viana, Profa. Ma. Raquel Pires Cavalcanti e Prof. Dr.

Arnaldo Leite de Alvarenga, pelo estímulo e apoio.

Aos membros da banca de qualificação, Profa. Dra. Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra),

Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro e Prof. Dr. Arnaldo Leite de Alvarenga, pela leitura

minuciosa e pelas importantes contribuições.

À Profa. Dra. Lenira Peral Rengel, Profa. Dra. Mônica Medeiros Ribeiro, Prof. Dr. Arnaldo

Leite de Alvarenga e Prof. Dr. Luis Carlos de Almeida Garrocho, que se disponibilizaram a

compor a banca de avaliação desta Tese.

À Marilene Martins e sua família, em especial à sua irmã, Maria Amélia Martins, por

favorecer e autorizar o acesso aos materiais de seu acervo particular.

Aos artistas-professores Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica

Rodrigues, pela preservação e pela cessão dos cadernos de registro para a pesquisa.

À Raquel, pelo compartilhamento de questões caras à atuação artística e à prática docente.

À Ana Cristina, pelo incentivo.

Page 7: Gabriela Córdova Christófaro...À Andréia Bernardon, pela competência para cuidar do meu corpo cansado e dolorido. Aos amigos Serginho, Marise e Raquel, pelos momentos de afeto,

À Mônica, pelo estímulo à confiança.

Ao Arnaldo, pelas conversas, oportunidades e pelo cuidado.

Ao Arnaldo e Dolores, que abriram sua casa e permitiram o acesso à biblioteca.

Ao Sérgio Penna, pelo carinho e traduções para o inglês.

À Andréia Bernardon, pela competência para cuidar do meu corpo cansado e dolorido.

Aos amigos Serginho, Marise e Raquel, pelos momentos de afeto, alegria, dança e vida.

À Vivi, pelo pão.

Ao Tatá, pela cumplicidade.

À Celeste e Sérgio, pela torcida.

Ao Clebinho, pelos momentos em que estivemos juntos.

À minha mãe, Dôra, e ao meu pai, Cícero, pela energia.

Aos meus filhos, Davi e Heitor, pela convivência e pelo amor “maior que o céu e a Terra...”.

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“[...] ajuntar as pernas com o calcanhar no chão e ir subindo lentamente conscientizando e

procurando seu eixo”1

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

1 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e 1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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RESUMO

Trata-se, nesta tese, do processo de conhecimento em dança de Marilene Martins no Trans-

Forma Centro de Dança Contemporânea. Martins é reconhecida por ter fundado a primeira

escola de dança moderna de Belo Horizonte e o Trans-Forma Grupo Experimental de Dança,

que se constituíram em referências importantes para o desenvolvimento dessa arte na capital

mineira. O objeto da pesquisa foi a abordagem epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna, compreendido como edificante na proposta artístico-pedagógica de Martins. O

estudo foi de caráter qualitativo, conforme Creswell (2014), com base na Crítica Genética, de

acordo com Salles (2008, 2009, 2014). Os procedimentos utilizados foram pesquisa de

referência e análise documental, sendo esta configurada como acompanhamento crítico-

interpretativo de cadernos de artistas-professores do Trans-Forma. Para a análise do dossiê

constituído por vinte e um cadernos de cinco artistas-professores e manuscritos de Marilene

Martins foi criada uma rede epistemológica composta pelo conceito de rede (MUSSO, 2013),

conceito de criação como rede em processo (SALLES, 2014), a teoria da autopoiese, de

Maturana e Varela (2001, 2003), bem como os conceitos de moderno e pós-moderno em

autores que contemplam a dança, a aprendizagem de arte e os contextos da América Latina e

do Brasil, como Banes (1987), Coutinho (2008), Coelho (2011), Efland (2008), Harvey

(2012), Hutcheon (2014), Jagodzinsky, (2008), Louppe (2012), Lyotard (2011), Paz (1984) e

Silva (2005). Através dos documentos foi possível o acesso ao conteúdo relativo à abordagem

artístico-pedagógica de Martins e a uma escritura específica utilizada para registrar esse

conteúdo. Na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna foi identificada a

anatomia humana, abordagens somáticas, diversas técnicas de dança, além de rítmica e

improvisação. No trabalho de Martins identificamos a ênfase em referenciais de dança

moderna e constatamos a diversidade corporal, técnica e artística de modo fundamental, o que

demonstrou uma atitude pós-moderna da artista-professora. O Curso Básico de Dança

Moderna demonstrou correspondência com um sistema autopoiético, construído na

convivência com a diferença, fundado na experimentação e que favoreceu um conhecer

inventivo.

Palavras-chave: Dança. Processo de conhecimento. Marilene Martins. Convivência.

Alteridade.

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ABSTRACT

This thesis deals with the knowledge process in dance developed by Marilene Martins at

Trans-Forma Center of Contemporary Dance. Martins is recognized for having founded Belo

Horizonte’s first modern dance school as well as Trans-Forma Experimental Dance Group,

which became important references for the development of this art form in Minas Gerais State

capital, Belo Horizonte. The objective of this research was an epistemological approach of the

Basic Modern Dance Course, understood as enlightening in Martins’ artistic and pedagogical

proposal. The approach bears a qualitative character, according to Creswell (2014), based on

the Genetic Criticism, according to Salles (2008, 2009, 2014). The procedures used were the

reference research and the documental analysis, the latter being done as a critical and

interpretative accompaniment of Trans-Forma’s notebooks, produced by the artists-teachers.

In order to analyze the dossier, made up of twenty-three notebooks created by five artists-

teachers as well as Marilene Martins’ manuscripts, an epistemological network was created,

comprising the concepts of networking (MUSSO, 2013), creation as a network in process

(SALLES, 2014), and the Theory of Autopoiesis, by Maturana and Varela (2001, 2003), as

well as modern and post-modern concepts found in authors who ponder about dance, art

learning and the contexts of Latin America and Brazil, such as Banes (1987), Coutinho

(2008), Coelho (2011), Efland (2008), Harvey (2012), Hutcheon (2014), Jagodzinsky (2008),

Louppe (2012), Lyotard (2011), Paz (1984), and Silva (2005).Through the documents it was

possible to access contents related to Martins’ artistic pedagogical approach, as well as the

specific piece of writing used to register such contents. Human anatomy, somatic approaches,

diverse dance techniques with emphasis on modern dance, rhythmics, and improvisation were

identified in the epistemological weaving of the Basic Modern Dance Course. In Martins’

work we reiterated the emphasis on modern dance referents and verified, fundamentally, the

corporal, technical and artistic diversity, which revealed Marilene Martins’ post-modern

attitude. The Modern Dance Basic Course proved correspondent to an autopoietic system,

built through the coexistence with the difference, based on experimentation, and favoring an

inventive knowledge base.

Key-words: Dance. Knowledge process. Marilene Martins. Coexistence. Otherness.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1- Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea ....................................................... 75 Figura 2 - Coreografia Polimorphia ......................................................................................... 90 Figura 3- Coreografia Rithmetron ............................................................................................ 90 Figura 4 - Espetáculo Kuadê - Juruna mata o sol .................................................................... 93 Figura 5 - Espetáculo A Casa da Infância ................................................................................ 94 Figura 6 - Escritura do Trans-Forma ........................................................................................ 98 Figura 7 - Caderno de Dudude ............................................................................................... 100 Figura 8 - Caderno de Lúcia Ferreira ..................................................................................... 101 Figura 9 - Caderno de Dorinha Baêta ..................................................................................... 101 Figura 10 - Cabeça .................................................................................................................. 108 Figura 11 - Nariz .................................................................................................................... 108 Figura 12- Coluna ................................................................................................................... 109 Figura 13- Costelas e caixa torácica ....................................................................................... 109 Figura 14- Membros inferiores e superiores........................................................................... 110 Figura 15- Mãos e dedos ........................................................................................................ 110 Figura 16- Articulação do ombro ........................................................................................... 111 Figura 17- Cotovelos .............................................................................................................. 111 Figura 18 - Punhos .................................................................................................................. 112 Figura 19 - Cíngulo inferior.................................................................................................... 112 Figura 20 - Triângulo do quadril ............................................................................................ 113 Figura 21- Articulação do quadril .......................................................................................... 113 Figura 22 - Joelhos ................................................................................................................. 114 Figura 23- Pés ......................................................................................................................... 114 Figura 24 - Metatarso e dedos ................................................................................................ 115 Figura 25- Triângulo do pé ..................................................................................................... 115 Figura 26 - Anatomia e corporalidade I ................................................................................. 116 Figura 27 - Anatomia e corporalidade II ................................................................................ 117 Figura 28 - Anatomia e corporalidade III ............................................................................... 117 Figura 29 - Anatomia e corporalidade IV ............................................................................... 118 Figura 30 - Anatomia e corporalidade V ................................................................................ 118 Figura 31 - Anatomia e corporalidade VI ............................................................................... 119 Figura 32 - Anatomia e corporalidade VII ............................................................................. 120 Figura 33 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” I .......................................................... 126 Figura 34 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” II ......................................................... 126 Figura 35 - Corpo e diferença ................................................................................................. 128 Figura 36 - Exercícios com máquinas .................................................................................... 132 Figura 37 - Exercício “Pressão” I ........................................................................................... 133 Figura 38 - Exercício “Pressão” II .......................................................................................... 133 Figura 39 - Exercício “Pressão” III ........................................................................................ 134 Figura 40 - Exercício “Pressão” IV ........................................................................................ 134 Figura 41 - Trabalho em duplas .............................................................................................. 135 Figura 42 - Sequência de Zena Rommet I .............................................................................. 136

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Figura 43 - Sequência de Zena Rommet II ............................................................................. 137 Figura 44 - Sequência de Zena Rommet III ........................................................................... 137 Figura 45 - Sequência de Zena Rommet IV ........................................................................... 137 Figura 46 - Alinhamento articular .......................................................................................... 138 Figura 47 - Alinhamento e movimento articular .................................................................... 139 Figura 48 - Coluna vertebral ................................................................................................... 139 Figura 49 - “Sequência de Sensibilização” I .......................................................................... 140 Figura 50 - “Sequência de Sensibilização” II ......................................................................... 140 Figura 51 - Movimento de passagem ..................................................................................... 141 Figura 52 - Roteiro de aula I ................................................................................................... 145 Figura 53 - Roteiro de aula II ................................................................................................. 145 Figura 54 - Sequência “Pular maré” ....................................................................................... 148 Figura 55 - Sequência “Pular maré virando de costas e de frente” ........................................ 149 Figura 56 - Sequência “Relaxa, relaxa e fura o ar” ................................................................ 150 Figura 57 - Movimento no chão I ........................................................................................... 151 Figura 58 - Movimento no chão II.......................................................................................... 152 Figura 59 - Movimento no chão III ........................................................................................ 152 Figura 60 - Movimento no chão IV ........................................................................................ 153 Figura 61 - Movimento no chão V ......................................................................................... 153 Figura 62 - Pernas e pés paralelos .......................................................................................... 154 Figura 63 - Deslocamento I .................................................................................................... 155 Figura 64 - Deslocamento II ................................................................................................... 155 Figura 65 - Movimento de braços I ........................................................................................ 155 Figura 66 - Movimento de braços II ....................................................................................... 156 Figura 67 - Sequência “Grand plié com braço torcido” I....................................................... 157 Figura 68 - Sequência “Grand plié com braço torcido” II ..................................................... 157 Figura 69 - Sequência “Grand plié com braço torcido” III .................................................... 157 Figura 70 - Sequência “Grand plié com braço torcido” IV .................................................... 158 Figura 71 - Sequência “Grand plié com braço torcido” V ..................................................... 158 Figura 72 - Sequência “Torção do tronco (Caminho)” .......................................................... 159 Figura 73 - Sequência da cabeça com ombros e tronco ......................................................... 160 Figura 74 - Sequência da cabeça com ombros e tronco ......................................................... 161 Figura 75 - Articulação técnica I ............................................................................................ 162 Figura 76 - Articulação técnica II ........................................................................................... 163 Figura 77 - Articulação técnica III ......................................................................................... 164 Figura 78 - Articulação técnica IV ......................................................................................... 165 Figura 79 - Sequência de Jazz I .............................................................................................. 168 Figura 80 - Sequência de Jazz II ............................................................................................. 169 Figura 81 - Sequência de Jazz III ........................................................................................... 169 Figura 82 - Sequência de Jazz IV ........................................................................................... 170 Figura 83 - Sequência Afro-brasileiro I .................................................................................. 172 Figura 84 - Sequência Afro-brasileiro II ................................................................................ 173 Figura 85 - Sequência Afro-brasileiro III ............................................................................... 173 Figura 86 - Belly dance I ........................................................................................................ 175

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Figura 87 - Relaxamento de tronco ........................................................................................ 176 Figura 88 - “Giro completo com o quadril, ‘com parada’” .................................................... 177 Figura 89 - Técnica de Martha Graham I ............................................................................... 179 Figura 90 - Técnica de Martha Graham II .............................................................................. 179 Figura 91 - Técnica de Martha Graham III............................................................................. 180 Figura 92 - Técnica de Martha Graham IV ............................................................................ 180 Figura 93 - Técnica de Martha Graham V .............................................................................. 181 Figura 94 - “Para soltar-relaxar” (Graciela Figueroa) ............................................................ 183 Figura 95 - “Ritmo (Melinha)” ............................................................................................... 186 Figura 96 - Ritmo 3 ................................................................................................................ 187 Figura 97 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) I ............................................................ 188 Figura 98 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) II .......................................................... 188 Figura 99 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) III.......................................................... 189 Figura 100 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) IV ....................................................... 190 Figura 101 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) V ......................................................... 190 Figura 102 - “Ramas del arbor” (Graciela Figueroa) VI ....................................................... 190 Figura 103 - Ritmo da Mônica ............................................................................................... 192 Figura 104 - “O mundo girando” ............................................................................................ 193 Figura 105 - Improvisação (Rolf Gelewski) ........................................................................... 195 Figura 106 - Improvisar e experimentar I ............................................................................... 196 Figura 107 - Improvisar e experimentar II ............................................................................. 196 Figura 108 - Improvisar e experimentar III ............................................................................ 197

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABRACE Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas

APML Associação de Pesquisadores do Manuscrito Literário

CBO Classificação Brasileira de Ocupações

CBDM Curso Básico de Dança Moderna

CEFAR Centro de Formação Artística

CEFART Centro de Formação Artística e Tecnológica

CNRS Centre National de la Recherche Scientifique

COEP Comitê de Ética em Pesquisa

DCE Diretório Central dos Estudantes

EBA Escola de Belas Artes

EEFD Escola de Educação Física e Desportos

ENEFD Escola Nacional de Educação Física e Desportos da Universidade do Brasil

FCS Fundação Clóvis Salgado

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

MTB Ministério do Trabalho do Brasil

PPG-Artes Programa de Pós Graduação em Artes

UFBA Universidade Federal da Bahia

UNICAMP Universidade Estadual de Campinas

UFMG Universidade Federal de Minas Gerais

UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 14

1 METODOLOGIA, OU MODOS DE FAZER 23

1.1 Pesquisa documental 24

1.1.1 Artistas-professores do Trans-Forma 26

1.1.2 Dossiê: documentos de processo 27

1.2 Pesquisa de referência 29

1.2.1 Pontos de referência: “criação como rede em processo” e conceito de “rede” 30

1.2.2 Ponto de referência: teoria da autopoiese 32

1.2.2.1 Cognição e experimentação 34

1.2.2.2 Convivência e processo de conhecimento 35

1.2.2.3 Perturbação e alteridade 37

1.2.3 Pontos de referência: “moderno” e “pós-moderno” 38

1.2.3.1 Modernismo e pós-modernismo: atitudes artísticas 41

1.2.4 Rede de conversação 49

2 MARILENE MARTINS: DIÁLOGOS ARTÍSTICOS E PEDAGÓGIC OS 50

2.1 Carlos Leite e o Ballet Minas Gerais 51

2.2 Klauss e Angel Vianna, e o Ballet Klauss Vianna 56

2.3 Rolf Gelewski e a Escola de Dança da UFBA 62

2.4 Deslocamentos e flexibilidade artística 67

3 TRANS-FORMA CENTRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA: “UMA J ANELA VENTILADA” 74

3.1 Uma dança para todos e para cada um 78

3.1.1 Percursos formativos 81

3.1.2 Espetáculos didáticos 83

3.1.3 Espaço para ler dança 86

3.1.4 Grupo Trans-Forma 88

3.2 Corpo artístico-docente 95

3.2.1 Artista-professor e artista-dançarino 96

4 CURSO BÁSICO DE DANÇA MODERNA 105

4.1 Corpo-documento: a dança no papel 105

4.1.1 Escrever dança 106

4.1.2 Escrever e desenhar dança 107

4.1.3 Dança e anatomia humana: referência em si 115

4.2 Processo de conhecimento em dança por Marilene Martins 120

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4.2.1 Consciência corporal 123

4.2.2 Estudo de movimento na dança 143

4.2.2.1 Sequências básicas de movimento: dança moderna e atitude pós-moderna no Trans-Forma 146

4.2.2.2 Convivência na alteridade 165

4.2.3 Rítmica e improvisação 184

CONSIDERAÇÕES FINAIS 199

REFERÊNCIAS 206

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INTRODUÇÃO

A Dança2, como área de conhecimento, tem se desenvolvido de forma importante no Brasil

nas últimas décadas. Nesse período, ressalta-se a criação de cursos de graduação, nas

modalidades bacharelado e licenciatura, em diversas Universidades públicas e privadas do

país, bem como a ampliação das possibilidades de atuação profissional nesse campo (SILVA,

2016; STRAZZACAPPA, 2003, 2014; COSTAS, 2010). Com relação ao âmbito acadêmico, a

partir do primeiro Curso Superior de Dança, fundado na Universidade Federal da Bahia

(UFBA), em 1956, surgiram mais três graduações na década de 1980, e a partir da década de

1990 houve um crescimento significativo desse número. O panorama atual conta com

quarenta e cinco graduações, sendo trinta e três cursos de licenciatura e doze de bacharelado,

conforme o Ministério da Educação (MEC)3. Com relação ao campo profissional de dança,

Rocha (2010, p. 96) caracteriza-o como um território de invenção, em que a autora aponta

várias linhas de trabalho:

É importante frizar portanto que fazer dança hoje, obviamente sem desmerecer tais atividades, não se restringe mais a coreografar, ensinar ou performar. Utilizamos o verbo performar e não dançar, justamente porque fazer dança hoje se conjuga em uma diversidade cada vez mais ampla de verbos – ensinar, performar, criticar, coreografar, conversar, escrever, pesquisar, fazer curadoria, pensar, manter um site na web, lutar por publicações nos mais variados formatos, dirigir festivais, promover encontros etc.

Nesse contexto, a formação do profissional dessa área, que se apresenta bastante diversa, tem

sido foco de reflexões. Os percursos formativos em dança abrangem hoje, além dos

tradicionais cursos livres, normalmente situados em estúdios e academias, outros, como

cursos técnicos, tecnológicos, de graduação e pós-graduação, em instituições públicas e

privadas. Ressalta-se que diferentes âmbitos de trabalho poderão exigir formações específicas.

Assim, para atuar em cursos livres, o professor, geralmente, também percorreu esse caminho,

enquanto que o professor da educação básica necessitará cursar a licenciatura em uma

universidade, conforme a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDB 9394/96, de

20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996). No período atual, que se caracteriza por mudanças

quanto à atuação dos profissionais de dança, discute-se, além da formação, a sua

diversificação, como apontado pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO/2002), do

2 Utilizou-se o termo “Dança” com inicial maiúscula para indicar a referida área de conhecimento. 3 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em: http://www.mtecbo.gov.br/cbosite

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Ministério do Trabalho do Brasil (MTB)4. Ao descrever a ocupação do Artista da dança4, a

CBO pondera sobre a importância do ensino superior para esse profissional, mesmo sem a sua

obrigatoriedade:

O exercício das ocupações da família [Artista da dança] não exige escolaridade formal determinada, embora siga-se a tendência que vem ocorrendo no mundo das artes em geral, rumo à profissionalização. Nesse sentido, torna-se-á cada vez mais desejável que o profissional tenha curso superior na área. Para o exercício pleno das atividades, requer-se mais de cinco anos de experiência.5

Além de uma formação ampliada, discute-se no seio da Universidade sobre a importância de

articulação entre conhecimentos de naturezas diferentes, como propõe Costas (2010, p. 73):

Penso ser importante considerar que tanto o ensino não-formal, quanto o ensino formal desempenham papéis importantes na dinâmica de gestação do artista da dança. Não se trata aqui de uma questão de valoração, mas de considerar funções específicas e diferenciadas, e porque não, articuláveis.

Segundo alguns coordenadores de cursos de graduação em dança no país, a experiência

diversificada tem sido contemplada no contexto acadêmico. Com relação ao curso de

Graduação em Dança – Licenciatura, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG),

Alvarenga (2016) ressalta a composição curricular que abrange conhecimento científico,

artístico e os saberes tradicionais. Ao refletir sobre a trajetória de trinta anos da Graduação em

Dança da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Gatti (2016, p. 79) menciona a

relevância do diálogo entre o ensino formal e o não formal:

O foco do ensino superior em Dança deve estar na promoção à pesquisa e na articulação e integração dos diferentes saberes e fazeres que perfazem a formação do artista e do educador da dança, bem como oferecer uma fundamentação capaz de rever e dinamizar os conteúdos e métodos de trabalho utilizados na educação não formal.

Nesse contexto de formação em dança, em que se discutem articulações entre diferentes

campos de conhecimento, ressalta-se o termo “artista-docente” e suas implicações com

relação à compreensão dessa atividade profissional. A partir da CBO, compreende-se que a

formação artística é condição imprescindívelpara o estabelecimento do binômio artista-

docente, como consta da descrição referente à Artista da dança: “Concebem e concretizam 4 Cf. Cadastro e-MEC de Instituições e Cursos de Educação Superior, disponível em: http://emec.mec.gov.br/ 4 Descrita como “Bailarino (exceto danças populares)”. 5 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em http://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/262810-bailarino-exceto-dancas-populares

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projeto cênico em dança, realizando montagens de obras coreográficas; executam

apresentações públicas de dança e, para tanto, preparam o corpo, pesquisam movimentos,

gestos, dança, e ensaiam coreografias. Podem ensinar dança”6. Compreende-se que “podem

ensinar dança” aqueles que desenvolvem as ações supracitadas. Ao mesmo tempo,

considerando que questões educacionais são intrínsecas ao fazer artístico, como discute

Marques (2001), abrir mão delas também seria negar a configuração artista-professor. No

entanto, a autora ressalta que essas relações educacionais inseridas no contexto artístico não

devem escolarizar a dança. A perspectiva de Marques (2001, p. 112) de artista-docente auxilia

a refletir sobre essa denominação:

[...] o artista-docente é aquele que, não abandonando suas possibilidades de criar, interpretar, dirigir, tem também como função e busca explícita a educação em seu sentido mais amplo. Ou seja, abre-se a possibilidade de que processos de criação artística possam ser revistos e repensados como processos também explicitamente educacionais.

Esta Tese partiu da premissa de que o diálogo entre o fazer artístico-docente no âmbito da

Universidade e o fazer artístico-docente situado fora dela poderá contribuir para o

desenvolvimento de ambos esses contextos. No caso, a dança no contexto universitário – que,

como discutem alguns autores7, busca construir estruturas epistemológicas e metodológicas

coerentes com demandas, características e necessidades acadêmicas – e a dança fora desse

âmbito – que também configura modos de fazer a partir de perspectivas sobre o fazer artístico

e docente.

Este estudo relaciona-se ao processo formativo do profissional de dança no Brasil,

especialmente, do artista-professor. O tema tratado foi a proposição artístico-pedagógica de

dança, de Marilene Martins, reconhecida por ter fundado a primeira escola de dança moderna

de Belo Horizonte e por dar continuidade às iniciativas modernistas de Klauss Vianna na

capital mineira (ALVARENGA, 2002; REIS, 2005). A artista também se distingue no cenário

nacional, tendo sido homenageada, em 2012, pelo Projeto Figuras da Dança, da São Paulo

Companhia de Dança, sob a direção de Inês Bogéa. Nena, como Marilene também é chamada,

fundou, em 1969, a Escola de Dança Moderna Marilene Martins, que, em 1981, passou a se

6 Cf. Classificação Brasileira de Ocupações, disponível em http://www.ocupacoes.com.br/cbo-mte/262810-bailarino-exceto-dancas-populares 7 Autores como Bolognesi (2014), Fortin e Gosselin (2014), Greiner (2011, 2012), Katz (2012) e Ribeiro (2013) discutem sobre o campo epistemológico da arte e da dança no contexto acadêmico.

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chamar Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea8. A artista criou também o Trans-

Forma Grupo Experimental de Dança, em 1971, que se destacou pelo caráter vanguardista e,

conforme Reis (2005), influenciou e continua presente na cena belo-horizontina atual. Para

Alvarenga (2002, p. 219), o trabalho de Marilene Martins foi determinante para a dança e seu

ensino na capital mineira:

A dança moderna de Marilene Martins traz não somente uma linguagem técnica a mais; encerra toda uma nova filosofia, uma nova significação em face do ato de dançar, um novo conceito de formação em dança, que alterou e redefiniu os caminhos dessa arte como veículo de expressão e trabalho profissional em Belo Horizonte; note-se, ainda, a possibilidade de se trabalhar o corpo dos não-dançarinos de uma forma diferente das atividades corporais existentes até então.

O Trans-Forma constituiu-se em um espaço amplo de conhecimento em dança, com interesses

voltados para o desenvolvimento humano, a investigação corporal e artística, o diálogo com

diferentes perspectivas de dança e outras artes e, como ressalta Alvarenga (2002),

engajamento social. Ressaltaram-se na pesquisa as iniciativas de Marilene Martins voltadas

para a formação do artista-professor. No contexto do Trans-Forma, definiu-se como objeto de

estudo a abordagem epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna (CBDM). Ao fazer

esse recorte, consideramos, inicialmente, a estrutura da escola, na qual identificamos um eixo

artístico-pedagógico formado pelo Curso Básico e pelo Curso Avançado de Dança Moderna,

como explicitado no Regulamento Interno da Escola de Dança Moderna Marilene Martins: “O

Curso da Escola é dividido em: Curso Básico [...] e Curso Profissional [...]. Podem (sic) haver

ainda Cursos Especiais ou de Férias, paralelamente aos cursos normais da Escola”9. A opção

por abordar o Curso Básico, com duração de cinco anos, deveu-se, principalmente, ao fato de

apresentar uma sistematização específica concebida por Marilene Martins e desenvolvida com

artistas-professores formados em sua escola. No caso do Curso Profissional, de três anos, as

aulas eram dadas, principalmente, por professores convidados que trabalhavam conforme suas

propostas.

8 Nesta pesquisa, optou-se por mencionar a escola de Martins pela denominação Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea, para acompanhar o modo como a própria Marilene faz referência à escola nas entrevistas concedidas à autora. Acrescenta-se que não foram identificadas alterações relativas à concepção artística de Marilene que possam ter justificado tal mudança. 9 MANUSCRITO: Regulamento Interno da Escola de Dança Marilene Martins. Belo Horizonte, (1971-1981). 8 f. Acervo de Marilene Martins.

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O CBDM foi abordado por meio de cadernos de anotações de cinco artistas-professores10 que

acompanharam Marilene: Arnaldo Alvarenga11, Dorinha Baêta12, Dudude13, Lúcia Ferreira14 e

Mônica Rodrigues15. Trabalhamos a partir da hipótese que a identificação e a análise da

abordagem epistemológica do CBDM poderia favorecer o reconhecimento de percursos

formativos semelhantes ao de Martins, bem como oferecer referenciais para a reflexão e a

constituição de outros processos de conhecimento nesta área. Ressalta-se que a análise desse

Curso levou a um panorama abrangente e diverso de referenciais corporais, técnicos e

artísticos. É necessário explicitar que, na pesquisa, não houve o objetivo de particularizar os

referenciais encontrados. Optamos por abordá-los sob uma perspectiva sistêmica, em que foi

enfatizada a construção da proposta de Marilene e em que se buscou compreender as escolhas

epistemológicas da artista-professora.

As temáticas que envolvem a formação em Dança fazem parte de meus interesses,

considerando minha atuação como artista-docente em diferentes contextos formativos. Em

minha experiência, ressalto a mudança ocorrida em 2010, quando prestei concurso para

professora na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e, desde então, integro o corpo

docente do curso de Graduação em Dança – Licenciatura dessa Instituição. Durante os quinze

anos anteriores, trabalhei como artista, de forma independente, e como professora de dança.

Durante esse período, atuei como professora de dança contemporânea, criação coreográfica e

10 Nesta Tese, os artistas-professores do Trans-Forma foram tratados pelos seus nomes artísticos. 11 Arnaldo Alvarenga, nascido em 1958, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professor do CBDM dessa escola. Foi também dançarino e diretor do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Atualmente, é professor do Curso de Graduação em Teatro, do Departamento de Artes Cênicas, da EBA/UFMG. Presidiu a Comissão que criou o Curso de Graduação em Dança – Licenciatura desta mesma Instituição (Informação verbal). 12 Dorinha Baêta, nascida em 1956, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna desta escola e assistente de Marilene Martins. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Graduada em Psicologia, desenvolve um trabalho corporal que reúne dança e psicologia para crianças, adolescentes e adultos (Informação verbal). 13 Dudude, nascida em 1958, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna desta escola e foi assistente de Marilene Martins. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança, para o qual criou seu primeiro trabalho coreográfico Escolha seu sonho. A artista fundou, em Belo Horizonte, o Estúdio Dudude Herrmann e a Benvinda Cia. de Dança. Atualmente, trabalha em seu ateliê, localizado no município de Brumadinho/MG (Informação verbal). 14 Lúcia Ferreira, nascida em 1960, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM desta escola. Foi também dançarina do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Integrou o quadro de funcionários do Palácio das Artes/FCS, atuando como professora de dança, na preparação corporal para atores e à frente do Departamento de Extensão desta Instituição. Atua como preparadora corporal de atores e gestora cultural (Informação verbal). 15 Mônica Rodrigues, nascida em 1964, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM desta escola. Graduada em Pedagogia, atua como professora de dança em cursos livres e na educação básica (Informação verbal).

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composição no Curso Básico e no Curso Profissionalizante de Dança do Centro de Formação

Artística16 (CEFAR), da Fundação Clóvis Salgado (FCS). Atuei também como professora de

dança contemporânea em grupos profissionais, como a Cia. de Dança Palácio das Artes17,

Grupo de Dança Primeiro Ato18, Cia. Suspensa, Cia. Mário Nascimento19, Camaleão Grupo

de Dança20.

A UFMG possibilitou e demandou a ampliação dos horizontes para pensar em processos de

conhecimento em dança. Do ponto de vista da formação nessa área, anteriormente à atuação

na Universidade, dedicava-me ao processo formativo do dançarino, sendo comum que após,

ou mesmo durante esse percurso, o profissional atuasse também como professor em cursos

livres ou técnicos. Na Universidade, em um curso de licenciatura, a perspectiva de formação

tornou-se outra e o alunado também bastante diverso. Interessou-me pensar no diálogo entre

esses diferentes modos de conhecer e fazer dança, na perspectiva de que essas interações

possam contribuir para reflexões sobre processos formativos nesse campo, particularmente no

âmbito da Universidade, território no qual se situa essa pesquisa.

Encontrei, em Marilene Martins, terreno fértil e material relevante para investigar, refletir e

dialogar sobre a Dança como área de conhecimento. No ano de 2002, quando eu cursava a

Graduação em Artes Cênicas21 na EBA/UFMG, tomei conhecimento da abordagem

pedagógica de Marilene Martins no Trans-Forma e a sua importância para Belo Horizonte,

por meio da Dissertação de Arnaldo Leite de Alvarenga. Posteriormente, em 2005, Glória

Reis realizou uma publicação na qual abordou o Trans-Forma Grupo Experimental de Dança.

Reis (2005) também enfatiza a relevância do trabalho artístico de Martins no contexto belo-

horizontino. No período de 2006 a 2008, desenvolvi, junto ao PPG-Artes da EBA/UFMG, sob

a orientação do Professor Dr. Luís Otávio Carvalho Gonçalves de Souza, o estudo que

16 Atualmente, o CEFAR é denominado Centro de Formação Artística e Tecnológica (CEFART). 17 A Cia. de Dança Palácio das Artes é um dos corpos artísticos estáveis da Fundação Clóvis Salgado e representa oficialmente o estado de Minas Gerais. A Companhia foi constituída em 1971, pelo Professor Carlos Leite, sob a denominação Corpo de Baile da Escola de Balé da Fundação Palácio das Artes (REIS, 2010). 18 O Grupo de Dança Primeiro Ato foi fundado em 1981, por Suely Machado, Ivana Pezzuti, Maria Inês Menicucci e Simone Caporali, às quais, posteriormente, juntou-se Kátia Rabelo (SIRIMARCO, 2009). Conforme Sirimarco (2009), logo no início, o Primeiro Ato passou a ser dirigido unicamente por Suely Machado, destacando-se por uma trajetória nacional e internacional e um trabalho caracterizado por forte teatralidade. 19 A Cia. Mário Nascimento foi fundada em São Paulo, em 1998, pelo músico Fábio Cardia e pelo coreógrafo e diretor Mário Nascimento (Cf. http://ciamn.blogspot.com/). 20 O Camaleão Grupo de Dança foi fundado em Belo Horizonte, em 1984, por Marjorie Quast, que assumiu a direção do Grupo desde seu início (Cf. http://camaleaogrupodedanca.blogspot.com/). 21 O nome deste curso foi alterado para Graduação em Teatro.

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resultou na Dissertação intitulada Movimento expandido: confluência entre a dança e o teatro

na criação do bailarino. Na ocasião, entrevistei Marilene Martins sobre a sua participação no

processo de criação da coreografia O Caso do Vestido, de Klauss Vianna. Novamente, em

2010, retornei à Marilene Martins para abordar vida e obra da artista, como pesquisadora

integrante do Projeto Missão Memória da Dança no Brasil, coordenado por Arnaldo Leite de

Alvarenga. Esse trabalho gerou a publicação da série de livros denominada Personalidades da

Dança em Minas Gerais, cujo objetivo foi traçar os perfis biográficos de artistas e professores

pioneiros da dança em Belo Horizonte, entre eles, Marilene Martins. Esse Projeto permitiu-me

entrevistar e ter acesso aos acervos particulares de Marilene Martins e dos artistas-

professores, Arnaldo Alvarenga, Dudude e Lydia Del Picchia22. Nessa oportunidade, tomei

conhecimento e tive em mãos os primeiros exemplares dos cadernos de anotações e

manuscritos relativos à abordagem artístico-pedagógica de Martins, que me trouxeram ao

doutoramento.

Além das pesquisas que me levaram à Martins, anteriormente estive próxima ao Trans-Forma,

seja na fase de formação artística, seja em minha atuação profissional como dançarina e

professora de dança. No período de 1988 a 2000, estudei dança com Dudude. Também

participei de processos de criação e remontagem coreográfica com Dudude e com Arnaldo

Alvarenga, quando integrei a Meia Ponta Cia. de Dança23. Nesta Cia. dancei Serenata do

Adeus, obra coreográfica de autoria de Arnaldo Alvarenga e Lydia Del Picchia, que fez parte

do repertório do Grupo Trans-Forma. Posteriormente, no Centro de Formação Artística fui

colega de Lúcia Ferreira, com quem compartilhei afinidades profissionais identificadas no

contexto da escola de Marilene Martins. E, ainda, a partir do ano de 2000, iniciei uma parceria

artística com Tarcísio Ramos Homem24, que fez sua formação com Martins e também

integrou o grupo sob a direção da artista. A convivência com Tarcísio também foi importante

para aproximar-me das ideias de Marilene Martins.

22 Lydia Del Picchia, nascida em 1962, realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM e do Curso Avançado de Dança Moderna dessa escola. Foi também dançarina, professora de dança moderna e assistente de direção de Marilene Martins no Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Integrou, como dançarina, professora e assistente de coreografia, a Cia. de Dança Palácio das Artes (BH/MG) e o Grupo Primeiro Ato (BH/MG). Atualmente é atriz do Grupo Galpão (BH/MG) e coordenadora pedagógica do Galpão Cine Horto (Informação verbal). 23 A Meia-Ponta Cia. de Dança foi fundada em Belo Horizonte, em 1989, pelas dançarinas e coreógrafas Juliana Grillo e Marisa Monadjemi (Informação verbal). 24 Tarcísio Ramos Homem, nascido em 1964, é dançarino, coreógrafo, professor e pesquisador. Atualmente, é professor do Teatro Universitário da UFMG (Informação verbal).

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A pesquisa25 realizada se apresenta, portanto, nesta Tese, composta por quatro capítulos, a

partir da Introdução.

O capítulo 1 – “Metodologia, ou modos de fazer”– apresenta a abordagem metodológica da

pesquisa, fundamentada no campo da crítica genética, a partir de Salles (2008, 2009, 2014) e

Creswell (2014). Essa parte também abrange os referenciais teóricos que compuseram o que

denominamos rede de conversação, ou rede epistemológica, e que acompanhou o

desenvolvimento do estudo. Fizeram parte desse tecido o conceito de “criação como rede em

processo”, de Salles (2014), a conceituação de “rede”, a partir de Musso (2013) e a teoria da

autopoiese, de Maturana e Varela (2001, 2003). E, ainda, diante da importância de

contextualização do objeto da pesquisa, alguns outros diálogos também foram traçados, a

partir dos conceitos de “moderno” e “pós-moderno” em autores como Harvey (2012),

Hutcheon (2014), Lyotard (2011) e Paz (1984). Nesse âmbito conceitual, interessaram

perspectivas que enfatizam a dança, como em Banes (1987), Louppe (2012) e Silva (2005).

Autores como Efland (2008) e Jagodzinsky (2008) foram importantes pelas reflexões que

fazem sobre o processo de ensino-aprendizagem de arte nos contextos moderno e pós-

moderno. E, ainda, considerou-se a relevância de discussões que problematizam esses

movimentos artísticos na América Latina e no Brasil, como as de Coutinho (2008) e Coelho

(2011).

O capítulo 2 – “Marilene Martins: diálogos artísticos e pedagógicos”– descreve e analisa a

trajetória de Marilene Martins, de 1952 a 1968, anterior à fundação de sua escola de dança.

No período delimitado, ressaltamos os estudos de dança realizados por Marilene, as primeiras

atividades profissionais, como dançarina e como professora, além de outras experiências que

se mostraram relevantes na conjuntura do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea.

O capítulo 3 – “Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea: ‘uma janela ventilada’” –

descreve e analisa a configuração da escola em torno da qual Marilene Martins estruturou o

CBDM. Nesta parte, buscou-se identificar e compreender as ideias que fundamentaram a

proposição artístico-pedagógica de Martins. Também foi abordado o investimento específico

de Martins relativo à formação do artista-professor, que envolveu o que se denominou Curso

de Didática, o acompanhamento do trabalho artístico-docente, os estudos relativos à 25 A pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (COEP), da UFMG. Os termos de autorização dos participantes envolvidos encontram-se sob responsabilidade da pesquisadora.

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proposição de dança de Marilene, além do registro deste trabalho, que resultou nos cadernos

de anotações dos artistas-professores.

O capítulo 4 – “Curso Básico de Dança Moderna” – apresenta o acompanhamento crítico-

interpretativo dos cadernos de artistas-professores do Trans-Forma, por meio do diálogo com

os referenciais componentes da rede epistemológica constituída para a pesquisa. Nessa parte,

que envolve a escritura característica das anotações feitas nos cadernos e o conteúdo

específico de dança registrado pelos artistas-professores, buscou-se compreender a tecitura

epistemológica do CBDM, do Trans-Forma.

Após o capítulo 4, são apresentadas as Considerações Finais da pesquisa.

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1 METODOLOGIA, OU MODOS DE FAZER

Para cada uma das coisas feitas, por um sujeito, há uma metodologia. [...] Para cada uma das coisas feitas, por inúmeros sujeitos, existem inúmeros modos de fazer. [...]

As metodologias são criadas pelos sujeitos enquanto estes estão criando seus objetos. Antes, imaginam. [...] A pesquisa cria metodologias enquanto cria interpretações.

(HISSA, 2013, p. 125)

Consideramos metodologia, a partir de Hissa (2013), como modos de fazer. Na pesquisa, o

pensar os modos de fazer também foi uma das formas de investigar o objeto – a abordagem

epistemológica do CBDM, concebida por Marilene Martins, no Trans-Forma Centro de Dança

Contemporânea. Para estudá-la, foi necessário verificar as fontes disponíveis, identificar

questões apresentadas por elas e propor modos coerentes para analisá-las, seguindo também o

pensamento de Pimentel (2014, p. 20), que compreende a metodologia como uma proposição

do pesquisador:

Por metodologia entende-se a construção, por parte d@26 pesquisador@, de propostas de hipóteses, teorias e soluções a partir do conhecimento dos fundamentos ou premissas de métodos, propostas ou abordagens divulgadas. Assim, os métodos estão à disposição de tod@s, mas a metodologia é criada por cada pesquisador@ a cada proposta de investigação.

Nesse sentido, buscou-se constituir uma estrutura metodológica coerente com o objeto e com

o ponto de vista da pesquisadora. Considerou-se que as características do objeto observado e o

olhar do sujeito observador estão relacionados à possibilidade de se construir condições para a

realização da pesquisa, como analisa Salles (2008, p.70):

Sabe-se que o olhar do pesquisador está [...], impregnado de seu modo de perceber as coisas, ou seja, de sua visão de mundo, que envolve sua formação e as teorias críticas às quais teve acesso. Mas, ao mesmo tempo, os documentos se impõem ao olhar do crítico, propondo ou exigindo indagações e instigando rumos teóricos [...].

Nesta pesquisa, optou-se por uma abordagem qualitativa, conforme Creswell (2014). O autor

explica que esses tipos de estudo envolvem especificidades quanto a alguns aspectos, como

em relação às questões e perspectivas a serem tratadas, às condutas relativas à coleta e análise

de dados, às atitudes do pesquisador em relação ao objeto e seu contexto, além das possíveis

contribuições de uma pesquisa com esse caráter:

26 Pimentel (2014) utiliza o símbolo @ para indicar masculino/feminino.

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A pesquisa qualitativa começa com pressupostos e o uso de estruturas interpretativas/teóricas que informam o estudo dos problemas da pesquisa, abordando os significados que os indivíduos ou grupos atribuem a um problema social ou humano. Para estudar esse problema, os pesquisadores qualitativos usam uma abordagem qualitativa de investigação, a coleta de dados em um contexto natural sensível às pessoas e aos lugares em estudo e a análise dos dados que é tanto indutiva quanto dedutiva e estabelece padrões ou temas. O relatório final ou a apresentação incluem as vozes dos participantes, a reflexão do pesquisador, uma descrição complexa e interpretação do problema e a sua contribuição para a literatura ou um chamado de mudança (CRESWELL, 2014, p. 52).

A metodologia surgiu a partir do estudo do objeto, da delimitação de seu contexto de

investigação, das fontes disponíveis – os cadernos de artistas-professores que atuaram no

CBDM, do Trans-Forma –, dos objetivos propostos, da hipótese e das questões levantadas no

decorrer do processo. Nessa perspectiva, consideramos pertinente a pesquisa documental e a

pesquisa de referência, bem como a construção de uma rede epistemológica para subsidiar a

abordagem crítico-interpretativa pretendida.

1.1 Pesquisa documental

Definido o objeto e consideradas as fontes primárias da pesquisa – os cadernos de artistas-

professores –, percebeu-se a pertinência da crítica genética27, a partir de Salles (2008, 2009,

2014), para a abordagem documental. Ressalta-se que, conforme esse campo de investigação,

não se buscou a origem do trabalho de Marilene Martins, mas o percurso de criação de sua

abordagem artístico-pedagógica, com o intuito de identificar os componentes que dele fizeram

parte, sua organização, suas transformações. Como explica Salles (2009, p. 17):

O foco de atenção é, portanto, o processo por meio do qual algo que não existia antes, como tal, passa a existir, a partir de determinadas características que alguém vai lhe oferecendo. [...] A grande questão que impulsiona os estudos genéticos é compreender a tessitura desse movimento.

27 A crítica genética surgiu na França, em 1968, em um movimento iniciado por Almuth Grésillon e Louis Hay. Na ocasião, um grupo de pesquisadores reunidos pelo Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), foi incumbido de organizar os manuscritos do escritor alemão, Heinrich Heine, que acabava de ser adquirido pela Biblioteca Nacional da França (GRÉSILLON, 1991; LEBRAVE, 2002; SALLES, 2008). Lebrave (2002, p. 97) explica que o fato de manuscritos, já tratados em outras circunstâncias, terem sido compreendidos naquele momento como “objeto de investigação científica” gerou uma postura que resultou na busca por parâmetros para abordar materiais de caráter processual. O campo da crítica genética expandiu seu espaço geográfico de atuação. No Brasil, chegou em meados de 1980, por meio das discussões de Philippe Willemart, que incomodaram o meio literário da época (ROMANELLI, 2015). Mesmo com uma recepção pouco acolhedora, a crítica genética se instaurou no país como uma área promissora de pesquisa, cujo desenvolvimento destacou-se no cenário internacional pela ampliação de suas delimitações conceituais e metodológicas, como analisado por Romanelli (2015).

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Na perspectiva da crítica genética, Salles (2008, p.33) reitera que “[...] o pesquisador busca a

história das obras; vive numa estreita ligação com um ato eminentemente íntimo; e procura

pelos princípios (ou alguns princípios) que regem esse processo”. Ao optar pela via do

processo, a crítica genética surge como um modo de capturar aquilo que parece invisível na

obra, e que a sustenta. Esse caminho mostrou-se coerente com as necessidades e

características do objeto e da pesquisadora. No caso, o objeto envolve o processo de

construção de uma abordagem de conhecimento no campo de dança; e a pesquisadora,

dançarina e professora, com interesse em processos de criação artística e de conhecimento

nessa área. Ao valorizar o processo de criação, a crítica genética ressalta a figura do autor,

sujeito no processo, e se posiciona contrária ao discurso dicotômico, considerando o processo,

a obra e o autor como integrantes da unidade artística. A crítica genética interessou, então,

inicialmente, por abordar processos de criação por meio dos registros desse percurso, feitos

pelo sujeito criador, o que se mostrou coerente com o corpus documental da pesquisa.

Cabe ressaltar que, em virtude de voltar-se para processos de criação, a crítica genética,

embora surgida no campo da literatura, deslocou-se para outras áreas artísticas e também

científicas (SALLES, 2008; FERRER, 2002; ROMANELLI, 2015). Compreende-se que, por

apresentar território fronteiriço, o processo de criação aceita abordagens e atravessamentos

distintos, o que também definiu os contornos da crítica genética. Salles (2008) observa que, a

partir da década de 1990, houve uma expansão de caráter transdisciplinar nesse campo,

inicialmente percebida pela diversidade de obras literárias e de referenciais teóricos que

passaram a interessar os pesquisadores. Nessa perspectiva, Salles desenvolveu um trabalho

precursor, ao introduzir diferentes áreas artísticas, como as artes visuais, a dança e o cinema

nos estudos genéticos (ZULAR, 2002; FERRER, 2002). Essa abrangência conceitual foi outro

aspecto importante para adotar esse referencial teórico-metodológico, já que nesta pesquisa o

processo abordado tem caráter artístico-pedagógico.

Para a pesquisa documental, organizou-se um “dossiê genético”, ou seja, um conjunto de

documentos relativos ao processo de criação abordado (SALLES, 2008; PINO; ZULAR,

2007). Ressalta-se que os documentos que constituíram o dossiê encontravam-se guardados

há quase trinta anos e não haviam sido, até então, reunidos ou tratados de forma sistemática.

Considerando a especificidade desse tipo de documentação, esta pesquisa esteve condicionada

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ao acesso a esses materiais possibilitado por alguns artistas-professores do Trans-Forma, que

guardaram seus cadernos de registro durante esses anos.

Além dos cadernos de artistas-professores, a pesquisa documental também abrangeu outros

materiais, como manuscritos de Martins, entrevistas, matérias de jornais, programas de

espetáculos e documentos administrativos do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea.

Conforme Salles (2014) sugere, essas fontes serviram para apoiar a abordagem dos cadernos,

já que também fazem referência ao trabalho desenvolvido por Marilene. No caso específico

das entrevistas, foram utilizados depoimentos de Marilene Martins e artistas-professores do

Trans-Forma concedidos à autora em ocasiões anteriores a esta pesquisa. Esses depoimentos

foram importantes por conterem informações relativas ao percurso de Martins, bem como às

atividades desenvolvidas no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Ressalta-se que

alguns desses depoimentos abordam a construção do CBDM, além de terem explicitado a

existência dos cadernos de artistas-professores relativos a este estudo.

1.1.1 Artistas-professores do Trans-Forma

Os artistas-professores cujos materiais compuseram o dossiê da pesquisa foram Arnaldo

Alvarenga, Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues. Alguns motivos

levaram aos nomes desses artistas. Inicialmente, no levantamento feito, foi constatada a

presença de quinze professores no CBDM do Trans-Forma, no período de 1973 a 1985. Nesse

panorama, os critérios utilizados para a escolha foram: o tempo de permanência no Trans-

Forma como artista-professor; a continuidade do trabalho como artista-professor de dança,

após a saída do Trans-Forma; e, principalmente, a existência do material e a possibilidade de

acesso a ele.

Com relação ao período de atuação como professores do Trans-Forma, Dorinha Baêta foi

quem permaneceu mais tempo, de 1974 a 1983, tendo sido professora de Lúcia Ferreira e de

Arnaldo Alvarenga, quando estes iniciaram seus estudos na escola. Dudude lecionou no

Trans-Forma de 1975 a 1981. Arnaldo Alvarenga e Lúcia Ferreira trabalharam no mesmo

período, de 1982 a 1984. No grupo de artistas-professores que fizeram parte desta pesquisa,

Mônica Rodrigues foi quem menos tempo lecionou na escola, e embora tenha dado aulas

apenas nos anos de 1983 e 1984, a artista-professora havia guardado seus cadernos de

registro. Destaca-se que esses cinco profissionais apresentaram também cadernos de registro

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relativos a trabalhos feitos posteriormente à saída do Trans-Forma, o que poderá estimular

outros estudos. Duas outras artistas-professoras fizeram parte do grupo identificado na

pesquisa – Juliana Braga28, que deu aulas de 1980 a 1984, e Lydia Del Picchia, de 1979 a

1985. Infelizmente, seus cadernos não foram encontrados durante o desenvolvimento desse

trabalho.

Ressalta-se que os artistas-professores participantes da pesquisa apresentaram em comum o

fato de terem feito formação em dança no Trans-Forma. Isso implicou, inclusive, na

composição de um corpo docente especializado. Observou-se, ainda, que todos esses artistas-

professores, como vários outros que fizeram parte do corpo docente da escola, pertenceram a

alguma fase do Trans-Forma Grupo Experimental de Dança. Também foram identificadas

outras funções desenvolvidas por esses artistas, desde atividades artísticas, como assistência

de direção em espetáculos de final de ano, até a responsabilidade pela parte financeira do

Grupo Trans-Forma, o que demonstrou um envolvimento abrangente dos artistas-professores

com a escola, de forma geral. Nesse sentido, percebeu-se o caráter coletivo do processo de

construção do CBDM. Considerando essa perspectiva de coletividade, os artistas-professores

do Trans-Forma foram abordados, principalmente, como integrantes de um mesmo processo,

respeitando-se suas individualidades, diferenças e contribuições. Os artistas-professores

participantes da pesquisa foram tratados, primordialmente, no contexto coletivo identificado

na escola. Assim, suas trajetórias individuais, embora tenham sido mencionadas, não foram

consideradas de forma sistemática.

1.1.2 Dossiê: documentos de processo

A organização do dossiê estabeleceu-se como uma etapa inicial da pesquisa. A constituição

desse material pode ser compreendida como uma reunião de documentos definida por um

recorte do pesquisador (PINO; ZULAR, 2007; SALLES, 2008), correspondendo, assim, a

uma elaboração teórico-crítica do pesquisador sobre o objeto. Ao constituir o dossiê, o intuito

não foi refazer o percurso criador, já que não se considerou, concordando com Salles (2008) e

Hay (2002), que esses documentos possam abranger a complexidade do processo de criação.

O que se buscou nos documentos de processo foram “rastros” que permitissem o acesso ao

28 Juliana Braga (1964) realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Atuou como professora do CBDM dessa escola. Atualmente reside na Holanda e atua como professora de dança (Informação verbal).

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pensamento do sujeito criador, como sugere Salles (2008, p. 26): “Ao mergulhar no universo

do processo criador, as camadas superpostas de uma mente em criação vão sendo lentamente

reveladas e surpreendentemente compreendidas”. No caso da abordagem de Marilene

Martins, buscamos materiais, conceitos, noções e articulações que fundamentaram sua

perspectiva de conhecimento de dança.

O dossiê desta pesquisa constituiu-se de vinte e um cadernos e alguns manuscritos de cinco

artistas-professores do Trans-Forma e de Marilene Martins. Para compor esse dossiê, foi feita

uma seleção do material total reunido, sendo escolhidas, exclusivamente, as anotações

relativas ao CBDM, o que também correspondeu à maior parte das anotações encontradas. O

dossiê abrangeu registros, ou, documentos de processo de todos os cinco anos desse Curso.

Com relação ao teor, a documentação apresenta anotações dos conteúdos básicos trabalhados

em cada um dos anos do Curso e também de temas específicos utilizados nas aulas. Quanto à

prática artístico-docente, há roteiros de aula de todos os artistas-professores, feitos

diariamente ou a cada semana, e, ainda, proposições relativas aos exames periódicos,

realizados ao final do semestre. Sobre o cotidiano em sala de aula, há comentários sobre o

desenvolvimento de alunos e turmas, além de anotações sobre recursos didáticos e atividades

relativas ao planejamento e preparação das aulas. Ressalta-se que todos os cinco anos do

Curso foram registrados por dois ou mais artistas-professores participantes da pesquisa, o que

se mostrou importante na análise realizada. Assim, com relação ao 1º. Ano Moderno, há

anotações de Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues; do 2º

Ano Moderno, foram encontrados registros de Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e

Mônica Rodrigues; quanto ao 3º,ao 4º e ao 5ºAnos, há anotações de Dorinha Baêta e de

Dudude. Finalmente, foram encontradas anotações sobre reuniões do corpo docente, em que

Marilene Martins apresentava materiais, orientava os professores e coordenava as discussões

sobre o processo de ensino-aprendizagem.

Os documentos que compuseram o dossiê foram selecionados, organizados, classificados e

descritos. Trabalhamos a partir das noções de “armazenamento” e “experimentação”, de

Salles (2014). Nesse sentido, por meio de uma primeira leitura de caráter interpretativo,

buscou-se identificar os materiais armazenados, ressaltando dentre eles aqueles elementos que

se mostraram fundamentais na proposta artístico-pedagógica de Martins. O acompanhamento

também esteve voltado para observar e identificar a experimentação, ou seja, os modos

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utilizados por Marilene e pelos artistas-professores para abordar os materiais componentes do

processo, bem como a função de cada material no CBDM. À leitura interpretativa seguiu-se o

acompanhamento crítico-interpretativo em que se buscou, em diálogo com referenciais

teóricos, discutir a estrutura e a organização dos materiais encontrados, bem como as relações

desses materiais entre si e com outros elementos.

1.2 Pesquisa de referência

O conjunto de referenciais abrangeu, basicamente, a pesquisa bibliográfica realizada com o

intuito de subsidiar o acompanhamento crítico-interpretativo do dossiê constituído e

possibilitar a compreensão da abordagem epistemológica do CBDM, do Trans-Forma. Com

relação ao tema tratado, ou seja, o processo de conhecimento em dança, inicialmente, as

discussões de diversos pesquisadores brasileiros foram fundamentais, particularmente com

relação aos ambientes de formação em cursos de graduação do país, divulgadas em

publicações acadêmicas.

Para abordar a trajetória artístico-pedagógica de Martins, ressaltamos a importância das

Dissertações de mestrado de Arnaldo Leite de Alvarenga, defendida em 2002, e de Glória

Reis, de 2005. Alvarenga tratou da construção da dança moderna em Belo Horizonte,

discutindo a proposta educacional de dança de Marilene Martins no contexto sócio-cultural e

a partir da história dessa arte na capital mineira. Reis aborda a história das artes cênicas

também no panorama belo-horizontino. A autora defende a importância do Trans-Forma

Grupo Experimental de Dança, criado por Marilene Martins, para o desenvolvimento dessa

arte na cidade. Em seu estudo, Reis constata a reverberação do trabalho artístico desenvolvido

pelo Trans-Forma, mesmo após a finalização das atividades desse Grupo.

Também conforme a orientação metodológica da crítica genética, alguns referenciais teóricos

acompanharam a análise dos cadernos de artistas-professores. Nesse sentido, um aspecto

relevante para o diálogo com a crítica genética foi a sua flexibilidade epistemológica que

favoreceu a pesquisa, situada no campo da Dança. Ao discutir sobre as delimitações da crítica

genética, Zular (2002, p. 14) expõe uma perspectiva que sugere adaptabilidade conforme o

objeto a ser abordado:

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[...] faz-se necessário explicitar, de pronto, o que a crítica genética não pretende ser. Isto é, as preocupações teóricas que a ensejam não têm por objetivo reduzir a criação artística a determinados critérios e conceitos, nem estabelecer os critérios de produção que conduzem às grandes obras e muito menos os artifícios e juízos de valor que permitiriam novas criações.

Salles (2008) reitera que o arcabouço teórico deverá ser coerente com as necessidades do

objeto e conforme sua materialidade e questões, e não, para legitimar um determinado

processo de criação. Assim, esses referenciais foram buscados não para silenciar a dança, mas

para possibilitar a construção de conhecimento nesse campo, o que identificamos ser possível

a partir da discussão de Salles (2014, p. 15), que explica: “Os instrumentos teóricos devem ser

convocados de acordo com as necessidades do andamento das reflexões, para que os

documentos dos artistas não se transformem em meras ilustrações das teorias”. A partir da

crítica genética, foram estabelecidas articulações teóricas para a interpretação crítica de um

objeto de natureza processual, caracterizado por complexidade e dinamicidade. Propomos,

assim, um terceiro procedimento metodológico, que se constituiu por uma rede

epistemológica tecida a partir do que denominamos “pontos de referência”.

1.2.1 Pontos de referência: “criação como rede em processo” e conceito de “rede”

Ao buscar um espaço epistemológico favorável à pesquisa, um aspecto importante do objeto

observado foi a sua disponibilidade para estabelecer e articular novos diálogos. Esse

panorama levou ao conceito de “criação como rede em processo”, de Salles (2014), que diz

respeito a um ambiente de criação construído e sustentado por relações e pelas transformações

geradas por elas. Ao construir essa noção, no âmbito da criação artística, Salles faz referência

ao conceito de “rede”, que transita em diversos campos de conhecimento, como as ciências

sociais e da natureza, a matemática, as tecnologias, a comunicação, a economia, a arte

(MUSSO, 2013; PARENTE, 2013). Como Kastrup (2013, p. 85) ressalta, “[...] a rede articula

elementos heterogêneos como saberes e coisas, inteligências e interesses [...]”. Cabe ressaltar

a horizontalidade nas relações que caracteriza o tecido reticular. Esse aspecto permite a

articulação de distintos saberes e modos de conhecer, o que se torna importante em uma

pesquisa que, construída no contexto acadêmico, envolve epistemologias construídas nesse

campo, mas também fora dele. Na Antiguidade, o termo rede esteve relacionado a tecidos

internos do corpo humano, como o cérebro e o sistema circulatório (MUSSO, 2013). A

imagem reticular esteve associada também ao vínculo que se acreditava existir entre o fluxo

interno do corpo, o ambiente circundante e o Universo (CAUQUELIN, 1987). No século

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XIX, a noção de rede passou de algo a ser imaginado ou observado na natureza para a

compreensão de algo a ser construído (MUSSO, 2013), como aconteceu nesta pesquisa, em

que a construção em rede foi um modo de desenvolvê-la. Nesse sentido, similarmente ao que

observa Salles (2014), foram feitos dois movimentos, relacionados entre si. O primeiro, em

que foi construída uma rede epistemológica para abordar o objeto. E, o segundo, em que o

objeto da pesquisa tomado como rede em processo foi observado e analisado

Ao sistematizar o conceito de “criação como rede em processo”, no âmbito da criação

artística, Salles (2014) estabelece a presença de alguns aspectos fundamentais, sendo eles: a

dinamicidade, a interação, a transformação e o inacabamento. A dinamicidade diz

respeito ao caráter flexível e ao fluxo em um processo de criação. Esse é um aspecto que

permite adicionar, dispensar ou deslocar elementos, estímulos e materiais. Salles compreende

que tais ações sejam realizadas a partir de critérios do sujeito criador e se constituem em

acessos para a observação e a análise do percurso criativo. As interações correspondem às

conexões que se fazem entre os elementos que compõem a rede e definem a densidade e a

complexidade da rede. Essas interações se fazem de forma não linear e não hierárquica,

podendo seguir várias direções. Salles (2014) ressalta, e isso interessa neste estudo, que as

interações têm caráter inferencial, ou seja, correspondem ao pensamento do sujeito criador

que, ao relacionar um elemento com outro está desenvolvendo sua criação e expondo seu

ponto de vista sobre o mundo29 do qual se fala. O acompanhamento das interações, a

identificação dos modos como elas se constituíram e o seu significado na rede possibilitam

chegar ao que Salles denomina transformação, que também caracteriza o conceito criado

pela autora. Quanto ao inacabamento, Salles (2014, p. 20) explica que não se trata de algo

que não foi finalizado, mas da natureza daquilo que foi gerado por meio de um processo de

criação:

Estamos falando do inacabamento intrínseco a todos os processos, em outras palavras, o inacabamento que olha para todos os objetos de nosso interesse – seja um romance, uma peça publicitária, uma escultura, um artigo científico ou jornalístico – como uma possível versão daquilo que pode vir a ser modificado.

Compreendemos o inacabamento como o estado latente de criação em um processo que,

considerado sob a perspectiva de um movimento em rede, encontra-se continuamente

29 Novamente, utilizamos o termo “mundo” conforme propõe Hissa (2013), que o utiliza com o significado de contexto da pesquisa e do sujeito da pesquisa, considerado também um sujeito criador.

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disponível para a ocorrência de interações, o que se mostrou coerente com as discussões feitas

por Alvarenga (2002) e Reis (2005) em relação à permanência das ideias de Martins no

cenário de dança em Belo Horizonte. O inacabamento, juntamente com as características de

heterogeneidade e ausência de hierarquia, que marcam o contexto de rede, oferecem subsídio

para compreender a rede como parte de um contexto, em que se configura uma “rede de

redes”, como sugere Musso (2013, p. 32). Essa perspectiva interessou para esta pesquisa, já

que consideramos importante compreender a proposta artístico-pedagógica de Marilene

Martins a partir também do contexto artístico, no qual a artista esteve inserida, anteriormente

à fundação do Trans-Forma. Como observado neste estudo, alguns referenciais que

compuseram o panorama do Trans-Forma acompanharam Marilene desde seus primeiros

estudos de dança.

1.2.2 Ponto de referência: teoria da autopoiese

Considerado o objeto desta pesquisa como um processo de conhecimento, o próximo ponto de

referência da rede epistemológica se constituiu pela teoria da autopoiese30, dos biólogos

chilenos, Humberto Maturana e Francisco Varela (2001, 2003), que aborda a fenomenologia

do conhecer do humano. Assim como a crítica genética e o conceito de rede, o trabalho de

Maturana e Varela extrapolou os limites de sua área científica. Vinte anos após a primeira

publicação31 sobre a teoria da autopoiese, Varela (2003, p. 34) reflete sobre a abrangência do

conceito:

O que faz uma idéia como a autopoiese, estritamente uma teoria da organização celular, adquirir visibilidade e proeminência além da biologia e afetar campos distantes do conhecimento? [...] A essa distância, a autopoiesis ocupa, na minha opinião, um lugar privilegiado porque anunciou de forma clara e explícita uma tendência de hoje, já que é uma configuração de forças em muitos campos do fazer32 (Tradução da autora).

30 Nessa pesquisa, ao fazer referência ao conceito de autopoiese, comumente serão citados ambos os nomes dos pesquisadores, Humberto Maturana e Francisco Varela. No entanto, os pesquisadores poderão ser abordados, separadamente, em virtude de seus trabalhos individuais desenvolvidos posteriormente. Finalmente, cabe ressaltar que nessa pesquisa utilizamos, de forma mais proeminente, o trabalho de Maturana, especialmente sua noção de alteridade que integra o estudo do autor denominado Biologia do Amor. 31 Publicado em 1973, De máquinas e seres vivos: Autopoiese – a organização do vivo foi a primeira obra sobre a teoria da autopoiese escrita conjuntamente por Humberto Maturana e Fransciso Varela. Anteriormente a essa publicação, Maturana já havia iniciado estudos sobre sistemas de auto-organização e cognição e publicado artigos científicos, nos quais agradece a colaboração de Francisco Varela (MATURANA; VARELA, 2003). 32Trecho original: “Que hace que una idea como la autopoiesis, estrictamente una teoría de la organización celular, adquiera visibilidad y prominencia más allá de la biologia profesional y sea capaz de afectar campos de saber lejanos? Mi respuesta es que en último término sólo podemos compreender ese fenómeno porque la idea contiene un trasfondo de sensibilidades históricas de importancia com las cuales se alínea y resuena. Ese

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A tendência a que Varela (2003, p. 34) se refere e denomina “giro ontológico da

modernidade”33 diz respeito ao esgotamento do pensamento cartesiano que, a partir do fim do

século XIX e no século XX, favorece o surgimento de novas perspectivas de produção de

conhecimento caracterizadas por atravessamentos entre áreas distintas. Alguns autores

(KASTRUP, 2008; MAGRO; PAREDES, 2001; MARIOTTI, 2001), apontam que a teoria da

autopoiese gerou discussões e pesquisas em diversos campos como as ciências da cognição, a

educação, as artes, a psicologia, a filosofia, dentre outras. Como observam Graciano e Magro

(1999) e Kastrup (2007), os estudos de Maturana e Varela seguem pautados em

procedimentos e em mecanismos científicos específicos para a demonstração dos fenômenos

tratados, mas a abordagem que os autores fazem dessa temática apresenta uma dimensão de

caráter filosófico, o que também colabora para a abrangência conceitual da autopoiese.

Considerando esse aspecto nas ideias de Maturana e Varela, Kastrup (2008, p. 61) comenta:

Procuramos demonstrar que é possível distinguir na ideia de autopoiese duas dimensões. A primeira, científica, diz respeito a sua encarnação nos seres vivos, em indivíduos concretos cuja existência tem na morte biológica seu limite. A segunda dimensão, filosófica, refere-se ao fato de que há vida no vivo, definindo vida como potência, impulso de autocriação, cujo resultado imprevisível não assegura sua manutenção como sistema ser vivo.

Ao tomar a teoria da autopoiese, em Maturana e Varela, como premissa para a análise da

proposta artístico-pedagógica de Marilene Martins, considerou-se a importância tanto de sua

base científica como sua dimensão filosófica. O trabalho dos biólogos chilenos subsidiou a

análise do objeto, considerado sob uma perspectiva sistêmica. Assim, a base epistemológica

da proposição de Martins foi abordada a partir de questões relativas a sua sistematização.

Desse modo, os componentes epistêmicos do Curso Básico de Dança Moderna foram

contextualizados na área de Dança, entretanto não se buscou as especificidades das discussões

que os envolvem. O objetivo foi compreender o papel desses elementos no trabalho do Trans-

Forma e a sua articulação no referido processo de conhecimento em dança.

A teoria da autopoiese permitiu, ainda, discutir questões fundamentais identificadas no

trabalho do Trans-Forma. Uma delas foi o caráter da abordagem cognitiva na proposição de

Martins. E, a outra, foi compreender o espaço que a questão da diferença ocupou no contexto

trasfondo de tendencias no aparece delineado sino en retrospectiva, porque las ideas, como la historia, son una posibilidad que se cultiva, no un determinismo mecánico. A esta distancia, la autopoiesis ocupa en mi opinión un lugar privilegiado por haber anunciado de manera clara y explícita uma tendencia que hoy es ya una configuración de fuerzas en muchos dominios del que hacer cultural.” 33 Trecho original: “giro ontológico de la modernidad.”

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do CBDM. Apontada por Alvarenga (2002) e Reis (2005) como um traço importante no

alunado e na prática técnica e artística do Trans-Forma, a diferença foi tratada sob a

perspectiva da configuração metodológica da proposição de Marilene.

1.2.2.1 Cognição e experimentação

A cognição humana fundada na autonomia, como pensado por Maturana e Varela, rompeu

com o pensamento dominante nas ciências cognitivas, que perdurou desde seu surgimento na

década de 1940, até quase o final da década de 1970, quando outros pensamentos começaram

a se fortalecer nesse campo (MAGRO; PAREDES, 1999; VARELA, 1994). Com origem em

estudos realizados por Maturana no início da década de 1960, e desenvolvida em colaboração

com Varela nas décadas de 1970 e 1980, a teoria da autopoiese recusou a perspectiva de

cognição como representação. Nesta, a cognição humana é compreendida a partir da analogia

da ação cerebral com o sistema computacional. Desse modo, a cognição se restringe ao

processamento de informações oriundas do meio externo e cumpre o objetivo de

representação mental apropriada de um mundo pré-determinado (VARELA, 2003). Nesse

modelo, o sujeito apresenta passividade na ação cognitiva. O modelo representacionista é

criticado por Varela (1994) pela distância que apresenta da natureza biológica do ser vivente,

já que fundamentado em sistemas computacionais. Ao defender outra abordagem cognitiva,

Varela (1994, p. 72) ressalta o caráter propositivo do conhecer: “A faculdade mais importante

de qualquer cognição viva é precisamente, em larga medida, colocar as questões pertinentes

que surgem a cada momento da nossa vida”. Ressalta-se, desse modo, que o sujeito

cognoscente deixa de ser caracterizado por passividade, como no modelo de representação,

para ser compreendido conforme sua natureza propositiva.

Considerando a perspectiva paradigmática de cognição, tomar a Biologia do Conhecer como

referência para pensar o conhecimento em dança corresponde também, como discute Kastrup

(2008), a definir um posicionamento político de cunho epistemológico. Isso significa, além

da opção por uma abordagem cognitiva, a negar o pensamento dualista que separa corpo e

mente e compreender o conhecimento sob o ponto de vista da corporalidade, como anunciam

Maturana (1999) e Varela (1991). Maturana (1999) recusa a ideia de mente e corpo como

instâncias separadas. O biólogo explica que o fato de operarmos em dois domínios –

anatomofisiológico e comportamental – não significa ou justifica uma concepção dualista. O

termo corporalidade, que utilizamos nessa pesquisa a partir de Maturana, diz respeito a

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domínios distintos que se apresentam como ações diferentes e complementares que formam

uma unidade. Desse modo, Maturana (1998) define o humano pelo entrelaçamento de

aspectos racionais e emocionais. Também nesse sentido, Varela (1991) propõe pensar o

conhecimento como ação corporificada. Nessa perspectiva não dualista, sustentamos a ideia

de um fazer dança como conhecimento teórico-prático que ocorre na relação corporalidade-

meio. Situar o paradigma da cognição no âmbito da autopoiese corresponde também, como

mencionado, a compreender o sujeito cognoscente ativo no processo do conhecer e, por isso,

criador, autônomo e, ainda, responsável por si mesmo e pela construção de um mundo, como

observa Magro e Paredes (1999). Concordamos com Pellanda (2009), quando a autora discute

que o viver cognitivo proposto na Biologia do Conhecer sugere reflexões e proposições

relativas à educação, ao ambiente educacional, às práticas docentes, às metodologias de

aprendizagem, dentre outros nesse âmbito, mais coerentes com o contexto humano.

Considerando a teoria da autopoiese como um convite e uma premissa para se pensar sobre

modos de conhecer, lançamos nosso olhar sobre a proposta artístico-pedagógica de Marilene

Martins.

1.2.2.2 Convivência e processo de conhecimento

Maturana e Varela se interessaram pelo fenômeno do conhecimento e para explicá-lo se

debruçaram sobre as bases biológicas dos seres vivos, entre os quais priorizaram o ser

humano. Com o intuito de compreender a cognição humana, os pesquisadores desenvolveram

investigações acerca do metabolismo celular e realizaram estudos sobre o sistema nervoso

focando experiências relativas à visão34. A partir dessas pesquisas, Maturana e Varela (2001,

2003) explicam que os seres vivos são unidades autopoiéticas, ou seja, que se caracterizam

essencialmente por produzirem a si mesmas, em uma dinâmica de circularidade. Por essa

característica de autoprodução, os seres vivos são considerados autônomos e apresentam

individualidade.

No fenômeno da autopoiese, ao produzir-se a si mesmo, constituindo-se como unidade

autônoma e individual, o ser vivo se distingue do entorno, fazendo surgir o meio em que vive.

Nessa perspectiva, o viver e a existência não consistem especificamente no estado vivente do

34 As pesquisas científicas relacionadas à teoria da autopoiese são abordadas por Humberto Maturana e Francisco Varelas nos livros escritos conjuntamente pelos autores, a saber: De máquinas y seres vivos: autopoiesis, la organización de lo vivo e A árvore do conhecimento: as bases biológicas da compreensão humana.

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organismo, ou seja, em sua corporalidade, mas na congruidade entre a corporalidade e o meio,

resultando no entrelaçamento corporalidade-meio (MATURANA, 1999). Organismo e meio

estabelecem uma influência recíproca em que mantêm, ao mesmo tempo, a individualidade de

cada um e a congruência um com o outro, como descrito:

[...] distinguimos a unidade que é o ser vivo de seu pano de fundo, e o caracterizamos com uma determinada organização. Com isso, optamos por distinguir duas estruturas, que serão consideradas operacionalmente independentes entre si – o ser vivo e o meio – e entre as quais ocorre uma congruência estrutural necessária (caso contrário, a unidade desaparece) (MATURANA; VARELA, 2001, p. 108).

Dada a configuração corporalidade-meio, para Maturana e Varela (2001) a cognição humana

acontece na convivência e está relacionada às transformações que ocorrem ao ser vivo e que

são favorecidas por perturbações oriundas do meio, e internas, do próprio organismo. Assim,

o movimento relativo à transformação equivale a conhecer. Nessa perspectiva, observamos a

similaridade do processo cognitivo, em Maturana e Varela (2001), com o processo de criação

relativo ao conceito de “criação como rede em processo”, concebido por Salles (2014).

Conforme essa autora, o processo artístico se desenvolve a partir de interações do atuante com

elementos que beneficiam a ocorrência de transformações, sendo este movimento

correspondente ao ato de criação. A similaridade operacional entre esses dois conceitos

fortalece a nossa compreensão do processo artístico como um processo cognitivo.

Na convivência, é importante o fato de que o meio não determina as transformações ocorridas

no organismo, já que o ser vivo é quem permite ser perturbado por um estímulo oriundo do

meio, desencadeando seu processo autopoiético. Daí também a noção de autonomia do ser

vivente, pois além da dinâmica autopoiética, o organismo tem a capacidade de “especificar

sua própria legalidade, aquilo que lhe é próprio” (MATURANA; VARELA, 2001, p. 55).

Também é importante que na convivência não somente o meio perturba o organismo, mas

também o organismo perturba o meio, que se movimenta e transforma-se, como metaforizado

por Mariotti (2001, p. 17):

Quando damos um passeio pela praia, por exemplo, ao fim do trajeto estaremos diferentes do que estávamos antes. Por sua vez, a praia também nos percebe. Estará diferente depois da nossa passagem: terá registrado nossas pegadas na areia – ou terá de lidar também com o lixo com o qual porventura a tenhamos poluído.

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Maturana e Varela (2001), ao situarem o conhecer na convivência, compreendem o viver

como conhecer e vice-versa. A partir da ideia dos autores de um viver cognitivo interessou a

noção de aprendizagem inventiva de Kastrup (2007, 2008), que em diálogo com a teoria da

autopoiese propõe considerar a experimentação como um modo de conhecer. Ao discutir o

processo cognitivo na contemporaneidade e questionar a concepção da psicologia da

aprendizagem que vê cognição como solução de problema, Kastrup recorre ao pensamento de

Maturana e Varela para propor um novo entendimento do conhecer. Ao considerá-lo no e

como o próprio viver e a impossibilidade de determiná-lo previamente, como discutido pelos

biólogos chilenos, Kastrup (2008, p. 101) propõe que “o domínio cognitivo não é um domínio

de representações, mas um domínio experiencial e emergido das interações e dos

acoplamentos do organismo ”, ou seja, o conhecer sendo o próprio viver acontece na

experiência. Nesse sentido, Kastrup relaciona conhecer com experimentar em um processo

que se dá na interação entre sujeito e meio, no tempo presente e, desse modo, foge à

representação caracterizada pelo determinismo. Nessa perspectiva, Kastrup compreende a

perturbação de Maturana e Varela como o fator “problema” que integra a aprendizagem e está

relacionado ao deslocamento do ser cognoscente. Kastrup (2007, 2008) propõe, então,

compreender a cognição, não como solução, mas, essencialmente, como invenção de

problema. No processo discutido pela autora, ao negar o determinismo no processo de

conhecimento, recusa-se também problemas e soluções pré-determinadas e considera-se

inventar problemas e soluções na experiência como modo de conhecer. Segundo Kastrup

(2007, p. 108-109): “Se os problemas não são dados, mas inventados, as soluções são

contingentes e imprevisíveis: formas cognitivas mais ou menos inventivas, diferentes mundos.

Além disso, a solução não mata o processo da problematização”. Ao colocar o processo de

conhecimento na experiência, Kastrup relaciona o experimentar ao conhecer, pensamento que

se mostrou importante na análise do trabalho de Marilene Martins.

1.2.2.3 Perturbação e alteridade

Além da perspectiva de um viver cognitivo que prioriza a invenção, como discute Kastrup

(2007, 2008), interessou na teoria da autopoiese a perspectiva de um conhecer constituído na

relação corporalidade-meio. Conforme afirmam Maturana e Varela (2001, p. 33): “Não há

descontinuidade entre o social, o humano e suas raízes biológicas. O fenômeno do conhecer é

um todo integrado e está fundamentado da mesma forma em todos os seus âmbitos”. A partir

da interação primordial entre o ser vivo e o meio, Maturana e Varela (2001) discutem o

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caráter das relações entre indivíduos na convivência, o que permite a configuração de um

fenômeno social. Nesse sentido, os autores compreendem que não basta a interação entre

indivíduos para a construção social. É necessário que exista “a aceitação do outro como

legítimo outro na convivência” (MATURANA, 1998, p. 23). A discussão de Maturana e

Varela (2001) sobre fenômeno social é fundamentada em questões biológicas, sendo a

aceitação relacionada à manutenção da condição ontogênica e filogênica que permite a

continuidade do processo evolutivo dos seres vivos. O pensamento dos biólogos nos leva a

uma noção de alteridade. Ao considerar o sentido etimológico do termo “outro”, tem-se

aquele que é diverso, diferente. Nessa pesquisa, tomamos a ideia de “aceitação de um legítimo

outro na convivência”, não como uma ação relativa à manutenção da vida biológica, mas

como uma ação que estabelece possibilidades de convivência. Nesse sentido, compreendemos

que aceitar o outro como um legítimo outro na convivência corresponde a respeitar e

preservar as especificidades que distinguem, cada um, como diferente. A perspectiva de lidar

com aquele ou aquilo que se distingue como diferente é coerente com o objeto da pesquisa, já

que o aspecto da diversidade é apontado tanto por Alvarenga (2002) e Reis (2005) como foi

identificado nessa pesquisa como uma característica fundamental no trabalho de Marilene

Martins. Ao considerar a importância da variedade corporal, técnica e artística na dança de

Martins, trabalhamos também com a hipótese de que a diferença tenha atuado como

perturbação no processo de criação do CBDM.

1.2.3 Pontos de referência: “moderno” e “pós-moderno”

Para a abordagem da trajetória artístico-pedagógica de Martins e do contexto do Trans-Forma

Centro de Dança Contemporânea, envolvemos outros dois referenciais na rede de conversação

da pesquisa: os conceitos de “moderno” e “pós-moderno”. Considerada a convivência como

espaço marcado por interações entre corporalidade e meio, e onde ocorre o processo artístico-

cognitivo, pressupomos a relevância de investigar o meio em que o fenômeno pesquisado

ocorreu, ou seja, o meio artístico-pedagógico em que o CBDM do Trans-Forma esteve

situado. Para compreendê-lo, percebeu-se a necessidade de abordar a trajetória de Marilene

Martins anterior à fundação do Trans-Forma. O objetivo foi localizar os artistas-professores

que fizeram parte do que compreendemos como tecitura epistemológica da proposta artístico-

pedagógica de Marilene. O fato de considerar a importância do período em que Marilene

Martins realizou estudos de dança e iniciou sua profissionalização na área justificou-se pela

proeminência de alguns de seus professores no desenvolvimento da escola, como registrado

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no corpus documental da pesquisa e em manuscritos da artista. Para essa abordagem,

delimitamos o período de 1952 a 1986, que reúnem duas fases distintas do percurso da artista-

docente. A primeira, de 1952 a 1968, que marca o início de seus estudos de dança e envolve

também as primeiras atividades profissionais. E, a segunda fase, de 1969 a 1986, relativa ao

período de atividades do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea.

Definidos os períodos de atuação de Marilene Martins, acompanhamos o pensamento de

Hutcheon (1991, p. 121), que propõe analisar a produção artística por meio de questões

inerentes aos movimentos artísticos no âmbito da história da arte, conforme observa: “Parece

haver um novo desejo de pensar historicamente, e hoje pensar historicamente é pensar crítica

e contextualmente”. A contextualização conduzida pela trajetória de Marilene Martins

ressaltou a noção de modernismo e nos fez supor a pertinência da conceituação de pós-

modernismo para discuti-la. A opção por inserir os conceitos de “moderno” e “pós-moderno”

na rede epistemológica desta pesquisa para analisar a proposta artístico-pedagógica de

Martins foi reforçada, ainda, pelas perspectivas de Efland e jagodzinski (2008), que enfatizam

a importância dessas temáticas para as artes e seus processos de aprendizagem no século XX e

até os nossos dias. Além disso, ambos esses autores ressaltam mudanças da noção de

“alteridade”, do modernismo para o pós-modernismo, o que tornou viável a aprendizagem de

arte, de forma contextualizada. Esse aspecto também mostrou-se importante nesse estudo, já

que a alteridade se estabeleceu como elemento importante para observar os modos de fazer no

Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea.

O modernismo foi identificado na trajetória de Marilene Martins, reconhecida por fundar, em

1969, a primeira escola de dança moderna de Belo Horizonte, dando continuidade às

iniciativas de Klauss Vianna, como afirma Alvarenga (2002, p. 173), que assim descreve o

trabalho de Martins:

[...] inicia, em 1969, sobre bases técnicas diferentes daquelas efetivadas pelo balé, um trabalho em novo estilo, uma nova linguagem. Ao mesmo tempo, instala definitivamente a dança moderna em Belo Horizonte, objetivando uma educação corporal cujo sentido de formação levara a uma renovação ético-estética no pensamento sobre a dança em Belo Horizonte.

Pelas iniciativas pioneiras e sua contribuição ao desenvolvimento da dança em Belo

Horizonte, Martins foi homenageada na Câmara Municipal da cidade, como publicado no

jornal Estado de Minas, de 1992:

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Uma das mais reconhecidas bailarinas e coreógrafas do País, Marilene Martins recebe hoje o título de Cidadã Honorária de Belo Horizonte [...]. Ela é fundadora do Trans-Forma, a primeira escola de dança moderna de Belo Horizonte e introduziu em Minas, a partir de 1969, uma forma inovadora de pensar, pesquisar e estudar os novos rumos da dança (BH HOMENAGEIA..., 1992.)

Além da noção de “moderno” na arte, alguns aspectos da trajetória de Marilene nos fizeram

considerar a hipótese da pertinência da noção de “pós-moderno” para compreender as

interações artísticas em sua proposta artístico-pedagógica. Ao mencionar a dança moderna em

Martins, relacionando-a a Klauss Vianna, Alvarenga (2002, p. 173) ressalta a existência de

diferenças entre ambos, que nos pareceram importantes:

[...] o campo da dança, em Belo Horizonte, foi o último a incorporar o ideário estético moderno, fato que, em outras áreas, já havia ocorrido há muito tempo. Tal efetivação vem com o trabalho desenvolvido por Klauss Vianna no balé, modernizando-o tanto técnica como coreograficamente; [...] e será retomado – numa dinâmica radicalmente diferente – por Marilene Martins.

Cabe salientar que, apesar de ter seu trabalho considerado como continuidade das iniciativas

modernas de Vianna, os períodos de atuação desse coreógrafo e da artista-professora foram

distintos. Klauss Vianna e sua esposa, Angel Vianna, fundaram o Ballet Klauss Vianna e o

grupo de dança de mesmo nome, de meados da década de 1950 até a mudança do casal para a

cidade de Salvador, em 1963. Somente em 1969 Marilene Martins fundou sua escola em Belo

Horizonte. Esse momento em que a dança moderna volta a ocupar a cena artística da cidade

com Marilene coincide com um período importante discutido por autores como uma fase de

transição do modernismo para o que se denominou pós-modernismo na arte (LYOTARD,

2011; GUINSBURG; FERNANDES, 2008). Particularmente, na cidade de Belo Horizonte,

Ribeiro (1997) constata, no campo das artes plásticas, diferenças entre o movimento que se

desenvolveu em torno da Escola Guignard35, na década de 1940, e as manifestações realizadas

entre 1964 e 1970, quando alguns artistas questionaram as perspectivas modernistas anteriores

e lançaram novas propostas. Com esse segundo período, Ribeiro identifica o pós-modernismo.

Além disso, identificamos a expressão “dinâmica radicalmente diferente”, utilizada por

Alvarenga (2002) para se referir à dança de Martins, com os termos “[...] contemporânea,

moderna radical ou dita pós-moderna”, que Coelho (2011, p. 105) utiliza para se referir à

década de 1960, considerada por esse autor como um período de passagem do moderno para o

35 A Escola Guignard surgiu na década de 1940, integrando o projeto de modernização da cidade de Belo Horizonte, levado à frente pelo prefeito Juscelino Kubitschek. Na ocasião, o pintor brasileiro Alberto da Veiga Guignard foi convidado para dar aulas na escola, que marcou a história da arte e seu ensino na capital mineira (RIBEIRO, 1997; VIVAS, 2012).

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pós-moderno na dança. Martins também demonstra traços de um trabalho artístico-

pedagógico mais abrangente em informativos de sua escola distribuídos aos alunos. Na

ocasião dos quinze anos de atividades do Trans-Forma, a circular endereçada ao alunado

descreve a proposta:

Durante este período, o TRANS-FORMA pôde desenvolver e firmar um estilo criativo, brasileiro, forte e comunicativo, que se baseia na técnica da Dança Moderna e avança para além dela, buscando expressar o mundo contemporâneo, seus valores, seu desequilíbrio, seus contrastes [...] (TRANS-FORMA CENTRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA, 1984, grifo nosso)

A partir desses traços destacados no trabalho de Martins e seguindo o caminho proposto por

Hutcheon (1991), abordamos discussões que envolvem os conceitos de “modernismo” e “pós-

modernismo”, de forma a subsidiar a investigação sobre a convivência artística, os vínculos

feitos por Martins na construção de sua proposta e os modos que os efetivaram. No caso, as

noções de “moderno” e “pós-moderno” se mostraram operacionais para localizar, descrever,

mencionar e caracterizar os acontecimentos e as circunstâncias artísticas tratadas nesta

pesquisa.

1.2.3.1 Modernismo e pós-modernismo: atitudes artísticas

A noção de “moderno” está situada no campo das artes e pode ser compreendida como reação

ao processo de modernização da sociedade ocidental (PAZ, 1984; HARVEY, 2012). Pensada

a partir da Revolução Industrial iniciada na Inglaterra no século XVIII, a modernidade foi se

configurando por meio de transformações fundamentais nos campos científico, político,

econômico, social, cultural e artístico, que se estenderam para vários países (COUTINHO,

2008; GUINSBURG; FERNANDES, 2008; HARVEY, 2012). Coelho (2011) observa que as

novas ideias chegaram de formas distintas e em períodos históricos diferentes em diversas

regiões. De início, é importante situar o termo “ocidental” que, conforme alguns autores36, diz

respeito às culturas da Europa e da América do Norte. Nesse sentido, países da América

Latina, como o Brasil, cujas histórias são marcadas pela colonização tanto europeia como

norte-americana, encontram-se vinculados à cultura ocidental, mas não a representam, sendo

necessário um olhar atento para observar e refletir sobre seus processos. Como ressaltam

Coutinho (2008), Efland (2009) e Hutcheon (1991), há diferenças basilares entre os processos

36 Alguns autores, como Coutinho (2008), Efland (2008), Harvey (2012), Hutcheon (1991) e Paz (1984), utilizam o termo “ocidental” para fazer referência às culturas da Europa e da América do Norte.

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de modernização da Europa e da América do Norte, em relação aos da América Latina, que

tornam específicos os movimentos artísticos e de aprendizagem das artes nesse último

continente.

Sobre o pensamento moderno, o poeta mexicano Octavio Paz (1984, p. 17) observa seu

caráter de rompimento com o passado em “[...] uma tradição feita de interrupções, em cada

ruptura é um começo”. Esse autor destaca a criticidade na abordagem modernista, que

questiona padrões estabelecidos propondo algo novo e diferente que, posteriormente, também

será negado e substituído por outra novidade e, assim, sucessivamente. Por essa dinâmica, Paz

(1984) compreende que o modernismo opera na contradição. Cabe ressaltar que cada nova

perspectiva que surge corresponde ao que Lyotard (2011) denomina “metanarrativa”, que diz

respeito a ideias totalizantes a serem utilizadas em diferentes âmbitos. jagodzinski37 (2008, p.

179) questiona esse tipo de referencial universal, apontando para a inadequação do aspecto

hegemônico que busca definir critérios para a produção e a apreciação artística, conforme

padrões europeus e norte-americanos: “O esforço para reduzir a arte a uns poucos elementos e

princípios, aplicáveis a toda arte de qualquer lugar, é um exemplo modernista tipicamente

ocidental”. Nesse panorama, jagodzinski (2008), questiona a noção de “alteridade”, em que o

Outro é sempre aquele que se encontra fora da cultura ocidental e cuja produção artística é

considerada de menor importância. Do ponto de vista da América Latina, Muniz (2018)

observa que o movimento moderno apresentou a busca por referenciais em outras

manifestações, como as tradicionais, o que indica uma neutralização de referenciais

eurocêntricos e o surgimento de uma produção de caráter latino-americana que, inclusive,

retorna à Europa, influenciando-a também.

Assim como o modernismo, o pós-modernismo envolve atitudes e discussões acerca de sua

conceituação e delimitação histórica, levantando, inclusive, dúvidas sobre sua existência. No

entanto, como observam Guinsburg e Fernandes (2008) e Harvey (2012), não é fácil negar a

pertinência das discussões sobre o surgimento de um novo panorama sócio-cultural. É

compreensível o dissenso quanto às definições relativas ao movimento pós-moderno, já que a

relação desse período com o anterior é pouco precisa, podendo, inclusive, ser considerado

como continuidade. Enquanto o período modernista apresentou uma ruptura declarada com o

passado, como analisa Paz (1984), o pós-moderno pode ser compreendido na perspectiva de

37 O nome do autor jan jagodzinski é escrito com iniciais em letras minúsculas (BARBOSA, 2008).

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uma “presença do passado”38, conforme Hutcheon (1991). Ao dar continuidade ao

modernismo, o período pós-moderno não o faz sem colocá-lo sob crítica, sem problematizá-lo

e trazer novos contornos às discussões surgidas a partir dele.

Discute-se a origem do pós-modernismo nos Estados Unidos da América, na conjuntura da

década de 1960, em que se destaca o movimento da contracultura, marcado por manifestações

civis contrárias ao posicionamento ideológico, político e econômico desse país, e na qual as

minorias se fizeram notar (COUTINHO, 2008; HUTCHEON, 2014). Alguns autores

consideram ser esse um período de transição sócio-cultural que, no campo das artes, marcou a

passagem do modernismo para o pós-modernismo (GUINSBURG; FERNANDES, 2008;

HUTCHEON, 2014; LYOTARD, 2011).

Contradição e criticidade na convivência fundamentam o pós-moderno, que recusa as ideias

universais, inaugurando um período pautado na pluralidade de discursos, demandando novos

posicionamentos, como afirma Lyotard (2011, p. xvii, grifo nosso): “Ele [o período pós-

moderno] aguça nossa capacidade para as diferenças e reforça nossa capacidade de suportar o

incomensurável”. Ao utilizar a palavra “suportar”, Lyotard dá indícios do quão exigente

tornou-se lidar com a diversidade e toda a gama de questões suscitadas por ela. O caráter

diverso do discurso pós-moderno possibilitou contemplar perspectivas minoritárias, como

ressalta Hutcheon (1991), o que supomos ser importante para explicar a presença mais

recorrente da América Latina nas discussões conceituais que abrangem o pós-modernismo.

A transformação sócio-cultural que tem início na segunda metade do século XX acontece

diferentemente nos diversos países que dela participam, e de forma não-linear. Do ponto de

vista do desenvolvimento industrial, tecnológico e científico, a América Latina apresenta um

panorama complexo ao oscilar do pós-industrial a algo que poderia ser considerado, inclusive,

pré-industrial, como discute Coutinho (2008, p, 168):

O processo de modernização pelo qual passou a América latina na segunda metade do século XX, embora mais acelerado do que nunca, continuou apresentando fortes contradições, decorrentes de uma economia dependente e de uma realidade social altamente matizada e diferenciada. Trata-se de uma sociedade na qual culturas indígenas tribais mesclam-se com o campesinato tradicional, com descendentes de

38 Para discutir o conceito de “pós-moderno”, Hutcheon (1991) faz referência à expressão “Presença do passado”, que deu nome à Bienal de Veneza, em 1980. No referido evento, foi reconhecida a importância da noção de “pós-modernismo” na área de arquitetura.

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escravos, com um amplo proletariado urbano e com uma elite cosmopolita semelhante àquela que se encontra nos grandes centros ocidentais, como Paris ou Nova Iorque. Assim, se nessa sociedade há aspectos que a aproximam de uma era pós-industrial, característica das civilizações informatizadas do chamado Primeiro Mundo, por outro lado abundam elementos que apontam para um estágio até mesmo pré-industrial.

Dado esse contexto, Coutinho levanta dúvidas sobre a adequação do termo “pós-moderno”

para referir-se à produção artística na América Latina, reflexão que consideramos pertinente.

No entanto, compreendemos que a heterogeneidade e a contradição, que particularizam esse

cenário, sejam aspectos que também reforçam e o incluem na discussão pós-moderna.

Na dança ocidental, Silva (2005) localiza tanto o movimento moderno como o pós-moderno

no período iniciado no final do século XIX e que segue até os nossos dias. Na análise de

Silva (2005), a história da dança no ocidente nessa fase demonstra um desenvolvimento em

direção à pluralidade e à experimentação que caracterizam essa arte na atualidade. Ao traçar

uma abordagem histórica não-linear de dança nesse mesmo período, Louppe (2012), também

destaca um movimento direcionado à multiplicidade de pontos de vista. Essa autora não

utiliza os termos “moderno” e “pós-moderno” para referir-se à dança. No entanto, é possível

identificá-los em sua análise, que distingue duas fases no percurso dessa arte, desde o final do

século XIX até os nossos dias. O primeiro período, que denomina “grande modernidade”,

abarca o final do século XIX até a década de 1960, em que estão reunidos artistas pioneiros

desse movimento. E o segundo, da década de 1960 até os nossos dias, que a autora designa

“época atual”, caracteriza-se pelo surgimento de múltiplas propostas que se relacionam de

alguma forma com o que se construiu no período anterior. Mesmo distinguindo fases

distintas, Louppe (2012) torna possível compreender relações de continuidade no

desenvolvimento da dança que atravessa o século XX e chega até os nossos dias. Conforme

Louppe, valores como a individualidade do corpo e do movimento, a inutilidade de modelos e

a alteridade, cultivados no decorrer do século XX, continuam a estimular e fundamentar

poéticas artísticas na atualidade. Em Suquet (2011) também é possível observar um discurso

de continuidade. A autora destaca que, em todo o século XX, a área de dança manteve intenso

interesse pelo corpo, privilegiando modalidades sensoriais no estudo do movimento e nas

poéticas artísticas, e comenta: “Assim os universos poéticos tão diferentes que a dança do

século encaminhou poderiam ser descritos como outras tantas ficções perceptivas”.

(SUQUET, 2011, p. 538). Garaudy (1980) também aponta para uma linha contínua com

relação a questões de corpo na dança ocidental do século XX e ressalta que esse interesse,

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inclusive, significou uma retomada após a negação da corporalidade por vinte séculos na

cultura do cristianismo.

Mesmo tratando de aspectos comuns, os contextos de dança no ocidente a partir do final do

século XIX e no século XX guardam diferenças importantes para a compreensão dessa arte

como área de conhecimento. Com relação ao advento da dança moderna, Silva observa que,

na Europa e nos Estados Unidos, a passagem do século XIX para o XX foi marcada por

acontecimentos cruciais. Isso porque os primeiros artistas modernos romperam de forma

determinante com a tradição do balé clássico, cujo desenvolvimento técnico, estético e de

aprendizagem ocupou com primazia os quatro séculos anteriores. O cenário nesse momento

de transição é descrito por Garaudy (1980, p. 42):

[...] a história corria torrencialmente no final do século XIX e no início do século XX. Certezas seculares vacilavam. Todos os dogmas eram postos em questão nas artes, nas ciências, nas sociedades e nas religiões. [...] No início do século XX, e mais ainda depois da grande ruptura causada pela Primeira Guerra Mundial, os bailarinos, para exprimir sua época e a si próprios, tiveram que criar novos meios de expressão: a grande mutação do século não podia se expressar numa língua morta [o balé clássico].

O balé clássico não se mostrava mais satisfatório para o artista que tirava as sapatilhas e

colocava os pés no chão. Na dança moderna, o chão surge como espaço privilegiado e a

horizontalidade do corpo se torna um referencial importante. A movimentação passou a

enfatizar o tronco, considerado como origem e impulso para o movimento, como mostra

Isadora Duncan39 ainda no início do século XX. A dança moderna, ao contrário do balé

clássico, criado e desenvolvido de acordo e para sustentar uma estrutura social posta, fez

surgir uma nova visão de mundo caracterizada por criticidade. A escolha temática foi um

aspecto importante nas manifestações modernas que acolheram questões conflituosas relativas

à condição humana em um período marcado por duas grandes guerras mundiais, como visto

em Martha Graham40. A dramaticidade caracterizou a produção coreográfica da época,

39 Isadora Duncan (1877-1927). De origem norte-americana, Duncan é considerada uma das pioneiras da dança moderna ocidental, Conforme Garaudy (1980), Isadora Duncan rompeu com os padrões corporais, técnicos e estéticos do balé clássico e inaugurou o princípio básico – a relação entre a dança e a vida – que influenciou as manifestações modernas de dança. Inspirada em temas, como a natureza e a arte grega, sua dança caracterizou-se por movimentos como andar, correr e saltar, feitos de forma espontânea (BOURCIER, 2001). 40 Martha Graham (1894-1991). A dançarina e coreógrafa estadunidense é reconhecida como uma das representantes da dança moderna ocidental (LEGG, 2011). Graham interessou-se por dançar as questões humanas e sua expressão se caracteriza por ênfase dramática. A dançarina e coreógrafa desenvolveu uma técnica de dança fundamentada no ato de respirar, que se caracteriza pela exploração do tronco e ênfase em movimentos de contração e relaxamento (GARAUDY, 1980).

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também inspirada em contextos distantes, como na espiritualidade oriental ou na mitologia

grega. Essa foi uma fase que privilegiou a individualidade do artista, trazendo à tona suas

questões e visões de mundo, o que, segundo Banes (1987), resultou em liberdade de

movimento e impulso à criação coreográfica de solos de dança. Além de questionador, o

artista moderno demonstrou interesse em assumir-se como autor. Entretanto, as relações

hierárquicas mantiveram a figura do coreógrafo acima da figura do dançarino. A negação do

anteriormente estabelecido fez surgir, além de novas perspectivas coreográficas, abordagens

específicas para o estudo do movimento na dança, com o objetivo de substituir o balé clássico

no processo de formação em dança. O novo cenário de dança moderna significou e efetivou

uma abertura para possibilidades artísticas e pedagógicas, com as quais identificamos a ideia

de “metanarrativa”, discutida por Lyotard (2011). Desse modo, mesmo negando o balé

clássico, preservou-se a ideia e a valorização de formações específicas em dança, a exemplo

das proposições de Martha Graham e José Limón41, abordadas por Legg (2011).

No Brasil, há registro de iniciativas na dança, reconhecidas como modernas, a partir da

década de 1930. Nesse contexto, Amadei (2006) destaca o trabalho desenvolvido por artistas

oriundos da Europa, como Chinita Ullmann42, Maria Duschenes43, Yanka Rudzka44, Renée

Gumiel45 e Rolf Gelewski, sendo este último abordado posteriormente nesta Tese. Em Belo

Horizonte, Alvarenga (2002) constata o início de um movimento modernista, levado à frente

por Klauss Vianna no final da década de 1950. Nessas manifestações, o autor observa traços

de ruptura, questionamento e novas proposições relacionadas à produção coreográfica e à

aprendizagem de dança, além da busca pelo ideal nacionalista, que marcou a Semana de Arte

Moderna no país, em 1922.

41 José Limón (1908-1972). O artista de origem mexicana descendeu da dançarina Doris Humphrey que, ao lado de Graham, representa a primeira geração da dança moderna estadunidense (LEGG, 2011). A partir das influências de Humphrey, José Limón sistematizou uma técnica de dança. 42 Chinita Ullmann (1904-1977). A dançarina e coreógrafa brasileira estudou com Mary Wigman na Alemanha. Retornou ao Brasil e fundou sua escola fundamentada na dança expressionista alemã (AMADEI, 2006). 43 Maria Duschenes (1922-2014). Nascida na Hungria, Duschenes estudou o Método Dalcroze e também a abordagem de Rudolf Laban. Veio para o Brasil na década de 1940 e passou a desenvolver um trabalho fundamentado no Sistema Laban, servindo de referência para várias gerações de artistas e professores de dança (AMADEI, 2006). 44 Yanka Rudzka (1916-2008). De origem polonesa, Rudzka estudou o Método Dalcroze. Em 1956, foi convidada a dirigir o primeiro curso superior de dança do país, na Universidade Federal da Bahia, permanecendo nessa gestão até o ano de 1959 (AMADEI, 2006; ARAÚJO, 2012). 45 Renée Gumiel (1913-2006). A dançarina e coreógrafa francesa radicada no Brasil fundou uma escola e influenciou o desenvolvimento da dança moderna, especialmente em São Paulo (AMADEI, 2006; SANTOS, 2005).

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Com relação ao pós-moderno na dança, Silva (2005, p. 60) levanta questões que ajudam a

delineá-lo:

O tão debatido prefixo ‘pós’ é contraditório por si mesmo, pois não nega o movimento antecessor e também não pretende sinalizar uma continuação literal do mesmo. O termo assinala ao mesmo tempo dependência e independência em relação ao movimento da arte moderna que possibilitou sua existência, lhe dando elementos para florescer e ramificar-se de maneira tão rica.

O pós-moderno na dança tem como marco a década de 1960 nos Estados Unidos e

estabeleceu a pluralidade quanto ao estilo, aos modos de fazer, aos referenciais e às temáticas

(BANES, 1987; SILVA, 2005). Nesse panorama, tornou-se importante compreender as

distintas propostas de dança a partir de suas especificidades e de sua capacidade dialógica.

Assim, a determinação de regras tornou-se questionável, e a abrangência de sua validade,

relativa, como analisa Banes (1987, p. 19):

[...] os pós-modernistas rejeitam uma posição hierárquica de autoridade em sua maior parte. Sua ruptura com a tradição implica na noção explícita de que não precisa haver mais academias; que as regras não são sagradas, podendo ser úteis ou desnecessárias.

A flexibilidade das regras e a ruptura com estruturas hierárquicas geraram novas relações

entre os artistas, considerando suas funções dentro e fora da cena. A criação e a composição

estenderam-se para os dançarinos, em dinâmicas coletivas e colaborativas nos processos

coreográficos. Também os papéis de solista deixaram de ser específicos de determinados

artistas. O pós-modernismo enfatizou a experimentação como modo de fazer e proporcionou,

além dos diálogos entre diferentes tipos de danças, atravessamentos da dança com outras artes

e áreas de conhecimento. Nesse panorama, Silva (2005) chama a atenção para as dúvidas do

público com relação ao tipo de manifestação artística, implicando na pergunta recorrente:

“Isso é dança?”. A diversidade dos modos de fazer envolveu o espectador, que se deparou

com distintas oportunidades de apreciação artística, sendo convidado, por vezes, a compor a

cena.

Ressalta-se na dança pós-moderna, o intenso interesse pela corporalidade em um contexto

fundado na diversidade. Deixou de ser imprescindível a formação em técnicas de dança

específicas, sendo integrados à cena de dança também aqueles considerados não-dançarinos,

ou seja, que não apresentam estudos na área de dança, ou possuem outros tipos de experiência

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corporal (BANES, 1987). Junto a isso, surge o interesse pela movimentação do cotidiano e

por um estado corporal denominado “natural”, que se refere a um corpo relaxado e, ao mesmo

tempo, disponível para a dança. Desse modo, as cenas de dança podem deslocar-se de uma

movimentação habitual a movimentos mais elaborados. A diversidade referiu-se não somente

às práticas de dança, mas, também, às características corporais, como ressalta Silva (2005, p.

140):

A dança pós-moderna de hoje não se interessa em apresentar corpos perfeitos, unificados pela forma, nem delineados por imperativos estéticos, sexuais. A dança parece querer, de fato, expressar a multiplicidade corporal feita de músculos, ossos, imperfeições e qualidades do ser humano, falando de si próprio, sem disfarces e para uma platéia (sic) que se identifique com o que vê.

No contexto de dança que se apresenta na segunda metade do século XX, o campo da

educação somática, cujos primeiros movimentos datam da primeira metade deste século,

surge de forma importante (DOMENICI, 2010; FORTIN, 1999). Definida formalmente a

partir da fundamentação do termo grego soma, por Thomas Hanna (1986), a educação

somática envolve o corpo na perspectiva da auto-observação. Segundo Fortin (2011, p. 33),

na experiência somática, a percepção de si gera uma percepção de mundo:

As tomadas de consciência desenvolvidas por uma variedade de colocações em situação, às vezes aparentemente sem importância, não resultam somente em uma reorganização dos músculos profundos e superficiais do corpo, mas num novo modo de estar presente no mundo e numa nova perspectiva acerca desse mundo.

A partir da década de 1960, esse tipo de investigação corporal se tornou mais proeminente na

dança, fazendo surgir novas e importantes perspectivas para o estudo do movimento, para o

trabalho de criação artística e também para a aprendizagem (DOMENICI, 2010; FORTIN,

1999; 2011; COSTAS, 2010b).

Por meio da abordagem dos conceitos de modernismo e pós-modernismo, buscando suas

especificidades na área de Dança, buscamos compreender os diferentes contextos artístico-

pedagógicos experimentados por Martins. Também procuramos identificar na trajetória da

artista mineira os movimentos de ruptura e de continuidade que ajudaram a compor sua dança.

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49

1.2.4 Rede de conversação

Constituiu-se na articulação dos conceitos de “rede”, de “criação como rede em processo”, da

teoria da autopoiese e da conceituação de “moderno” e “pós-moderno”, uma rede

epistemológica para a abordagem do objeto, caracterizado por mobilidade e diversas

interações artísticas. A conversação, compreendida como convivência (FERREIRA, 2009),

reuniu pontos de referência relacionados entre si e com o trabalho de Martins, de modo a

favorecer o acompanhamento crítico-interpretativo pretendido. Diante das características do

CBDM, do Trans-Forma, essa estrutura metodológica mostrou-se coerente, não somente por

acolher diferentes conhecimentos, mas também por favorecer seu entrelaçamento. A rede de

conversação reuniu conceitos fundamentais à abordagem, funcionando como um “receptor

epistêmico”, conforme Musso (2013, p. 17). Ressalta-se que os diálogos teóricos surgiram à

medida que o trabalho foi sendo desenvolvido e as questões e necessidades foram sendo

levantadas. Essa dinâmica coincide com o apontamento de Cauquelin (1987) sobre o

movimento em rede que, por seu contínuo devir, não se trata de algo epistemologicamente

definido, mas de algo epistemologicamente em construção.

Ao ressaltar a maleabilidade desse conceito como motivo para adotá-lo, correu-se o risco de

esbarrar na problemática apontada por Musso (2013, p. 17), que diz: “A polissemia da noção

de rede explica seu sucesso, porém lança dúvida sobre a coerência do conceito”. Ao

concordar com o autor, consideramos necessário refletir sobre os parâmetros para a

construção de um entrelaçamento epistêmico, já que foi possível perceber que “nem tudo o

que cai na rede é peixe”. Essa construção esteve orientada pelo objeto da pesquisa e seu

contexto, levantamento de questões, exercício de coerência e escolhas. Isso não significou

desconsiderar os acasos e incertezas de um processo de pesquisa, mas identificar,

objetivamente, algumas possibilidades e fazer encaminhamentos. Nesse sentido, as

conjecturas feitas estiveram alinhadas com a perspectiva que surge em meados do século XX

e caracteriza-se por uma multiplicidade de atravessamentos, como discute Greiner (2012).

Assim, os diálogos estabelecidos possibilitaram adensar a reflexão e analisar a abordagem

epistemológica do CBDM, criado por Marilene Martins.

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2 MARILENE MARTINS: DIÁLOGOS ARTÍSTICOS E PEDAGÓGIC OS

Ao ressaltar a noção de convivência, conforme Maturana e Varela, e de rede de interações, a

partir de Salles, surgiu a necessidade de contextualizar a dança de Marilene Martins.

Compreendemos, assim como Hissa (2013), que o sujeito da criação – Marilene Martins – e a

criação – o CBDM – estejam inseridos no mundo, e não descolados dele. A contextualização

não buscou identificar fatos históricos, mas modos de fazer, conceitos e ideias que integraram

o meio de convívio artístico e artístico-pedagógico de Marilene. Delimitamos o período de

1952 a 1968, com o intuito de compreender a proposta desenvolvida no Trans-Forma.

Distinguimos dois momentos nessa fase anterior à fundação do Trans-Forma. Na primeira, de

1952 a 1963, Marilene Martins realizou estudos específicos, iniciou atividades docentes e

presenciou movimentos pioneiros da dança no país. Inicialmente, identificou-se o estudo do

balé clássico, sob duas abordagens, com Carlos Leite e com Klauss Vianna. Com este último,

embora o balé clássico tenha permanecido como referencial técnico, ressaltou-se um caráter

modernista de dança. De 1961 a 1963, a artista passou uma temporada em Salvador, quando

ingressou no Curso Superior de Dança da UFBA e esteve junto a Rolf Gelewski. Nesses

primeiros vínculos, Marilene sinalizou uma predisposição para lidar com distintas

perspectivas artísticas, compreendendo suas diferentes importâncias. A segunda fase abrange

o período de 1964 a 1966, em que Marilene residiu no Rio de Janeiro, e os anos de 1967 e

1968, quando a artista retorna à capital mineira. Nesses cinco últimos anos, destacamos

atividades distintas na área de Dança e em outras áreas artísticas, em que se ressaltaram a

relação com manifestações de cunho popular e a politização do discurso artístico.

A contextualização obedeceu à ordem cronológica dos acontecimentos que ressaltam a

disponibilidade e a abertura de Martins para o novo e o diferente, que não a constrangeram.

Ao contrário, como ela explicita: “A minha atração era maior que o meu espanto”46. O

deslocamento de Martins foi também geográfico e, desde sua saída, aos dezesseis anos, da

cidade de Teófilo Otoni, no interior mineiro, teve a dança como principal motivação, como

diz: “Eu queria soltar minha energia naquela dança. Eu a sentia dentro de mim e queria

extravasá-la em movimentos e emoções. Este seria meu grande desafio. Fui com a Marlene47

46 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 47 Marlene Martins é a irmã gêmea de Marilene Martins, que também estudou dança. Juntas, as irmãs Marilene e Marlene iniciaram os estudos com o Professor Carlos Leite e integraram o Ballet Minas Gerais, sob sua direção.

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para Belo Horizonte”48. Este não parece ter sido um grande desafio para Nena, cujo percurso

seguiria por temporadas de estudo e trabalho nas cidades de Salvador e do Rio de Janeiro e,

ainda, duas viagens em tournée de espetáculos, sendo uma para países da Europa, e outra, por

diferentes estados brasileiros.

No período delimitado, identificamos vínculos artísticos e pedagógicos, ideias e modos de

fazer, os quais se mostraram fundamentais para a estruturação do trabalho de Marilene

Martins no Trans-Forma. Compreendemos que tais interações tenham se estabelecido como

os primeiros referenciais a partir dos quais Marilene constituiu a tecitura epistemológica do

CBDM. Além desses aspectos, ressaltamos interesses que a conduziram e um modo de lidar

com seu processo de conhecimento, caracterizado por diálogos variados. Lydia Del Picchia,

sobrinha de Marilene, que atuou como professora e dançarina no Trans-Forma, destaca a

intensa vontade de aprender da artista: “A Nena era o símbolo disso. É lá que está o estudo, é

no Rio de Janeiro, então eu vou morar no Rio de Janeiro, vou estudar. É nos Estados Unidos,

então eu vou lá prá Nova Iorque, vou estudar é lá. É na Europa agora, então eu vou prá

Europa” (PICCHIA, 2010). Na trajetória de Marilene, a experimentação de diferentes

propostas de dança pautou o processo de conhecimento da artista, cujo viver se encontrou

entrelaçado ao conhecer, como propõem Maturana e Varela (2001, 2003).

2.1 Carlos Leite e o Ballet Minas Gerais

Vivi no interior até os quinze anos. Em Teófilo Otoni, naquela época, não havia nenhum professor de dança. O que eu queria mesmo era estudar em Belo Horizonte. Ouvi falar do Carlos Leite, que havia dançado no Ballet

Russo. Essa foi a palavra mágica. O Ballet Russo de Nijinsky, Anna Pavlova, Diaguilev, me tiravam a respiração. Aquelas figuras exóticas com movimentos inusitados tinham uma estranheza e uma fascinação tão

fortes sobre mim [...]. Para uma estudante vinda do interior, a expectativa de realização estava na dança clássica propriamente dita. E, como modelo de dança, o ballet russo de Diaguilev, do qual já tinha conhecimento através

de livros e publicações.49

Marilene Martins chegou a Belo Horizonte para estudar dança em um período em que essa

arte começava a conquistar um espaço diferenciado na cidade. Na capital mineira, Carlos

Leite, convidado pelo Diretório Central dos Estudantes (DCE), acabava de fundar a primeira

escola de dança que apontava para a profissionalização do dançarino (REIS, 2010). Tendo

48 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 49 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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sido aluna do Professor, como ele também era comumente chamado, Marilene fez parte da

primeira geração de dançarinos de Belo Horizonte, juntamente com Dulce Beltrão50, Décio

Otero51 e, ainda, Klauss Vianna e Angel Vianna (abordados mais adiante nesta Tese), entre

outros que se profissionalizaram na área e integram um grupo reconhecido como pioneiro da

dança no estado e no país (ALVARENGA, 2010; AMADEI, 2006; REIS, 2010). Marilene

comenta sobre esse espírito precursor dos dançarinos que marcaram a época: “Formávamos

um grupo forte, unido e decidido a ampliar o espaço da dança aqui nas Minas Gerais”52.

Marilene Martins estudou dança com Carlos Leite no período de 1952 a 1955, sendo que nos

dois últimos anos integrou o Ballet Minas Gerais53, dirigido pelo Professor. Com esse grupo,

excursionou pelo interior mineiro fazendo espetáculos, participou de óperas e realizou

apresentações em teatros e escolas.

Ressalta-se que o trabalho desenvolvido por Carlos Leite contribuiu para o processo de

modernização de Belo Horizonte, impulsionado pelas gestões de Juscelino Kubitscheck, como

prefeito e, posteriormente, como governador de Minas Gerais (ALVARENGA, 2002; REIS;

2010). Naquele momento, houve investimento em construções que mudaram a paisagem da

cidade, como o Complexo da Pampulha54. No campo das artes visuais, viu-se um incentivo

que culminou na criação de uma Escola de Belas Artes, cuja direção ficou a cargo do pintor e

professor Alberto da Veiga Guignard55 (RIBEIRO, 1997; VIVAS, 2012). O acontecimento da

Exposição Moderna, de 1944, também marcou o movimento, que seguiu o fluxo de

manifestações anteriores, no caso, a Semana de Arte Moderna de 1922, ocorrida em São

Paulo, e o Salão Revolucionário, de 1931, realizado no Rio de Janeiro.

50 Dulce Beltrão (Minas Gerais, Brasil, 1938). Foi aluna da primeira turma de balé clássico formada em Belo Horizonte por Carlos Leite (ALVARENGA, 2010). Dulce atuou como dançarina no Ballet Minas Gerais, além de acompanhar o Professor como assistente de coreografia. Junto com a também dançarina Silvia Böhmerwald fundou, em 1967, o Studio Anna Pavlova e, em 1973, o grupo de dança Baleteatro Minas. 51 Décio Otero (Minas Gerais, Brasil, 1933). Iniciou seus estudos de dança com o Professor Carlos Leite, em Belo Horizonte. Foi dançarino do Corpo de Baile do Tetaro Municipal do Rio de Janeiro e atuou em companhias europeias. Fundou, em 1971, junto com sua esposa Marika Gidali, o Ballet Stagium (SP/SP) (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017h). 52 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 53 O Ballet Minas Gerais deu origem à atual Cia. de Dança Palácio das Artes, representante oficial do estado de Minas Gerais (REIS, 2010). 54 A construção do Complexo da Pampulha, que marcou o processo de modernização de Belo Horizonte, contou com obras do arquiteto Oscar Niemeyer, projeto paisagístico de Burle Marx e pinturas de Cândido Portinari (RIBEIRO, 1997; VIVAS, 2012). 55 Alberto da Veiga Guignard (Rio de Janeiro, Brasil, 1986-1962). Pintor, desenhista e professor (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017j).

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Anteriormente à chegada de Carlos Leite, em 1948, a dança em Belo Horizonte acontecia nos

salões, em caráter de divertimento, ou era utilizada em atividades escolares, em ocasiões de

datas comemorativas (ALVARENGA, 2002; REIS, 2010). Nesse período, a dança na cidade

era desenvolvida por Natália Lessa56, professora e dançarina autodidata. Lessa realizava

atividades de ginástica e dança em ambientes tradicionais da capital, como a Escola Estadual

Barão do Rio Branco e o Minas Tênis Clube. Suas aulas abrangiam estilos diversos e eram

oferecidas a crianças e jovens do gênero feminino. Alvarenga (2002) e Reis (2005) afirmam

que, apesar de severamente criticada por Carlos Leite pela falta de formação técnica em

dança, Nathalia Lessa cumpriu um papel valorizado pela classe mais abastada da cidade, por

contribuir para uma educação mais abrangente para as meninas.

Diferente disso, Carlos Leite apresentava uma formação que o diferenciava substancialmente,

em uma época em que o balé clássico representou não somente a modernização do cenário

cultural, mas, também, a possibilidade de institucionalizar a dança no Brasil, embora sobre

bases estrangeiras, como discute Pereira (2003). Em 1935, Carlos Leite ingressou na Escola

de Ballet do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob direção da bailarina russa Maria

Olenewa57 e, rapidamente, passou a integrar o Corpo de Baile do Teatro Municipal (REIS,

2010). Pereira (2003) salienta que a institucionalização da primeira escola de balé, em 1927, e

do Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, a partir dos quais a tradição de

dança no Brasil se desenvolveu, apesar do discurso nacionalista teve tom colonizador. Sob o

ponto de vista artístico, essa característica resultou em um repertório misto, em que, além de

peças tradicionais, foram realizadas montagens a partir de símbolos considerados nacionais

por artistas estrangeiros, no caso o índio, o negro e o sertanejo. Nesse panorama, Pereira

(2003) coloca em questão as perspectivas de dança e de corporalidade, calcadas em

parâmetros originários da Europa.

Destacaram-se, nessa época, as iniciativas da dançarina Eros Volúsia58, que se debruçou sobre

a ideia de uma dança brasileira fazendo um movimento distinto daquele realizado por

dançarinos e coreógrafos de outros países (PEREIRA, 2003). Eros, que integrou o Corpo de

Baile do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, realizou estudos e um trabalho coreográfico e

didático fundamentado em danças populares como o frevo, o maracatu, o lundu, entre outras.

56 Natália Lessa (Minas Gerais, Brasil, 1906-1986) (REIS, 2010). 57 Maria Olenewa (Rússia, 1896-1965) (FARO; SAMPAIO, 1989). 58 Eros Volúsia (Rio de Janeiro, Brasil, 1914-2004).

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No caso, tais manifestações sofriam um processo de estilização para serem levadas à cena.

Eros Volúsia obteve o respeito da crítica e o respaldo do governo por sua atuação, sendo

nomeada diretora do Curso de Ballet do Serviço Nacional de Teatro (SNT)59, em 1939, lugar

em que permaneceu por 27 anos. O trabalho da dançarina chamou a atenção em virtude de sua

contribuição com a formação de vários artistas, como Mercedes Baptista60, cujo trabalho foi

identificado entre os referenciais artísticos utilizados no Curso Básico de Dança Moderna do

Trans-Forma.

Carlos Leite não apresentou indícios de aproximação de manifestações populares. Seguindo a

linha clássica de balé, atuou em três grupos – o Corpo de Baile do Teatro Municipal do Rio de

Janeiro, o Original Ballet Russo61 e o Ballet da Juventude62. Ressalta-se que todos eles foram

criados a partir de influências dos Ballets Russes, companhia dirigida pelo empresário, Serge

Diaguilev63, conhecido por espetáculos inovadores marcados pelo diálogo com artistas

modernos. Foi essa estética de dança, um balé clássico com tendências modernistas, que

chegou e instalou-se no Brasil, influenciando profundamente a institucionalização da dança

no país, como observado por Amadei (2006) e Pereira (2003). Foi dentro dessa perspectiva de

dança que Carlos Leite estruturou um trabalho inovador em Belo Horizonte, o que

correspondeu, inicialmente, ao espírito de modernização da cidade. Reis (2010) observa na

capital mineira a articulação entre tradição e modernidade, por tratar-se de uma modernização

apoiada no tradicional balé clássico. Carlos Leite foi respeitado como bailarino, coreógrafo e

professor, apesar de eventuais preconceitos em relação à sua sexualidade, ou ao fato de

lecionar balé para um público majoritariamente feminino, em uma cidade de hábitos

conservadores. A aceitação do professor e coreógafo pela comunidade belo-horizontina não se

justificou apenas pela sua competência artística, mas por dominar uma técnica condizente

com os anseios de modernização, legitimada pelo elemento estrangeiro, o que também

indicava o caráter moderno da iniciativa. Ao fundar sua escola, o Professor inseriu Belo

Horizonte na rota do balé clássico, abrindo espaço para o que Navas (2012, p. 3), denomina 59 O Serviço Nacional do Teatro (SNT), subordinado ao Ministério da Educação e de Saúde Pública, foi criado em 21 de dezembro de 1937 por meio de decreto (CARLONI, 2013). O SNT esteve relacionado ao fortalecimento da cultura nacional no âmbito das artes cênicas. 60 Mercedes Baptista (Rio de Janeiro, Brasil, 1921-2014). 61 O Original Ballet Russo foi uma companhia de balé fundada em 1931, a partir da dissolvição dos Ballets Russes, de Sergei Diaguilev (FARO, 1989). 62 O Ballet da Juventude esteve ativo no cenário brasileiro durante dez anos, de 1946 a 1956 (CERBINO, 2008). O trabalho desta companhia se caracterizou pelo tom moderno dado às produções clássicas, oriundo dos Ballets Russes, de Sergei Diaguilev, e do Original Ballet Russo. 63 Serge Diaguilev (Rússia, 1872-1929) foi um diretor artístico que inovou o contexto do balé clássico, por meio de produções que envolveram o diálogo com a arte moderna (FARO; SAMPAIO, 1989).

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“[...] primeira multinacional da cultura/arte”, correspondente ao movimento de

internacionalização desse estilo de dança após as duas grandes guerras mundiais.

Do ponto de vista técnico e estético, Carlos Leite seguiu as diretrizes da escola russa de balé

em que se formou, o que correspondeu às expectativas de Marilene Martins naqueles

primeiros anos de estudo. No entanto, diferente do repertório apresentado pelo Corpo de Baile

do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, o Professor não se dedicou às temáticas nacionais e,

conforme Martins, “[...] foram muito poucas as tentativas de se construir balés com motivos

brasileiros. O forte do grupo era mesmo a dança clássica” (MARTINS, 2010). Os espetáculos

eram compostos por remontagens assinadas por Carlos Leite, feitas sobre peças do repertório

clássico de balé, como as obras coreográficas Les sylphides e O espectro da rosa,

coreografadas originalmente para os Ballets Russes, por Michel Fokine64. As programações

também contavam com coreografias de autoria do Professor, que seguiam a linha clássica de

balé, e ainda com composições de alguns de seus alunos, como Décio Otero e Klauss Vianna.

Esse último, responsável pela criação de peças distintas daquelas do repertório rotineiro do

Ballet Minas Gerais, já apontava para as mudanças no cenário de dança que viriam com seu

trabalho (ALVARENGA, 2010).

Além das questões artísticas, Carlos Leite parece ter assimilado traços da conduta pedagógica

de sua professora Maria Olenewa65, como é possível perceber no relato de Martins: “Ele vinha

também em cima do pessoal que estava errando em aula, que não estava fazendo as coisas

como ele gostaria e jogava a varinha na gente, ou então batia com a varinha”66. Sobre esse

aspecto, Marilene se posicionou contrária ao Professor. Mesmo assim, a artista ressalta a

importância dos estudos com Carlos Leite: “Ele me deu muita disciplina e perseverança, e

uma boa base técnica”67. Nena também enfatiza o espírito pioneiro de Carlos Leite, que se

estendeu para os alunos: “Prá mim foi muito boa a experiência. Ele passou prá gente essa

força de construção de um trabalho, de dar início, que foi muito importante para todos nós,

por que cada um teve o seu trabalho diferente” (MARTINS, 2007).

64 Michel Fokine (Rússia, 1880-1942). Dançarino e coreógrafo, cujas ideias inovadoras relativas à criação coreográfica chamaram a atenção de Sergei Diaguilev, que o levou para os Ballets Russes. Após sua saída desta Companhia, deu continudade ao seu trabalho coreográfico nos Estados Unidos (FARO; SAMPAIO, 1989). 65 Em virtude de atitudes excessivamente ríspidas para corrigir o alunado, a maître russa Maria Olenewa foi afastada de seu cargo no Teatro Municipal do Rio de Janeiro (PEREIRA, 2003). 66 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 67 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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Nesse primeiro vínculo artístico-pedagógico identificado no percurso de Marilene Martins,

ressaltamos o interesse da artista pelo trabalho corporal proporcionado pelo estudo do balé

clássico. No entanto, a artista-professora também explicita sua inquietude e um desejo por

algo ainda pouco palpável para ela naquele momento:

Como a gente só conhecia a dança clássica, nós não tínhamos nada ainda de conhecimento do moderno, então era o clássico mesmo. Eu que fiquei lá quatro anos, no final já não estava satisfeita com aquele estilo de dança. Então, eu já estava querendo buscar outra coisa. Mas, como não tinha nada aqui em Belo Horizonte de diferente, a gente ficava e continuava porque era muito bom o trabalho de corpo, o trabalho de relação com ele. Mas, eu acho que eu sempre quis uma dança diferente (MARTINS, 2007).

A partir da experiência com Carlos Leite, Marilene Martins estudou diferentes abordagens de

dança. Ressaltamos que, mesmo não considerando o balé clássico como meta artística, a

dançarina mineira se posicionou favoravelmente em relação a esse referencial,

compreendendo suas possíveis contribuições para um estudo de dança.

2.2 Klauss e Angel Vianna, e o Ballet Klauss Vianna

Ele [Klauss Vianna] buscava sempre umas coisas diferentes que nos atingiam muito. E a gente estava muito aberta para receber.

Então, também as cabeças começam a mudar. Porque você fala: “Puxa, que experiência legal!”.

E começa a abrir os olhos para enxergar mais longe. (MARTINS, 2007).

Após o período de quatro anos junto a Carlos Leite, o próximo vínculo artístico de Marilene

Martins se deu junto a Klauss e sua esposa, Angel Vianna. As novas ideias de Klauss

estimularam Marilene, que se viu diante de uma perspectiva de dança mais afinada com os

seus desejos, como ela diz: “Eles tinham uma abordagem artística que era o que eu buscava

naquele momento, voltada para nossa cultura, para o nosso povo” (MARTINS, 2007). Nena

passou a estudar e atuar como dançarina no Ballet Klauss Vianna. Além disso, na escola

fundada por Klauss e Angel, Marilene começou a dar aulas de balé clássico, sob orientação de

Klauss, dando início a uma trajetória como professora de dança. Marilene relata aspectos

importantes construídos nessa época: “Klauss me influenciou na pesquisa do movimento e me

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orientou com segurança na parte pedagógica”68. Em Klauss Vianna observamos o primeiro

vínculo de caráter pedagógico de Marilene Martins.

Marilene esteve junto ao casal Vianna de 1956 a 1960, presenciando uma fase importante do

professor e coreógrafo, cujas atividades se constituem em referenciais para a dança brasileira

na atualidade (ALVARENGA, 2009; MUNDIM, 2013). Conforme Alvarenga (2009), na

década de 1950, Klauss delineou as ideias que estruturariam filosoficamente um trabalho

corporal relevante tanto para a dança como para o teatro brasileiro. Além disso, nesses anos

em Belo Horizonte, Alvarenga destaca a atuação coreográfica de Klauss e um pensamento

relativo à dança moderna no Brasil que pode ser equiparado a de artistas de referência

internacional. Sob o ponto de vista de dançarina, Marilene comenta:

Artista e pensador de alto nível, ele fundou em Belo Horizonte o Ballet Klauss Vianna e partiu para a pesquisa de uma dança ligada à índole do povo brasileiro, criando coreografias de grande impacto e beleza, inspiradas em poemas e romances brasileiros. Aconteceu, assim, o início das primeiras experiências de dança moderna na cidade.69

Klauss e Angel Vianna, assim como Marilene Martins, estudaram com Carlos Leite e muito

cedo Klauss passou a assessorar o Professor. Salienta-se o envolvimento do casal Vianna com

artistas e intelectuais de sua época e com discussões relativas ao espírito modernista que

passava a fazer parte de diversas manifestações no campo das artes. Acompanhando as ideias

de renovação e atento à questão da brasilidade enfatizada pelo movimento modernista no

Brasil, Klauss Vianna mostrou-se crítico com relação ao desenvolvimento da dança no país.

Em seu ensaio Pela criação de um balé brasileiro, publicado em 1952, Klauss aponta a

necessidade de reformulações para a construção de uma dança com bases brasileiras

(VIANNA, 1952). Para Alvarenga (2009), o referido texto apresenta as ideias básicas que

Klauss desenvolveu, posteriormente, em sua trajetória artística e pedagógica. Ao analisar o

impulso modernista que caracterizou o trabalho do professor e coreógrafo, Alvarenga (2010),

destaca um movimento questionador em relação às duas correntes existentes na época, cujo

objetivo era a constituição de um bailado nacional. No caso, a tradição russa do balé clássico

e iniciativas como a da dançarina Eros Volúsia que, segundo Pereira (2003), consistiam no

uso de danças populares, devidamente estilizadas para adequar-se aos parâmetros teatrais: 68 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 69 MANUSCRITO: Klauss Vianna. Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2010. Acervo de Marilene Martins.

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Klauss, desse modo, procurava impor-se no meio cultural, rompendo com duas tradições: o balé clássico nos seus moldes convencionais e a utilização do folclore. Ao mesmo tempo recorre à técnica clássica e à cultura nacional como fontes de inspiração para inaugurar uma nova tradição, ressignificando-as (ALVARENGA, 2010, p. 43).

O caráter moderno na dança de Klauss Vianna não se manifestou exatamente por uma recusa

do balé clássico que havia se estabelecido com Carlos Leite, mas por questionamentos e

propostas que apontavam para mudanças fundamentais nos modos de fazer artísticos e

pedagógicos, como relata Marilene: “Embora a técnica da escola fosse a dança clássica,

Klauss já pesquisava e encontrava movimentos não codificados nesse estilo, empregando-os

em coreografias cada vez mais inovadoras”70. A artista-professora descreve o processo de

Vianna em sala de aula:

Ele buscava um novo tipo de trabalho. Desde a barra... [...] E desde essa época ele começou a pesquisar... Tinham movimentos diferentes. Era uma barra de clássico, mas já contendo alguma coisa de moderno. E ele nunca tinha feito aula de moderno, nem nada. [...] Então, ele já começava através do trabalho de corpo que ele estava construindo, de uma coisa bem para dentro o trabalho dele, né? Não é copiar nada. O trabalho do Klauss nunca foi copiar nada de ninguém. Ele estudava profundamente e conseguia construir aqueles movimentos que ele estudava, que vinha desde a musculatura interna, que vinha desde aquela introspecção mesmo do bailarino, sabe? Para daí, aflorar. Então era um trabalho muito bonito, um trabalho muito humano, e isso foi o que eu mais gostei no trabalho dele (MARTINS, 2007).

Vianna lançou um novo olhar sobre o balé clássico, a partir de um estudo que abordou,

segundo Marilene, “[...] o corpo em profundidade: ossos, músculos, tendões, funções

específicas”71. A perspectiva corporal do professor e coreógrafo constitui-se em uma das

singularidades de seu trabalho, reconhecido no contexto da educação somática por alguns

autores (DOMENICI, 2010; FORTIN, 2011; COSTAS, 2010). Em Vianna, a abordagem de

aspectos anatômicos e fisiológicos esteve relacionada a um tipo de atenção às

individualidades, como mostra o trecho “[...] toda esta variedade de músculos que reagem

sempre de modo diverso, de pessoa para pessoa [...]” (BALLET KLAUSS VIANNA, 1962).

Marilene observou na escola de Klauss e Angel um olhar atento às diferenças corporais e

70 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 71 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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comenta: “Angel compreendeu isto e sempre trabalhou este aspecto com muito carinho,

incluindo a todos em sua escola, acolhendo o ser humano com respeito e atenção”72.

Klauss Vianna questionou também os aspectos pedagógicos relativos à aprendizagem de

dança (ALVARENGA, 2009, 2010). Diferentemente de Carlos Leite, que, ao ser indagado

pelos alunos, devolvia respostas pouco elucidativas, Klauss buscou a compreensão do

movimento junto com os dançarinos, como descreve Nena:

O Klauss, nas aulas dele, ele sempre corrigia muito os movimentos e dizia: “Esse movimento nasce de onde? De onde você está tirando esse movimento?” Para a gente perceber mais o que era o trabalho corporal. [...] Ele sempre foi, um professor que buscava, buscava, buscava, e queria saber tudo sobre o corpo, queria compreender tudo [...] (MARTINS, 2007).

Juntamente com a prática corporal, Klauss Vianna propôs uma atuação coreográfica a partir

de estudo de movimentos com inspiração em temas brasileiros e também buscados em obras

artísticas, como na literatura. Assim, foi criada a coreografia Arabela, a Donzela e o Mito, a

partir do romance O Amanuense Belmiro, de Cyro dos Anjos73, e Caso do Vestido, baseado

em poema homônimo de Carlos Drummond de Andrade74, ambas dançadas por Marilene

Martins. A proposta coreográfica de Vianna esteve pautada em elementos de composição,

como movimento simbólico, negação de virtuosismo, diálogos cênicos com a música,

deslocamentos espaciais, e trabalho de caracterização emocional e de atitudes das

personagens (BALLET KLAUSS VIANNA, 1962). Ao relatar sua experiência como

dançarina no grupo dirigido pelo casal Vianna, Marilene enfatiza o trabalho corporal e o

estudo da movimentação: “Fazíamos aula de clássico e experimentávamos a movimentação já

do moderno para as coreografias. Aí, a Angel nos trabalhava, o Klauss, todos dois.

Trabalhavam o nosso corpo para nos preparar para aquelas coreografias, que eram muito

avançadas” (MARTINS, 2007). Marilene também destaca a simplicidade dos movimentos e

comenta sobre o processo de criação compartilhado pelo coreógrafo com os dançarinos:

Olha, o Klauss explicava para a gente como ele gostaria que fosse o espetáculo, qual seria o tipo de movimentação, que seria um tipo diferente, que a gente teria que fazer um trabalho diferente para dançar aquilo. E conversava sobre o poema, sobre o

72 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 73 Cyro dos Anjos (Minas Gerais, Brasil, 1906-1994). Jornalista e escritor. 74 Carlos Drumond de Andrade (Minas Gerais, Brasil, 1902-1987). Poeta.

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romance que nós dançaríamos também e o que ele pretendia fazer (MARTINS, 2007).

Em suas obras, Klauss contou com a parceria de diversos artistas para a criação de cenários,

figurinos e composições musicais, o que também chamou a atenção de Marilene75.

Quanto à sonoridade, o coreógrafo experimentou elementos diferentes para a época, como os

sons de buzina, utilizados na trilha sonora de O Amanuense Belmiro, e o poema recitado por

coral na coreografia Caso do Vestido. O caráter modernista do trabalho de Klauss Vianna

obteve reconhecimento da crítica, não somente em Minas Gerais, como mostra o artigo do

crítico João Marschner:

Como noticiamos anteriormente a apresentação do Ballet Klauss Vianna em São Paulo marcou um expressivo tento para a divulgação da arte de nosso Estado. Para informação do leitor, transcrevemos abaixo alguns conceitos do crítico do “Estado de São Paulo” que chamou seu artigo de “Renovação em Minas”. “[...] toda a inquietação do público impaciente foi dissipada ao se iniciar o primeiro número – “Caso do Vestido” – baseado no poema de Carlos Drummond de Andrade [...]. A movimentação original de tronco e braços recomendada por Klauss Vianna foi plenamente atingida, com soluções originais que fogem inteiramente ao ballet clássico e alcançam um alto nível estético [...]. Um público entusiasta aplaudiu longamente a companhia visitante, compreendendo que, se falhas houve, foram amplamente compensadas pelo esforço bem intensionado de um grupo de moços que deseja oferecer um trabalho autêntico, que abre novos caminhos para a dança brasileira” (VIDA ARTÍSTICA..., 1960).

Marilene registrou sua afinidade com o processo de criação e a estética de Klauss e comenta

sobre a importância da proposta do coreógrafo: “Com ele começamos a busca por novas

formas de expressão”76. Marilene registrou, ainda, que os atravessamentos artísticos

realizados se restringiram aos espetáculos, não sendo identificados nas aulas de dança. Cabe

ressaltar também que embora Klauss tenha apresentado uma atitude acessível ao aluno e ao

dançarino, e também proposto um processo coreográfico diferenciado para a época, os papéis

de dançarino e de coreógrafo se mantiveram separados.

Como integrante do Ballet Klauss Vianna, Marilene Martins fez parte de um grupo de artistas

e intelectuais que surgiu na década de 1950, em torno da criação da revista Complemento – a

Geração Complemento. Nena conta sobre os encontros desse grupo: “Havia sempre 75 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 76 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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discussões sobre teatro, literatura, balé e cinema. Frequentávamos também o Centro de

Estudos Cinematográficos que exibia filmes de arte”77. Nessas reuniões, discutia-se também

sobre arte, política, movimentos artísticos e manifestações sociais, estimulando diversas

iniciativas, como a criação da Escola e do Ballet Klauss Vianna78. Para Nena, além de suscitar

reflexões sobre o fazer artístico, o convívio junto à Geração Complemento abriu

possibilidades que, posteriormente, efetivaram-se por meio de vínculos artísticos, como foi

com o Teatro Experimental:

O contato com a “Geração Complemento” foi o vetor que direcionou para caminhos, de minha parte, ainda não pensados. Este estímulo, através dos debates, levou à conscientização da amplitude desses novos caminhos que vinham sendo abertos pela literatura, teatro, cenografia, artes plásticas, música, enfim, uma arte mais ampla, onde cada participação era complementada e complementava as demais. Na prática, além do Ballet do Klauss, isto aconteceu através dos contatos com o TE [Teatro Experimental], que através de seus espetáculos (especialmente, Fim de Jogo, de Samuel Beckett), virou literalmente minha cabeça, tal o impacto que me causou. Mais adiante, cheguei a participar de alguns espetáculos do TE como coadjuvante.79

No período junto a Klauss e Angel Vianna, Marilene vivenciou uma das vertentes do

movimento moderno de dança no Brasil, marcado por questões como a brasilidade na arte, o

estudo do corpo e do movimento, além de uma atitude crítica com relação ao fazer artístico.

Ressaltamos, ainda, que ao lado de Klauss e Angel Vianna, Marilene começou a fazer dança

dentro de parâmetros pedagógicos atentos às relações humanas, diferentes daqueles de Carlos

Leite. Nessa experiência da artista, o modernismo estabeleceu-se a partir de um movimento de

ruptura, de questionamento dos modos de fazer e de proposição de novas ideias. Além disso,

consideramos que, por meio de Klauss Vianna, Marilene Martins experimentou um trabalho

atento ao corpo com o qual relacionamos a prática denominada consciência corporal

desenvolvida no Trans-Forma.

77 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 78 Cf. Acervo Angel Vianna, disponível em: www.angelvianna.art.br/ 79 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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2.3 Rolf Gelewski e a Escola de Dança da UFBA

[...] eu vi na revista O Cruzeiro, uma reportagem muito bonita, de pessoas inteiramente entregues, descalças, com cabelos soltos.

E aquela expressão interiorizada nos movimentos. Fiquei com muita vontade de conhecer o Rolf

(MARTINS, 2007).

No ano de 1961, Marilene Martins mudou-se para Salvador em virtude de seu ingresso no

Curso Superior de Dança, da UFBA, a primeira graduação em dança criada no Brasil. A ida

de Martins foi motivada pela presença do dançarino e professor alemão Rolf Gelewski, que

naquele momento dirigia essa graduação. Além de aluna, Martins prestou exame e foi

selecionada para lecionar balé clássico para turmas iniciantes nessa mesma instituição.

Também participou, como dançarina, do Grupo Juventude Dança e, posteriormente, do Grupo

de Dança Contemporânea da UFBA, ambos dirigidos por Rolf.

Ao chegar a Salvador, Marilene encontrou um ambiente cultural e artístico marcado pela

vanguarda estrangeira. Esse panorama se estabeleceu com a fundação da Universidade

Federal da Bahia, em 1946, e, particularmente, a gestão do Reitor, o médico Edgard Santos

(RISÉRIO, 1997; VERÁS, 2017). Em um panorama social e econômico pouco desenvolvido,

Santos, apostou nas áreas de arte e humanidades, e ainda, na imigração de artistas e

intelectuais europeus para transformar o cenário da capital baiana. O reitor convidou

personalidades, como o maestro alemão Hans Koellreutter80, que dirigiu o Curso de Música, e

a dançarina polonesa Yanka Rudzka81, que dirigiu a Graduação em Dança nos seus primeiros

anos. Risério (1997) ressalta a presença de artistas importantes no contexto soteropolitano,

como o músico suíço Walter Smetak82, também professor na UFBA, e outros, que atuavam

fora da Universidade, como o fotógrafo francês Pierre Verger83, a arquiteta italiana Lina Bo

Bardi84 e jovens artistas brasileiros no início de suas trajetórias, como os músicos Caetano

80 Hans Joachim Koellreutter (1915-2005). De origem alemã, o flautista, compositor e regente imigrou para o Brasil em 1937 e dirigiu a Escola de Música da Universidade Federal da Bahia (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017a). 81 Yanka Rudzka (1916-2008). De origem polonesa, a dançarina foi a primeira diretora da Escola de Dança da UFBA, permanecendo na gestão de 1956 a 1959 (ARAÚJO, 2012). 82 Anton Walter Smetak (Suiça, 1913-1984). Suiço, naturalizado brasileiro. Lecionou na Escola de Música da UFBA (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017b). 83 Pierre Verger (França, 1902-1996). Fotógrafo. 84 Lina Bo Bardi (Itália, 1914-1992). Arquiteta. Dirigiu o Museu de Arte Moderna da Bahia (MAM-BA), do final da década de 1950 a meados de 1960 (INSTITUTO BARDI, 2018).

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Veloso85 e Gilberto Gil86, o cineasta Glauber Rocha87, a dançarina Lia Robatto88, e o ator

Sérgio Cardoso89.

Considerando a análise de Amadei (2006), com relação às correntes de dança russa e alemã

que participaram da construção da dança cênica no Brasil, se em Belo Horizonte Marilene

teve acesso à escola russa de balé clássico, em Salvador, com Rolf Gelewski, a artista

relacionou-se com uma vertente da dança moderna alemã. Nascido em Berlim, Rolf Gelewski

estudou com Marianne Wogelsang90, Gret Palucca91 e Mary Wigman92, essa última aluna e

assistente de Rudolf Laban93. Verás (2017, p. 38-39) ressalta as influências de Laban e

Wigman no trabalho de Gelewski:

Foi dentro desse contexto de configuração da dança moderna na Alemanha, sobretudo a partir dos estudos de movimento de Laban e da “dança-expressão” de Mary Wigman que Rolf Gelewski se encontrou com essa vertente estética, passando a fazer parte dessa genealogia germânica no campo das artes do movimento e incorporando esses ensinamentos em sua dança.

A proposta de Gelewski prioriza os referenciais de espaço, de tempo e de formas, além de

destacar a rítmica e a improvisação, de forma importante, tanto para o estudo de movimentos

85 Caetano Veloso (Bahia, Brasil, 1942). Cantor e compositor (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017k). 86 Gilberto Gil (Bahia, Brasil, 1942). Cantor, instrumentista e compositor (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017l). 87 Glauber Rocha (Bahia, Brasil, 1939-1981). Escritor e cineasta (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017m). 88 Lia Robatto (São Paulo, Brasil, 1940). Dançarina, corógrafa e professora de dança (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017n). 89 Sérgio Cardoso (Pará, Brasil, 1925). Ator e diretor teatral (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017o). 90 Marianne Wolgelsang (Alemanha, 1912-1973). Dançarina e professora (VERÁS, 2017). 91 Gret Palucca (Alemanha, 1902-1993). Dançarina. Estudou com Mary Wigman. Desenvolveu um trabalho artístico e pedagógico e fundou sua própria escola de dança (PARTSCH-BERGSOHN; BERGSOHN, 2003). 92 Mary Wigman (Alemanha, 1886-1973). Dançarina, coreógrafa e professora. Foi aluna e assistente de Rudolf Laban. Posteriormente, trabalhando sozinha, Wigman investiu na criação coreográfica, destacando-se por uma atuação dramática relacionada ao expressionismo alemão. Wigman também explorou os aspectos de espaço e de tempo, como Laban. Com relação à prática artístico-pedagógica, procurou desenvolver um trabalho próprio, criando e experimentando movimentos antes de serem utilizados nas aulas. Também fez uso de improvisações, estimulando os alunos a buscar seus próprios movimentos (PARTSCH-BERGSOHN; BERGSOHN, 2003). 93 Rudolf Von Laban (Austria-Hungria, 1879-1958). O pensamento de Laban atravessa todo o século XX e chega aos nossos dias suscitando discussões artísticas e pedagógicas. Seu trabalho foi calcado na relação entre movimento e vida humana (THORNTON, 1971). A partir da observação da natureza do universo, Laban concebeu um estudo do movimento que compreende a existência humana, considerando a percepção do homem sobre si mesmo e suas distintas relações no mundo. Para Laban, o movimento torna visível a imaterialidade do pensamento e da intenção. Laban estabeleceu aspectos voltados para a expressividade do movimento: os fatores de movimento – Fluência, Espaço, Peso e Tempo – e a noção de Esforço, que corresponde ao impulso interno construído por meio da articulação entre dois ou mais fatores de movimento (RENGEL, 2003; THORTON, 1971). Conforme Fernandes (2006) enfatiza, também a perspectiva de movimento em Laban buscou contemplar diferentes pessoas e suas individualidades, e não, apenas dançarinos. Além do contexto do corpo, do movimento e da expressividade, Laban se interessou pelo processo educacional e considerou a prática corporal e artística um modo de desenvolvê-lo (HODGSON; PRESTON-DUNLOP, 1990; THORNTON, 1971).

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quanto para a criação coreográfica (BAÊTA, 2016; PASSOS, 2015; VERÁS, 2017). Passos

(2015) também aponta a tendência de Rolf para o estudo do movimento a partir de

referenciais, e não por meio de sequências de movimento pré-definidas. Como explica Passos

(2015, p. 84):

Ressalto que as descrições dos exercícios da apostila não se referem ao movimento ou às sequências de movimento. Gelewski sugere que o professor ou os estudantes elaborem ou improvisem os movimentos. O foco está no estudo do espaço e nas relações do corpo que se movimenta com o espaço que o circunda e não no estudo do movimento.

Essa característica também é conferida no trabalho do predecessor de Gelewski, Rudolf Von

Laban, que buscou valorizar o desenvolvimento do indivíduo, em um trabalho organizado a

partir da experimentação do movimento, e não, de sequências de passos, como afirmam

Hodgson e Preston-Dunlop (1990, p. 36):

O treinamento para Laban e seus dançarinos não era uma questão de identificar passos ou posições dos pés ou gestos ou posturas. Ele pretendia ajudar todos os dançarinos a saber como usar seus corpos para que pudessem encontrar seus meios individuais de expressão e comunicação (Tradução nossa).94

Coerente com valores que sustentaram a dança moderna, como o respeito à individualidade,

Gelewski (1990, p. 13) também propôs um processo educacional e artístico em que a prática

de dança esteve relacionada à expressividade do indivíduo, como explica o autor:

[...] como a nossa tarefa mais urgente é a individualização, um ser que não seja mais o executante de um padrão formal, de um padrão de vida, de arte, e sim um ser que seja individualmente a própria fonte, o próprio seio da criatividade e da espontaneidade, certamente faz com que a dança e o ritmo do indivíduo, como contribuição para a época, seja o mais importante!

Na proposta desenvolvida por Rolf Gelewski na UFBA, Passos (2015, p. 61) constata

características da corrente alemã da qual o professor é herdeiro, além de chamar a atenção

para as especificidades apresentadas pelo também dançarino e coreógrafo:

Quando estruturou o Curso de Dança Moderna da Escola de Dança da UFBA em disciplinas como técnica de dança, improvisação, rítmica, composição solística, coreografia de grupo, estudo do espaço, estudo da forma, entre outras, Gelewski foi influenciado pela estrutura das escolas de dança moderna que freqüentou na

94 No original: “Training for Laban and his dancers was not a question of identifying steps or foot positions or gestures or postures. He aimed to help all dancers know how to use their bodies so that they could find their individual means of expression and communication”.

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Alemanha. Além disso, pode-se perceber que seu interesse pelo estudo do espaço e do tempo na dança tem relação com os trabalhos de Laban e Wigman, apesar de ter criado seus próprios métodos didáticos e sua própria metodologia.

Na UFBA, Marilene cursou várias disciplinas, como Técnica de Dança Moderna, Técnica de

Dança Clássica, Estética, Dança Primitiva, Piano, Anatomia, Estudo do Traje e Rítmica,

sendo estas ministradas por diversos professores95. Mas, sobretudo, foi com Gelewski que a

artista-professora estudou matérias, como Técnica de Dança Moderna, Composição,

Improvisação, Coreografia em Grupo, Estudo do Espaço, Estudo da Forma, Rítmica (Metros

Gregos) e Filosofia da Dança, cujos conteúdos foram utilizados na configuração de sua

proposta no Trans-Forma.

Cabe mencionar também na dança de Rolf a influência do pensamento filosófico de Sri

Aurobindo96, a partir do qual o artista e professor alemão passou a priorizar o caráter

educacional da formação em dança, investindo em produção e publicação de materiais

didáticos (PASSOS, 2015; VERÁS, 2017). Rolf (1990, p. 20) compreendeu o processo

educacional e artístico como um modo de favorecer o desenvolvimento humano para

contribuir com o mundo em que se vive, como explica: “Então, trabalhar com o elemento arte

na educação significa acordar as pessoas ou oferecer-lhes a possibilidade de despertarem

interiormente para uma riqueza maior, para uma maior intensidade e em planos mais extensos,

aprofundados”. Essa abordagem mostra-se coerente com a herança recebida, por Gelewski, de

Wigman, como observa Verás (2017, p. 40., grifo nosso): “[...] ele [Gelewski] herdou de sua

professora [Mary Wigman] algumas marcas: a de dançar e ensinar a partir da utopia de uma

sociedade nova, fundada na necessidade interior, a partir da qual se move o dançarino”. No

trabalho de Gelewski, Marilene Martins destacou uma abordagem voltada para a formação

artística e, também, com o intuito de autoconhecimento e de desenvolvimento humano. Sobre

as aulas de Gelewski, Nena relatou: “Era um professor extraordinário. Para ele, a função da

dança era preparar-se para uma vida mais profunda e maior. Exigia nas suas aulas muita

disciplina e qualidade de movimento e uma concentração intensa”97. Martins também fez

95 MANUSCRITO: Curriculum Vitae de Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins em 1982?. 172 f. Acervo de Marilene Martins. 96 Em 1968, em viagem à Índia, Rolf Gelewski conheceu a comunidade Sri Aurobindo Ashram e sua líder espiritual, a francesa Mira Alfassa, conhecida como A Mãe. A partir desse contato, Gelewski passou a dedicar-se a esse caminho de espiritualidade, fundando em Salvador/BA a Casa Sri Aurobindo, associação voltada para o desenvolvimento de um trabalho educacional e cultural. Atualmente, essa associação está localizada na cidade de Belo Horizonte/MG (PASSOS, 2015). 97 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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referência a uma sistematização didática para a dança moderna: “Olha, ele tinha uma técnica.

Até tinham apostilas que ele nos dava sobre cada matéria [...]” (MARTINS, 2010).

Nos estudos realizados por Marilene com Rolf Gelewski, ressaltamos, além do estudo de

movimento e a expressão de dança moderna, a abordagem de aspectos pedagógicos e

metodológicos, como Marilene Martins relata:

Então, ele além de passar para a gente tudo estruturado, toda a estrutura da dança moderna – porque ele fazia por escrito todas as matérias que nós estudávamos –, ele teve o cuidado de formar professores, de querer que as pessoas entendessem, compreendessem (MARTINS, 2007).

No depoimento da artista observamos a relação feita entre a função docente e a compreensão

da prática de dança, o que foi identificado no contexto do Trans-Forma. A convivência da

artista-professora com Gelewski extrapolou o Curso de Dança da UFBA. Marilene foi

assistente de Rolf em curso ministrado por ele no Festival de Inverno da UFMG, realizado na

cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, em 1970. Além disso, estimulada por Gelewski, nesse

mesmo ano, retornou à UFBA para finalizar o curso iniciado em 1961 e para complementar os

estudos com o professor alemão. Como lembra Marilene:

Fui assistente no curso que ele deu no Festival de Inverno. Aí, ele me convidou para voltar: “Nena, eu sei que você tem vontade de fundar uma escola. Então, é preciso que você passe uma temporada comigo. Pelo menos uns seis meses pra eu poder te ensinar a lecionar. E eu posso também acompanhar o seu trabalho lá em Belo Horizonte. De vez em quando você me chama que eu vou lá ver como é que está indo o trabalho” (MARTINS, 2007).

Ressaltamos, na experiência de Marilene Martins com Gelewski, um contexto moderno

distinto daquele vivenciado junto a Klauss e Angel Vianna. Com o casal Vianna observamos

o modernismo fundado na ideia de ruptura com o estabelecido, no caso, com as ideias de

Carlos Leite, além da busca de novos parâmetros artísticos e educacionais. Quanto ao trabalho

de Rolf no contexto da cidade de Salvador, o moderno não significou uma ruptura com

parâmetros anteriores, já que foi esse movimento que inaugurou o espaço profissional de

dança na capital soteropolitana, como afirma Araújo (2012). Nesse sentido, observamos que o

caráter moderno de dança relativo à experiência de Martins com Rolf Gelewski esteve

relacionado a uma sistematização específica do movimento e a conteúdos, como a

improvisação e elementos de espaço, forma e tempo. Também ressaltamos no período junto a

Rolf o aspecto da individualidade que se mostrou importante para Marilene. Nesse sentido,

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mesmo tratando-se de uma perspectiva de dança sobre bases estrangeiras, o valor dado ao

indivíduo operou no sentido de favorecer a artista-professora em direção à construção do

próprio trabalho. Percebeu-se, assim, que além de uma formação artística específica de dança

moderna, os estudos na UFBA, particularmente a referência de Rolf Gelewski, contribuíram

de forma importante para estimular a autoralidade de Marilene Martins na criação de uma

proposta artístico-pedagógica de dança.

Considerando os primeiros estudos realizados com Carlos Leite, Klauss Vianna e Rolf

Gelewski, identificamos no trabalho de Marilene Martins a relação com perspectivas

estrangeiras, como o balé clássico, de origem russa, e a dança moderna alemã. Juntamente

com isso, destacou-se uma atenção à corporalidade e à expressividade do dançarino brasileiro,

observados no vínculo de Marilene com Klauss e Angel Vianna. Ao considerar os modos

como foram estabelecidos esses primeiros vínculos artísticos e pedagógicos de Marilene

Martins com Carlos Leite, Klauss Vianna e Rolf Gelewski, ressaltamos que, ao buscar o novo

e deslocar-se de ambiente, de escola ou de grupo de dança, a artista não rompeu com ideias e

modos de fazer anteriores. Diferentemente disso, Marilene relata a importância das várias

contribuições desses artistas e professores em seu trabalho. Desse modo, a artista-professora

demonstrou afinidade com o discurso pós-modernista, em que, segundo Hutcheon (1991, p.

45), “o passado como referente não é enquadrado nem apagado [...]: ele é incorporado e

modificado, recebendo uma vida e um sentido novos e diferentes”. Ao seguir o fluxo de

Marilene até os estudos com Rolf Gelewski, foi possível perceber um movimento articulado

entre a busca do novo e a presença do passado, aspecto identificado tanto na trajetória da

artista-professora como na dinâmica de sua escola, abordada adiante nesta Tese.

2.4 Deslocamentos e flexibilidade artística

Após os estudos com Carlos Leite, Klauss Vianna e Rolf Gelewski, Marilene estabeleceu

diálogos variados na área de Dança e com outras artes, o que também mostrou-se relevante

para a compreensão de sua abodagem artístico-pedagógica.

No período de 1964 a 1966, residindo no Rio de Janeiro, a artista voltou a fazer aulas de balé

clássico com Klauss Vianna, que havia deixado a UFBA e se mudado para a capital carioca

com sua esposa, Angel Vianna. Compreendemos essa continuidade junto a Klauss como um

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adensamento da relação de Marilene com as ideias do professor e coreógrafo, que se manteve

no Trans-Forma. Assim, ressaltamos a presença de Klauss Vianna de forma mais destacada na

trajetória de Martins. Com relação ao balé clássico, Nena também fez aulas com a professora

Consuelo Rios98, dentro da perspectiva russa de balé. Freqüentou, ainda, o curso Ballet na

Educação, no Studio de Dalal Achcar99, oferecido pela escola inglesa Royal Academy of

Dancing100. Embora Marilene não tenha dado destaque a esses estudos, consideramos

importante observar que, mesmo não considerando o balé clássico como meta, Marilene

buscou expandir os referenciais sobre essa técnica. Além disso, no caso do curso oferecido

pela Royal Academy of Dancing, a dançarina reiterou seu interesse pelo enfoque pedagógico,

contemplado nas fases junto a Klauss Vianna e a Rolf Gelewski.

Martins deu continuidade também aos estudos de dança moderna, cursando aulas de Nina

Verchinina101 e Helenita Sá Earp102, nomes de referência no contexto brasileiro da época. Com

relação aos estudos com Verchinina, o comentário de Marilene explicita sua atenção à

consciência corporal e às escolhas a partir desse ponto de vista, o que se mostrou importante

nas anotações da artista, que registrou:

Eu achava a técnica da Nina Verchinina muito pesada. [...] Porque era muito plié103, muito plié, não sei quantas vezes, e repete... Então, aquela técnica para o meu corpo não era muito adequada. Eu sentia que não era uma técnica que meu corpo funcionava bem dentro dela. Eu ainda queria buscar um outro tipo de técnica (MARTINS, 2010)

98 Consuelo Rios (Brasil, 1923-2010). Dançarina e professora de balé. Estudou dança com professores russos, como Tatiana Leskova e Igor Scwezov. Integrou o Ballet da Juventude, como dançarina e como professora. Coordenou o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde também foi professora (FARO, 1989). 99 Dalal Achcar (Brasil, 1937). Dançarina coreógrafa e professora de balé. Estudou balé clássico com professores russos que vieram para o Brasil, como Igor Schwezov. Dirigiu suas próprias escolas e outras instituições, como a o Ballet do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. É consultora da Royal Academy of Dancing no Brasil (FARO, 2005). 100Royal Academy of Dancing. Instituição inglesa, fundada em 1920, voltada para o ensino de balé clássico. Oferece cursos de formação para dançarinos e professores em Londres, onde se localiza sua sede, e também em vários outros países, inclusive, no Brasil (FARO, 2005). 101 Nina Verchinina (Rússia, 1912-1995). Dançarina e professora de balé clássico, sua proposta de dança moderna deu ênfase a movimentos do balé clássico, estilo ao qual ela se dedicou mais longamente e se destacou como dançarina (CERBINO, 2001). A russa atuou em companhias, como o Original Ballet Russe, com a qual excursionou pelo Brasil na década de 1940. Conforme Cerbino (2001), o trabalho de Verchinina foi estruturado a partir também das influências de Isadora Duncan, Martha Graham e Rudol Von Laban, embora ela não tenha feito aulas com esses artistas. 102Helenita Sá Earp (São Paulo, Brasil, 1921-2015). Em 1939, aos dezoito anos, Helenita tornou-se a primeira professora de ginástica rítmica da Escola Nacional de Educação Física e Desportos da Universidade do Brasil (ENEFD), hoje Escola de Educação Física e Desportos (EEFD) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Posteriormente, Helenita estudou dança moderna e, segundo Earp (2012), contribuiu para a inserção da dança no contexto da Universidade. 103Plié. Termo francês que significa “dobrado”, utilizado para fazer referência ao movimento de flexão dos joelhos (FARO; SAMPAIO, 1989).

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Além de demonstrar o apreço de Marilene pela prática de dança pautada na consciência do

corpo, o depoimento da artista aponta para a sua relação com distintas perspectivas de dança.

Notou-se o interesse de Marilene por experimentar diferentes proposições. Desse modo, seu

percurso destoa do contexto modernista de dança em que, segundo Silva (2005), a negação de

uma perspectiva é substituida por outra, sendo ambas caracterizadas pela linearidade. Em

Martins, não se viu a substituição, mas a relação com diferentes propostas. Ao mesmo tempo,

o depoimento da artista sobre sua experiência com Nina Verchinina mostra que Marilene fez

escolhas entre várias propostas diferentes, a partir de objetivos próprios.

Ressaltamos também, nesse período no Rio de Janeiro, as atividades desenvolvidas por Nena

em manifestações de cunho popular. Quando ainda estava em Salvador, em 1962, a artista

participou de Skindô, um show dentro da modalidade Teatro de Revista, que foi apresentado

em Lisboa e em Paris e, posteriormente, em várias cidades brasileiras. O gênero Teatro de

Revista104, que definiu a estética de shows e programas de televisão, consistia em um teatro

musical, de caráter paródico, satírico e flexível a diferentes contextos culturais. No Brasil,

marcou uma época. Segundo Veneziano (2010, p. 56):

[...] o teatro de revista transformou-se, durante um longo período, no gênero que melhor representou a ideia que o Brasil tinha de si: Deus é brasileiro e este é o melhor país que há. Como prova, a revista mostrou os melhores produtos nacionais: samba, mulher, carnaval e malandragem.

O show Skindô reunia dançarinos e músicos em torno da protagonista, a dançarina Marly

Tavares105. A descrição de Marilene ressalta aspectos que compuseram o espetáculo: “Tinham

as bailarinas do Municipal que faziam os números de dança. Não era dança clássica, mas

trabalhavam com dança. Tinham as irmãs Marinho que mostravam o samba, tinha a bossa

nova... O show mostrava as danças brasileiras [...]” (MARTINS, 2010). Mundim (2005, 2013)

destaca, nesse tipo de produção, a combinação de música brasileira, como o samba e a bossa

nova, com a dança jazz que se instalou no país por meio do Teatro de Revista e se fortaleceu

104 O Teatro de Revista tem origem na França e chegou ao Brasil na segunda metade do século XIX, apresentando diferentes configurações até a atualidade (VENEZIANO, 2010). Arthur de Azevedo foi um dos primeiros autores brasileiros a se dedicar a esse tipo de gênero, que favorece a criação teatral a partir de aspectos contextuais. 105 Marly Tavares (Rio de Janeiro, Brasil, 1940). Iniciou seus estudos de dança no Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Dedicou-se à dança jazz, sendo uma das representantes desse estilo no Brasil (MUNDIM, 2005).

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com a vinda de artistas norte-americanos106 para o país. Além de Skindô, Marilene fez outros

shows, integrando grupos que acompanhavam as “estrelas”, ou protagonistas dos shows,

como Vilma Vernon, com quem Marilene estudou a dança jazz. Identificou-se aí o primeiro

contato de Martins com a dança jazz, que ocupou um espaço relevante na sistematização do

Curso Básico de Dança Moderna do Trans-Forma. Dentro dessa mesma vertente de trabalho,

Martins atuou, ainda, na televisão, nas emissoras, Tupi, Excelsior, Globo e TV Rio, como

descreve:

Eu entrava nesses grupos de bailarinos da televisão. Tinham os coreógrafos que trabalhavam conosco... o pessoal do Municipal... Mas, era só prá fazer essas dancinhas de televisão mesmo. As danças eram até bem criadas, mas não tinham valor artístico, não tinham pesquisa de movimento, nada assim. Era coisa prá televisão mesmo, prá grande público (MARTINS, 2010).

Para Marilene, esse tipo de atividade foi importante para garantir sua subsistência na capital

carioca, mas não estava em acordo com seu projeto artístico. Conforme Alvarenga (2002), o

envolvimento da artista com expressões populares nesse período foi importante para a junção

de elementos eruditos e populares na produção coreográfica do Grupo Trans-Forma. Também

sob o ponto de vista artístico-pedagógico foi possível identificar aspectos relativos à

articulação entre o erudito e o popular na proposta de Martins. Entretanto, essa conjuntura

esteve situada diferentemente dos shows, como Skindô, de forma que o elemento popular

brasileiro não esteve subjugado ao estereótipo, mas em uma configuração caracterizada pela

construção de “[...] uma arte brasileira erudita a partir de elementos da cultura popular [...]”

(MARQUES, 2008, p. 79). Assim, para o espetáculo Toda dança é a mesma dança, realizado

pela Escola de Dança Marilene Martins, em 1977, Martins se inspirou na Arte Armorial,

utilizando músicas representativas desse Movimento107 para as coreografias. No programa do

espetáculo consta o seguinte trecho do texto de Ariano Suassuna:

A Arte Armorial, partindo das raízes populares da nossa Cultura, não pode nem deve se limitar a repeti-las; tem de recriá-las e transformá-las. Por outro lado temos consciência de que se conseguirmos expressar o que é nosso com a qualidade artística necessária, estaremos seguindo o único caminho capaz de levar à verdadeira Arte universal – aquela que, partindo do nacional, se universaliza pela boa qualidade (SUASSUNA, 1974 apud ESCOLA DE DANÇA MARILENE MARTINS, 1977).

106 No contexto brasileiro da década de 1970, Mundim (2005) destaca a figura de Lennie Dale106, criador do grupo Dzi Croquettes, cujo trabalho influenciou o desenvolvimento da dança jazz no país. 107O Movimento Armorial, inaugurado por Ariano Suassuna, em Recife, no início da década de 1970, discutiu a erudição da cultura brasileira fundamentada em manifestações populares (MARQUES, 2008).

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Após o período no Rio de Janeiro, de volta à capital mineira, em 1967, Marilene fez atuações

no cinema e no teatro, retomando vínculos iniciados na época do Ballet Klauss Vianna,

quando também fez parte da Geração Complemento. Nesse momento, o regime militar

instaurado no país com o Golpe de 1964, fez-se sentir na trajetória da artista. Se no Rio de

Janeiro, as produções de Teatro de Revista nas quais Marilene atuou funcionavam “[...] como

uma espécie de válvula de escape à população” (MUNDIM, 2013, p. 107), em Belo

Horizonte, tanto no meio cinematográfico como no meio teatral, os trabalhos trataram da

condição política brasileira e sofreram com a censura. Conforme Ribeiro (1997) e Reis

(2005), esse foi um período em que as discussões estéticas cederam lugar às questões

políticas. Ao abordar os direcionamentos artísticos nesse momento, Ribeiro (1997, p. 67)

comenta:

Ocorreu então a emergência de uma jovem geração artística e intelectual que pregava a formulação de uma nova concepção de arte, a qual reivindicava a assimilação crítica da cultura brasileira frente ao contexto internacional, e revelava uma nova maneira de focalizar a relação entre a arte e a política, pautando-se pela autonomia da linguagem artística e pela construção de caminhos alternativos para revolucionar a realidade brasileira.

Nesse cenário, Marilene Martins participou, em 1967, do curta-metragem Talho Aberto,

dirigido por Ricardo Teixeira de Salles, que trazia o seguinte roteiro: “Focalizava o conflito

de 2 estudantes, uma garota e um rapaz. Ela queria convencê-lo a participar do movimento

universitário, pois acreditava ser esta a única solução para a reconstrução do

país”108.Destacamos, nesse período, a participação de Marilene em duas peças do Teatro

Experimental109: Numância: ou ficar à pátria livre...110, em 1968, e Futebol, alegria do

povo111, em 1969. Conforme Reis (2005), o trabalho do Teatro Experimental foi marcado nos

primeiros anos por investigação e inovação estética. A partir de 1966, com o contexto de

ditadura que se instalou no país, o grupo adotou um posicionamento político contrário ao

regime estabelecido e direcionou sua produção artística nessa perspectiva. Numância: ou ficar

à pátria livre... foi uma peça com essa abordagem, e consistiu em uma analogia ao contexto

da época, em que “[...] o público poderia ver todos aqueles que tentavam dizer não à ditadura

108 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins. 109 O Teatro Experimental foi criado em 1959 por Carlos Kroeber, João Marschner e Jota D’Ângelo, após a saída destes artistas do Teatro Universitário da UFMG, fundado em 1956 (REIS, 2005). 110 A peça Numância: ou ficar à pátria livre, teve direção de Amir Hadadd e contou com coreografias de Décio Ótero e Jura Wild (REIS, 2005). 111 Em Futebol, alegria do povo, conforme Reis (2005, p. 65), “[...] os subterrâneos do futebol eram colocados às claras com toda sua sordidez e hipocrisia”.

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militar brasileira” (REIS, 2005, p. 59). Marilene comenta sobre a repercussão política desse

espetáculo, que acabou sendo proibido: “Naquela época de ditadura, imagina o que isto

provocou... A censura descia violenta”112. O envolvimento de Marilene com o Teatro

Experimental foi um fator determinante para a construção de seu olhar sensível às

manifestações sociais, como ela relata:

Foi uma vivência bem forte que nós tivemos porque era tudo novidade prá gente. Então, incitava muito o raciocínio da gente. Não era uma coisa que eles explicavam muito, mas você via e tirava suas conclusões. Isso eu acho que me ajudou muito a botar o pé no chão, começar a ver mesmo o que me interessava fazer, sentir na pele a sociedade, os caminhos que a gente tinha que abrir (MARTINS, 2010).

Compreendemos que a experiência de Marilene junto ao Teatro Experimental tenha

contribuído para o desenvolvimento de seu trabalho no Trans-Forma, sobre o qual Alvarenga

(2002, p. 209) comenta:

Numa época em que o país vivia o sombrio domínio da ditadura, com as liberdades individuais fortemente cerceadas, o trabalho de Marilene contrastava vivamente com essa realidade e ao mesmo tempo fazia eco às propostas da própria juventude de seus dançarinos, influenciados pelo movimento da contracultura, na qual, por intermédio do corpo, buscava-se uma liberdade possível, fazendo frente à diversas pressões sociais.

Observamos, no percurso de Marilene Martins, desde o início de seus estudos de dança até a

fundação do Trans-Forma, a afinidade com o movimento em rede (MUSSO, 2013;

KASTRUP, 2013; PARENTE, 2013). Nesse sentido, observamos aspectos tais como a

mobilidade, a disponibilidade para a interação, a multiplicidade e a diversidade de elementos

que compõem o tecido construído. Assim, na trajetória de Marilene, identificamos conexões

com o balé clássico, de origem russa e inglesa, além da experiência com Klauss Vianna, em

que essa técnica foi reorganizada a partir das ideias do coreógrafo. Também foi possível

observar entre as atividades desenvolvidas pela artista-professora a dança moderna, seja na

perspectiva técnica, artística e estética do Ballet Klauss Vianna, no trabalho de Rolf Gelewski,

oriundo da vertente expressionista alemã, ou em propostas como as de Nina Verchinina e

Helenita Sá Earp. Além dessas vivências, os vínculos com a dança jazz, com manifestações de

cunho popular, com outras artes, como o teatro e o cinema, e ainda, o envolvimento com

discussões coletivas, de caráter artístico, político e social. No deslocamento de Martins

112 MANUSCRITO: Por que a dança? Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2005. Acervo de Marilene Martins.

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consideramos o aspecto da tendencialidade, como explicado por Salles (2014, p. 33): “As

interações são norteadas por tendências, rumos aos desejos vagos. [...] Não há tendências

fixas, mas há aquelas historicamente manifestas, em determinados momentos da obra de um

artista, que se desenvolvem e se modificam”. No caminho trilhado por Marilene até a

fundação do Trans-Forma, observamos a disposição mais acentuada para a interação com a

dança moderna, em diferentes configurações. Também foi possível perceber no deslocamento

feito pela artista vínculos que remetem a diferentes danças e expressões artísticas.

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3 TRANS-FORMA CENTRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA: “UMA J ANELA

VENTILADA” 113

O movimento dialógico que marcou a trajetória de estudos e profissionalização de Marilene

também fez-se notar no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Em 1969, Marilene

Martins iniciou as atividades de sua escola, que aconteciam em sua residência. Nos dois

primeiros anos, lecionou balé clássico. Dudude, que foi uma das primeiras alunas, conta sobre

a aula: “Era uma aula, assim, de plié, de elevé, de muito changement” (DUDUDE, 2010).

Nesse período inicial da escola, estimulada por Rolf Gelewski, Marilene voltou a Salvador

para finalizar o curso de dança na UFBA. De volta a Belo Horizonte, a artista redirecionou

seu trabalho, inspirada na experiência com Rolf. Em 1971, instalou-se em um amplo salão no

andar superior do tradicional Colégio Arnaldo, em uma região central da cidade de Belo

Horizonte. Marilene descreve o espaço, no qual faria uma reforma algum tempo depois da

mudança:

Eu fui olhar. Tava cheio de armário velho, morcego prá todo lado. Mas, eu pedi prá tirar tudo. Raul Belém Machado114 foi lá e pintou tudo prá mim. Ele pintou em tons de verde. Tudo muito bonito, que ele tem um bom gosto incrível! E é ótimo cenógrafo também! Então, ele arrumou a escola toda lá prá mim. Era uma sala só, a parte toda de cima da capela. Então era aquele salão imenso. Porque você pensa na capela embaixo. O salão era em cima da capela. Era imenso mesmo! Tanto que depois eu fiz três salas. E ainda tinha uma cantina, ainda tinha uma biblioteca. Nós fomos prá lá e eu comecei a trabalhar (MARTINS, 2007).

Arnaldo Alvarenga comenta sobre o espaço:

O lugar era especial. [...] Tinha uma diferença de nível entre a cúpula da capela e o piso do Trans-Forma [...]. Então, um vazio nesse espaço. Então, o barulho que você tinha ali naquelas tábuas corridas, era uma coisa! O chão não era macio, o chão era assim... O chão era mais macio que linóleo. Era maravilhoso você trabalhar naquele chão![...] Isso numa tarde, com aquelas janelas... Era uma seqüência de oito janelas de cada lado, janelas imensas. E você ficava no alto, acima dos pés de manga. Você só via verde e a Serra do Curral no fundo. [...] Você tinha todo um ambiente... (ALVARENGA, 2007).

113 Expressão utilizada por Dudude, Cf: Dudude. Belo Horizonte, 25 de maio de 2010. Entrevista concedida a Gabriela Córdova Christófaro 114 Raul Belém Machado (Minas Gerais, Brasil, 1942-2012). Cenógrafo, figurinista, professor e arquiteto, Machado atuou na FCS, no CEFAR e à frente do Centro Técnico de Produção (AVELLAR; REIS, 2006).

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Figura 1- Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea

Fonte: Acervo de Marilene Martins (1971-1981)

Para Dudude, esse ambiente mostrou-se importante no processo vivido no Trans-Forma: “Eu

penso que eu fui criada numa fazenda de dança! Isso colaborou com a formação do

movimento da gente! Essa noção de espaço. E não tinha muito espelho, o que era maravilhoso

também!” (DUDUDE, 2010). O espaço amplo, aberto e arejado ocupado pelo Trans-Forma

abrigou uma concepção de dança caracterizada pela diversidade artística. Assim como o

espaço físico, outros aspectos, como a relação entre o professor e o aluno, a configuração da

escola, a produção e atuação artística, a formação do artista-professor e a prática artístico-

docente, os procedimentos didáticos, entre outros, se mostraram importantes e estiveram

alinhados na perspectiva de dança de Marilene Martins.

Ao iniciar as atividades de sua escola, Marilene Martins retomou o movimento moderno de

dança em Belo Horizonte, esvaziado no início da década de 1960 com a saída de Klauss e

Angel Vianna da cidade (ALVARENGA, 2002; REIS, 2005). Salienta-se, ainda, que o

trabalho da artista modificou um cenário que, naquele período, privilegiava o balé clássico

como opção artística e como eixo na formação do dançarino, como destaca a matéria de

jornal:

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O Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea está completando 15 anos de existência. Quando nasceu, em 69, a escola foi pioneira da dança contemporânea em Belo Horizonte, iniciando um movimento renovador e influenciando as estruturas das escolas que, até então, mantinham apenas o curso de ballet clássico (A HISTÓRIA..., 1984).

Em 1992, quando Marilene Martins recebeu o título de Cidadã Honorária de Belo Horizonte,

outra publicação jornalística chamou a atenção para o importante papel do Trans-Forma na

formação de artistas, professores e coreógrafos:

[...] Ela é fundadora do Trans-Forma, a primeira escola de dança moderna de Belo Horizonte e introduziu em Minas, a partir de 1969, uma forma inovadora de pensar, pesquisar e estudar os novos rumos da dança. O panorama foi definitivamente modificado na cidade com a sua escola, que formou alunos como os irmãos Pederneiras (Grupo Corpo), os coreógrafos Arnaldo Alvarenga, Dudude Herrmann, Lydia Del Picchia, entre outros nomes de valor (BH HOMENAGEIA..., 1992).

Na época em que Marilene fundou o Trans-Forma, Belo Horizonte contava com a presença de

Carlos Leite e o Ballet Minas Gerais. Além de Carlos Leite, suas alunas Dulce Beltrão e

Sylvia Böhmerwald inauguraram, em 1967, o Studio Anna Pavlova, cujo trabalho, segundo

Alvarenga (2010), embora não recusasse o movimento modernista, manteve o balé clássico

como diretriz de trabalho. Além desses, o Ballet Ana Lúcia, estabelecido por Ana Lúcia de

Carvalho, em 1961, que também viria a tornar-se uma referência para a dança em Belo

Horizonte, dedicava-se à escola clássica de balé (LIMA, 2010). Nesse contexto, Marilene

Martins ofereceu uma formação artística sobre bases diferentes daquelas existentes até então

na capital mineira, o que suscitou desconfianças com relação à consistência da proposta, como

a artista pontua: “Tinha o pessoal do contra, que achava que aquilo não era dança, que a dança

clássica é que tinha valor, que aquele negócio era uma pesquisa de pouca importância”

(MARTINS, 2010). Nesse cenário, o caráter da dança de Marilene Martins sobre bases

modernas estabeleceu-se como contraponto ao balé clássico de Carlos Leite, que em 1971 foi

instalado no Palácio das Artes, passando a representar oficialmente o estado de Minas Gerais

(ALVARENGA, 2005). Considerando o regime de ditadura no país nessa época, a dança de

Martins, além de estabelecer parâmetros artísticos distintos daqueles de Carlos Leite,

apresentou oposição ao espaço político ocupado pelo Professor, como discutido por

Alvarenga (2002, p. 188): “Consolidando-se como um verdadeiro espaço de sociabilidade, a

escola era especialmente freqüentada pela juventude mais identificada com o ideário da

contracultura, construindo uma imagem local para o meio artístico belo-horizontino, de

acolhedora dos ‘malucos’ da dança na Capital”.

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No relato de Dudude, percebe-se a relação entre expressão artística e posicionamento político

no trabalho do Trans-Forma:

Teve uma vez que estávamos eu, Bony e ela [Marilene Martins] dançando A dor do povo é um osso na minha garganta. Esse era o nome da coreografia. E eu, assim, nova, né? “Gente, a dor do povo é um osso na minha garganta? Que negócio é esse?” Eu não linkava a situação que eu estava vivendo, numa época de ditadura, com aquilo que eu estava dançando. Só mais tarde, a ficha cai (DUDUDE, 2010).

Reis (2005, p. 122) enfatiza o caráter do trabalho de Marilene Martins e as mudanças geradas

no meio artístico em virtude das novas perspectivas surgidas com o Trans-Forma:

Numa época em que a palavra liberdade era apenas um “grito parado no ar”, o Trans-Forma contestou a ordem vigente ao praticar, em seus corpos dançantes, a liberdade de expressão. Acreditando em sua responsabilidade diante da realidade, os artistas do Trans-Forma disseram não às convenções da dança clássica e às mitificações da figura do bailarino, impulsionaram mudanças no processo de ensino-aprendizagem da dança, abriram novas trilhas nos caminhos de uma dança brasileira e levaram à frente a utopia de uma geração Trans-Formadora.

O Trans-Forma marcou o cenário artístico de Belo Horizonte e estabeleceu-se como espaço de

formação amadora e profissional de dançarinos, coreógrafos e artistas-professores, a partir da

proposta de “[...] colocar na dança a expressão do fenômeno humano, ou seja, da vida”115.

Imbuída de ideias, como a liberdade de expressão, o respeito ao indivíduo, o desenvolvimento

humano, a coletividade no fazer artístico, a busca pela brasilidade na expressão do dançarino,

Marilene Martins considerou o diálogo como modo de levar à frente seu pensamento de

dança, como escreve:

Vários professores vieram de fora, para ajudar nosso crescimento: José Adolfo Moura116, Bettina Bellomo117, Freddy Romero118, Ivaldo Bertazzo119, Denilto Gomes120, Oscar Arraiz121, Rolf Gelewski, Angel e Klauss Vianna, Mara Borba122,

115 MANUSCRITO: O Trans-Forma completa 15 anos. Redigido por Marilene Martins em 1984. Acervo de Marilene Martins. 116 José Adolfo Moura (Minas Gerais, Brasil). Músico e artista plástico. 117 Bettina Bellomo (Buenos, Aires, Argentina). Dançarina e Maitre de balé, Bellomo reside em Belo Horizonte, desde 1970, atuando em companhias profissionais de dança, como Grupo Corpo, Grupo Primeiro Ato e Cia de Dança Palácio das Artes. 118 Freddy Romero (Venezuela). Dançarino, professor e coreógrafo. 119 Ivaldo Bertazzo (São Paulo, Brasil, 1949). Coreógrafo, professor e estudioso do corpo. O trabalho desenvolvido por Bertazzo foi identificado de modo relevante no Curso Básico de Dança Moderna, do Trans-Forma, como abordado à frente, nesta tese. 120 Denilto Gomes (São Paulo, Brasil, 1953-1992). Dançarino, professor e coreógrafo. 121 Oscar Arraiz (Argentina). Coreógrafo. Em 1973, Marilene Martins freqüentou o curso de composição ministrado por Oscar Arraiz no 7º. Festival de Inverno de Ouro Preto. Posteriormente, Arraiz trabalhou com o

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Sônia Mota123, Carmen Paternostro124 e tantos outros, além da loucura necessária de Graciela Figueroa. Sem a Graciela, talvez não tivéssemos enlouquecido o suficiente para por em prática nossas ideias. Com essa gente de extrema competência, a escola fortificou o seu embasamento, tornando-se um grande laboratório de criatividade. 125

Observamos que, por meio desse movimento, Marilene constituiu no Trans-Forma um espaço

de convivência e de atravessamento de diferentes modos de fazer dança, o que pautou o

processo de conhecimento em dança. Na escola de Martins, do ponto de vista artístico-

pedagógico, compreendemos que aspectos como a ausência de hierarquia e a possibilidade de

articulação entre diferentes saberes, característicos da dinâmica em rede, permearam os

modos de fazer do artista-professor e sua relação com o aluno.

3.1 Uma dança para todos e para cada um

A fundação do Trans-Forma integra a experiência e as reflexões de Marilene Martins sobre

arte, dança, corporalidade, aprendizagem de dança e um posicionamento da artista-professora

com relação a essas temáticas em busca de um modo de estar no mundo, como ela explica:

Queria uma dança para todas as idades, todos os corpos e condições. Onde as pessoas pudessem “se dizer” através do movimento. Sem o objetivo de formar bailarinos. Despertar aquela dança que pode estar adormecida dentro de nós. Recuperar o simples, o natural, o orgânico. Descobrir o prazer do movimento. O movimento e o não movimento. Uma dança com muita consciência corporal e uma certa técnica. A dança é a base de uma concepção de vida mais flexível, mais harmoniosa, mais natural.126

Identificamos, nas palavras de Martins, uma questão que consideramos ter se constituído

como base de seu pensamento no Trans-Forma: a dança como uma atividade essencialmente

Grupo Corpo (BH/MG), fundado por dançarinos que estudaram no Trans-Forma e integraram a primeira formação do Grupo Trans-Forma. 122 Mara Borba (São Paulo, Brasil, 1951). Dançarina e coreógrafa. (SÃO PAULO COMPANHIA DE DANÇA, 2014). 123 Sônia Mota (São Paulo, Brasil, 1948). Dançarina, coreógrafa e diretora. (SÃO PAULO COMPANHIA DE DANÇA, 2010). 124 Carmen Paternostro (Bahia, Brasil, 1948). Coreógrafa e diretora. (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017c). 125 MANUSCRITO: Discurso Prêmio de Cidadã Honorária. Redigido por Marilene Martins em 1992. Acervo de Marilene Martins. 126 MANUSCRITO: Discurso Prêmio de Cidadã Honorária. Redigido por Marilene Martins em 1992. Acervo de Marilene Martins.

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humana. No Estatuto do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea127, Marilene reitera

essa questão ao afirmar que a escola:

PROPÕE 1 – Ajudar o aluno na sua busca como ser humano, dando-lhe uma maior percepção e consciência do seu corpo para que possa sentir a relação desse corpo com o universo. 2 – Desenvolver sua sensibilidade artística, aliando-a a seu gesto e a sua emoção, para que a dança possa apresentar a totalidade do seu ser. 3 – Lutar por uma sociedade mais humana começando pela humanização da dança.

Relacionamos a humanização pretendida por Martins com as práticas voltadas para

“percepção e consciência do corpo”, que fundamentaram o trabalho da artista no Trans-

Forma. Essa abordagem foi observada nos vários vínculos de Marilene Martins com essa

perspectiva, como exemplifica seu relato: “Eu os estimulava a ouvir suas vozes interiores, o

que aprendi com o Rolf” (MARTINS, 2010). Observamos que, na dança de Marilene, o

objetivo principal não foi a execução ou o domínio de movimentos específicos, mas uma

prática de dança apoiada na percepção de si mesmo, o que correspondeu a uma visão

humanizada dessa arte. Marilene explicita que o exercício sensorial deve ser o primeiro

movimento a partir do qual se seguiria a experimentação de técnicas de dança:

No princípio a gente começava pelas coisas mais simples que é a postura, o peso, a sua relação com o espaço, o andar, o caminhar, o eixo, a base, essas coisas bem simples que a pessoa vai absorvendo e vai se conscientizando de que ela tem um corpo, e que esse corpo tem peso, esse corpo tem equilíbrio... Então, a gente dava mais uma consciência mesmo no início e depois, então, é que começava com as técnicas mais exigentes de rotação, de salto... (MARTINS, 2010).

Marilene recusou a referência a padrões corporais específicos, contemplando a diferença no

que diz respeito à corporalidade. Com essa abordagem, o Trans-Forma acolheu outras

pessoas, além do público comum às escolas de dança, como relata a dançarina e professora,

Juliana Braga:

Todo tipo de gente fazia aula. [...] eu tinha aulas de ter metade homem, metade mulher, homens de todas as partes que você falava, “gente, meu Deus, mas o moço resolveu mesmo vir aqui dançar?” Ia. Porque o Trans-Forma dava essa abertura. Então tinha pessoa que chegava lá de moto, capacete; outro que vinha lá não sei da

127 MANUSCRITO: Estatuto Interno do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Belo Horizonte: 1981?. 7 f. Acervo de Marilene Martins.

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onde; outro que era professor de psicologia não sei aonde. Todo tipo de gente (BRAGA, 2001).

Dorinha Baêta também ressalta as características dos alunos do Trans-Forma:

Acho que isso, pra mim, é um marco do Trans-Forma, assim, não eram só pessoas que tinham um corpo fininho ou um corpo magrinho, que tinham uma medida X, que tinham um peso X, mas pessoas de áreas diversas, pessoas que vinham do teatro, que, que eram estudantes, pessoas mais velhas, né, que tinham as turmas da, tinham algumas que até brincavam, que pediam até para eu chamá-las de vovó, né, que estavam querendo dançar também. Então, o Trans-Forma foi, assim, uma abertura desde as crianças até a terceira idade, então não tinha uma seleção, assim, “você pode, você não pode” [...] (BAÊTA, 2001).

Desse modo, as ideias de Marilene alinham-se ao campo da educação somática, como discute

Fortin (2011), para quem o exercício somático possibilita descartar modelos a serem seguidos

e assumir o movimento a partir das individualidades corporais. A partir de Salles (2014), que

propõe observar as tendências no movimento do sujeito criador, identificamos a ênfase das

práticas somáticas na tecitura do Trans-Forma. Ao valorizar o indivíduo e suas

especificidades, Marilene configurou um espaço que contemplou a diferença, o que também

foi fundamental em sua proposta, como destaca Alvarenga (2002, p. 199):

O que considero importante ressaltar é que, no discurso de Marilene, o que esta faz, essencialmente, é propor a diferença. Se essa diferença se choca com outras propostas estéticas, não é algo que busque uma desqualificação destas, ao contrário, é apenas um olhar diferente sobre as múltiplas possibilidades do corpo expressivo e diverso nas suas particularidades; dilata-se a visão daqueles que, mesmo anteriormente formado por outras técnicas, ao contactarem com seu trabalho percebem nele a amplitude de seu diálogo e a organicidade presente numa filosofia que, mesmo apoiando-se em claros princípios de base, não se descuidava do como adequá-los ao indivíduo que a eles se dispunham, se disponibilizavam.

Além de favorecer a diversidade corporal, no trabalho de Marilene a consciência de si esteve

relacionada à consciência sócio-cultural. Como a artista escreveu, sua proposta de dança teve

“[...] um único e fundamental objetivo – o autoconhecimento, nossa identidade cultural”128.

Desse modo, novamente relacionamos a perspectiva de Martins ao pensamento de Fortin

(2011), para quem o exercício somático não se limita à percepção de si, mas, a partir dele,

abrange a percepção de mundo. No caso de Martins, observou-se a percepção de si e do

mundo e um posicionamento em relação a esse mundo, por meio de uma concepção de dança.

128 MANUSCRITO: Discurso Prêmio de Cidadã Honorária. Redigido por Marilene Martins em 1992. Acervo de Marilene Martins.

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3.1.1 Percursos formativos

A partir dessas ideias, Martins fundou sua escola, estruturando um percurso de formação em

dança composto pelo Curso Básico e pelo Curso Profissional de Dança Moderna. O Curso

Básico de Dança Moderna, com duração de cinco anos, foi criado por Marilene Martins e

ministrado integralmente por artistas-professores formados no Trans-Forma. Sua proposta é

descrita em material de divulgação da escola: “1. Curso de Dança Moderna Técnicas de Ballet

Clássico, Jazz, Afro-Brasileiro, Expressão Corporal, ‘Belly Dance’, Rítmica, etc., além do

Moderno” (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1976?).

Ressaltamos, na proposta de Martins, a interação com diferentes perpectivas de dança,

configurando uma tecitura que ultrapassou as delimitações da dança moderna. A escola

também ofereceu o Curso Profissional de Dança Moderna, com duração de três anos, para

“[...] alunos adiantados que já tenham domínio do corpo e de todos os estágios anteriores”

(TRANS-FORMA CENTRO DE DANÇA CONTEMPORÂNEA, 1981?). Nesse curso

também foi possível reconhecer o caráter diverso da abordagem, já que era ministrado por

diferentes professores de reconhecimento nacional e internacional convidados por Marilene.

Além deles, artistas-professores formados no Trans-Forma, como Dorinha Baêta, Dudude e

Lydia Del Picchia, além da própria Marilene, atuaram nesse curso. O depoimento de Dudude

permite compreender o caráter autoral da atuação do professor do Curso Profissional. Quando

começou a dar essas aulas, Marilene orientou-a, dizendo: “Olha, agora você pode seguir

você” (DUDUDE, 2010). A escola ofereceu outros cursos regulares tendo como referência o

Curso Básico de Dança Moderna, como, por exemplo, o curso de Dança Livre, dedicado a

adultos que não tinham o interesse de fazer um percurso formativo em dança. Arnaldo

Alvarenga, que foi professor dessas turmas, comenta sobre o caráter das aulas:

[...] o conteúdo era o conteúdo da escola, só que de uma forma mais light. [...] Porque não havia uma rigidez dentro do Curso Livre, rigidez no sentido de um programa. O Curso Livre era mais leve. Então, por isso, ela adaptou o que o Trans-Forma tinha, o que a escola tinha para ele (ALVARENGA, 2010).

Também foram oferecidos os cursos Baby e Infantil, para crianças129 dos 3 aos 11 anos de

idade, com referência na dança moderna e de acordo com o pensamento da escola. As ideias

129 Embora não tenha integrado o dossiê dessa pesquisa, cabe mencionar que um dos cadernos da artista-professora Mônica Rodrigues disponibilizado para este estudo apresentou registros do curso de Dança para Crianças, oferecido no Trans-Forma. As anotações reúnem textos que fundamentaram a proposta desse curso e conteúdos de forma detalhada, como brincadeiras, exercícios de rítmica, improvisação e consciência do corpo. Nessas anotações foram identificados exercícios correspondentes ao CBDM, adaptados ao contexto do público

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de Marilene são explicitadas nas orientações dadas no material de divulgação intitulado Sua

criança agora pode dançar com liberdade: “[...] a criança não precisa de nenhuma roupa

especial, podendo ir às aulas com uma malha simples ou qualquer roupa com a qual ela se

sinta melhor”130. Nesse mesmo material, a escola apresenta a justificativa para tal orientação:

Criança é um ser livre e portanto deve ser tratado como tal. Não podemos reprimi-la, obrigando-a a usar determinada roupa ou postura que ao invés de auxiliar no processo de aprendizagem, irá colocá-la rígida e indisposta com a Dança, que é por princípio uma arte de libertação do corpo.131

Além dos cursos regulares oferecidos em sua escola, Marilene se dedicou à criação de um

ambiente favorável a novos pensamentos acerca do fazer artístico e da aprendizagem em

dança. Nesse sentido, a diretora investiu no trânsito permanente de artistas convidados,

favorecendo o diálogo entre diferentes modos de fazer, o acesso a abordagens distintas de

dança, e ainda, de outras artes. Marilene buscou o diálogo, como Dudude relata:

Ela tinha curiosidade por convidar pessoas. O Denilto Gomes, que foi meu grande amigo, eu conheci no Trans-Forma. A Carmen Paternostro, o Klauss e a Angel, conheci eles via Nena, a Graciela Figueroa, via Nena. Ela trazia as pessoas... Lourdes Bastos... (MARTINS, 2010).

Conforme Marilene, os alunos também sugeriam nomes para a realização de cursos extras na

escola: “Eu perguntava prá eles também sobre o que eles queriam, o que eles se interessariam

mais em estudar e contratava os professores” (MARTINS, 2010). Os artistas convidados

podiam tanto ministrar aulas extras como cursos de curta duração, ou até permanecerem por

um período mais longo, como relata Lydia Del Picchia:

[...] Traz a Graciela, vem morar aqui, traz o Freddy, traz o Ivaldo, pessoas que ela achava que eram importantes prá mostrar caminho. Não é vem dar uma oficina, vem ficar aqui uma semana, é vem morar aqui dois anos. E eu acho que Belo Horizonte se aproveitou muito, no bom sentido. O Denilto Gomes que fazia um trabalho lindo com Laban, o Jairo Sette com outra linha de trabalho, ela buscava sempre estar puxando gente prá lá (PICCHIA, 2010).

infantil. Os registros apresentaram, ainda, alguns recursos didáticos utilizados, como imagens, poemas, cantigas, jogos, rimas e temas variados para estimular o movimento, os exercícios de improvisação e de dramatização e para o trabalho rítmico. As descrições encontradas indicam os componentes dos exercícios e o modo de realizá-los. 130 MANUSCRITO: Sua criança agora pode dançar com liberdade. Redigido por Marilene Martins entre 1972 e 1982. Acervo de Marilene Martins. 131 MANUSCRITO: Sua criança agora pode dançar com liberdade. Redigido por Marilene Martins entre 1972 e 1982. Acervo de Marilene Martins.

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Havia um investimento pessoal de Marilene Martins, como mostra o comentário de Arnaldo

Alvarenga: “Tinha um ano, no 6º. Ano, era uma pessoa convidada. Ela morava aqui, no

apartamento da Nena. E nisso veio Carmen Paternostro, Graciela Figueroa, o próprio Jairo

Sette, mil nomes... Jean Marie Dubrul” (ALVARENGA, 2010). Com essa dinâmica, Marilene

buscou ampliar a experiência de alunos, dançarinos e professores, como exposto no Estatuto

do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Dentre as metas estabelecidas, consta:

“Além dos cursos normais, promover cursos extras com professores convidados, para que o

aluno entre em contato com outras técnicas de trabalho de corpo e outras áreas”132.

No período de 1971 a 1985, além dos vínculos mantidos com Angel, Klauss Vianna, e com

Rolf Gelewski, o Trans-Forma recebeu com regularidade vários artistas, criando

oportunidades de conhecimento e experimentação. Marilene também buscou ampliar os

referenciais artísticos da escola por meio da participação em cursos fora do Trans-Forma.

Ressalta-se uma temporada, no ano de 1974, em que a artista realizou estudos na Europa e nos

Estados Unidos, em companhia de Klauss e Angel Vianna. O levantamento dos cursos com

artistas convidados no Trans-Forma e também aqueles realizados por Marilene, fora da

escola, tornou possível observar as interações que constituíram um meio de convivência na

escola. Foram observadas diferentes propostas de dança, além da dança moderna, bem como

práticas de consciência corporal, improvisação e rítmica. Esse ambiente demonstrou a atitude

pós-moderna da artista, já que caracterizada pela pluralidade relacionada às corporalidades e

aos modos de fazer, como discutido por Banes (1987) e Silva (2005). Com relação aos artistas

e abordagens, reuniram-se brasileiros e também dançarinos, professores e coreógrafos

originários da América Latina, da Europa e dos Estados Unidos. Esse panorama reforça a

relevância da diversidade na tecitura do trabalho desenvolvido por Marilene Martins.

3.1.2 Espetáculos didáticos

Marilene trabalhou para além dos limites da escola para favorecer o acesso a novos modos de

fazer dança na cidade de Belo Horizonte. Com esse objetivo, a diretora realizou os

espetáculos denominados “didáticos”, cujos programas impressos traziam explicações sobre

os conteúdos artísticos abordados. No Regulamento Interno da escola consta: “Os espetáculos

132 MANUSCRITO: Estatuto Interno do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Belo Horizonte, [entre 1971 e 1981]. 7 f. Acervo de Marilene Martins.

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da Escola serão, em sua maior parte, didáticos”133. Foram identificados trabalhos com esse

caráter em espetáculos como O Espetáculo, de 1975, Toda dança é a mesma dança, de 1977,

e Concerto Barroco, realizado em comemoração ao aniversário de dez anos do Trans-Forma,

no ano de 1979. Essas apresentações levavam ao público o trabalho desenvolvido em sala de

aula. Como divulgado em matéria de jornal, aquela era uma oportunidade para conhecer uma

modalidade de dança ainda nova na capital mineira:

Com o objetivo de mostrar o que se aprende em uma escola de dança moderna, o Teatro Francisco Nunes está apresentando até domingo um show de balé com a Escola de Dança Moderna Marilene Martins. As danças apresentadas neste espetáculo mostram coreografias diversas dos alunos da escola, destacando-se danças de postura, de transferência de peso, braços e pernas, além da parte rítmica (BALÉ MODERNO, 1975).

No programa de O Espetáculo, de 1975, consta texto curto que explica a proposta, o que

também demonstra o interesse da escola no compartilhamento não apenas estético, em um

espetáculo de final de ano, mas, sobretudo, didático, de forma a envolver o processo de

trabalho e explicitar modos de fazer dança:

Este é um espetáculo didático. Se limitará a mostrar o trabalho desenvolvido durante as aulas do curso de Dança Moderna, em seus diversos períodos. Não procuramos fazer experiências coreográficas ou trabalhos de vanguarda. Nos limitaremos à consciência do corpo, sua auto-descoberta, sua posse, sua libertação (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1975).

O que caracterizou esse tipo de espetáculo foi o fato de ser composto pelo que Marilene

denominou “arranjo coreográfico”, que a artista-professora distingue de “coreografia”. No

programa do espetáculo Toda dança é a mesma dança, de 1977, a diretora explica a diferença

entre as propostas relativas a esses dois termos:

Os “arranjos coreográficos” desenvolvem um trabalho didático, mostrando as diversas formas de evolução de uma técnica para a dança: trabalhos de chão, rítmica, saltos, giros, improvisação, etc. As “coreografias” desenvolvem uma idéia (sic), sem qualquer preocupação didática (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1977).

Em manuscrito de Marilene Martins sobre arranjo coreográfico consta também: “São

sequências didáticas de movimento, relacionadas ao trabalho corporal. Você ‘doura a pílula’

133 MANUSCRITO: Regulamento Interno da Escola de Dança Moderna Marilene Martins. Belo Horizonte, [entre 1971 e 1981]. Acervo de Marilene Martins.

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para ficar mais agradável, mas sem tirar a consciência do movimento”134. Nesse caso, os

materiais trabalhados em sala de aula eram organizados para favorecer a apreciação. Os

arranjos coreográficos que compuseram o espetáculo de 1977 apresentaram vários conteúdos

trabalhados durante o ano. Em Cotidiano, uma turma de 2º Ano da escola desenvolveu a

seguinte proposta, como consta do programa impresso:

[...] trabalho enfatizando a improvisação [...] música: “Côco Praieiro” autores: Marcus Accioly e Cussy de Almeida arranjo coreográfico: Marilene Martins, tendo como assistente Maria de Lourdes Arruda Tavares [Dudude] introdução sem música: trabalho de Graciela Figueroa/Hugo Rodas (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1975).

Nessa mesma apresentação, uma turma de 3º Ano apresentou conteúdo específico desse nível

do curso:

ABOIO – trabalho enfatizando a soltura do corpo Música: “Aboio” Autor: Cussy de Almeida/Orq. Armorial Arranjo coreográfico: Marilene Martins, tendo como assistente Maria de Lourdes Arruda Tavares [Dudude] (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1975).

E, ainda, a turma do 4º Ano apresentou:

SEM LEI NEM REI – trabalho enfatizando saltos e passagens pelo chão música: “Sem lei nem rei” – III (Repente Armorial) autor: Capiba Arranjo coreográfico: Marilene Martins, tendo como assistente Maria de Lourdes Arruda Tavares (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1975).

A opção pelo arranjo coreográfico tinha o propósito de tornar possível o acesso a expressões e

a diferentes níveis de elaboração do movimento, de forma a mostrar a dimensão artística

daquela proposta de dança. Lydia Del Picchia comenta, sob o ponto de vista de aluna, o

significado desse tipo de trabalho em sua formação:

Eu me lembro do primeiro festival que eu fiz, no Chico Nunes135, 1º Ano, né? Era uma coisa tão didática, no sentido de que a gente sabia exatamente o lugar que a gente tava na escola, com muito prazer de dançar, de estar ali em cena. Mas, eram

134 MANUSCRITO: O que é um arranjo coreográfico. Redigido por Marilene Martins entre 1971 e 1986. Acervo de Marilene Martins. 135 Teatro Francisco Nunes, localizado em Belo Horizonte/MG.

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coisas tão simples e tão ligadas àquilo que a gente tava desenvolvendo como técnica. [...] é assim a técnica pura, sabe, quando você vê as sequências? [...] Era lindo, eu adorava fazer! Mas, era técnica (PICCHIA, 2010).

Para Dudude, na perspectiva de uma jovem artista-professora, o fato de o arranjo coreográfico

abranger o conteúdo abordado em aula servia como orientação pedagógica e favorecia o

desenvolvimento do trabalho:

Nos festivais da escola, por exemplo, a gente montava as coreografias, mas tinha um senso de cuidado, de pedagogia. Então, o 1º Ano vai trabalhar o apoio, a base, a postura; o 2º Ano vai trabalhar os braços... Porque a gente cada ano tinha uma prioridade... 3º Ano, pernas; 4º Ano, quedas; 5º Ano, Martha Graham, contração (DUDUDE, 2010).

Nos relatos de Lydia Del Picchia e de Dudude percebe-se a importância dos espetáculos

didáticos tanto para a dançarina como para a artista-professora. Essas apresentações davam

continuidade ao trabalho realizado em sala de aula e, ao mesmo tempo, cultivavam uma noção

de apreciação de dança pautada na dinâmica processual. Desse modo, observamos na tecitura

do Trans-Forma a inserção de modos de fazer relativos ao pensamento pós-moderno de dança,

que deslocou o fazer artístico de seu espaço tradicional e tornou relevante o compartilhamento

do processo.

3.1.3 Espaço para ler dança

O investimento de Marilene para ampliar e possibilitar o acesso a novos conhecimentos na

área de Dança se efetivou também por meio da montagem de uma biblioteca na escola, cujo

acervo envolveu títulos relacionados à dança e também a outras artes e áreas de

conhecimento. Com essa ação, compreendemos que Marilene chama atenção também para o

fato que a prática de dança está inserida em um contexto mais amplo, além de relacionada a

outros modos de lidar com o conhecimento. A existência de uma biblioteca no Trans-Forma

atraiu Lúcia Ferreira, que conta sobre a bibliografia disponível:

E o fato de ter uma biblioteca ali foi muito bacana! O fato de ser uma escola com uma biblioteca, eu já achei um diferencial. E não tinha livro só sobre dança. Tinha livro sobre jogos teatrais... Eu lembro que aquele livro do Boal, dos jogos, mil... não lembro quantos jogos teatrais. Eu lembro que foi a primeira vez que eu tive contato com aquele livro. Tinha livro sobre improvisação, sobre técnica teatral... (FERREIRA, 2007).

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Dudude também comenta sobre a importância de poder contar com uma biblioteca em seu

processo de formação, pelo acesso a “[...] bibliografias estrangeiras fundamentais para formar

coreógrafos e não meros repetidores gestuais” (DUDUDE, 2010). Aberta à comunidade do

Trans-Forma, a biblioteca possibilitava leitura e empréstimo, como determinado: “A

biblioteca da Escola será aberta para alunos e professores. Todo o material deverá ter o

carimbo da Escola e ao ser emprestado será registrado em livro próprio”136. A montagem

desse espaço também foi compartilhada, como mostra o questionário usado para realizar uma

pesquisa sobre a escola com os alunos:

Ano que vem vamos montar uma biblioteca aqui na escola. Enumeramos abaixo alguns dos livros e apostilas que vão fazer parte dela: - Dança – Ballet clássico, dança contemporânea, expressão corporal (livros e apostilas) - Trabalho de Corpo: Gerda Alexander, Thérèse Bertherat, Moshe Feldenkrais, Reich, Dr. José Ângelo Gaiarsa, Pierre Weil, Yoga - Teatro: Grotowski, Stanislavsky, Augusto Boal - História da Arte: Enciclopédia “Conhecer” Se quiser sugerir algum livro ou tiver algum que queira trocar ou vender, estamos dispostos a conhecer coisas novas. Participe lendo, estudando, construindo!137

Além dos títulos138 relativos à área de dança, a presença de livros relativos a outras artes é

coerente com o aspecto dialógico que caracterizou a prática de dança no Trans-Forma.

Ressalta-se, ainda, o caráter colaborativo da iniciativa, para a qual os alunos foram

convidados a contribuir com sugestões, o que também diz da relação entre professor e aluno

na escola de Marilene. Compreendemos que o movimento em rede, caracterizado pela não

hierarquização nas relações, não somente foi importante para a construção epistemológica da

abordagem artístico-pedagógica de Marilene. Essas ideias foram observadas na perspectiva do

aluno, considerado também como sujeito do conhecimento atuante tanto na criação do

trabalho em sala de aula, como visto nos espetáculos didáticos, como na construção do espaço

de convívio.

136 MANUSCRITO: Regulamento Interno da Escola de Dança Moderna Marilene Martins. Belo Horizonte, [entre 1971 e 1981]. Acervo de Marilene Martins. 137 MANUSCRITO: Questionário para os alunos da Escola de Dança Moderna Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins entre 1971 e 1981. Acervo de Marilene Martins. 138 Nesta pesquisa buscamos no acervo de Marilene Martins títulos que fizeram parte da biblioteca do Tran-Forma. Além do material já citado, foram conferidos os seguintes: Enciclopédia Mirador Internacional, Coleção O Mundo da Arte e a Coleção Arte nos Séculos, todas completas. Foram encontrados também dois atlas e seis títulos relativos ao campo da anatomia humana, além de um livro sobre bioenergética.

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3.1.4 Grupo Trans-Forma

Paralelamente à fundação da escola, em 1971, foi criado o Trans-Forma Grupo Experimental

de Dança, cujo trabalho acompanhou a perspectiva pedagógica de Marilene com relação à

experimentação, ao diálogo com diferentes artistas e à participação dos dançarinos na criação.

Ao observar que foi comum ao artista formado no Trans-Forma atuar como professor e como

dançarino, considerou-se a relevância do histórico do Grupo, marcado por experimentalismo,

atrevimento, ousadia, como registrado em jornais da época, para contextualizar o artista-

professor. Conforme Dudude lembra: “[...] ela [Marilene Martins] fazia questão de falar que

era experimental” (DUDUDE, 2010). Na ocasião de uma apresentação do Grupo no 6º

Festival de Inverno da UFMG, no ano de 1972, o texto explicativo sobre o processo

coreográfico publicado no Boletim informativo do evento demonstra o interesse de Marilene

por uma abordagem experimental de dança:

Um trabalho de criação coletiva. Laboratório de dança, onde as danças apresentadas são definidas da seguinte maneira: os alunos fazem exercícios de improvisação; do exercício, recolhe-se material para a coreografia; dá-se, então, uma FORMA e DIREÇÃO ao trabalho, de acordo com o material sonoro e visual para a apresentação do espetáculo final. Trata-se, portanto, de trabalhos experimentais (GRUPO DE DANÇA MODERNA, 1972).

No programa de uma apresentação realizada em 1975, em evento da Prefeitura Municipal de

Belo Horizonte para comemorar o aniversário da cidade, o Grupo se apresentou com o

seguinte texto:

Somos um grupo de vanguarda. Nosso objetivo é divulgar a Dança Moderna. Procuramos a liberdade total do corpo, do gesto, do movimento, da coreografia. A nossa liberdade. Nossa dança é essencialmente moderna. Não é “ballet”, nem folclore. Nossa dança é primitiva, livre, solta, espontânea, viril, ousada. Não somos apoteóticos, nem acrobatas. Partimos do simples para o complexo. Procuramos a liberdade de espírito e o encontro humano. Usamos a nossa energia, a nossa força, a nossa vibração. E dançamos (TRANS-FORMA GRUPO EXPERIMENTAL DE DANÇA, 1975).

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No levantamento realizado nesta pesquisa, chamou a atenção o fato de dezesseis do total de

dezessete artistas-professores, identificados no intervalo entre os anos de 1973 a 1985, terem

sido dançarinos do Grupo Trans-Forma. Considerando os cinco artistas-professores abordados

nessa pesquisa – Arnaldo Alvarenga, Dorinha Baêta, Dudude, Lúcia Ferreira e Mônica

Rodrigues139 –, além de Lydia Del Picchia, que cedeu seu depoimento oral, com exceção de

Mônica Rodrigues, que integrou o grupo Oficina Trans-Forma, todos os outros integraram o

grupo profissional, como dançarinos. Alguns também atuaram como coreógrafos, ensaiadores

e na direção do Grupo, como foi o caso de Dudude, Lydia Del Picchia e Arnaldo Alvarenga.

Com uma trajetória marcada por diferentes formações, o Grupo Trans-Forma se apresentou

pela primeira vez em 1971. Dudude integrou a primeira geração de dançarinos e participou do

espetáculo140 de estreia, cujo programa contava com coreografias construídas por meio de

criação coletiva, divulgando novos modos de fazer que modificavam os papéis de coreógrafo

e de dançarino. A partir de Silva (2005), observamos que a participação do dançarino no

processo de criação coreográfica evidencia um deslocamento do Trans-Forma em relação a

parâmetros modernos de dança, em que a figura do coreógrafo ainda se mantém

centralizadora. O programa do espetáculo foi composto por coreografias, como Polymorphia,

descrita brevemente por Marilene:

[...] os bailarinos seguravam enormes elásticos brancos através dos pés e mãos. Sua vestimenta era toda preta, da cabeça aos pés de forma que quando a luz negra começava a funcionar não se via mais os bailarinos, mas só a movimentação dos elásticos brancos sobre o palco.141

139 Embora aprovada para integrar o grupo profissional, Mônica Rodrigues decidiu por permanecer no grupo Oficina Trans-Forma em virtude de compromissos relacionados a estudo (Informação verbal). Segundo consta em documento curricular de Marilene Martins, o Grupo Oficina surgiu de uma divisão do Grupo Trans-Forma, realizada para ampliar as oportunidades de formação de dançarinos e coreógrafos. (MANUSCRITO: Curriculum Vitae de Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins em 1982?. 172 f. Acervo de Marilene Martins) 140 Esse espetáculo contou com composições de Marilene Martins, como Suite de Bach, Prelúdio de uma menina só e Rhythmetron, e outras, como Polymorphia e Square Dance, criados de forma coletiva, sob direção do músico e artista plástico José Adolfo Moura (Programa de espetáculo. Acervo de Marilene Martins, 1971). 141 MANUSCRITO: Grupo Trans-Forma. Redigido por Marilene Martins entre 1988 e 2012. Acervo de Marilene Martins.

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Figura 2 - Coreografia Polimorphia

Fonte: Acervo de Marilene Martins (1971)

Sobre Polimorphia, em entrevista à pesquisadora Glória Reis, o cenógrafo e figurinista Raul

Belém Machado ressalta as inovações relativas ao uso do espaço cênico e à iluminação

(MACHADO, 2005). Nesse mesmo espetáculo foi apresentada a obra Rhythmetron.

Figura 3- Coreografia Rithmetron

Fonte: Acervo de Marilene Martins (1971)

Sobre essa coreografia, Reis (2005, p. 105) comenta:

[...] foi uma importante inovação para a cena artística de Belo Horizonte. A coreografia de Marilene Martisn utilizava uma técnica até então pouco conhecida e construía e desconstruía figuras que lembravam pinturas de Mondrian. [...] O

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figurino completamente diferente do que se usava em dança até então em Belo Horizonte, reforçava e destacava a plasticidade da movimentação.

O caráter experimental e inovador foi a tônica da trajetória do Grupo Trans-Froma. O

próximo espetáculo, em 1974, do qual participaram as artistas-professoras Dudude e Dorinha

Baêta, apresentou o trabalho Missa Breve142, coreografado por Marilene Martins, que também

atuou como dançarina. Além desse, foram apresentados trabalhos de coreógrafos convidados,

uma prática que se repetiu em outras ocasiões, reiterando a tendência dialógica observada na

escola. Além de Marilene Martins, o argentino Oscar Arraiz, Lourdes Bastos143, Ivaldo

Bertazzo e Rodrigo Pederneiras144, que na época era dançarino do Grupo, assinaram

coreografias para um programa que salientou “[...] o sentido da diversidade, tanto temática e

estética quanto musical, que a dança do Trans-Forma propunha para a cidade de Belo

Horizonte” (REIS, 2005, p. 108-109).

Os dois espetáculos que se seguiram também contaram com artistas convidados. Em 1976,

Graciela Figueiroa dirigiu e coreografou Bola na área, cujo processo envolveu a criação

coletiva dos dançarinos. Desse trabalho, que estreou em 1977, participaram as artistas-

professoras Marilene Martins, Dudude, Dorinha Baêta, além de Lydia Del Picchia, que passou

a integrar o Grupo. Segundo registros de Martins, esse foi um trabalho que propôs “unir o

erudito ao popular” e que “[...] inspirou-se no samba e no futebol para a criação dos seus

movimentos”145. Em 1978, com direção teatral de Eid Ribeiro146 e coreografia de Angel

Vianna e dos dançarinos do Grupo, o Trans-Forma estreou Terreno Baldio147, cujo processo

envolveu a articulação entre a dança, o circo e o teatro. Participaram desse espetáculo as

artistas-professoras Dudude, Lydia Del Picchia e Marilene Martins, que assinou a direção

artística da obra. Nos registros da artista, consta sobre a abordagem desse espetáculo, em que

142 Sobre a coreografia Missa Breve, ver Alvarenga (2002), que faz uma abordagem minuciosa da obra. 143 Lourdes Bastos (Rio de Janeiro, Brasil, 1927). Dançarina, coreógrafa e professora de dança. Estudou com Helenita de Sá Earp, na ENEFD (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017i). 144 Rodrigo Pederneiras (Belo Horizonte, Brasil, 1955). Realizou formação em dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea e foi dançarino do Grupo Trans-Forma. Conforme Reis (2005), a obra Duo, criada no Trans-Forma, foi a primeira coreografia de Rodrigo Pederneiras, feita a partir do convite de Marilene Martins. É um dos fundadores e o coreógrafo do Grupo Corpo (BH/MG). 145 MANUSCRITO: Grupo Trans-Forma. Redigido por Marilene Martins entre 1988 e 2012. Acervo de Marilene Martins. 146 Eid Ribeiro (Minas Gerais, Brasil, 1943). Diretor de teatro, autor, ator e roteirista (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017d). 147 O espetáculo Terreno Baldio recebeu o primeiro prêmio no III Concurso Nacional de Dança Contemporânea, realizado na cidade de Salvador, em 1979 (MANUSCRITO: Curriculum Vitae de Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins em 1982?. 172 f. Acervo de Marilene Martins). Conforme Ruiz (2013, p. 82), o Concurso Nacional de Dança Contemporânea era “[...] na época o mais importante evento de dança realizado no Brasil”.

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se buscou democratizar e popularizar a dança. Esse foi mais um aspecto identificado no

trabalho do Trans-Forma. Interessada em ampliar o acesso a um público diversificado,

Marilene participou de projetos com esse caráter e, ao término deles, buscou alternativas,

como consta em matéria de jornal, que traz as palavras da artista:

A nossa cidade é a terceira do Brasil em população e o público que freqüenta seus teatros nunca chega a dez mil pessoas por peça [...]. Isso nos foi esclarecido através da Campanha “Arte em seu Bairro” da “Feira do Lazer” e outros movimentos dos quais participamos, mas cujo contrato foi cortado [...]. Resolvemos, então, partir sozinhos à procura do povo, oferecendo-lhe o espetáculo realizado este ano pela nossa escola, a um preço quase simbólico: cinco cruzeiros apenas para aqueles que recebem mensalmente até um salário mínimo. Os de melhor poder aquisitivo pagarão Cr$ 20,00. Saímos também dos teatros para ambientes mais abertos, onde o povo possa se sentir mais à vontade. Os ginásios de esporte têm nos parecido bastante satisfatórios [...] (A DANÇA..., 1977).

Para Marilene, Terreno Baldio e o próximo espetáculo do Grupo, Kuadê – Juruna mata o sol,

de 1980, foram os trabalhos que mais exploraram aspectos da cultura brasileira, como gestos,

movimentos e temática, caros na sua perspectiva de dança148. Com concepção e direção do

artista José Adolfo Moura, Kuadê abordou lenda e ritos indígenas e a relação de simplicidade

do índio com a natureza, buscando refletir sobre a relação do homem com o meio ambiente.

Nessa montagem, participaram como dançarinas, além de Marilene Martins, as artistas-

professoras Dorinha Baêta, Dudude e Lydia Del Picchia. Novamente, os dançarinos

trabalharam por meio de improvisações e criação de movimentos e instrumentos musicais

utilizados em cena, em uma obra considerada por Alvarenga (2002) como a mais despojada

do Grupo.

148 MANUSCRITO: Grupo Trans-Forma. Redigido por Marilene Martins entre 1988 e 2012. Acervo de Marilene Martins.

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Figura 4 - Espetáculo Kuadê - Juruna mata o sol

Fonte: Acervo de Marilene Martins (1980)

Para o crítico Luiz Carlos Bernardes, o espetáculo demonstrava a proposta arrojada do Trans-

Forma e estava “inserido numa leva de espetáculos que antecipam o novo momento sócio-

cultural do país” (QUANDO A DANÇA..., 1980). A partir de Bernardes, é possível

compreender o significado de Kuadê – Juruna mata o sol em um momento político que

acenava para uma fase de democratização no país, após a Lei da Anistia, promulgada em

1979. Assim escreve Bernardes:

O grupo procura situar-se na nova estética da dança, que tenta desburocratizá-la do academicismo do clássico pelo clássico, ao mesmo tempo em que se tenta explorar novos espaços para a dança, que surgem naturalmente com a nova postura, com a soltura, a criatividade. [...] Os jovens dançarinos não são impertigados ou dóceis cisnes, emoldurando algum vítreo lago. Suam, criam, cheiram, viram bicho, são gente a fazer esse alegre ritual da dança desritualizando-se da ditadura dos músculos tensos, principalmente os faciais. [...] Juruna , sem ser alienado – ao contrário, tanto questiona a própria dança, como estruturas sócio-políticas – se abre à criatividade do intérprete e não recorre ao maniqueísmo a que o autoritarismo condenou a arte brasileira (QUANDO A DANÇA..., 1980).

Em Escolha seu sonho, que estreou em 1982, novamente o Trans-Forma chama a atenção por

apresentar um espetáculo “atrevido e ousado” (MURICY, 1981, s/p). Para assinar a direção e

a coreografia, Marilene convidou Dudude, que fez, assim, seu primeiro trabalho profissional

como coreógrafa. Desse espetáculo, além da artista-professora Dudude, fez parte Lydia Del

Picchia.

Os dois últimos espetáculos do Grupo Trans-Forma, agora dirigido por Arnaldo Alvarenga,

deram continuidade ao experimentalismo artístico, contemplando uma articulação entre a

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dança e o teatro. Em 1984, o Trans-Forma estreou Casa da Infância, concebido inicialmente

por José Adolfo Moura, com direção, roteiro e coreografia da paulista Mara Borba e

orientação teatral de Carlos Rocha149. Nesse espetáculo, atuaram como dançarinos os artistas-

professores Lydia Del Picchia, Lúcia Ferreira e Arnaldo Alvarenga. No programa do

espetáculo, o texto assinado pelos dançarinos reafirma a proposta experimental do Grupo e a

autonomia de seus integrantes:

Nós, os elementos do “Trans-Forma – Grupo Experimental de Dança” viemos trabalhando, desde o início do ano, em pesquisas e laboratórios para a realização deste espetáculo. Buscamos manter-nos abertos para aprender e aprendendo, recriar. “A Casa da Infância” como a maioria dos trabalhos anteriores, nos trouxe a liberdade de interferir na criação dos movimentos, propostas, símbolos, idéias (sic). Tudo nos era comunicado de forma aberta e solicitada nossa participação. Isto nos pareceu fundamental, pois ao nos colocarmos ativamente no processo de criação, sentimos fortificar as relações entre nós e o trabalho se torna sempre a expressão do coletivo (GRUPO TRANS-FORMA, 1984).

Figura 5 - Espetáculo A Casa da Infância

Fonte: Acervo de Marilene Martins (1984)

Nesse espetáculo, o trabalho inovador do Grupo é ressaltado na crítica do jornalista Marcelo

Procópio:

[...] o Trans-Forma vai além da forma tradicional. Tem a ousadia de transformar as formas, de não ter medo do novo. Por isso se coloca bem além da maioria dos grupos mineiros (prá não dizer brasileiros). [...] É por isso também que choca à primeira vista a quem se contenta com o diluído, o linear (PROCÓPIO, 1984).

149 Carlos Rocha (Minas Gerais, Brasil, 1953). Diretor de teatro (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017e).

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Em 1986, o Trans-Forma estreou o espetáculo Vidros Moídos – Coração de Nélson150, com

roteiro e direção geral de Arnaldo Alvarenga, coreografia de Sônia Mota e orientação teatral

de Paulo César Bicalho151. Como dançarinos, estiveram os artistas-professores Arnaldo

Alvarenga e Lúcia Ferreira. Ressalta-se o caráter coletivo do Grupo, como encontrado no

depoimento de Arnaldo Alvarenga:

[...] ao longo desses dezessete anos aí, nunca caiu um coreógrafo de pára-quedas na escola. Isso era uma coisa muito interessante, porque era bem típico da época, que eram as decisões ditas coletivas. Com quem que a gente gostaria de trabalhar? Essa era a pergunta. O que é que nós gostaríamos de fazer? O que é que tinha mais a ver com a cara da gente? Com os processos que nós desenvolvíamos enquanto técnica de formação e os processos que nós nos envolvíamos enquanto criação (ALVARENGA, 2007).

No Trans-Forma, o grupo profissional envolveu os artistas-professores econfigurou-se como

mais um espaço para a experimentação e para a articulação entre modos diferentes de fazer

dança, e compôs o espaço de convivência da escola.

3.2 Corpo artístico-docente

No Trans-Forma, apenas dominar o fazer artístico não foi suficiente para tornar-se professor

de dança. Também não correspondeu ao contexto da escola a lógica de que o professor é o

artista mal-sucedido. De forma pioneira, não somente com relação a uma nova vertente

artística, Marilene Martins lançou um olhar diferenciado sobre a formação do professor de

dança, contemplando, de forma sistemática, além das questões artísticas, aspectos

pedagógicos. A composição de um corpo docente com artistas-professores formados no

Trans-Forma foi um valor importante, como destacado em folheto de divulgação: “A nossa

Escola oferece ao dançarino [...]: equipe de professores formados pela Escola (curso completo

de ‘Dança Moderna’, ‘Composição e Improvisação e Curso Didático’)” (ESCOLA DE

DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1978). Alvarenga (2002, p. 188) descreve

como se configurou o grupo de artistas-professores que atuaram no Trans-Forma:

150 O espetáculo Vidros Moídos – Coração de Nélson recebeu o Trófeu Inacen 1986 nas categorias Melhor Espetáculo de Dança, Melhor Bailarina, para Lúcia Ferreira, Melhor Bailarino e Melhor Texto ou Roteiro estreante, para Arnaldo Alvarenga. 151 Paulo César Bicalho (Minas Gerais, Brasil, 1939). Diretor de teatro, autor e professor (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017f).

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O corpo docente da escola formou-se gradativamente com os alunos mais adiantados que demonstravam interesse pelo ensino, os quais foram escolhidos e preparados por Marilene, em cursos por ela ministrados; o trabalho técnico desenvolvido era revisto pela ótica de uma didática específica para a dança moderna, sendo supervisora das aulas dos novos professores, a própria Marilene.

Ressalta-se a importância desses artistas-professores no processo de criação da proposta

artístico-pedagógica da escola, como se percebe nas palavras de Martins:

Os primeiros professores formados pela escola continuaram trabalhando lá mesmo. Revitalizaram o ensino e trouxeram nova energia ao grupo. Tornaram-se coreógrafos e excelentes profissionais: [...], Dudude Herrmann, Arnaldo Alvarenga, Lydia del Picchia, Maria Auxiliadora Baêta (a nossa Dorinha), Lúcia Ferreira [...].152

Observou-se que esses profissionais, a partir do processo de formação no Trans-Forma,

passaram a representá-lo e, junto com Marilene Martins, também assumiram uma perspectiva

de dança. Além de professores, atuaram como coreógrafos, ensaiadores, produtores, na

direção da escola e do grupo profissional, ou seja, essas pessoas não apenas deram aulas na

escola por um período, elas eram o Trans-Forma. Nesse sentido, compreendemos a construção

da proposta artístico-pedagógica dirigida por Marilene Martins como uma tecitura realizada

coletivamente.

3.2.1 Artista-professor e artista-dançarino

Marilene Martins deu atenção e investiu na formação do professor de dança, o que naquela

época significava olhar para uma atividade que ainda não havia se estabelecido

profissionalmente e que durante vários anos seguiu à margem de discussões e de práticas

sistematizadas. Dudude comenta: “Essa profissão não existia. Não existe hoje, não existia

naquela época nada.” (DUDUDE, 2010). Nos mais de quarenta anos que se seguiram após as

primeiras ações de Martins no Trans-Forma, essa temática foi aos poucos ocupando espaço,

sendo atualmente abordada no contexto brasileiro de dança, especialmente por pesquisadores

vinculados a cursos de graduação de Universidades do país153. Strazzacappa (2003) observa

uma mudança no panorama dessa arte a partir da década de 1990, quando começaram a surgir

várias graduações, nas habilitações de bacharelado e de licenciatura. Para a autora, essa

152 MANUSCRITO: Discurso Prêmio de Cidadã Honorária. Redigido por Marilene Martins entre 1986 e 2010. Acervo de Marilene Martins. 153 A formação do profissional de dança e, especificamente, do professor de dança, ocupa espaço nas discussões de autores, como Alvarenga (2016), Marques (2003, 2010), Navas (2005, 2010), Rocha (2010), Soter (2006), Strazzacappa (2003), Terra (2010), Wosniak (2010), entre outros.

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ocorrência, juntamente com mudanças na legislação da educação no Brasil, provocaram

mudanças na prática docente em dança. Considerando esse movimento, Strazzacappa (2003)

discute a existência de duas perspectivas principais de formação e atuação do professor de

dança. A primeira, em que a formação ocorre em cursos de licenciatura oferecidos em

universidades, cuja titulação permite a atuação na educação básica. E, a segunda, em que o

processo formativo segue a tradição de cursos livres em academias, oficinas e estúdios,

assegurando a continuidade do artista-professor nesse mesmo ambiente. Com relação a essa

segunda opção, Strazzacappa (2003, p. 189) problematiza o caráter dessa formação com base

na relação “mestre-discípulo”:

Nestes estabelecimentos, prevalece a característica da tradição oral. O professor realiza o movimento – o aluno imita o gesto. O professor orienta – o aluno faz. As escolas perpetuam essa metodologia de aprendizagem na qual há sempre um modelo para ser seguido ou obedecido. Os chamados “mestres” ensinam segundo a maneira como eles, por usa vez, foram ensinados.

A perspectiva de Marilene Martins no Trans-Forma, embora situada no âmbito de curso livre,

diferenciou-se das proposições questionadas por Strazzacappa. No Trans-Forma, não bastava

ser um aluno bem sucedido para ser professor, nem tampouco o processo de formação do

artista-professor se resumiu a fazer aulas de dança com aquele considerado “mestre”. Imbuída

de desenvolver um trabalho consistente para o ensino-aprendizagem de dança, Marilene

Martins criou o Curso de Didática, obrigatório para aqueles que iniciavam a prática artístico-

docente, como exposto no Estatuto Interno do Trans-Forma: “Os professores do ‘NÍVEL

BÁSICO INICIANTE’ devem comparecer a todas as aulas do ‘CURSO DE DIDÁTICA’,

uma vez por semana com duração de 3 hs semanais”154. O Estatuto também explica sobre a

dinâmica dessas aulas: “[...] O horário estipulado para as aulas de didática deverá ser

cumprido integralmente, evitando conversa desnecessária ou descanso durante este

horário”155.

Nas aulas de didática, Martins desenvolvia algumas ações, entre as quais o estudo das

sequências básicas de movimento, criadas por ela para estruturar o CBDM. Além disso, os

154 MANUSCRITO: Estatuto Interno do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Belo Horizonte: 1981?. 7 f. Acervo de Marilene Martins. 155 MANUSCRITO: Estatuto Interno do Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea. Belo Horizonte: 1981?. 7 f. Acervo de Marilene Martins.

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encontros eram dedicados ao registro em cadernos desse conteúdo específico de dança, como

relata Lydia Del Picchia:

A Nena criava essas sequências [...] E a gente tinha elas desenhadas no caderno. Quando você fazia essa aula de preparação, ela chamava de aulas de didática. Quando você fazia as aulas de didática com a Nena, a gente ia passando sequência por sequência, escrevendo, anotando a sequência no caderno e desenhando os bonequinhos. Então, era uma coisa assim que não tinha dúvidas (PICCHIA, 2010).

A sequência do 2º Ano do Curso Básico de Dança Moderna exemplifica o tipo de escritura

mencionada por Lydia:

Figura 6 – Escritura do Trans-Forma

Fonte: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Arnaldo Alvarenga também descreve sobre a abordagem das sequências e as anotações

relativas a elas: “Era ditado! Era ditado, parte a parte! Nós escrevíamos à mão e com

comentário. E com desenhos. [...] Ela primeiro demonstrava, fazia o exercício inteiro prá você

ver, depois ela ditava o exercício, parte a parte, etapa por etapa, oito por oito”

(ALVARENGA, 2010). Marilene explica a abordagem das aulas:

No início eu passava o trabalho prá eles, porque eles não tinham esse conhecimento ainda. Mas, eu passava em forma de uma aula. Eu dava uma aula prá eles, prá os professores e explicava direitinho o que é que a gente queria conseguir, qual era o caminho prá chegar a conseguir aquilo Mas, não era uma coisa, assim, de ter uma técnica já preparada prá dar. Era uma coisa mais de conhecimento corporal mesmo. Essas sequências formaram o meu trabalho mesmo pensando na conscientização do movimento. Eu fiz um estudo baseado na conscientização do movimento, na percepção corporal (MARTINS, 2010).

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Na explicação de Marilene, é possível observar que o objetivo não se constituía em executar

uma sequência de movimento, mas essa sequência de movimento estava inserida em um

trabalho de dança cujo objetivo principal era a percepção de si mesmo. Observou-se, assim, a

relação entre o rigor de uma sequência minuciosamente construída e estabelecida na dinâmica

coletiva do corpo docente e uma prática que permitiu a cada aluno experimentar o movimento

a partir de sua corporalidade. O fazer, então, acompanhou o discurso de Marilene, que propôs

humanizar a dança por meio de uma prática apoiada na consciência corporal. Relacionamos o

caráter somático da proposta de Marilene com a perspectiva de formação do artista-professor

no Trans-Forma, em que o intuito de valorizar as individualidades se sobrepôs à dinâmica

“mestre-discípulo”. Nesse sentido, o processo de formação do artista-professor não se

constituiu em aprender a executar um movimento tal qual seu mestre, nem tampouco em

repetir esse procedimento na sua própria prática docente. Diferentemente disso, o intuito foi

compreender e orientar uma prática em que o movimento de dança permitisse ao aluno a

percepção de si e a construção de uma expressividade própria.

Nas aulas de didática, Marilene abordava outros conteúdos, sugerindo uma continuidade do

processo formativo de dança, mas já permeado por questões da docência. Dudude relata uma

dessas ocasiões: “Então, ela ensinava relaxamento... Relaxamento de conscientizar a

respiração, principais pontos de apoio. Sequência de Zena Rommet. Foi uma sequência que

ela aprendeu, que é bem parecida com Pilates. A primeira vez que eu ouvi ‘Pilates’ foi no

Trans-Forma” (DUDUDE, 2010). Os professores tiveram também aulas de rítmica com Maria

Amélia Martins, a Melinha, irmã de Marilene. Na década de 1960, Maria Amélia havia

estudado na UFBA com o maestro alemão Hans Koellreutter. Segundo Ribeiro (2012), após

esse período na Bahia, em que teve acesso a abordagens como a de Jaques-Dalcroze, Edgar

Willems e Carl Orff, Melinha integrou, em Belo Horizonte, um grupo dedicado a estudar

metodologias para o ensino-aprendizagem de música. Arnaldo Alvarenga menciona as aulas

ministradas pela musicista: “A gente tinha aula de ritmo, sequências de ritmo [...] ritmos

variados, compassos, essas coisas todas nós tínhamos aulas [...]. E aí, essa ideia de você

contar um exercício, mas você estar demonstrando o exercício e estar contando: ‘passé, 1, 2,

fecha paralelo, 3, 4’” (ALVARENGA, 2010).

Marilene realizava também reuniões regulares, nas quais os artistas-professores podiam

conversar e trocar impressões sobre os alunos, como relata Lydia Del Picchia:

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Então, ela tinha essa preocupação de juntar todos os professores e de discutir sempre: “Como é que está sua turma?”. Às vezes, um caso: “Fulano não está bem... Será que vai ter que repetir o ano?” “Não, pede prá ele fazer aula de reforço na outra turma. Às vezes, com outra professora que aperta mais”. Então, essa comunicação entre os professores, esse cuidado que era muito bacana! (PICCHIA, 2010).

Esses encontros favoreciam, ainda, o acompanhamento dos processos de cada turma, como

destaca Dudude: “Aí, a gente tinha um prazo prá ensinar. [Nena perguntava] ‘Você já ensinou

essa sequência?’” (DUDUDE, 2010). Nas anotações de Dudude sobre turmas do 3º e do 4º

Ano consta o acompanhamento do trabalho:

3º Ano – 24/10/77 Jazz inteiro, fraco a 3ª parte Os 4 piqués na turma da tarde Os 3 piqués na da noite Exercício de 1, 2, 1 e 2 pronto faltando batalhar 4º Ano primitivo já foi ensinado barra tem que recordar queda da flauta está mal feita ritmo inseguro.156

Figura 7 - Caderno de Dudude

Fonte: Acervo de Dudude (1976-1977)

Lúcia Ferreira anotou em caderno o andamento do trabalho do 1º Ano: “Obs. De acordo com

a programação prevista não foi dado: - aquecimento tronco (Oriental); - exercício com nomes;

- pêndulo – foi dado [...]; - soltura de braços; - raspa panela”.

156 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Figura 8 - Caderno de Lúcia Ferreira

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

Dorinha Baêta registrou sobre o 2º Ano a continuidade do trabalho de uma aula para a outra:

“1. A mesma sequência de perna da última aula. 2. Todo o jazz (até 3ª. parte)”.

Figura 9- Caderno de Dorinha Baêta

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Ao mesmo tempo em que havia uma atenção para que o trabalho fosse realizado de forma

coletiva, garantindo a abordagem do conteúdo por todo o corpo docente, a individualidade de

cada artista-professor também se estabeleceu como um valor, como demonstra o relato de

Lydia Del Picchia:

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Enfim, tinha a sequência de pé, tinha a sequência de barra, era tudo muito codificado, e ao mesmo tempo tinha o espaço muito grande prá improvisação do professor, prá criação, prá... Principalmente, o final da aula, algumas coisas que o professor ia introduzindo que funcionava: “Ah, depois da sequência, eu fiz esse exercício...” Aí, o professor trazia ali prá o conjunto de professores: “Então, vamos incluir isso?” (PICCHIA, 2010).

Arnaldo Alvarenga acrescenta:

Porque 80% da matéria era igual prá todo mundo e 20 % você colocava alguma coisa. E ela [Marilene Martins] não queria nem saber o que você tava fazendo. Isso era muito legal! Ela te dava... É lógico que ninguém fazia loucura nenhuma! Nunca aconteceu isso! Ela te dava essa possibilidade, olha que interessante! (ALVARENGA, 2010, grifo nosso).

Desse modo, é possível reiterar o caráter colaborativo do trabalho e reforçar a ideia de uma

atuação docente distinta daquela questionada por Strazzacappa (2003). Como Alvarenga

(2002, p. 190) afirma: “Com essa possibilidade, o professor tornava-se, também, um artista-

criador, experimentando e colocando-se segundo seus pareceres próprios”.

O processo de formação do corpo docente abrangeu, ainda, a orientação e o acompanhamento

individualizado dos artistas-professores. Ao fazê-lo, Marilene esteve atenta à relação entre

aluno e professor, bem como à dinâmica e aos procedimentos utilizados em sala de aula. Ao

convidar os dançarinos para atuar no corpo docente, a diretora considerou a importância de

afinar as características do artista-professor ao perfil do público, como se percebe no

depoimento de Arnaldo Alvarenga:

Nena tinha o olhar. Porque ela chegou prá gente, eu não esqueço disso. Ela chegou prá mim, prá Lúcia e prá Moniquinha e falou: “Vocês serão professores”. E ela viu isso muito rápido em mim: “Você vai ser professor”. Eu já sabia que eu ia ser professor, Lúcia do mesmo jeito, Mônica... E incrível! Mônica, ela pôs prá dar aula prá criança; eu, ela me pôs de cara prá dar aula prá turma mais velha, prá mulher... Nessa época, eu tinha meus amigos, mas eu sempre convivi com pessoas muito mais velhas do que eu; e, Lúcia Ferreira, dava aula prá moçada. Entende? Esse feeling da Nena, isso é admirável! (ALVARENGA, 2010).

Ao tecer esse comentário, Arnaldo Alvarenga considerou o fato de, posteriormente, tanto ele

quanto Lúcia Ferreira e Mônica Rodrigues terem orientado a prática docente para os públicos

de adultos, jovens e crianças, respectivamente. Essa observação também pode ser feita em

relação à Dorinha Baêta, que, a partir das experiências no Trans-Forma, orientou seu

investimento para o público infantil, tendo, inclusive, buscado a graduação em psicologia

aliando esse conhecimento à dança. E, ainda com Dudude, que se dedicou às turmas mais

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adiantadas e após sua saída do Trans-Forma realizou vários trabalhos junto a artistas e grupos

profissionais. A importância dada por Marilene à relação entre aluno e professor, levou-a a

abordar esses aspectos, de forma mais específica, como aconteceu com Arnaldo Alvarenga,

quando o jovem professor começou a dar aulas no Trans-Forma para uma turma formada por

mulheres adultas:

Como eu era o único homem da escola, ela sentou, me pôs dentro de uma sala e me falou tudo o que podia acontecer pelo fato de eu ser homem. Assédio, maneira de eu tocar nas pessoas, a maneira das pessoas quererem se aproximar de mim, o lugar do professor, esse lugar delicado da relação com o corpo do outro, e tudo o que podia acontecer de bom e de ruim, de estranho e de bizarro. Parecia que ela estava com a bola de cristal na mão. E acontecia. Isso era muito legal, muito legal, a previsão dela, enfim, das relações humanas mesmo, e na relação do trabalho. Assim, como é que você olha prá o aluno?... (ALVARENGA, 2010).

O acompanhamento junto aos artistas-professores continuava nas aulas, como relata Dudude:

Quando ela falou assim: “Dudude, então você vem dar aula.” Eu era muito nova. Morri de medo dos alunos! Aí, ela ficou dois anos olhando minha aula. Eu achava aquilo um terror! Ela falava: “Não é assim!” Morria de vergonha dos alunos! Mas, hoje eu vejo. Foi uma professora! Eu tive uma escola de pedagogia também! (DUDUDE, 2010).

Nessas ocasiões, Marilene não se isentava de fazer apontamentos relacionados aos termos

utilizados pelos professores para se referir ao movimento, como Dudude acrescenta: “Então,

por exemplo, se eu falava assim: ‘Ó, você vai esticar aqui’. Ela falava: ‘Não, não fala esticar,

fala alongar’; [ou] ‘Ah, esse termo aqui é mais legal!’; [ou] ‘Mostra de novo que você se

confundiu’” (DUDUDE, 2010). Observa-se no relato de Dudude que havia atenção aos

procedimentos didáticos, de forma a favorecer uma prática artístico-pedagógica afinada com o

pensamento de dança do Trans-Forma. Arnaldo também relata sobre as orientações

individuais de Marilene:

A Nena me dava essas orientações pedagógicas mesmo, metodológicas. Como ensinar o exercício... [Nena dizia] “Faz uma vez”. “Agora faz prá mim”. “Faz sozinho”. “Me ensina o exercício”. “Aplica o exercício em mim”. “Agora faz o exercício, você fazendo”. “Agora eu vou fazer o exercício”. Aí, ela errava. [Nena perguntava] “Como é que eu corrijo?” “Eu tô fazendo certo ou tô fazendo errado?” Fazia várias vezes até você enxergar o que é que é que era. Aí, ela falava: “Hoje, você pode dar esse exercício” (ALVARENGA, 2010).

Nessa dinâmica junto aos artistas-professores, identificamos um processo voltado para o

exercício docente em que, ao invés de oferecer modelos para a prática do artista-professor,

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Marilene estimulou um processo de formação docente também voltada para a percepção do

professor sobre si mesmo. Talvez tenha sido constrangedor para alguns, como lembra

Dudude. Mas compreende-se o pioneirismo de Martins que, ao considerar a importância da

atividade docente em dança, percebeu e esteve atenta às suas especificidades, além de propor

uma formação que contemplou e estimulou a autoria desse profissional. Ressaltamos, ainda,

nesse processo junto aos artistas-professores, a coerência de Marilene com o contexto de

dança no qual a artista desenvolveu seu trabalho. Nesse sentido, não se tratou da formação do

artista-professor de dança, mas do artista-professor em um determinado contexto de dança,

caracterizado pela diferença, pelo experimentalismo, pela consciência corporal e artística.

Ao abordar o Trans-Forma, que envolveu uma escola e um grupo profissional de dança e cujo

trabalho seguiu pautado na diversidade relativa a alunos, artistas, professores, bem como

diferentes danças e outras artes, compreendemos que Marilene Martins constituiu um espaço

de convivência artística que possibilitou a implantação de sua concepção de dança. Esse

espaço de convívio permitiu ao aluno, ao dançarino e ao professor experimentar distintos

modos de fazer. Considerando essa configuração, relacionamos o processo de conhecimento

no Trans-Forma com a noção de “conhecer”, em Maturana e Varela (2001). Para os biólogos,

o conhecer acontece na interação entre o indivíduo e o meio de convivência. Esse espaço de

relação possibilita a ocorrência de perturbações, ou seja, estímulos que mobilizam o sujeito

cognoscente. A aprendizagem, então, constitui-se das transformações que acontecem ao

indivíduo em decorrência dessas fricções. Nesse sentido, compreendemos que foi constituído

no Trans-Forma um ambiente favorável ao conhecimento em dança. Consideramos, ainda,

que a diversidade tenha exercido um papel importante de perturbar e estimular o conhecer. A

contextualização dessa rede de convivência ajudou a compreender a concepção de dança de

Marilene Martins, fundada na diversidade corporal e artística, no entrelaçamento de ideias, na

dinâmica colaborativa e relacional. A partir desse panorama, realizou-se o acompanhamento

crítico-interpretativo dos cadernos de registro, com o objetivo de compreender a tecitura

epistemológica da proposta artístico-pedagógica do CBDM.

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105

4 CURSO BÁSICO DE DANÇA MODERNA

Ao constituir um ambiente de convivência artística no Trans-Forma, Marilene Martins

favoreceu o processo que resultou na criação do CBDM. Acompanhamos o dossiê formado

por cadernos de artistas-professores para compreender a tecitura epistemológica desse Curso.

Ao fazê-lo, encontramos tanto um conteúdo utilizado nas aulas quanto a escritura relativa ao

registro desse conteúdo. Ambos esses elementos foram importantes para a compreensão da

proposta de Martins. Optou-se por tratar o conteúdo de dança e o seu registro separadamente,

como uma estratégia para ampliar o olhar sobre o objeto. Iniciamos o acompanhamento pela

escritura encontrada nos cadernos dos artistas-professores e, em seguida, abrangemos o

conteúdo registrado.

4.1 Corpo-documento: a dança no papel

Ao abordar o dossiê com documentos relativos ao processo de construção do CBDM do

Trans-Forma, conforme a perspectiva da crítica genética (HAY, 2002; SALLES, 2008), não

buscamos a origem desse Curso, nem tampouco abranger ou recompor o percurso de criação

relativo a ele. Seguimos os “rastros” e “pegadas” do processo, como propõe Salles (2009, p.

22). Considerando, ainda, que o dossiê abrange um registro de dança, cabe mencionar a

prática tradicional de notação de dança que, segundo Spanghero (2011, p. 73), “[...] tem feito

valer a sua função de registrar e imortalizar danças e movimentos, revelando procedimentos e

processos coreográficos”. Na pesquisa, ao abordar os registros feitos pelos artistas-professores

do Trans-Forma, seguimos na direção apontada por Louppe (1994), que ressalta a importância

não apenas histórica e patrimonial, mas também poética e intelectual desse tipo de material, o

que difere de seu uso comumente voltado para a análise e a reconstrução coreográfica e do

movimento. Nesse sentido, nosso interesse esteve voltado para o pensamento de Marilene

relativo ao processo de conhecimento em dança.

Os cadernos que compuseram o dossiê da pesquisa foram datados no período de 1976 a 1984

e os registros envolvem tanto a criação da proposta artístico-pedagógica de Martins como

aspectos da prática docente no Trans-Forma. As anotações compreendem o conteúdo

específico de dança, referenciais utilizados para sua realização e roteiros de aula. Os

exemplares reunidos reiteram o trabalho coletivo realizado por Marilene Martins e pelo corpo

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docente, em que os registros foram feitos por meio de um mesmo conjunto de traços. A

coletividade foi observada no tipo de registro, estabelecido de forma majoritária pela

articulação entre texto escrito e desenho do corpo humano, que pautou todo o dossiê. O

caráter coletivo da escritura foi observado, ainda, em virtude de alguns termos utilizados nos

registros, como, por exemplo, “ploft”, que corresponde à soltura do peso do corpo, de forma

súbita. Também identificou-se a expressão “sem deixar apagar a figura”, utilizada para indicar

que no movimento de contração o tronco não deverá perder seu volume, e a expressão

“riscando parede”, correspondente à ação de “descer a perna em movimento ligado, bem

longe do corpo, como se quisesse ‘riscar o teto com a ponta do pé’”157. Outra expressão

comumente encontrada nos registros constituiu-se na orientação “energia para a terra e para o

ar”, que indica a situação em que o indivíduo está posicionado em pé e mantém a intenção

muscular em direções opostas. Nessa condição, os pés são direcionados para baixo e a cabeça,

para cima. Outro recurso utilizado nos registros foi a utilização de termos relativos a um

referencial de dança para facilitar a compreensão do movimento em um contexto diferente,

em virtude da similaridade da movimentação. Assim, encontram-se orientações, tais como

“tipo Martha Graham”, para indicar um movimento similar ao dessa técnica, ou, “como um

twist”, para indicar o modo como os pés deslizam pelo chão. Tais termos foram, algumas

vezes, encontrados entre aspas, compreendidas como um sinal de que os movimentos são

similares, mas não, idênticos. Também foi identificada a terminologia específica da técnica do

balé clássico, já que esse foi um material utilizado por Martins no Curso Básico de Dança

Moderna. Além desse material, os registros apresentaram orientações relativas ao uso de

música, bem como simbologia específica para exercícios rítmicos e de improvisação.

Ressaltou-se na coordenação entre textos redigidos e desenhos representativos do corpo

humano, explicações sobre o posicionamento do corpo, além de indicação de referenciais para

a realização do movimento, o que foi importante para compreender a perspectiva de dança de

Marilene.

4.1.1 Escrever dança

O texto escrito relativo aos registros dos artistas-professores se caracteriza, basicamente, pelo

uso de terminologia anatômica e de termos do senso comum que permitem fazer referência à

157 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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estrutura anatômica. De uso cotidiano, constam termos como “cabeça”, “tronco”, “ombros”,

“braços”, “cotovelos”, “mãos”, “pernas”, “joelhos”, “tornozelos”, “pés” e “dedos”. A

nomenclatura anatômica específica utilizada reúne denominações como “região do

metatarso”, “articulação coxofemoral”, bem como nomes de ossos, como sacro, cóccix, íleo,

ísquio, entre outros. Menos presente nas descrições dos movimentos, o sistema muscular foi

mencionado por meio de termos como “glúteos”, “músculo trapézio” e “musculatura interna

das coxas”. Também foram encontradas expressões que parecem ter sido adotadas no âmbito

do corpo docente do Trans-Forma, como “bolo muscular”, para mencionar a musculatura

interna das coxas, e o termo “tecido”, utilizado para fazer referência ao músculo em situações

de alongamento. Considerando os termos anatômicos utilizados, constatamos a prevalência do

Aparelho Locomotor, formado pelos sistemas esquelético, articular e muscular (DANGELO;

FATTINI, 2007). Em algumas práticas corporais também há menção, de forma pontual, a

órgãos, como coração, fígado e pulmão.

4.1.2 Escrever e desenhar dança

Nos registros dos cadernos de artistas-professores, o texto escrito foi articulado com desenhos

voltados para a representação do corpo e do movimento do dançarino. Essa configuração

enfatizou o uso de terminologia e de referenciais anatômicos no processo de registro dos

artistas-professores do Trans-Forma. A utilização de terminologia específica e sua relação

com os desenhos da figura humana permitiram observar o importante papel da anatomia para

a compreensão da dança de Marilene e, ainda, identificar algumas estruturas, especificamente

dos sistemas esquelético e articular nos referidos desenhos. Ao relacionar o estudo anatômico

com o registro de dança do Trans-Forma consideramos a divisão do sistema esquelético em

duas partes – axial e apendicular –, conforme Dangelo e Fattini (2007). O esqueleto axial

constitui-se dos ossos da cabeça, coluna vertebral e caixa torácica. O esqueleto apendicular se

constitui dos membros superiores e inferiores. Os primeiros são constituídos por braços,

antebraços, mãos, além do cíngulo do membro superior, formado por clavícula e escápula.

Quanto aos membros inferiores, constituem-se por ossos das coxas, das pernas, dos pés e o

cíngulo do membro inferior, formado pelos ossos dos quadris e pelo osso sacro. Com relação

ao sistema articular, há nos cadernos referência a algumas estruturas.

Alguns exemplos mostram a identificação de estruturas anatômicas e sua relação com o texto

escrito. Com relação ao esqueleto axial, foram conferidas nos desenhos a cabeça, a coluna e

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as costelas. A referência à cabeça pode ser exemplificada por trecho da “Sequência da cabeça

com ombros e tronco”, do 2º Ano, cujo enunciado diz: “[...] a cabeça rola pela frente,

terminando sobre o ombro direito [...]”158. Esse enunciado corresponde à imagem que segue:

Figura 10 – Cabeça

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Em alguns movimentos, a direção da cabeça é indicada pela presença do nariz, como visto na

ilustração que segue:

Figura 11 - Nariz

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos. Acervo de Dorinha Baêta (1976-1979)

Esse movimento da Figura 11 integra a “Sequência corpo uniforme”, do 2º Ano, realizada na

barra, cujo enunciado explica: “1, 2 – subir no elevé, bem firme. 3, 4 – dobrar joelho e

158 MANUSCRITO: Caderno de 2º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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inclinar o corpo acompanhando a linha da coxa-joelho segurando pelo abdome e o diafragma

relaxa um pouco; manter cabeça alongada”159.

No caso da coluna, a Figura 12 mostra essa estrutura em deslocamento, de uma posição de

flexão para outra, de extensão:

Figura 12- Coluna

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

O texto relativo a esa imagem explicita a referência à coluna e menciona as vértebras que

integram essa estrutura anatômica: “[...] inspira, volta expirando, gemendo. Duas vezes cada

movimento. Volta colocando vértebra por vértebra”160. Na Figura 13, é possível visualizar a

estrutura do esqueleto axial, em que o foco é a caixa torácica, mencionada por meio da

indicação das costelas, como descrito: “1, 2 – Empurrar costelas para a direita. 3, 4 –

Colocando a mão no ombro, puxar as costelas ainda mais para fora pelo cotovelo”.161

Figura 13- Costelas e caixa torácica

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977) 159 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos. Redigido por Dorinha Baêta entre 1976 e 1980. 125 f. Acervo de Dorinha Baêta. 160 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 161 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Com relação ao esqueleto apendicular, os registros permitiram identificar nos membros

superiores162 o braço, o antebraço, a mão e os dedos; e, nos membros inferiores foram

identificadas as coxas, as pernas e os pés, sem especificação dos ossos que formam esses

segmentos. No desenho a seguir, o movimento permite identificar estruturas de membros

superiores e inferiores.

Figura 14- Membros inferiores e superiores

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Também na imagem que segue, as mãos espalmadas permitem identificar os dedos. O

enunciado também favorece essa identificação por orientar a observação do desenho,

favorecendo a relação com a estrutura anatômica: “palmas das mãos para frente”163.

Figura 15- Mãos e dedos

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

162 De acordo com Dangelo e Fattini (2007), o esqueleto do membro superior é formado pelos seguintes ossos: o úmero, correspondente ao braço; o rádio e a ulna, que formam o antebraço; à ossatura da mão; e, a escápula e a clavícula, que formam o cíngulo do membro superior. 163 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Ressaltamos nos desenhos a ênfase nas articulações. Com relação aos membros superiores, o

desenho que segue exemplifica a articulação do ombro164, responsável pelo movimento do

braço:

Figura 16- Articulação do ombro

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Os cotovelos são identificados no desenho a seguir que acompanha o enunciado: “Fazer

pressão com os cotovelos para fora e relaxá-los com muito cuidado”.165

Figura 17- Cotovelos

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

164 A articulação do ombro é formada pelo úmeroe pela escápula (DANGELO; FATTINI, 2007). 165 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Os punhos podem ser identificados na imagem a seguir:

Figura 18- Punhos

Fonte: Caderno de 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Com relação aos membros inferiores, alguns desenhos permitiram identificar o cíngulo

inferior, formado pelos ossos do quadril e o sacro:

Figura 19 - Cíngulo inferior

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

A região dos quadris foi também mencionada por meio do denominado “∆ do quadril”,

correspondente a um triângulo imaginário. Visto pela face anterior do corpo, os vértices do

triângulo localizam-se nas duas protuberâncias marcadas pelos ilíacos, unidas a um ponto

abaixo do umbigo, aproximadamente quatro centímetros, como mostra a imagem:

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Figura 20 - Triângulo do quadril

Fonte: Caderno de 1º e 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1976-1980)

As articulações dos quadris foram identificadas em movimentos, como a flexão e a extensão

do quadril, cujo enunciado indica que “[...] as duas pernas dobram permanecendo sempre

calcanhar no chão e alonga 3, 4”166:

Figura 21- Articulação do quadril

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

O salto mostra a articulação do joelho, em movimento de flexão e, em seguida, de extensão:

166MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Figura 22 - Joelhos

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

O movimento dos pés167 também é evidenciado no trecho da sequência de barra:

Figura 23- Pés

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

Nos pés foram identificadas também as articulações entre os ossos do metatarso e as falanges

proximais dos dedos, que formam o que se denomina, comumente, como “meia ponta”. O

enunciado da “Sequência de pés e pernas”, do 3º. Ano, realizada na barra, indica: “1 – pé

direito na meia-ponta, joelho dobrado e a perna esquerda também no plié, porém com o pé no

chão. 2 – sobe no elevé, as duas pernas se alongam bem”168. A imagem a seguir mostra o

movimento dos pés:

167 Na imagem da Figura 23, os movimentos de flexão plantar, indicado pelo número 3, e flexão dorsal, relativo ao número 4, dizem respeito à mobilidade da articulação talocrural, que envolve o osso tálus e as porções distais dos ossos da perna, sendo a tíbia e a fíbula (DANGELO; FATTINI, 2007). 168MANUSCRITO: Caderno de 3º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 80 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 24 - Metatarso e dedos

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

No pé, há também a indicação do referencial denominado “∆ do pé”, que se constitui por um

triângulo imaginário formado por três vértices: um deles está situado entre o 1º. e o 2º ossos

metatarsais, o segundo ponto está localizado entre o 4º e o 5º ossos metatarsais, e, o terceiro

ponto, no calcâneo:

Figura 25- Triângulo do pé

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos. Acervo do Dorinha Baêta (1976-1980)

4.1.3 Dança e anatomia humana: referência em si

A anatomia humana que integra tanto o texto escrito como pode ser identificada no desenho

representativo do corpo, para além de configurar um tipo de registro de dança, possibilitou

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compreender o caráter da noção de dança, em Marilene. No caso, o referencial para o

movimento esteve situado no corpo, e não, fora dele. Desse modo, alinhada com o

pensamento de Fortin (2011), Marilene aponta para perspectivas contrárias àquelas que se

apóiam em modelos externos e subestimam a relação com o próprio corpo como um

referencial de base na prática de dança. Acrescenta-se a isso o fato de não haver nos cadernos

que constam do dossiê menção a biótipos169 específicos. Esse aspecto se mostrou coerente

com a diversidade corporal do aluno do Trans-Forma, mencionada nos depoimentos dos

artistas-professores. Essa característica também esteve alinhada ao desejo de Martins, de fazer

uma dança para “[...] todas as idades, todos os corpos e condições”.170

Os registros mostram a opção por situar o referencial do movimento no corpo, como

exemplificado na “Sequência com giro e relaxamento de braço e tronco”, do 1º Ano, a ser

realizada em pé. A descrição indica a posição inicial, apresentando orientações relativas a

braços, pernas e pés: “PI – De pé, perna direita preparada atrás na ½ ponta, braço direito

abraçado à cintura pela frente e a esquerda por trás”.171 A orientação é acompanhada pela

seguinte imagem:

Figura 26 - Anatomia e corporalidade I

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Arnaldo Alvarenga (1982-1984)

169 Nesta pesquisa, considerou-se biótipo conforme Dangelo e Fattini (2007, p. 7), que o define como a “[...] soma dos caracteres herdados e dos caracteres adquiridos”. Segundo os autores, do ponto de vista anatômico, é possível observar muitas variações que indicam a existência de diferentes biótipos. 170 MANUSCRITO: Discurso Prêmio de Cidadã Honorária. Redigido por Marilene Martins em 1992. Acervo de Marilene Martins. 171MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga.

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Outro enunciado indica a posição para iniciar uma sequência de 2º Ano, realizada no chão:

“PI: a) 1, 2 – sem separar os joelhos, alinhar perna direta na linha da coxa esquerda, peito do

pé alongado; 3 – metatarso; 4 – pé reto”.172 O texto é acompanhado pela imagem a seguir:

Figura 27 - Anatomia e corporalidade II

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

E, ainda, para indicar a posição inicial da “Sequência de pés e pernas”, do 1º Ano, feita no

chão, a descrição “pés o mais próximo dos glúteos” faz referência ao sistema muscular ao

mencionar a região glútea:

Figura 28 - Anatomia e corporalidade III

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Além de indicar o posicionamento do corpo, a articulação entre texto escrito e desenho,

considerando os referenciais anatômicos, também orientaram quanto ao deslocamento do

corpo. Na “Sequência quadril em zig-zag”, do 1º Ano, realizada no centro, a relação entre

descrição e desenho favorece a compreensão do movimento, como segue: “A cabeça olha por

cima do ombro para a mão que aponta a diagonal baixa. Os braços são como que ligados por

um elástico [...] sempre em zig zag. O quadril fica relaxado em cima da perna alongada e a

costela se fecha sobre ela”.173 O trecho é acompanhado pela imagem:

172MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues. 173MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga.

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Figura 29 - Anatomia e corporalidade IV

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Arnaldo Alvarenga (1982-1984)

A articulação entre texto escrito e desenho, mediada pela anatomia humana, explicitou

também um modo de fazer e lidar com o corpo no movimento, como observado no trecho da

“Sequência de pernas e abdominal”, do 1º Ano, realizada no chão. Nela, destaca-se o

movimento dos braços, demonstrado pela ênfase dada às articulações dos cotovelos.

Observou-se, ainda, a mudança da posição do corpo, do decúbito dorsal, em que o rosto fica

exposto, para decúbito ventral, em que a face está voltada para o chão:

Figura 30 - Anatomia e corporalidade V

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

A anotação abaixo acompanha a movimentação dessa sequência:

(1,2) alonga o corpo (3,4) rola com o corpo alongado por cima do ombro direito, deitando de barriga para o chão (5) dobra os braços até a altura da cintura, cotovelos para cima (6) meia ponta nos pés (7,8) pressiona o chão com as mãos e os pés mandando o cóccix para cima, coluna alongada e cabeça também.174

174 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues.

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O próximo trecho, relativo a uma sequência do 4º Ano, indica o deslocamento do movimento

entre pontos de apoio situados no corpo, como segue:

1,2 – Jogar as pernas dobradas para trás; (3,4) – Assentar com coluna relaxada, mãos e pés no chão; 5,6 – Jogar pela 2ª. vez as pernas dobradas para trás; 7,8 – Voltar passando o peso do corpo para os pés (dedos) levantando ligeiramente o popô do chão; 1,2 – Jogar pela 3ª. vez as pernas dobradas para trás; 3,4 – Voltar passando o peso do corpo para os pés e levantando ainda mais o popô do chão, relaxando a coluna toda para frente; 5,6,7,8 – Alongar pernas para trás, sentindo a pressão dos pés contra o chão. 8 TEMPOS: Subir desdobrando a coluna.175

No desenho, todo o movimento descrito pode ser companhado e os pontos de apoio indicados

podem ser conferidos:

Figura 31 - Anatomia e corporalidade VI

Fonte: Caderno de 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

O tipo de registro estabelecido, em que texto escrito e desenhos foram articulados para

descrever o movimento, não foi utilizado apenas para as sequências de movimento criadas por

Marilene Martins. Por meio desse tipo de anotação foram registrados também os conteúdos

relativos aos cursos ministrados por artistas convidados. Desse modo, a escritura de Martins

se mostrou versátil para o registro do movimento em diferentes contextos de dança, o que se

mostrou coerente com a sua abordagem artístico-pedagógica caracterizada pela diversidade.

Como exemplo, segue descrita a “Sequência de alongamento na 2ª paralela”, referente ao

trabalho do dançarino e coreógrafo Jairo Sette176, que ministrou curso no Trans-Forma:

PI – De pé, 2ª. posição paralela, mão na altura da virilha Nesta posição insistir deslocando os quadris para frente, saindo do eixo; faz-se uma projeção da crista ilíaca para frente (4 tempos). Em seguida, a partir dos quadris, fleiona-se todo o tronco como um bloco único, mantendo toda a região do cóccix até a nuca, numa única linha paralela ao chão (4 tempos). Os braços ficam alongados ao

175 MANUSCRITO: Caderno de 4º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1972 e 1984. 31 f. Acervo de Dorinha Baêta. 176Jairo Sette (Brasil). Dançarino e coreógrafo (ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL, 2017g).

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lado do corpo. Sentir toda a musculatura atrás das pernas desde os glúteos até o tendão de Aquiles.177

Esse enunciado é acompanhado pela imagem a seguir:

Figura 32 - Anatomia e corporalidade VII

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Arnaldo Alvarenga (1982-1984)

Ao utilizar a anatomia humana para descrever e compreender o movimento, Martins

apresentou uma noção de corpo que contempla a diversidade. A estrutura anatômica é, ao

mesmo tempo, comum ao humano e de natureza variável. Desse modo, a artista permitiu

abranger a corporalidade a partir de diferenças, acompanhando o público diverso de alunos do

Trans-Forma. Ao adotar a anatomia humana como subsídio para a compreensão do

movimento, Marilene aponta para o caráter somático de sua proposta artístico-pedagógica, em

que o movimento e a dança puderam ser tratados a partir das individualidades.

4.2 Processo de conhecimento em dança por Marilene Martins

A proposição do CBDM, concebida por Martins, foi coerente com o espaço de convivência

estabelecido no Trans-Forma, por abranger diferentes referenciais artísticos. Com interesse

em compreender a abordagem epistemológica desse Curso, realizamos o acompanhamento

crítico-interpretativo dos cadernos de artistas-professores da escola, em diálogo,

principalmente, com o conceito de “rede”, a partir de Musso (2013), a conceituação de

“criação como rede em processo”, de Salles (2014) e a teoria da autopoiese, de Maturana e

Varela (2001, 2003).

177 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga.

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Ao retomar a teoria da autopoiese, de Maturana e Varela, temos que um sistema autopoiético

apresenta uma estrutura formada por determinados elementos e uma organização, cujo

movimento garante a existência desses elementos. A estrutura é de caráter flexível e aceita

modificações, como, por exemplo, a ampliação dos elementos que a constituem ou o

adensamento das relações entre os elementos. A organização se estabelece por meio da

preservação das condições que garantem a existência da estrutura, sua mobilidade e a de seus

componentes. A partir dessa conceituação, fazemos referência a Musso (2013, p. 32), que

explica a relação entre um determinado sistema complexo e o conceito de “rede”: “Passa-se

da dinâmica da rede ao funcionamento do sistema, como se o primeiro fosse o invisível do

segundo, portanto seu fator explicativo”, ou seja, o movimento em rede poderá corresponder a

um modo de organizar um sistema e, ao mesmo tempo, constituir sua estrutura. A partir,

então, da articulação entre o conceito de “rede” e a teoria da autopoiese, relacionamos o Curso

Básico de Dança Moderna com um sistema autopoiético, cuja fenomenologia, ou poética, se

caracterizou por uma rede de relações. Isso significa que, nesse Curso, a organização em rede

possibilitou a constituição de uma tecitura formada por diferentes referenciais corporais,

artísticos, entre outros, relacionados entre si. E, ainda, a partir da noção de inacabamento, que

se estabelece como uma das características dessa dinâmica em rede (SALLES, 2014),

compreendeu-se que o Curso Básico se manteve em estado latente de construção, sempre

disponível a novos vínculos.

O Curso Básico de Dança Moderna apresentou uma estrutura caracterizada por flexibilidade e

na qual foram identificados dois eixos. O primeiro abrangeu os conteúdos a serem trabalhados

nos cinco anos do Curso, como descrito em folheto de divulgação da escola, em manuscritos

de Marilene e em anotações dos artistas-professores:

- no 1º ano enfatizam-se os trabalhos de eixo e base, postura e transferência de peso; - no 2º ano trabalho de braços e pernas; - no 3º, soltura do corpo; - no 4º, saltos; - no 5º, giros. (ESCOLA DE DANÇA MODERNA MARILENE MARTINS, 1978).

Identificamos o segundo eixo com o roteiro de aula que também se estabeleceu como uma

referência fundamental para o trabalho dos artistas-professores, conforme os registros nos

cadernos. Nos roteiros foram identificadas quatro partes, compreendidas aqui como materiais

genéticos: uma parte relacionada à consciência do corpo, que inclui exercícios de

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relaxamento, aquecimento, alongamento, práticas de respiração, concentração e

sensibilização; outra parte, em que se ressaltou o estudo de movimento na dança, voltada

para a realização de sequências a serem realizadas no chão, na barra e no centro. E outras duas

partes, sendo a rítmica e a improvisação. Essas quatro partes foram observadas nos roteiros

de aula, podendo apresentar variações com relação à ordem aqui descrita. As anotações dos

artistas-professores demonstraram rigor com esse roteiro e, ao mesmo tempo, flexibilidade

para fazer variações e explorar conteúdos específicos, demonstrando, ao mesmo tempo,

flexibilidade da estrutura e manutenção da organização em rede. A partir desses materiais

genéticos primários – consciência do corpo, estudo de movimento, rítmica e improvisação –

seguimos a tecitura da rede de Marilene Martins, que envolveu vários referenciais.

Além dos aspectos relativos à estrutura e à organização do sistema, conforme Maturana e

Varela o processo autopoiético, ou seja, o processo de auto-organização acontece na

conjuntura entre o sistema e o meio de convivência. E ainda, o movimento do sistema que

configura a autopiesis acontece a partir de perturbações internas do sistema e oriundas do

meio externo. Considerando que a teoria da autopoiese está fundamentada no campo da

biologia e o processo autopoiético se refere à fenomenologia do humano, sendo algo

encontrado na natureza, ao deslocá-lo para o contexto do CBDM, tornou-se necessário

redimensionar a teoria da autopiese na discussão. Ressalta-se que o que se abordou na

pesquisa foi o processo de criação deste Curso, construído de forma intencional por Marilene.

Desse modo, não se tratou de um sistema encontrado na natureza, mas de um sistema de

conhecimento em dança criado intencionalmente. Observou-se, então, que sua preservação

seguiu essa mesma perspectiva, o que significa que o elemento perturbador, assim como o

sistema, precisou ser construído, inventado. A partir da teoria da autopoiese, de Maturana e

Varela, e da articulação desse pensamento com o conceito de “rede” de Musso (2013),

propomos que o Curso Básico de Dança Moderna seja considerado como um sistema

autopoiético concebido intencionalmente por Marilene Martins. Nesse caso, compreendemos

que a perturbação esteve relacionada ao meio de convivência artística cultivado na escola e

também ao movimento interno, gerado por Martins e pelos artistas-professores. Observamos

que a relação com o outro, ou seja, a interação com diferentes propostas corporais, técnicas e

artísticas tenha se estabelecido como perturbação. Assim, alguns dos artistas convidados a

desenvolver seu trabalho no Trans-Forma geraram, ao longo dos anos de trabalho de

Marilene, alterações na estrutura do CBDM. Nesse processo, vários conteúdos foram

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inseridos nas aulas, como sequências de movimento, criadas pela diretora e por artistas-

professores que a acompanharam; sequências de movimento, criadas por diferentes artistas e

oriundas de distintos contextos técnicos de dança; e, exercícios de rítmica e de improvisação,

propostos por diversos artistas e também pelos artistas-professores do Trans-Forma. Ao

cultivar o meio de convivência por meio do trânsito de diferentes artistas, Marilene manteve a

possibilidade da perturbação e, consequentemente, de vínculo, ou seja, a condição necessária

para manter o movimento em rede em uma dinâmica autopoiética. Compreendemos que por

meio desse movimento foi sendo constituída a tecitura do Curso Básico de Dança Moderna,

que acompanhamos por meio dos cadernos de artistas-professores.

4.2.1 Consciência corporal

As práticas denominadas nos cadernos de “relaxamento” e de “consciência corporal”

ocuparam um espaço fundamental na abordagem artístico-pedagógica de Martins. Os

exercícios nesse âmbito tiveram como objetivo o exercício somestésico178 que integrou o

processo de conhecimento em dança. Desse modo, o fazer dança no Trans-Forma se mostrou

coerente com os registros feitos nos cadernos, em que o corpo, sob o ponto de vista anatômico

se estabeleceu como referencial para a compreensão do movimento. Ressalta-se que,

inicialmente, tal conteúdo foi identificado na trajetória de Marilene quando a artista esteve

junto a Angel e Klauss Vianna, com os quais pôde desenvolver um trabalho atento à

corporalidade do indivíduo. Observamos similaridade entre o processo do Ballet Klauss

Vianna, descrito em programa de espetáculo desse grupo, e a prática de dança no Trans-

Forma, como exemplificado na descrição de um exercício registrado em caderno do dossiê.

No programa do espetáculo do Ballet Klauss Vianna, lê-se:

A vontade e o material humanos devem ser sempre trabalhados sobre uma base sólida. [...] O conhecimento do funcionamento do corpo é nossa primeira meta. Aí então entra em campo a grande ajuda que nos fornece a fisiologia. O ponto exato onde se encontra, e o funcionamento das glândulas que exercem poderosa influência sobre o equilíbrio, o estudo do ato reflexo de nosso sistema motor. Isto, em conjunto com a Anatomia que pode nos levar a uma solução exata de como trabalhar a coluna vertebral de maneira mais correta e toda esta variedade de músculos que reagem sempre de modo diverso, de pessoa para pessoa. A boa respiração, esta grande força que nos dá o relaxamento, sem o qual torna-se até nocivo em certos casos o estudo da dança clássica.

178 A capacidade somestésica está relacionada ao sistema do corpo que envolve modalidades sensoriais, como o tato, a propriocepção – localização do corpo no espaço –, a noção da funcionalidade do corpo, entre outras (LENT, 2010).

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Com pés fortes e posições corretas. O conhecimento exato da importância do diafragma. A coluna vertebral bem colocada e trabalhando de comum acordo com o cerebelo. Mãos na barra e podemos começar nossa aula tranquilamente... (BALLET KLAUSS VIANNA, 1956-1960)

Como em Vianna, o exercício feito no Trans-Forma enfatizou a percepção de si na parte

inicial da aula:

I – Relaxamentos: 1) Deitada de costas, fechar os olhos. Começar a relaxar cada parte do corpo, deixando-as pesar no chão. Pés, pernas, quadril, todo o tronco, braços e mãos, cabeça; relaxar a língua dentro da boca, deixando a boca entreaberta, relaxar os olhos e testa, corpo inteiro bem pesado no chão. - Sentir a respiração, entrar e sair o ar e o movimento que ele provoca em seu corpo. - Sentir a pulsação do coração e procurar localizá-lo bem. - Deslizar o pé direito pelo chão, o joelho apontando para o teto, na linha do ombro e os dedos do pé apontando para frente e depois o outro. - Colocar o braço em ângulo reto, cotovelos na linha dos ombros, palmas das mãos para cima. ... e então começam os exercícios, começando dos pés .179

Com relação à anatomia humana180, observamos uma aproximação com esse campo de

conhecimento, de forma específica. Ressalta-se que Martins incentivou o estudo em

bibliografia181 especializada e mapas anatômicos. Esses materiais didáticos foram utilizados

na prática que articulava a visualização dos sistemas esquelético, articular e muscular com o

exercício sensorial, como descrito no exemplo:

I – Mostrar no desenho 1º. Coluna

179MANUSCRITO: Caderno Relax - Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta. 180 Marilene Martins também teve contato com o campo da anatomia humana como aluna do Curso Superior de Dança da UFBA, além de realizar um estudo breve, nos Estados Unidos, em 1974. Também foi identificado no Trans-Forma, o curso ministrado pelo anatomista, ator e diretor de teatro, José Geraldo Dangelo. 181Além dos exercícios relativos às aulas de dança, os cadernos de Dorinha Baêta, Dudude e Lúcia Ferreira apresentaram anotações específicas relativas ao estudo da anatomia humana. Observou-se, ainda, o investimento de Marilene Martins nessa área de conhecimento, considerando a existência de mapas anatômicos e bibliografia especializada disponível na biblioteca do Trans-Forma. Durante a pesquisa foram encontrados no acervo de Marilene Martins os seguintes títulos, que ficavam na biblioteca do Trans-Forma: DANGELO, J. G.; FATTINI, C. A. Anatomia humana básica. Rio de Janeiro/São Paulo: Livraria Atheneu S/A, 1974. ERHART, Eros Abrantes. Elementos de anatomia humana. 5. ed. São Paulo: Atheneu Editora, 1976. GARDNER, Weston D.; OSBURN, William A. Anatomia humana: estrutura do corpo. São Paulo: Atheneu Editora, 1971. GARDER, Ernest; GRAY, Donald J.; O’RAHILLY, Ronan. Anatomia: estudo regional do corpo humano. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1971. HEIDEGGER, G. Wolf. Atlas de anatomia humana. 2. ed. Tradução de: O. Machado de Sousa. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1972. MOREAUX, Arnould. Anatomie Artistique de L’Homme: précis d’anatomie osseuse et musculaire. 2. ed. Paris: Libraire Maloine, s/d.

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2º. Costelas, omoplatas, clavículas, esterno, braços, mãos NOTA: dar um relaxamento depois de cada explicação, para visualizarem mais em si, os ossos.182

Similarmente, outra prática registrada foi dirigida ao sistema muscular: “Primeiro mostrar no

desenho (mapa) o MÚSCULO RETO ABDOMINAL e depois fazer exercício de levantar o

corpo, devagar, controlando pelo músculo abdominal (consultar caderno de

MÚSCULOS)”183. Na descrição, a referência ao “caderno de MÚSCULOS” indica a

existência de materiais específicos para o estudo da anatomia, confirmada nos registros

encontrados. Outro exemplo mostra a experimentação do movimento, em que a estrutura

anatômica foi indicada como referência. No caso, o exercício “Pequenos movimentos com

partes do corpo para sensibilização” enfatiza o aparelho locomotor:

Movimentar o pé esquerdo, pesquisando, que tipo de movimento se pode fazer com ele, e soltar o pé bem frouxo no chão. Repetir com o pé direito. Movimentar a mão esquerda, pesquisando que tipo de movimento se pode fazer com ela, e soltá-la bem mole no chão. Mover a cabeça, pesquisando, que tipo de movimento se pode fazer com ela e soltá-la bem pesada no chão.[...]. Movimentar a perna esquerda pelas articulações (tornozelo, joelho e coxa), levantá-la um pouco no ar, e soltá-la bem frouxa no chão; repetir com a perna direita. Movimentar o braço esquerdo pelas articulações (pulso, cotovelo e articulação do ombro), levantando-o um pouco no ar, e colocá-lo bem frouxo no chão. Repetir com o direito. Movimentar os quadris, pesquisando os seus movimentos e relaxá-los. Movimentar todo o centro do corpo (diafragma e cintura), pesquisando quais as possibilidades de movimento que essa parte do corpo oferece. Aumentar o movimento do centro do corpo, movimentando ao mesmo tempo, braços, pernas e cabeça (MOVIMENTO TOTAL) e acelerar cada vez mais, parando subitamente. Deixar o corpo completamente tranquilo e abrir os olhos devagar.184

Também voltado para o estudo do movimento a partir do referencial anatômico, o exercício

denominado “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” utilizou o tato como procedimento

didático em um trabalho realizado em duplas, como segue na descrição:

O parceiro (ativo) começa o trabalho relaxando o pé (articulação dos dedos e tornozelos), passando depois para a articulação do joelho e coxa – cabeça do fêmur. Relaxar a perna, soltando as articulações e depois balançá-la jogando-a um pouco para cima, e deixando-a cair bem pesada, amparando-a com as mãos. Repetir com a perna esquerda e repetir o mesmo com os braços [...].

182 MANUSCRITO: Caderno de 1º, 2º e 3º Anos. Redigido por Dorinha Baêta entre 1977 e 1978. Acervo de Dorinha Baêta. 183 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 28 f. Acervo de Dorinha Baêta. 184 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Relaxar pescoço e cabeça – deitar a cabeça do passivo nas coxas ou deixá-la no chão. Massagear o rosto (brincar de massinha, tocar piano, dar tapinhas no rosto da companheira) [...]. Colocar a cabeça no chão e massagear as omoplatas185 [...]. O ativo fica de pé com os pés colocados fora do joelho do passivo (que está deitado), segurando-o pelos pulsos e levantando sua cabeça do chão. Dar pequenos arrancos e balançar de um lado para o outro. Deitá-lo com cuidado, consertando sua cabeça no chão. 186

Para acompanhar o enunciado, duas imagens mostram os momentos da prática. O primeiro,

em que o sujeito ativo está sentado, e o segundo, em que ele está em pé:

Figura 33 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” I

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Figura 34 - “Relaxamento a dois: ‘Ativo e Passivo’” II

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Por articular prática corporal e anatomia humana em sua rede de relações relacionamos o

trabalho de Martins à Fortin (1998), que discute sobre a relevância de perspectivas que

reúnem diferentes saberes para revitalizar os processos de conhecimento em dança. No caso,

Fortin enfatiza a relevância de proposições pedagógicas fundamentadas na interação entre

185 Conforme a nomenclatura anatômica atual, o termo “omoplata” foi substituído por “escápula” (DANGELO; FATTINI, 2007). 186MANUSCRITO: Caderno Relax - Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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dança e educação somática. A autora propõe, ainda, a relação entre prática somática e saber

científico, como, por exemplo, a anatomia humana, como foi o caso de Marilene Martins. No

Trans-Forma, os referenciais anatômicos foram importantes para a distinção daquilo que

diferencia e, ao mesmo tempo, é comum ao humano. No exemplo que se refere à volta do

corpo para a posição em pé após um grand plié, a descrição enfatiza o uso dos músculos

adutores da coxa no movimento:

Para subir, pensar somente em ‘O BOLO MUSCULAR’. Prender musculatura interna das coxas – toda mulher187 tem. Quando você prende o bolo muscular188, você sente muito mais o eixo. Embaixo, pensar somente em abrir os joelhos e crescer no eixo.189

Ressaltamos na observação da artista-professora o trecho “toda mulher tem”, o que justificou

a possibilidade desse movimento ser realizado por todas as pessoas, em virtude de estar

apoiado em estruturas musculares do corpo humano. A partir da referência anatômica a

orientação dada no exercício explicita uma perspectiva de dança em que o corpo não se

estabeleceu como impedimento, mas como possibilidade para o movimento. Além disso,

compreendemos que tomar como referência a estrutura anatômica, que é comum a todo ser

humano, contribuiu para estabelecer uma perspectiva corporal mais abrangente na prática de

dança da escola de Martins. Em outra sequência, há a indicação de adaptação do movimento

às condições corporais. Nesse exemplo foram consideradas as diferenças com relação à

estrutura anatômica, de modo que o aluno poderia utilizar procedimentos voltados para suas

características corporais, a fim de realizar o movimento. No enunciado consta: “1 – Abrir a

perna direita pelo lado e pelo chão. Não deixar o quadril virar (trabalhar com forças contrárias

nos ossinhos do quadril). Se não conseguir mantê-la todo o tempo no chão, pode tirá-la um

pouco, mas manter bacia aberta” 190. A Figura 51 mostra o movimento descrito, sendo a área

demarcada correspondente à região das articulações dos quadris, que, preferencialmente,

deverá estar posicionada paralelamente ao chão:

187 Ressalta-se, no trecho citado, que a menção feita apenas ao gênero feminino não indica a impossibilidade para pessoas do gênero masculino. Considerou-se que, conforme todos os cadernos, a tendência a mencionar o alunado apenas na voz feminina pode ter relação com as características do público recebido pela escola e da época. 188 Conforme indicado nas anotações feitas nos cadernos que compõem o dossiê da pesquisa, a expressão “bolo muscular” corresponde aos músculos adutores da coxa. 189 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 28 f. Acervo de Dorinha Baêta (Grifo nosso). 190 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 28 f. Acervo de Dorinha Baêta (Grifo nosso).

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Figura 35 - Corpo e diferença

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

(Houve alteração na ilustração para fins didáticos)

No caso desse alinhamento, destaca-se a orientação dada, em que o movimento poderá ser

realizado conforme as possibilidades individuais. Ou seja, as diferenças corporais entre uma

pessoa e outra foram consideradas. Novamente, os registros indicam afinidade da perspectiva

do Trans-Forma com as abordagens somáticas, em que o movimento é tratado a partir das

individualidades. Destaca-se também, novamente, a afinidade do trabalho de Marilene com o

campo de conhecimento da anatomia humana, com relação ao conceito de variação

anatômica191. Conforme Dangelo e Fattini (2006, p. 6), “[...] a variação em Anatomia, é uma

constante”. Assim, observamos na proposição de Marilene a abordagem da anatomia humana

de forma a contemplar aquilo que há em comum entre os indivíduos – a variação – e, ao

mesmo tempo, diferencia-os quanto as suas corporalidades. Na perspectiva de Martins,

conhecer dança significou também conhecer o próprio corpo no movimento e conhecer o

corpo na construção do movimento. Ao acompanhar as anotações feitas nos cadernos,

compreendemos que, com relação à consciência corporal, a anatomia humana se constituiu

em um dos vínculos mais densos na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna.

O trabalho de consciência corporal sugerido por Marilene contemplou, além da estrutura

anatômica, exercícios sensoriais realizados a partir de outros estímulos, como o peso, a

191 O conceito de “variação anatômica” está relacionado às diferenças morfológicas apresentadas entre os indivíduos ou em um mesmo indivíduo, comparando-se os lados direito e esquerdo, e não causam prejuízo funcional (DANGELO; FATTINI, 2006). Ressalta-se que não foi observada no contexto do Trans-Forma a abordagem da pessoa com deficiência.

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temperatura, a forma e o volume do corpo, os pontos de apoio no chão, entre outros. O

exemplo que segue envolveu o peso e pontos de apoio do corpo no chão:

Fechar os olhos e soltar o corpo bem pesado no chão, procurando sentir os pontos de apoio, do contato do corpo no chão. Relaxar os maxilares (a boca se abre levemente) e sentir a língua solta dentro da boca; sentir a distância de uma sobrancelha e outra e relaxar a testa, sentir as pálpebras pesadas, tranqüilas (sic). [...] passar para os pontos de apoio das pernas [...] concentrar nos pontos de apoio das costas [...]. Senti-las frouxas e pesadas. Relaxar os ombros, procurando deixar os braços e mãos frouxos, pesquisando os seus pontos de apoio. Buscar o ponto de apoio da cabeça no chão e senti-la pesada sobre esse ponto de apoio.192

Com caráter similar ao anterior, a proposta sugeriu dar atenção à temperatura e ao tato:

“Sentir a temperatura do corpo, a temperatura do chão, e se esse contato é agradável ou não.

Sentir a pele e a malha, a espessura do tapete e o seu contato com o corpo; o contato dos

cabelos com a pele e a espessura dos cabelos”193. Os enunciados das práticas demonstraram

também um direcionamento no sentido da disponibilidade para tais exercícios, como grifado

na descrição:

Procurar ouvir o som mais longe possível, buscando recebê-lo com todo o corpo, como se o som entrasse pelos poros. Deixar o corpo aberto, sem resistência, receptivo, concentrando agora no som mais próximo. Agora tentar fundir os dois sons num só como um acorde que penetre em todo o corpo. [...] Procurar “ouvir” o silêncio, nem que seja apenas por um segundo, concentrando-se no silêncio interior e também no exterior.194

Em outra proposta, identificou-se o “convite” para experimentar uma prática ainda pouco

comum no contexto de dança de Belo Horizonte naquela época – décadas de 1970 e 1980: “A

música não é um cordão [...]. A música não tem forma definida. O som é feito de ondas

vibratórias, que envolvem todo o nosso espaço. Portanto, vamos tentar abrir todos os poros,

todo o corpo, e procurar receber a música”.195Ao abranger tais proposições, Marilene

explicitou uma abordagem que confiou na prática sensorial e no olhar do dançarino sobre si

mesmo para construir o processo de conhecimento em dança:

192 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira. 193 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira. 194 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira. (Grifo nosso) 195 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues. (Grifo nosso)

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Soltar o corpo, entregando-se à terra: eu entrego e recebo, recebo e entrego. [...] Deixar-se sustentar pelo chão, não impedir que isso aconteça. Confiar. Sentir se o lado esquerdo do corpo é igual ao direito ou se há uma diferença no toque, no peso, no tamanho. O meu rosto é igual dos dois lados? Sem qualquer movimento, abrir a garganta sentindo a passagem do ar pelo nariz, laringe, faringe, esôfago e pulmões. Abrir tudo como se fosse um canal, e sentir o movimento dos pulmões que se enchem e esvaziam, sem interferir nesse movimento. Sentir o canal se prolongar até o ânus. Relaxar o ânus abrindo-o e levar a respiração até ele. Eu ouço meu coração, sinto meu fígado. Que tem o meu fígado para me dizer? Que podem dizer os meus intestinos e os meus rins? Em meu corpo há uma luta pela vida. Os meus órgãos trabalham em harmonia, eles me ajudam, colaboram, tem uma finalidade, uma responsabilidade a cumprir. Que posso eu aprender com meu corpo? Que poderia ele me pedir?196

A afinidade de Marilene com a educação somática se fez notar também com relação à

perspectiva pedagógica desse campo, que segue na contramão de processos tradicionais

voltados apenas para uma resposta corporal pré-determinada (FORTIN, 1999). Sobre as

contribuições dessa área de conhecimento para a dança, Costas destaca mudanças importantes

relacionadas às práticas pedagógicas (2010, p. 22):

O interesse da dança pelas abordagens somáticas implicou em uma transformação na concepção de corpo que culmina em renovações significativas nas relações de ensino-aprendizagem: o sujeito (aluno) é chamado a participar ativamente, trazendo considerações de suas sensações e percepções corporais. Os processos educacionais em dança, irrigados pelo pensamento somático, demarcam entre os sujeitos (professor-aluno) relações de troca, que pressupõem o conhecimento do próprio corpo para poder colocar-se no lugar do outro, para aprender o gesto, o movimento trazido pelo outro.

Ao adotar um posicionamento somático, Marilene favoreceu o deslocamento do artista-

professor e do estudante de dança, já que o trabalho envolveu a perspectiva do aluno e sua

responsabilidade no processo de conhecimento, como demonstrado na prática denominada

“Forma e volume (espaço vazio)”, que sugere um exercício proprioceptivo:

_ Observar a distância de um pé ao outro e o desenho dos pés _ Sentir o espaço vazio entre os dedos dos pés _ Concentrar-se na perna direita – o volume dessa perna (repetir com a perna esquerda) e voltar toda a atenção no espaço vazio entre as pernas _ Sentir a distância de um osso a outro da bacia (ossos ilíacos, ponta pélvica) [...] _ Sentir a distância entre os ombros e as orelhas _ A forma e o volume do pescoço [...] _ Abrir os olhos lentamente e espreguiçar dos lados direito e esquerdo buscando a elasticidade dos músculos e o alongamento dos tecidos.197

196 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude (Grifo nosso) 197 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues.

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Outro exercício situado no início da aula, conforme o planejamento registrado, também se

apoiou na prática somática e enfatizou a atitude do dançarino que, a partir da percepção de si

orienta a experimentação do movimento:

Chão: relaxamento nas 3 posições (pontos de apoio) a – deitada, pernas alongadas b – pernas dobradas no chão c – pernas dobradas no ar Deixar o corpo bem pesado no chão (deixando) sentindo desde o pé até a cabeça, quais as partes que têm mais apoio e quais que apenas tocam o chão. Verificar principalmente a coluna, como se acomoda, se está confortável ou não. Sentir se há alguma diferença de peso das várias partes do corpo. Lentamente e sempre registrando as sensações, dobrar uma perna depois a outra e perceber o que acontece com os pontos de apoio, peso, acomodação da coluna, etc. Por fim, trazer os joelhos ao encontro do peito deixando pernas relaxadas no ar. Em cada posição pesquisar todas as sensações acima citadas. Depois escolher qual das três posições é mais confortável e apenas relaxar nela. Despertar, espreguiçando.198

Ainda no âmbito da consciência corporal, podemos dizer da presença de abordagens

somáticas na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna. Nesse contexto

situam-se os estudos realizados por Marilene Martins nos Estados Unidos, em 1974. A

dançarina fez aulas no Pilates Studio, de Joseph Pilates, quando conheceu um “[...] trabalho

com uso de máquinas”199, como registrado pela artista. Nas anotações, Marilene ressalta que

se trata de uma prática de alongamento e fortalecimento muscular, integrada à respiração, com

uso, ou não, de aparelhos e objetos específicos. Nos cadernos constam exercícios feitos no

chão, nas posições deitada e sentada, sem uso de materiais, como o exemplo descrito no

enunciado: “Deitada, pernas dobradas, pés na linha dos ombros. Sem contrair popô, coxa ou

barriga, levantar popô e coluna do chão só com a pressão dos pés (é uma pressão vertical que

cai sobre o triângulo do pé). Em seguida, empurrar o corpo para cima, até esticar os pés e

pernas”200. A imagem a seguir mostra o movimento:

198 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e 1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga (Grifo nosso). 199 MANUSCRITO: Curriculum Vitae de Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins em 1982?. 172 f. Acervo de Marilene Martins. 200 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 36 - Exercícios com máquinas

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Relacionadas às abordagen somáticas, a eutonia, criada por Gerda Alexander, também foi um

dos referenciais que compôs a tecitura do Curso de Dança Moderna, do Trans-Forma. O

contato com a eutonia também se deu na viagem feita por Marilene, em 1974, quando a artista

freqüentou as aulas de Gerda Alexander, em Talloires, na França. Integrando o campo da

educação somática, a eutonia enfatiza aspectos como o equilíbrio relativo à tonicidade

muscular, como explica Alexander (1983, p. 9):

A eutonia propõe uma busca, adaptada ao mundo ocidental, para ajudar o homem de seu tempo a alcançar uma consciência mais profunda de sua realidade corporal e espiritual, como uma verdadeira unidade. [...] A palavra eutonia (do grego eu = bom, justo, harmonioso, e tonos = tônus, tensão) foi criada em 1957 para expressar a ideia de tonicidade harmoniosamente equilibrada, em adaptação constante e ajustada ao estado ou à atividade do momento.

Além da abordagem corporal, relacionamos a proposta de Marilene com a dimensão

pedagógica apresentada por Gerda Alexander (1983, p. 40), em que as individualidades, a

autonomia e a consciência do corpo são incentivadas e relacionadas à expressividade:

Tentei encontrar um caminho que permitisse a cada aluno descobrir suas próprias possibilidades de movimento e expressão e que, ao mesmo tempo, lhe possibilitasse desenvolver suas capacidades artísticas e sociais mediante uma regularização e uma adaptação consciente do tônus.

Há algumas referências ao trabalho de eutonia, a exemplo do exercício denominado

“Pressão”, feito em duplas, que reúne as posições deitada, sentada e em pé. A primeira parte

do exercício é descrita no enunciado: “Deitadas de costas, pernas dobradas, pés juntos com os

da companheira, mãos dadas: uma estica as pernas fazendo pressão com seus pés sobre os pés

da outra, que dobra as pernas, empurradas por essa pressão”201. Essa parte é acompanhada

pela seguinte imagem:

201 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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Figura 37 - Exercício “Pressão” I

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

No momento seguinte é indicado um movimento a partir da posição apresentada na Figura 37:

“Agora esticar uma perna e dobrar a outra, como bicicleta, mas sempre fazendo pressão com

os pés. A perna que estica faz a pressão, a que dobra recebe”202. Esse trecho corresponde à

imagem a seguir:

Figura 38 - Exercício “Pressão” II

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

O próximo movimento é realizado nas posições deitada e sentada, como descrito:

PI – Uma deitada com os pés nas costas da outra (logo abaixo das omoplatas), pernas dobradas, braços ao longo do corpo, palma das mãos no chão. A outra sentada nos pés, de costas prá ela. A que está deitada empurra a companheira co a pressão dos pés até que ela, levantando o popô, fique ajoelhada. Voltar cuidadosamente à posição inicial.203

202 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira. 203 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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134

O enunciado corresponde à imagem a seguir:

Figura 39 - Exercício “Pressão” III

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

Na posição em pé, o trabalho feito por meio do toque e da pressão entre os parceiros continua:

“Uma de frente para a outra, segurando-lhe os ombros a empurra com a pressão das mãos. A

outra tem as mãos juntas, atrás do corpo”.204 A imagem que se segue corresponde a esse

movimento:

Figura 40 - Exercício “Pressão” IV

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

Ainda no âmbito da consciência corporal, Marilene apresentou vínculo com o trabalho do

brasileiro Ivaldo Bertazzo, que também se estabeleceu como referência no Trans-Forma com

relação ao estudo de movimento na dança, como será abordado à frente, nesta tese. Dentre as

204 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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referências feitas a Bertazzo, consta o exemplo de exercício que envolve o alongamento

muscular passivo205, em um trabalho feito em duplas, como descrito:

Deitar de barriga para o chão, uma mão sobre a outra, testa sobre as mãos. ATIVO – dobra a perna direita do passivo alongando o peito do pé e dedos, batendo o calcanhar no popô mais ou menos 4 vezes para alongar a musculatura frontal da coxa. Depois, relaxar a perna sem tirar o joelho do chão, balançar a perna, soltando-a. Repetir o movimento anterior, agora com o pé flexionado.206

A imagem a seguir acompanha a movimentação descrita:

Figura 41 - Trabalho em duplas

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Outras interações foram identificadas nesse âmbito, como o trabalho de Zena Rommett, com

quem Marilene Martins fez aulas nos Estados Unidos, em 1974. Denominado floor barre, a

proposta de Rommett propõe a prática do balé clássico em movimentos realizados no chão, de

forma a minimizar o impacto da gravidade. Desse modo, busca evitar danos ao corpo. Zena

Rommet é bastante citada nos registros dos artistas-professores e os exercícios relativos a sua

abordagem estão situados nos roteiros registrados, geralmente, na parte inicial da aula.

Rommet propõe o uso de referenciais anatômicos, do alinhamento ósseo e uso correto dos

músculos, com o objetivo de propiciar maior qualidade de movimento ao dançarino. Essas

características justificaram a afinidade do trabalho de Martins com a proposição dessa

professora, já que o Curso Básico de Dança Moderna do Trans-Forma contemplou de forma

relevante o referencial esquelético e articular no movimento, além da atenção à ação

muscular. Cabe reiterar que o uso da anatomia humana por Martins foi anterior ao seu contato

205 O alongamento passivo constitui-se em trabalho realizado com auxílio de forças externas, sejam elas feitas por pessoas, equipamentos ou objetos (CALAIS-GERMAIN; BLANDINE, 2010). Esse tipo de prática foi identificado em vários exercícios relativos à consciência corporal registrados nos cadernos. 206 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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136

com a proposta de Rommet. Desse modo, compreendemos que o diálogo com o trabalho

dessa professora tenha intensificado o uso desse referencial no Trans-Forma. Além disso, o

fato de Zena Rommett fazer uma abordagem de elementos técnicos do balé clássico nos levou

a relacioná-lo a Martins também com relação a esse aspecto. Os exercícios dessa técnica,

exemplificados a seguir, são articulados com a respiração:

1,2 – puxar a ponta do pé direito (calcanhar; dedos) – INSPIRA 3,4 – descer o pé direito no chão (dedos, meio do pé e calcanhar) – EXPIRA 5,6 – puxar a ponta do pé esquerdo (calcanhar; dedos) – INSPIRA 7,8 – descer o pé esquerdo no chão (dedos; calcanhar) – EXPIRA 1 oito – Repetir duas vezes com os dois pés. Depois: Repetir tudo com braços na 5ª207.

A descrição é acompanhada da seguinte imagem, que mostra as expressões indicadas,

relativas aos braços e pés:

Figura 42 - Sequência de Zena Rommet I

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Ressaltamos que, assim como o trabalho de Rommett, todos os referenciais relativos à

consciência corporal com os quais Marilene Martins estabeleceu vínculo foram registrados

por meio da escritura específica utilizada no Trans-Forma, como exemplificado no exercício:

“PI: Deitado de lado, pernas alongadas en dehors (o joelho de baixo não toca o chão). 1 –

Passé em dehors com a perna de cima; 2 – flexão do pé do passe; 3, 4 – trazer a perna de

baixo esticada em frente ao corpo [...]”208. Esse trecho corresponde à imagem a seguir:

207 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta. 208 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 43 - Sequência de Zena Rommet II

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

A movimentação continua na descrição: “[...] 5 – dobrar a perna de baixo (pé no ar); 6 –

alongar a perna de cima pelo calcanhar; 7 – empurrar dois pontos; 8 – alongar dedos [...]”209.

Esse segundo trecho é acompanhado por esta imagem:

Figura 44 - Sequência de Zena Rommet III

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

A última parte da sequência é descrita: “[...] 1, 2 – Trazer a perna de cima esticada em frente

ao corpo. 3, 4 – dobrá-la, juntando-a a de baixo; 5, 6, 7, 8 – alongar as pernas pelos dedos”210.

A figura abaixo acompanha a descrição:

Figura 45 - Sequência de Zena Rommet IV

Fonte: Caderno Relax – Máquina. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982) 209 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta. 210 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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No Trans-Forma, o exercício somático não foi realizado apenas de forma específica, mas

esteve integrado ao estudo do movimento que envolveu a experimentação de diferentes

técnicas de dança, além da dança moderna. O exemplo mostra que o referencial anatômico e o

recurso do toque em si mesmo foram utilizados para a compreensão de um movimento no

âmbito da técnica de dança: “[...] ensinar no lugar, só colocando as mãos nas costelas e

movimentando-as como na sequência de jazz, em pé (não deixar quadril mexer)”211. Também

na descrição da “Sequência de pernas e pés”, do 1º Ano, realizada no chão, há referência à

articulação responsável pelo movimento indicado: “pernas esticadas en dehors tentar colocar

o dedinho no chão torcendo bem as coxas – cabeça do fêmur” 212. Em outro enunciado, a

posição do corpo no movimento é explicada por meio de referenciais anatômicos e indica o

alinhamento de duas estruturas articulares, conforme figura a seguir: “1, 2, 3, 4 – virar o corpo

de lado deixando perna esquerda dobrada com o joelho na linha da articulação [do

quadril]”213.

Figura 46 - Alinhamento articular

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

Também em trecho da “Sequência dos quadris”, do 2º Ano, realizada em pé, há indicação de

alinhamento de estruturas anatômicas – os ombros e os pés –, bem como referência à

articulação a ser explorada no movimento, como descrito no enunciado:

PI: Pés paralelos, na linha dos ombros, no plié, popô bem pesado (assentada). e) Com deslocamento do corpo para a lateral abrindo 2ª. e fechando 1ª. paralela, joelhos sempre dobrados, mãos na virilha. Movimentar apenas os quadris, conservando os ombros nas linhas dos pés e o peito aberto. Não deixar os ombros caírem para frente. Manter o nível do corpo.214

211 MANUSCRITO: Caderno Relax – Máquina. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta. 212 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues (Grifo nosso). 213 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 214 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta (Grifo nosso).

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A imagem abaixo enfatiza as orientações dadas na descrição dessa Sequência:

Figura 47 - Alinhamento e movimento articular

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Ainda nessa perspectiva de articular o exercício somático ao estudo do movimento, o trecho

de uma sequência do 1º Ano, realizada no chão, é acompanhada de ilustração que faz

referência à coluna vertebral. O enunciado descreve o movimento a ser realizado:

Alongamento gradativo da coluna: 1º. – só o sacro, alonga e volta cóccix aponta chão 2º. Arredonda sacro e cintura – volta sacro e cintura 3º. Arredonda sacro e cintura e por último a região cervical, abaixando a cabeça215.

Na imagem que se segue e que acompanha o enunciado, ressalta-se o detalhamento das

regiões cervical, torácica e lombar da coluna com, inclusive, a indicação do número de

vértebras que compõem cada uma dessas partes.

Figura 48 - Coluna vertebral

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

215 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues.

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Na “Sequência de Sensibilização”216, do 5º Ano, realizada no chão, o esqueleto, as

articulações e a musculatura foram importantes para orientar com relação à movimentação. O

enunciado indica a posição inicial: “PI – pernas em plié, tronco relaxado, palmas das mãos e

cotovelos no chão”217. Esse trecho corresponde à imagem que se segue:

Figura 49 - “Sequência de Sensibilização” I

Fonte: Caderno de 5º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Ainda nessa sequência, a descrição faz referência à estrutura anatômica para iniciar e

desenvolver o movimento: “1, 2 – alongar braço direito, sentindo o movimento partir da

omoplata, o braço é dirigido pelo cotovelo e a cabeça segue o movimento. 3, 4 – Relaxar o

braço puxando pelo cotovelo voltando à PI”218:

Figura 50 - “Sequência de Sensibilização” II

Fonte: Caderno de 5º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

216 Conforme consta das anotações de Dorinha Baêta, a “Sequência de Sensibilização” é de autoria de Dudude. 217 MANUSCRITO: Caderno de 5º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1982 e 1983. 21 f. Acervo de Dorinha Baêta. 218 MANUSCRITO: Caderno de 5º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1982 e 1983. 21 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Em uma anotação sobre um movimento de extensão do tronco, a artista-professora indica:

“Quando for atrás o movimento parte do [músculo] diafragma”219. Nos registros, a conduta

somática orientada pela anatomia humana ofereceu referenciais para a realização do

movimento. O trecho a seguir apresenta a decomposição de uma sequência, cujo

deslocamento é marcado por quatro posições:

(1) alongar perna e braço direito no ar na frente do corpo (2) levar perna e braço ao lado do corpo, coluna inclina-se bem pouquinho para esquerda, glúteo direito fora do chão; (3) colocar as pernas na 3ª. posição (uma cruzada frente, outra cruzada atrás) braço direito alongado, mão no joelho, coluna ainda inclinada; (4) crescer coluna no eixo e colocar os dois glúteos no chão220.

A descrição pode ser acompanhada pela imagem a seguir, em que é possível relacionar cada

posição a uma parte do texto, sendo estas correspondentes aos tempos “1”, “2”, “3” e “4”:

Figura 51 - Movimento de passagem

Fonte: Acervo de Arnaldo Alvarenga (1982-1984)

A presença da anatomia humana e de abordagens somáticas na tecitura epistemológica do

Curso Básico de Dança Moderna demonstrou o alinhamento de Martins com uma prática de

dança que começa a surgir no movimento pós-moderno da segunda metade do século XX e

ganha espaço em discussões na contemporaneidade, como visto em Domenici (2010), Fortin

(1999, 2011, 2014) e Costas (2010, 2011). Nesse contexto, tornou importante discutir o corpo

a partir das diferenças e a dança considerando uma pluralidade de expressões. Tal atitude foi

observada no Trans-Forma.

219 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude (Grifo nosso). 220 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga.

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A convivência com diferentes referenciais somáticos por meio do contato com artistas,

professores e abordagens provocou a inserção de alguns deles na tecitura do Curso Básico de

Dança Moderna. Desse modo, manteve-se o movimento autopoiético e o Curso teve sua

estrutura ampliada. Ressaltamos em tais vínculos a relação entre práticas corporais e de dança

com posicionamentos pedagógicos. Nesse caso, considerando a relação entre humanização e

consciência corporal identificada no pensamento de Marilene, compreendemos que os

vínculos com a anatomia humana e com abordagens somáticas, que se estabeleceram na

tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna, tiveram um papel importante na

perspectiva pedagógica da artista, que se interessou pelo respeito ao humano na dança.

Salientamos, então, o entrelaçamento de abordagens somáticas e prática de dança em Martins,

o que, conforme Costas (2010), favorece uma prática pedagógica atenta às individualidades,

que questiona modelos e a obediência a determinados padrões corporais e de movimento.

Embora tenham sido observadas algumas raras expressões, como “[...] estômago para dentro

[...]” 221, ou, “[...] popô222 sempre preso [...]”223, distoantes do contexto apresentado no Trans-

Forma, não foram identificados nas anotações aspectos que demonstraram preferência por

determinados biótipos ou exigência de habilidades corporais específicas para a realização do

trabalho. O rigor explicitado nos registros esteve voltado para o tratamento minucioso dado

aos movimentos em um contexto que considerou diferentes corporalidades.

Os registros mostraram, ainda, expressões e orientações utilizadas para a experimentação do

movimento que indicam coerência com modos de fazer em que o aluno trabalha com

referência em seu corpo e em diálogo com técnicas de dança. Notou-se uma atenção do

professor às características do aluno, bem como da turma de alunos. No roteiro de uma aula

do 1º Ano, a artista-professora anotou sobre os procedimentos no processo de aprendizagem

de uma sequência de movimento: “Bem lentamente, seguindo o ritmo da turma”224. Sobre a

realização de um exercício, a professora reitera a palavra “tentar” na orientação para o

movimento: “Ninar a perna. Tentar colocar o pé no peito, na testa, sentir o contato com o

221MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos. Redigido por Dorinha Baêta entre 1976 e 1979. Acervo de Dorinha Baêta. 222 O termo “popô” é utilizado por dançarinos e professores de dança para se referir à região dos músculos glúteos. 223 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos. Redigido por Dorinha Baêta entre 1976 e 1979. Acervo de Dorinha Baêta. 224 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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rosto e tentar passar a cabeça”225. Situamos a ação de tentar no âmbito da experimentação, em

que o aluno é estimulado ao movimento, e não, orientado a atingir um determinado resultado.

Compreendemos que a perspectiva somática favoreceu o estabelecimento de uma

metodologia de ensino-aprendizagem de dança que priorizou a experimentação como modo

de fazer, já que apoiado na perspectiva corporal do indivíduo sobre si. Nesse sentido, os

registros indicaram a coerência da tecitura epistemológica com a conduta metodológica no

Trans-Forma, cuja abordagem priorizou o conhecimento na perspectiva da experimentação, e

não a realização do movimento segundo configurações determinadas a priori.

Considerando as abordagens somáticas na tecitura epistemológica de Martins, que propõem

uma prática de experimentação do corpo e do movimento, relacionamos a perspectiva de

conhecimento em dança do Trans-Forma com a discussão de Kastrup (2007), que convida a

pensar a cognição como invenção. A partir do conceito de “autopoiese”, de Maturana e Varela

(2201, 2003) e da noção de cognição relativa a ele, Kastrup caracteriza como inventivo um

processo que considera a autonomia do sujeito cognoscente. Nesse caso, o objetivo principal

deixa de ser a representação, um processo determinado pelo modelo externo, e passa a ser a

proposição, um movimento que poderá partir de um estímulo externo, mas não é determinado

por ele e se estabelece como construção do sujeito. Assim, conforme Kastrup (2008, p. 107),

“[...] em sentido último, aprender é experimentar incessantemente, é fugir ao controle da

representação”. Na prática somática, o sujeito cognoscente não está submetido a modelos,

mas a partir de si e na convivência com o outro, estará voltado, principalmente, à construção

de si e do movimento. Ao considerar o alinhamento entre a abordagem artístico-pedagógica

de Martins e a cognição inventiva, discutida por Kastrup, compreendemos que no Trans-

Forma o sujeito da dança não esteve voltado para a execução do movimento a partir de uma

demanda externa, mas, a partir de si, foi estimulado a experimentar e lidar com o movimento

em uma perspectiva de invenção.

4.2.2 Estudo de movimento na dança

No trabalho de Marilene, o estudo de movimento correspondeu à abordagem de técnicas de

dança, em que se identificou o objetivo de compreender a corporalidade e a construção do

225 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta em 1979. 95f. Acervo de Dorinha Baêta.

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144

movimento em diferentes propostas. Para Navas (2012),a técnica de dança se configura como

estratégia voltada para a formação em dança no contexto da modernidade. Nesse âmbito, a

autora observa a elaboração de referenciais a partir da negação da primazia do balé e do

surgimento de proposições que prezaram a individualidade de seus autores. Nesse panorama,

estão inseridas as técnicas de dança moderna, como aquelas criadas por Martha Graham e

José Limón que, segundo Navas (2012, p. 4), são “[...] entendidas como conjuntos de

procedimentos, que, ao longo do tempo, e eivados de redundância repetem-se para a obtenção

de habilidades para a performance física, expressiva, comunicativa”. Em Legg (2011), o

exercício técnico de dança encontra-se prioritariamente relacionado a uma prática corporal

sistematizada que envolve ideias sobre movimento, dança e corporalidade, podendo estar, ou

não, voltada para a performance artística. Como em Legg (2011), observou-se em Marilene a

noção de técnica de dança, principalmente, como perspectiva de movimento a ser encarada no

âmbito do estudo de movimento e do exercício somático. Quanto à questão da diferença, no

Trans-Forma notou-se o interesse por diferenças, no plural. Assim, não houve a definição de

uma única técnica de dança, mas a experimentação de diferentes referenciais, possibilitada

pelo meio de convivência artística estabelecido na escola de Marilene. Além disso,

ressaltamos a criação de um material específico que correspondeu ao que foi denominado

como sequências básicas de movimento, de autoria de Martins e artistas-professores do Trans-

Forma.

O acompanhamento do dossiê permitiu observar que a composição dos roteiros de aula

contemplou distintos referenciais técnicos, como exemplifica o registro que consta da Figura

52, que reuniu elementos de dança moderna – a “sequência de olhar os pés”, criada por

Martins – e, ainda, de jazz, de balé clássico e do primitivo:

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Figura 52 - Roteiro de aula I

Fonte: Caderno de Dudude. Acervo de Dudude (1976-1977)

Outro exemplo apresenta um roteiro que abrange o estudo de três abordagens diferentes de

dança – primitivo, afro-brasileiro e dança clássica (Figura 53):

Figura 53 - Roteiro de aula II

Fonte: Caderno de Dorinha Baêta. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

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Embora reconhecida como uma escola de dança moderna, o entrelaçamento de diferentres

referenciais técnicos no Curso Básico de Dança Moderna aponta para uma atitude pós-

moderna de Martins. Observou-se que a prática de dança no Trans-Forma foi abrangente,

plural e ultrapassou delimitações específicas. Além disso, colocou diferentes abordagens em

diálogo e propôs atravessamentos entre elas, aspectos que remetem ao pós-modernismo, como

discutido por Banes (1987). Conforme os registros, o estudo de movimento no Trans-Forma

caracterizou-se por diversidade técnica e diferentes configurações de corpo no movimento, e

em que a experimentação foi subsidiada pela anatomia humana, particularmente pela

referência ao aparelho locomotor. Costas (2010) destaca o papel mediador das abordagens

somáticas em um contexto caracterizado pela diversidade corporal e artística, aspecto

identificado na proposição de Marilene Martins. A partir do estudo nos cadernos de registro

dos artistas-professores, foi possível observar que, nesse contexto caracterizado pela

diversidade, o referencial anatômico se estabeleceu como um recurso para a compreensão e

também para a realização do movimento Percebeu-se também nos registros, além da atenção

às diferenças entre as técnicas de dança, a relação entre esses referenciais a partir da

identificação de semelhanças entre eles. Sobre a articulação entre anatomia e técnica de

dança, retomamos a relação entre o trabalho de Marilene Martins e o de Klauss Vianna, entre

os quais apontamos abordagens distintas. Assim, se em sua fase belo-horizontina Vianna

utilizou o referencial anatômico para fundamentar as novas ideias relativas especificamente à

técnica do balé clássico, em Marilene, tais referenciais possibilitaram a experimentação e o

deslocamento entre várias proposições técnicas.

4.2.2.1 Sequências básicas de movimento: dança moderna e atitude pós-moderna no Trans-

Forma

Iniciamos o acompanhamento desse material genético pelas sequências de movimento criadas

por Marilene e artistas-professores do Trans-Forma. Essas sequências compuseram a tecitura

do Curso Básico de Dança Moderna e explicitaram o investimento de Marilene em um

trabalho autoral que buscou estruturar uma formação artística fundamentada na dança

moderna. Inclusive, a artista menciona uma “Técnica de Dança Moderna Marilene

Martins”.226 Nesta pesquisa, não recusamos essa ideia, mas também não buscamos essa

discussão. Considerou-se que o trabalho de Marilene Martins tenha se constituído em uma 226 MANUSCRITO: Técnica da Escola. Redigido por Marilene Martins entre 1971 e 2010. Acervo de Marilene Martins.

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abordagem artístico-pedagógica que envolveu, entre outros materiais, elementos de caráter

técnico, tendo sido muitos deles elaborados por Martins. A artista criou sequências para serem

feitas no chão, na barra e no centro, sendo estas últimas com e sem deslocamento no espaço.

Sobre esse trabalho de Martins, Lydia Del Picchia comenta:

A Nena criava essas sequências. No início ela criou, começou a trabalhar. Tinha muito trabalho dessas viagens que ela fez. Ela foi colhendo material e montou essas sequências com o que ela achava que era mais importante. Então, tinha sequência de pé e perna... Tinha a música (canta a música). Eu lembro da música até hoje. “Relaxa, relaxa, fura o ar, dedo, calcanhar, dois pontos, dedos...” (cantando e ditando a sequência). Qualquer pessoa que estudou no Trans-Forma, se você falar “relaxa, relaxa e fura o ar”, a sequência inteira, vem na cabeça. E aquela sequência era a primeira sequência de trabalho de perna e pé. A gente tinha ela desenhada no caderno (PICCHIA, 2010).

A partir dos conteúdos propostos para cada um dos cinco anos do Curso e de acordo com o

roteiro delineado para as aulas, Marilene criou grupos de sequências. Assim, há sequências de

chão, de barra e de centro para todas as turmas. No início do Trans-Forma, Marilene contou

com a colaboração de Dudude para a criação desse material:

Aí, eu ia lá pro Trans-Forma de manhã, quando a escola começou a crescer, e ficava com ela lá. Eu fazia os exercícios, os movimentos, as sequências... “Ah, vão fazer assim?” “Vamos!” Aí, ela ia anotando. Então, a escrita do Trans-Forma foi feita no meu corpo. Porque eu era uma pessoa que tava lá assim, né? (DUDUDE, 2010).

Dudude relata também que era dado um nome para cada sequência (DUDUDE, 2010),

conforme foi identificado nos cadernos. Como exemplo, no 1º Ano há a “Sequência de pernas

e pés”, a ser realizada no chão, a “Sequência de ‘apanhar chuva’”, a ser feita no centro, e

“Pular maré”, um exercício de salto; no 2º Ano há a “Sequência do gato”, no chão, a

“Sequência do corpo uniforme”, na barra, e o salto no centro denominado “Pular maré

virando de costas e de frente”, em continuidade ao exercício do 1º Ano; no 3º Ano, há a

“Sequência de passagem dentro de uma mesma forma”, realizada no chão, a “Sequência de

abertura”, na barra, e o salto “Passeando pelo campo”, no centro; no 4º Ano, há o “Grand plié

com braço torcido” e o “Grand plié procurando o pé”, ambos a serem feitos no centro; e, no 5º

Ano, há, por exemplo, a “Sequência de sensibilização”, no chão, e “Sequência da ‘roda’” e

“Sequência da ‘foice e machado’”, no centro. Várias sequências e exercícios apresentam mais

de uma parte, sendo cada uma delas introduzida em um ano diferente, em uma dinâmica de

desenvolvimento e ampliação, como acontece com os saltos “Pular maré” e “Pular maré

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virando de costas e de frente”. A primeira sequência, relativa ao 1º Ano, apresenta a seguinte

descrição de movimento, feito a partir da posição em pé com os pés paralelos:

Dar pulinhos para frente, abrir 2ª. e fechar 1ª. 4 tempos: 1 – pulinho para frente com a perna direita (esquerda dobra no ar); 2 – pulinho para frente com a perna esquerda (direita fica dobrada para trás no ar); 3 – Saltar caindo na 2ª. paralela e batendo uma palma acima da cabeça; 4 – saltar fechando as pernas na 1ª. paralela e descendo os braços alongados pelas laterais.227

O texto relativo à sequência é acompanhado pela seguinte imagem:

Figura 54 - Sequência “Pular maré”

Fonte: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

No 2º Ano, essa sequência se apresenta ampliada, como descrito:

Dois a dois, na diagonal da sala: 1,2 – dois pulinhos de pular maré para frente; 3, saltar dando meia volta, virando para a perna de trás e fechando a 1ª. paralela, corpo de costas para a diagonal; 4 – saltar dando meia volta, desvirando e caindo na 1ª. paralela, corpo de frente para a diagonal. No 3º. Tempo, tendo começado o exercício com a perna direita, o corpo vai virar de costas para a diagonal pelo ombro direito, pois a perna direita está atrás. Braço esquerdo abraça a cintura em frente ao corpo e o direito está dobrado atrás das costas encostado na cintura com a palma da mão para fora. No 4º. Tempo o corpo vai virar de frente para a diagonal pelo ombro esquerdo. O braço direito abraça a cintura em frente ao corpo e o esquerdo passa para trás dobrado e encostando na cintura atrás das costas com a palma da mão fora.228

A imagem a seguir acompanha a descrição:

227 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta. 228 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta eentre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 55 - Sequência “Pular maré virando de costas e de frente”

Fonte: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Algumas sequências relativas aos três primeiros anos do Curso, embora encontradas com mais

freqüência nessas turmas, foram também utilizadas em outros momentos do percurso

formativo. Essa atitude de ampliar ou retomar uma sequência no percurso dos cinco anos

apresenta coerência com a noção de rede e aponta para uma perspectiva de processo de

conhecimento. Ao considerar, conforme Musso (2013), que tanto o vínculo como a transição

entre um vínculo e outro são importantes no movimento em rede, a ampliação ou a retomada

de uma sequência de movimento se constituiu em adensamento da relação com um

determinado conteúdo. Essas ocorrências permitiram compreender o processo de

conhecimento no Trans-Forma, não apenas a partir de um novo vínculo, mas também e tão

importante quanto, pela convivência com um referencial. E, ainda, pelos entrecruzamentos

entre diferentes referenciais e pela mudança de ponto de vista em relação a eles. Nesse âmbito

foi identificada a “Sequência de Pernas e Pés”229, do 1º Ano, utilizada em aulas de várias

turmas e mencionada correntemente nos cadernos por meio do trecho “relaxa, relaxa e fura o

ar”, com o qual se inicia a movimentação, como descrito a seguir:

1,2 – relaxa, relaxa com os pés relaxados (perna direita) 3,4 – fura o ar 5 – vem os dedos 6 – pé reto 7 – alonga dois pontos 8 – alonga os dedos 1 – dobra a perna direita com o pé alongado 2 – alonga para cima, empurrando pelo peito do pé

229 Em pesquisa anterior da autora, em que foram entrevistados artistas-professores do Trans-Forma, esse trecho da “Sequência de Pernas e Pés”, do 1º Ano do Curso Básico de Dança Moderna foi citado várias vezes. Chamou a atenção o fato de vários desses artistas citarem essa sequência, demonstrando-a e, inclusive, utilizando o mesmo texto, considerando as palavras, a musicalidade e a entonação da voz para descrevê-la.

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e – flexiona o pé, colocando-o reto 3,4 – desce a perna, até na linha do quadril 5 – alonga o pé no ar, lançando a perna num grand battement, soltando do popô e empurrando pelo peito do pé 6 – desce até alongar a articulação da coxa 7 – novamente grand battement 8 – desce “e” – fecha (começa então com a esquerda) – fazer 2 x com cada perna intercalando.230

A imagem a seguir mostra o registro dessa Sequência:

Figura 56 - Sequência “Relaxa, relaxa e fura o ar”

Fonte: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

As sequências básicas cumpriram um papel fundamental na tecitura do Curso Básico de

Dança Moderna, por envolverem relações que delinearam o caráter do sistema artístico-

230 MANUSCRITO: Caderno Sequências Básicas de 1º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta eentre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta.

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pedagógico de Martins, bem como por estarem vinculadas ao objetivo da artista de estruturar

um percurso formativo fundamentado em referenciais de dança moderna. Na composição

dessas sequências foram identificadas características encontradas nesse contexto de dança,

como a horizontalidade do corpo, a utilização do chão como espaço de trabalho, o uso da

posição paralela dos pés, a exploração de movimentação com o tronco, diferentes movimentos

com os braços e o movimento construído a partir da combinação entre contração e

relaxamento, ou contraction and release (LEGG, 2011; LOVE, 1997).

Ressaltamos a relevância de movimentos no chão, ou seja, nas posições deitada e sentada, por

terem sido bastante explorados, como demonstrado no roteiro de aula proposto para o Curso

Básico de Dança Moderna, em que há um momento específico para esse tipo de trabalho. No

primeiro exemplo, o trecho inicial de uma sequência de 1º Ano, a ser feita no chão, é descrito

com o seguinte enunciado:

Deitada de costas para o chão. Exercício de braços: Levar o braço direito ao encontro do esquerdo (esticado pela frente do corpo) fazendo com que a mão direita passe em frente da esquerda, virando o corpo de lado e conservando as pernas abertas. O ombro direito se desloca para frente. a) Voltar o braço primeiro e depois os quadris; b) Voltar primeiro os quadris, fazendo com que eles puxem os braços.231

A imagem a seguir ilustra o movimento descrito:

Figura 57 - Movimento no chão I

Fonte: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Na “Sequência da Coluna”, também do 1º Ano, a movimentação feita no chão explora a

posição deitada e se desloca para a posição sentada. A partir da posição inicial deitada de

231 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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costas, com as pernas paralelas dobradas, calcanhares próximos aos ísquios e os braços ao

longo do corpo, prossegue a movimentação:

1, 2 – Relaxar os braços, subindo os cotovelos para fora do corpo; mãos relaxadas para baixo. Com esse movimento dos braços, tirar os ombros do chão, deixando a cabeça cair para trás. A cintura fica grudada no chão. 3, 4 – Puxando os cotovelos para baixo, tirar a coluna (cintura) do chão, o pescoço e a cabeça voltam a ficar retos. As palmas das mãos ficam ao lado das coxas, voltadas para cima. Fazer 4 x (isto é, 2 oitos) sendo que na 4ª. vez tem uma passagem [...].232

Figura 58 - Movimento no chão II

Fonte: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

A sequência continua com uma passagem para a posição sentada, descrita como: “5, 6 – fecha

sanfona. 7, 8 – estica os braço para cima, passando pela frente; ao mesmo tempo, abrir as

pernas em plié”233:

Figura 59 - Movimento no chão III

Fonte: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

232 MANUSCRITO: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta. 233MANUSCRITO: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta

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No próximo trecho da sequência, o movimento continua na posição sentada, sendo orientado

pelo seguinte enunciado:

(1) Impulso com os braços fazendo meio círculo pelo lado de fora (não apoiar os braços no chão; eles apenas dão o impulso para subir o corpo); (2) alongar a coluna assentando sobre os ísquios e juntar cotovelos separando as mãos (abaixar bem os ombros e não contrair as costas); (3, 4) separar cotovelos, pegar no tornozelo e relaxar o corpo na frente.234

A imagem mostra a movimentação descrita:

Figura 60 - Movimento no chão IV

Fonte: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

A próxima parte é explicada: “(5, 6, 7, 8) – ir voltando a coluna no chão, ‘desenrolando’

vértebra por vértebra, juntar costas das mãos. Os braços vão subindo, passando pelo centro do

corpo”.235 Esse trecho da sequência é finalizado na posição sentada:

Figura 61 - Movimento no chão V

Fonte: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

234 MANUSCRITO: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta. 235 MANUSCRITO: Caderno Sequências Básicas de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta

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As posições de pés paralelos são enfatizadas em sequências de chão, como mostrado, e

também na barra e no centro. A sequência de barra do 4º Ano segue o seguinte enunciado:

PI: de costas para a barra, mãos apoiadas sobre a mesma, joelhos na linha dos ombros. 1, 2 – Elevé; 3, 4 – grand plié; 5 – colocar os joelhos no chão; 6 – tirar os joelhos do chão; 7 – colocar os calcanhares no chão; 8 – tirar os calcanhares do chão; 1, 2, 3, 4 – colocar novamente os joelhos no chão; 5, 6, 7, 8 – empurrar o popô para frente fazendo cambré para trás; 1, 2, 3, 4 – Assentar novamente sobre os pés, largando a barra e segurando os calcanhares (o corpo continua distendido para trás) – 2 tempos para assentar; 2 tempos para segurar os pés; 5, 6, 7, 8 – Alongar a coluna para frente com o peito aberto e relaxá-lo abaixando a cabeça; 1, 2 – contração da coluna; 3, 4 – alongamento da coluna; 5, 6 – contração da coluna; 7, 8 – alongamento da coluna (mesma posição segurando os pés); 1, 2, 3, 4 – soltar os pés e segurar a barra deixando a coluna e a cabeça um pouco relaxadas para frente; 5, 6, 7, 8 – colocar calcanhares no chão e esticar joelhos descendoo corpo, cabeça bem próxima do chão (corpo derramado para frente).236

A descrição acompanha a seguinte imagem que demonstra a ênfase na posição paralela de

pernas e pés:

Figura 62 - Pernas e pés paralelos

Fonte: Caderno de 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Outras sequências de movimento utilizam a orientação paralela dos pés e o deslocamento da

posição em pé para o chão, como explicitado no enunciado a seguir:

PI: De pé, 4ª. posição paralela de pés, no abaixamento, costas curvadas para frente, braços soltos e relaxados. 1 a 4 – Esticar as costas subindo os braços, permanecendo no lugar. 5 a 8 – Andar 4 passos para frente, descendo os braços até a cintura. 1 a 6 – Agachar em 6 tempos. 7, 8 – Se atirar de joelhos no chão, cotovelos perto dos joelhos, braços para frente, palmas das mãos no chão, costas curvas, cabeça baixa. 1 e 2 / 3 e 4 – Mantendo esta posição, rolar para a direita e esquerda. 5 – Colocar a cabeça no chão (bem no cocoruto), dar um impulso para trás. 6 – Levantando em plié na 4ª. posição paralela, mãos na cintura, costas dobradas.

236 MANUSCRITO: Caderno de 4º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1972 e 1984. 31 f. Acervo de Dorinha Baêta. (Grifo nosso)

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7, 8 – Para frente. Nesta mesma posição, deixar cair braço, voltando à posição inicial.237

A descrição acompanha a movimentação apresentada de forma sequencial na figura adiante:

Figura 63 - Deslocamento I

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

E continua:

Figura 64 - Deslocamento II

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Com relação à movimentação dos braços foram observadas linhas curvas e angulares, que

situam o trabalho no contexto de dança moderna, como mostra a sequência de centro do 2º

Ano:

Figura 65 - Movimento de braços I

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

237 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2ºAnos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Novamente no 2º Ano, o exercício a ser feito no centro utiliza o movimento de braços

também para fazer giros. A imagem acompanha a seguinte orientação para a experimentação

do movimento: “a) Transferência de lado. b) O mesmo movimento em diagonal começando

com passo e giro (o braço desenha um círculo acima da cabeça)”.238

Figura 66 - Movimento de braços II

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

No âmbito da dança moderna, foram observados no trabalho de Marilene traços específicos de

duas vertentes técnicas da dança norte-americana: Técnica de dança moderna de Martha

Graham e Técnica de José Limón. Sobre a técnica de Graham, Legg (2011) explica sua

associação com movimentos de contração e relaxamento do tronco e sua reverberação em

todo o corpo. Graham propôs utilizar esses movimentos em diferentes posições, observando o

papel da pélvis e da coluna lombar no trabalho. Esse referencial foi identificado na

composição do movimento, como na sequência “Grand plié com braço torcido”, do 4º Ano,

que reúne a contração de tronco e o trabalho coordenado de braços e pernas. O enunciado

apresenta orientações para a movimentação:

Preparação: 1, 2 braços na 1ª. posição. 3, 4 – abre 2ª. posição 1, 2 – Contração costela direita (a costela é que sustenta). Cabeça sempre acompanha o braço que está para baixo. 3, 4 – Sobe contraindo o outro lado para subir. “e” – Troca os braços para subir no eleve contraindo o outro lado. 5, 6 – Contrair costela esquerda e subir no eleve. Os braços são longos, enormes. 7, 8 – Voltar ao eixo sem contração de costela e cabeça olhando para frente. Os pés voltam no chão. “e”, “e” – troca, troca os braços para recomeçar do outro lado.239

238MANUSCRITO: Caderno 1º e 2ºAnos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta. 239 MANUSCRITO: Caderno de 4º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1972 e 1984. 31 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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A descrição é acompanhada das imagens a seguir, apresentadas na ordem em que é realizada a

sequência:

Figura 67 - Sequência “Grand plié com braço torcido” I

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979).

Figura 68 - Sequência “Grand plié com braço torcido” II

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979).

Figura 69 - Sequência “Grand plié com braço torcido” III

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979).

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Figura 70 - Sequência “Grand plié com braço torcido” IV

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Figura 71 - Sequência “Grand plié com braço torcido” V

Fonte: Caderno Roteiros para o 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Além de movimentos de contração e relaxamento, também relativo a essa abordagem técnica

foi observado o movimento de torção, como demonstrado na “Sequência Torção do tronco

(Caminho)”, que enfatiza também o movimento de braços, como descrito:

1, 2 – Um passo para frente com a perna direita em plié, ficando a perna esquerda esticada atrás e as plantas dos pés no chão. 3, 4 – Permanecendo parada, fazer torção do tronco para o lado direito (os quadris ficam de frente e os ombros se viram para o lado direito, enquanto a cabeça olha atrás). BRAÇOS: o direito aponta reto para trás mostrando a palma da mão, dedos juntos e esticados; o esquerdo fica dobrado (cotovelo para frente e mão com os dedos juntos e esticados mostram as costas na altura da cintura direita. 5, 6 – Transferência de peso para a perna da frente, ficando ambas esticadas e a de trás apenas com os dedos no chão. BRAÇOS: o braço direito e a cabeça

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permanecem na mesma posição. O braço esquerdo tira a mão da cintura para colocar a palma da mão sobre a testa conservando o tronco na posição anterior (torção para a direita). 7, 8 – Juntar a perna esquerda à direita. BRAÇOS: o esquerdo desce esticado pela frente do corpo e o direito abaixa-se ficando ambos ao longo do corpo, enquanto o tronco se volta para frente. - o quadril é sempre de frente. - o tronco nos tempos 1, 2 e 7, 8 está de frente e nos tempos 3, 4 e 5, 6 está de lado.240

O enunciado diz respeito à seguinte movimentação:

Figura 72 - Sequência “Torção do tronco (Caminho)”

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Também em exercícios dados para o 1º e o 2º Anos foram utilizadas expressões para a

orientação do movimento, como “tipo Martha Graham”241, ou “Martha Graham de

mentirinha”, exemplificado na descrição que segue:

Martha Graham de mentirinha com os pés relaxados. 1ª. posição de borboleta – relaxar e alongar coluna. Depois de feita duas vezes, relaxar pernas à frente, batendo-as no chão soltinhas, braços ao lado, soltar voz – 2 tempos, abraçar joelhos (3); abre (4). 4 vezes na 4ª. soltar o corpo no chão.242

Considerando que no 4º e no 5º Anos a Técnica de Martha Graham foi um referencial

utilizado no Curso, consideramos que tais expressões, além de favorecer a compreensão do

movimento, demonstraram o espaço relevante desse referencial no Trans-Forma.

240 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta. 241 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues. 242 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia Ferreira.

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Com relação à técnica de José Limón, constituída pelo coreógrafo a partir das influências de

Doris Humphrey243 e Charles Weidman244, destaca- se um trabalho que priorizou a articulação

entre a respiração e o peso do corpo (LEGG, 2011). Esse referencial foi identificado nas

sequências básicas criadas por Marilene, nas quais se percebeu o uso da ação da gravidade em

relação ao peso da cabeça e do tronco. A “Sequência da cabeça com ombros e tronco”, do 2º

Ano, cuja primeira parte é descrita a seguir, exemplifica o uso de aspectos relativos a essa

técnica:

PI – de pé, pés na linha dos ombros, braços ao longo do corpo, joelhos relaxados e sentir bem a base (sobre os pés firmemente), para poder se soltar sem cair (Toda vez que ficar tonto, bater os pés firmemente no chão para se recuperar). a) Sem movimentar os ombros girar a cabeça bem solta. Iniciar como movimento de soltar a cabeça frente, direita, atrás e esquerda, bem ligado. Depois repete para o lado esquerdo.[...] 1, 2 – Abaixar o ombro direito rolando a cabeça (que pende para frente) para cima do ombro direito. 3, 4 – Abaixar o ombro esquerdo, rolando a cabeça (que pende para frente) para cima do ombro esquerdo. [...] Durante o exercício a cabeça faz os seguintes movimentos: meia volta, meia volta, meia volta, meia volta, volta inteira, volta inteira. NOTA: Até aqui o movimento é só de ombro e cabeça, o tronco só se inclina para um lado e outro.245

Essas anotações referem-se aos movimentos que constam da imagem a seguir:

Figura 73 - Sequência da cabeça com ombros e tronco

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

243 Doris Humphrey (EUA, 1895-1958). A dançarina e coreógrafa é considerada uma das representantes da primeira geração da dança moderna estadunidense (LEGG, 2011). Acompanhando a relação entre dança e vida que pautou o pensamento da dança moderna, Humphrey subsidiou sua dança com os movimentos de cair e recuperar, e de tensão e relaxamento. Também se interessou pela composição coreográfica, para a qual Humphrey propôs alguns referenciais (GARAUDY, 1980). 244 Charles Weidman (EUA, 1901-1975). Dançarino e coreógrafo. Conforme Legg (2011), junto com Doris Humphrey, Weidman produziu obras coreográficas importantes. 245 MANUSCRITO: Caderno de 2º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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A segunda parte da sequência utilizou movimentos com o tronco, conforme o enunciado:

f) Repetir todo o exercício anterior, soltando agora o tronco junto com o movimento do ombro e da cabeça. A cabeça se inclina para frente até perto do chão e o tronco acompanha, pois é dirigido e influenciado por ela; a mesma coisa acontece para o lado e para trás. (Mexer somente da cintura para cima).246

Esse segundo trecho corresponde à próxima imagem:

Figura 74 - Sequência da cabeça com ombros e tronco

Fonte: Caderno de 2º. Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Entre os vínculos artísticos que compõem a rede de movimento do Curso Básico de Dança

Moderna, a Técnica de José Límon foi identificada no trabalho desenvolvido por Clyde

Morgan, com quem Marilene247 fez aulas de dança. Arnaldo Alvarenga menciona o artista em

seu relato: “[...] estava dentro do trabalho técnico do Trans-Forma algumas informações do

Limón, que por sua vez vem do Clyde Morgan, do tempo dele na Bahia. Clyde Morgan foi

bailarino de José Limón e a Nena traz um pouco disso” (ALVARENGA, 2007). De origem

norte-americana, Clyde Morgan foi professor da UFBA e também ministrou, em 1972, um

curso no Festival de Inverno de Ouro Preto/MG, ocasião em que Marilene também estudou

com ele.

Nas sequências básicas foi possível observar também a referência ao balé clássico, inserido no

trabalho do Trans-Forma de forma dialógica e adaptado à perspectiva de dança de Marilene.

Cabe considerar que, embora a história da dança moderna se caracterize pela recusa do balé

246 MANUSCRITO: Caderno de 2º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta. 247 Em viagem de estudos aos Estados Unidos, em 1974, Marilene fez aulas com Lenore Latimer da Técnica de José Limón. Lenore foi integrante da companhia de dança dirigida por Limón.

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clássico, alguns artistas modernos, como José Limón, utilizaram elementos do balé clássico

em suas proposições técnicas, como discute Legg (2011). Além disso, na trajetória de

Marilene a primeira experiência com o modernismo na dança foi com Klauss Vianna, que

construiu uma perspectiva moderna a partir também de um novo olhar lançado sobre o balé

clássico. Nesse sentido, consideramos que o modo como Marilene abordou esse referencial

técnico não a distanciou do pensamento moderno de dança. Diferentemente disso, esteve

coerente com os caminhos trilhados pela artista para chegar a esse contexto. Nesse âmbito de

diálogo com o balé clássico, incluem-se o uso de posições de braços e a referência à

orientação en dehors para as pernas, em que os fêmures são colocados em rotação externa e os

pés os acompanham voltando-se para fora. Em exercício do 2º Ano a ser realizado na barra,

consta a seguinte orientação: “uma mão na barra, braços na 2ª., pés na 1ª posição paralela”248.

A imagem a seguir acompanha o enunciado:

Figura 75 - Articulação técnica I

Fonte: Caderno de 1º e 2º Anos Geral. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Na composição das sequências criadas por Marilene, foram observados movimentos como

battement fondu249, attitude250, degagé en l’air251, rond de jambe252, jeté253, entre outros,

248 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2º Anos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta. 249Battement fondu. Termo que designa o movimento de flexão do joelho de base e da perna de trabalho (FARO; SAMPAIO, 1989). 250Attitude. Posição da perna em que o joelho é colocado em um ângulo de 90º (FARO; SAMPAIO, 1989). 251 Degagé en l’air. Movimento em que há uma tranferência de peso de uma perna para outra com o intuito de liberar uma das pernas para a realização de um movimento (FARO; SAMPAIO, 1989). 252Rond de jambe. Movimento em que a perna realiza um círculo (FARO; SAMPAIO, 1989). 253Jeté. Termo que corresponde ao movimento de um salto feito de uma perna para a outra (FARO; SAMPAIO, 1989).

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articulados com a movimentação relativa ao contexto moderno de dança. Em uma sequência

do 3º Ano, a ser realizada no centro, essa articulação pode ser conferida na descrição e na

imagem do movimento:

Figura 76 - Articulação técnica II

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Os referenciais do balé clássico são identificados na movimentação de braços e pernas no

início da sequência, como mencionado no trecho que se segue:

1 – Abrir a perna esquerda ao lado, subindo a perna direita em degagé en l’air à la seconde; simultaneamente subir o braço direito em 5ª. posição e desenhar com a palma da mão voltada para a cabeça um círculo plano sobre a mesma, como uma auréola de anjo; o braço esquerdo fica na posição preparatória.254

Já no próximo trecho da sequência, relativo ao movimento de contração do tronco, a

referência é a dança moderna: “No 2º tempo o tronco se curva para a direita, acompanhando o

movimento dos braços; no 3º tempo, rodar conservando esta posição; no 4º tempo há uma

pequena contração central”255.

Também em uma sequência – “Transferência com giro” – do 4º Ano, a ser feita no centro,

percebe-se essa articulação entre dança moderna e balé clássico na descrição do movimento:

PI: De pé, braços ao lado do corpo, 1ª. paralela.

254 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta. 255 MANUSCRITO: Caderno 3º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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1 - Passo frente com a perna direita (braços começam a subir mostrando a palma das mãos – sobem alongados em frente ao corpo). Pernas dobradas, cabeça baixa. 2 - Passo frente com a perna esquerda (braços já estão na altura dos ombros). Perna da frente dobrada. 3 - Passo frente com a perna direita (braços estão alongados para cima, cabeça alongada para trás, pernas esticadas). 4 - Fazer um rond de jambe com a perna de trás, cruzando-a, alongando em frente à direita, ponta do pé puxada; girar pelo ombro direito mantendo as pernas alongadas e os pés na meia-ponta em 5ª. posição – assemblé soutenu. Durante o giro colocar as mãos relaxadas sobre os ombros, cotovelos abertos para fora. 5 - Tirar a perna direita que está em frente e dar um passo atrás (plié, estica). Braços começam a descer pela frente do corpo. 6 - Tirar a perna esquerda que está em degagé devant e dar outro passo atrás (plié, estica), descendo os braços e abaixando a cabeça.256

A descrição pode ser acompanhada na seguinte movimentação:

Figura 77 - Articulação técnica III

Fonte: Caderno de 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Também do 4º Ano, o exercício “Saltitar, andando para frente e para trás fazendo jeté”

apresenta essa articulação entre dança moderna e balé clássico. A partir da posição inicial em

pé, com os pés em 1ª posição paralela e os braços ao longo do corpo, segue a movimentação

descrita. Destaca-se, com relação ao balé clássico, o uso dos braços na 2ª posição arabesque

para fazer o movimento de jeté:

1, 2, 3, 4 – Saltitar levantando uma perna dobrada no ar, ponta puxada. A de base fica em plié e os braços se conservam ao longo do corpo (4 para frente – começar pisando com a direita). 5 – para trás; 6 – pisa frente; 7 – passo; “e” – dobra a esquerda no ar. 8 – Abrir as duas pernas no ar fazendo jeté (dar uma tesourada). Nos jetés os braços vão para o 2ª. arabesque.257

256 MANUSCRITO: Caderno de 4º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1972 e 1984. 31 f. Acervo de Dorinha Baêta. 257 MANUSCRITO: Caderno de 4º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1972 e 1984. 31 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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O enunciado refere-se ao seguinte movimento:

Figura 78 - Articulação técnica IV

Fonte: Caderno de 4º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Compreendemos que as sequências básicas de movimento criadas por Marilene Martins

também se estabeleceram na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna.

Ressalta-se nas anotações a referência às sequências de autoria de Dudude, o que indicou a

existência de um espaço de criação artístico-pedagógica ocupado pelo artista-professor no

Trans-Forma. Nesse movimento em rede, essas sequências se constituíram de forma

importante por cultivar referenciais de dança moderna na proposição de Martins. Mesmo

assim, ressalta-se que a proposição da artista-professora esteve fundamentada na articulação

de diferentes perspectivas dentro do contexto moderno de dança, além do uso de elementos do

balé clássico, e não delimitado sob uma abordagem única. Desse modo, configurou-se uma

estrutura em rede, cujos modos de fazer ultrapassaram práticas comuns de dança moderna,

fundamentadas por uma perspectiva técnica específica.

4.2.2.2 Convivência na alteridade

Além das sequências básicas de movimento criadas por Marilene Martins, o Curso Básico de

Dança Moderna do Trans-Forma reuniu sequências oriundas de diferentes contextos técnicos

de dança. A inserção desses referenciais na proposição de Marilene foi possibilitada pelo

espaço de convivência artística no Trans-Forma e ocorreu por meio do movimento

autopoiético que caracterizou a construção do Curso Básico de Dança Moderna. Sobre esse

processo, Dudude relata: “E aí as pessoas iam, davam curso, e depois a gente ia, trabalhava,

trabalhava, apropriava daquela sequência, e isso passava a ser matéria” (DUDUDE, 2010).

Ressalta-se o termo “apropriava” utilizado por Dudude, para explicar sobre a inclusão de

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conteúdos de dança na proposição artístico-pedagógica da escola. Também identificamos o

termo “incorporar” com esse mesmo objetivo em depoimentos de Arnaldo Alvarenga e de

Lydia Del Picchia. Compreendemos tais termos sob o caráter processual que envolveu a

convivência e o vínculo com diferentes configurações técnicas de dança. Assim,

consideramos que “incorporar” e “apropriar” corresponderam a tornar uma prática de dança

como parte do trabalho do Trans-Forma por meio de um processo de construção. No entanto,

ressalta-se que o referencial, mesmo sendo integrado ao Curso Básico, continuou sendo

considerado aquele que é diferente, o outro. Assim, as sequências de movimento que

passaram a integrar o escopo do Curso Básico de Dança Moderna são mencionadas de acordo

com sua identidade técnica, sendo denominados “Exercícios básicos de Martha Graham”258,

“Coluna do jazz” 259, entre outros. Alguns exercícios foram identificados conforme sua autoria,

como “Pulo da Graciela [Figueroa]”260 ou “Triple com soltura do corpo (Klauss Vianna)”261.

O diálogo com essas outras perspectivas de dança foi explicitado por Marilene, como

observado no dossiê dessa pesquisa e como Lydia Del Picchia reitera em seu relato:

Porque tinham uns exercícios que ela falava assim: “Isso é de fulano. Essa sequência eu trabalhei com fulano”. Acabou que a gente dando aula depois perdia um pouco, porque a gente não tinha aquela propriedade que ela tinha de ter ido na fonte, trabalhado com a pessoa e depois montado o trabalho. Mas, ela falava muito isso: “Olha, essa sequência eu trabalhei com fulano, é muito importante, ele falava isso, isso e isso”. Prá os professores, a gente teve um cuidado muito grande nesse sentido. Quando não era dela o trabalho, ela deixava muito claro: “Não fui eu que inventei isso, é uma técnica. A Martha Graham, por exemplo. Teve um trabalho também do Ivaldo Bertazzo, que fez um trabalho de dança oriental, dança do ventre, mas era uma técnica... belly dance. Então, o 3º. Ano incorporou vários exercícios de belly dance. Mas, eram os exercícios de Belly Dance, entendeu? Tinha o momento. Agora, um trabalho de Belly Dance. No 4º. Ano, um trabalho de Martha Graham (PICCHIA, 2010).

Salienta-se que a convivência que estimulou tais vínculos, em alguns casos não foi suficiente

para efetivá-los, como visto no comentário de Lydia Del Picchia sobre o trabalho

desenvolvido por Denilto Gomes:

Denilto não ficou muito tempo com a gente, não. Ele era muito envolvido com a técnica e era uma coisa, às vezes, que a gente não conseguia entender. Eu acho que a gente não teve a vivência necessária prá fazer, sabe, quando você utiliza aquilo, você

258 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 259 MANUSCRITO: Caderno de 2º. Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. Acervo de Lúcia Ferreira. 260 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 261 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta.

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sabe como utilizar aquela técnica, prá que? Não teve tempo de apropriar. Então, às vezes, ficava num nível, assim: “Ah, é o Laban.” Mas, quem é, o que é que é, prá onde que vai, por que? Não aprofundou muito, então, diluiu rapidamente também. Algumas pessoas tiveram essa experiência de fazer aula com ele. Ele deu aula um ano lá, mas era uma turma mais reduzida (PICCHIA, 2010).

Além do espaço de convivência criado no Trans-Forma, a possibilidade de interação artística

foi favorecida pelo investimento pessoal de Marilene, que freqüentava cursos em eventos e

viagens, fazendo um trabalho de conhecimento e recolha de materiais relacionados à sua

abordagem. Assim, tanto no espaço de convivência do Trans-Forma como por meio de um

movimento individual, Marilene Martins colocou-se em contato com diferentes perspectivas

de dança. Nesse processo de convivência e experimentação, algumas proposições e modos de

fazer diferentes interessaram Marilene, ou seja, atuaram como elementos perturbadores. Desse

modo, compreendemos que, no Trans-Forma, a diferença estabeleceu-se como perturbação e

estimulou a construção da abordagem artístico-pedagógica de Martins. Considerando o caráter

autopoiético da sistematização do Curso Básico de Dança Moderna e, ainda, lembrando tratar-

se de uma proposição intencional, compreendemos a importância do papel propositivo do

artista-professor, sem o qual não seria possível estabelecer um movimento de diálogo e

interação com diferentes referenciais.

Os vínculos que integraram a tecitura do Curso Básico de Dança Modernanão foram feitos de

forma aleatória, mas para satisfazer às necessidades técnicas e artísticas da proposição de

Marilene, como consta das anotações da artista sobre o trabalho do 3º Ano: “Enfatizam-se os

trabalhos de soltura do corpo, integrando à dança moderna exercícios auxiliares de afro e

belly dance, que se adaptam a esta finalidade”262. No período dos cinco anos desse Curso,

além dos vínculos dentro das delimitações da dança moderna, foram identificadas algumas

interações importantes fora dessa perspectiva. Nos dois primeiros anos do Curso destacou-se a

dança jazz, sobre a qual Dudude comenta: “A sequência de jazz era matéria. E era jazz

clássico mesmo, do Luigi. Tinham os discos263, tudo certinho” (DUDUDE, 2010). O primeiro

contato de Marilene com essa técnica deu-se quando a artista ainda morava no Rio de Janeiro

262 MANUSCRITO: Técnica de Dança. Redigido por Marilene Martins entre 1971 e 1986. Acervo de Marilene Martins. 263 A discografia mencionada por Dudude, relativa ao trabalho de dança jazz, compõe o acervo atual de Marilene Martins, conforme verificado nesta pesquisa. Trata-se de material específico com música de acompanhamento para a Técnica Luigi.

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e fez aulas com Vilma Vernon, responsável por introduzir a Técnica Luigi264 no panorama

brasileiro de dança (MUNDIM, 2005). Posteriormente, Marilene265 realizou outros cursos com

a mesma professora, intensificando o vínculo com essa técnica. No Curso Básico de Dança

Moderna, constava a “Sequência de Jazz”, composta por movimentação a ser realizada no

chão e em pé. As duas primeiras partes são realizadas nas posições deitada e sentada, a

exemplo do trecho denominado “Barquinho”. A descrição reitera a escritura do movimento

em Martins, que articula texto escrito, desenhos representativos do corpo humano e a

anatomia cumprindo um papel mediador, já que se estabeleceu como elemento comum às

diferentes corporalidades, tanto dos sujeitos da dança como dos referenciais técnicos:

(1) dobrar perna direita, peito do pé alongado; ao mesmo tempo, dobrar o braço direito, cotovelo por fora e mão passando pelo lado do corpo; (2) peito do pé “empurra o ar”, alongando a perna no ar, braço agora é levado pelo pulso, acima da cabeça; “e” – flexionar o pé; quebrar pulso para baixo (3, 4) descendo a perna até o chão, braço vem puxado por cima, pelo cotovelo (tocar primeiro o cotovelo no chão, depois o pulso e, por último, relaxar a mão).266

O enunciado faz referência à imagem que segue:

Figura 79 - Sequência de Jazz I

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

Após a movimentação na posição deitada, o trabalho continua na posição sentada, como segue

na descrição:

264 Eugene Louis Facciuto (EUA, 1925-2015), o Luigi, foi um dos pioneiros da dança jazz nos Estados Unidos. Luigi sistematizou um trabalho técnico e fundou, em Nova Iorque, o Luigi Jazz Center (FARO; SAMPAIO, 1989). 265 Com relação à dança jazz, ressaltam-se outros cursos relativos a essa técnica realizados por Marilene em 1974, em Londres e nos Estados Unidos, no 27 th Connecticut College American Dance Festival. (MANUSCRITO: Curriculum Vitae de Marilene Martins. Redigido por Marilene Martins em 1982?. 172 f. Acervo de Marilene Martins) 266 MANUSCRITO: Caderno de 1º. Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues.

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1 – Juntar as pontas dos pés no ar, coluna reta, mãos sobre os joelhos e peso nos dois ísquios (costas largas e cotovelos para fora). 2 – Dobrar a perna esquerda para trás, deixando a direita dobrada em frente ao corpo, e descê-las no chão. 3 – Flexão do tronco para a direita, colocando a mão direita no chão; dobrar o braço esquerdo colocando a mão esquerda sobre o ombro, e voltando a cabeça para a esquerda, cotovelo na linha dos ombros. 4 – Voltar o tronco e cabeça de frente, colocando as mãos sobre os joelhos. 5, 6, 7, 8 – Repetir tudo com a direita.267

O movimento descrito corresponde à imagem a seguir:

Figura 80 - Sequência de Jazz II

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

O deslocamento da posição sentada para a posição em pé consta do enunciado: “1, 2 – Voltar

o corpo reto, em cima dos joelhos, cotovelos para trás, mostrando as palmas das mãos. 3, 4 –

Tombar para trás com o corpo alongado, cotovelos abertos para fora, mostrando as costas das

mãos”268. Esses dois movimentos descritos são conferidos na imagem adiante:

Figura 81 - Sequência de Jazz III

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

267 MANUSCRITO: Caderno de 2º. Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta. 268 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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A movimentação da “Sequência de jazz” continua:

“5, 6 – Voltar novamente o corpo reto em cima dos joelhos, cotovelos para trás, mostrando as palmas das mãos. “e” – coloca as mãos alongadas nos ossinhos dos quadris (íleos). 7 – Pé esquerdo no chão. “e” – Junta direito ao esquerdo, na 1ª. paralela. 8 – Separa perna direita, abrindo a 2ª. paralela (e continuar com o jazz em pé).269

Essa movimentação pode ser conferida na imagem a seguir:

Figura 82 - Sequência de Jazz IV

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Entre os vínculos de Marilene Martins destacamos aqueles relativos ao diálogo entre o erudito

e o popular. No caso do Trans-Forma essa interação mostrou afinidade com o pensamento do

pós-modernismo, em que o popular foi tratado a partir do conhecimento que lhe é próprio e

sua relação com o erudito significou negar a elitização da arte (EFLAND, 2008). Assim, o

elemento popular não esteve refém do olhar estrangeiro, como em manifestações das quais

Marilene Martins chegou a participar na década de 1960, no Rio de Janeiro, como o show

Skindô. A articulação entre a erudição e a arte popular que, segundo Coutinho (2008),

caracterizou e favoreceu a prática artística no pós-modernismo, constituiu-se no Trans-Forma

por meio do diálogo com expressões populares e da inserção desses referenciais na dinâmica

do processo de conhecimento em dança, proposto por Marilene. Danças, como o samba, o

primitivo e o afro-brasileiro foram abordadas na perspectiva de estudo de movimento, assim

como as demais expressões, como a dança moderna e o balé clássico. Ressalta-se um 269 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 19 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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manuscrito de Marilene, em que a descrição do samba é feita fazendo-se referência à estrutura

anatômica, destacada na explicação do movimento “rebolado”, em que a artista-professora

menciona o alinhamento esquelético:

Samba Descansa numa perna, passa para outra. Perna direita: passo bem pequenino: - Pisa atrás com transferência de peso relaxando os joelhos da perna da frente (esquerda). - Repete com a esquerda. - Repete com a direita, etc. [...] 2) Pisa atrás, pisa frente (como acima), isto é, fazendo transferência de peso sobre a perna direita atrás e sobre a perna esquerda frente. Pisa novamente atrás, levantando o pé esquerdo no ar. Nota: Rebolar, levando sempre o quadril sobre a perna de apoio, a perna sobre a qual estou pisando.270

Também ressaltamos na descrição do samba o uso de termos oriundos do balé clássico:

“Ensinar a sambar. 1) A planta do pé no chão – suas raízes. 2) Andar sentindo a mola dos

joelhos (A mola separa/plié e junta/estica)”271. Esse aspecto explicita um modo de abordagem

no Trans-Forma, em que diferentes referenciais de corpo e de movimento foram colocados em

relação, coerente com o movimento em rede. Considerando também a horizontalidade que

caracteriza a dinâmica em rede, embora os vínculos no Curso Básico de Dança Moderna

tenham sido construídos de formas distintas, os referenciais técnicos e artísticos, sejam

eruditos ou populares, estiveram sob a perspectiva da investigação e do conhecimento em

dança e mantiveram atravessamentos entre si.

A presença do popular no CBDM foi identificada, principalmente, pelas danças Primitivo e

Afro-brasileiro. O Primitivo foi observado nos roteiros de aula de 1º e de 2º Anos e, conforme

Dudude, artista-professora do Trans-Forma, o vínculo com esse referencial foi devido ao

contato com Mercedes Baptista272. Conforme Monteiro (2018), Baptista marcou a dança

moderna brasileira ao estruturar a dança afro e estabelecer parâmetros técnicos e didáticos

para seu estudo. Em 1975, Marilene frequentou um curso ministrado por Mercedes Baptista, a

partir do qual o afro-brasileiro passou a integrar o CBDM. Com relação a essa dança, há a 270 MANUSCRITO: Samba. Redigido por Marilene Martins entre 1969 e 1986. Acervo de Marilene Martins. (Grifo nosso) 271 MANUSCRITO: Samba. Redigido por Marilene Martins entre 1969 e 1986. Acervo de Marilene Martins. (Grifo nosso) 272 Mercedes Batista (1921-2014). A artista estudou dança popular com a brasileira Eros Volúsia (1914-2004) e balé clássico na Escola de Danças do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, tornando-se a primeira bailarina profissional negra dessa instituição (FERRAZ, 2012). Na década de 1950, após uma temporada de estudos com a americana Katherine Dunham, voltou para o Rio de Janeiro, onde criou o Ballet Folclórico Mercedes Baptista.

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descrição de uma sequência dedicada ao 4º Ano, composta por movimentação a ser feita por

dois grupos de alunos e com a música denominada Macumba273. Um dos trechos é orientado

pela seguinte descrição, em que se destaca o movimento de ombros: “(2 oitos) – Sacudindo os

ombros com os braços esticados para o chão. Perna de trás dobrada, planta do pé no chão,

perna da frente esticada, calcanhar no chão, levantando os dedos. Dar um saltinho trocando o

movimento das pernas e deslocando o corpo para frente”274. Essa parte corresponde à imagem

que se segue:

Figura 83 - Sequência Afro-brasileiro I

Fonte: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Sobre outro trecho, segue a descrição dos movimentos:

Passo: dois passinhos sobre a perna direita, dois passinhos sobre a perna esquerda. (2 oitos) O corpo abaixa, sobre, abaixa, sobe. Pé da frente no chão e o de trás nos dedos. Ao agachar, estando a perna direita em frente, o cotovelo esquerdo vai ao encontro do joelho direito, braço dobrado, punho fechado. Há uma torção do tronco. O braço direito vai dobrado para trás, fazendo uma curva para o chão, punho fechado. Ao abrir [as pernas] 2ª., sacudir os ombros 4 T.275

A movimentação descrita acompanha a imagem a seguir (Figura 84):

273 Não foi identificada a autoria da música utilizada na sequência de afro-brasileiro. 274 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta. 275 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta. (Grifo nosso)

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Figura 84 - Sequência Afro-brasileiro II

Fonte: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Ressalta-se, novamente, a articulação entre diferentes referenciais técnicos pelo uso de um

termo do balé clássico – assemblé soutenu – para fazer a descrição do movimento de afro-

brasileiro:

“1, 2, 3 – Cruzando a perna esquerda em frente à direita, andar três passinhos sobre ela em direção à diagonal direita frente; e 4 – Pisa na perna de trás e girar como num assemblé soutenu. Braços: No 1, 2, 3 – Os braços estão esticados numa linha uniforme, esquerdo apontando para o chão. No e 4 – Eles fecham na posição preparatória.276

O enunciado corresponde à próxima imagem:

Figura 85 - Sequência Afro-brasileiro III

Fonte: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

276 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta.

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Ao inserir a dança afro no Curso Básico de Dança Moderna, Marilene teve como principal

objetivo a soltura do corpo proporcionada por essa dança. Com essa mesma finalidade, a belly

dance, ou dança do ventre, também foi integrada ao Curso Básico de Dança Moderna, como

relata Arnaldo Alvarenga:

A belly dance, por exemplo, ela foi incorporada ao trabalho do Trans-Forma através de um curso que o Ivaldo Bertazzo, na época, ele foi trazido, convidado pela Marilene Martins, deu esse curso. O que a Marilene percebeu, e nisso ela tinha uma abertura fantástica, é que aquele tipo de trabalho, que era um curso à parte, que não tinha nada a ver com a escola, era fundamental para um tipo de propósito, de lugares que ela queria alcançar. Então, aquele tipo de movimento facilitava o alcance da soltura de corpo que ela pretendia. Então, ela incorpora aquela técnica com essa idéia (ALVARENGA, 2007, grifo nosso).

Como mencionado pelo artista-professor, a belly dance chegou ao Trans-Forma por meio de

Ivaldo Bertazzo277, que ministrou cursos na escola na década de 1970. Segundo Bogéa (2007),

Bertazzo realizou estudos culturais em diversos países, com o intuito de desenvolver uma

proposta de dança para não-dançarinos (BOGÉA, 2007). Ainda conforme essa autora, com a

belly dance, Bertazzo buscou favorecer a sensibilização do ventre, considerado por ele como

o centro do corpo. Ressalta-se, nos registros sobre esse referencial técnico, explicações em

que foram utilizados termos anatômicos e também do balé clássico para favorecer a

compreensão do movimento:

Passos – Belly dance – Ivaldo Bertazzo 1) Baising egipse (passo básico) - No clássico, os ombros ficam na linha dos calcanhares. Na Belly Dance, o corpo vai ficar sempre inclinado, ombros atrás dos calcanhares. - Deixar as pernas bem livres, os joelhos moles. As pernas são sempre relaxadas. Centro do corpo para dentro, sem contrair nada. O pé direito na frente do corpo, na meia-ponta mais baixa, pé relaxado (o pé direito na frente do esquerdo, a uma distância de um pé.278

Essa descrição relativa à posição do corpo para iniciar a movimentação refere-se à imagem a

seguir, em que se nota a relação indicada entre ombros e calcanhares:

277 O professor e coreógrafo Ivaldo Bertazzo (São Paulo, Brasil, 1949) desenvolveu um método de trabalho fundamentado na anatomia e na biomecânica, a partir dos trabalhos desenvolvidos pelas francesas Marie-Madeleine Beziérs e Suzanne Piret, e pela belga, Godelieve Denys-Struyf. Bertazzo também faz referência a danças de diferentes culturas, como a dança balinesa, dança grega e dança do ventre, conforme os estudos realizados em vários países. Em 1974, fundou a Escola de Reeducação do Movimento, em São Paulo (BOGÉA, 2007). 278 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta. (Grifo nosso)

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Figura 86 - Belly dance I

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Em manuscrito de Marilene Martins, segue orientação sobre o modo de fazer a

movimentação, em que destacamos mais uma vez a relação entre diferentes referenciais

técnicos. Nessa descrição, a abordagem do movimento de belly dance é feita por meio da

comparação com referenciais de corpo e de movimento do samba:

Pisa no dedo, pisa no pé; ou dedo, pisa, dedo, pisa. Ao pisar com a planta do pé descer o sacro dobrando bem os joelhos e sentindo o peso. O movimento deve partir bem de dentro e por isso é pequeno, fechado, concentrado. Não é exterior e grande como o samba.279

Com relação à prática da belly dance, destacam-se, ainda, os ritmos, feitos pelo dançarino por

meio do uso de objetos específicos, denominados “pratinhos”280. Na orientação para o uso

desse material também foi utilizado o referencial anatômico: “1 pratinho no dedo do meio, e

outro no dedão, mais ou menos na direção da 1ª. articulação dos dedos, ou abaixo dela um

pouco”281. Os movimentos relativos à belly dance explicitam a soltura de corpo que chamou a

atenção de Marilene Martins. Sobre a “1ª. Sequência – Relaxamento de tronco”, a ser

realizada, consta o enunciado: “Relaxar o tronco para a frente, braços soltos, cabeça quase

279 MANUSCRITO: Belly Dance. Redigido por Marilene Martins entre 1969 e 1986. Acervo de Marilene Martins. 280 Nessa pesquisa foi possível encontrar esses objetos no acervo do artista-professor Arnaldo Alvarenga. 281 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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tocando o chão. Balançar o tronco de um lado para o outro, começando pela direita

(movimento de pêndulo).282” O movimento descrito corresponde à imagem que segue:

Figura 87 - Relaxamento de tronco

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Também no exercício “Giro completo com o quadril, ‘com parada’”, a descrição relativa à

soltura do corpo envolve articulações e a relação entre partes do corpo, como a cabeça e o

tronco:

1 – Com as pernas sempre em plié; quadril vai para a direita. A costela direita fecha um pouco para deixar o tronco participar. Cotovelo esquerdo flexionado para dentro, palma da mão para cima, em forma de concha. Braço direito fica quase alongado; palma da mão para o lado. Cabeça acompanha. 2 – Quadril para trás; cotovelos para baixo, palma das mãos em concha para frente. 3 – Quadril para a esquerda. Braços como no 1, porém para o outro lado. Cabeça acompanha. 4 – Quadril para frente. Cotovelos flexionados para baixo, palmas das mãos para cima.283

Essa descrição é acompanhada pela imagem a seguir, que demonstra a mobilidade de

articulações, como os tornozelos, os joelhos, os quadris, os ombros, os cotovelos e os punhos,

além dos movimentos da coluna:

282 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta. 283 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 88 - “Giro completo com o quadril, ‘com parada’”

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Sobre os aspectos de soltura do corpo favorecida pela belly dance e a relevância desse

referencial no Curso Básico de Dança Moderna, Arnaldo Alvarenga acrescenta:

Ela [a belly dance] era usada especificamente com essa intenção: soltura de quadril, soltura de ombro e soltura da coluna de uma maneira geral. Era um trabalho muito de chão, com posturas muito específicas para alongamento, principalmente do reto-femoral, e a soltura do quadril em posturas de suástica, a flexibilidade da coluna em torções e ondulações. [...] O movimento era bem na região do tronco, vamos dizer, do pescoço até o períneo. Essa área era intensamente trabalhada. Isso te dava uma flexibilidade de tronco, uma maleabilidade no trato com o movimento. Na seqüência, isso facilitava muito a forma de você lidar com esse tipo de movimento que o Trans-Forma pretendia enquanto dança moderna. Onde o movimento, voltando lá nos primórdios da dança moderna, os impulsos do movimento estavam na região do tronco (ALVARENGA, 2007).

Na relação feita por Arnaldo Alvarenga entre o movimento da belly dance e a corporalidade

característica da dança moderna, observou-se que ao dialogar com um referencial, Marilene

esteve interessada na contribuição oriunda da diferença. Assim, ao procurar a belly dance,

Martins buscou o modo diferente com que essa técnica explora a soltura do corpo para

ampliar essa característica em sua abordagem. Compreendemos que a busca de Marilene pela

convivência com o diferente no Trans-Forma acompanha a noção de alteridade em Maturana

(2001, p. 30-31), em que o outro é aceito na convivência como um “legítimo outro”, ou seja, o

aspecto que define a diferença é respeitado tornando possível a existência de duas

perspectivas distintas em um mesmo contexto. Em Marilene, observamos que a diferença não

apenas foi respeitada, mas a diferença interessou e foi fundamental para constituir o processo

de conhecimento em dança.

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Entre os vínculos artístico-pedagógicos identificados no Curso Básico de Dança Moderna,

destacou-se, ainda, a Técnica de Martha Graham, cujos traços também se mostraram presentes

nas sequências básicas de movimento, criadas por Martins. Observou-se que a interação com

esse referencial foi favorecida, principalmente, por meio do artista Freddy Romero284,

mencionado no depoimento de Lydia Del Picchia:

Teve um período que o Freddy Romero passou um tempo grande em Belo Horizonte e deu aula em vários lugares. Lá no Trans-Forma ele tinha uma turma também. Deu mais de um ano, acho que dois anos ele ficou trabalhando com a turma, dando aula de Martha Graham. Quando ele saiu, vários exercícios foram introduzidos... Não, incorporados ao programa do 4º. Ano (PICCHIA, 2010, grifo nosso).

Nos anos de 1973 e 1977, Freddy Romero desenvolveu no Trans-Forma um trabalho com

base na técnica de dança moderna de Martha Graham. No Trans-Forma, os exercícios

específicos dessa técnica foram verificados nos registros relativos ao 4º e ao 5º Anos do Curso

Básico de Dança Moderna, como exemplifica a anotação: “Dar todos os dias os alongamentos

de Martha Graham”285. Ressaltamos no trabalho de Marilene286 o modo minucioso de abordar

diferentes técnicas de dança, a partir de suas especificidades. Nos registros constam

orientações sobre o corpo e o movimento dentro dos contextos técnicos estudados, em que

observamos uma prática não apenas voltada para a realização de um movimento, mas,

também, para a compreensão e a experimentação de outras perspectivas de dança. Com

relação à técnica de Martha Graham, a anotação especificou, por exemplo, o posicionamento

do pé em uma posição de pernas utilizada também em outras técnicas de dança, como o jazz e

a belly dance, como visto nos cadernos, mas que em Graham é definida de modo particular:

“Nota: Na suástica, o quadrado que as pernas fazem no chão é sempre aberto para o lado.

Perna esquerda dobrada em frente ao corpo, apoio do pé no 5º metatarso”287. A imagem a

seguir auxilia a compreender o movimento:

284 Freddy Romero (Venezuela). Dançarino, coreógrafo e professor, Romero fez sua formação em dança no México e em Nova Iorque. Nos EUA, estudou na escola de Martha Graham e integrou, como solista, a Companhia de Alvin Ailey. 285 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta. 286 Com relação à Técnica de Martha Graham, cabe mencionar os cursos realizados por Martins relativos a esse referencial. Em 1974, na viagem que fez para os Estados Unidos, Marilene frequentou aulas relativas a essa técnica. Também em 1975, Marilene Martins freqüentou no 9º. Festival de Inverno de Ouro Preto o curso ministrado pela paulistana Ruth Rachou (1927). (Curriculum Vitae de Marilene Martins. Acervo de Marilene Martins, 1982). Ruth Rachou estudou a Técnica de Martha Graham no estúdio da própria Graham, em Nova Iorque. Em 1972, Rachou abriu sua escola em São Paulo, onde desenvolveu um trabalho com base na Técnica de Martha Graham (RUTH RACHOU..., 2018). 287 MANUSCRITO: Técnica de Martha Graham. Redigido por Marilene Martins entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta (Grifo nosso).

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Figura 89 - Técnica de Martha Graham I

Fonte: Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)288

Em outra anotação é explicada a contração do tronco, um movimento fundamental na técnica

de Graham:

2ª. Sequência de Martha Graham: _ Começá-la com contração. Olho no teto. Sentir um fundo de bacia quando contrair. Soltar o ar quando contrair, suspendendo o esterno para cima.289

Figura 90 - Técnica de Martha Graham II

Fonte: Caderno de 5º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

288MANUSCRITO: Técnica de Martha Graham. Redigido por Marilene Martins entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta. 289 MANUSCRITO: Caderno de 5º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Ainda com relação ao estudo dessa técnica, consta explicação sobre o posicionamento do

corpo para a realização da “1ª. Sequência de Martha Graham”: “Sentir os dedos pressionarem

o chão. Sentir ombros abertos e cotovelos também”290. As imagens a seguir também priorizam

as estruturas do corpo mencionadas, como segue:

Figura 91 - Técnica de Martha Graham III

Fonte: Caderno de 5º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Figura 92 - Técnica de Martha Graham IV

Fonte: Caderno de 5º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Enfatizado no Curso Básico de Dança Moderna, esse referencial técnico foi trabalhado por

meio de várias sequências, de acordo com os registros, como exemplificado na descrição:

Os 16 (Martha Graham) 1 e 2 – ponta – calcanhar – estica 3 e 4 – ponta – calcanhar – dobra a perna 5, 6 – ponta – abre 2ª. (braços na 2ª.) 7 – flexão das pernas e pés 8 – estica

290 MANUSCRITO: Caderno de 5º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 34 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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9 e 10 11 e 12 – Repete 13 e 14 – Com as duas (braços sobrem na 5ª.) 15 – Fecha as pernas em plié, pés flexionados 16 – Puxa a ponta e flexiona os pés.291

O enunciado corresponde à imagem a seguir:

Figura 93 - Técnica de Martha Graham V

Fonte: Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)292

Além desses referenciais com os quais foram observados vínculos mais densos e estudos mais

detalhados, há também nos cadernos a referência a outros artistas e perspectivas técnicas de

dança. Nas anotações, principalmente aquelas relativas ao 5º Ano Moderno, são mencionados

exercícios cujas denominações mencionam artistas e professores. Destacou-se nos registros do

Curso Básico de Dança Moderna, o nome da uruguaia Graciela Figueroa293, cujo trabalho

291 MANUSCRITO: Técnica de Martha Graham. Redigido por Marilene Martins entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta 292MANUSCRITO: Técnica de Martha Graham. Redigido por Marilene Martins entre 1974 e 1982. Acervo de Dorinha Baêta. 293 Graciela Figueroa (Montevidéu, Uruguai, 1944). Em 1975, pela primeira vez no país, a artista ministrou um curso no Festival de Inverno de Ouro Preto, em Minas Gerais. A dançarina, coreógrafa e professora de dança uruguaia iniciou seus estudos de dança em Montevidéu. Na década de 1960, mudou-se para Nova Iorque para estudar na Julliard School of Music and Dance (RUIZ, 2013). Sua formação abrangeu estudo musical e estudos

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encontrou-se vinculado tanto à técnica de dança como à improvisação e, ainda, a exercícios

rítmicos. Segundo Alvarenga (2002), Graciela veio para o Brasil a convite de Marilene

Martins e, em 1976, passou uma temporada no Trans-Forma, dando aulas e dedicada à

montagem do espetáculo Bola na Área, que integrou o repertório do Grupo Trans-Forma.

Após um período em Nova Iorque, onde estudou e desenvolveu trabalhos com importantes

nomes da dança moderna e pós-moderna norte-americana, como Martha Graham, José Limón,

Merce Cunningham e Twyla Tharp, Graciela Figueroa retornou à América Latina e se

dedicou a um trabalho autoral voltado para o autodesenvolvimento e ligado às questões

culturais (RUIZ, 2013). O trabalho desenvolvido pela artista, conforme Ruiz (2013) se

caracteriza por forte relação entre dança e música, pelo interesse na criação do bailarino e por

práticas, como jogos, que permitem tratar a técnica de dança com maior liberdade. Nos

cadernos há exercícios relacionados a Graciela Figueroa, como “Esquentamento da Graciela,

passando a mão por trás e volta pela frente” e “Pulo da Graciela”, sendo este último

correspondente à descrição: “1, 2 ‘e’ 3 – passão, passão e passinho juntando”294. Outro

exemplo, sendo este acompanhado por desenho, é o exercício “Para soltar-relaxar”, cujo

enunciado segue:

1, 2, 3, 4 – relaxando as pernas, batendo-as no chão e soltando a voz num  mais fechado e contínuo. Os braços abertos relaxadamente na linha dos ombros. 5, 6 – abraças fortemente as pernas. 7, 8 – abrir, crescendo coluna, braços se abrem, pernas alongam, fazendo tudo bem relaxado tirando todas as tensões do corpo.295

A descrição é acompanhada pela imagem a seguir:

de dança das Técnicas de Martha Graham, José Límon e Merce Cunningham. Graciela integrou, como bailarina, a Twyla Tharp Dance Company, fundada em 1965, que representou a vanguarda da dança estadunidense (RUIZ, 2013). Nesse grupo, Graciela dançou peças como Dancing in the Streets... e Medley, ambas de 1969. Essas coreografias se caracterizaram pelo uso do espaço público para a performance e pela aproximação com a cotidianidade, seja pelo figurino, pela movimentação ou pela ausência de fronteiras entre o dançarino e o público. Nos Estados Unidos, Graciela também atuou como professora de dança, no Connecticut College e no Merce Cunningham School. No percurso de Graciela observou-se tanto a relação com a dança moderna norte-americana, por meio das técnicas de Martha Graham e José Limón, como com a dança pós-moderna desse país, por meio das primeiras iniciativas dentro dessa perspectiva, como as de Merce Cunningham e de Twyla Tharp. 294 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 295 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 28 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 94 - “Para soltar-relaxar” (Graciela Figueroa)

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Há outros exercícios também como a “Transferência do Denilto na 4ª. posição” e “Queda do

Denilto”296, em referência a Denilto Gomes297, que ministrou curso no Trans-Forma sobre

Método Laban, em 1979. Relacionado à Técnica de Martha Graham, consta o nome de Paulo

Babreck298, que ministrou curso no Trans-Forma, em 1982. Há também nos registros

referência aos coreógrafos estadunidenses Lester Horton e Alwin Nikolais. Com relação a

Horton299, constam exercícios, como “Soltura do Corpo de Horton” e “Lançar-se de lado

(Horton)”300. De Nikolais consta dos cadernos de Dudude e Dorinha Baêta o registro da

“Sequência de Nikolais”, cuja descrição segue a escritura característica do Curso Básico de

Dança Moderna. Identificou-se o contato de Martins com os trabalhos de Nikolais e Horton na

viagem realizada pela artista aos Estados Unidos, em 1974. Nessa ocasião, Martins esteve

como ouvinte em entrevistas realizadas por Klauss Vianna com alguns artistas, entre os quais,

Alvin Nikolais e Murray Louis. Marilene também destacou as aulas de técnica e composição

realizadas no estúdio desses artistas, cujos trabalhos estiveram, conforme Legg (2011), entre a

dança moderna e as iniciativas que trouxeram à tona o pós-modernismo na dança norte-

americana. Nos registros relativos às sequências de movimento destacamos, ainda, exercícios

relacionados a Klauss Vianna e a Rolf Gelewski.

296 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta. 297 Denilto Gomes (São Paulo, Brasil, 1953-1992). O dançarino estudou com a húngara Maria Duschenes, que se mudou para o Brasil na década de 1940, passando a divulgar o Método Laban (AMADEI, 2006; CAMARGO, 2008). Segundo Camargo (2008, p. 7), embora curta, a trajetória de Denilto Gomes se destacou no cenário brasileiro por uma “[...] linguagem sóbria e autônoma”. 298 Paulo Babreck (Minas Gerais, Brasil, 1952). Dançarino, coreógrafo e professor de dança (Informação verbal). 299 Não foi identificado o meio, o artista ou o professor por meio do qual Marilene tenha entrado em contato com o trabalho de Lester Horton. 300 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. Acervo de Dorinha Baêta.

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Compreendido dentro de uma dinâmica em rede, no Trans-Forma o estudo de movimento a

partir de diversos referenciais não teve o objetivo de realizar formações corporais específicas.

No Curso Básico de Dança Moderna a prática esteve pautada na experimentação como modo

de conhecer. Assim, novamente aproximamos o processo de conhecimento em Marilene da

noção de “aprendizagem inventiva” de Kastrup (2008, p. 101), que explica: “A aprendizagem

não é adaptação a um ambiente dado nem obtenção de um saber, mas experimentação,

invenção de si e do mundo”. No sentido do pensamento de Kastrup, compreendemos que o

trabalho com diferentes danças não teve o intuito de uma adaptação corporal a um contexto de

movimento, nem tampouco de conseguir o domínio de uma técnica, mas sim, de conhecer o

próprio corpo em diferentes perspectivas e, desse modo, conhecer danças e movimentos

distintos.

Os vínculos observados com artistas e técnicas de dança no Curso Básico de Dança Moderna

mostraram que Marilene reiterou sua abordagem artístico-pedagógica cuja prioridade foi a

dança moderna. Mas, além disso, Martins expandiu suas relações abrangendo, na tecitura

epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna, diversas técnicas de dança, eruditas e

populares, de dança moderna e também aquelas que já apontavam para o movimento pós-

moderno. Marilene também ampliou o espaço de convivência do Trans-Forma ao fazer um

deslocamento geográfico importante, considerando os vínculos constituídos. Fizeram parte da

tecitura do Curso Básico de Dança Moderna artistas e técnicas corporais e de dança cujas

origens estão, além do Brasil, em outros países da América Latina, no eixo ocidental

delimitado pela Europa e pelos Estados Unidos, e fora desse eixo, como foi o caso da belly

dance. Considerando esse panorama em rede, cuja tecitura explicita atravessamentos entre

referenciais de dança oriundos de diferentes movimentos, como o balé clássico, a dança

moderna, dança oriental, dança popular, artistas pós-modernos, entre outros, ressaltamos a

pluralidade e os atravessamentos que caracterizaram a dança de Marilene. Nesse sentido, a

artista apresentou uma atitude pós-moderna que, ao mesmo tempo, manteve o passado,

reconfigurando-o, buscou o novo e propôs a convivência do sujeito da dança com a diferença.

4.2.3 Rítmica e improvisação

A rítmica e a improvisação integraram a tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna, de forma localizada e específica, se comparadas ao estudo de movimento e ao

exercício somático articulado a ele. No caso, esses conteúdos estiveram situados, geralmente,

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no final ou no início das aulas. Mas, considerando a regularidade desses componentes nos

roteiros de aula compreendemos a importância de ambos na sistematização do processo de

conhecimento em dança proposto por Martins.

Os primeiros vínculos de Marilene com essas temáticas foram identificados em seu processo

de formação artística na UFBA, em disciplinas ministradas por Rolf Gelewski. Inclusive, a

experiência de Marilene junto a Rolf foi decisiva para a inserção desses eixos de trabalho no

Curso Básico de Dança Moderna, como relatou Marilene:

Eu trouxe o trabalho de dança moderna, influenciada pelo meu professor Rolf Gelewski, que era expressionista. Fiz uma pesquisa e organização próprias, baseando-me nos seus ensinamentos e incluindo no currículo várias disciplinas criadas por ele na UFBA, tais como: composição, improvisação, estudo do espaço e da forma, anatomia, rítmica, coreografia em grupo, filosofia de dança, buscando assim, construir uma base sólida para o ensino da dança moderna.301

Ressalta-se que alguns desses conteúdos citados por Marilene, como composição, estudo do

espaço e da forma, foram identificados nas aulas, integrando a improvisação. Conforme Baêta

(2016), Rolf desenvolveu um trabalho didático consistente que envolveu vários estudos, entre

eles a rítmica e a improvisação. Sobre a rítmica no trabalho de Gelewski, Baêta (2016)

ressalta a existência de várias proposições, além de um trabalho central fundamentado nos

metros gregos, cujos referenciais são a longura e a brevidade. Com relação à improvisação,

Baêta (2016) destaca dois métodos – estruturado e livre – com base na relação entre

movimento e música desenvolvidos pelo dançarino, coreógrafo e professor alemão. A partir

de Gelewski, os trabalhos relativos tanto à rítmica como à improvisação no Trans-Forma

seguiram a perspectiva em rede de Martins. Desse modo, foram identificados outros

referenciais relativos tanto à rítmica como à improvisação.

Com relação à rítmica, foram encontradas várias anotações com orientações e propostas para

sua prática em todos os anos do Curso Básico de Dança Moderna. O trabalho com ritmos

desenvolvido no Trans-Forma envolveu elementos como: movimentação corporal, incluindo

andadas, saltos, gestos e movimentos dançados; relação e uso do espaço, com exploração de

deslocamentos em diferentes direções e percursos; utilização do elemento sonoro e

percussivo, envolvendo o uso de sons vocais e palmas; palavras, canções e rimas, utilizadas a

301 MANUSCRITO: Por que a dança?. Redigido por Marilene Martins entre 1971 e 1986. Acervo de Marilene Martins.

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partir de suas sonoridades e ritmos; uso do silêncio e de tempos e contratempos, dentre outras

possibilidades. No âmbito dos estudos rítmicos, além de Gelewski, destacou-se o nome de

Maria Amélia Martins, ou Melinha, como também a musicista é chamada. No Trans-Forma,

seja no acompanhamento didático dos artistas-professores, como já mencionado

anteriormente, ou nas aulas do Curso Básico de Dança Moderna, Melinha desenvolveu um

trabalho com base nos estudos realizados na UFBA, com Hans Koellreutter. Entre os

exercícios relacionados à musicista, destacou-se nos cadernos um ritmo composto por quatro

compassos, sendo que, a cada um deles, um dos tempos é acentuado:

Figura 95 - “Ritmo (Melinha)”

Fonte: Caderno de 2º Ano b. Acervo de Dorinha Baêta (1981)

Para o trabalho sobre essa base rítmica foram acrescentadas sugestões para serem feitas a cada

repetição, em que se destacam os deslocamentos espaciais:

a) Andando e falando (marcando com um passo firme o tempo forte). b) Em círculo: o mesmo de a, só que na intensidade (apoio) usar palma junto com passo. c) No 1 de cada frase rítmica (no 1º. Compasso), mudar de direção, com palma. d) Nos tempos fortes mudar de direção sem palma, no início de cada frase rítmica. e) Na intensidade (apoio) dar um passo atrás e no 1 mudar de direção com um passo atrás. f) Quando usar palmas não usar passos e vice-versa.302

Vários desses exercícios em que a movimentação se sofistica e se torna mais complexa a cada

vez que é repetida foram identificados nos registros. Outro exemplo desse tipo apresenta seis

compassos de três tempos, cada um, sendo que o “1” é acentuado com os pés, como segue:

302 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano b. Redigido por Dorinha Baêta em 1981. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 96 - Ritmo 3

Fonte: Caderno de 2º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-1984)

A partir dessa estrutura básica houve indicação de repetições e acréscimo de novos elementos.

Nesse caso, além dos deslocamentos espaciais, sugeriu-se o movimento com várias partes do

corpo:

Dividir em grupos: 1 – Fazer desenho no espaço. 2 – Variar ritmo. 3 – Incluir sons (voz) e silêncio. 4 – Incluir movimentos de braços, cabeça, tronco, e etc. Exemplo: 1 – Braço; 2 – Quadril; 3 – Assovio; 4 – Agachar.303

No eixo da rítmica foram encontrados vários exercícios relacionados à Graciela Figueroa, em

que se destacou a articulação entre a rítmica e movimentos observados na prática de dança. O

exemplo tem início com o canto descrito a seguir:

CANTO: “RAMAS DEL ARBOL AMANECER ALAS QUE LATEM HASTA QUE SEA LATE LA GENTE”304

Para cada verso da estrofe há a indicação de divisão silábica das palavras, relacionada a

movimentos específicos. Assim, para “Ramas del arbol” as sílabas foram apresentadas:

303 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. Acervo de Lúcia Ferreira. 304 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 97 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” I

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

A divisão silábica do verso “Ramas del arbol”corresponde ao seguinte movimento: “1 – passo

com a perna direita para o lado direito. 2, 3 – bate nos ossinhos dos quadris (2x). 4, 5 – 2

passos para frente na direção da diagonal direita frente.305” O movimento continua com a

palavra “Amanecer”, que compõe o próximo verso e apresenta a seguinte divisão silábica,

conforme figura abaixo:

Figura 98 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” II

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Esse verso é acompanhado de movimentos similares àqueles observados nas anotações

relativas às práticas de dança, como mostra a Figura 99:

305 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 99 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” III

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Os movimentos desse trecho da figura anterior são descritos no enunciado:

1 – Fecha perna e braço para dentro; costa da mão esquerda para o ossinho do quadril. 2 – Vira o cotovelo para o corpo, palma da mão para frente, a perna também abre, pé na meia-ponta. 3 – Alonga o braço, palma da mão para a frente. A cabeça acompanha olhando para a mão. A costela esquerda se fecha um pouco para o tronco participar do alongamento do braço. 4 – Passo com a perna esquerda para trás, no sentido da diagonal esquerda atrás (anda de costas). 5 – Passo com a perna direita, no sentido da diagonal esquerda atrás.306

O terceiro verso envolve passos em diferentes direções, em que foram privilegiadas as

diagonais da sala de aula, como indicado a seguir:

306 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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Figura 100 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” IV

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

A movimentação relativa ao verso “alas que latem” segue descrita:

1 – Passo forte com a perna esquerda no sentido da diagonal esquerda frente. 2 – Passo com a direita, no mesmo sentido do 1. 3 – Passo com a esquerda, no mesmo sentido do 1, 2. 4 – Passo com a direita, no sentido da diagonal direita frente. 5 – Passo com a esquerda, no sentido da diagonal direita frente.307

Esses movimentos continuam nos dois últimos versos, cuja divisão silábica foi registrada nas

anotações conforme as duas figuras a seguir:

Figura 101 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” V

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Figura 102 - “Ramas del arbor (Graciela Figueroa)” VI

Fonte: Caderno de 3º Ano. Acervo de Dorinha Baêta (1972-1984)

Ressalta-se na rítmica, conforme Ribeiro (2012), o seu caráter somático, considerando que tal

prática demanda uma atenção para si. Desse modo, compreendemos que essa prática foi

307 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta.

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coerente e esteve afinada com as abordagens relativas ao trabalho de consciência corporal

pretendido por Martins. Na descrição do ritmo – “Ramas del arbol” – notou-se a referência à

estrutura anatômica, além de uma demanda relativa à propriocepção308, como, por exemplo,

no trecho desse exercício: “Alonga o braço, palma da mão para a frente. A cabeça acompanha

olhando para a mão. A costela esquerda se fecha um pouco para o tronco participar do

alongamento do braço”.309

Além do aspecto somático, compreendemos que a prática da rítmica no Trans-Forma reforça a

noção de cognição como invenção, de Kastrup (2013), por contemplar a atitude propositiva de

alunos e do artista-professor. No caso, além do exercício rítmico, o trabalho envolveu também

a construção de estruturas a partir de unidades rítmicas e outros estímulos. Nesse contexto,

relacionamos ritmo a problema e, desse modo, o conhecer, relativo a experimentar, envolveu

também a ação de experimentar a invenção de problema, reconhecida na criação de ritmos,

como o que se apresenta no exemplo: “Ritmo de 4: Rolf (criar um ritmo dentro de uma

pulsação de 4 tempos).310” A criação fez parte tanto da prática docente como do trabalho do

aluno em sala de aula. Nas proposições, alguns estímulos, como palavras, versos e canto

foram utilizados para o exercício rítmico, como sugerido:

Ritmos com movimento: - Rosa cheirosa perfuma o jardim - Pássaro, cedro, jacarandá - Peneirinha, peneirão, de coar feijão - Rei, capitão, soldado, ladrão, menina bonita do meu coração - A casa (era uma casa muito engraçada...)311.

A partir de um exercício e seus referenciais, o artista-professor fez sugestões, como

demonstrado na anotação: “Criar ritmos com nomes de: [...], flores, frutas, automóveis,

comidas”312. Com relação à prática inventiva do artista-professor foram identificados

exercícios, como o “Ritmo do Arnaldo” e o “Ritmo da Mônica”, sendo este último descrito no

caderno: “1º. – 4 passos para frente, começa perna direita. 2º. 4 passos para o lado direito, pisa

308 A propriocepção se constitui, em uma modalidade sensorial do sistema somestésico (LENT, 2010, p. 228). A propriocepção está relacionada à percepção do corpo no espaço e à orientação de funções motoras. 309 MANUSCRITO: Caderno 3º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974-1982. 80f. Acervo de Dorinha Baêta. 310 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano b. Redigido por Dorinha Baêta em 1981. Acervo de Dorinha Baêta. 311 MANUSCRITO: Caderno de 2º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. Acervo de Lúcia Ferreira. 312 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Arnaldo Alvarenga entre 1982 e1984. 77 f. Acervo de Arnaldo Alvarenga.

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com pé direito primeiro. 3º. Vira de costas e caminha 4 passos atrás. 4º. Vira novamente pelo

ombro direito e 4 passos ao lado”313. O deslocamento espacial relativo a esse ritmo foi

representado pela artista-professora, conforme figura:

Figura 103 - “Ritmo da Mônica”

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Mônica Rodrigues (1982-1983)

A prática de criação dos alunos é novamente mencionada, como demonstrado no exercício:

“Pegar uma série de palavras. Ex: cocada, quindim e rapadura. O grupo cria um ritmo em

cima destas palavras. 1º. – somente com voz. 2º. ritmo sem a voz e com palma. 3º. Ritmo no

corpo, sem voz. 4º. – Movimento”.314 Em outro exemplo, a partir do ritmo sugerido por

ditados populares, como “café com pão, manteiga não”, foi proposto aos alunos criar

movimentos.315

A rítmica também esteve articulada à improvisação. Para Muniz (2015), a improvisação na

contemporaneidade enfatiza os objetivos de formação teatral, de criação artística e se

estabelece como o próprio espetáculo. Considerando a perspectiva dessa autora, situamos o

trabalho de improvisação do Curso Básico de Dança Moderna no processo de formação em

dança. Nesse âmbito, observamos que a ação de improvisar esteve relacionada a experimentar

o movimento em diferentes contextos e a partir de estímulos variados, entre os quais, a

rítmica. Um exercício bastante citado nos cadernos – “O mundo girando...” – envolveu a

313 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues. 314 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues. 315 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Mônica Rodrigues entre 1982 e 1983. 134 f. Acervo de Mônica Rodrigues.

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improvisação a partir de uma canção de compasso ternário. No registro, o enunciado indica:

“Improvisar sem parar, soltando o corpo no espaço”, como segue na imagem:

Figura 104 - “O mundo girando”

Fonte: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1974-1982)

Em outra proposta, o ritmo criado por um grupo de alunos sustentou a improvisação dos

outros integrantes da turma, como descrito:

Um grupo senta no chão e faz o som ou música dando um ritmo. O outro grupo improvisa movimentos parciais. Pode trabalhar o resto do corpo, mas é uma parte que conduzo movimento. Começar o movimento com a cabeça, pescoço, pé, barriga, quadris, perna, braços, mãos, etc.316

Na aula dedicada à improvisação, o ritmo foi utilizado como base para o desenvolvimento do

exercício, como consta do enunciado:

1ª. AULA DE IMPROVISAÇÃO: a) Andar, energia pelos dedos. Tocar dedinho, dedão calcanhar e então transfere o peso. b) Andar, energia pelos calcanhares. Tocar calcanhares, dedinho, dedão e então transfere o peso. c) Andar ritmo de 4, mudando de direção no 1 que é mais forte. d) Andar ritmo qualquer, e “forma (parar) estática”, com relacionamento.317

316 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 317 MANUSCRITO: Caderno de 1º Ano. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 28 f. Acervo de Dorinha Baêta.

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A improvisação esteve relacionada a outros estímulos, além da rítmica, em que se destacou,

novamente, a referência a Rolf Gelewski e a seu assistente, Paulo Baêta318, que acompanhou

Gelewski e também ministrou cursos no Trans-Forma. Dentre os estudos de Gelewski,

Marilene explicita a referência ao Estudo do Espaço e ao Estudo da Forma, além de ter sido

mencionado também o estudo denominado Estruturas Sonoras319. Ao analisar o trabalho de

Gelewski com relação ao Estudo do Espaço, Estudo da Forma e Estruturas Sonoras, Passos

(2015, p. 119) observa “que os três materiais são complementares. Sua utilização em aulas de

dança possibilita o desenvolvimento da conscientização dos estudantes sobre as possibilidades

de movimentação de seus corpos no espaço e no tempo”. O vínculo de Martins com o trabalho

de Gelewski foi registrado nos cadernos, como exemplifica a descrição que contempla

referenciais de espaço:

Regiões ou níveis do espaço - Região de Profundidade ou nível baixo (bem mais baixo que sua altura normal – posições assentada, deitada, ajoelhada, etc.) b) Região do meio ou nível médio (vai até a sua altura normal, um pouquinho mais baixo ou um pouquinho mais alto) c) Região de altura ou nível alto (bem mais alto que sua altura normal. Para atingi-la tem que esticar os braços para cima e pés na meia ponta ou saltar.320

Com relação à forma, foram identificados aspectos, como “forma estática”, que corresponde a

“qualquer posição que o corpo assume”321. Também se inserem no estudo da forma os

movimentos totais, feitos com todo o corpo, e os parciais, feitos com partes do corpo. Tais

aspectos foram denominados de ”qualidades de movimento”, como demonstrado no exercício

proposto:

5ª. Aula de Improvisação Trabalho de qualidade de movimento. 1º. Movimento parcial e total [...] quando forem fazer movimento parcial pronuncia o nome do membro que vais se movimentar e com movimento total, fala-se a palavra corpo (dar o ritmo).322

318 Paulo Baêta (Minas Gerais, Brasil). Dançarino, coreógrafo, professor de dança e psicólogo. Professor do curso de Graduação em Dança – Licenciatura, da EBA/UFMG (Informação verbal). 319 Nos cadernos dos artistas-professores, do Trans-Forma, verificou-se um registo abrangente relativo à obra Estruturas Sonoras, de Rolf Gelewski (GELEWSKI, 1975). 320 MANUSCRITO: Caderno 1º e 2ºAnos Geral. Redigido por Dorinha Baêta entre 1974 e 1982. 69 f. Acervo de Dorinha Baêta. 321 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude. 322 MANUSCRITO: Caderno de Dudude. Redigido por Dudude entre 1976 e1977. 105 f. Acervo de Dudude.

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Foram descritas, ainda, outras qualidades, como as formas simétricas e assimétricas, os

movimentos cortados e ligados, os movimentos centrais e periféricos. Considerando esses

aspectos relativos a espaço e forma, o exercício propôs qualidades a serem experimentadas

pelo aluno, a partir da escuta de uma música. A estrutura sonora que organiza a música

utilizada apresentou três momentos para a improvisação, como aparece na imagem:

Figura 105 - Improvisação (Rolf Gelewski)

Fonte: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Essa estrutura é acompanhada pela indicação de referenciais de espaço e forma, como segue

na descrição:

IMPROVISAÇÃO COM ESTRUTURAS SONORAS I 1) “GUIGUE” – 4ª. MÚSICA a) Trabalho individual 1º. Arco – vários movimentos ligados com direções no espaço. O espaço é livre. 2º. Arco – Ouvir, mantendo a forma. 3º. Arco – Dançar livre, solto no espaço (sabendo o que o nosso corpo está realizando).323

Em outra proposta, a ser realizada em grupo, os referenciais de espaço são sugeridos, como

enfatizado no enunciado:

“MORESCA” – 7ª. MÚSICA Grupo de três pessoas No primeiro arco uma pessoa realiza um movimento ligado. No segundo, outra pessoa, e no terceiro, outra pessoa. Da profundidade para a altura. No quarto arco, todos se movimentam juntos, no sentido de reunir. Repetir o mesmo nos outros arcos, com movimentos mais livres. Terminam com separação ou reunião.324

A improvisação também foi utilizada para experimentar e investigar as possibilidades do

corpo no contexto de um movimento específico, como indicado no registro:

323 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta em 1979. Acervo de Dorinha Baêta. 324 MANUSCRITO: Caderno 4º Ano – Roteiros de aula. Redigido por Dorinha Baêta em 1979. 95f. Acervo de Dorinha Baêta (Grifo nosso).

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Fonte: Caderno 4º

Em outro exercício, a ação de improvisar relacionada à experimentação foi desenvolvida

partir do peso e do contrapeso do corpo, o enunciado indica: “Aos pares: um de frente para o

outro de mãos dadas – sentir o peso do outro e tentar equilibrá

Movimentar as pernas e o corpo. Um desce, outro sobe, os dois descem juntos,

movimentos bem coordenados e cuidadosamente”

duas imagens a seguir:

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982

325 MANUSCRITO: Caderno de 1ºFerreira.

Figura 106 - Improvisar e experimentar I

4º Ano – Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Em outro exercício, a ação de improvisar relacionada à experimentação foi desenvolvida

partir do peso e do contrapeso do corpo, o enunciado indica: “Aos pares: um de frente para o

sentir o peso do outro e tentar equilibrá-lo, equilibrando

Movimentar as pernas e o corpo. Um desce, outro sobe, os dois descem juntos,

movimentos bem coordenados e cuidadosamente”.325 O trabalho proposto é demonst

Figura 107 - Improvisar e experimentar II

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-

Caderno de 1º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia

196

Roteiros de aula. Acervo de Dorinha Baêta (1979)

Em outro exercício, a ação de improvisar relacionada à experimentação foi desenvolvida a

partir do peso e do contrapeso do corpo, o enunciado indica: “Aos pares: um de frente para o

lo, equilibrando-se também.

Movimentar as pernas e o corpo. Um desce, outro sobe, os dois descem juntos, improvisam

O trabalho proposto é demonstrado nas

-1984)

. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. 103 f. Acervo de Lúcia

Page 200: Gabriela Córdova Christófaro...À Andréia Bernardon, pela competência para cuidar do meu corpo cansado e dolorido. Aos amigos Serginho, Marise e Raquel, pelos momentos de afeto,

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo

Para o exercício da improvisação foram utilizados, ainda, estímulos relacionados a situações

cotidianas, como a espera em fila de banco, bloco de carnaval e torcida de futebol, com os

quais identificamos o vínculo com o teatr

Ao longo desses anos, com essas técnicas todas, uma parte da aula sempre era dedicada a algo que não tinha necessariamente a ver com aquela técnica. Aí entram processos de improvisação, processos de composiçãode outras linguagens. Aí você entrava com a linguagem teatral, você entrava às vezes com textos, reflexões filosóficas... É uma série de outros elementos que compunham o corpo da aula.com figurinos, improvisação segundo determinados contextos teatrais, com estruturação de pequenos esquetes mesmo. Isso era muito comum. Ficava inclusive um baú dentro da sala, um baú enorme, com todo tipo de fantasia que você pode imaginar(ALVARENGA, 2007)

Nesse contexto, a proposta registrada indica uma situação e sug

ela:

Improvisação:a) Andar por um caminho reto, estreito, limitado lateralmelásticas. Esse caminho é difícil e muito acidentado (pedras, buracos, bichos, etc). Tentar atravessáposição inicial, a fim de exprimir luta.

Ao inserir a rítmica e a improvisação na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna, Marilene ampliou o contexto de experimentação e conhecimento em dança do

326 MANUSCRITO: Caderno de 2ºFerreira.

Figura 108 - Improvisar e experimentar III

Fonte: Caderno de 1º Ano. Acervo de Lúcia Ferreira (1982-

Para o exercício da improvisação foram utilizados, ainda, estímulos relacionados a situações

cotidianas, como a espera em fila de banco, bloco de carnaval e torcida de futebol, com os

quais identificamos o vínculo com o teatro, confirmado no relato de Arnaldo Alvarenga:

Ao longo desses anos, com essas técnicas todas, uma parte da aula sempre era dedicada a algo que não tinha necessariamente a ver com aquela técnica. Aí entram processos de improvisação, processos de composição coreográfica que se utilizavam de outras linguagens. Aí você entrava com a linguagem teatral, você entrava às vezes com textos, reflexões filosóficas... É uma série de outros elementos que compunham o corpo da aula. [...] Esse tipo de exercício, por exempcom figurinos, improvisação segundo determinados contextos teatrais, com estruturação de pequenos esquetes mesmo. Isso era muito comum. Ficava inclusive um baú dentro da sala, um baú enorme, com todo tipo de fantasia que você pode imaginar, das mais diferentes. Você abria o baú e compunha seu personagem ali(ALVARENGA, 2007).

Nesse contexto, a proposta registrada indica uma situação e sugere movimentos relativos a

Improvisação: a) Andar por um caminho reto, estreito, limitado lateralmelásticas. Esse caminho é difícil e muito acidentado (pedras, buracos, bichos, etc). Tentar atravessá-lo. Incluir na improvisação voltas, quedas, fugas em direção à posição inicial, a fim de exprimir luta.326

mprovisação na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna, Marilene ampliou o contexto de experimentação e conhecimento em dança do

Caderno de 2º Ano. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. Acervo de Lúcia

197

-1984)

Para o exercício da improvisação foram utilizados, ainda, estímulos relacionados a situações

cotidianas, como a espera em fila de banco, bloco de carnaval e torcida de futebol, com os

o, confirmado no relato de Arnaldo Alvarenga:

Ao longo desses anos, com essas técnicas todas, uma parte da aula sempre era dedicada a algo que não tinha necessariamente a ver com aquela técnica. Aí entram

coreográfica que se utilizavam de outras linguagens. Aí você entrava com a linguagem teatral, você entrava às vezes com textos, reflexões filosóficas... É uma série de outros elementos que

Esse tipo de exercício, por exemplo, improvisação com figurinos, improvisação segundo determinados contextos teatrais, com estruturação de pequenos esquetes mesmo. Isso era muito comum. Ficava inclusive um baú dentro da sala, um baú enorme, com todo tipo de fantasia que você pode

e compunha seu personagem ali

ere movimentos relativos a

a) Andar por um caminho reto, estreito, limitado lateralmente por duas paredes elásticas. Esse caminho é difícil e muito acidentado (pedras, buracos, bichos, etc).

lo. Incluir na improvisação voltas, quedas, fugas em direção à

mprovisação na tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança

Moderna, Marilene ampliou o contexto de experimentação e conhecimento em dança do

. Redigido por Lúcia Ferreira entre 1982 e 1984. Acervo de Lúcia

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aluno. Ao fazê-lo, reforçou a ideia do conhecer como experimentar, em que não há respostas

pré-determinadas. Também fortaleceu e ampliou a perspectiva do conhecer na convivência

com o diferente. Observamos, então, que o convívio no Trans-Forma não se limitou às

técnicas de dança, mas abrangeu outros e diferentes modos de abordar o corpo, a prática

somática, o movimento dançado e a inventividade no processo de conhecimento em dança.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No momento de tecer as considerações finais desta tese, em que retomamos a discussão que a

constitui, fazemos relação com o pensamento de Hissa (2013), para quem o processo de

pesquisa recusa a linearidade e explicita um tempo-espaço próprio. Ainda na direção para a

qual este autor aponta, a tarefa de finalizar o percurso se instaurou como possibilidade de

compartilhamento, podendo este momento ser compreendido como pausa ou passagem.

A pesquisa surgiu no contexto de desenvolvimento da Dança como área de conhecimento no

panorama brasileiro atual, em que se discutem diferentes possibilidades e demandas para a

formação profissional. Nesse âmbito, destacaram-se reflexões dedicadas à formação do

artista-professor, bem como a pertinência de articulações entre o conhecimento produzido na

universidade e os saberes relativos a outros territórios para subsidiar reflexões sobre processos

formativos voltados para esse profissional. Nesse contexto, inicialmente, a proposição

artístico-pedagógica de Marilene Martins, no Trans-Forma, mostrou-se relevante,

considerando que, segundo Alvarenga (2002) e Reis (2005), o trabalho da artista modificou os

parâmetros artísticos e pedagógicos de dança na capital mineira. A pesquisa, então, partiu da

hipótese que a conjuntura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna, criado pela

artista, poderia contribuir para as reflexões relativas à constituição de processos de

conhecimento em Dança.

Ao buscar modos de desenvolver a pesquisa, foi possível compreender que construir

metodologias de pesquisa, como propõe Pimentel (2014), faz parte do processo da pesquisa,

não sendo algo que acontece apenas anteriormente ao processo, mas, principalmente, durante,

como também lembra Hissa (2013). O processo de criar modos de fazer e referenciais com os

quais dialogar gerou um espaço profícuo à elaboração de perguntas, à problematização. A

busca por modos de fazer levou a algo que compreendemos como um estado de pesquisa –

tempo dilatado para observar o objeto, para investigar materiais, para perguntar, pensar,

imaginar, criar, ficar perdida, retomar o caminho sem precisar conferir o relógio. O estado de

pesquisa se tornou um exercício também. A constituição da metodologia surgiu do objeto – o

Curso Básico de Dança Moderna do Trans-Forma – e acompanhou a fonte primária de acesso

a ele – anotações em cadernos de artistas-professores dessa escola. Esse material levou aos

procedimentos sugeridos pela crítica genética (SALLES, 2008, 2009), referencial que

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orientou o acompanhamento crítico-interpretativo realizado. Ressaltamos que, ao mesmo

tempo em que os cadernos de registro demonstraram se tratar de uma fonte consistente de

pesquisa, esses documentos apresentaram também particularidades que poderiam ter

impedido a sua utilização. No caso, os cadernos estavam guardados há trinta anos, ou seja,

resistiram às mudanças de residência, aos acidentes domésticos e, até, à incredulidade de sua

importância para além da dimensão pessoal. De fato, alguns deles não resistiram e não foram

encontrados. Esse tipo de registro aponta para a importância, não apenas de preservar os

documentos, mas também de produzi-los e compartilhá-los, considerando tanto a efemeridade

da dança como a necessidade de preservar seus aspectos intelectuais e poéticos, como lembra

Louppe (1994).

Para o acompanhamento crítico-interpretativo dos cadernos foi constituída uma rede

epistemológica, considerando o conceito de “rede” que, para Musso (2013), pode operar como

“receptor epistêmico”, ou seja, expandir-se conforme as necessidades da pesquisa. Desse

modo, como propõe Salles (2008, 2009), adotou-se uma dinâmica em rede para acompanhar a

tecitura da abordagem artístico-pedagógica de Marilene Martins, no Trans-Forma Centro de

Dança Contemporânea. A rede epistemológica, ou rede de conversação da pesquisa buscou

coerência com a dimensão processual, artística e cognitiva do objeto, e reuniu, inicialmente,

alguns referenciais, como o conceito de “criação como rede em processo” (SALLES, 2014), o

conceito de “rede”, a partir de Musso (2013), e a teoria da autopoiese, de Maturana e Varela

(2001, 2003). Em seguida, a necessidade de contextualizar artisticamente o trabalho de

Martins levou ao dialogo com diversos autores, como Harvey (2012), Hutcheon (2014),

Lyotard (2011), Paz (1984), Banes (1987), Louppe (2012), Silva (2005), Efland (2008),

jagodzinsky (2008), Coutinho (2008) e Coelho (2011), cujas discussões contemplam os

conceitos de “modernismo” e “pós-modernismo”, em reflexões sobre processos artísticos e

artístico-pedagógicos. A abordagem dos conceitos de “moderno” e “pós-moderno” esteve

relacionada a uma das suposições surgidas na pesquisa da presença de características relativas

a modos de fazer de ambos esses períodos artísticos no trabalho de Marilene. Ao buscar essa

conceituação, o intuito não foi definir um contexto para o trabalho de Martins, mas identificar

e compreender as práticas artísticas na tecitura do Curso Básico de Dança Moderna.

A trajetória de Marilene Martisn anterior à fundação do Trans-Forma Centro de Dança

Contemporânea caracterizou-se por estudos de dança e práticas artístico-pedagógicas, pelo

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diálogo com outras artes e com manifestações de cunho popular, bem como pelo seu

envolvimento com discussões de caráter artístico e político. Observamos a participação de

Marilene em iniciativas pioneiras que marcaram a história da dança no Brasil. No período de

1952 a 1955, a dançarina, artista-professora e coreógrafa estudou com Carlos Leite. O

Professor constituiu em Belo Horizonte o primeiro espaço de dança voltado para a

profissionalização e a primeira companhia de dança – o Ballet Minas Gerais –, na qual

Martins também atuou, e que mais tarde viria a se tornar a companhia oficial do estado. Em

seguida, de 1956 a 1960, esteve junto a Klauss e Angel Vianna, na escola fundada pelo casal

na capital mineira e como integrante do Ballet Klauss Vianna. Nesse período, participou

novamente de um movimento pioneiro levado à frente por Klauss Vianna, cujas ideias sobre a

prática corporal, coreográfica e pedagógica de dança deram início ao modernismo na dança

belo-horizontina. Também nessa fase, Marilene integrou a Geração Complemento, grupo de

artistas e intelectuais que marcaram o panorama moderno que se instaurava em Belo

Horizonte. Após esse período, Martins ingressou no primeiro curso superior de dança do país,

na UFBA, encontrando aí um ambiente marcado pela vanguarda estrangeira. Na Bahia,

Marilene conheceu Rolf Gelewski, por meio do qual teve acesso a uma vertente da dança

moderna expressionista alemã e reforçou seu interesse pela investigação artística e pelo

investimento pedagógico. Nessas primeiras experiências, Marilene presenciou o início do

processo de modernização no Brasil e algumas das primeiras iniciativas do movimento

moderno de dança no país. Diante da complexidade da noção de modernismo, que permite

considerar diferentes manifestações conforme o contexto nas quais elas estão inseridas

(COELHO, 2011), compreendemos a relação de Marilene com distintas perspectivas

modernas. Com Carlos Leite, de forma contraditória, como discute Reis (2010), embora se

tratasse de uma vertente tradicional de dança fundamentada no balé russo, tal iniciativa esteve

inserida no plano de modernização da capital mineira. Com Klauss e Angel Vianna, o

moderno se instituiu como movimento artístico caracterizado pela ruptura com o pensamento

de dança estabelecido em Belo Horizonte com Carlos Leite. Junto com Klauss Vianna,

embora tenha havido novas proposições relativas à criação coreográfica, a técnica continuou

sendo o balé clássico. Na UFBA, a partir do vínculo com Gelewski, Marilene teve acesso a

uma sistematização artística e pedagógica, cuja corporalidade estava fundamentada em novos

movimentos e à recusa do balé clássico. Ainda anteriormente à fundação de sua escola,

ressaltou-se o diálogo com outras manifestações, como o jazz, danças populares e o teatro,

cujo aspecto político chamou a atenção de Marilene. Observamos na trajetória da artista, de

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1952 a 1969, o estabelecimento de vínculos artísticos e pedagógicos que se mostraram

importantes na tecitura artístico-pedagógica do Curso Básico de Dança Moderna, do Trans-

Forma. Além disso, o acompanhamento desse período demonstrou a aproximação de Marilene

com o discurso pós-moderno que, segundo Hutcheon (1991), contempla as novas ideias, mas

não descarta as experiências anteriores.

Ao fundar a Escola de Dança Moderna Marilene Martins, posteriormente, Trans-Forma

Centro de Dança Contemporânea, Marilene Martins constituiu um trabalho caracterizado por

uma rede de relações com diferentes artistas, professores e abordagens de dança, bem como

outras práticas artísticas e corporais. Desse modo, Marilene criou no Trans-Forma um espaço

de convivência que reuniu diferentes perspectivas e favoreceu o processo de criação do Curso

Básico de Dança Moderna. A proposta da artista-professora priorizou o desenvolvimento

humano, com o qual relacionamos o caráter somático de sua dança e a atenção dada às

individualidades do sujeito da dança. A escola contou com uma biblioteca abrangente, com

títulos sobre dança, anatomia humana, história da arte, teatro, entre outros temas correlatos.

Marilene também investiu em espetáculos didáticos, de forma a dar a conhecer os novos

modos de fazer e conhecer dança, oferecidos em sua escola. Nesse contexto, foi criado, ainda,

o Grupo Trans-Forma. Vários profissionais – artistas-professores, dançarinos, coreógrafos,

ensaiadores e diretores – acompanharam Marilene Martins e construíram junto com ela o

ambiente artístico e pedagógico da escola e do Grupo. No Trans-Forma, ressaltaram-se as

iniciativas pioneiras de Martins relativas ao Curso de Didática, voltado para a formação

específica do artista-professor. Esse Curso abordou a prática somática, o estudo de

movimento pretendido por Martins, o conhecimento da rítmica, entre outros conteúdos que se

mostravam importantes para o desenvolvimento do trabalho. Nesses encontros, os artistas-

professores também refletiam sobre o desenvolvimento dos alunos e das turmas,

compartilhavam a criação de exercícios e faziam anotações nos cadernos que, agora,

possibilitaram essa pesquisa. A prática artístico-docente no Trans-Forma se caracterizou por

rigor quanto aos modos de lidar com os conteúdos abordados e, ao mesmo tempo, por

flexibilidade, já que estimulou a proposição do artista-professor.

A trajetória de Marilene Martins e a abordagem do Trans-Forma Centro de Dança

Contemporânea favoreceram o acompanhamento crítico-interpretativo realizado nos cadernos

de artistas-professores. O dossiê constituído por esses documentos demonstrou, inicialmente,

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a existência de uma escritura própria, bem como o caráter coletivo do trabalho artístico-

pedagógico realizado na escola, sob a coordenação de Marilene Martins. As anotações feitas

nos cadernos se constituíram basicamente por texto escrito e desenhos representativos do

corpo humano, ambos pautados na anatomia humana. No âmbito do estudo anatômico, a

ênfase foi dada ao aparelho locomotor, formado pelos sistemas esquelético, articular e

muscular, sendo os dois primeiros mais utilizados nos registros. As anotações ressaltaram a

perspectiva de dança de Martins, em que a referência principal para o movimento esteve no

corpo do sujeito da dança, e não, em modelos externos.

Nos registros foram identificados quatro materiais genéticos, que integraram o Curso Básico

de Dança Moderna. São eles a consciência do corpo, o estudo de movimento na dança, a

rítmica e a improvisação. A partir da identificação desses componentes, compreendeu-se que

Marilene Martins foi, aos poucos, compondo a tecitura epistemológica que constituiu esse

Curso. A partir da articulação entre a teoria da autopoiese, de Maturana e Varela (2001, 2003)

o conceito de “rede”, de Musso (2013), e o conceito de “criação como rede em processo”, de

Salles (2014), propomos que o Curso Básico de Dança Moderna se constituiu como um

sistema autopoiético, cujo movimento de auto-organização se caracterizou por uma dinâmica

em rede. Nessa perspectiva, enfatizamos as noções de convivência e de perturbação,

discutidas pelos biólogos chilenos no processo autopoiético. Consideramos que o ambiente de

convivência no Trans-Forma constituído por diferentes artistas e professores favoreceu a

ocorrência de perturbações, ou seja, estímulos que geraram a formação de vínculos com

alguns desses referenciais. Assim, no convívio com a diferença foi sendo construída a tecitura

epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna, na qual identificamos alguns referenciais

artísticos, bem como as atitudes artístico-pedagógicas apontadas por eles.

Com relação à consciência corporal, observou-se a partir da interação com Klauss e Angel

Vianna, a presença da anatomia humana e de abordagens somáticas. Compreendemos que

esses referenciais tenham favorecido o deslocamento entre diferentes contextos corporais e

técnicos de dança, o estabelecimento da experimentação como modo de fazer e o convívio

com a diferença. Sob o ponto de vista pedagógico esses elementos subsidiaram práticas e

atitudes atentas às individualidades e às diferentes corporalidades, com as quais relacionamos

o caráter humano na dança, desejado por Marilene. No âmbito do estudo de movimento, nas

sequências criadas por Marilene e professores do Trans-Forma, observamos a ênfase em

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referenciais de dança moderna, particularmente, as técnicas de Martha Graham e de José

Limón, e a relação com o balé clássico. Quanto aos outros vínculos identificados, observou-se

a presença da dança jazz, especialmente a Técnica Luigi, a belly dance, danças de cunho

popular, como o primitivo e o afro-brasileiro, além do estudo específico da Técnica de Martha

Graham. A interação com diferentes referenciais técnicos de dança mostrou que a constituição

do Curso Básico de Dança Moderna esteve fundamentada na convivência com o diferente.

Com relação à rítmica e à improvisação, aos primeiros vínculos identificados na tecitura do

Curso Básico com Rolf Gelewski, seguiram-se outros, entre os quais destacamos Maria

Amélia Martins, Graciela Figueroa e referenciais do teatro. A partir de Ribeiro (2012),

considerou-se o caráter somático da rítmica, sendo a interação com essas práticas

compreendida como modo de ampliar a prática e o conhecimento corporal por meio de

referenciais que extrapolam especificidades de dança. A improvisação foi compreendida

como experimentação e, desse modo, sua abordagem também favoreceu a investigação

corporal e artística em diferentes contextos.

Por meio do acompanhamento da abordagem artístico-pedagógica de Marilene Martins, na

qual identificamos o caráter somático da proposta, o diálogo com distintas perspectivas de

dança, o respeito às diferentes corporalidades, a experimentação como modo de fazer e a

ausência de expectativa de resultados pré-determinados, compreendemos a coerência e a

compatibilidade da abordagem da artista-professora com a noção de aprendizagem inventiva,

de Kastrup (2007, 2008). A partir da teoria de autopoiese, de Maturana e Varela (2001, 2003),

Kastrup propõe compreender a aprendizagem, principalmente, como invenção, e não, como

solução de problema. Desse modo, o conhecer é relacionado a experimentar, afastando-se da

perspectiva determinista da representação, o que permite compreender a afinidade da

abordagem artístico-pedagógica de Marilene Martins com o pensamento desta autora.

O panorama apresentado pela tecitura epistemológica do Curso Básico de Dança Moderna

demonstrou que, sob o ponto de vista da técnica, houve ênfase na dança moderna, além do

respeito às individualidades, que também caracteriza esse movimento. Diante dessa

constatação, concordamos com Alvarenga (2002) e Reis (2005), que discutem o trabalho de

Marilene Martins no âmbito da dança moderna e reconhecem a proposição da artista no

Trans-Forma nesse contexto artístico. No entanto, a partir, principalmente, das discussões de

Banes (1987) e Silva (2005) compreendemos que o trabalho de Martins extrapolou as

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convenções da dança moderna. Características, como as articulações entre diferentes danças e

desta com outras práticas artísticas, a relação entre o popular e o erudito na perspectiva do

conhecimento, a ênfase na prática somática, a experimentação como modo de conhecer, a

pluralidade para lidar com as diferenças, as corporalidades, os sujeitos da dança, as danças,

enfim, essa conjuntura apontou para a atitude pós-moderna de Marilene Martins.

Após o acompanhamento da abordagem artístico-pedagógica de Martins, da identificação da

tecitura epistemológica e dos aspectos artístico-pedagógicos relativos ao Curso Básico de

Dança Moderna, compreendemos a relevância e a pertinência de seu trabalho para as

discussões atuais sobre processos de conhecimento em dança, especialmente, aqueles voltados

para o artista-professor no âmbito da universidade. Esse contexto, no qual estou inserida como

artista-professora e pesquisadora e, por isso, mobilizada com as questões que o envolvem, tem

sido, atualmente, foco de reflexões e proposições de vários autores, como Costas (2010),

Rocha (2010), Silva (2016), entre outros. Ao considerá-lo a partir desta tese, ressaltamos na

perspectiva de Martins, as noções de convivência e de alteridade, que permitiram

compreender a diferença e seu caráter perturbador como possibilidade para constituir

processos de conhecimento em dança. Mostrou-se também importante a opção da artista-

professora por modos de conhecer pautados no diálogo, no estabelecimento de vínculos e nos

atravessamentos característicos do movimento em rede, que, por sua vez, questiona relações

hierárquicas. Nesse sentido, compreendemos que a proposição de Martins sugere, além de

interações entre diferentes saberes e modos de conhecer, reflexões relativas ao espaço do

aluno e do professor, sujeitos da dança, no processo artístico-pedagógico.

Considerada a perspectiva do movimento em rede feito por Martins, coube, ainda,

compreender a abordagem da artista-professora a partir da noção de inacabamento,

compreendida como a latência de criação que permanece no objeto criado, como propõe

Salles (2014). No caso da abordagem de Marilene, compreendemos que o objeto criado e

registrado nos cadernos, pode ser também encontrado na corporalidade de seus autores.

Desse modo, observamos a continuidade do trabalho realizado no Trans-Forma em cada um

dos artistas-professores dessa escola. E, ainda, em cada um dos cadernos de registro, em cada

um dos conteúdos abordados, nas imagens fotográficas, nos poucos registros em vídeo, na

memória das pessoas. O inacabamento reside também no olhar e no desejo do pesquisador

que observa.

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