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Texto para Discussão 003 | 2019
Discussion Paper 003 | 2019
Fundamentos da Desigualdade: Uma Abordagem Teórica
Cassiano José Bezerra Marques Trovão
Professor Adjunto do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Economia (PPECO). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Sofia Pádua Manzano
Mestre em Economia Social e do Trabalho pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do curso de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Fundamentos da Desigualdade: Uma Abordagem Teórica
Agosto, 2019
Cassiano José Bezerra Marques Trovão
Professor Adjunto do Departamento de Economia e do Programa de Pós-graduação em Economia (PPECO). Pesquisador do Grupo de Pesquisa em Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Sofia Pádua Manzano
Mestre em Economia Social e do Trabalho pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professora do curso de Ciências Econômicas da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB)
Sumário
1. Introdução............................................................................................................................ 2
2. A origem da desigualdade e o surgimento de novas dimensões ......................................... 2
3. O Estado de Bem-Estar Social: da regulação à oferta de bens e serviços ........................... 8
4. Uma nova era de desigualdades ........................................................................................ 15
5. Conclusão .......................................................................................................................... 18
1
Resumo
O objetivo do presente artigo é apresentar, a partir de um enfoque teórico, os fundamentos da
desigualdade e sua concepção enquanto um fenômeno complexo, dinâmico e multidimensional.
Trabalha-se com a ideia de que a desigualdade materializa-se na diferenciação entre classes
sociais, famílias e pessoas, segundo critérios que vão muito além das disparidades de acesso à
renda monetária. O desenvolvimento dessa hipótese dá-se a partir de uma investigação teórica
que busca resgatar a contribuição de diversos autores que se dedicaram ao estudo desse
fenômeno. As principais conclusões que emergem dessa investigação são: a desigualdade é
deveras complexa para se restringir a uma única dimensão como, por exemplo, a dimensão
econômica referente à concentração da renda e seu estudo precisa ser aprofundado. Contribui-
se, assim, para a orientação de políticas públicas, no âmbito do Estado, e a busca de
instrumentos e mecanismos essenciais para a sua superação.
Palavras-chave: Desigualdade multidimensional, fundamentos teóricos, Estado, políticas
públicas.
Abstract
The aim of this paper is to present, from a theoretical approach, the foundations of inequality
and its concept as a complex, dynamic and multidimensional phenomenon. It works through
the idea that inequality materializes itself as a differentiation between social classes, families
and individuals. This criteria goes far beyond the disparities in access to monetary income. The
development of this hypothesis is based on a theoretical research that seeks to rescue the
contribution of several authors who have devoted themselves to the study of this phenomenon.
The main conclusions are that inequality is quite complex to be restricted to a single dimension,
for example, the economic dimension related to the concentration of income and that it is
necessary to study it deeply in order to guide public policies, under the rule of the State, looking
for necessary tools and mechanisms to overcome it.
Keywords: Multidimensional Inequality, Theoretical Foundations, State, Public Policies.
2
1. Introdução
A evolução do capitalismo e o desenvolvimento das forças produtivas têm permitido a
criação de bens e serviços que alteram a condição de vida em sociedade. No entanto, a realidade
histórica mostrou que as características do modo de produção capitalista não têm proporcionado
uma distribuição igualitária desses bens e serviços. De outro modo, o capitalismo tem feito com
que a distribuição dos frutos do progresso técnico apresente um peso relevante para a definição
dos problemas relacionados ao fenômeno da desigualdade e sua recorrência nas sociedades
capitalistas. Esses problemas impuseram uma agenda de pesquisa que suscitou distintas
interpretações e concepções sobre a origem e os fundamentos da desigualdade.
O objetivo do presente trabalho é resgatar algumas das principais contribuições que
permitem o entendimento desse fenômeno recorrente e complexo que tem moldado as relações
sociais no capitalismo moderno. Ainda que elaboradas sob condições econômicas distintas,
essas contribuições continuam relevantes para a definição teórica da desigualdade
contemporânea. Isso porque o capitalismo transforma esse fenômeno impondo-lhe
caraterísticas dinâmicas, ao mesmo tempo em que aprofunda aquelas que se encontravam em
sua origem. Nas próximas seções serão abordados, primeiramente, a origem e o surgimento de
novas dimensões da desigualdade. Em seguida, o papel do Estado de Bem-Estar Social para a
regulação dos contratos e a oferta de bens e serviços. Na terceira seção, será discutida a ideia
do surgimento de uma nova era de desigualdades. E, por fim, alguns comentários são feitos à
guisa de conclusão.
2. A origem da desigualdade e o surgimento de novas dimensões
Rousseau, em seus estudos, deixou evidente que os fundamentos da desigualdade
possuíam relação com a divisão da terra, a divisão do trabalho e o mérito. Esses elementos
materializavam-se na propriedade, enquanto direito privado. Para esse autor, a desigualdade
surgiu na sociedade quando a primeira propriedade da terra criou uma distinção entre os
homens.
O primeiro que, tendo cercado um terreno, se lembrou de dizer: Isto é meu, e
encontrou pessoas bastantes simples para o acreditar, foi o verdadeiro fundador da
sociedade civil. Quantos crimes, guerras, assassínios, misérias e horrores não teria
poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas ou tapando os buracos,
tivesse gritado aos seus semelhantes: “Livrai-vos de escutar esse impostor; estareis
perdidos se esquecerdes que os frutos são de todos, e a terra de ninguém!”. Parece,
porém, que as coisas já tinham chegado ao ponto de não mais poder ficar como
estavam: porque essa idéia de propriedade, dependendo muito de idéias anteriores que
só puderam nascer sucessivamente, não se formou de repente no espírito humano: foi
3
preciso fazer muitos progressos, adquirir muita indústria e luzes, transmiti-las e
aumentá-las de idade em idade, antes de chegar a esse último termo do estado de
natureza. (Rousseau, 2001: 91)
A partir da sua investigação, pode-se definir um dos fundamentos da desigualdade,
isto é, a diferenciação no acesso à terra. A desigualdade de acesso à propriedade da terra está
inserida na dimensão patrimonial desse fenômeno. Na origem da sociedade civil, a posse da
propriedade da terra deslocou o homem de sua posição de bem-estar. Rousseau aponta que o
momento em que um homem necessitou da ajuda de outro para uma determinada atividade
(socorro, suprimento proporcionado por outros) fez com que desaparecesse a condição de
igualdade entre os membros de uma comunidade. Ao expor suas ideias, esse autor introduz a
propriedade e a exploração do trabalho em sua forma seminal (transformação de florestas em
campos lócus do surgimento da escravidão e da miséria) como elementos fundantes de um
fenômeno que assumiria distintas formas em diversas dimensões.
O homem livre em estado de natureza não guarda qualquer relação com aqueles que
enfrentam os obstáculos e as formas pelas quais a desigualdade se manifesta na sociedade
moderna. Como aponta Rousseau, o Contrato Social fez com que o homem renegasse sua
liberdade individual em detrimento da vontade coletiva, vendo, assim, a legitimação da
desigualdade patrimonial fundada na propriedade privada.
O Contrato Social representa a alienação da liberdade individual, característica da
condição natural humana, e a configuração de uma liberdade coletiva relacionada à vida em
sociedade, o que legitimaria a desigualdade fundada na propriedade privada. Segundo Rousseau
(2001), essa alienação define que a comunidade, ao aceitar a existência dos bens de outras
pessoas, os legitima sem reconhecer a usurpação, o direito e o gozo, pelo simples fato de possuir
um determinado bem.
A propriedade privada e sua legitimação pela sociedade permanecem como
elementos que conformam a desigualdade contemporânea, ainda que esse fenômeno tenha
assumido formas novas e mais complexas. O entendimento da perpetuação desses elementos,
enquanto parte fundante da desigualdade, permite que se assuma que uma possível solução
nessa dimensão exija alterações nas estruturas das instituições da sociedade. As instituições
modernas não se mostram capazes de garantir a homogeneização das condições de acesso à
terra, nem proporcionam uma elevação do bem-estar por meio do acesso aos bens e serviços
criados pelo progresso do capitalismo e que se mostram necessários à reprodução da vida na
sociedade moderna.
4
A teoria desenvolvida por Marx também contribui para a definição dos
fundamentos e das formas que assume a desigualdade no processo de reprodução social. A
visão de Marx aponta que toda produção é uma forma de apropriação e, por isso, não se trata
de “se a riqueza se desenvolve melhor sob esta ou aquela forma de propriedade. Mas é uma
pura tautologia afirmar que não pode haver produção, nem tão pouco sociedade, quando não
existe nenhuma forma de propriedade. Uma apropriação que não se apropria de nada é uma
contradictio in subjecto (contradição nos termos).” (Marx, 1982: 14)
Outro aspecto do fenômeno da desigualdade levantado por esse autor refere-se à
separação entre o resultado da produção e sua apropriação por aqueles que contribuíram para o
processo produtivo. Para Marx (1982: 24), na sociedade capitalista, a relação entre o produtor
e o produto acabado é uma relação exterior. O acesso ao objeto produzido por aqueles que o
produziram depende das relações que esses mantêm com os outros indivíduos. Marx (1982: 25)
destaca que o trabalhador não se apropria diretamente do produto ao término da produção.
“Entre o produtor e os produtos interpõe-se a distribuição, a qual, mediante leis sociais,
determina a parte do mundo dos produtos que cabe àquele; interpõe-se, portanto, entre a
produção e o consumo.”
Cabe, aos agentes da produção, a distribuição entre renda imobiliária, salário, juro
e lucro. A parte de cada agente depende de sua forma de inserção no processo de produção,
sendo o trabalhador aquele que recebe salário, o capitalista aquele que pode auferir juros e
lucros e os proprietários os que se apropriam da renda imobiliária. Essa separação é uma
característica marcante da sociedade capitalista.
Marx (1983) ainda aponta que, no modo de produção capitalista, a expressão
máxima do processo de reprodução e acumulação de capital é a forma de valorização D – D’,
isto é, dinheiro que gera mais dinheiro. Tanto Marx quanto Keynes (1936) reconheceram que
essa é a forma de valorização que melhor expressa os movimentos do capital e que expõe sua
caraterística intrinsecamente concentradora.
A partir dessa lógica apontada por Marx (1983), pode-se definir que a acumulação
e a concentração da riqueza monetária são dimensões distintas daquela relacionada à
propriedade da terra e do consumo monetário possibilitado pelos salários obtidos pela venda da
força de trabalho, no âmbito do mercado. No entanto, deve ficar claro que o surgimento de
novas dimensões não invalida ou reduz o peso das outras. A desigualdade parece se transformar
pela absorção de novos elementos, tornando-se um fenômeno cada vez mais complexo. Tanto
o acesso à terra apontado por Rousseau, quanto a acumulação de riqueza monetária apontada
por Marx, podem ser incluídos na dimensão da desigualdade associada ao patrimônio. Nessa, a
5
propriedade privada assume formas que permitem a afirmação de que a desigualdade
distanciou-se da terra para encontrar na esfera financeira outro espaço de reprodução.
Webb e Webb (1995) trouxeram para o campo do estudo da desigualdade, no início
do século XX, o elemento que Marx havia apontado como aquele que personifica as
características mais marcantes do modo de produção capitalista: a reprodução do capital sob a
forma D – D’ e a tendência à concentração desse capital em sua forma monetária. Para esses
autores, a posse de riqueza monetária, isto é, a desigualdade de patrimônio financeiro, deveria
ser considerada por qualquer estratégia que pretendesse enfrentar o fenômeno da desigualdade
em toda sua complexidade. O enfrentamento da desigualdade em sua dimensão patrimonial-
monetária1 só seria viável a partir de uma ação contrária à tendência à concentração do próprio
sistema. Seriam necessários mecanismos externos à esfera privada/individual de decisão,
podendo englobar a regulação da propriedade e das estruturas econômica e financeira, além de
uma reforma nos sistemas tributários. Esses instrumentos deveriam ser somados a uma
estratégia para inibir a perpetuação da desigualdade oriunda da transmissão da propriedade por
herança.
A partir dessas contribuições, percebe-se que o processo de produção capitalista
tem permitido o surgimento de uma forma de desigualdade que altera a relação entre produtor
e produto acabado. Nos termos colocados por Marx, essa é uma relação puramente exterior, ou
seja, o retorno do produto ao sujeito depende das relações desse com outros indivíduos. Em sua
visão, a apropriação dos produtos acabados é determinada por leis sociais, em que a distribuição
do excedente é condicionada ao modo de produção. Para o autor, a distribuição da produção é
ex post, enquanto os membros da sociedade são distribuídos pelos diferentes tipos de produção
de forma ex ante. A divisão dos frutos do progresso aparece, então, como um resultado da
distribuição dos indivíduos no próprio processo de produção. Em outros termos, quer dizer que
a participação dos indivíduos na apropriação dos resultados da produção depende de sua
condição de subordinação às relações de produção.
A partir da contribuição de Marx, constata-se que a participação dos trabalhadores
no processo distributivo se dá por meio da possibilidade de adquirir produtos pela via do salário.
Isso, segundo essa visão, submeteria os indivíduos a uma lei social que reflete sua posição na
sociedade e no processo de produção. Nesse ponto, surge um novo fundamento que contribui
para a concepção da desigualdade, qual seja, a forma de inserção social subordinada dos
indivíduos no processo de produção. A partir da contribuição de Marx, percebe-se que a
1 Ver Tawney (1931) e Webb e Webb (1923)
6
desigualdade assume uma forma que separa os indivíduos em proprietários e não proprietários
dos bens de capital. Os primeiros possuem uma posição privilegiada, enquanto os segundos são
constrangidos a vender sua força de trabalho para receberem um salário e, só então, fazerem
parte da distribuição dos produtos que eles próprios produziram. Esse constrangimento é o
resultado da própria existência do capital e da propriedade.2 Os trabalhadores dependem dos
salários e a ausência de controle sobre as condições e a organização da produção submete-os a
uma condição desfavorável na relação de venda e compra da única mercadoria que possuem,
sua própria força de trabalho. Isso implica em uma subordinação no processo de produção.
Desse modo, a distinção entre proprietários dos meios de produção e proprietários da força de
trabalho apresenta-se como fundamento chave para a concepção do fenômeno da desigualdade3.
Percebe-se, assim, que a evolução do modo de produção capitalista proporcionou o
aparecimento de distintas configurações de produção, que passaram a conviver com novas
formas de desigualdade. Uma delas emerge daquilo que Marx (2004) denominou de subsunção
real do trabalho pelo capital. Essa é a expressão da subordinação do trabalho ao capital, isto é,
da desigualdade real que emerge da relação capital-trabalho.
O advento da grande indústria e o desenvolvimento das forças tecnológicas
materializaram a desigualdade que surge da diferenciação entre aqueles que possuem o capital
e aqueles que têm como única opção a venda de sua força de trabalho4. O capitalismo
consolidou uma forma de desigualdade que está associada à necessidade/obrigatoriedade de o
trabalhador vender sua força de trabalho em troca de dinheiro para poder comprar bens e
serviços necessários à sobrevivência.
Na medida em que o trabalho é para o capital uma mercadoria e sua aquisição só se
realiza na expectativa de que haja uma valorização do próprio capital, qualquer empecilho à sua
realização acaba por colocar em risco a sobrevivência do trabalhador5. Esse risco, também
apontado por Keynes (1936), advém da subordinação do trabalho ao capital, que tem no
desemprego involuntário a sua mais precisa expressão. Essa forma de desemprego evidencia o
2 “(...) distribuição aparece como distribuição dos produtos e assim como que afastada da produção, e, por assim
dizer, independente dela. Contudo, antes de ser distribuição de produtos, ela é: primeiro, distribuição dos
instrumentos de produção, e, segundo, distribuição dos membros da sociedade pelos diferentes tipos de produção,
o que é uma determinação ampliada da relação anterior.” (Marx 1982, p. 11) 3 A Revolução Industrial fez o regime do capital avançar sobre as formas pretéritas de produção levando à
subsunção a produção de mercadorias. Isso representa que uma parcela cada vez maior da sociedade viu os meios
de produção serem subtraídos, levando-a a vender sua força de trabalho no mercado para ter acesso aos bens
necessários à sobrevivência. 4 Ver Marx, K. (2004). 5 Ver Dedecca (2009)
7
desejo frustrado de o trabalhador vender sua força de trabalho, podendo, esse, em grande parte
dos casos, não encontrar quem queira comprá-la.
Na esfera econômica, o desenvolvimento do capitalismo permitiu que a expansão
da produção material possibilitasse a satisfação de algumas necessidades humanas. Ainda que
o sistema não se tenha mostrado capaz de solucionar o problema distributivo de forma
automática, como bem observou Keynes (1936), o desenvolvimento das forças produtivas, ao
proporcionar a superação de entraves ao desenvolvimento econômico, permitiu a expansão da
produção e criou, e ainda cria, uma gama de bens e serviços que alteraram e alteram a condição
de vida da sociedade. (Keynes, 1930).
Na esfera jurídica, o capitalismo e suas transformações proporcionaram o
surgimento de uma sociedade baseada na liberdade de contratação no âmbito do mercado.6 De
acordo com Castel (1998), os trabalhadores passaram a ter sua inserção na sociedade por meio
de contratos definidos no mercado de trabalho. Essa nova ordem jurídica, que passou a reger os
contratos de trabalho e forçou os trabalhadores a se preocuparem com sua força de trabalho e o
sustento de sua família, não pode ser pensada sem a participação do Estado. Esse apresentou
um papel importante por legitimar os novos instrumentos institucionais de regulação das
relações sociais.
Mais que isso, a expansão dos meios de produção transformou o espaço urbano,
criando um mercado de trabalho que passou a se caracterizar como o ambiente propício para a
reprodução do antagonismo identificado por Marx entre possuidores e não possuidores de
capital.
É inegável que as transformações proporcionadas pelo desenvolvimento capitalista,
como apontou Keynes (1930), expandiram a produção e criaram novos bens e serviços,
melhorando o padrão de vida da sociedade. No entanto, a história do século XX revelou que
esse modo de produção não se mostrou capaz de equacionar autônoma e automaticamente a
distribuição dos frutos do progresso, nem de impedir a ampliação da miséria e da desigualdade
no âmbito da relação capital-trabalho.
Keynes (1930) enxergava que o progresso das forças produtivas se mostrava capaz
de trazer uma melhora expressiva das condições sociais; porém, para isso, deveria haver um
mecanismo para que o avanço da produtividade não se transformasse em um avanço da
desigualdade. Tal mecanismo passaria pela ação efetiva do Estado.
6 Ver Castel (1998).
8
O mesmo Estado que, juridicamente, formalizaria as relações sociais e contribuiria
para a legitimação da desigualdade em suas dimensões patrimonial (imobiliária e financeira) e
naquela oriunda da oposição entre proprietários da força de trabalho e proprietários do capital,
seria impelido a concentrar esforços para que essas desigualdades fossem substancialmente
menores, garantindo melhores condições de distribuição dos bens e serviços gerados no
processo de produção e melhores condições de vida para a sociedade. Os anos dourados do
capitalismo evidenciaram a importância do papel do Estado para as transformações do
fenômeno da desigualdade, especialmente em sua dimensão social.
3. O Estado de Bem-Estar Social: da regulação à oferta de bens e serviços
O capitalismo do século XIX ficou marcado por muitas transformações como: o
processo de monopolização/oligopolização/cartelização das empresas, a ascensão do capital
financeiro e dos fluxos de capitais, além de mudanças nas relações entre as nações. Segundo
Polanyi (1944: 209), os Estados passaram a conviver com diversas tensões em diferentes
esferas. No âmbito das economias domésticas, houve uma série de desequilíbrios: declínio da
produção, elevação do desemprego e queda dos rendimentos. No que tange ao ambiente político
interno às nações, a luta e o impasse das forças sociais (tensão de classes) eram cada vez mais
constantes. Na esfera econômica internacional, as tensões materializavam-se em problemas de
Balanço de Pagamentos (quedas nas exportações, termos desfavoráveis de troca, escassez de
matérias primas importadas e redução dos investimentos estrangeiros), que se somavam às
“pressões sobre o câmbio” e sobre a conversibilidade das moedas nacionais. Por fim, quanto à
política internacional, fortaleciam-se as rivalidades imperialistas em um cenário em que a
pressão do desemprego acirrou as disputas entre os países por mercados estrangeiros, colônias
e zonas de influência.
Com o Sistema Financeiro Internacional e o próprio capitalismo em crise no início
do século XX, a livre regulação, segundo Polanyi (1940), mostrou sua verdadeira face. Em sua
interpretação, o laissez-faire não se mostrava capaz de solucionar as contradições e os
problemas intrínsecos ao próprio modo de produção capitalista. Ao contrário, o regime liberal
provocou inúmeros transtornos à reprodução da vida em sociedade. As contradições do
capitalismo, primeiramente apontadas por Marx, aprofundaram a dimensão econômica da
desigualdade, especialmente quanto à dinâmica do mercado de trabalho e os problemas
relacionados à redução dos níveis de emprego e renda.
9
Enquanto o emprego era abundante, os rendimentos seguros, a produção contínua, o
padrão de vida seguro e os preços estáveis, a pressão intervencionista era naturalmente
menor do que se tornou quando as quedas adiadas transformaram a indústria num
amontoado de ferramentas em desuso e esforços frustrados. (Polanyi 1944, p. 206)
Os impasses promovidos pelo capitalismo liberal abriram espaço para o que Polanyi
(1944: 233) descreveu como uma “reforma da economia de mercado, alcançada ao preço da
extinção de todas as instituições democráticas, tanto no campo industrial como político”. Essa
reforma viria com a intervenção pesada estatal na figura do fascismo, que bloqueou a atuação
política dos cidadãos e reprimiu qualquer tipo de movimentação popular. Segundo esse autor,
o fascismo estabeleceu-se e enraizou-se em uma sociedade de mercado cujo funcionamento
estava comprometido, o que favoreceu sua difusão para outras esferas: econômica, filosófica,
social, artística, cultural e religiosa.
Essa reforma da economia de mercado, para Polanyi (1944: 282), ocorreu em três
fases intimamente relacionadas à esfera econômica: na primeira, de 1917 a 1923, os governos
enxergavam o fascismo como o instrumento capaz de restaurar a lei e a ordem, para que os
mecanismos de mercado voltassem a funcionar; na segunda, de 1924 a 1929, houve um
enfraquecimento do fascismo enquanto força política, num momento de intenso crescimento
econômico; já na última fase7, de 1930 em diante, a Grande Depressão e o flagelo do
desemprego marcaram a crise geral da economia de mercado, permitindo ao fascismo tornar-se
uma realidade, um poder mundial.
A partir dos anos 1930, o impasse do sistema de mercado “tornou aparente o
verdadeiro significado do fascismo”. O debacle de Wall Street tomou grandes proporções. A
economia mundial entrou em colapso. Houve de fato, uma reorganização internacional, em que
três potências (Japão, Alemanha e Itália) opuseram-se ao status quo e interromperam a paz que
marcou o período imediato após Primeira Grande Guerra. A Inglaterra abandonou o padrão-
ouro, dívidas externas passaram a ser repudiadas, os mercados de capital e o comércio mundial
perderam força. O cenário era mais complexo e atingia não só a economia, mas, também, a
política internacional8.
Nesse cenário de instabilidade, emergiu um conjunto de transformações que alterou
mundialmente a realidade política, econômica e social. A primeira delas foi a coletivização das
fazendas na Rússia nos anos 1930, que posteriormente se consolidaria na ascensão do
7 Para Polanyi (1944: 283), “[o fascismo] emergia, agora, como uma solução alternativa para o problema de uma
sociedade industrial. A Alemanha tomou a iniciativa, numa revolução de âmbito europeu, e o alinhamento fascista
deu à sua luta pelo poder uma dinâmica que logo abarcou os cinco continentes. A história estava na engrenagem
de uma mudança social”. 8 Ver Polanyi (1944) capítulo 20.
10
socialismo. De acordo com Polanyi (1944), a ausência de um sistema equilibrado de poder, a
desintegração econômica mundial e a incapacidade de o mercado mundial absorver a produção
agrícola, que evidenciavam a “incapacidade da economia de mercado em estabelecer uma
ligação entre todos os países”, fizeram com que a Rússia buscasse uma alternativa na
autossuficiência, a partir do controle estatal do comércio exterior e das indústrias básicas.
Obviamente que a atuação do Estado nesse processo não pode ser vista como algo
novo. Nas palavras desse autor,
A história econômica mostra que a emergência de mercados nacionais não foi, de
forma alguma, o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera econômica
do controle governamental. Pelo contrário, o mercado foi a consequência de uma
intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do governo que impôs à
sociedade a organização do mercado, por finalidades não econômicas. (...) A fraqueza
congênita da sociedade do século dezenove não foi o fato de ser uma sociedade
industrial e sim uma sociedade de mercado. (Polanyi 1944, p. 244)
O século XX conheceu o que Polanyi chamou de “A Grande Transformação”. As
imperfeições do funcionamento dos mecanismos de mercado criavam tensões recorrentes e
acumulativas na sociedade, que a despertavam para medidas de autopreservação para impedir
ou bloquear a livre atuação do mercado.
As nações testemunharam um desenvolvimento em que o sistema econômico – o
mercado – deixava de organizar a sociedade. A realidade socioeconômica havia sido alterada.
A configuração social era definida pelo primado da sociedade sobre o sistema econômico. O
sistema de mercado auto regulável é que se transformava, pois esse já não possuía a mesma
influência sobre o trabalho, a terra e o dinheiro.
Retirou-se das mãos do mercado o trabalho (o contrato salarial deixou de ser um
contrato privado e as horas de trabalho, as condições fabris, as modalidades de contrato e o
próprio salário básico passaram a ser determinados fora do mercado), a terra (os contratos de
arrendamento da terra foram retirados da jurisdição do mercado) e o dinheiro (a administração
dos investimentos e a regulamentação da taxa de poupança passaram a ser atividades
governamentais). A redução do poder das decisões privadas sobre relações socioeconômicas
foi uma transformação radical na organização da vida em sociedade, em que o Estado passou a
assumir um papel central.
A Transformação de que tratou Polanyi (1944), culminou na emergência do Estado
de Bem-Estar Social. A presença ativa do Estado na economia e a regulação dos contratos,
somados aos esforços para alcançar o pleno emprego e ampliação da oferta de diversos serviços
públicos, permitiram uma redução da desigualdade de renda e uma elevação do bem-estar da
sociedade nos países avançados. Para Piketty (2014: 463), a maior presença do Estado na
11
economia pode ser confirmada pelo fato de que, “a partir dos anos 1920-1930 e até os anos
1970-1980, assistimos a um crescimento considerável da participação dos impostos e das
despesas públicas (e, particularmente, das despesas sociais) na renda nacional dos países ricos”.
A construção do denominado Estado de Bem-Estar Social esteve intimamente
relacionada a uma dimensão da desigualdade que extrapola a esfera econômica, isto é, do
patrimônio (imobiliário e financeiro), da relação capital trabalho e da diferenciação pessoal da
renda. Essa dimensão assume a forma de uma desigualdade social.
O entendimento dessa dimensão social deve partir da ideia de que os indivíduos se
diferenciam entre si por conta do acesso a determinados bens e serviços de caráter coletivo.
Grande parte desses bens não têm sua demanda atendida necessariamente pela via monetária
(poder de compra dos salários) no âmbito do mercado. Alguns bens assumem formas que
exigem uma atuação extra mercado para que a sociedade, de forma coletiva, tenha acesso.
O surgimento do Estado de Bem-Estar social evidenciou uma dimensão da
desigualdade que escapava da capacidade de o livre mercado solucionar. A atuação do Estado
no sentido de sua superação era condição indispensável.
A respeito das consequências da crise de 1929, Tawney (1931) afirmou que a busca
pela igualdade não representava uma extinção dos diferentes atributos individuais, mas, sim, o
estabelecimento de políticas que reduziriam as desigualdades entre as classes. O papel do
Estado, para Tawney (1931), deveria partir da procura pela redução da desigualdade e a melhora
na distribuição da riqueza por meio da oferta de bens e serviços a partir da promoção de políticas
públicas de educação, saúde e proteção ao trabalho, que incentivassem os direitos coletivos.
Em termos práticos, era necessária a promoção de reformas que consolidassem a relação entre
as dimensões social e econômica. Tais reformas deveriam ser orientadas para se alcançar uma
distribuição mais equânime dos frutos proporcionados pelo capitalismo9.
É razoável que se afirme que a expansão da oferta dos bens e serviços de uso
coletivo não guarda uma relação direta com os interesses do capital. Alguns desses bens podem
até se configurar em oportunidade de ganhos monetários para os empresários. No entanto, a
redução da desigualdade social não pode prescindir da ação do Estado e da política pública. A
atuação estatal mostra-se uma condição necessária para enfrentar o que se pode chamar de
desigualdade multidimensional, fenômeno que abarca não apenas as disparidades econômicas,
mas, também, aquelas relacionadas à dimensão social.
9 Ver Dedecca (2009).
12
A evolução do capitalismo no período do pós-guerra permitiu a expansão da
atuação do Estado. O crescimento econômico criou um ambiente favorável à redução da
desigualdade multidimensional. Além de a expansão econômica do período ter permitido a
elevação do emprego, retirando milhões de pessoas da condição de desemprego e da
insuficiência de renda, a desigualdade reduziu-se em decorrência de o Estado ter passado a atuar
diretamente para ampliar a oferta de bens e serviços que alteram a dimensão social da
desigualdade.
As condições para a expansão da oferta desses bens e serviços foram garantidas
pelo planejamento, regulação e controle por parte do Estado, que reduziram o peso e a
importância do mercado como fonte exclusiva de oferta. Em outros termos, o acesso a essa
cesta de bens e serviços passou a se dar não mais única e exclusivamente pela via monetária no
âmbito do mercado. Isso implica que a garantia das condições mínimas para a reprodução da
vida em sociedade não é exclusivamente dependente da venda da força de trabalho, do salário.
A oferta e as políticas públicas passaram a se configurar como mecanismos de enfrentamento
da desigualdade em suas distintas dimensões.
A intervenção pública do Estado de Bem-Estar Social atuou na elevação da oferta
dos bens e serviços necessários à reprodução da vida em sociedade e,
(...) permitiu [também] a redução da assimetria existente, particularmente, no
principal contrato em que funda a geração de riqueza, e de trabalho. O controle das
condições de trabalho, os direitos de organização e de greve, o seguro desemprego e
o sistema de aposentadoria deram poder de barganha aos trabalhadores na venda da
sua força de trabalho. Esta intervenção possibilitou mudanças na distribuição direta
do excedente, enquanto o sistema de tributação e as políticas sociais atuaram na órbita
da distribuição secundária. (Dedecca 2009, p. 13)
Burawoy (1990) apontou que o fortalecimento do poder político dos trabalhadores,
por conta do crescimento econômico e da elevação dos salários, contribuiu para a redução das
desigualdades econômica e social e para a consolidação do Estado de Bem-Estar Social nos
países desenvolvidos10.
T. H. Marshall (1963: 93) observou que o Estado de Bem-Estar Social passou a
atuar na esfera social por meio da promoção do acesso a um “mínimo” dentro de uma cesta de
bens e serviços como assistência médica, moradia e educação. No entanto, sua atuação se deu
também sobre a dimensão econômica por meio de políticas de renda mínima destinada para
bens essenciais como era o caso das aposentadorias por velhice, dos benefícios de seguro e do
salário-família.
10 Cabe salientar que, nesse contexto, ganharam espaço no mercado de trabalho os contratos de natureza coletiva,
permitindo uma maior homogeneização entre os trabalhadores.
13
O Estado de Bem-Estar Social deve ser entendido como um sistema de bem-estar
que reúne um conjunto de medidas que influenciaram, interferiram e ultrapassaram o jogo das
forças do livre mercado na busca pelo bem-estar social. Para T. H. Marshall (1963), “o grau de
igualação” entre classes sociais estaria condicionado a quatro fatores: 1) se o benefício é
universal ou é destinado a uma classe social específica; 2) se assume a forma de pagamento em
dinheiro ou de prestação de serviços; 3) se o “mínimo” é elevado ou baixo; e 4) a forma de
financiamento dos benefícios.
A ampliação de bens e serviços de forma universal (por exemplo, assistência
médica) é entendida por T. H. Marshall (1963) como um efeito direto sobre a renda corrente.
Isso poderia provocar uma ampliação da desigualdade econômica entre as classes sociais se as
camadas superiores da distribuição deixassem de pagar esse tipo de serviço, o que ampliaria
sua renda disponível para outros gastos. Isso ocorreria de forma direta caso não houvesse uma
compensação tributária, isto é, a promoção de uma taxação relativamente mais progressiva.
O autor considera isso como um efeito de menor importância, porque a ampliação
da oferta universal de um bem ou serviço representa “um enriquecimento geral da substância
concreta da vida civilizada, uma redução geral do risco e insegurança, uma igualação entre os
mais e os menos favorecidos em todos os níveis – entre o sadio e o doente, o empregado e o
desempregado, o velho e o ativo, o solteiro e o pai de uma família grande.” (Marshall, 1963:
94)
A igualdade de status, para o autor, seria mais relevante que a possibilidade de a
expansão da oferta de serviços alterar a desigualdade de renda corrente em favor dos mais ricos,
que veriam sua renda disponível ampliada. As vantagens obtidas pela elevação da renda
disponível dos mais ricos estariam, de fato, restringidas a uma única área, isto é, ao consumo
de bens de uso individual, cuja demanda exige o acesso à renda.
A expansão da oferta de serviços públicos de infraestrutura social tem o poder de
alterar profunda e qualitativamente a desigualdade social. Os serviços oferecidos pelo Estado,
alheios à capacidade de comando do dinheiro por parte do usuário/cidadão, passaram a ser uma
norma na sociedade capitalista no período de vigência do Estado de Bem-Estar Social. Segundo
T. H. Marshall (1963: 97), o direito individual deveria estar subordinado aos planos nacionais,
isto é, “as reivindicações individuais devem estar subordinadas à planificação mais ampla do
progresso social”.
Deve ser esclarecido que a ampliação da oferta de bens e serviços públicos está
diretamente relacionada à capacidade de expansão dos investimentos nos setores ligados a esses
bens. A expansão desses investimentos exige, imprescindivelmente, uma atuação do Estado.
14
Os investimentos, orientados, direcionados e impulsionados pelo Estado passaram a cumprir
um papel relevante na redução da desigualdade social. Evidentemente que as decisões de
execução e de promoção de investimentos devem ser tomadas a partir de um planejamento
governamental, em que a elevação dos gastos em infraestrutura social esteja em acordo com as
diretrizes das políticas públicas de cunho social. O planejamento de Estado deve incorporar
elementos para a identificação das necessidades da sociedade, ser capaz de monitorar e avaliar
os projetos, os resultados e as próprias ações no âmbito da proteção social e da política pública,
de forma a tornar efetivos os investimentos que busquem a redução da desigualdade.
É necessário que se reconheça que a política social é um mecanismo de mediação
entre o investimento em infraestrutura social e o acesso ao bem ou serviço por parte da
comunidade. A política pública de cunho social, na realidade, deve ser pensada como parte
integrante de um conjunto de mecanismos, cuja “(...) finalidade é alterar situações, sistemas,
práticas e comportamentos. Implica, portanto, intervenção.” Essa intervenção tem como
pressuposto a definição de trajetórias e a escolha de instrumentos que possam levar à promoção
e à priorização de mudanças na esfera social. (Lavinas 2006, p. 250)
T. H. Marshall (1963) evidenciou que a política social do século XX teve um papel
fundamental para colocar no centro do debate socioeconômico a família e o seu lar. As políticas
públicas aceitaram a responsabilidade de transformar os investimentos habitacionais em acesso
a residências construídas. Medidas complementares à expansão da oferta dos bens e serviços
públicos como a regulamentação dos aluguéis e os subsídios para moradias mostraram-se
relevantes na redução da desigualdade social. Isso demonstra a necessidade de coesão entre
diretrizes econômicas e sociais. A construção de moradias, por exemplo, foi parte integrante,
não apenas da política econômica mais geral, como também da política social nos países
avançados11.
A maior participação do Estado na economia, somada ao maior poder de barganha
dos sindicatos, permitiu uma transformação no locus da reprodução da vida em sociedade.
Houve, de fato, no período pós II Guerra Mundial, uma redução na importância da esfera
privada e do livre mercado no âmbito dos contratos, onde se exacerbavam as contradições e
tensões nas relações econômicas e sociais. Nesse processo ampliou-se a esfera pública, a partir
de um conjunto de ações que possibilitaram a redução da desigualdade em distintas dimensões.
11 O foco do presente artigo, não é a política social em si, porém, reconhece-se sua importância como mecanismo
para garantir a efetividade e a eficácia da expansão dos investimentos em infraestrutura social. Para mais
informações sobre as políticas sociais adotadas no período do pós-guerra na Inglaterra, na França e na Alemanha.
Ver T. H. Marshall (1963), capítulo 8.
15
A regulação estatal dos contratos, os contratos de natureza coletiva, o crescimento
econômico, a ação sindical e, especialmente, a atuação do Estado na ampliação da oferta dos
bens e serviços públicos permitiram à sociedade alcançar uma nova condição de vida e de bem-
estar, em que se verificou uma redução da desigualdade em suas dimensões econômica e social.
4. Uma nova era de desigualdades
A partir de seus principais fundamentos (propriedade da terra, contrato social,
acumulação de riqueza monetária e subordinação real do trabalho ao regime do capital) e da
construção do Estado de Bem-Estar Social, que pode ser considerado um dos principais
mecanismos para o seu enfrentamento, pode-se afirmar que a desigualdade tem assumido
formas distintas que se materializam em duas dimensões básicas: uma de natureza econômica
(patrimônio imobiliário e financeiro, distribuição funcional e pessoal da renda) e uma de
natureza social (associada à ampliação do acesso a bens e serviços de uso coletivo que permitem
a reprodução da vida em sociedade).
O capitalismo tem proporcionado à sociedade transformações na forma como as
suas necessidades básicas são atendidas e seu avanço tem contribuído para aprofundar esse
processo, que altera e amplia o número de dimensões pelas quais a desigualdade se manifesta.
Essas mudanças afetam a própria condição desigual a que a sociedade está submetida e,
também, as relações entre economia, política e sociedade. Segundo Fitoussi e Rosanvallon
(1996), essas mudanças têm se processado em quatro fases:
A primeira, a partir do século XVII, levou a instauração do Estado moderno dando
forma e consistência ao território e à nação. Num segundo tempo, no século XVIII, a
sociedade civil emancipou-se, permitindo o surto da economia de mercado e o
desenvolvimento de uma certa autonomia individual. No século XIX, a grande
viragem consistiu numa ‘invenção do social’, que permitiu a reorganização das
condições da vida em comum e o exercício da solidariedade, que nem o Estado
clássico nem o mercado eram capazes de assumir. O século XX pôde acreditar por um
momento ter consolidado este edifício através dos regimes de proteção social. Mas ei-
lo doravante abalado pela internacionalização da economia e pela crise do Estado
Providência. Por isso, é de fato uma quarta viragem que devemos hoje enfrentar, no
que se refere à reformulação das condições do laço social e cívico na era da Europa e
da mundialização. (Fitoussi e Rosanvallon 1996, p. 2)
Os anos de ouro da economia mundial e a construção do Estado de Bem-Estar
Social, que expandiu a oferta de serviços e benefícios garantidos pelo Estado, criaram um
ambiente favorável para a redução das desigualdades. No entanto, a capacidade de dar
continuidade a esse processo tem sofrido contestações. Segundo esses autores, o Estado de
16
Bem-Estar Social teve seus pilares abalados e seu escopo alterado pelos movimentos mais
gerais da Economia, o que teria impactado sobremaneira a esfera social.
Como apontaram Fitoussi e Rosanvallon (1996), a quarta fase desse processo
configura uma “Nova Era das Desigualdades”. Essa se refere explicitamente ao avanço do
capital em direção a novos espaços em sua busca incessante por valorização monetária. A
internacionalização da produção e a ampliação do processo de financeirização têm se
configurado como os principais caminhos para atingir esse objetivo12. Certamente, esse
movimento trouxe consequências para a esfera da regulação pública e para a própria reprodução
da vida em sociedade.
O avanço da iniciativa privada sem qualquer regulação, orientação ou controle
sobre os setores produtores de bens e serviços públicos poderia trazer obstáculos para a redução
da desigualdade social. Isso porque a sociedade estaria obrigada a recorrer aos mecanismos de
mercado e à renda monetária para ter acesso aos bens e serviços que garantem a reprodução da
vida em sociedade.
A história pós 1970 tem demonstrado uma tendência bastante clara de aumento da
desigualdade, especialmente em sua dimensão econômica (renda e patrimônio). Esse processo
tem ocorrido em que grande parte dos países desenvolvidos, especialmente nos Estados Unidos
e naqueles que atingiram um estágio avançado do Estado de Bem-Estar Social, como é o caso
da França13. De acordo com Fitoussi e Rosanvallon (1996):
Há dois motivos de sofrimento que para começar se sobrepõem no mal-estar
contemporâneo. O mais visível é o que procede das alterações económicas. Mas há
também um segundo, mais subterrâneo, que remete para os efeitos destrutivos do
individualismo moderno. A crise que atravessamos é assim indissociavelmente
económica e antropológica; é, ao mesmo tempo uma crise da civilização e uma crise
do indivíduo. (Fitoussi e Rosanvallon 1996 p. 2)
Na visão desses autores, três crises estariam em curso: 1) crise das instituições de
instauração dos laços sociais e da solidariedade (Estado de Bem-Estar Social); 2) crise do
mundo do trabalho (relação entre economia e sociedade); e 3) crise do modo de constituição
das identidades individuais e coletivas (crise do indivíduo).
A partir da contribuição desses autores, pode-se afirmar que o desenvolvimento do
capitalismo, além de transformar a vida em sociedade, tem criado recursos em abundância. No
12 A “financeirização da riqueza” está relacionada ao peso e à influência dos ativos financeiros nas economias
modernas. A partir dos anos 1980, (...) as classes médias [e] as empresas ampliaram expressivamente a posse de
ativos financeiros. (...) A acumulação de ativos financeiros assumiu um papel central nas decisões dos agentes.
Ver Braga (1993) e Coutinho e Belluzzo (1998). 13 Para mais detalhes sobre a evolução histórica da desigualdade econômica ver Piketty, 2014 p. 24.
17
entanto, sua lógica própria, livre de controle, não tem solucionado os problemas distributivos.
Fitoussi e Rosanvallon (1996) apontam que a evolução do capitalismo, de fato, tem colocado
no mesmo barco velhas e novas desigualdades, o que torna o fenômeno cada vez mais
complexo. A concomitância entre formas e dimensões distintas representa, de fato, uma
característica imanente desse fenômeno, a saber, a cumulatividade. A coexistência entre
desigualdades velhas e novas, ou, como Fitoussi e Rosanvallon (1996: 43) as denominam,
estruturais (tradicionais) e dinâmicas, é oriunda da própria lógica de funcionamento e da
“evolução diferenciada do sistema” capitalista.
Para esses autores, as desigualdades estruturais/econômicas, originárias da forma
de inserção no processo de produção – acesso ao mercado de trabalho e da
diferenciação/hierarquização dos rendimentos do trabalho – estariam interiorizadas pela
sociedade. Evidentemente, que isso não quer dizer que se possa considerá-las como legítimas
ou como algo imutável. A interiorização das desigualdades econômicas reflete uma condição
recorrente em que essas se apresentam como partes indissociáveis da própria lógica e
configuração da forma de produção no capitalismo.
As desigualdades dinâmicas, que definem as diferenças entre os grupos e/ou classes
sociais também decorrem da evolução e das transformações do sistema capitalista. A partir do
momento que essas novas formas superam o caráter transitório e passam a se perpetuar ao longo
do tempo, o resultado preeminente é a divisão e a segregação de grupos sociais, que culmina
em um processo de exclusão. Uma divisão mais equitativa da produção agregada não impede
que a lógica do sistema capitalista imponha uma condição desigual entre classes sociais, pois,
como apontado anteriormente, o fenômeno é mutável, podendo assumir, por exemplo, formas
associadas às desigualdades de gênero e/ou de raça/cor da pele.
A posição de Fitoussi e Rosanvallon (1996) é a de que o crescimento das
desigualdades ocorre por três razões: 1) enfraquecimento dos princípios de igualdade na
estrutura social; 2) crescimento das desigualdades estruturais (desigualdades de rendimentos,
de despesas, de patrimônio, de acesso à educação, entre outras); e 3) surgimento de novas
desigualdades, oriundas de evoluções técnica, jurídica e/ou econômica.
Essas novas desigualdades possuem especificidades como: 1) diferenciação no
âmbito dos contratos de trabalho (novas formas de contratação, trabalhos temporários,
terceirização e trabalho precário); 2) desigualdades de gênero e de grupos étnicos quanto à
inserção no mercado de trabalho; 3) desigualdades regionais; 4) geracionais, associadas à
previdência ou à dificuldade de inserção do jovem no mercado de trabalho; 5) disparidades
provenientes da regressividade do sistema tributário; e 6) desigualdades associadas à vida
18
cotidiana (associadas à condição de reprodução da vida em sociedade e ao acesso aos bens
públicos.)14.
Por guardarem forte relação com a dimensão social da desigualdade, as formas da
desigualdade relacionadas ao cotidiano das pessoas são uma peça chave no entendimento da
complexidade desse fenômeno, especialmente por representarem obstáculos e dificuldades
imediatas para o desenvolvimento da sociedade. As formas associadas ao bem-estar e à
condição de vida são uma parcela expressiva do fenômeno como um todo por englobar
elementos como: 1) acesso à saúde de qualidade; 2) problemas associados à habitação; 3) acesso
a equipamentos públicos como parques, creches e os de lazer em geral; 4) dificuldades de
mobilidade urbana e de tempo gasto no trajeto da casa para o trabalho; e 4) contrastes entre
centro e periferia das grandes e médias cidades.
O caráter acumulativo dos distintos fundamentos da desigualdade e as novas formas
de desigualdade (raça, região, cor de pele, idade etc.) em sua característica de influência
transversal sobre o fenômeno como um todo, exige que esse seja tratado com cautela de maneira
a se evitar subestimar sua complexidade.
5. Conclusão
Objetivamente, este artigo procurou elucidar e contemplar, mesmo que de forma
não definitiva, os fundamentos e os elementos que permitem definir a desigualdade enquanto
um fenômeno complexo, dinâmico e cumulativo que apresenta características estruturais
condicionadas à lógica de funcionamento e de organização do sistema capitalista.
Portanto, é evidente que o tratamento desse fenômeno deve partir de uma
abordagem multidimensional. Ademais, essa deve compreender e reconhecer a coexistência
cumulativa entre velhas e novas desigualdades. Deve se propor a qualificar e quantificar as
informações disponíveis sobre os elementos e fundamentos que conformam a desigualdade em
toda a sua complexidade. Não pode relegar a segundo plano a condição social diferenciada entre
os grupos/categorias/classes sociais. Finalmente, exige-se que essa abordagem seja capaz de
orientar estratégias para o enfrentamento da desigualdade, levando em conta a relevância da
lógica de funcionamento do capitalismo, as forças sem controle que atuam no sentido de agravar
a condição social da sociedade e a importância dos mecanismos extra mercado e o papel do
14 Para uma discussão mais aprofundada, ver Fitoussi e Rosanvallon (1996), capítulo 2.
19
Estado para a redução da desigualdade, como ficou evidente na construção do Estado de Bem-
Estar Social.
O esquema apresentado no Quadro 1 sumariza a discussão exibida neste artigo.
Apresentam-se os principais fundamentos do fenômeno da desigualdade sob uma ótica
multidimensional desde sua origem (desigualdade no acesso à terra) até suas formas
contemporâneas (desigualdades transversais), que incorpora a denominada “Nova Era das
Desigualdades”. Deste modo, ao reconhecer os processos que conduziram e conduzem a
sociedade a uma condição desigual, procurou-se contribuir para o debate metodológico-
analítico de forma a ampliar o escopo da análise sobre a desigualdade de forma a auxiliar o
desenvolvimento de estratégias para o seu enfrentamento.
Quadro 1 - Síntese das dimensões da desigualdade multidimensional
Fonte: Elaboração própria.
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ECONÔMICA
SOCIAL
OUTRAS DIMENSÕES
• Distribuição pessoal da renda
• Capacidade de consumo de bens individuais
• Emprego (desemprego)• Acesso a crédito
Mercado de Trabalho
• Distribuição Funcional da renda
Relação Capital-Trabalho
Patrimônio
Desigualdade de acesso
Políticas públicas
Financeiro
• Ativos (portfólio)• Riqueza Monetária
Imobiliário• Terra• Espaços urbanos
DESIGUALDADE
• Habitação• Saneamento• Água encanada e tratada
• Energia elétrica• Segurança• Lazer
• Saúde• Educação• Transporte coletivo
• Acesso ao Sistema de Proteção Social
• Previdência Social
• Programas de transferência de renda
• Política Social
Transversais
• Regional• Geracional• Gênero• Raça/cor• Urbano/rural
20
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