ftsa - teologia da missão integral

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Novembro/2014Autor: Ms. Jonathan MenezesCoordenadoria de Ensino a Distância:Gedeon J. Lidório Jr

Projeto Gráco e Capa:Mauro S. R. eixeiraRevisão:Éder Wilton Gustavo Felix CaladoImpressão:

odos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR 86055-670 el.: (43) 3371.0200

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M IU

O ( ) M

IEsta é uma unidade introdutória, pois ela não pretende

trazer mais do que algumas discussões iniciais sobre o conceitoque permeia esse curso, que é o de Missão. Dessa orma, você verá de maneira incipiente alguns dos temas e problemas quedevem ocupar nossas mentes e corações ao longo desse curso,a partir das seguintes questões: O que é missão? Qual é o papelde Deus na missão? E qual é o papel da igreja? rata-se, assim,de um breve esboço do que, de modo geral, discutiremos aolongo dessa disciplina. A tese maior a ser de endida é de que amissão, por ser de Deus, designa seu interesse na reconciliaçãointegral do ser humano consigo mesmo, com Deus e com omundo ao seu redor. Nesse sentido é que ela é “integral”. Comoa encontramos na Bíblia? Existem expressões históricas queconguram um movimento em torno desse tipo de perspectiva?Como a igreja tem absorvido e propagado (se é que o tem) essaperspectiva de missão? E quais são os desaos que temos adianteem nossa caminhada em missão? Anal, o que signica viver eresponder à missão? Essas e outras questões servirão de basepara discussões posteriores que pretendo propor.

O

1. Entender a importância do conceito de missão nomundo contemporâneo;

2. Identicar importantes di erenças entre conceitosrelacionados com o de missão, como o de campo de missão,missionário, missões, missiologia e missional;

3. Começar a se inteirar das discussões acadêmicas quegravitam em torno desse tema, missão, e suas implicações paranossos dias.

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Missão Integral 06

P Já são mais de dois mil anos de história do Cristianismo. Dois

mil anos de irmãos e irmãs, de pessoas que partilham a mesma é nomesmo Cristo ressurreto, que azem parte da mesma Igreja, o grandeCorpo de Cristo espalhado por toda a terra, mas que são totalmentedi erentes, vivem em épocas totalmente di erentes, habitam em lugarestotalmente di erentes, com ormas de pensar, de sentir, de julgartotalmente di erentes. Imagine todas essas pessoas pensando sobretemas que não são tão di erentes assim.

Por exemplo, o próprio Cristo, em quem todos nós, como cristãos,cremos. A Bíblia é muito clara ao alar das coisas que ele ez, certo?Bom, a Bíblia pode até ser clara, mas nós, que a lemos, não podemosentender a total clareza com a qual ela ala. O que isso signica?Signica que nossa mente, mesmo sendo iluminada pelo Espírito, nãoé capaz de “dar conta” de toda a revelação expressa na Palavra, isto é,não possuímos as chaves que nos conduzem à interpretação absoluta eúnica da Palavra de Deus. Assim, ainda que conheçamos a Cristo hoje,prosseguimos em conhecê-lo todos os dias.

Isso pode ir um pouco contra ao que você já aprendeu até hoje,

mas não é, e vou tentar explicar por quê. Pense comigo: se tudo passa,mas a palavra de Deus nunca passará; se ela é viva e ecaz e maiscortante que uma aca de dois gumes; se ela é lâmpada para nossospés e luz para nossos caminhos; se é nosso prazer noite e dia, e tantasoutras re erências que sobre ela conhecemos por meio dela mesma,isso não implica que: 1) essa Palavra é maior que nossas palavras;2) nossa capacidade de expressá-las está condicionada pelo espaçoe tempo; 3) por isso, ela se renova permanentemente à medida quemudamos e que muda nossa postura de escuta?Isso é mais para vocês começarem a pensar sobre a questão.Voltaremos a ela em outros momentos. O que me importa, agora, éconversar sobre outro tema que tem diversas respostas possíveis: o queé, anal de contas, missão? Como “denir” uma prática que tem quasedois mil anos de história e está desgastada por tantas controvérsias?Como podemos dizer o queé e o quenão é missão quando tantosteólogos(as), missiólogos(as), missionários(as) e agências de missãoarmam coisas tão di erentes (e às vezes até opostas)?

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A A primeira coisa que podemos dizer a respeito da denição de

missão é que não se podedenir (por m em) a missão. Quem alaisso é David Bosch (nessa primeira parte do curso, você vai ouvir alarmuito dele e sugiro, desde já, que, se você puder, compre o livro Missão

ransformadora): “a missão permanece indenível; ela nunca deveriaser encarcerada nos limites estreitos de nossas próprias predileções”(BOSCH, 2002, p. 26). Em outras palavras, cada vez quedenimos missão, nós acabamos, obrigatoriamente, deixando algumas coisas de

ora. A cada vez que alamos o que a missão é, acabamos alando umsérie de coisas que elanão é .

Vamos tomar alguns exemplos. Se entendermos que “missão é apregação do Evangelho em terras onde nunca se ouviu alar de Jesus”,deixamos de ora, entre outras coisas, todas as outras nações que já

oram evangelizadas. Além disso, deixamos de ora todas as ações quenão são obrigatoriamente “verbais” de lado, bem como não denimosquem é o seu agente. É claro que peguei um exemplo simples, mas o atoé que toda denição é parcial, tanto no sentido de que ela é uma parte,quanto no sentido de que ela é tendenciosa; não existe imparcialidadena hora de denir algo, sempre denimos a partir de nosso ponto de vista.Assim, se missão é algo dinâmico, e nosso ponto de vista parcial,logo teremos uma percepção sempre inacabada de missão.

Só que existe outro extremo nessa história. Se, por um lado,corremos o risco de “ echar” demais o nosso conceito de missão,também corremos o risco de exagerarmos em sua “abertura”. Daí,lembramos-nos da conhecida rase de Stephen Neil, a qual diz

“quando tudo é missão, nada é missão”, ou seja, quando banalizamos oconceito de missão e entendemos que qualquer coisa eita pela igrejaé cumprimento da obra missionária, essa alta de intencionalidade econsciência leva a uma tendência muito comum, a missão passa a sermanutenção, ou seja, a igreja passa a lutar apenas para manter suas“conquistas”, voltando-se para si e não para ora.

Por isso, não quero buscar uma denição exata, pro unda e“completa”, segundo o meu ponto de vista, do que seja missão. Vamossimplesmente delinear algumas denições de trabalho possíveis, que

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nos permitam saber melhor do que estamos alando quando dizemosessa palavra-chave de nosso curso, que você verá bastante daqui pra

rente. Dessa orma, para ns desse princípio de diálogo, gostaria depropor o seguinte entendimento:

Entendo que Missão pode ser vista como a ação soberana deDeus para a implantação do seu Reino nesse mundo e reconciliação datotalidade da criação entre si e com Ele mesmo.

Em primeiro lugar, amissão não é da minha igreja, da sua igrejaou da Igreja como um todo, ela é de Deus. Vamos discutir isso maispro undamente mais adiante (especialmente nas unidades 3, 9 e 10),mas desde já você pode saber que existe na literatura missiológica

um termo para isso:missio Dei, que designa nada mais nada menosque “missão de Deus” em latim. Usarei esse termo várias vezes, nãopara “gastar o meu latim”, mas porque entendo ser este o que melhorexpressa a ideia de missão que aqui será explorada. Bom, o queprecisamos saber desde já é que, segundo essa possível denição, aIgreja é um instrumento de Deus para a realização da missão. Maisuma vez, lembre-se de que vamos discutir tudo isso mais à rente(especialmente esse ato de ela ser apenas “um instrumento”).

Em segundo lugar, amissão tem um conteúdo: as boas novas doReino de Deus. Esse será o tópico de outra unidade, mas vale lembrarque o Reino é o conteúdo básico da pregação de Jesus. É do Reino queele ala, é o Reino que ele veio inaugurar em nossa história. Como bemobserva Emílio Castro:

Nos ensinamentos de Jesus, o Reino de Deus compreendetodos os anseios e os gritos de angústia do povo de Israel.

Responde à mensagem undamental do Antigo estamento erevela o propósito, o caráter e o poder do uturo domínio deDeus. Convida o povo a responder com obediência radical. Aproclamação do Reino é sempre acompanhada por um chamadoà decisão, para seguir Jesus, para participar da missão de Deus.Para Jesus, a vinda do Reino é o domínio trans ormador de umDeus compassivo (Castro, 1986, p. 67).

Em terceiro lugar, amissão acontece nesse mundo. Mais uma veznão que rustrado(a), lembre-se de que estamos numa discussão

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introdutória, digo que veremos esse assunto mais pro undamenteadiante no curso. Mas o campo da missão é o mundo. É nesse mundoque ela se realiza. E é por amor ao mundo que ela existe. Como a Igrejaé parte do mundo, pode-se também acrescentar, como arma Andrew

Kirk (2006, p. 58), “que a missão de Deus é cumprida tanto no mundoquanto na Igreja; num grau menor na história que não oi tocada peloEvangelho, e num grau maior onde o Evangelho é crido e obedecido”.

S Para prosseguir, creio ser importante mencionar uma di erença que,

às vezes, as pessoas não percebem na igreja:missãoé di erente de missões.

Estamos (mais ou menos) acostumados a alar sobre missões naigreja. Vemos o testemunho de missionários, dados sobre a evangelizaçãodo mundo, sobre povos não alcançados, sobre Janela 10/40, e assim pordiante. Isso tudo diz respeito a missões, e é uma imensa tare a inacabada,cuja responsabilidade pesa sobre os ombros da igreja.

odavia, a missão da igreja, como veremos, é maior ainda! ambémtem a ver com o testemunho e serviço do reino em nossa sociedade. em a ver com a edicação da nossa comunidade. em a ver com a celebração eadoração ao nosso Deus, que por sua vez é mais do que momentos íntimosou comunitários de contemplação. em a ver com o ensino responsável detodo conselho de Deus expresso nas Escrituras. E tem a ver com muitasoutras coisas também.

Missões, portanto, é uma parte (importantíssima, mas não a única)da missão da Igreja. Quero voltar a essa questão daqui a pouco. Antes,quero me apoiar na esclarecedora análise de Chris Wright (2006), na

introdução de seu livroTe Mission of God(A Missão de Deus) , sobrealguns termos que serão recorrentes nesta disciplina. Missão. Para ele, missão não está relacionada apenas com missões,

pois é mais do que a descrição pura e simples de es orços e atividadesmissionárias de envio e sustento de pessoas que vão para pregar oevangelho aos “pagãos” de lugares “não alcançados”.

David Bosch ilustra bem essa ideia quando observa que o signicadode missão entre a maioria dos cristãos do ocidente até os anos 1950, oipara raseado como: “a) propagação da é; b) expansão do reinado de

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Deus; c) conversão dos pagãos; e d) undação de novas igrejas”. Assim,segundo ele, “o termo ‘missão’ pressupõe alguém que envia, umapessoa ou pessoas enviadas por quem envia, as pessoas para as quaisalguém é enviado e uma incumbência” (BOSCH, 2002, p. 17).

Wright, por sua vez, demonstra certa insatis ação comabordagens à missão que reduzem sua denição por meio da mençãoà raiz latina da palavra,mitto, que literalmente signica “envio”. Comisso, ele não pretende negligenciar a importância desse sentido, masapenas chamar a atenção ao ator, que tenho tentando azê-los atentaraté aqui, de que se denimos missão apenas nesses termos “excluímosnecessariamente de nosso inventário de recursos relevantes muitosoutros aspectos do ensinamento bíblico que direta ou indiretamentea etam nossa compreensão da Missão de Deus e de nossa própria”.Assim, para esse autor, missão tem a ver com a nossa participaçãocomprometida como povo de Deus, pelo chamado e comando deDeus, em sua missão (missio Dei) no meio da história do mundo emprol da redenção de sua criação (WRIGH , 2006, p. 23).

Missionário. Esse termo designa um tipo de pessoa que seengaja na missão normalmente em outra cultura que não a sua.

Missionários são tipicamente aqueles enviados por suas igrejas ouagências missionárias. Wright se desagrada desse conceito, pois elenão somente re orça a ideia de missão como “envio” ou “missões”,como evoca a imagem de cristãos, ocidentais e brancos, expatriadospara países distantes. Ao invés disso, ele pre ere descrevê-los como“parceiros de missão”.

Anal de contas, missionários são mais do que pessoas enviadaspara uma tare a especíca ora de sua cultura, mas também pessoasque, por serem cristãs, são chamadas a viver o evangelho de mododigno do intento divino de reconciliação do mundo consigo mesmoinclusive onde estão. Amplia-se, portanto a ideia demissionário e decampo missionário, uma vez que, como observa Brian McLaren (2007,p. 121), “todo cristão é um missionário e todo lugar é um campomissionário”.

Missional . É um simples adjetivo que denota alguma coisa queestá relacionada com ou é caracterizada pela missão. Indica alguma

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coisa que carrega qualidades, atributos ou dinâmicas da missão. Umaigreja missional, por exemplo, é uma igreja que explora em sua maneirade ser atributos ou qualidades da missão, que entende que oi chamadapara uma missão no mundo, e que Jesus não veio criar uma religião

exclusivista apenas para nós os “salvos”, mas que ama o mundo e desejareconciliação. Assim, exemplos de uma comunidade missional podemser percebidos (ou não) na visão por ela expressa, como por exemplo:“Ser uma igreja de Deus de modo autêntico e para o mundo”. Essa raserevela, nas palavras de McLaren, uma “equação missional”.

Missiologia e Missiológico . Missiologia é o estudo teológicoda missão. Ela é uma disciplina que, em suas elaborações e rigores,procura, segundo Bosch (2002, p. 26), “olhar o mundo a partir daperspectiva do compromisso com a é cristã”. De acordo com ChrisWright (2006, p. 25), o termo “missiológico” deve ser usado toda vezque tal aspecto teológico ou reexivo estiver implicado.

Esse breve aporte ao uso e designação dessas palavras será deextrema importância para o restante desse curso, pois, desde já, vocêtem erramentas para identicar o que e etivamente está se dizendo(se bem ou mal) quando se aplica tais ou quais termos no estudo em

questão.Para nalizar, gostaria de me voltar a três observaçõesinteressantes eitas por David Bosch (2002, p. 28-29) em seu relevanteestudo sobre a missão.

Primeiro, ele distinguemissão (no singular) demissões (noplural) – como também já zemos anteriormente. Para ele, o primeiroconceito designa a missão de Deus, isto é, implica na “auto-revelação(sic) de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deusno e com o mundo, a natureza e atividade de Deus, que compreendetanto a igreja quanto o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio departicipar”. Já o segundo conceito, de missões, como temos visto, re ere-se aos empreendimentos missionários da igreja; “ ormas particulares,relacionadas com tempos, lugares ou necessidades especícos, departicipação namissio Dei”.

Segundo, ele arma que amissão não é sinônima de evangelização,mas a evangelização está inclusa na missão como uma de suas

undamentais dimensões. E, assim, como um dos braços da missão,

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a evangelização é, con orme Bosch, “a proclamação da salvação emCristo às pessoas que não creem nele, chamando-as ao arrependimentoe à conversão, anunciando o perdão do pecado e convidando-as atornarem-se membros vivos da comunidade terrena de Cristo e a

começarem uma nova vida de serviço aos outros no poder do EspíritoSanto”. Para essa denição vale a mesma armação eita quanto àmissão: a evangelização permanece indenível, enquanto um processodinâmico, renovado e observado por di erentes lentes.

Por m, o autor de ende particularmente que a missão é aexpressão tanto do “sim” como do “não” de Deus ao mundo.O “sim”de Deus pode se expressar na solidariedade cristã com a sociedadee na valorização da cultura; o “não”, por sua vez, apareceria comoexpressão de nossa oposição e conito com a ela. Isso propriamentepara dizer que a igreja – sinal do reino de Deus e instrumento da graçana reconciliação do e com o mundo– não é nem totalmente idêntica enem totalmente avessa a ele.

C

Essa primeira unidade pretendeu seguir a via elucidativa, istoé, da explicação e distinção de certos termos, que, muitas vezes, sãotratados pela igreja como se ossem sinônimos; e esse é o caso dostermos “missões” e “missão”. Nesse sentido, é importante perceber, (1)que a missão diz respeito ao todo das ormas as quais Deus mesmoutiliza para a implantação do seu Reino nesse mundo e reconciliação da

totalidade da criação entre si e com Ele mesmo. Por isso, Missão é MissioDei (missão de Deus), e não da minha ou da sua igreja; por isso, nãopretende anunciar outra coisa senão as boas novas do Reino, o evangelhotodo, ao ser humano todo em seus mais di erentes contexto. Se ainda ornecessário insistir na redundância, a missão éintegral.(2) Missões, porsua vez, diz respeito às ações especícas da igreja de envio, treinamentoe sustento de missionários para o campo, também entendida como“missões transculturais”. Assim, azer missões é participar na, e nãoigual a, missão de Deus. Assim, vimos na mesma direção a elucidação

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de outros conceitos objetivando iniciar a visão de conjunto que se querconstruir ao longo desse curso acerca damissio Dei.

R

BOSCH, David.Missão transformadora. Mudanças de paradigma nateologia da missão. São Leopoldo: ES ; Sinodal, 2002.CAS RO, Emílio.Servos livres. Missão e unidade na perspectiva do reino.Rio de Janeiro: CEDI, 1986.KIRK,Andrew. O que é missão. eologia bíblica de missão. Londrina:Descoberta, 2006.MCLAREN, Brian.Uma ortodoxia generosa. A igreja em tempos de pós-modernidade. Brasília: Palavra, 2007.WRIGH , Christopher J. H. e Mission of God. Nottingham, England:IVP, 2006.

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I

Nesta segunda unidade de nosso curso, quero convidar você – antes de prosseguir discutindo sobre os sentidos damissão –, a dar um passo atrás e reetir sobre aquilo que julgo como sendo algumas das tare as básicas da teologia, a

partir de três perguntas centrais: (a) para quem é a teologia? (E aqui outra está embutida, quem são os teólogos?); (b) paraque (serve a) teologia?; (c)que teologia queremos? Estoupartindo da posição arriscada de dar uma resposta possívela essas perguntas, sem nutrir, porém, a pretensão de que elaseja undamental ou essencial.

Isso signica que minha resposta é assumidamente“minha”, isto é, contingencial, provisória, perspectiva. Por

essa razão, cabe a você avaliar, reetir a respeito, e delinearseu próprio entendimento acerca do azer teológico – anal,é para isso (imagino eu) que você está matriculado/a em umcurso de teologia. Encare essa provocação, portanto, comoum início de uma conversa que, espera-se, irá se prolongare se apro undar ao longo de sua trajetória nesse curso comoum todo.

O que a teologia tem a ver com a missão? Essa é outrapergunta importante a ser respondida aqui, e você notará quea compreensão de teologia que aqui expresso tem uma totalligação com a missão que Deus con eriu a seu povo. Logo,passa por dois entendimentos básicos: (a) de que a teologiaestá à serviço da Missio Dei; (b) que ela é uma tare a de todopovo de Deus. Meu propósito com isso não é o de reduzir atare a teológica a duas dimensões; pelo contrário, o que queroé ampliar o alcance e a responsabilidade da tare a teológicae, por consequência, a compreensão sobre o que signica ser

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um/a teólogo/a e a quem isso cabe. enho certeza de que issopoderá ampliar um pouco mais seu leque de possibilidadespara o azer teológico.

O

1. Compreender a relação intrínseca existente entreteologia e missão;

2. Reetir sobre o papel da teologia na ormação do

povo de Deus;3. Identicar possibilidades para o azer teológico

em seu próprio contexto e situação de vida: pessoal,prossional, ministerial.

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T

Cada cristão é um teólogo. Consciente ou inconscientemente,cada pessoa de é abraça um sistema de crença. E cada crente,seja de maneira deliberada ou implicitamente, reete sobre oconteúdo dessas crenças e sua signicância para a vida cristã(GRENZ, 1994, p. 1).

Durante muito tempo, sustentou-se uma posição um tantoalienígena em relação à teologia cristã (considerando sua razão de sere propósito), qual seja: a de que consiste em uma tare a e disciplinaquase exclusivamente destinada a especialistas – “os teólogos” (nomasculino mesmo) – por terem obtido esse título por meio de estudosacadêmicos, possuindo, assim, o saber e a autoridade para alar emtermos normalmente rebuscados, meta ísicos e, como tais, distantesda realidade, sobre a magníca revelação de Deus, que se encontranas Escrituras Sagradas. eólogos “de calibre” precisam possuir essascaracterísticas, ou não são teólogos.

Essa posição, com algumas exceções, já não mais se sustenta emnossos dias. E, junto com ela, outras visões do gênero, tão obsoletasquanto, como a de que a prática pastoral deve ser apenas eita porpastores ordenados; de que ministério e liderança são unções clericais;ou ainda a visão (embora bastante resistente, mesmo em pleno séculoXXI) de que às mulheres deve ser reservado o papel de auxiliar oucoadjuvante ao homem, na vida e no ministério. No “Ocidente cristão”,eu diria, todas essas alácias deveriam ser obsoletas de berço, e sónão oram (ou ainda não são) por orça de uméthos, isto é, o hábitoou o “costume unicado” (MCMANUS, 2009. p. 113) que marcou ahistória do cristianismo desde seu processo de institucionalização, etem a ver com a ormalização constante das práticas, das crenças e doscomportamentos dentro de uma estrutura de poder hierárquica, ouseja, isso criou raízes pro undas por séculos, de modo que podemosaté chamar esseéthosde obsoleto, mas não de extinto.

E quando digo que é obsoleto desde o berço, é devido à lógicaantagônica a ele que encontramos nos escritos neotestamentários,

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a exemplo do universalismo paulino, cuja premissa oi (o máximopossível) de equivalência1 (e unidade em Cristo) entre os gêneros,as raças e as posições sociais (c . Gl 3.28) ou da visão petrina sobreo sacerdócio de todos os crentes (c . 1Pe 2.9). Isso deveria despertar

os cristãos para o ato de que, se o Cristo é Senhor sobre todos, Eletambém habita em todos por intermédio de seu Espírito; e se Ele é omediador, logo não precisamos de xamãs, videntes, oráculos, pro etasou sacerdotes de alto escalão para nos achegar ao Pai; enquanto Sumo-sacerdote, Cristo ez de cada um dos membros do povo de Deus umsacerdote. A questão é: por que tendemos tão facilmente a negligenciarisso e a nos contentar em terceirizar a outros a responsabilidade sobre oque fazemos com nosso próprio caminho na fé?

O grande lance é que, tendo nos dado, pela graça, a liberdade denos achegarmos a Ele, também nos con eriu a inteligência para pensar ea paixão para con erir sentido, na luta com Sua Palavra, a essa vida novaque Ele nos convida aviver no, e a partilhar com, o mundo. Por essa razão,Stanley Grenz oi assertivo ao dizer, na epígra e acima, que em cada cristãohá um/a teólogo/a. Lembrando também de Jürgen Moltmann (2004, p.23), “todos os cristãos, quer jovens ou velhos, quer mulheres ou homens,

que creem e azem alguma reexão sobre isso, são teólogos”.Stanley Grenz e Roger Olson (2002, p. 13) os chamam de“teólogos anônimos”, a partir de uma compreensão de que “qualquerreexão sobre as questões essenciais da vida que aponte para Deus” éteologia. São anônimos aqueles que azem teologias nesses termos semse dar conta. E, uma vez que esse Deus com quem nos relacionamose sobre o qual alamos está presente no mundo (pelo que Paulo emRm 1.20 chamou de “atributos invisíveis de Deus”) e nas “questõesbásicas da vida”, é possível encontrar teólogos/as anônimos/as tambémna cultura popular, por exemplo, “através de autores populares,1 Não pretendo polemizar, nem discorrer de modo mais amplo, sobre a questão das mulheres segundoa cosmovisão de Paulo. Para o momento, basta dizer que concordo com a tese de Alain Badiou deque é tanto premeditada a visão de que Paulo oi uma espécie de undador de uma misoginia cristã,quanto o desejo implícito ou explícito de azê-lo comparecer a um tribunal eminista contemporâneoqualquer. Basta lembrar que Paulo teve muitas companheiras mulheres em seu ministério e notrabalho com as igrejas. Entretanto, o mais importante, como pontua Badiou (2009, p. 121ss), “é saberse Paulo, considerando sua época, é mais progressista ou mais reacionário no que se re ere à situaçãodas mulheres”. Não há dúvidas de que as questões culturais e as di erenças são importantes nesse caso,mas mais importante é compreender o que a extensão de uma “participação igualitária como essapoderia mobilizar”. Aqui reside na visão de Badiou (ibid.) boa parte da visão universalista de Paulo.

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compositores, novelistas, e mentes criativas” (Ibid.). Cineastas comoWoddy Allen e errence Malick; artistas da MPB como Gilberto Gil,Milton Nascimento ou a banda O eatro Mágico; autores/as comoDostoievsky, olstoi, Hermann Hesse, Simone Weil, Simone de Beauvoir,

Adélia Prado – apenas para citar poucos/as de minha predileção –, todosoram/são, a meu ver, teólogos/as anônimos/as. Dessa orma, já não deveriaser nenhuma surpresa que às vezes aprendamos mais teologia – maisde uma humana teologia – com esses e outros anônimos do que com osprossionais.

Voltando ao ponto inicial, é preciso ter em mente que a vivência ea inteligência da é são irmãs uma da outra; como diz Gustavo Gutiérrez(2000, p. 51), “o nível da vivência da é sustenta o da inteligência da ésendo o contrário também verdadeiro: o nível de inteligência da étambém deveria, por suposto, alimentar e guiar a vivência da é, sob ailuminação do Espírito. De acordo com René Padilla (1986, p. 131), “a

unção primeira e mais básica da educação teológica é preparar líderes‘leigos’ para ajudar no ministério educacional da igreja”. Em seguida éque vêm as unções de preparar pessoas para o ministério “ordenado”e, por conseguinte, de ormar mestres e “cientistas da é”.

Por que precisamos continuar invertendo essa ordem? A queminteressa essa inversão? A igreja precisa parar para reetir sobre isso,pois essa consciência (ou a alta dela, como parece ser mais corrente)muda muita coisa em seu modo de ser.

Com isso, quero concluir essa primeira parte com três armaçõesbásicas: (1) o azer teológico é tare a de todo o povo de Deus; (2) em todocrente há umesboço de teologia,como bem disse Gutiérrez em outrolugar (GU IÉRREZ, 1986:15); (3) como inteligência da é, a teologiaé tanto servida pela, quando serve à prática de é. O que signica queela pode ser uma disciplina acadêmica, mas também é ruto de uma práxis. Isso é o que aprendemos basicamente com o modo latino-americano de se azer teologia, como na conhecida ormulação deGutiérrez, é que a teologia (enquanto ormulação teórico-conceitual) vem na esteira de uma práxis de é e, portanto, éato segundo.

Em uma entrevista recente, mais de quarenta anos depois deinvocar esses postulados que ajudaram a undar uma teologia latino-americana, Gutiérrez (2015) disse: “Repito quea teologia é um ato

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secundário. Nós dissemos isto desde o princípio. Não é secundárioem sentido pejorativo. Eu, pessoalmente, aos 40 anos não alava deteologia e acho que eu era cristão. Sim, oi possível, para mim, sercristão antes da teologia e espero ser cristão depois da teologia”. Quero

insistir, porém, que não re orcemos essa dicotomia, como essa ala deGutiérrez pode parecer indicar. Não deveria haver antes ou depois dateologia, se a considerarmos como pressuposto (e não o oposto) da écristã. Falarei mais sobre isso a seguir.

T

Qualquer denição do que é a teologia, ou de sua unção, está

ligada ao contexto e aos pressupostos de quem ala. Aqui vale repetiro óbvio ululante de que toda teologia é uma teologia contextual e,portanto, historicamente condicionada. Isso para dizer que em minha visão atual da teologia não quero apelar a ormulações universais sobreo que ela é ou em que consiste, mas tentar entender o que ela representa,signica e a quem se destina à luz dos problemas do tempo e do espaçoa que pertenço. Preocupo-me em pensar atualmente não apenas se (epor que) há necessidade da teologia na igreja, mas também se (e porque) a sociedade precisa da teologia. E, se precisa, de que tipo? (Essaúltima pergunta nos remete mais ao m dessa breve aula).

Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que, para mim, a teologia,sim, envolve uma orma de saber ou conhecimento racional, que nascedo impulso humano de entender melhor sua própria experiência de

é e con erir sentido para sua existência, o que requer uma ampliaçãode seu entendimento sobre Deus a partir do que Ele escolheu revelar

sobre si em Palavra. Como disse Karl Barth (1960, p. 19), a “ é neletambém demanda conhecimento sobre ele”. Isso signica, como jáoi dito, que a é Neleantecede a teologia, mas também que a é Nele

pressupõe teologia. Nesse sentido, minha primeira resposta ao paraque teologiadeve ser: pelo prazer ou a alegria de conhecer e prosseguirem conhecer a Deus,até para servi-lo melhor.

Isso az lembrar a célebre ormulação de Anselmo (1033-1109),em orma de oração:

Senhor, não tenho a intenção de penetrar a tua pro undidade

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porque minha inteligência não poderá de modo algum esgotá-la; desejo, porém, em certa medida, compreender algo de tua verdade, que meu coração crê e ama. Não busco compreenderpara crer [sic.], mas creio para compreender, pois estou segurode que se não cresse não compreenderia (ANSELMO, Apud.GU IÉRREZ, 2000, p. 51).

É possível pensar em mais algumas questões a partir dessapassagem. Primeiro, se creio para compreender, a teologia pressupõe,antes de tudo, é. É claro que é possível azer teologia sem crer, masnão o tipo de teologia que Anselmo tem em mente, passional antesmesmo de ser racional. Apresso-me em salientar, em segundo lugar,que a racionalidade ocupa um lugar importante para o autor, ou seja:não poderia compreender sem crer, mas o crer pressupõe a busca peloentendimento constante sobre o crido. Como expressa Barth (1960,p. 18), não é a “existência da é”, mas a “natureza da é, que desejaconhecimento”. Em terceiro lugar, sendo um dos pais da teologia noOcidente, Anselmo se mostra bastante modesto na aproximação aocrido, pois reconhece que sua inteligência jamais poderia esgotá-lo, eque seu desejo é o de compreender algo dessa verdade.

Mas não nos enganemos: a “verdade” aqui não é uma abstraçãoda mente, mas o próprio Deus, que nosso coração “crê e ama”; trata-semenos da expressão propositiva da verdade, e mais uma relação come reverência a ela. Partindo das ormulações do Evangelho de João, a verdade (do Evangelho) se expressa na natureza e ser de uma pessoa(Jesus Cristo) e não pode ser reduzida às proposições da teologia dealguém. E, antes que alguém venha me interpelar com essa conversaada sobre “cair no relativismo”, reconheço que o azer teológicoparte do anseio natural do el de apresentar declarações verdadeirassobre seu Amado Eterno – o que deveria impedir o ímpeto de “dizerqualquer coisa” ou de sugerir que “qualquer coisa vale”. Mas isso,primeiro, não garante precisão e assertividade sempre e, segundo,essa pretensa delidade e veracidade não nos outorga o direito denos autonomearmos “donos de Deus”, pelo aspecto da contingênciainerente a todo azer-saber humano. Comentando Anselmo, Barth(1960, p. 29,30) nos lembra que “cada declaração teológica é uma

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inadequada expressão de seu objeto”, e mesmo que seja possível haverexpressões teológicas verdadeiras sobre Deus (Aquele que não podeser “expresso”), toda armação teológica dessa natureza permanecesendo “especulativa”.

Portanto, Anselmo nos leva a pensar que a teologia enquantosaber racional é uma orma muito limitada de conhecimento, tendoem perspectiva que seu assunto, se seguirmos a etimologia da palavra,é Deus. Mas é possível uma “ciência de Deus”? Barth nos ajudouum pouco a resolver esse problema: a teologia estuda a Deus emsua revelação ou “na história de suas ações” (BAR H, 2003, p. 12).Assim sendo, Deus não é propriamente o “assunto”, muito menos“objeto” da teologia, mas quem graciosamente a possibilita. As açõesde Deus são eitas, mas também ditas; experimentadas, mas tambémnarradas. Logo, a orma de estudo da teologia não é, primordialmente,investigação cientíca objetiva, baseada em modelos ou provas, masum estudo sobre as narrativas do povo de Deus a respeito dos eitosdesse Deus ao longo da história, ou sobre o que Deus já- alou.

Precisamos, por isso, ter cuidado ao chamar a teologia de “ciência”,se não problematizarmos o tipo de ciência que temos em mente. Se o

uso do termo ciência, como expõe Andrew Kirk (2006, p. 24), “tem aintenção de levar a um compromisso com o rigor intelectual na buscapelo entendimento de di erentes aspectos da é, então ele é apropriado”.Por outro lado, se signica vericação e comprovação da veracidade darevelação por critérios de objetivação da realidade que ela retrata, eudiria que é um erro chamá-la de “ciência”. eologia pode ser uma espéciede ciência na medida em que se propõe a azer uma reexão crítica edisciplinada sobre a relação do ser humano com Deus, e de Deus com oser humano e o seu mundo, a m de avaliar e iluminar “a é e a práticadaqueles que armam conhecer a Deus” (KIRK, 2006, p. 25).

Pensando em termos mais concretos, areexão teológica, comoa entende Gutiérrez (1986:23), pode ser vista como “uma críticada sociedade e da Igreja enquanto convocadas e interpeladas pelapalavra de Deus; teoria crítica, à luz da Palavra aceita na é, animadapor intenção prática, portanto indissoluvelmente unida a práxis

histórica”. Daqui é possível abstrair uma segunda resposta possívelao para queteologia: a teologia não é apenas “uma unção eclesial” e

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comunitária (GU IÉRREZ, 2008, p. 29), como ressaltei no início, mastambém está a serviço da comunidade e de sua missão no mundo.

Como muito bem nos lembra Gutiérrez (2015), na entrevista jámencionada: “A reexão teológica deve estar ligada à vida cotidiana das

pessoas. Não se trata de meta ísica religiosa. Nunca li na Bíblia algumtrecho que diz ‘ide e azei eologia’, mas sim ‘ide e azei discípulos’. eologia é uma hermenêutica da esperança, dá a visão para quem está

comprometido na ação”. Quem está comprometido na ação, segundoGutiérrez? Volto a destacar: ODO o povo de Deus. Isto é, todas aspessoas engajadas em alguma orma de ação na vida (o que envolvetrabalho, amília, relacionamentos em geral) e, portanto, capaz detraduzir, melhor até que o clero ou os “teólogos da torre de marm”,a mensagem teológica em termos e atitudes que as pessoas e seuscontextos compreendam e possam ser tocadas de modo signicativopor ela. Para raseando o que de endeu David Engel (1964, p. 202), aigreja tem uma pequena chance de se tornar não mais que uma relíquiahistórica, a não ser que um maior número de seus membros possaarticular as armações do evangelho nesse tipo de ambiente – ou seja:nas universidades, no mercado de trabalho, nos guetos, nas tribos, nas

ruas, e no coração da cidade.Q

Para começar, é preciso lembrar que nenhuma das proposiçõesque são ruto dessa reexão crítica por parte do/a teólogo/a deve tera pretensão de serunívoca, isto é, de pretender ser a única voz, a mais verdadeira e legítima, representante de Deus na igreja e no mundo. Isto,

pois a linguagem teológica, como lembra Grenz (1994, p. 11), “é sempre umconstruto humano”, no sentido de que “é eita por seres humanos alíveistentando construir o sentido a partir de dois dados – a auto-revelação deDeus e a nossa experiência humana” (KIRK, 2006, p. 26 sic) . De igualmodo, para além daquilo que qualquer teologia é capaz de signicar, estáa ação do Espírito de Deus que “sopra onde quer”. E teologia que tentaapagar ou connar o Espírito não merece o nome de cristã.

Nesse sentido, só posso consentir que a teologia seja uma ciência,se os teólogos admitirem, como de modo tão eliz pontuou Barth

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(2003, p. 11), que ela é uma “ciência modesta”, ou, como eu prerodizer, amais modesta de todas as ciências. E que seja, lembrando aquide Nietzsche, também uma “gaia ciência” ou uma ciência alegre, ummodo leve e apaixonado de se alar das coisas de Deus, sem perder de

vista o chão em que nos encontramos.Rero-me à teologia como uma ciência mais modesta, porquereconhece os limites de suas cogitações, e porque o cogito (as ideias) é rutode uma relação com o que écogitado (Deus em sua Palavra); e tambémé a mais divertida ou alegre das ciências, porque o conhecimento deDeus é uma graça, um prazer, em que posso me regozijar integralmentesem deixar de lado a reverência, a responsabilidade ao interpretar,através da Bíblia, os modos de ser e de agir de Deus no mundo, e comoisso a eta diretamente o nosso modo de ser no mesmo mundo. Comoconsequência, isso deve nos conduzir a uma intimidade e entendimentomaior com (o conhecimento de) quem somos, de quem Deus é e damissão na qual somos partícipes-cooperadores.

Por essa razão, em segundo lugar, nenhuma corrente teológica,bem como nenhuma linha de pensamento tem, embora pretenda, aprimazia de interpretação sobre por onde deve se orientar o Espírito, aIgreja, e a Missão. Simplesmente porque o Espírito sopra onde quer, eprincipalmente porque interpretações são geradas e geram di erentesmaneiras de alar, e maneiras de alar são sempre provisórias. Alinguagem teológica é composta por várias línguas, vários modos deexpressar e de dar signicado às palavras, ou, melhor dizendo, por vários dialetos. Dialetos teológicos são como roupas, que a genteusa por um tempo, mas depois joga ora ou deixa guardado quandopercebe que cou velho e desgastado com o tempo.

Para tanto, é necessária uma abertura para a desconstrução eressignicação de nossos discursos teológicos, não apenas passandouma maquiagem neles, mas questionando seus pressupostos, expondosua “porosidade e transitoriedade”, como disse meu amigo, teólogoargentino, Nicolás Panotto (2012, p. 80). Uma vez que é uma linguagem,Panotto arma que toda e qualquer teologia precisa ser colocada entreparênteses, isto é, “reconhecer que não está livre de determinismos ereducionismos subjetivos, contextuais, políticos e discursivos”. odaboa teologia é aquela em que encontramos consistência, mas também

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a humildade de manter as portas abertas para uma constante revisãode sua linguagem. Igualmente, todo bom teólogo é um transgressorpor natureza, não porque transgride o pensamento alheio, mas porquedesenvolveu a coragem de transgredir os seus próprios, de não se levar

tão a sério. Para tanto, para raseando Pedro Demo, é preciso, mais queacreditar no que se pensa, questionar seu próprio pensamento.Desse modo, azer teologia no mundo atual deve passar pelo

reconhecimento de que, quando teologizamos, utilizando a analogiade Brian McLaren (2008, p. 102), “somos vasos avaliando o oleiro,crianças questionando seus pais, ormigas discutindo sobre o ele ante”.Daí vem seu lado “modesto”, seu caráter essencialmente humilde,porque conta inelutavelmente com a graça de Deus e o sopro de seuEspírito sem os quais teologia alguma é possível, tampouco e etiva, na vida de ninguém. Nesse contexto, se permitirmos que a teologia voltea sua vocação de ser, de acordo com McLaren (2008, p. 103), “umaexploração sem m e na busca eterna pela verdade, pela bondade,e pela beleza de Deus e sua relação com o nosso universo e tudo oque nele há”, então ela será “maravilhosamente ressuscitada por nós”,como tare a de todos, não para substituir o lugar das Escrituras (comoparece ser o receio de alguns, mais tradicionais), mas para nos ajudara entendê-las e aplicá-las melhor.

Sem isso, possivelmente teremos não apenas mentores rasos(superciais), mas discípulos rasos e testemunhas rasas. E não nosespantemos, portanto, ao observar ocrescimento conceitual (OrlandoCostas) da Igreja e nos depararmos com uma realidade muito similaràquela com a qual o autor de Hebreus se deparou em seu tempo:quando as pessoas da comunidade já deveriam ser mestras de si

mesmas, autodidatas na Palavra, ainda havia a necessidade de alguémque sentasse com elas para explicar as coisas básicas sobre Deus denovo, tornando-se necessitadas, assim, do alimentado destinado acrianças, e não a adultos (c . Hb 5.12). Ora essa, caso desejemos que aspessoas numa comunidade rumem à maturidade na é, e deixem de serin antes, precisamos estimulá-las a viver a é como gente crescida, queprecisa de outro tipo de alimento, e que não necessita mais, também,que ninguém venha colocar esse alimento direto na boca delas.

Contudo, essa é uma via de mão dupla, e tem a ver com nossa

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compreensão da natureza e razão de ser da Igreja. In elizmente, aindareduzimos a Igreja de Cristo, aos moldes neotestamentários, a umaorganização, um templo e uma instituição. Para muitos, essas coisasnão são meras uncionalidades, mas o centro do que a igreja é: um

espaço no qual pessoas se reúnem em busca de transcendência. Poressa razão, como lembra David Engel (1964, p. 197), “parece haver umentendimento muito pequeno de que o motivo dessa reunião é para queo povo seja enviado em uma compreensível e comunicável missão”.

Assim, ele conclui que, de orma geral, “ainda pensamos naigreja como umlugar para ir ao invés de algo que somoschamadosa ser ”. E enquanto continuarmos pensando quevamos à igreja enão internalizando nossa vocação paraser a igreja, onde quer queestejamos, também continuaremos reproduzindo a ideia de que amissão é para os missionários, e não para mim, e de que a teologia épara os teólogos, e não para mim. Meu recado aqui, porém, é muitosimples e direto: nós somos Igreja, nós fazemos teologia, e a missão étambém uma tare a nossa.

P ...

Gostaria de nalizar com duas provocações básicas sobre isso:Primeira: os pastores, teólogos e líderes das igrejas hoje

estarão dispostos a promover, em suas comunidades, uma teologiaemancipadora do povo de Deus, que contribua para a emergência detodo o seu potencial criativo e trans ormador? Abrirão mão da patenteconcentração de poder e saber que envolve o ministério pastoral,considerando cada um/a dos membros de sua comunidade comoum/a igual? erão coragem de mobilizar o povo de Deus “para ora daporta”, para a praça?

Segunda: a igreja, povo de Deus, estará realmente dispostaa aceitar não apenas os bene ícios, mas também os custos dessaemancipação, ou cará olhando para trás – como o povo de Israel noEgito – com nostalgia da comodidade da escravidão?

Da resposta a essas duas provocações, penso eu, depende a ecáciade boa parte do que tratei nessa apresentação. Do contrário, pode ser

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que isso não passe de “conversa para boi dormir”. omara que não.

R

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M IU

A M D AT

I

Depois de, em primeiro lugar, introduzir o tema damissão e, em seguida, explorar a relação entre a missão e ateologia, o oco aqui será um aporte véterotestamentário sobreesse tema, partindo da premissa de Deus como o principalagente da missão, já que ela nasce em seu coração. Volto-mepara o Antigo estamento, tentando extrair dele princípios quepossam nos orientar em nossa construção de uma eologiada Missão relevante para os dias de hoje. Mais do que buscartextos isolados que pareçam apontar para a ideia de que o A écheio de missões e missionários, estou em busca de princípiosbíblicos sólidos (o que ultrapassa a mera citação de versículos)que possam dirigir a nossa concepção sobre como cumprira missão hoje. Quais entendimentos possíveis de missãopodemos adquirir de uma leitura do Antigo estamento?

Como introdução a esse tema, e por mais estranhoque possa parecer para nós, é importante armar que nãoexiste a idéia de missionários no A , isto é, não existemmissionários, no sentido que entendemos essa palavra hoje,dentro do Antigo estamento. Veja bem, não está sendo dito

que não existe “missão” no A , mas o ato é que, em nenhummomento, vemos dentro das páginas do Apessoascruzandobarreiras culturais, geográcas, linguísticas, para a pregaçãode Boas Novas. Alguém neste momento pode estar pensando:“Mas, e Jonas?”. Mais adiante pretendo demonstrar por queeste personagem não pode, em minha interpretação é claro,se encaixar no perl acima re erido.

Uma di erença entre o A e o N reside precisamentena missão. O N é um livro que, em todos os atos e histórias

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narradas, aponta para aefetividade da missão (BOSCH, 2002,p. 35). Assim, a ideia central a ser de endida aqui é que se háum missionário no A , de acordo com o que Bosch elabora,este é o próprio Deus, pois Deus mesmo é quem conduzirá o

povo que chama para si, juntamente com as demais nações,para adorá-lo e servi-lo. E que, por isso, o A , mais que umlivro sobre missão, deve ser encarado como um documentomissionário. A intenção aqui é mostrar por que.

O

1. Compreender alguns dos princípios básicos sobre amissão no Antigo estamento;

2. Reetir sobre o papel de Deus e nossa participaçãocomo seu povo na missão;

3. Perceber as maneiras pelas quais sua igreja local

pode ser impactada por uma leitura missiológica do Antigoestamento.

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O D -MQuando pensamos em missionários no contexto do Antigo

estamento, no sentido tal qual nos deu o Novo estamento, édi ícil não se lembrar de Jonas. Mas a questão é que ele não era ummissionário, pois não saiu de sua terra para ir, na conança de queDeus o tinha chamado, para pregar a boa nova e o arrependimento emNínive. Jonas, apesar de parecer um missionário, na verdade é umaantítese, ou seja, é tudo o que um missionário não pode ser. DavidBosch (2002, p. 35) complementa esse raciocínio da seguinte maneira:

No Antigo estamento não há nenhuma indicação de que oscrentes do antigo pacto oram enviados por Deus para cruzarem

barreiras geográcas, religiosas e culturais com o m de ganharoutros para a é em Yahweh [...] Nem sequer o livro de Jonastem relação alguma com a missão no sentido normal dapalavra [Nota do pro essor: ou seja, como “missões”]. O pro etaé enviado a Nínive, mas não, para pregar uma mensagem desalvação aos não-crentes, e sim para anunciar a sua ruína.

ampouco lhe interessa a salvação da cidade; na verdade, quer vê-la destroçada.

Jonas oi chamado para pregar à cidade de Nínive, só que nãoatendeu ao chamado por amor ao povo, mas por obrigação; nutriapoucos sentimentos positivos por aquele povo, por acreditar que elenão merecia a misericórdia divina; mais ainda, cou extremamenteirritado quando Deus se compadeceu e poupou a cidade da destruição.Como eu já discuti em outro lugar (ver MENEZES, 2013), Jonasconhecia muito bem o caráter de Deus no que diz respeito ao perdão:

“És Deus misericordioso e compassivo, muito paciente, cheio deamor e que prometes castigar, mas depois te arrependes” (Jn 4.2). Amais direta implicação desse reconhecimento é ser recrutado para o“programa de perdão” de Deus, que era o que Jonas deveria ter eito.Mas (1º) ele ugiu, e (2º) ele murmurou perante o resultado de terpregado para Nínive: “Eu sabia Deus que você é pronto, como na quedade um chapéu, atransformar seus planos de punição em um programade perdão” (na tradução “A mensagem”, de Eugene Peterson). Gostariade citar uma longa passagem de meu livro em que trago um pouco

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dessa discussão, para ajudar a esclarecer um pouco mais o dilema deJonas – que de muitas maneiras por der também o nosso ainda hoje –e por que ele não era um missionário genuíno.

Nínive – que já não mais existia quando essa história oi escrita

– era símbolo da cidade má e opressora; lugar dos degredados,dos maliciosos, dos “sem-Deus”. Os ninivitas eram, aosolhos de Jonas, indignos do perdão divino, merecedores dacondenação e morte. Nosso sentimento em relação ao outroque nos o ende (nossos ninivitas), pode demonstrar o quedesejamos de Deus: que castigue, condene, aça justiça (anossa geralmente). Nessa história, a justiça divina identicao pecado (1.2), mas não condena Nínive. O Deus que perdoa

condena o pecado, desejando libertar o pecador. Nossa posturaé inversa, pois não conseguimos separar; logo,a pessoa é igualao seu pecado. A tendência humana é reconhecer o outro peloque ele az. Dessarte, o que ele az, é o que ele é. Aí entra ocon ronto com o olhar divino. Enquanto Jonas vê pecadoresindignos e imperdoáveis, Deus vê 120 mil pessoas que nãosabem distinguir o certo do errado (4.11). Então, o que aspessoas azem pode ser apenas um lado do que elas são. Quem

sabe o lado que seu eu erido, acuado, amedrontado, cego,in eliz, abusado, permite mostrar. Posso então me despertarpara o ato de que o outro também é amado e perdoado porDeus. Que sou pecador e indigno tanto quanto ele/a; que, se a justiça implacável tivesse de ser implantada, não seria somenteao outro, mas a mim, anal,não há justo que não peque. Que,como eu, o outro também en renta a di ícil tare a de perdoar;todos têm diculdades, alguns menos, outros mais. E que o

mesmo Deus az tanto ao o endido como ao o ensor: perdoar enos convidar a azer o mesmo, anal amor, justiça e perdão emDeus não estão separados (MENEZES, 2013, p. 122-123).

Avançando nesta discussão, apesar dessa certa ausência demissões no A é importante azer outra armação categórica: o A noso erece, sim, bases sólidas para o desenvolvimento de uma eologia daMissão, até porque as missões são apenas uma parte, e não o todo daobra missionária a que a Igreja é convocada, como vimos na primeiraunidade. Nesse momento, creio que dois pontos merecem atenção

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especial: em primeiro lugar,Deus é apresentado no AT como o criador e senhorde todo o Universo, de toda a História, de todas as nações, e não só deIsrael. imóteo Carriker (1992, p. 62) arma que:

Através de toda a revelação veterotestamentária, se torna

patente que o principal ator do drama é Deus (...) É Deus quemcria, quem julga, quem age, quem escolhe, e quem se revela.Ele é ativo não só na criação, mas também nos julgamentos,na libertação do seu povo do Egito, nas exortações dos seuspro etas e na promessa de restauração vindoura. Ele é o único e verdadeiro Deus e deseja que sua glória seja conhecida nos céus(Salmo 19) e nas extremidades da terra (Isaías 11.9). Portanto,antes de ter uma conotação humana que ala da tare a da igreja,

“missão” é uma categoria que pertence a Deus. A missão, antesde ser da igreja, é missio Dei. Aquilo que Deus criou, ele pretenderestaurar. Contudo, a restauração é salvação não só no sentidode poupar, mas também no sentido de julgar. A mensagemde restauração no Velho estamento, consistentemente, incluiestas duas dimensões de salvação e de julgamento.

A missão se dá, então, na ação do Criador em busca da restauraçãode sua Criação decaída. Por isso é Missio Dei.A igreja, apesar de serum instrumento útil nas mãos de Deus, é um instrumento passívelde alhas. E quando a igreja alha em ser sinal-instrumento de Deusna tare a de implantação de Seu reino no mundo, o que implica emreconciliação de toda a criação com seu Criador, Deus continua a

rente dessa missão. Isso signica que ela não para, Deus não dormee nem desiste de seu plano por uma insubordinação ou negligênciade seu instrumento; Ele arranja outros meios não necessariamente

convencionais a nossos olhos para dar cabo de sua missão.Por isso, é importantíssimo que você dê atenção a essa ideia:uma das maiores lições do A é que o nosso Deus, Ele sim, é ummissionário. Desde o Éden vemos sua intenção de buscar o ser humanoperdido quando o vemos chamando por Adão e Eva: “Onde estás?”.Essa passagem é uma boa representação da uga de Deus pela criatura,por um lado, e a busca incessante do Criador por relacionamento,por outro. E também um bom exemplo de que podemos ver o Deusde amor, revelado na pessoa de Jesus Cristo, já nos relatos do A , em

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busca de seus e suas amadas, ainda que estas estejam longe, por iniciativaprópria de seu pecado, que implica em a astamento de Deus, ainda queeste continue por perto, no silêncio, so rendo pelo pecado de sua criação.

Desde o princípio, Deus se revela como oDeus da pro-Missão

( azendo um trocadilho com a palavra “promissão”, no sentido depromessa, escatológico, e missionário). A revelação, nesse sentido, éum evento no qual “Deus se compromete no presente a envolver-secom seu povo no uturo. Ele se revela como o Deus de Abraão, Isaquee Jacó, em outras palavras: como o Deus que tem agido na históriapassada e, precisamente por essa razão, também será o Deus do uturo”(BOSCH, 2002, p. 36).

Portanto, somos convidados por Deus para participar dessamissão, o que signica que, ainda que Elenão dependa de nossaboa vontade para realizar seus desígnios aqui na terra, ele desejaque participemos, por meio de sua orça e vontade, do seu projetorevolucionário de reconciliação do mundo consigo mesmo. Nãopodemos con undir a independência de Deus em relação a nós enossos atos alhos de desobediência e uga com uma alsa ideia de quenão temos um papel importante a realizar. Não só temos, como igreja,um papel importante, como temos um lugar especial na economia doreino. A questão é sabermos medir com sensatez e discernimento oalcance e a relevância desse lugar, sem nos julgarmos demasiadamenteprivilegiados ou até imprescindíveis.

Podemos cooperar com o querer de Deus à medida quenão só paramos para ouvi-lo e entender esse querer, como em quereconhecemos nosso lugar nesse processo. Dessa orma, a perguntadeixa de ser: “O que devo azer?”, e passa ser: “Como posso me inserir

na missão que Deus já está realizando no mundo?”. A atividade dediscernimento é mais importante que o ativismo, nesse sentido.1

O -MDessa orma, em segundo lugar, para a que este senhorio divino

se mani este plenamente, Deus escolhe um povo para celebrar umaparceria consigo: o povo de Israel. Uma das más compreensões que

1 Mais sobre essa questão será desenvolvido nas unidades 9 e 10 deste curso, sobre a espiritualidadeda missão.

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Israel teve desta escolha oi a de que ela pudesse signicar umfavoritismoexclusivistade Deus, ou seja, que tal escolha implicava em uma exclusãodos outros. Johannes Blauwn (1966, p. 23) arma que:

Israel não é tanto objeto da eleição divina quanto sujeito do

serviço exigido por Deus com base na eleição. alvez a coisapudesse ser posta nestes termos: não há serviço medianteeleição, antes eleição por causa do serviço. Portanto, eleição nãoé primariamente privilégio, mas responsabilidade.

Há obviamente inúmeras passagens bíblicas que denotam umaeleição especial de Israel con erida por Deus, um lugar especial e umpapel especial desta nação no meio de outras nações. Desde o chamadode Abraão (Gn 12) vê-se que o Senhor está interessado em azer de umasó pessoa um grande povo, que receberia o bene ício de pertencer eservir a Deus, o que implica em não tentar monopolizar esse bene ício,pois ao abençoar Abraão e, por conseguinte, Israel, o desejo divino eraque todos os povos da terra ossem abençoados. Como bem colocaChris Wright (2006, p. 254), “grande era o privilégio. Maior ainda eraa sua responsabilidade”.

Isso me lembra do primeiro lme da trilogia deO Homem-Aranha

(em que o ator obey Maguire interpretava o herói), você assistiu?Na cena em que Peter Parker conversa com seu io Ben no carro,este lhe diz: “Grandes poderes trazem grandes responsabilidades”.Utilizando-a como analogia da questão aqui, a benção e o chamadoestendido a Israel é o grande poder con erido por Deus a esta naçãoque carregava em si uma grande responsabilidade perante as demaisnações. Não se trata, portanto, de privilégio puro em simples. Muitomenos um privilégio con erido como recompensa por qualquer coisa.

Wright, a partir do aporte encontrado em uma série de textos noAntigo estamento, az as seguintes armações sobre a eleição:

1. A eleição de Israel se estabelece no contexto da universalidade deDeus. Longe de ser um tipo de re orço de uma doutrina exclusivista,ela representa o oposto: O Deus que escolhe Israel, o escolhe naperspectiva da providência sobre todo o mundo, que está debaixo deseu governo.

2. A eleição de Israel não implica na rejeição das demais nações.

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Observe que a escolha, portanto, está condicionada a umaquestão uncional: para anunciar a grandeza e misericórdia do únicoDeus, sendo povo santo no meio das nações. Se santo (separado), dessa

orma, nada tem a ver com uga ou a astamento dos outros (pagãos,

pecadores), mas em viver essa santidade no meio deles, de modo queDeus seja anunciado e gloricado.6. A eleição de Israel é parte da lógica do comprometimento de

Deus com a história. A decisão de Deus em escolher uma nação nahistória denota o seu compromisso e preocupação com essa mesmahistória. Ele não apenas entra na história, azendo parte dela comseu povo, como também so re as dores da humanidade na história eluta por ela à medida que luta por seu povo. O Deus da pro-Missão é,assim, o Senhor da história.

7. A eleição de Israel é fundamentalmente missional, e não apenassoteriológica.Perde o toque da intenção bíblica original quanto àeleição quem a olha apenas sob o aspecto de que ela determina que ésalvo e quem não é. Biblicamente, eleição é para salvação, mas tambémo é, antes de mais nada, eleição para a missão, como esclarece o textode Pedro acima citado (C . WRIGH , 2006, p. 263-264).

De uma maneira in antil, as nossas igrejas podem estar caindono equívoco de encarar a nossaeleição como um privilégio quedevemos des rutar, sem levar em consideração o lado do desao eresponsabilidade que isso implica. imóteo Carriker (1992, p. 167)arma que:

A eleição recupera seu sentido quando é compreendida emreferência ao futuro, à sua nalidade, à redenção dos povos.

A distorção se manifesta quando é compreendida somente ou principalmente em referência ao passado, em termos de privilégioe honra, em vez de responsabilidade e peso.

Essa armação de Carriker pode nos levar a pensar que, sempreque entendemos a nossa eleição em termos de passado, como coisaque já aconteceu, acabamos nos sentindo no direito de apenasdes rutarmos dessa coisa que já aconteceu. Aí então, nos colocamosdiante de Deus reivindicando nossos direitos, exigindo que Ele cuidede nós, anal de contas, oi Ele quem nos elegeu! Mas a eleição deve

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que Israel teve desta escolha oi a de que ela pudesse signicar umavoritismo exclusivista de Deus, ou seja, que tal escolha implicava em

uma exclusão dos outros povos. Longe disso, se há um privilégio em jogo é o de ser colaborador com Deus em sua missão, de um modo

semelhante ao que Paulo se re ere quando diz que somos “cooperadoresdo Evangelho”. Missão é, assim, Missio Dei.

R

BLAUW, J.A Natureza Missionária da Igreja. São Paulo, AS E, 1966.BOSCH, David.Missão transformadora. Mudanças de paradigma nateologia da missão. São Leopoldo: ES ; Sinodal, 2002.CARRIKER, imóteo.Missão integral: uma teologia bíblica. São Paulo:Sepal, 1992.MENEZES, Jonathan.Humanos, graças a Deus!Em busca de umaespiritualidade encarnada. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013.WRIGH , Christopher J. H. e Mission of God. Nottingham, England:IVP, 2006.

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A__________________________________________

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M IU

A M D NT

I

Essa é a segunda unidade consecutiva em quetratamos de bases bíblico-teológicas, ocando agora oNovo estamento em sua abordagem à Missio Dei. Quaisentendimentos possíveis de missão podemos obter de uma

leitura do Novo estamento? Para responder essa pergunta,utilizar-se-á das categorias mencionadas por imóteoCarriker (1992), ampliando-o para o Novo estamento;retomar-se-á a discussão da unidade passada a respeito damissão como sendo obra de Deus (missio Dei); e, por m,tentar-se-á ampliar essa discussão a partir da contribuiçãode Paul illich sobre o reino de Deus em sua “ eologiaSistemática”. Aproveito para dar crédito e agradecerparticularmente ao meu ex-colega César Marques Lopespela colaboração em boa parte do conteúdo das unidades1, 3 e 4 do curso.

O

1. Compreender alguns dos princípios básicos sobre amissão no Novo estamento;2. Perceber como o evento-Cristo trans orma as

perspectivas e ação da igreja em relação ao mundo e à suapresença na história;

3. Discernir a importância do discernimento da voze da ação livre do Espírito no mundo para uma missãorelevante.

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A M : D

No Novo estamento, Deus continua sendo o ator principal,re orçando esta ideia na encarnação de Jesus Cristo – a missão continuasendomissio Dei.

Com relação à missão da Igreja, Cristo é:1. Sua nova origem: é a partir dele que ela deve ser desempenhada

pelos seus discípulos.2. Seu novo m: toda obra missionária deve apontar para Cristo

(e nunca para a igrejas, ou para as pessoas que a dirigem).3. Seu novo modelo: toda prática missionária deve ser concebida

a partir da prática do Cristo vivo.4. Sua nova mensagem central: o conteúdo da ação/pregaçãomissionária é a vida, morte e ressurreição do Cristo. Aexperiência do/com o Cristo vivo é o motor da missão dosapóstolos – sem ela, nem existe missão.

David Bosch arma que no Novo estamento, a exaltação deCristo é o sinal de uma vitória já obtida de antemão sobre o maligno.

Nesse ínterim, missão signica, portanto:A proclamação e mani estação do reinado oniabrangente deJesus, que ainda não é reconhecido e acatado por todos, mas jáé, não obstante, uma realidade. Assim, a missão da igreja não vai inaugurar o reinado de Deus, porém o possível racassodessa missão também não o vai rustrar. O reinado de Deusnão é um programa, e sim uma realidade, introduzida peloacontecimento pascal (BOSCH, 2002, p. 63).

O :

O ministério terreno de Jesus evidencia que a missão é de atorestauradora – todas as suas ações propunham restauração.

Jesus restaura pelo menos quatro tipos de relacionamento dosseres humanos:

• Com Deus: através de Jesus, temos “paz com Deus, por meio

de quem obtivemos acesso pela é a esta graça na qual agora

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estamos frmes; e nos gloriamos na esperança da glória deDeus” (Rm 5.1-2).

• Com outros seres humanos: Jesus é o caminho para a koinonia, paraa comunhão. Essa palavra não deve ser aplicada apenas ao “interior”

da igreja – pelo contrário, a koinonia ou comunhão é uma dasdimensões da ação missionária do povo de Deus, de reconciliaçãode todas as coisas em Cristo.

• Consigo mesmos: existe uma própria dimensão existencial na obrarestauradora de Jesus. O ser humano só tem a sua dignidade humanarestaurada quando atingido pela graça de Deus em Cristo.

• Com a Criação: essa é a dimensão cósmica da restauração. Arestauração dos seres humanos nunca pode deixar de abarcar arestauração de sua integridade ísica ao lado de sua integridadeespiritual – é a ideia de “missão integral”, que será mais bem discutidaadiante. Como observa René Padilla (2005), “a missão cristã deve seorientar para a restauração de toda a pessoa e de todas as pessoas”.

O :

A missão deve alcançar toda a raça humana (“toda tribo, língua,

povo e nação”, c . Ap 5.9). E de acordo com Romanos,toda a Criaçãotambém aguarda ansiosamente na esperança de que “será libertada daescravidão da decadência em que se encontra, recebendo a gloriosaliberdade dos lhos de Deus”. De tal modo que não só ela “geme”, comotambém nós, os lhos, gememos interiormente, aguardando a nossaredenção e adoção nal como lhos e lhas de Deus (c . Rm 8.18-23).

Nas palavras de René Padilla (2005): “Segundo o N , todo omundo oi colocado sob o senhorio de Jesus Cristo (...) os propósitosde Deus para a Igreja, portanto, não podem ser separados dos seuspropósitos para o mundo”. A restauração da Criação deve tanto serconsequência da restauração humana quanto também umaáreade ação do povo de Deus em missão. Ou seja, a igreja precisa agirconscientemente pela preservação da Criação, sendo ela tambémparte integrante não somente das benesses como também do ônus deser criação, e so rer com toda a degradação pela qual ela vem passando

ao longo dos séculos em unção da exploração do ser humano.Missão implica em encarnação, e essa nos convida a um

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compromisso não somente com as pessoas, mas também com oambiente pelo qual somos envolvidos e devemos cuidar, preservar epelo bem do qual precisamos lutar.

O : No N , Deus celebra em Cristo uma Nova Aliança com pessoas

de todas as raças, tribos, povos e nações. A esta relação podemoschamareleição. Vamos relembrar que eleição não é:

• Separação social, espiritual ou privilégio;• Escapismo, uga do mundo;• Convite ao comodismo ou passividade (já que somos “eleitos”

mesmo).A igreja não é, não custa insistir, a “proprietária” da missão. Maspodemos alar do termo “missão da igreja” se a concebemos comoinstrumento dessa missão.

O :

Um dos debates mais interessantes da teologia é o da relação

entre Igreja, Reino de Deus, mundo e história – teremos uma unidadeespecíca para conversarmos somente sobre isso (unidade 7). O quenos interessa nesse primeiro momento é que o “local” da missão deDeus e da igreja, ou seja, onde essa missão acontece e se realiza, éesse mundo e essa história. Pode parecer uma armação banal, masdurante todos esses mais de dois mil anos de história do cristianismo,sempre houve tentativas de “escapar” desse mundo ou de considerá-locomo sendo “indigno da igreja”.

Jesus, no entanto, orou assim ao Pai em João (com relação aosseus discípulos e, por extensão, à sua igreja): “não rogo que os tire domundo... assim como tu os enviaste ao mundo, eu os enviei ao mundo”(Jo 17.15, 18). Em seguida ele diz que nós, os discípulos, não somosdo mundo, como ele também não é. Anal, como pensar nessa tensãoentre não ser, mas permanecer no mundo? Nós somos ou não somosdo mundo? Se eu não sou do mundo sou de onde, de marte? Não ser“do mundo”, aqui, signica não viver con orme os “termos do mundo”,e não viver separado dele.

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Vamos elaborar um pouco mais essa ideia com a ajuda de umdos melhores teólogos do século XX, que traz uma contribuição

undamental para esse tópico: Paul illich. Segundo sua articulaçãode pensamentos, o Reino de Deus é o sentido da história; não é apenasum estágio; não é uma

u-topia (ou seja, um não-lugar, ou um lugar

que não existe); é uma realidade, uma direção nal; é para o Reino deDeus que toda a História aponta. Mas para que serve a utopia? Nãopara negar a realidade, mas para iluminá-la; não para nos distanciardo chão, mas para nos azer andar melhor nele.

O evento-Cristo, narrado no N , marca o centro desta história.No mundo e na história existem orças que tentam evitar que estaatinja o seu cumprimento. A presença de Cristo e da igreja no mundo

se dá em meio a muitas ambiguidades e atores limitantes. Mas isso jáestava dentro das expectativas do próprio Jesus, quando disse a seusdiscípulos que não era de admirar se o mundo os odiasse, porque oodiou primeiro, e que no mundo teríamos aições. Ao mesmo tempo,ele declarou de antemão sua vitória sobre o mundo e as orças de morteque o regem: “Eu venci o mundo”!

Assim, como arma illich, o aparecimento intra-históricode Jesus no meio das ambiguidades da vida é uma amostra de que a

dimensão de um Reino transcendente (além da história) não exclui adimensão de um Reino imanente. O símbolo do Reino de Deus, naspalavras de illich (1987, p. 660), “tem o poder de expressar tantoo aspecto imanente quanto transcendente, embora um aspecto sejanormalmente predominante”.

Desse modo, a vitória de Jesus é a vitória de um reino quetriun a na história, em meios a suas dinâmicas, contradições, saborese dissabores, e não distante dela. Como muito bem arremata illich:

Não ocorre uma vitória do Reino de Deus na história quandoo indivíduo tenta escapar da participação na história em nomedo Reino de Deus transcendente. Isso é não apenas impossível,mas a própria tentativa de azê-lo priva o indivíduo de suaplena humanidade ao separá-lo do grupo histórico e de suaauto-realização criativa. Não podemos alcançar o reino deDeus transcendente sem participar da luta do reino de Deusintra-histórico. Pois o transcendente é atual dentro do intra-histórico. odo indivíduo é lançado no destino trágico da

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existência histórica. Ele não pode evitá-lo, seja que morra comocriança ou como grande líder histórico. O destino de ninguémé imune às inuências das condições históricas. Mas quantomais o destino de alguém é diretamente determinado por suaparticipação ativa, tanto mais sacri ício histórico é exigido.Onde este sacri ício é maduramente aceito, ocorreu uma vitóriado Reino de Deus ( ILLICH, 1987, p. 684).

Estamos realmente dispostos e aptos a assumir, dentro de nossoscontextos históricos especícos, com desaos e riscos próprios, essesacri ício com maturidade e coragem?

A : D O Espírito Santo é o responsável peladinâmica da realização da

missão – ou seja, mais uma vez a missão continua sendomissio Dei. O Espírito Santo oi a orça motriz do ministério de Jesus: é a orça doEspírito Santo que molda Jesus, o pro eta, e proporciona orça e direçãopara o seu ministério de libertação (c . Lc 4.18). Consequentemente, oEspírito Santo oi o requisito básico para a missão apostólica descritano livro de Atos. ambém é o ele quem ornece o conteúdo para a ação

missionária (c . Jo 14.26).É o Espírito Santo quem concede os dons necessários paratoda e qualquer ação missionária à nenhuma ação verdadeiramentemissionária é possível sem a capacitação especial do Espírito Santo.Essa é uma percepção undamental para nós da F SA, já que umdos quatro conceitos undamentais da nossa losoa de ensino é“ministérios no poder do Espírito Santo”.

Como uma conclusão, podemos dizer que é na dinâmicaEspírito de Deus, capacitando e movendo o povo de Deus, é que se dáo cumprimento damissio Dei.

V D

Desse modo, a igreja, aprendiz e instrumento na missão, precisade ouvidos para ouvir e sensibilidade espiritual para perceber adançado Espírito. Se ela está distante, ensimesmada, alçando um voo próprio e

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procurando cumprir a “sua missão” particular, desconectada da vontadedivina, não poderá perceber ou discernir as dinâmicas dessa dança.

O próprio Jesus é que endereça a natureza livre do Espírito: “O vento sopra onde quer, ouves a sua voz, mas não sabes donde vem;assim é todo o que é nascido do Espírito” (Jo 3.8).

O sopro do Espírito é um sopro constante, mas nunca visível aolhos nus. Para se saber onde e como ele está soprando é preciso ter acapacidade de enxergar além. Além das aparências, das estruturas, dasinibições de ânimo, das mani estações exóticas, de meras palavras. OEspírito pode estar em tudo isso, mas também pode permanecer “ ora”.Ele não se limita ou se reduz às paredes do escravismo institucionalhumano, seja ele secular ou religioso. O Espírito é livre e age em

liberdade: “onde está o Espírito do Senhor, ali há liberdade”.Mas, convém perguntar, onde está o Espírito? Ele não se encontraexclusivamente aqui ou ali. Não se az monopólio de uma instituição,pessoa ou evento. A eventualidade humana apenas inibe a verdadeiraação do Espírito, ao pretender dizer: “Aqui está ele”; “Neste encontroele se mani estará com poder”.

Denitivamente, Paulo estava certo ao armar que o homemnatural não aceita nem compreende as coisas do Espírito de Deus,

porque lhe são loucura, porque elas se discernem espiritualmente (1Co2.14). Estamos alando do Espírito de Deus. Se Deus é o Onipresente,con orme diz o salmista, como se pode querer enjaular o Espírito? Se amissão é mesmomissio Dei,como podemos nos deslocar dentro delasenão a partir daquilo que diz, orienta e inspira o próprio Deus?

Sua natureza é livre como é a de um animal selvagem, que ao serpreso ou connado, perde todo seu vigor, vitalidade e espontaneidadeanteriores. O Espírito Santo age movido pelo sopro, pela palavra, pelotoque de Deus. Ele está presente onde Deus se encontra azendo suaspequenas e maravilhosas revoluções, nos lugares, das ormas e com aspessoas menos esperadas. Não tem como antecipar sua presença ou ação.

O poder de consolo do Consolador não repousa nem cresce naprepotência, nas palavras decoradas, nem na manipulação pensada;esse poder só é ecundo na raqueza, em palavras e em seres imersosnas imper eições de sua humanidade. Ele é o brilho do tesouro quehabita em vasos de barro.

A dança do Espírito não aprisiona, mas promove as sábias

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loucuras revolucionárias e libertadoras de Deus. odos os que tentamaprisionar Deus, conná-lo ou ormatar sua natureza em uma caixa,

alam de um conceito, privando os outros e a si mesmo nele. Contudo,graças a Deus, a verdade não germina ali.

À luz desta reexão, eu diria que, embora não seja algo simples,penso que deve ser uma tare a constante essa de repensar nossa ormade entender Deus e se relacionar com Ele, para que possamos entendermelhor sua missão e o nosso papel nela. Di erentes expectativas,imagens e projeções estão em jogo quando alamos, oramos,balbuciamos, escrevemos... “Deus”. Quem é? Como se revela e comose relaciona com a gente?

Geralmente, esse montante de expectativas insurge, como

consequência, acompanhado de uma série promessas, visões eperspectivas de quem Deus é. Dependendo das circunstâncias e variáveis existenciais, ele é cotado como X, como Y ou como Z; aindaque X, Y e Z não entrem em contradição entre si, é impressionantecomo assumem cores absolutas e tons denitivos assim que surgem.Isso signica que, consciente ou inconscientemente, ávidos pordenições que somos, queremos pôr Deus dentro de caixas, quecomportem exatamente o tamanho de nossas ingênuas, e às vezes tão

equidistantes, biblicamente alando, projeções sobre Deus e sua açãono mundo e na igreja, como se Ele coubesse mesmo nelas.Conceitos são sempre visões limitantes e parciais sobre algo.

São “igualações do não-igual”, para raseando Friedrich Nietzsche; ouseja, o que se quer dizer é que todo conceito nasce da identicaçãodo não idêntico, posto que jamais nos encontramos com a essênciado queé-em-si-mesmo. Deus não é conceito, nem cabe num conceito.Ele transgride todas as normas e desvia dos julgamentos. Sou levadoa pensar em Deus como innito transgressor, porque ele não se“encaixa”; e digo isso não pela pretensão de “encaixá-lo” de modo maissutil, mas precisamente pela impossibilidade de azê-lo, interditadopela própria linguagem – nita, parcial, cambiante.

O Deus da missão é um Deus transgressor! E a maior de todas assuas transgressões parece mesmo ter sido o ato de ter escolhido vivercomo humano, amar e morrer para que seres humanos, como você eeu, pudessem ter vida e sentido existencial. Deus transgrediu sobresi mesmo por causa de nossas muitas e incontáveis “transgressões”.

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Quer transgressão maior que essa? Quando em missão proclamamose compartilhamos a vida de Cristo, não se trata de um Deus qualquer.

rata-se daquele que transgrediu a si mesmo para nos dar vida e vidaem abundância!

C

Nessa unidade, vimos que no Novo estamento Deus continuasendo o ator principal, re orçando esta ideia na encarnação de JesusCristo – a missão continua sendomissio Dei. Com relação à missãoda Igreja, Cristo é: a) Sua nova origem: é a partir dele que ela deveser desempenhada pelos seus discípulos; b) Seu novo m: toda obramissionária deve apontar para Cristo (e nunca para a igrejas, ou para aspessoas que a dirigem); c) Seu novo modelo: toda prática missionáriadeve ser concebida a partir da prática do Cristo vivo; d) Sua novamensagem central: o conteúdo da ação/pregação missionária é a vida,morte e ressurreição do Cristo; e) A experiência do/com o Cristo vivo é omotor da missão dos apóstolos – sem ela, nem existe missão. Observou-

se, por m, que umas das veias damissio Dei no Novo estamento, quedevemos relembrar e reaprender sempre, é: o vento sopra onde quer,onde Deus quiser. Quem tem ouvidos para ouvir, ouça!

R

BOSCH, David.Missão transformadora. Mudanças de paradigma nateologia da missão. São Leopoldo: ES ; Sinodal, 2002.CARRIKER, imóteo.Missão integral: uma teologia bíblica. São Paulo:Sepal, 1992.PADILLA. René.Missão integral. Ensaios sobre o reino e a Igreja. Londrina:Descoberta, 2005.

ILLICH, Paul.Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo:

Sinodal, 1987

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A__________________________________________

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M IU

P H ( ): L CLADE I-IV

I

Essa é uma unidade mais extensa que o habitual,porque é muita história para contar em tão pouco espaço.E os historiadores têm o péssimo hábito de quase semprerecorrer às origens para tentar explicar alguma coisa.Seguindo os instintos desse a ã, azem genealogias e“escavações” nas ontes para tentar remontar certo começo.Se esse osse meu caso, aria uma digressão que começasse,quem sabe com a igreja primitiva. E, sem dúvida, temosmuito a aprender com os primeiros cristãos acerca denossa missão hoje, como mostra, por exemplo, o estudode Michael Green (1989). Mas nem todos os começosrealmente explicam alguma coisa sobre o presente, e nemtodas as digressões históricas longas, remontando séculosou épocas passadas, nos ajudam a descobrir um começo.Aqui estamos nós, logo de cara, diante de um dilema:quando começa a história da missão integral?E a respostaé muito simples: primeiro, ela não começa, mas é desdesempre, à medida que, como até aqui temos visto, nossoDeus é um Deus missionário e Senhor da história, cujospropósitos são eternos; segundo, devemos partir, portanto,da ideia de que antes de existir a história, a teologia ou omovimento de missão integral, existe a integralidade damissão, que é inerente ao próprio Deus e à sua palavra.Sem isso, não existiria nem aria sentido alar em “missãointegral”. À luz disso é que trataremos dela aqui.

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O

1. Conhecer parte da história do chamado movimentode missão integral;

2. Analisar criticamente as tensões históricas e lacunasteológicas do movimento;

3. Identicar a contribuição que os congressos latino-americanos de evangelização (CLADE) trouxeram para ahistória da missão integral.

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S O Evangelho é identicado como boas novas de Deus para

a “casa da humanidade”.De Deus porque ele procede Dele (Mc1.14), assim como quem oi a expressão máxima e vericável dessamensagem, Jesus, também procedeu do Pai, sendo ele “um” com oPai. O evangelho nasceu do coração de Deus como expressão de umaterna e incessante busca do Senhor por uma aproximação com o serhumano, distanciado dele em unção do pecado.

O cunho “integral” é uma redundância – porque o evangelhonão precisa desse nem de nenhum complemento, ele já é um todo.Certo, uma redundância, mas uma redundância que se ez necessária

(e é preciso perguntar, mesmo numa disciplina que trata do assunto,até que ponto ainda se az). Fez-se necessária porque nos deparamosnos últimos 60 anos ou mais com um evangelho esquartejado,

ragmentado, isto é, com algumas partes sendo mais ou menosen atizadas que outras. Se o evangelho corresponde às boas novasde Deus, a evangelização é o anúncio de um reino cujas premissassão precisamente essas boas novas. Logo, um evangelho concebidoparcialmente gera uma evangelização parcial e, por conseguinte, umamissão também parcial.

Isso começou a gerar incômodo em algumas pessoas –especialmente em países do pejorativamente chamado “terceiromundo” – cujo compromisso com o reino ia muito mais além deuma vidaaburguesada entre quatro paredes: “triângulo da elicidade”(igreja-casa-trabalho, para raseando Robinson Cavalcanti), rígidasleis, práticas de piedade, bem-estar pessoal e prosperidade em todos

os sentidos. Isso gera inquietude num povo marcado pela experiênciade Jesus Cristo, que, “para santicar seu povo, pelo seu próprio sangue,so reu fora da porta”, de modo que nossa resposta não poderia seroutra senão a de também sair, pois, a ele, fora do arraial , levando nosso vitupério (Hb 13.12-13).

O teólogo costarriquenho Orlando E. Costas, um dosexpoentes desse movimento de “retorno” à vivência evangelho emsua integralidade na América Latina, az uma interessante críticasobre certa visão pragmática de evangelização e sobre o crescimento

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numérico da igreja evangélica, vigentes já na década de 80:Quando lemos in ormes sobre o enomenal crescimentonumérico de algumas igrejas como resultado de seus es orçosevangelizadores, e logo vemos como essas mesmas igrejas

sacralizam o status quo, negando-se a mostrar um estilo de vidaqualitativamente distinto e gerando obstáculos à trans ormaçãodas instituições sociais, econômicas, culturais e políticas de suasociedade, temos todo o direito de questionar a validade da açãoevangelística dessas igrejas e sua delidade a mensagem da cruz.Dito de outra orma, a prática social de uma comunidade eclesialrevela a qualidade de sua conssão (COS AS, 1986, p. 82).

Esse tipo de crítica nasce do discernimento de que a vivência da énão pode estar separada de uma responsabilidade mais ampla com o todocriado por Deus, e de que missão, antes de tudo, é a ação de Deus pormeio do Espírito Santo (o seuagente) visando resgatar a humanidade dassituações de morte e pecado em que se encontra. O Espíritohabita onde háliberdade, além de gerar eagir em liberdade. A igreja que compreende queação do Espírito não está circunscrita a seu arraial e nem é seu monopólio,é aquela apta a ser agente com Deus dessa missão de trans ormação da

realidade do ser humano como um todo.O Espírito é irreverente e, portanto, promove as revoluções deDeus no meio da humanidade das ormas mais inusitadas. Em unçãodessa consciência teológica mais atrelada à vida, ao humano, e de umareexão-ação missionária integral, passa-se a demonstrar que Deusnão é um ponto xo e distante da história (“ele não vive longe lá nocéu sem se importar comigo”, como diz a canção “Nas estrelas”), maspossui uma história escrita por meio da encarnação de seu lho Jesus,

que entrou em nosso mundo para viver em solidariedade com a dor ea angústia humanas. Ele se identica plenamente com a humanidade.Em especial, com as gentes crucicadas, injustiçadas e exploradas pelaimpiedade de outros humanos.

Ele az “opções naturais”. E, ao azer algumas opções, ele estabelecegrupos de pessoas, os “bem-aventurados”, que têm “prioridade” noreino: os humildes de espírito, os que choram, os mansos, os que têm

ome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de coração, ospacicadores, os perseguidos por causa da justiça (Mt 5.1-12). Ele usa

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essas pessoas como modelo não porque são melhores que as demais,mas porque, dada a sua impossibilidade de alcançar êxito por suaspróprias mãos (isto é, não têm “mérito” algum no que realizam),dependem exclusivamente da graça e avor divinos para viver; não têm

nada mais além de Deus, assim podem pôr sua é inteiramente Nele.ranspondo essa mensagem para a nossa realidade latino-americana,Orlando Costas ala sobre esses “privilegiados” do evangelho hoje:

São os povos autóctones e as minorias étnicas, os desempregadose os mal-pagos, os exilados, re ugiados e imigrantes ilegais, oscampesinos explorados e a subclasse social permanente quehabita em guetos urbanos, subúrbios, avelas e lugares de miséria.São também as prostitutas, os presos, os alcoólatras e viciados emdrogas; os idosos solitários e os jovens rustrados, as mulheresdenegridas, os abusados, desprezados e os homossexuaisrechaçados e deserdados (COS AS, 1986, p. 85-86).

O mais interessante é que essas prioridades de Deus colocam àmargem o que era central e no centro aquilo que é marginal: o maioré o menor no reino dos céus, e aquele que se humilha será exaltado –são princípios presentes nas boas novas de um Deus interessado na

justiça e restauração da dignidade ao ser humano. Deus parece terpaixão pelo marginal – enquanto nós, muitas vezes temos ojeriza. Os“centros” parecem estar quase sempre muito ocados em si mesmose na manutenção de suas estruturas. Assim, o Espírito encontraalternativas “comendo pelas beiradas”, promovendo suas revoluções apartir das peri erias da vida. Senão, por que o Filho oi nascer justo emBelém da Judéia, e não em Jerusalém? Por que o lugar de sua criação

oi Nazaré da Galiléia e a simplicidade de uma vida no campo, entre osplebeus, a não o con orto e as mordomias (dignas de “rei”) no interiordos palácios de Jerusalém?

Jesus sai do meio de gente desprezada e marginal, e passa a ser visto como um “comum” igualzinho a eles: “Não é este o carpinteiro,lho de Maria, irmão de iago, José, Judas e Simão?” (Mc 6.3),perguntaram os galileus ao se depararem com o Jesus pro eta. Ele eramuito galileu, muito humano, muito próximo deles para que pudessemenxergar o contrário. odavia, as credenciais messiânicas de Jesusestavam precisamente em ele ter-se eito um desprezado, humano e

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teologia de missão3. Mas me arrisco a dizer que essa importância, nocaso latino-americano, se dá mais no campo de uma herança da qualos latino-americanos se aproveitaram e, ao mesmo tempo, procuraram(admitidamente) superar. Deixe-me explicar melhor isso em três pontos:

(1) OCongresso Internacional de Evangelização Mundialem Lausanne, Suíça (16-25 de julho de 1974), mais conhecido

como Congresso de Lausanne, oi parte importante de umahistória de con erências (evangelicais e ecumênicas) mundiaisde missão e evangelismo, começando em Edimburgo, 1910, que

oi reconhecidamente um marco importante, até chegar, alandopropriamente do mundo evangelical4, no Congresso sobre MissãoMundial em Wheaton, e no Congresso Mundial de Evangelização

em Berlim, ambos em 1966. Reuniu 2.700 delegados vindos de 150nações, sendo re erendado à época pela revistaime como “um órumormidável, possivelmente a mais abrangente reunião de cristãos já

realizada” (S O , 2003, p. 25). Seu lema oi: “Que o mundo ouçaa sua voz”. John Stott (2003, p. 25), importante líder no congresso,arma algo notável a esse respeito. Segundo ele, “ oi especial motivode gozo o ato de que 50% dos participantes, e também oradores, bemcomo da Comissão de Planejamento, ossem oriundos do erceiro

Mundo”. Isso signicava, para ele, que boa parte do mundo, ora doplano ocidental, já havia ouvido a voz de Deus e então respondia aseu chamado. E isso mudou completamente (o que poderia ter sido)Lausanne: mais um congresso para alar sobre o que os ocidentaisprecisavam azer para alcançar “o mundo dos dois terços”. Nesse caso,3 É, portanto, perceptível pela ala desses dois dos mais importantes representantes do movimentona América Latina, a alta de sintonia, decepção, e desejo de superação sobre a qual alei. O Boletim

eológico da F L, n. 12, de 1990, oi inteiramente dedicado à avaliação dos caminhos e descaminhosde Lausanne, e está disponível para download aqui: <http://fl.org.br/new/downloads/bt012.pd >.

ambém nessa linha, sugiro a leitura de uma série de ensaios críticos sobre Lausanne III, especialmenteo artigo de Júlio Zabatiero sobre o documento do congresso, o Compromisso da Cidade do Cabo. Issotambém está disponível no portal da F L-B: <http://fl.org.br/new/index.php/lausanne-3>. Falo delespelo envolvimento com o movimento e o “espírito de Lausanne”. De livros recentemente publicadosem português desses autores sobre missão, é possível indicar: A missão cristã no mundo moderno, deJohn Stott (2010); A missão do povo de Deus e A missão de Deus, ambos de Christopher Wright (2012;2014).4 O anglicismo “evangelical” é uma variação latino-americana e/ou brasileira do movimento quesurgira nos EUA como uma derivação dos Grandes Despertamentos no século XIX, e que seria berçodo undamentalismo, mas sem a sua intolerância. Para raseando Luiz Longuini Neto (2002, p. 23),todo undamentalista seria um evangelical, mas nem todo evangelical um undamentalista. Assim,conclui dizendo que esse termo se torna pujante ao se ser adotado como identicação daqueles“teóricos” da MI na América Latina.

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ainda que parcialmente, a globalização oi inversa.(2) Senão, vejamos: a principal voz convocatória desse congresso

oi o notável evangelista Billy Graham e sua associação. Na palestrade abertura do congresso, Graham armou claramente que a

prioridade do congresso, e da missão da Igreja, era a evangelização.Em suas palavras, “evangelismo e a salvação de almas é a missão vital da Igreja. A Igreja toda precisa ser mobilizada a m de levar oEvangelho todo para o mundo todo” (GRAHAM, 1975, p. 31, gri o nooriginal). Entretanto, a voz da abertura não oi, necessariamente, a vozdominante do congresso. Vozes do “terceiro mundo”, como o a ricanoFesto Kingevere, e os latino-americanos Samuel Escobar e RenéPadilla, também deram o tom do que viria a se tornar o congresso, seupacto, e a missão integral, especialmente por en atizarem, mais do queo evangelismo segundo Graham, a ação (integral) da igreja no mundo.

(3) Isso tornou-se bastante visível no artigo 5 do Pacto deLausanne5 – pacto este que veio a se tornar uma espécie de conssãode é para o movimento, inclusive na América Latina, até os dias dehoje. O título do re erido artigo é “Responsabilidade Social Cristã”,que aqui cito literalmente (os gri os são meus):

Armamos que Deus é o Criador e o Juiz de todos os homens.Portanto, devemos partilhar oseu interesse pela justiça e pelaconciliação em toda a sociedade humana, e pela libertação doshomens de todo tipo de opressão. Porque a humanidade oi

eita à imagem de Deus, toda pessoa, sem distinção de raça,religião, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possui umadignidade intrínseca em razão da qual deve ser respeitada eservida, e não explorada. Aqui também nos arrependemos

de nossa negligência e de termosalgumas vezes consideradoa evangelização e a atividade social mutuamente exclusivas.Embora a reconciliação com o homem não seja reconciliaçãocom Deus, nem a ação social evangelização, nem a libertaçãopolítica salvação,armamos que a evangelização e o envolvimentosociopolítico são ambos parte do nosso dever cristão. Pois ambossão necessárias expressões de nossas doutrinas acerca de Deuse do homem, de nosso amor por nosso próximo e de nossa

5 Para ler o Pacto na íntegra, visite o site de Ultimato: <http://www.ultimato.com.br/pagina/pacto-de-lausanne>. Acesso em 7 de Abril de 2016.

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obediência a Jesus Cristo. A mensagem da salvação implicatambém uma mensagem de juízosobre toda orma de alienação,de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo dedenunciar o mal e a injustiça onde quer que existam. Quando aspessoas recebem Cristo, nascem de novo em seu reino e devemprocurar não só evidenciar, mas também divulgar a retidão doreino em meio a um mundo injusto. A salvação que alegamos possuir deve estar nos transformando na totalidade de nossasresponsabilidades pessoais e sociais. A é sem obras é morta.

Muito já se discutiu sobre esse artigo 5. Quero apenas ressaltarque, para mim, ele apenas contempla as reivindicações propriamenteterceiro-mundistas presentes no congresso, especialmente nas alas

dos teólogos já citados; e mais, arrisco a dizer (mais como hipótese)que esse artigo só está aí por insistência e pelo trabalho conciliadorincansável de John Stott, principal redator do pacto. Stott, porém, nãopode esconder a tensão que existiu nos bastidores daquele congresso,a qual pode ser vista expressa no próprio pacto, em seu artigo 6, queem uma passagem declarou: “Na missão de serviço sacrical da igrejaa evangelização é primordial”. Ou seja, no artigo 5, evangelização eresponsabilidade social são ambas importantes e parte de uma mesmamissão; enquanto no artigo 6, a evangelização volta a despontar comoprimordial. John Stott até tentou resolver a tensão em seu comentárioao Pacto, mas, a meu ver, deixou-a ainda mais explícita quando disseque a “missão de serviço sacricial da igreja” inclui “tanto a açãoevangelística como a social, de maneira que a Igreja, normalmente,não precisa optar por uma delas. Mas se or necessário optar, então aevangelização é primordial” (S O , 2003, p. 53). Bem, a contradição

da teologia de missão integral de Lausanne está aí explícita em pelomenos dois aspectos: (a) primeiro, Stott armou que a igreja nãoprecisa optar ou pela evangelização, ou pela ação social, e depois secontradisse ao considerar uma possível necessidade de optar, e assimescolheu a evangelização (deixando bem claro, a meu ver, qual oi de

ato a opção de Lausanne no m das contas); (b) segundo, se a missãoé integral, a própria composição “evangelização + ação social” é, em si,ridícula, tendo em vista que tal missão, para ser integral, envolve bemmais que uma ou outra.

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Na obra Missão Integral: em busca de uma identidade evangélica(2010), Ricardo Gondim de ende que o movimento (de missãointegral) nasceu na América Latina antes mesmo do evento deLausanne, na década de 1960, quando teólogos e pastores autóctones

perceberam a necessidade de uma mensagem de salvação queincluísse também o terreno e não apenas o ultraterreno, e que ossecontextualizada e relevante às circunstâncias vivenciadas pelo povolatino-americano. Desde então, “missão” aqui signicava mais que“missões” ou evangelização; implicava no anúncio de uma mensagemmais abrangente que redundasse em ações que promovessem umasociedade mais justa e igualitária.

No encontro mundial em Lausanne, 1974, essa perspectiva secon ronta, segundo o autor, com a visão das agências nanciadoras doevento, como a Associação Evangélica Billy Graham, Aliança EvangélicaMundial e a Cristianismo Hoje, centradas na missão como evangelismo.Daí ser aquele um congresso de evangelização, e daí sua ên ase maiore nal ter retornado à intenção original de Graham. Isso se expressou,como vimos, não apenas nas palestras ora pro eridas, como tambémno “Pacto de Lausanne”, que representou o elo entre as di erentes

acetas ali presentes, como também demarcou uma ruptura, pois,como de ende Gondim (2010, p. 84), “os principais temas abordadospelo Pacto conguram muito mais a agenda do undamentalismoque propriamente um avanço dos conceitos missiológicos” – valendodestacar que essa é uma tese de suma importância dentro do olhargeral o erecido por ele nesse livro.6

Feitas essas considerações preliminares, vou diretamente aoponto que mais nos envolve:como a missão integral se desenvolveu na América Latina?A história da missão integral remonta a uma série de congressos,realizados tanto na Europa, como na América Latina na primeirametade do século XX, com o objetivo de se debater amissão e asmissões. Num primeiro momento, a iniciativa vem dos EUA e Europa, maslogo começa a aparecer um “protestantismo latino-americano”, queaos poucos vai alcançando sua maioridade e independência, embora

6 Para uma análise mais ampla (e crítica) do livro de Gondim como um todo, ver minha resenhapublicada no número 16 de Práxis Evangélica (MENEZES, 2010, p. 145-154).

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nessa época ainda osse muito cedo para alar nisso. Quero aqui irdireto ao ponto, trazendo uma visão geral dos CLADEs (CongressoLatino Americano de Evangelização), entendendo que esses oramos congressos que mais agregaram em produtividade, teologia e

progressão ao movimento na América Latina.Para tanto, primeiramente, utilizo um breve histórico escrito porRuth Padilla, a partir da pergunta de quem pôs a mesa para quem nosquatro primeiros Congressos Latino-Americanos de Evangelização, e oespírito que culminou em CLADE V; na próxima unidade, apresentareiuma análise de minha autoria, como participante do evento, do que vi, ouvi e aprendi em CLADE V. Ambos os artigos oram publicadosno número 21 da RevistaPráxis Evangélica, da F SA, especial sobreo Congresso Latino Americano de Evangelização V. Agradeço aoseditores dePráxis pela permissão em reutilizá-los aqui.

B CLADE I IVQuatro décadas, quatro congressos

O que acontece em nossas casas quando chega a hora da comida?Pelo menos nos lugares privilegiados nos quais temos comida todosos dias, e nos quais a amília se reúne para compartilhá-la, alguémdeve pôr a mesa. Na minha casa, quem põe a mesa tem certo poderde decisão: determina quem ca em qual lugar, se se utiliza jogoamericano ou toalha de mesa. Mas obviamente terá que se sujeitar adecisões prévias. Não vale colocar gar os, se só há sopa; nem az altatempero, se não há salada! Quem prepara a comida tem muito poderde decisão: determina, em amílias de certa condição econômica, oque se come e o que não se come.

Muitos são os cenários que nos pintam os evangelistas de Jesusna mesa partindo e compartilhando o pão com pessoas tão di erentes.Seus críticos lhe acusam: “É um glutão e beberrão”. “E para completar,come e bebe com publicanos e pecadores!”. Jesus não se acovarda,nem esconde sua agenda alternativa aos valores imperantes. Critica

rontalmente as práticas discriminatórias que outorgam postos deimportância na mesa segundo o prestígio e a riqueza pessoal doconvidado. E quando um homem integrado ao sistema religioso

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levanta, orgulhoso, sua taça dizendo: “Bendito aquele que participano banquete do Reino!”, Jesus responde com a parábola do grandebanquete onde os convidados avorecidos são os pobres, os coxos, oscegos, os “ninguéns” de ora da cidade, os descartados da sociedade

“culta” e do sistema econômico (Lucas 14). Mas Ruth, dirá um(a) leitor(a), supunha-se que você alaria dosCLADEs, os Congressos Latino-Americanos de Evangelização. Porque você está alando de mesas, comidas, convidados? Bom, é que oque pretendo é nos guiar numa reexão sobre os quatro congressos queantecederam aquele que está em oco neste dossiê, através da metá orada mesa. Vamos considerar quem deniu o menu, quem pôs a mesa,quem oram os convidados e quem oi nutrido por estes “banquetes”.Cono que o exercício de azer estas perguntas ao nosso passado nosdará um undamento para compreender como chegamos a CLADE V,que ocorreu em julho de 2012, em San José, Costa Rica.

Vale um esclarecimento: este artigo não pretende ser um registroexaustivo de cada Congresso de maneira que satis aça as expectativasrigorosas de uma historiadora prossional. Ao nal deste artigo se encontrauma bibliograa para quem queira incursionar com maior pro undidade.O que se pretende é apenas abrir-nos o apetite para tal incursão.

Uma orientação geral para começar. Em novembro de 2009,cumpriu-se 40 anos desde o CLADE I. O Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelização oi realizado de 21 a 30 de novembro de1969. Quase exatamente uma década depois, em novembro de 1979,se realizou o CLADE II. Já veremos as di erenças substanciais entreos dois encontros. Enquanto o congresso seguinte teve que esperar— CLADE III não se realizou até 1992 —, o quarto chegou antes de

completar-se uma década — CLADE IV coincidiu com o milênio, oirealizado no ano 2000.

CLADE I: O desencontro catalisador do encontro Ignoro quantos dos leitores têm recordações claras do ano de

1969. Eu tenho gravada a memória daquele dia, em julho, quandoolhei maravilhada na televisão dos vizinhos — a amília Fernández— o primeiro passo de Neil Armstrong na lua. Mas também recordoa angústia di usa que, como menina, me suscitava a ditadura de [JuanCarlos] Onganía e o temor visível de tomar um trem graças ao incêndio

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provocado por um grupo guerrilheiro na estação Retiro. Eram anosde turbulência em nosso continente. ensão crescente entre esquerdae direita. Desastres naturais e outros não tão naturais: terremotose uracões, ditaduras e desaparecidos, guerras e guerrilhas. Era um

continente em crise. Daí o título de CLADE I: “Ação em Cristo para um Continente emCrise”. A crise, entretanto, não se vivia apenas no cenário amplo, políticoe social, mas também no seio da crescente população protestante-evangélica. A Guerra Fria entre as superpotências começou a denirposições, especialmente entre aqueles que viam a América Latinacomo campo missionário. A mesa para CLADE I não se pôs no vazio:havia outro banquete programado que os organizadores percebiamcomo ameaça à sua versão de cristianismo.

Explico: Quem colocou a mesa para CLADE I? Foramorganizações missionárias evangélicas da América do Norte, aAssociação Evangelística Billy Graham, a Evangelical Fellowship of Mission Associates (EFMA) e aInternational Fellowship of Mission Associates (IFMA). Estesgrupos já haviam organizado congressos sobre evangelização na Ásiae na Á rica, depois de um grande em Berlim (1966), e agora era a

vez da América Latina. Como eles punham a mesa — convocavam epagavam a conta —, naturalmente se sentiam com todo o direito dedeterminar o menu — o programa — e os convidados — a quem seconvidaria para participar e a quem não. A leitura da correspondênciaque circulou em preparação para o Congresso revela o orte ltroconservador e a imposição acrítica de denições nascidas no contextode controvérsias teológicas nos Estados Unidos. Na percepção doslíderes norte-americanos, a mesa de CELA III (a erceira Con erênciaEvangélica Latino-Americana) se propunha como “liberal” e, portanto,como uma ameaça à qual havia que se contrapor. CLADE I seria oespaço no qual os líderes evangélicos norte-americanos “corrigiriam”a má dieta o erecida pelos movimentos progressistas próximos aoConselho Mundial de Igrejas e seus simpatizantes.

CLADE I se realizou em Bogotá de 21 a 30 de novembro de1969 e reuniu mais de 900 delegados. Foram incluídos vários líderesquestionados pelos organizadores, mas sem voz na mesa. Por outrolado, central no menu, constou o livro eologia Latino-americana:

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evangélica ou esquerdista? , de Peter Wagner, que oi entregue nocomeço e de maneira gratuita a todos os participantes. Com raca baseinvestigativa, Wagner descreve e cataloga movimentos e líderes cristãosprotestantes evangélicos conservadores, católicos conservadores e

católicos e protestantes liberais, seculares e radicais de esquerda.Critica a ausência de reexão e produção teológica e postula a teoriado crescimento de igreja como a via mais el ao evangelho.

Alguns participantes receberam com aprovação a perspectivade Wagner. Mas para outro setor, este prato caiu mal. Para várioslíderes — que apesar de valorizar os desaos apresentados pelo livro,o julgaram como uma caricatura injusta, investigação irresponsável e

ruto de um dualismo nocivo e polarizante —, esta oi a última gotaque encheu o copo. Não era mais tempo de seguir recebendo, comolatino-americanos, o menu do Norte, repetindo e polarizando-se apartir de receitas teológicas estrangeiras. Deviam gerar seu própriopensamento teológico, que deveria surgir da Palavra de Deus e de seucontexto social e político. Samuel Escobar explica

A tomada de consciência teológica se deu em Bogotá... consistiu primeiro em comprovar que uma comunidade evangélicadinâmica e que crescia rapidamente ia chegando a certamaioridade sem identidade nem expressão teológica. Comprovou-se também que a tomada de consciência a respeito de uma criseno continente encontrava os evangélicos sem resposta nemalternativas sérias frente ao pensamento que começava a se forjarno âmbito ecumênico. Percebeu-se, nalmente, que a dominaçãomissionária que explicava em parte a falta de expressão teológica,tentava polarizar a partir de fora a comunidade evangélicalatino-americana(ESCOBAR, Boletim 59-60).

Era hora de teologar como evangélicos latino-americanos e depublicar e di undir esse pensamento pertinente à sua própria realidade.Assim oi como “durante o transcurso de CLADE I, um grupo depastores, evangelistas, missionários e pro essores de seminário sereuniram para projetar uma ‘ raternidade’ dedicada ao estudo e àreexão” (ESCOBAR, Boletim 59-60).

O desencontro de CLADE I havia servido como catalisador denovos encontros, agora enraizados no nosso continente. E assim oi

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como apenas um ano mais tarde, de 12 a 18 de dezembro, undou-se emCochabamba a “Fraternidade de eólogos Latino-americanos”. Na mesa,havia 25 pessoas de nove denominações e diversas correntes teológicas:wesleyana, anglicana, re ormada, dispensacionalista, batista, pentecostal,

independente e do movimento estudantil evangélico (CIEE). Em meioa debates e controvérsias internas, Escobar atribui a sobrevivência daF L desde o começo a “uma atitude caracterizada por três elementos:rmeza na denição quanto a uma base evangélica comum claramenteexpressada, a busca de pertinência contextual e resistência à polarizaçãopor atores extra-teológicos” (ESCOBAR, Boletim 59-60). Esteselementos se plasmaram na “Declaração de Cochabamba” e serviramde norte ao “Comitê Deliberativo”, constituído por Samuel Escobar(presidente), Pedro Savage (coordenador internacional), Emilio AntonioNuñez, Ricardo Sturtz e René Padilla.

Daquele encontro inicial surgiram muitos outros, através deconsultas regionais e nacionais sobre a igreja, ética social, Reinode Deus, Libertação e Bíblia, o homem e as estruturas da AméricaLatina, o aborto, nossa missão na América Latina, e assim por diante.O ereceram-se “institutos teológicos pastorais” em todo o continente

com teólogos como Saphir Athyal (Índia), Carl Henry (EUA), John Stotte Michael Green (Inglaterra) e Leon Morris (Austrália). A década de1970 oi prolíca e a inuência da F L se ez sentir muito cedo no soloda América Latina senão no mundo inteiro a partir, especialmente, deLausanne 1974. Embora este capítulo seja signicativo, não podemosentrar nele neste momento.

Vale destacar que, se existiam dúvidas antes daquele CongressoInternacional de Evangelização de que havia novos convidados na mesada amília evangélica mundial, convidados de ora dos tradicionaiscentros de poder, convidados com voz, voto e contribuições própriasao mapa teológico, essas dúvidas oram dissipadas contundentemente,para celebração ou temor dos que até então estavam acostumadosa pôr a mesa e determinar o menu e os convidados. Isto registramreconhecidos historiadores da Igreja global como Yeats e Bevans, quearmam que “os evangélicos latino-americanos aportaram à Lausanne1974 a preocupação pela justiça social” (BEVANS, 2004, p. 279). Seguiasendo gestada entre os membros da F L uma teologia evangélica,

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bíblica, comprometida com os desaos do so rido contexto latino-americano e que resistia às rígidas categorizações impostas de ora.

CLADE II: Sabor e insipidez latino-americanosJá terminava uma década ne asta em nosso continente. Na

Argentina, enquanto comemorávamos os gols da Copa do Mundode 1978, milhares eram torturadas e torturados a poucas quadras doMonumental, na Escola Mecânica da Marinha. E meu país não eraexceção. As mortes por motivos políticos no continente somaram pelomenos 200 mil durante os anos 1970 e os desaparecidos uns 100 mil.Era inevitável até para cristãos conservadores a exigência de atender àspreocupações sociais, econômicas e políticas de uma terra que sangrava

em guerras civis e guerras sujas, em revoltas e repressões, contras einvasões, crescente pobreza e baixa esperança de saídas viáveis. Foi nesse contexto que a F L convocou o Segundo Congresso de

Evangelização – CLADE II, que se realizou em Huampaní, Peru, de 31de outubro a 8 de novembro de 1979.

Di erentemente de CLADE I, a mesa oi posta desta vez por cristãoslatino-americanos. A denição do menu e o convite aos participantestambém correram por conta deles. Sidney Rooy (2007) se recorda queinclusive se determinou em 10% o máximo de norte-americanos queseriam bem-vindos ao encontro. ampouco se recebeu dinheiro dosEstados Unidos: 40% dos recursos se levantaram na América Latinae o resto veio de igrejas amigas na Europa. 266 participantes de 39denominações e 22 países se reuniram nessa semana sob o tema: Quea América Latina ouça Sua voz . Seu propósito central era “considerar juntosa tare a evangelizadora que somos chamados a cumprir nas próximas

décadas, em nosso contexto histórico” (BOLE IM F L 6). Osparticipantes, nesta ocasião, receberam umas 500 páginas de materialde estudo, mas no lugar de receber também estratégias pré-estabelecidascomo havia ocorrido em CLADE I, oram os mesmos participantesquem, em mesas de trabalho, puseram seus próprios ingredientes paragestar “Projeções Estratégicas” para os anos seguintes. A “Carta aoPovo Evangélico na América Latina”, acompanhada pelas exposiçõesapresentadas, publicou-se no ano seguinte no livro da F L: AméricaLatina e a Evangelização nos anos1980 (México, 1980).

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Era uma mesa latino-americana com os odores, sabores — einsipidez — latino-americanos. Houve, segundo o historiador peruano

omás Gutierrez, consideração apenas tangencial dos problemassociais, políticos e econômicos que vivia a América Latina. Não houve

unanimidade nos discursos, nem nas abordagens, nem acordo a respeitode certos posicionamentos, particularmente em relação ao valor dasgrandes campanhas evangelísticas ou a situação política em Cuba eNicarágua. Mas a equipe da F L não percebeu esta diversidade comouma surpresa negativa. O diálogo e mesmo a con rontação de diversasperspectivas eram vistos como valores geradores de compreensõesnovas e mais éis ao evangelho em terras latino-americanas.

A insipidez, entretanto, repercutiu nos anos posteriores tantodentro como ora da América Latina. Os líderes da F L seguiramdespertando a suspeita dos grupos conservadores do Sul e do Norte.O nascimento de CONELA (a Con raternidade Evangélica Latino-Americana) em abril de 1982, por exemplo, é resultado, em grandeparte, de setores que julgam como demasiado progressistas a teologiae a missiologia da F L.

Paralelamente, e rente ao que percebem como um retrocesso noMovimento de Lausanne a denições de missão prévias ao consensoplasmado no Pacto de Lausanne, os líderes da F L convocam e servem decatalisador inicial à INFEMI – a Fraternidade de eólogos Evangélicosda Missão no Mundo dos Dois erços. Seu primeiro encontro serealizou em Bangkok, em março de 1982, e o segundo no México, em1984. Começam a identicar este movimento ora da América Latina,em cujo coração estava a F L e líderes como Escobar, Padilla, Costas,Savage, Gutiérrez e Rooy como “evangélicos radicais”. E nele se vão

nucleando com o passar do tempo pessoas de diversos continentes:ISAAC – Instituto para o Estudo da Igreja e da Cultura na Ásia, comMeba Maggay (Filipinas); Evangelicals for Social Action (EUA), Vinay Samuel,Chris Sugden, om Sine, David Lim (China Ministries International ), DavidGitari e Kwame Bediako ( izón). In elizmente, não podemos expandiraqui este intrigante capítulo que segue aberto até o dia de hoje.

Antes de nos despedirmos da década de 1980, entretanto,notaremos que embora se agreguem pessoas à mesa, as mulheresbrilham por sua ausência. É certo que Beatriz Couch contribuiu no

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encontro sobre aborto e que Elsie Powell participou em nome da F Lde encontros de IAPCHE (Associação Internacional para a Promoçãoda Educação Superior Cristã). Entretanto, as primeiras mulheresnão aparecem até 1992 no registro de líderes do movimento. Apenas

na sexta assembléia geral, desde sua undação, é que se incorporamao comitê diretivo, presidido por Valdir Steuernagel, Carmen PerezCamargo como vice-presidenta e Dorothy de Quijada como tesoureira.

CLADE III: A mesa se amplia Esta assembleia coincidiu com CLADE III, organizado sob a

coordenação geral de René Padilla, como Secretário Geral, com o apoiodo escritório regional da Comunidade Internacional de EstudantesEvangélicos e da MAP Internacional ( Medical Assistance Programs). Adécada de 1990 havia se iniciado com a queda simbólica do muro deBerlim e com a intensicação dos processos de ajuste econômico nospaíses devedores por parte das entidades credoras mundiais. O anode 1992 também era signicativo pelo cumprimento dos “500 anos”— de opressão, colonização, descobrimento, evangelização, segundo aperspectiva do que se lembra.

Nesse contexto teve lugar o CLADE III, entre 24 de agosto e 4de setembro, no Colégio Anderson de Quito, Equador. Em plenáriasteológicas, missiológicas, históricas, sociais e econômicas e em cercade cinquenta ocinas e seminários, os participantes — 1080 mulherese homens de 25 países — en rentaram o temaodo o Evangelho para

odos os Povos desde a América Latina.Esta sim era uma mesa diversa em mais de um sentido. Sobre

este Congresso se recorda Míguez Bonino: “[CLADE III] ultrapassa oslimites da F L para se constituir num verdadeiro ‘congresso protestantelatino-americano’ tanto pela amplitude da representação como pelariqueza dos materiais e a liberdade da discussão. Estivemos, recorda,na presença de um verdadeiro ‘evento ecumênico’ do protestantismolatino-americano” (BONINO, 1995, p. 56).

CLADE III não apenas convidou à mesa líderes evangélicos jovense emergentes, como também lhes abriu espaço para contribuiçõesem plenárias e ocinas. Eram pessoas que haviam sido nutridas pelateologia gerada pelo movimento e chegavam à convocatória comtestemunhos, perguntas e experiência de campo. Entre elas havia maismulheres que em con erências anteriores, constituindo 20% do total

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das contribuições nas plenárias. Os participantes do encontro indígenapré-CLADE em Otavalo (19 a 23 de agosto) também compartilharamsuas conclusões no plenário.

Ao mesmo tempo, entre os convidados da F L, havia pessoasalinhadas tanto com CONELA como com CLAI. Padilla qualicacomo “um resultado importante” o encontro histórico de membrostitulares de CLAI e de CONELA sobre “Unidade e Missão” (CLADEIII, Introdução). Sidney Rooy (2007) se comove recordando que das67 perguntas que o público apresentou aos painelistas aquela tarde,quase todas aludiam ao ato de que era o primeiro encontro públicoentre as entidades em seus 10 anos de existência, rente ao qual o bispometodista Pagura con essou abertamente sua omissão. A conssão,entretanto, oi de todos os presentes: a Declaração de Quito expressaa omissão do povo evangélico que havia sido demasiado silencioso

rente ao aumento da pobreza, às ditaduras militares, às torturas e aosdesaparecidos (CLADE III, p. 856-861).

A ên ase na integralidade da missão à qual Deus chama seupovo, a consciência a respeito de quem, com muita requência, são asexcluídas e os excluídos da mesa da igreja e da vida, e o reconhecimentoda responsabilidade na encarnação da missão no contexto latino-americano e além, surgiram entre e marcaram indelevelmente aquelesque participaram de CLADE III. No livro Missão da Igreja: umavisão panorâmica (1994), lançado por ocasião deste congresso, ValdirSteuernagel, então presidente da F L, explica que por meio do livroe do Congresso “se quer contribuir à superação cada vez maior dadicotomia entre corpo e espírito, indivíduo e comunidade, palavra e ação,evangelização e compromisso com a justiça, dicotomias que se apossaramde muitas de nossas igrejas e escolas de formação bíblico-teológicas nasúltimas décadas deste século”(S EUERNAGEL, Introdução).

E, possivelmente, pensando em CLADE III é que Justo Gonzálezarma o seguinte:“É possível traçar na história deste movimento umacrescente consciência primeiro das dimensões sociais do evangelho edepois das dimensões estruturais dos problemas sociais e econômicos da América Latina”(GONZÁLEZ, 2007, p. 237).

Embora reste muito trabalho de pesquisa a respeito, é inegávelque são inumeráveis os projetos e as igrejas que oram impactadas poresta perspectiva não polarizada, mas integradora da missão da igrejana América Latina.

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CLADE IV: novas mesas são postasNovamente oi Quito o cenário de outro Congresso Latino-

Americano. Desta vez, o antrião oi o novo campus do SEMISUD, oseminário das Assembleias de Deus. Entre 2 e 9 de setembro de 2000,

encontraram-se mais de 1200 pessoas de todo o continente embora nãose esperasse 800. Aconteceu graças ao trabalho árduo de Freddy Guerrero,coordenador geral, e utilizando as casas de retiro e sítios de acampamentoao redor. O tema central oi estemunho Evangélico no erceiro Milênio: Palavra, Espíritoe Missão. Novamente, houve plenárias teológicas e contextuais que oramreunidas no livro A Força do Espírito. Ouviram-se abordagens e perspectivasdiversas que, desta vez, em vez de se juntar num “livro gordo”, publicou-selogo como livros temáticos na série CLADE IV.

A tônica particular de CLADE IV oram suas consultas temáticasparalelas que tocaram assuntos tão variados como a Presença Cristã noMeio Acadêmico, Ministérios Editoriais, Educação eológica, MissãoIntegral e Igreja e Ministério entre Crianças. Foram justamente estasduas últimas consultas que geraram não apenas reexão e publicações,mas movimentos que se ormalizaram na Rede do Caminho — delíderes e pastores em Missão Integral — e no movimento Juntos pela

In ância, que, sob a coordenação logística de Red Viva, tem estadoministrando em todo o continente desde então.CLADE IV serviu de catalisador para colocar em cena outras

mesas onde se sentiram particularmente convidadas pessoas,instituições e redes que tinham se nutrido do sólido menu bíblico econtextual o erecido nas décadas anteriores pela F L. No ano 2000,ao virar a página do milênio, a F L cumpria seus 30 anos de vida epresença no continente. O contexto tinha mudado, mas o desao seguiasendo o mesmo. Conseguiria a F L nutrir espaços de estímulo a umareexão que ora tanto pertinente como bíblica, tanto propositiva comodenunciadora, tanto de umas como de outros, tanto local como global?

(Ruth Padilla DeBorst)

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C

Historiar a missão integral como um princípio não é possível,porque ele nasce no coração de Deus, por isso é atemporal, aindaque se revele na Palavra e no tempo, sendo gravado no coração dehomens e mulheres escolhidos por Deus. A história da missão integralé, antes de tudo, a história de um movimento que tem múltiplas

aces. Nessa unidade observamos apenas algumas delas, partindo daslacunas deixadas pelo movimento missionário que invadiu o séculoXX, até as iniciativas de outros movimentos, como o de Lausanne, no

sentido de tentar preencher essas lacunas, pelo resgate da missão emsua integralidade. Isso chega, sobretudo à América Latina, como umaproposta que visou “mudar a cara” da igreja e da missão, em buscade trans ormação da realidade. Nasce uma hermenêutica missionáriaa partir da América Latina, e movimentos como o CLADE oramexpressões disso. Mas esse movimento também deixou lacunas. Naunidade seguinte, veremos, agora através do ensaio que escrevi sobreCLADE V, que o risco de permanecer como discurso vindo apenasda plata orma ainda permanece, especialmente para as novas geraçõesque se encantam com missão integral, e procuram vivê-la na prática.

R

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M IU

P H ( ): CLADE V

IPode um historiador ser objetivo e desapaixonado? Não azele suas investigações como alguém que busca uma carta deamor perdida, carta que aria o amante eliz para sempre, comoalguém que busca o testamento esquecido, testamento que ariarico ao pobre que o busca?1

A inevitável tentação de qualquer pessoa, que se aventureem relatar percepções sobre um evento como CLADE (CongressoLatino Americano de Evangelização), é a de se concentrar em uma visão pessoal ressaltando aspectos que o(a) marcaram mais direta epro undamente. Por essa razão, a citação acima, que Miguez Bonino

az de Rubem Alves, se aplica bem a este ensaio, por algumas razões.Primeiro, porque se trata de umabusca por temas perdidos, esquecidos

ou não devidamente trabalhados – de que maneira CLADE V matouminha ome deles? Segundo, porque cheguei a um estágio de minha vida como pesquisador em que tenho me es orçado para não mais mecercar da pretensão à objetividade, esquecendo-me de que, por trás daanálise de um objeto, está um sujeito: que pensa, analisa, interpreta,inter ere e também cria, e não um cientista “ rio”, que apenas descrevea realidade (aqui está a “pretensão” a que me rero).

Ademais, a escrita que se resume à terceirização – notas derodapé técnicas sobre o que outros já zeram e como aplicaram asregras consagradas que sua ciência celebra – é, no mínimo, entediantee desinteressante. extos que “arrastam” leitores, em geral, sãoaqueles permeados pela personalidade e pensamento próprios de seuescritor, e de uma experiência com a qual o leitor possa se identicar.A objetividade é uma pretensão cansativa. Minhas percepções aqui1 Rubem Alves. Citado por José Miguez Bonino em sua “Carta aos jovens historiadores do

protestantismo latino-americano”, escrita por ocasião da ormação da comissão de história da F Ldurante o CLADE III, em Quito, Equador, 1992.

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inscritas serão, assim, ruto de um olhar: preliminar, admitidamentea etado e prematuro até, uma vez que me encontro em meio ao eventoenquanto inicio a escrita desse texto, e certamente permanecerei sobseu impacto por algumas semanas após seu término.

O

1. Analisar esse breve e pessoal relato histórico sobreCLADE V;

2. Reconhecer os limites e possibilidades para ateologia de missão latino-americana à das discussões deCLADE V;

3. Reetir sobre novos desaos que oram plantadosno congresso e que nos levam a uma reexão sobre a missãohoje, para além dele.

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P : Reunimo-nos em CLADE V, na Comunidade Vida Abundante,

em São José, Costa Rica, sob o lema: “Sigamos a Jesus em seu Reino de vida. Guia-nos, Espírito Santo”. A novidade desta edição de CLADEcomeçou com a prévia e estreita relação que seus participantes, dedi erentes países da América Latina, tiveram com o tema que lheserviu de guia, a partir do trabalho realizado pelos núcleos locaisdesde o nal do ano de 2011. CLADE V, portanto, mais que qualqueroutra edição deste congresso na história, oi resultado de um es orçoconjunto de regiões, países, e núcleos de reexão que para suaconcepção e desenvolvimento contribuíram, não apenas do ponto de

vista organizacional e logístico, mas também em seu conteúdo prático.Isto, é claro, tem suas virtudes e talvez alguns problemas. A maior virtude, talvez, esteja em sua metodologia, qual seja, a de abrigar umprocesso democrático e plural desde a ormação até a realização doevento. Mostra, assim, uma intencional conexão com a necessidadede uma teologia que seja ao mesmo tempo dialogal, aberta, bíblica econtextual, resultante de uma construção, de uma caminhada, de umprocesso inacabado – reconhecimentos óbvios, mas tão importantesno tempo em que vivemos. A diculdade, porém, pode estar em darcoesão e concretude a anseios, expectativas e posicionamentos tãoheterogêneos.

Quem sabe – como remédio ao irremediável – CLADE Vpossa car marcado como um congresso em que, de modo prático,aprendemos a promover mais encontros possíveis sem a urgência deproduzir grandes consensos dogmáticos e, como corolário, de evitar

colisões entre mundos e percepções de mundo, deixando-se conduzirpelo Espírito Santo em convivência irênica com as múltiplas vozes epensamentos que nos ladeiam em nossas di erentes “Américas” dentroda América Latina.

O congresso teve a preocupação de provocar di erentes posturasem seus participantes ao longo dos cinco dias que ali estivemos, asaber:recordar , agradecer , escutar , responder e celebrar . Isso resultouem uma programação dinâmica, diversa, participativa e celebrativa,que se propôs a olhar para o passado de orma menos nostálgica, como

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já vi em outros encontros do gênero, alguns deles promovidos pela própriaF L. E essa é uma primeira nota positiva de CLADE V: logo de cara, deuum adeus à nostalgia, deixando claro querecordar é preciso, mas com os pésno presente e os olhares voltados aos desaos adiante, nas novas utopias

que precisamos criar, como disse Ruth Padilla em sua palavra de abertura.Dessarte, a voz e presença dos chamados “pioneiros” da F L se ezperceber menos pela plata orma – com exceção do primeiro dia, quandoRené Padilla, Samuel Escobar, Pedro Arana, Valdir Steuernagel, JuamStam, Sidney Rooy e Mervin Brenneman oram reunidos na plenáriacom a missão de recordar a história e importância dos CLADE’s (daprimeira à quarta edição) – e mais ao redor das mesas, nos bastidores,“talleres”, “re rigerios” (pausa para ca é) e consultas temáticas. Issodemonstra a preocupação da F L de honrar seu passado e, ao mesmotempo, de motivar, empoderar e dar oportunidade de protagonismo àsnovas gerações nos novos rumos da teologia e da missão, a partir dosCLADE e do trabalho da F L. De certa maneira, talvez em unção dessaatenção, o congresso parece ter seguido tendências dessa nova geração,seja nas temáticas adotadas, nos percursos metodológicos e na dinâmica.

Nesse sentido, é possível também ressaltar que alar de CLADEV é tratar menos do ervor do palco, das grandes con erênciaso erecidas por renomados e icônicos palestrantes, e mais das histórias,experiências e amizades partilhadas nos bastidores. Em sua dinâmica,procurou dar espaço a di erentes expressões de arte, mesclando-ascom momentos de celebração comunitária, testemunhos, reexões emgrupo. Foi dado mais valor aos relacionamentos, não só pela interaçãocontínua dos participantes nas mesas – como cou congurado o

plenário a exemplo do que se ez no Congresso de Lausanne 3, naCidade do Cabo em 2010 – mas pelos inúmeros intervalos presentesno programa, como um convite à comunhão e interação.

T : A preocupação com os sinais dos tempos também se evidenciou

na trilha temática do congresso: igreja, sociedade, política, juventude,meio-ambiente, identidade, interculturalidade, pós-modernidade,

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educação, espiritualidade, missão, liturgia, sexualidade, globalização,economia, gênero, etc.; de temas tradicionais a temas mais hodiernos,esses oram alguns dos quais se ocuparam os diversos convidados dasconsultas, óruns e palestras o erecidos no congresso. A partir dessas

instâncias, surgiram armações, desaos e provocações. Daqui paradiante, mencionarei algumas que me marcaram de modo particular.

C Ouvimos que a história da F L é a história de pessoas que, em sua

busca pela delidade à missão de Deus em variadas rentes, aprenderama azer teologia a partir da amizade e do companheirismo. Jamais meesquecerei das palavras de Pedro Arana, enquanto partilhávamos dacomunhão e do pão em nossa mesa, já no último dia do evento: “Nosotrossomos compañeros, con-panes” – isto é, partilhamos do mesmo pão, domesmo vinho, do mesmo Espírito, somos lhos do mesmo Senhor eencaminhados para uma mesma missão. Esse é um desao e tanto parauma geração que cada vez mais tem alado em diálogo, mas que tendea azer teologia a partir de redomas quase intransponíveis, de onde semanda recados “bem dados”, mas sem muita disposição para sair ( ora denossos próprios círculos, guetos ou tribos), de compartilhar, de batalharou undamentar discursos e práticas (ou práticas discursivas) a partirde conversas rancas, abertas, humildes. emos ainda muito a aprenderpara construir uma cultura de diálogo, por isso resolvi expandir esseassunto um pouco mais adiante.

F Para que servem as utopias? Para caminhar..., disse Ruth Padilla

em uma das palavras de abertura do congresso. Fomos desaados porela a articular novas utopias para novas gerações, e a orjar caminhosde delidade a Deus que sejam adequados ao momento histórico atual.Ou seja, novas utopias para caminhar não surgem da mera reproduçãode perguntas e respostas de nosso passado, na F L e além dela. Amorte ou obsolência de antigas utopias, no horizonte das tendências

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nossos debates oi o tema daverdade, associado com o pluralismoe o relativismo, grandes perigos pós-modernos na visão de algunsali presentes, que compreendiam ser dever do educador “guardar a verdade”, depósito do evangelho. Sobre isso, gostaria de tecer algumas

considerações nesse espaço, por entender que CLADE V, mesmo quede modo peri érico, avançou mais que Lausanne III2 nesta questão– e a Carta Pastoral é um pequeno exemplo disso –, mas que aindaprecisamos avançar mais, caso a relevância do testemunho cristão sejaainda uma preocupação da igreja no atual século.

No âmbito plural das religiões contemporâneas, e suasintermináveis variações, ainda nos deparamos com a remanescentequestão da “Verdade”, sempre ela. Dizer que a possuímos comoquem possui um bem material é insanidade – embora não das maisimprováveis. Se alegarmos que ela é atingível em sua plenitude oudissermos, em contrapartida, que ela não existe, nos enganamospor não reconhecer o caráter contingente de nossos pressupostos –que em parte tem provocado a insanidade da posição anterior. Sede endo, porém, que há a “minha verdade”, em detrimento, emboranão necessariamente em conito, com a “sua verdade”, posso estar

abraçando ou um vale-tudo relativista improdutivo e sem sentido,ou ingressando na armadilha de, no m, ainda que relutante, ter deentrar na discussão de qual verdade é, de ato, “A Verdade Verdadeira”(pleonasmo desesperado). Dada a limitação do saber e da experiênciahumana, enquanto a meta ísica, o orgulho e a pretensiosidade reinaremem nossa “vontade de verdade”, ela será mais um instrumento deseparação, violência e exclusão.

O que parece ser, anal, no domínio da religião, a verdade?Aquilo que escapa até mesmo ao mais sincero dos olhares seja pela viada experiência, do conhecimento ou da própria é, e que só se o erecepor relance, como percepção de canto de olho. Quando se diz “aquiestá ela”, é porque ela já passou por ali, deixando pegadas, talvez, masnão se az presente. Não se detém em palavras, conceitos ou ideias.Não se con unde com os chamados “ atos” do cotidiano e da história,2 Em meu primeiro livro,Humanos, graças a Deus(2013, pp. 179-195), abordo topicamente o temada verdade relacionando desaos pós-modernos com a proposta do reino de vida e amor de Jesus.rabalharei esse tema também nas unidades 15 e 16 desse curso, tendo como mote a evangelização.

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pois um ato – rero-me a enômenos humanos e não aos de ordemísica ou matemática – é sempre um ato construído, notado e narrado

por alguém. Até por isso, sim, contra fatos há argumentos – sei queisso irá incomodar uma meia dúzia que costuma usar esse ditado no

sentido oposto. Para estes, retomo aqui o algo que escrevi em outro lugar:Uma das ideias das quais nos abastecemos – os historiadores maisainda – é a de que atos existem lá ora. Um ato pode ser entendidogenericamente como um enômeno humanamente reconhecível,e ordenado a partir do tempo e do espaço. Para muitos, atos são“dados”, isto é, in ormações que emanam naturalmente dos ocorridose que, por uma pura observação, caem em nossos colos prontospara serem divulgados. Não oram mexidos, como podem ser osovos, nem modicados pelo olhar humano. Aliás, para que um atoseja reconhecido como tal se teria de ignorar o tal olhar. Ademais,nisso tudo ainda se propaga a teoria da “tabula rasa” de David Hume,que pressupõe a pura recepção da mente humana dos dados daexperiência, demarcando uma continuidade entre o dado, a recepçãoe o conhecimento.

Assim, tal teoria se az disseminar entre nós por meio do senso

comum de que “contra atos, não há argumentos”, já que o ato “ ala porsi mesmo”, e nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, semtirar, nem pôr. Fatos, segundo essa visão, emergem das coisas. Emboramuita gente ainda pense assim, há muito tempo existem argumentoslevantados por di erentes vozes contra tal percepção de um ato.Como resultado, uma das ideias é a de que um ato não é um dadoproveniente do mundo externo, mas uma criação proveniente do olharhumano. Logo, aquilo que recebemos como “ ato”, contra qual não sepoderia ter argumento, surge precisamente de outros argumentos, ouin ormações suscitadas por alguém, que não “caíram no colo”, nem

oram “dadas” e sim produzidas pelo olhar ou perspectiva e traduzidasem linguagem.

É óbvio que isso se aplica ao campo do conhecimento, que surgeprecisamente desse olhar para a realidade. Repito, não se trata deciência exata aqui, mas humana (melhor deixar claro, antes que alguém venha dizer que acredita ser um ato que 2 + 2 é igual a 4). Fatos,assim, são construções, à medida que passam pelo ltro do olhar, que

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naturalmente resulta em interpretação e, por m, em um enunciado. Nãose pode, por mais que se tente, eliminar todas as interpretações naturais,como de endeu Paul Feyerabend em seu livroContra o Método(2007).E toda tentativa de azê-lo, ainda segundo ele, seria autodestrutiva, ou,

para raseando C. S. Lewis, é aceitar a “o erta do Bruxo”.Voltemos agora ao assunto principal. No âmbito do cristianismo,Verdade também não é conceito, é uma pessoa chamada Jesus deNazaré, Filho de Deus, que declarou ser “o caminho, a verdade e a vida”, mas deixou a pergunta em questão (quando eita por Pilatos,con orme relato de João), “o que é a verdade?”, sem resposta pelomenos no sentido epistemológico-losóco do termo. Qualquer“resposta” dessa natureza seria como que decretar a morte da própria verdade, pois reduzi-la com um “assim é”, é o mesmo que assassiná-la.Jesus não responde, eu presumo um tanto exageradamente, por nãoquerer cometer suicídio.

Assim, ainda que a verdade (pessoa de Cristo) seja a orçamotriz da religião cristã – alguns diriam que é o amor, mas, não nosesqueçamos o que disse João, “Deus é amor” –, não deve ser usada comoarma, orça de argumento ou meio de imposição. O relacionamento, o

caminhar com e a vida são mais importantes que a certeza do saber eda doutrina correta. Esse oi o recado para Pilatos, e continua sendo orecado para qualquer um interessado na questão da verdade. E quem“é” é, mostra a que veio, não joga todo o peso na precisão do discursoquanto no exemplo de vida humana. E se a verdade ali germina, nãoé a pessoa que determina, mas o Espírito da verdade. O que signica,por conseguinte, que não az sentido dizer que o cristianismo é a únicareligião verdadeira – pois todas são “verdadeiras” no sentido de quebuscam a verdade; menos ainda, dito de outro modo, que é o únicoa possuir tal verdade – porque nenhuma religião a “possui”. Estarem posse da verdade signica poder manipulá-la, trans ormando-aem algo di erente de si mesma. Não. Para que seja verdade, é precisoser livre de qualquer dominação, inacessível como “coisa em si” àlinguagem e ao conhecimento. Por isso é que, no caso de Jesus, eledisse “eu sou”, e isso basta e já esclarece muita coisa, embora muitagente ainda não entenda, especialmente quando continua a con undir verdade com doutrina ou sua experiência (religiosa) de Jesus, de Deus

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o de qualquer outra divindade que componha seu panteão pessoal.Compreender isso, mesmo que em um nível mais basilar

possível, é undamental tanto para o diálogo inter-religioso, comopara o testemunho de é num mundo pluralista. Se ainda quisermos,

por compulsão, alar em “verdadeira religião” é preciso recordar, aindaque de passagem, que na Bíblia não se assevera em lugar algum que ocristianismo é essa religião – por isso digo, num certo tom paradoxal,que ser seguidor do Cristo não me leva (não mais) a orçosamenteter que de ender o cristianismo, versão histórica, institucionalizada edepartamentalizada desse seguimento, como “a religião verdadeira”.Cito apenas dois exemplos das Escrituras Sagradas (na tradução AMensagem, de Eugene Peterson) e paro por aqui, por enquanto.

O primeiro vem do pro eta Amós, num mani esto de repúdiodivino contra a escolha de tantos em azer do teatro e da hipocrisia suamorada permanente em termos de religião, esquecendo o undamental,aquilo pelo que o Senhor anela no ser humano:

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dosseus congressos e convenções. Não me interessam seus projetosreligiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado dassuas estratégias para levantar undos, das suas táticas de relaçõespúblicas e criação da própria imagem. Não suporto mais suabarulhenta música de culto ao ego. Quando oi a última vez que vocês cantaram paramim? Alguém aí sabe o que eu quero? Euquero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – riosde integridade. É isso que eu quero. Isso étudo que eu quero(Am 5.21-24).

O segundo vem do apóstolo iago, que trata de algo undamentalem sua Carta – e, se lembramos bem do nalzinho do Sermão doMonte, também crucial para Jesus – que é a coerência entre o alar e o viver, mostrando que religião é menos o que se pro essa e se ritualiza emais o que e como se az, com a vida:

Não se enganem, ngindo-se de ouvintes, quando, na verdade,deixam a Palavra entrar por um ouvido e sair pelo outro.Coerência é tudo! Quem apenas ouve e nada az é como quemse olha no espelho, e, no minuto seguinte, já nem se lembra da

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própria aparência. Mas quem dá atenção à mensagem de Deus ea vive na pratica – a verdadeira liberdade – e nela se rma, semser mero ouvinte – essa pessoa vai longe e será abençoada porDeus. Qualquer um que se considere “religioso” e ala demaisestá se enganando. Esse tipo de religião é mera conversa ada.Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidemdos necessitados e desamparados que so rem e não entrem noesquema de corrupção do mundo sem Deus ( g 1.22-27).

N O

Para encerrar, a melhor palestra de CLADE V, em minhaopinião e de outros que, com grande entusiasmo e, ao mesmo tempo,postura crítica, a assistiram, oi a do teólogo católico espanhol JuanJosé amayo. Convidado para ser observador-participante do eventoe a azer uma leitura teológica, em uma das mesas do de CLADE V,sobre o papel desempenhado pela F L, ele nos lembrou uma vez maisda necessidade (aqui reiterada) de sermos mais modestos e menosdogmáticos em nosso modo de azer teologia, pois o dogma, comode endeu, encerra a possibilidade de pensar. Ressaltou isto quandoobservava que o papel e vocação da F L, ao que lhe parecia, está emser uma plata orma de diálogo, o que atualmente signica migrar dopensamento único ao pensamento plural, em acordo com os (novos,mas nem tanto) rumos da sociedade. Dessa orma, prosseguiu ele, asdi erenças podem ser encaradas como ormas de melhor compreendernossa é, e não motivos para distanciamento e/ou en retamento bélico.Uma das declarações de amayo neste sentido oi de que o diálogo– di erentemente do que se preconiza no modelo proselitista deevangelismo – “não existe para convencer ou converter o outro, maspara promover o encontro”.

Esta e outras declarações causaram espécie em alguns dosparticipantes – como se pode ler pela visão mais crítica (e bem

undamentada, diga-se de passagem) exposta por Juan Stam em seurelato no número 21 dePráxis Evangélica, com a qual não pretendoentrar em acordo ou desacordo aqui. Inspirado por algumas questõespostas à mesa por amayo, porém, termino este ensaio perguntando:

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que mais é preciso haver, então, para que o diálogo exista, e não outracoisa? Arrisco-me aqui a ser pragmático e idealista (se é que é possívela convivência entre os dois), beirando o reducionismo, com essas setepistas ou ideias soltas que o ereço abaixo. Segundo o que entendo, para

haver diálogo é preciso:(1) Aprender a separar o campo pessoal do campo das ideias.Por mais quimérico que isso pareça, especialmente se considerarmosa realidade, é essencial e deve ser perseguido, ainda que como ideal.

(2) Respeitar o direito alheio de dizer o que pensa, seja lá oque or esse pensar. Nesse sentido, vale outra vez lembrar a rase,apocri amente atribuída a Voltaire, mas que oi escrita por umaestudiosa de seu pensamento, Evelyn Beatrice Hall, emTe Friends ofVoltaire(1906, p. 199), que diz (re erindo-se a uma atitude de Voltaire): “Eu desaprovo o que você diz, mas de enderei até a morte o direito que você tem de dizer”.

(3) Resguardar a crítica à matéria do debate, e privilegiarargumentos que não redundem mais em con usão do queesclarecimento. Isso signica: ser honesto intelectualmente e criticaras ideias do outro levando em consideração o lugar a partir do qualelas oram produzidas (por mais distante que ele esteja de nós), e nãooutra instância qualquer, inventada por quem critica só para poder“ter argumento”.

(4) Aceitar que o outro pode permanecer convicto de seusideais, a despeito dos meus argumentos e posições. O diálogo existepelo diálogo e não para que o outro se converta à minha “religião”.Melhor palavra, nesse outro caso, seria proselitismo. Fui chamado aesse mundo para ser testemunha de Cristo e não para azer prosélitos.

(5) Ouvir atentamente, ler com cuidado e interpretar com esmeroe discernimento, para não colocar na ala do outro aquilo que ele nãodisse. Se já zemos (e continuamos azendo) isso com Deus e com aBíblia, que dirá com o próximo?!

(6) Estar aberto e disponível ao relacionamento, independente dadiscordância no campo das ideias. Di ícil, você pode estar pensando. Eé verdade. Só que Jesus não apenas oi um modelo nesse quesito, como

oi mais radical, quando disse que devemos amar aos nossos inimigos equem nos persegue – que dirá aqueles de quem apenas discordamos, não?

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(7) Entender que temos a tendência de tratar o di erente comoameaça; nós somos aqueles criam barreiras e re orçam as existentes.Não posso ( alo agora por mim) estar apto ao diálogo sem antesadmitir minhas inaptidões naturais para ele.

O verdadeiro diálogo é uma conversa que se dá entre aprendizesaudazes, porém, humildes o suciente para se admitir como tais. Issosignica que a conversa pode terminar, mas o assunto nunca se esgotaali. No diálogo, não há lugar para donos da verdade, e Senhores doabsoluto. Somente com o Senhor estão a Verdade e o Absoluto. Sobreisso, Rob Bell disse o seguinte:

Nossas palavras não são absolutas. Apenas Deus é absoluto,e Deus não tem a intenção de partilhar seu absolutismo comninguém, especialmente palavras que as pessoas usam para

alar sobre Ele. E isso é uma das coisas com a qual pessoastêm se debatido desde o princípio: Deus é maior que nossaspalavras, cérebros, cosmovisões e nossas imaginações (BELL,2005, p. 23).

Diálogo é lugar para quem, como Paulo, admite que “em parteconhecemos, e em parte pro etizamos”. Seres parciais, isso é o que

somos, em todos os sentidos, rumando para aquilo que é Per eito,Absoluto, quando conheceremos como também somos conhecidos. Atélá, precisamos (e muito) de Deus – quem dera se toda ciência admitisseisso. E precisar de Deus implica em não prescindir do outro. Não há vidasem relacionamento; não há diálogo sem a presença do outro. erminocom uma rase que meu amigo Antonio Carlos Barro disse certa vez:“Publicar seu pensamento é convidar o pensamento do outro”.

Minha oração é que rumemos, como F L, para novos desaos enovos diálogos.

(Jonathan Menezes)

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proli erado no nosso país. Como disse, parte de nossa missãoé não nos omitir perante as escolhas que o próprio Deus ez:pela vida, pela justiça, pelo amor, paz, alegria e esperança.Esperança de dias melhores na “casa da humanidade” e de uma

vida vindoura na eternidade, onde não haverá mais lágrima,choro ou dor.Mas, e até lá? Empunharemos a bandeira da esperança apenas

como um ideal vazio, ou a vivenciaremos de maneira concreta, naslutas pela paz, pela justiça, dignidade e igualdade entre os sereshumanos? Não basta alar de esperança, é preciso lutar para que ela semantenha viva.

Como arma Orlando Costas,O signo de esperança para o mundo que provê o Espírito nacomunidade eclesial se conrma no serviço libertador do povode Deus em avor da humanidade. Falar de esperança para umnovo mundo, sem participar em es orços concretos para azerdesse mundo um melhor lugar de vida, é negar essa mesmaesperança; com e eito, é ugir para uma abstração vaga dooutro mundo, que paralisa a orça trans ormadora da missãoescatológica do evangelho e termina sacralizando o status quo.A esperança para a redenção do mundo sem a ação redentorano mundo é uma blas êmia (COS AS, 1986, p. 80).

R

BELL, Rob.Velvet Elvis. Repainting the Christian Faith. Grand Rapids,Michigan: Zondervan, 2005.COS AS, Orlando E.Evangelización contextual. Fundamentos teologicosy pastorales. San Jose, Costa Rica: Sebila, 1986.FEYERABEND, Paul.Contra o método. São Paulo: Editora UNESP, 2007.GONZÁLEZ, Justo. Mapas para la historia futura de la Iglesia. Buenos Aires:Ediciones Kairos, 2001.

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O

1. Integrar as perspectivas teológicas de Reino, Mundo e Igreja àluz damissio Dei.

2. Buscar pistas, conceitos, di erenciações (na bíblia e teologia)que produzam e açam crescer em nós uma “consciência doreino”.

3. Reconhecer que o “não ser do mundo” de Jesus não signica serapartado do mundo, mas presente no mundo sem compartilharde seus modus operandi .

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O R DVou começar com uma tentativa pessoal de denição:O reino de

Deus é uma realidade presente-futura, inaugurada por Jesus Cristo emsuas palavras e ações, correspondente ao senhorio e propósito cósmico deDeus de reconciliação e restauração de toda a criação.

É claro que todas as tentativas de denição do reino, desde quebíblicas e teologicamente bem undamentadas, podem deni-lo de ato,porém sempre parcialmente. Isso, podemos notar em outras quatrotentativas de denição que serão transcritas abaixo, respectivamentedos autores René Padilla, Orlando Costas, Howard Snyder e RobinsonCavalcanti:

O Reino é o poder dinâmico de Deus que se torna visível pormeio de sinais concretos que mostram que Jesus é o Messias.É uma nova realidade que entrou no centro da história e quea eta a vida humana não somente moral e espiritualmente, mastambém ísica e psicologicamente, material e socialmente. Emantecipação da consumação escatológica do nal dos tempos,ele oi inaugurado na pessoa e obra de Jesus Cristo. Está ativo nomeio do povo, ainda que só possa ser percebido na perspectiva

da é (Lc 17.20-21). A consumação do propósito de Deus serealizará no uturo, mas aqui e agora é possível vislumbrar arealidade presente do Reino (PADILLA, 2005, p. 203).

Uma nova ordem de vida prometida por Jesus e pelos pro etas.(...) Envolve tanto a soberania de Deus como a antecipação nahistória dessa nova ordem e a esperança de sua consumaçãonal em glória. (...) Ao se con essar Jesus Cristo como Senhore Salvador, reconhece-se a ele como o reino em pessoa: quer

dizer, como salvador soberano da história. A submissão aoSenhor do Reino implica na incorporação ao seu corpo, que é aigreja (COS AS, 1986, p. 83).

É Jesus Cristo e, por meio da igreja, a reconciliação de todas ascoisas nele. Por enquanto, é a graça, a alegria, a saúde, a paz eo amor vistos em Jesus crescendo na terra. O reino é presentee também uturo, terreno e também celestial, escondido etambém em processo de mani estação. Ele é concreto e destemundo como o pó nos pés de Jesus ou o vento da Galiléia em

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seus cabelos; é oneroso como a crucicação; é celestial como oCristo ressurreto assentado à direita do Pai. (...) Suas verdades e valores são os vividos e ensinados por Jesus Cristo e conadosao corpo de seus seguidores. Mas esse reino só pode tornar-semani esto quando Jesus Cristo voltar à terra em poder e glória(SNYDER, 2004, p. 15).É Boa Nova de que estaremos na nova terra. Boa Nova de quea morte oi vencida. Boa Nova de que Satanás oi derrotado.Boa Nova de que o amor de Deus chegou até nós. Mas, tambéme também, Boa Nova para os cegos, os coxos e os aleijados epara os en ermos do corpo, da mente e da alma. Boa Nova paraos oprimidos pelos espíritos imundos – sejam eles espíritos

eios ou charmosos, em preto e branco ou coloridos – porqueesses demônios serão expulsos. Boa Nova para os cativos dossistemas injustos. Boa Nova para os pobres. Boa Nova porquea sua presença az uma di erença concreta, real, não abstrata,meta ísica, eterna, ectoplásmica (CAVALCAN Ii, 1997, p. 120).

Anal, o que é o Reino? Por que será que Jesus não o ereceu umconceito denitivo e claro sobre ele? Pelo contrário, a re erência que ele

az ao reino nas parábolas, por exemplo, é sempre alusiva, comparativaou meta órica: “Com que compararei o Reino de Deus?”, ele indagava.E daí por diante, diversas guras de linguagem apareceram: o grãode mostarda, ermento, um homem que saiu a semear, um grandebanquete, etc. E ele não o ez por uma razão simples:denir (pôr mem, por meio de palavras) o reino é o mesmo que conná-lo, matar opróprio reino. Assim, o que Jesus az é, em di erentes contextos e pormeio de imagens diversas, o erecer relances e sinais que nos remetem

ao reino, dando a seus ouvintes uma “consciência do reino”.Essa é nossa tare a aqui: buscar pistas, conceitos, di erenciações(na bíblia e teologia) que produzam e açam crescer em nós umadeterminada “consciência do reino”.

Um aspecto que se pode abstrair das citações eitas acima é que oreino é, em primeiro lugar, uma realidade tanto futura quanto já presente (Lc 17.20-21; Mc 1.15). O anúncio de Jesus é de que o reino está próximo,e mais, de que estáentrenós. A tradução “dentro de”, tem o inconvenientede limitar o reino à intimidade de cada um. O sentido aqui é que o reino

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estáao vosso alcance.O uturo invadiu o presente. A libertação não estádistante, mas começa a se realizar no presente. É a tensão criativa deOscar Cullmann entre o já e oainda não do reino. Sinais do reino já estãopresentes, mas ainda não plenamente, visto que “a consumação da nova

era se realizará no uturo” (PADILLA, 2005, p. 202).Em segundo lugar, ele desencadeia um ataque geral ao mal emtodas as suas manifestações. No tempo de Jesus, como hoje, o malassumia muitas ormas. Em Jesus, como disse certa vez Antônio CarlosBarro, não havia a tensão entreservir e salvar: o mesmo Jesus queservia, salvava, salvando enquanto servia, e servindo enquanto salvava(não há separação). O reino pode ser visto, segundo Paulo, como uma vida livre do domínio de todas as orças malignas que escravizam ahumanidade, que tem a sua consumação com a vinda denitiva deJesus (c . 1Co 15.24).

Em terceiro lugar, sua manifestação é eminentemente política.Ao denunciar todas as ormas de alienação, exploração e opressãodo sistema judaico, e declarar que coletores de impostos, leprosos,prostitutas e pobres são “lhos do reino”, Jesus estava atacando umcampo político (sem, no entanto, pretender estabelecer nenhuma

teocracia, ou gerar uma revolução política ou econômica, nem secandidatar a presidente).Em quarto lugar, é a expressão da autoridade de Deus sobre a

totalidade da vida.Enquanto não há a consumação dos séculos, porém,as orças contrárias continuam agindo e armando-se predominantes.Como vemos na Parábola do Joio (Mt 13.24-30), o bem e o malcoexistirão e crescerão juntos até a colheita. Leonardo Boff disse:“Mesmo a rejeição, a cruz e o pecado não são obstáculos insuperáveispara Deus. Mesmo os inimigos do Reino estão a serviço do Reino”(Apud. BOSCH, 2002, p. 56).

IDesde o redescobrimento da missão (integral) da igreja, teólogos

começaram a repensar a “condição” de ser igreja. O que é a igreja?Qual a sua razão de ser? Para quê e a quem ela serve? Qual sua relaçãocom o mundo? E mais do que isso: é a igreja quem traz o Reino? A

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igreja é o Reino? Se não, o que ela representa no Reino? Quando aigreja tem sucesso, essa notícia é boa? Para quem?

Nesse ínterim, renasce a consciência de que a igreja tem umadupla identidade indissociável: como acomunidade do Reino, e como

agente da Missio Dei. Logo, reetir sobre a igreja era consequêncianatural de se pensar as categorias “Reino” e “Missão” de Deus.Não renegando essa orma de pensar, pode-se dizer que a

eclesiologia(doutrina da igreja) tornou-se um assunto parcialmenteausente das reexões sobre missão. Isto, pois em grande parte o conceitode igreja esteve atrelado com o conceito de reino e de missão – o quenão é totalmente ruim, visto que essa associação nasce precisamenteda tentativa de corrigir um erro histórico, que pode ser visto comouma supressão da missão pela identicação direta da igreja com oreino. O lado negativo, se assim se pode dizer, está em ter se dedicadotão poucas páginas ou tempo de reexão à igreja em si. Dentre essasraras inserções entre teólogos da chamada missão integral, está a que

oi eita por Orlando Costas, que veremos mais adiante.Em todo caso, é inegável que a igreja precisa estar atrelada ao

reino (não sendo igual a ele). E isso por algumas razões básicas que

podem ser nominadas:(A) No N a igreja é concebida como acomunidade do reino.Ela não traz o reino, mas é uma expressão visível da obra do reinoinaugurada por Jesus, que o reconhece como Senhor (kyrios)do cosmos ,e se az testemunha do caráter e virtudes do reino. Ele chamou homense mulheres a deixar tudo e segui-lo (Lc 9.57-62; 14.25-33; Mt 10.34-38). Àqueles(as) que o seguiram, ele chamou “pequenino rebanho” aquem Deus quer dar o Reino (Mt 26.31). Jesus mesmo re ere-se a suacomunidade messiânica como “minha igreja” (Mt 16.18).

(B) Essa igreja, porém, não deve ser equiparada ao reino. Ela é acomunidade do reino, mas nunca o reino em si. “O reino é reinado deDeus, a igreja é uma sociedade de pessoas”, disse George Ladd. Logo,embora a igreja esteja intimamente relacionada com o reino, à medidaque é ela quem o anuncia – embora os sinais do reino se estendampara além desse anúncio por parte da igreja – o reino será sempreoutro, quando relacionado à noiva de Cristo.

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(C) A igreja é oagente do reino de Deus,pela ação do Espírito. Oreino de Deus, que irrompeu na história em Jesus Cristo, não continuapor causa da igreja, mas por causa da energia do Espírito Santo quemobiliza a igreja em ação e missão (Rm 15.19; 1Co 2.4-5; 2Co 3.6).

Portanto, segundo Snyder (2004, p. 13), “a igreja em relação ao reino nãoé uma eventualidade, é um ato. Mais que um símbolo (ou sinal), é umagente”. Ela é, segundo Padilla (2005, p. 208), “a expressão do Senhoriouniversal de Jesus Cristo, a mani estação concreta do Reino de Deus”.

MAlém do que já oi dito acima, (D) a igreja étestemunha do reino

no mundo. O mundo é o lugar por excelência damissio Dei.“PorqueDeusamouo mundo de tal maneira...”. O mundo é objeto de seu amor,a quem ele deseja redimir, e por isso nos convoca, como igreja, para serpartícipes diretos dessa reconciliação Dele com o mundo o qual criou.

Contudo, há pelo menos três visões pelas quais se pode vermani esto o equívoco de uma parte dessa igreja ao lidar com o mundo:

– O mundo jaz no maligno.E não adianta azer nada por ele; éhabitação dos pecadores, lugar de perdição, sinônimo de pecado.– “Mundo” é o planeta terra, que Deus teria deixado sob gerênciade Satanás, salvo algumas “ilhas”, as igrejas, onde os crentes podemencontrar abrigo temporário.

– Visão da igreja que, segundo Robinson Cavalcanti (1997), “perdeuo reino”: o reino está dentro da igreja local ou denominação; oreino se resume a essa “ilha de salvos”. Para raseando este autor,

terá razão certo pensador quando diz que o reino poderá vir pormeio da igreja, sem ela ou, até, contra ela?

Há, porém, outras maneiras de enxergar a questão. Na visão deJoão, o mundo é o “cosmos” (grego), isto é, a presente ordem de coisas,sistemas inventados pelo ser humano. O mundo são pessoas, estadotemporal, modelos antibíblicos (Rm 5.12); esse é o mundo que “jaz nomaligno”, mas que não corresponde a toda criação de Deus. O mundotambém az parte da criação, que geme e suporta as dores de parto

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até hoje (Rm 8.18-25). E se ele az parte, como haveria de ser de todoabominável? Qual é o sentido de termos de viver nesse mundo, já queteríamos, segundo interpretam alguns, de nos apartar dele?

A igreja (nós), portanto, é embaixadora de Jesus Cristo no

“ministério da reconciliação” com o mundo (1Co 5.18-21). Ela é o “salda terra” e a “luz do mundo” (Mt 5.13-14); através dela os sinais doreino se azem visíveis ao mundo. O reino não se resume à comunidade,mas exige vida comunitária. Sem a comunidade não é possível existiruma representação viva do Evangelho, para raseando Costas. É nacomunidade em missão que o mundo reconhecerá a Jesus Cristo, esaberá que oi ele quem nos enviou. “Rogo também por aqueles que

crerão em mim, por meio da mensagem deles, para que todos sejamum, Pai, como tu estás em mim e eu em ti. Que eles também estejamem nós, para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo 17.20-21).

Jesus em sua oração sacerdotal (acima citada em parte) ala domundo em termos dialéticos: eu não estou mais no mundo, mas elesestão; então alo para que o mundo ouça, e aqueles que aqui cam tenhamcon orto e alegria em mim. E nos convoca para aquilo que podemoschamar deespiritualidade dinâmica: estamos no mundo e participamosdele, sem a ele pertencer. Essa é nossa luta, viver na tensão, e ter de lidarcom as diculdades próprias dessa vida. É ter de se perguntar: anal,que inuencia mais a quem? Nós ao mundo ou o contrário?

E não pensem que isso se trata de uma visão romântica, poisnão é. Porque viver e proclamar o reino de Deus no mundo implicatambém ter de viver em conito com ele (Jo 15.18-19). E isso acontecequando, como disse Jesus, entendemos que “não somos do mundo”,assim como ele também não é. Bem, mas se eu não sou do mundo,sou de onde, de Marte? Parece uma estranha sentença, e muita gentecon unde isso constantemente. Não ser “do mundo” aqui, não querdizer viver ora ou apartado dele, numa ilha de supostos santos, e simsignica não viver con orme os “termos do mundo”, segundo as muitasmaneiras dele gerir a existência e seus recursos.

Nesse sentido é que entramos em conito natural. A lógicaé simples: se vivo nos termos do mundo, o mundo me amará como

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um dos seus. Se deixo, porém, de viver em seus termos, é provávelque seja odiado por ele, visto que se trata de um “mundo sem Deus”.E muitas vezes quando nosso amor – o que signica muitas vezescorreção e oposição – ao mundo é rejeitado, e somos perseguidos,

ultrajados, o endidos, e assim por diante, a postura dos cristãos temse assemelhado com a dos personagens imão e Pumba do lme ORei Leão: “Se o mundo vira as costas pra você, você vira as costas parao mundo”. E isso, aproveitando a ideia do lme, poderia ser chamadode “EspiritualidadeHakuna Matata”, quando viramos as costas para omundo, seja porque ele tenha se virado contra nós, seja por uma alsaideia de santidade separada da humanidade.

Não se trata, por isso, de romantismo inconsciente, pois o próprioJesus tratou desse assunto com realismo diante de seus discípulos. Eledisse: “Não se admirem se o mundo vos odeia, porque antes de vocêsele odiou a mim”. E esse é um dos paradoxos com o qual temos de lidarna vida, e de igual modo na missão: em algumas ocasiões nosso amor ededicação às pessoas poderá ter, como resultado, o ódio ao invés do amor.

E é por isso que o consolo de Jesus está no ato dele mesmo ter vencido o mundo, não pelas vias do mundo nem con orme suas regras,mas na orça que Deus supre, inaugurando desse modo o reino de seuamor. “Não os deixarei ór ãos”, ele promete, ao dizer a seus discípulosque enviaria outro amigo, o consolador, parceiro indispensável damissão, e por m diz:

Voltarei para vocês. Dentro de pouco tempo o mundo nãome verá mais; vocês, porém, me verão. Porque eu vivo, vocêstambém viverão. Naquele dia compreenderão que estou em

meu Pai, vocês em mim, e eu em vocês. Quem tem os meusmandamentos e lhes obedece, esse é o que me ama. Aquele queme ama será amado por meu Pai, e eu também o amarei e merevelarei a ele (Jo 14.18-21).

Dessa orma a missão, como vista desde a primeira unidade,especialmente através de David Bosch, é o “sim” de Deus ao mundo (nosentido de que salvação tem a ver com o que acontece com as pessoasnesse mundo), mas também é o “não” de Deus ao mundo (comoexpressão de nossa oposição e conito com os valores do mundo).

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coletivos, é que ele oi perseguido, torturado e morto ora dos portões,num ato coletivo e público de escárnio. A cruz é o símbolo desse abusodo mundo em relação a Jesus. A morte oi uma cerimônia pública; aressurreição, por sua vez, não. Ela não oi para causar estrondo, nem

provocar histeria ou catarse coletivas; ela se mani estou no secretoapenas àqueles/as que, pela é e pelo testemunho prático, deveriamanunciar ao mundo que Ele ressurgiu, que a vida vence a morte, e queaqui não é o m do “Fim”.

Por isso a igreja, que se chama de Jesus Cristo, deve viver tambémnessa dinâmica da dispersão e da inserção no mundo, de modo que,mesmo quando experimenta a reclusão, esta precisa ser uma reclusãoaberta, convidativa, solidária, amorosa, calorosa, demasiadamentehumana. Essa é a igreja que vive a anunciar a presença de Deus na vidahumana e terrena, ora dos acampamentos, habitando em meio docaos do mundo, não para dissolvê-lo, mas para con erir um sentido àexistência que há nele; não para julgá-lo, mas para reconciliar-se com ele.O convite é, portanto, para que saiamos do acampamento, onde a açãoe Verbo de Deus estão, sem reivindicar privilégios, mas partilhando doinsulto, do ultraje e do abuso de Jesus (Hb 12.13), tendo o mundo como

arena, mas não como cidade permanente. E, enquanto buscamos a quea de vir, abraçamos a vida na que aqui vivemos na esperança de queaquela eterna cidade, possa ser vista cada vez mais no meio desta, ondea vida acontece, onde somos vocacionados a ser gente.

C

Vimos nessa unidade que, não obstante o isolamento históricoda igreja rente ao mundo que a cerca, e os dualismos por muito tempopropagados de modo prático em seu seio, e ora dele, não é possívelcumprir a missão em sua integralidade sem uma articulação corretaentre esses três elementos: Reino, Igreja e Mundo. Por isso, boa partede nossos es orços aqui gravitaram em torno de uma revisão do quecada um signica. Reino é a totalidade do governo de Deus, que nãose resume a igreja, mas que a engloba, junto com o mundo. O Senhor

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é Senhor de todo o universo e, como tal, no convoca a sermos partede um povo (o seu povo, a Igreja), que não é idêntico ao reino, masque o anuncia por palavras e obras bem no meio desse lugar ondeDeus no colocou, que é mais do que um lugar, são pessoas. Dessarte,

nosso chamado ao mundo é um chamado para as pessoas, visandoreconciliar o mundo com Deus, e não a sua condenação. O reino,assim, é a boa-nova, que Jesus veio anunciar, e a qual nos convida acontinuar anunciando ao mundo.

R

BOSCH, David.Missão Transformadora: mudanças de paradigma nateologia da missão. São Leopoldo: Sinodal/ES , 2002.CAVALCAN I, Robinson.Utopia Possível: em busca de um cristianismointegral. Viçosa: Ultimato, 1997.COS AS, Orlando.Evangelización contextual: undamentos teológicos ypastorales. San Jose: Ed. Sebila, 1986.

PADILLA, René.Missão Integral. Ensaios sobre o Reino e a Igreja. 2ª ed.Londrina: Descoberta, 2005.SNYDER, Howard.A Comunidade do Rei. Uma reexão sobre a Igreja queDeus quer. São Paulo: ABU, 2004.

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O

1. Compreender o que constitui o ser ecumênico e omovimento ecumênico em geral;

2. Identicar as possíveis pontes entre o movimentoecumênico e o da missão integral;

3. Reetir sobre o papel da igreja na discussão eprática ecumênicas no tempo atual.

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utópico, mas se trata da utopia possível do reino, que vimos sendo cumprida,por exemplo, entre os cristãos primitivos (ver At 2.41-4.36), que decidiram viver como uma grande amília, compartilhando entre si o que tinham, demodo que ninguém sentia alta de nada; nutrindo um mesmo modo de

pensar e sentir, adorando juntos ao único Deus, alimentados pelo mesmoEspírito, sob os olhares do mesmo Cristo que os havia salvado da condenaçãona cruz, e renovado suas esperanças ao terceiro dia.

Contudo, Júlio de Santa Ana considera que nem sempre asmotivações para a busca pela unidade são orientadas por e para ummesmo oco. Uns, desejam e trabalham pela unidade, visando a paz, aedicação mútua e o testemunho de amor a Deus e aos outros rentea um mundo es acelado pelo pecado, individualismo e a segregaçãoem muitas áreas; já outros, visam interesses particulares, se unem aoutros para destruir a terceiros, ou para ortalecer-se politicamentee institucionalmente. Há que se perguntar, hoje, se é possível umecumenismo que seja genuíno não só entre pessoas, mas tambémentre instituições? rata-se de uma unidade com exclusões ou semexclusões? De umecumenismo de cúpula ou umecumenismo popular ?

Como diz Santa Ana, responder a estas e outras perguntas

implica em denir os rumos do movimento ecumênico, que aquinão nos cabe. E, “embora haja acordo com respeito à necessidade deplasmar a unidade entre os cristãos, deve-se também reconhecer queesse acordo não existe em relação ao modo, à maneira e às nalidadesdesse processo em direção à unidade” (SAN A ANA, 1987, p. 15).

Diante desse problema, cabe a pergunta:o que é ecumenismo? Vemda palavra gregaoikos,que signica “lugar em que se vive”. Já a palavracorrespondente oikoumene, literalmente quer dizer “todo o mundohabitado”. Pressupõe um lugar ou espaço em que há possibilidadede abrigo e acolhimento a todos. O movimento ecumênico nasceassentado na ideia de catolicidade (universalidade) e unidade. SantaAna de ende a tese de que essa é uma tare a – a de edicar comunidadesem que haja abrigo e lugar a todos os que queiram – de todo o povo deDeus, e não de uma classe sacerdotal ou especializada, ou restrita aoschamados “órgãos ecumênicos”.

Ainda seguindo a análise eita por Santa Ana, o termo“ecumênico”, antes de assumir essa conotação religiosa, aparece com

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uma abrangência maior, contemplando outras dimensões da existênciahumana, que tomaram orma a partir do desejo comum que pessoasesclarecidas e de bem nutriram pela paz na Europa re ormada econtrarre ormada, que en rentava di íceis guerras religiosas e disputas

políticas que sacudiram os povos ocidentais após as trans ormaçõesocorridas a partir do século XVI.Segundo Santa Ana (1987, p. 22-23), o sentido da procura da

unidade do povo de Deus precisa levar em contaquatro dimensões undamentais da existência humana, quais sejam:

a) Dimensão geográca – a realidade espacial que rodeia o serhumano e os di erentes povos do planeta.

b) Dimensão cultural – diversas culturas, diversas maneiras deser do “homem-no-mundo”, que expressam a riqueza do humano eprecisam ser respeitadas em sua diversidade, no encontro intercultural.“O ser ecumênico é o que vive nesta disposição de abertura, que éexível e livre na vivência deste encontro”, arma Santa Ana.

c)Dimensão política – expressa na identidade social, nas tomadasde consciência e lutas particulares de um povo, que precisam serlevadas em conta.

d) Dimensão religiosa – ressaltando a importância de unidadeentre os cristãos, que ormam a comunidade universal do povo de Deus,cujo sinal é a igreja, isto é, todos os que oram batizados em Jesus Cristoe que unidos estão a Ele e a seu corpo pelo Espírito, não havendo mais judeu nem grego, escravo ou livre, branco ou negro, homem ou mulher:todos oram eitos iguais em Jesus Cristo (c . Gl 3.27-28).

Desse modo, pode ser considerado(a) ecumênico “todo cristãoou cristã que, tendo uma liação con essional, participa desse es orçomaior pela unidade dos cristãos” (LONGUINI NE O, 2002, p. 45).

“P A L T ”

alvez essa seja uma boa pará rase para o contexto latino-americano do que disse Jesus em sua oração sacerdotal: “a m de quetodos sejam um... para que o mundo creia que tu me enviaste” (Jo

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17.21). A alta de unidade entre os cristãos é, dentre outras coisas,aquilo que mais depõe contra o testemunho acerca de Cristo no mundo.Santa Ana (1987, p. 256) de ende que “o ecumenismo se caracteriza justamente por esta avidez de unidade, primeiramente na igreja, para

que o mundo creia”. Nesses termos, a pergunta eita por Santa Ana é:como traduzir essa unidade na prática para que o mundo dê crédito àboa-nova de Jesus Cristo?

Do lado católico, essa abertura ecumênica na América Latina se dáapós as resoluções do Concílio Vaticano II, que propiciou o surgimentodas CEBs (Comunidades Eclesiais de Base), que se destacam nãoapenas pela exibilização dos meios eclesiais para atender as camadaspopulares e pobres e a uma maior participação dos chamados leigos,como também pela abertura a cristãos de outras con essionalidadesengajados nessa mesma luta por libertação em nosso continente.

A unidade, de acordo com Santa Ana (1987, p. 265), está emunção do reino: “quando as igrejas se comprometem claramente

em avor dele, a causa da unidade cristã é beneciada. A reunião doscristãos separados não é um m em si, mas um passo necessário paramostrar ao mundo a proximidade de Deus, de sua justiça e da nova

realidade na qual nos quer introduzir”.Por outro lado, na opinião de Luiz Longuini Neto (2002), asprimeiras iniciativas e etivas de unidade do povo cristão na AméricaLatina, nascem em seio protestante, mais precisamente, com a criaçãodo Conselho Latino Americano de Igrejas– doravante CLAI – em1978. O surgimento do CLAI é resultante de uma série de iniciativase organizações que o precederam, como o Conselho Mundial deIgrejas (CMI), em âmbito macro, e o trabalho de organizaçõescomo a Comissão Evangélica Latino-Americana de Educação Cristã(Cedalec), e a Junta de Igreja e Sociedade na América Latina (Isal), daqual zeram parte protestantes como Rubem Alves, Richard Shaull e opróprio Júlio de Santa Ana, e da qual proveio a centelha da eologia daLibertação, desenvolvida posteriormente em âmbito católico.

Segundo Zwínglio M. Dias (Apud. LONGUINI NE O, 2002, p.41), o CLAI nasce com uma dupla motivação: interna – intereclesiásticae intrassistêmica (em virtude de uma visão acrítica e ingênua darealidade, de uma parcela de cristãos) – e externa, advinda da visão de

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cristãos que viam a urgência da necessidade de responder aos problemassociais que já se acentuavam na América Latina, alimentado, por sua vez, uma tendência antissistêmica e anti-institucional.

Assim, os cristãos evangélicos passam a ter de conviver com

uma tensão: entre optar por um ecumenismo institucional e umecumenismo de movimentos. Há aqueles que militam no movimentoecumênico apenas em âmbito institucional (participando de eventos,campanhas, reuniões de cunho mais coletivo e político); outros, nãocreem nessa orma de ecumenismo, mas num ecumenismo de pessoas,pois acreditam que as propostas ecumênicas, em geral, envolvemmecanismos nocivos de poder, sendo, portanto, alidas em termos decontribuição para a utopia do reino (um evangelho “de todos” e “para

todos”). Para eles, dentre os quais incluo a mim mesmo, sim, é possívelhaver cobeligerância entre cristãos de di erentes con essionalidadesem projetos que envolvem o bem comum. Encontramos irmãos(ãs)comprometidos(as) com o reino em muitos lugares e ambientesdi erentes do nosso, inclusive entre católicos. Contudo, precisamos

ocar nossa vida na cruz. É ali onde se dão muitos desses encontros nãoconvencionais e não institucionais. Portanto,temos nossa identidade,cujo eixo central é Cristo, em torno do qual deve se dar nossa comunhão.1

Não se deve negar os conitos ou as “tensões”, posto que elassão inevitáveis. David Bosch considera que manter missão e unidade, verdade e unidade pressupõe tensão,não a uni ormidade. Divergênciasnão são elementos que se deve rechaçar, mas “parte do es orço daigreja para tornar-se o que Deus quer que ela seja”, completa Bosch.“O ecumenismo só é possível onde as pessoas aceitam umas às outrasa despeito de di erenças. Nossa meta não é uma comunhão isenta deconito, mas uma comunhão caracterizada por unidade na diversidadereconciliada” (BOSCH, 2002, p. 555).

Em contrapartida, mesmo considerando todas as experiênciasecumênicas produzidas na base, entre as pessoas, Santa Ana armaque há um perigo que precisa ser evitado a todo custo: “que se crieuma distância, um osso, entre o ecumenismo de cúpula e o que o povopratica. No undo, um inspira o outro, ao mesmo tempo em que senutrem mutuamente. Ambos são chamados a se complementarem, a1 Para raseando aqui palavras do Pr. Ricardo Barbosa de Souza, registradas por mim em Mesa-redonda realizada no Fórum Jovem de Missão Integral, em Itu, São Paulo, em 09 de Junho de 2007.

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se interpelarem mutuamente, a aprenderem conjuntamente” (SAN AANA, 1987, p. 296).

Ao alar de evangélicos na América Latina, alamos não somentede uma, mas de múltiplas expressões que oram se delineandohistoricamente. Com e eito, alamos de posições díspares em relaçãoao ecumenismo, entre protestantes mais conservadores, progressistas,

undamentalistas, pentecostais, e assim por diante. Poderíamosidenticar, como o az muito bem Júlio de Santa Ana na obraEcumenismoe Libertação, tanto as convergências como as divergências encontradasem todas essas vertentes evangélicas com o movimento ecumênico.Quero, porém, que atentemos para o ato de que, de maneira geral, temos

alhado no quesito de valorização, apoio e engajamento no ecumenismo

em sua organicidade. É um dado genérico, que inclui undamentalistas,evangelicais e liberais, assim como históricos e pentecostais, nesse vastocampo chamado “evangélico”.

Para começo de conversa, mal conseguimos estabelecer pontesde diálogo entre nós mesmos, menos ainda com os católicos, e quedirá com os adeptos de outras religiões. Existem exceções, é claro. Hámuitos movimentos paraeclesiásticos no Brasil que vivenciam uma éecumênica, que são abertos ao diálogo – e aos riscos inerentes ao diálogo

– ao respeito à diversidade, à cobeligerância em prol do bem comum edo reino de Deus. Anal, qual seria a igreja que realmente milita, que deato continua sendo sinal e agente do reino, contra a qual as portas do

in erno não prevalecerão, senão aigreja invisível,essa que não tem placa,templo, denominação e nem CNPJ, mas apenas pessoas de carne e osso,que, movidas pelo Espírito, se dispõem a azer missão em unidade?

Nesse sentido, precisamos avançar no aprendizado uns com osoutros, isto é, não en atizando demasiadamente aquilo que nos divide,mas o que nos une em meio às di erenças; não as alhas somente, mas ocontributo especial que cada um pode o erecer ao outro na caminhada,gerando trocas e edicação mútuas entre diversas acetas do corpo deCristo, como os evangélicos pentecostais e os “históricos”. Levemosem conta as palavras de Antônio Carlos Barro:

Antes de aventurar-se nesse diálogo é necessário que os cristãosdessas várias correntes trilhem a estrada da humildade. Os

pentecostais têm orgulho da maneira que são e como têm crescidono Brasil. (...) Os cristãos históricos também são orgulhosos,

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especialmente da herança histórica a que representam. (...)Quando os protestantes históricos irão aprender a combinarteologia com ação? A ação apaixonada pelo evangelho pode seraprendida com os pentecostais. Como a ação pode ser guiadae sustentada por um correto entendimento bíblico-teológico?Isso pode ser aprendido com os protestantes históricos. OPacto de Lausanne incentiva essa unidade: “Armamos queé propósito de Deus haver na igreja uma unidade visível depensamento quanto à verdade” (BARRO, 2005, p. 269-270).

Em muitas de suas relações “ecumênicas”, percebo que tantocatólicos como evangélicos interessam-se pela busca da unidade visando o proselitismo ou a cooptação do outro para sua orma de

crença. Isso tem a ver com a tendência das pessoas em ver expressõesde originalidade e a salvação somente em seu terreno religioso, oque quase sempre corresponde a uma tentativa de monopolizar oEspírito Santo, que, em contrapartida, é irreverente, livre e age comliberdade soprando onde, em quem e como quer. Portanto, há que sequestionar a sinceridade e o oco de nossas motivações para que odiálogo ecumênico não venha a ser mascarado por intenções escusasao Evangelho e ao reino.

Precisamos aprender a assumir os riscos do diálogo, pormaiores que sejam. A timidez e resignação, por outro lado, nadacontribuem para o cumprimento dos propósitos missionários deDeus de reconciliação de todos os seres humanos. Como reitera SantaAna (1987, p. 289), “é o lugar de lembrar que a causa do Reino e acredibilidade do anúncio do Evangelho apelam a que se assumam osriscos para serem éis ao legado recebido de Jesus Cristo”. A unidadesempre precede a manutenção de nossas divisões.

Na visão de Juan L. Segundo:Somente se pode conseguir ou manter a unidade interna de umaIgreja cristã hoje em dia, minimizando, como mostrava Cone,as oposições históricas radicais que separam seus membros. Emoutras palavras, silenciando a cor, a classe social, a ideologiapolítica, a situação nacional no mercado internacional etc.E, por outro lado, en atizando os valores que se supõe seremcomuns a todos os membros de tal Igreja. Numa palavra, aIgreja tem que pagar, para sua unidade, o preço de declarar as

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matizes do so rimento, da violência, da injustiça, da onte e damorte menos decisivas do que as órmulas ou os ritos religiosos(SEGUNDO, 1978, p. 49).

C

Essa unidade se iniciou com a constatação de que o ecumenismo éum tema espinhoso para a igreja evangélica, em unção, sobretudo, dospreconceitos existentes e com um problema de identidade, e termina como sentimento de que muito ainda precisa ser eito para que esse quadromude, a partir da realidade de cada cristão e de cada igreja local. Nessesentido, estudando o ecumenismo na América Latina, constatamos quea grande di erença acontece nas “bases”, isto é, no meio das relaçõeshumanas entre as pessoas, que é, no undo, o grande “cheque-mate” doecumenismo – mais do que as iniciativas institucionais – num mundono qual se reavivam as intolerâncias e se reativa o individualismo e a altade solidariedade em muitos contextos. Ser ecumênico, nesse sentido, élutar por um mundo melhor, buscar o promover o ser humano em todas

as suas dimensões. Eis uma aceta, portanto, em que o ecumenismo seencaixa bem com a integralidade da missão.Após tantas tensões históricas, ainda será possível ver cristãos

com uma visão teológico-doutrinária uni orme? Sinceramente, não.Contudo, as coisas que os separam (doutrina, moral, usos e costumes,etc.) jamais deveriam suprimir aquelas que, biblicamente, os une: umsó Corpo, Espírito, Batismo, uma só Esperança, Fé, Um só Deus e Pai de

odos (E 4.6).O m maior do ecumenismo consiste em edicar e validar otestemunho cristão no mundo. Como observou certa vez um teólogo

luterano, se atentássemos à unidade nas coisas essenciais, à liberdade nasnão essenciais, e o amor em todas as coisas, nossas relações talvez nãoestivessem na melhor situação possível, mas com certeza estariam numamelhor situação. E, acrescento, a igreja não cairia no descrédito em que,in elizmente, tem caído nos últimos tempos perante a sociedade civil.

Uma das barreiras ao ecumenismo é esse nosso apego descabidoàs coisas e às instituições, deixando as pessoas em segundo plano. Na

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A “M ”Meu oco inicial nessa unidade é pensar na motivação da missão (o

que diretamente a atrela à espiritualidade), perguntando: que orça é essaque nos determina a ir ou a permanecer, a agir ou a não agir, a alar ou apermanecer calados? Como reconhecemos e/ou discernimos esta orçaou esta voz que nos impele a algo? Quem é, anal, o “sujeito” da missão?

Há uma canção cristã contemporânea – “Eu tenho um chamado”,da banda 4X4 – que expressa bem o que gostaria de tratar aqui. No re rãodesta canção, diz-se o seguinte: “Eu tenho um chamado, jamais vou mecalar/ Eu tenho um chamado, o evangelho anunciar/ Eu ui escolhidono ventre da minha mãe/ Eu sei que Deus não abre mão de mim não...”.

Sei que muito provavelmente você já deve ter escutado e/ou cantado estamúsica e até goste dela, por isso serei muito pontual aqui. Minha intençãoé analisar sua letra aqui do ponto de vista missiológico, sem a pretensãode julgar a “espiritualidade” ou a sinceridade de quem a produziu – nomáximo, revelar algumas idiossincrasias que apontam para o espírito deuma época ou mesmo uma tendência no mundo evangélico.

Dito isto, o primeiro aspecto notável nessa parte da canção – e que jánão é mais nenhuma novidade ou absurdo – é a quantidade de vezes emque se repete o pronome pessoal “eu”. Desde a primeira parte da canção,tudo já indicava que o oco reside sobre esse “eu”: o vento que sopra “sobremim”, os problemas que tentam “me abater” e, por m, como contrapostomotivacional, vem a lembrança de que o “Grande EU SOU me enviou”.Daria uma análise até interessante se entrássemos no mérito da junção de“EU-SOU-me”, como uma espécie de escorregão da linguagem, mas istotalvez soasse a alguns como juízo de valor, e esse não é o alvo aqui.

Chama atenção, num primeiro plano, esse lugar-comum da atitudecristã de vencer os problemas pessoais, quase como que uma obrigaçãomoral. Nesse viés, o crente deve ser vitorioso por natureza. Se não vence,é vencido: pelo Diabo, pelas tentações, pelo mundo, por si mesmo.No entanto, Paulo por tantas vezes nos ensinou em suas cartas que aperseverança e esperança em meio às tribulações da vida azem parte dolugar próprio do cristão – que não se rende por saber que seu Senhor nãose cansa – mas isso não o az melhor nem mais especial que ninguém,nem sempre “vitorioso” em tudo – precisamos, inclusive, rever o sentido

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da expressão paulina, muito repetida nas igrejas, de que “somos mais que vencedores”. No entanto, parece-me que a mensagem subentendida aquié a de que “eu sou especial” porque “Deus me escolheu” para realizar umamissão especial no mundo que é a de ir e anunciar o evangelho – ên ase da

Grande Comissão de Marcos –, o que revela não apenas que, para o autor,missão é “pregar a Palavra”, mas um segundo importante aspecto, que é anoção quase militar de que o chamado é meu, a missão é minha, anal, uiescolhido no ventre da minha mãe e, portanto, sou indispensável, pois seique “Deus não abre mão de mim não”.

Sério mesmo? Deus não abre mão de mim? Não aparenta ser issoum convencimento desnecessário ou mesmo um uso inapropriado dochamado ou da vocação como meio de armação de uma admiraçãodivina autoalegada e autogerada? Quem é o ser humano para armar que“Deus não abre mão” dele/a? Parte do espírito desta canção lembra-me deduas coisas lamentáveis: primeiro, que o individualismo denitivamentetomou conta de nossos cânticos, de modo que pouco lugar resta para acomunidade, a realidade ou a cruz; segundo, que se vê reetida não apenasna teologia de nossos cânticos, mas também em nossos atos litúrgicosem geral, o que se poderia chamar de “síndrome dos lhos de Deus”, a

que nem Jesus, o Filho unigênito, cedeu. Ele não se jogou do pináculo,nem trans ormou pedras em pão ou aceitou todos os domínios da terrasimplesmente porque o Diabo por três vezes o provocou dizendo “se éso lho de Deus”, aça isso ou aquilo (c . Mt 4.1-11). Não era necessárioduvidar ou rearmar sua identidade com atos ou discursos portentosos,pois para ele bastava a conrmação da voz dos céus que em seu batismono Jordão disse: “ u és o meu lho amado, em quem eu me comprazo”(Mt 3.17). Quem é, é, e não precisa car repetindo isso como um mantraa m de que avulte uma legitimidade seja lá qual or.O equívoco de pensar que a missão é minha, em si, evoca tambémoutros equívocos como, por exemplo, o de propagar a ideia de ministérioscomo algo de possessão pessoal (o “meu ministério”), ou mesmo dearmar coisas como “a minha igreja” ou a “igreja do pastor ou do bispo

ulano de tal”. Isso se tornou tão comum que poucos percebem que nãose trata apenas de uma questão de linguagem, mas de uma questão depoder, ou melhor, de deslocamento de poderes e da ausência completa dobom senso bíblico. A graça da espiritualidade é que ela implica no exame

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constante de si mesmo e suas motivações e na penetração no que há demais pro undo e, portanto, quase sempre oculto no ser – como a ânsiapor poder, muito evidente nessas alegações acima re eridas, embora nemsempre para todo mundo, sobretudo para a “massa” dos éis.

Por isso é reducionista a visão que associa espiritualidade comper ormances, o que representa na verdade o seu esvaziamento edenota sua supercialidade. Esvaziamos a espiritualidade quando

ocamos demais nas supostas demonstrações e desviamos o olhar sobreo coração. Jesus oi quem desmascarou essemise en scène religiosoquando – em resposta à acusação eita pelos ariseus aos discípulos,dizendo que eles transgrediam a tradição dos anciãos, por não lavaremas mãos quando comiam – ele disse: “Ouvi e entendei: não é o queentra pela boca o que contamina o homem, mas o que sai da boca,isto, sim, contamina o homem”, uma vez que “do coração procedem osmaus desígnios” (Mt 15.2,11,19).

Por isso penso que estas práticas deveriam compor a ormação delíderes, pastores e missionários cristãos como sendo essenciais: o examedo coração e o autoconhecimento. Isso quer dizer que, por um lado,nos equivocamos e pecamos porque desconhecemos a nós mesmos. O

tempo e as variadas situações vão revelando o ser e a disposição de cadapessoa, escondidos muitas vezes por trás de uma redoma muito rágil deproteção. Não me esqueço da pergunta central do lmeCrash, no limite:“Você acha que se conhece?”. No que a dor, o apuro, a pressão, a doença,a perda, o poder, o sexo, o dinheiro, o moralismo, a violência, a raiva,o descontrole, e as paixões como um todo podem nos trans ormar?Não parece ser à toa que a máxima de Friedrich Nietzsche no pre ácio àGenealogia da Moral continua sendo útil, mesmo para ns teológicos ouespecialmente para eles. Dizia ele que “nós, homens do conhecimento,não nos conhecemos; de nós mesmos somos desconhecidos. Nunca nosprocuramos: como poderia acontecer que um dia nos encontrássemos?”(NIE ZSCHE, 2007, p. 7).

Por esta razão é que me recuso a reduzir a mim e aos outros arótulos áceis, baratos e que desmancham no ar. Anal, quem sabeo dia de amanhã? Quem conhece a própria reação ao próximo ato,à circunstância seguinte? Quem pode pregurar o rosto que terá deen rentar na próxima vez em que se vir diante de um espelho? Apenas

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extático e desemboca na luta pela trans ormação da realidade vividapor cada pessoa no mundo.

A

Até aqui, os elementos do chamado e da vocação aparecem comoensejo para uma discussão sobre as motivações que nos impelem àmissão que, como vimos, não é nossa nem tem origem em nós, mas emDeus. Aqui gostaria de endereçar uma reexão mais especíca sobre a vocação pensando-a como tema essencial e caro tanto à espiritualidadequanto à missão.

odos sabem que vocação tem a ver com o chamado ou ainspiração quem vem do Senhor, que nos presenteia com dons etalentos e nos convida a azer uso deles no serviço ao reino e à Missãode Deus. Envolve desempenho – como no caso do mestre, que comsabedoria e destreza ensina, ou do escritor, que traduz pensamentos,imagens e conceitos em palavras – porém é mais que desempenho, é aimpulsão do ser rumo à sua plena realização em Deus. Vocacionado/anão é quem “ az” para “ser”, mas quem “ az” porque “já é”, isto é, o azeré resultado natural do ser. Nesse sentido, nem todo mundo que azalguma coisa o az por orça da vocação; alguns azem por necessidade,outros por oportunismo, e assim por diante. E não há nada como o

azer que segue não o ímpeto do ativismo, mas da vocação; não pororça ou obrigação, mas na liberdade do Espírito; não por ambição,

mas por obediência.A parte di ícil dessa história toda é que osaber-ser e oser-saber

da vocação não se adquirem de modo instantâneo, necessariamenteóbvio e de uma vez por todas. Ou seja, a convicção de que Deus noschama para um modo de ser-no-mundo e para uma tare a especíca –como a de ser pastor, missionário, médico, político ou pro essor – nãosurge com a indicação prévia do caminho a ser percorrido, nem dequando, onde oucomo, pelo menos não do modo como vejo. Faz partedo processo de maturação da vocação divina no ser humano o prazerda busca, a necessidade de discernimento, a aventura do caminhar,o risco da decisão. Por isso, é praticamente impossível ser honesto

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e ao mesmo tempo assentir com a percepção da vocação como umlugar inexível – como quem arma: “Deus me chamou apenas paraser pro essor de teologia” – combinada com uma visão tão poucocondescendente com a realidade e a variedade da condição humana

sobre a vontade de Deus. Gostaria de me deter um pouco nestes doisaspectos, partindo da aporia: sim, posso ter um chamado, mas e daí?Em que isso me torna, a quem devo, para onde me conduz, e o quepretendo azer com isso?

O que é a vontade de Deus? Como conhecê-la? O que azer paracumpri-la? Esse é um mistério que tem permeado a vida de pessoasao longo de milênios. O jeito com que se trata esse assunto é o quegostaria de reetir aqui. Não há dúvida de que, ao lermos as Escrituras,encontramos o princípio de que viver bem, com temor e dignamentesignica dispor a vida para andar con orme a vontade do Senhor.Converter-se a Cristo, em parte, também é isto: permitir que nossa vontade saia cada vez mais de cena, a m de dar lugar a uma vontademaior e soberana: a de Deus. O ponto para mim, porém, é: se temosconsciência, quando buscamos a vontade de Deus, do que envolve esse“andar con orme”.

O salmo 143 de Davi, humano, honesto e orgânico, servirá comoponto de partida aqui. Antes de tudo, trata-se de uma oração, deuma súplica. Normalmente, nós suplicamos com mais orça quandoso remos. E é o que está acontecendo com Davi. Diante dos muitosconitos que en renta, apela para a justiça e delidade divinas (v. 3).Mostra-se muito angustiado e com o coração aito, “em pânico” (v. 4).Costumo dizer que a angústia não pode ser desprezada, pois é uma dasavenidas que nos conduzem aos braços de amor de Deus. Mas nemsempre conseguimos lidar com ela. Sentimos como se a angústia osseum peso, uma erida aberta, uma aca cravada no peito da gente. Emuitas vezes ela tem a ver com rustração, com medo, com sentimentode rejeição e abandono, e com as incertezas. Então, apressados pra sairdessa logo, suplicamos para que Deus se apresse a nos responder, adar um rumo denitivo. Mas descobrimos que na vida não há rumosdenitivos – nem a morte, biblicamente alando, é um rumo denitivo.

E o mais duro golpe aos apressados é ter que lidar com asindenições, incertezas e dúvidas que azem parte da vida de qualquer

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pessoa comum. Dessa orma, a “vontade de Deus” vai se tornando aórmula religiosa para expiar tudo o que é indesejável, como também para

alimentar o que se deseja. Daí brota as distorções, tais como: a pregaçãode que precisamos estar no “centro da vontade de Deus”; que cada detalhe

da vida não pode ugir do plano de Deus para nós; que a vontade de Deusé isso, e não pode ser aquilo; se desastres acontecem, oi “da vontade deDeus”; se o avião não saiu do aeroporto, era propósito de Deus, porquecertamente ele cairia; se perdi um emprego, oi Deus quem quis, pois estavapreparando um ainda melhor pra mim, e assim por diante. Privatizamosa vontade de Deus e, quando assim azemos, acilmente con undimo-lacom a “nossa vontade do que seja a vontade de Deus”.

A chave do Salmo 143, para mim, vem quando, do desespero,Davi pede que o Senhor o ajude quando tiver que escolher o caminhoa se andar (v. 8); quando roga para que o “ensine a azer sua vontade”(v. 10). A vontade é de Deus, mas a escolha é nossa. E Deus sópode ensinar sua vontade a quem quer aprender, quem se lança naaventura de aprender, pois é vivendo (errando e acertando, so rendoe mudando) que se aprende. Por isso repito quediscernir é preciso! O salmista (119:27) também ora: “Faze-mediscernir o propósito dosteus preceitos, então meditarei nas tuas maravilhas”. Na tradução A Mensagem: “Ajuda-me aentenderestas coisasde dentro pra fora”.Entender de dentro para ora é encarnar a mensagem, deixar que ela

aça morada na gente, nos con ronte, nos inquiete, nos trans orme,e assim a Palavra se torna viva em nós. Para raseando Nietzsche, asmelhores verdades são asverdades sangrentas – isto é, que brotam dedentro da vida e se aplicam a ela.

C

Portanto, posso concluir dessa primeira parte de nossa reexãoque a vontade de Deus não se mostra instantaneamente; a vontadede Deus se experimenta e se pondera, pela renovação da mente (c .Rm 12.2). Como eu entendo a vontade de Deus? Como ummistérioreveladoque só se compreende e se experimenta na medida em que secaminha e em que se vai à luta.

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M I

U M E (II)

I

Nessa unidade quero prosseguir reetindo nasmesmas questões que nos moveram na unidade anterior(já que esta é uma continuidade daquela), tendo maisespecicamente dois en oques: primeiro, um estudo decaso em Henri Nouwen1, mais particularmente no modocomo ele trabalha o tema da vocação em seus textos sobreespiritualidade, e como lidou com a própria vocação querecebeu do Senhor ao longo de sua vida. Veremos que a vocação não tem que ser percebida na base da xidez e dacerteza, mas pode também ser um caminho em que nuncaparamos de perguntar ao Senhor: “Que queres de mim?”.Segundo, uma reexão sobre o que chamo de lugar da

raqueza na espiritualidade da missão, destacando, comotese, que a assunção humana de nossas ragilidades écondição prévia para a missão.

O

1. Compreender a questão da vocação através da vidae obra de Henri Nouwen;

2. Desenvolver a consciência sobre o lugar eimportância de nossas próprias raquezas na espiritualidadeda missão.

1 Mais sobre a vida e as contribuições de Nouwen pode ser encontrado em meuHumanos, graçasa Deus (2013), especialmente no capítulo 28. Para uma perspectiva mais ampla e pro unda, sugiroa leitura da biograa escrita por Michael Ford,O profeta ferido:um retrato de Henri J. M. Nouwen(2005).

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H N O exemplo de Henri Nouwen é uma amostra concreta de onde

quero chegar com esta reexão. Utilizo sua experiência sem pretenderabsolutizá-la, mas ensejando pensar que existem outros caminhospossíveis de se lidar com a questão da vocação e com a “certeza dochamado”. Apenas para situar, uma suma: Nouwen oi um padreholandês, nascido em 1932 e alecido em 1996. Desde os cinco anos deidade sonhava em se tornar padre. Cursou o seminário, oi ordenadoaos 31 anos de idade. Daí seguiu para a psicologia, disciplina queestudou durante anos e que uturamente ajudaria muito a construirsua visão sensível e ao mesmo tempo assertiva sobre o ser humano.

Resolveu mudar-se para os Estados Unidos para se especializar aindamais nesta área. Não conseguiu concluir a contento sua ormaçãoacadêmica. Ainda assim, ingressou como pro essor de psicologiapastoral na Universidade de Notre Dame. Dali oi convidado para serpro essor de teologia pastoral na Universidade de Yale. Permaneceupor dez anos naquele posto e, em 1981, renunciou-o para passar seismeses na Bolívia e no Peru. Nouwen tinha à época 51 anos de idade e25 de ministério ordenado; a esta altura já havia alcançado notoriedademundial como escritor de livros, a maioria sobre espiritualidade.

No entanto, mesmo após anos dedicados à igreja, à escrita e aomagistério, a pergunta pela vocação permanecia viva e, num certosentido, aberta, indenida. Prova disso é seu diário do tempo quepassou na América Latina, que oi publicado em livro sob o título:Gracias! A Latin American Journal. A pergunta central que o guioudurante aquele tempo era: “Deus está me chamando para viver e

trabalhar na América Latina nos anos seguintes?” (NOUWEN, 2005,p. xvii, tradução minha). No meio das atividades, viagens, conversas eencontros que ali teve, Nouwen arma ter tentado discernir a voz deDeus e seguir um caminho de obediência àquela voz. E discernimentopermanece sendo uma das palavras-chave para a compreensão e vivência da vocação e da vida em missão. O discernimento nãonecessariamente traz direção, mas nos ajuda a ser honestos para coma di ícil jornada que temos adiante, como expressa Nouwen (2005, p.13, tradução minha):

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Somos chamados a discernir cuidadosamente os movimentosdo Espírito de Deus em nossas vidas. Discernimento se mantémsendo nossa tare a para a vida toda. Eu não consigo enxergaroutro caminho para o discernimento que não seja uma vida noEspírito, uma vida de oração incessante e contemplação, uma vida de pro unda comunhão com o Espírito de Deus. (...) Nóscertamente cometeremos erros constantes e com requência veremos a pureza do coração sendo requisitada para tomaras decisões certas. Podemos nunca saber se estaremos dandoa César o que pertence a Deus. Mas quando continuamentetentamos viver no Espírito, pelo menos estaremos dispostos acon essar nossa raqueza e a pedir perdão toda vez em que denovo nos encontrarmos a serviço de Baal.

É preciso, portanto, percorrer o caminho, en rentar a questãocom discernimento, mesmo que não se obtenha uma resposta rápida– o que normalmente ocorre. E observe que Nouwen não é daquelesautores que propõem uma vida no Espírito, de oração e comunhãocom Deus, como órmula mestra para que Deus se apresse, ou paraque tenhamos total certeza de que estamos “no centro da vontade deDeus” – que, diga-se de passagem, é uma pretensão tola e in antil.Pelo contrário, ele diz que esse tipo de vida nos ajuda na tare a dodiscernimento, bem como a lidar com as constantes incertezas, assimcomo a tratar nosso eventuais equívocos e desvios, que acontecem esempre acontecerão. Por isso a necessidade de arrependimento; e só épassível de se arrepender quem reconhece a própria raqueza e admitenão ter todas as respostas – como me parece ter sido o caso de Nouwen.

Ao retornar desse período na América Latina, Nouwen tinha

apenas a clareza de que seu desejo de servir os pobres do mundo eragenuíno e real, mas que não seria na América Latina. Ele passou areceber cartas de Harvard, que lhe o ereceu uma posição comopro essor ali. Mesmo não aceitando o emprego em tempo integral,um semestre por ano, de 1983 a 1985, Nouwen lecionou na HarvardDivinity School, sendo ali aclamado como pro essor, com classessempre lotadas de estudantes ávidos por ouvi-lo. Mais uma vez, porém,ele percebeu, como relatou em um de seus diários, que quanto maisse via cativo à ambição (de sua carreira, seu ministério), mais di ícil

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era enxergar aqueles que são cativos pela pobreza. De novo, havia acerteza da vocação original, de ser um ministro da cura, um “curador

erido”, como ele mesmo denominou em um de seus livros (2001),ou um “pro eta erido”, nos dizeres de Michael Ford (2005), porém

permanecia a incerteza do caminho.Em 1985 Nouwen recebeu um convite do rancês Jean Vanier,undador da Arca – uma instituição responsável por cuidar e ser

comunidade para pessoas com deciência mental – para passar umano sabático em uma das comunidades da Arca, em rosly, na França.Para Nouwen, oi um ano de descobertas, de experiências novase inusitadas, e para discernir se aquele era um caminho para umamelhor realização de vocação no reino de Deus, como sentida naquelemomento. Ao nal daquele período, Nouwen nalmente decidiu quesua vocação dali para diante seria ser um membro e ministro de cura naComunidade A Arca, em oronto no Canadá, onde permaneceu pelosdez últimos anos de sua existência. Por essas experiências, concluiuque “às vezes a maneira de saber onde você é chamado a estar é indoonde sente que deve ir e estar presente naquele lugar. Logo saberáse aquele é o lugar que Deus quer ou não que esteja” (NOUWEN,

2013, p. 102, tradução minha). Vocação não é apenas uma questãode “chamado”, mas também de escolha e do risco de cada decisão. Olugar não é o mais importante; undamental é manter viva a chama dorelacionamento.

Assim, Nouwen nalmente se encontrou, pois compreendeuque a questão da vocação não está ligada principalmente ao lugar emque atuamos, servimos e vivemos, mas com a constante abertura docoração para Deus e o que Ele quer azer por meio de nós, tornando-nos agentes de sua Missão onde quer que estejamos. Como ele concluina parte nal deGracias!,soando um tanto como o apóstolo Paulo:

Hoje eu me dei conta de que a questão de onde viver e o queazer é realmente insignicante se comparada com a questão de

como manter os olhos do meu coração ocados no Senhor. Possoestar lecionando em Yale, trabalhando na padaria da Abadia deGenesee, ou caminhando por aí com as crianças pobres no Perue me sentir totalmente inútil, miserável e deprimido em todasessas situações. Estou certo disso porque é o que aconteceu. Não

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existe tal coisa como o lugar certo ou o emprego certo. Possoestar eliz ou in eliz em todas as situações. Estou certo dissoporque tenho estado. enho me sentido consternado e jubilosoem situações de abundância tanto quanto de pobreza, emsituações de popularidade e anonimato, em situações de sucessoe de racasso. A di erença nunca oi baseada na situação em si,mas sempre em meu estado de mente e coração. Quando sabiaque estava caminhando com o Senhor, sempre me senti eliz eem paz. Quando me vi preso em minhas próprias reclamaçõese necessidades emocionais, sempre me senti cansado e dividido(NOUWEN, 2005, p. 152).

Com Nouwen aprendo que o mais importante não é tanto

a certeza da vontade de Deus sobre onde se deve estar, a segurançada posição que se ocupa numa organização, ou se está ou não “nocaminho certo” ou inequívoco da vontade de Deus; mais importanteque saber o caminho, é percorrê-lo, en rentando percalços, colhendo

rutos, experimentando sucessos e insucessos, e amadurecendo na é,de pre erência ao lado de Jesus, caminho, verdade e vida. O caminhose revela melhor quando caminhamos.

O Finalmente, gostaria de alar sobre a importância de assumirmos

e lidarmos com nossas raquezas enquanto caminhamos pela vidaem missão. Para tanto, quero iniciar examinando duas armaçõesque devem servir aqui de ponto de partida. A primeira é de DavidBosch: “A verdadeira missão é a mais raca e menos impressionanteatividade humana que se pode imaginar, a própria antítese de uma

teologia da glória” (BOSCH, 1988, p. 76, tradução minha). Boschnão está sozinho nesta percepção. José Comblin também escreveualgo nesta direção, servindo de inspiração ao próprio Bosch em suaabordagem à espiritualidade missionária de Paulo: “A raqueza não énenhum acidente da missão, nenhuma circunstância que se tenha quelamentar. Muito pelo contrário, é uma condição prévia de qualquermissão autêntica” (COMBLIN, 1983, p. 56).

Quando pensamos a missão na perspectiva triun alista da nobrezado “meu chamado”, de um grande empreendimento da igreja ou

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mesmo de uma cruzada no mundo a m de “ganhar almas para Jesus”,estas armações soarão um tanto estranhas e sem propósito. Anal, aevocação de um lugar de um poder e uma unção sobrenatural sobre omissionário ou embaixador de Cristo torna-se necessária e até comum

para justicar uma missão de tal natureza. Ou seja, para lutar contra aspotestades que dominam a terra e aprisionam as almas dos mundanose pagãos, é preciso se revestir de orça e se lutar com as “armas da é”.Assim, o linguajar militar, não muito estranho aos escritos bíblicos,mesmo os de Paulo, mas utilizado ora de contexto e para propósitosduvidosos, domina esse tipo de cosmovisão missionária. O problemaé que, mesmo arrebatando e convencendo a muitos de sua ecácia

motivadora, ela provoca um duplo a astamento: (1) o do mundo desseCristo bélico e conquistador e, (2) da igreja da perspectiva do Cristoda cruz dessa missão triun al e gloriosa, que acaba se transmutando,de um ideal-raiz da vocação e espiritualidade cristãs, em uma ideiadesorientada e deturpada de apresentar Deus ao mundo.

Quando olhamos para o caminho (missionário) de Jesus, porém,a imagem não é de triun o, glória ou conquista, mas de submissão,

ragilidade e dor. Com isso não quero dizer que, em Jesus, Deus oiderrotado, e sim que nele vemos o sentido de que perder nem sempre ésigno de derrota; pode ser caminho para uma vitória não triun al, massignicativa. Assim é para mim a relação entre a cruz e a ressurreição.A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que gera vida, comono paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é, na verdade, perdê-la; jáperder a vida, pela causa certa, é achá-la (c . Mt 17.25). Jesus também

alou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém quer vir apósmim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O paradoxo aqui,porém, é que negar-se é uma orma de declarar a morte de algo dentrode si (o que Paulo chama de “velho homem”), a m de azer brotar eorescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é sádico;não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos vermorrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para armá-la. Noentanto, segundo Jesus, é negando-se a si mesmo, des azendo-se de todoorgulho de ser, abraçando a própria ragilidade, reconhecendo-se como

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ser codependente, é que podemos armar a vida e a liberdade humanas.A mensagem da ressurreição, por sua vez, não existe nem az

sentido se separada da mensagem da cruz. Para ressuscitar é precisomorrer e é morrendo que se vive. É uma mensagem de vida abundante,

mas não sem morte; de alegria, mas não sem tristeza; de vitória, masnão sem racasso; de orça, mas não sem raqueza; de luz, mas não odas trevas. Como disse, numa palestra, Julio Zabatiero (2012),Deus estámorto e permanece morto. Ressuscitou precisamente porque morreu, enão é porque morreu que deixou de ser o Deus crucicado. Em suaspalavras exatas: “A teologia é a linguagem do paradoxo: quando digoque Deus está morto, é a melhor maneira de armar que Ele está vivo”.

Além disso, a ressurreição não oi um evento majestoso, triun ale barulhento. Como vemos nas narrativas da ressurreição em Lucas24, a ressurreição oi um ato silencioso e marginal de Deus; não houvetestemunhas à beira do túmulo, apenas anjos que anunciaram a poucasmulheres que Ele já não está morto, mas vive; não saiu nos principaisnoticiários do dia, mas correu de boca em boca, de modo que se ahistória até hoje a encara não como evento, mas como mito, até para osdiscípulos à época oi di ícil de acreditar, mesmo quando o próprio Jesus

de repente apareceu no meio deles, como Mateus indica (Mt 28.17).Deus não ressuscitou Jesus dos mortos preocupado com apropaganda do seu governo sobre a terra, como que dizendo: “Viramsó, eu tiro e dou à vida a quem quero, meu poder é magnânimo; vocêsmataram meu Filho, mas a grande prova de que Ele É em mim e deque EU SOU, é que agora ele vive de novo, por isso curvem-se diantede mim, o rei dos Reis!”. Não. A ressurreição não é prova de nada

nem existe para provar alguma coisa. Não é o aguilhão daqueles que,como omé, precisam “ver para crer”, mas para o bem-aventurados doreino os quais, mesmo não vendo, creram e creem (c . Jo 20.29). O Pairessuscitou Jesus dos mortos porque Ele é o seu Filho amado; para que amorte não tenha a última palavra; para conrmar a obra do Filho; paraque nós encontrássemos vida Nele e, tendo vida, tivéssemos esperançae, tendo esperança e pela é, espalhássemos essa boa notícia de vida,amor e esperança ao mundo.

E assim azemos seguindo o mesmo modelo e espírito que vimos

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em Jesus Cristo, o Filho de Deus, que, como expressa Comblin (1983,p. 56, gri os meus):

(...) se mani estou sem nenhum dos atributos da orça humana.Jesus não quis brilhar pela cultura. Não quis argumentar comos escribas e os doutores da lei, menos ainda com os lóso ospagãos. Não conquistou o povo pela abundância de suas esmolasou as obras de desenvolvimento.Não impressionou pelo poder .O messianismo cava totalmente alheio às suas perspectivas. Osinal supremo que deu aos homens oi sua morte, mani estação visível da maiscompleta incapacidade e dominar e de convencer por meio de argumentos tirados das culturas e das civilizações.Na verdade Jesus estava completamente desarmado no meiodos homens, e quis estar assim. Estava desarmado para poderalcançar o homem na fonte de sua humanidade, no nível damaior universalidade: concretamente para poder ser recebidopelo mais humilde dos homens, para se encontrar com ahumanidade em todos os homens.

Pensando na mesma direção que Comblin, é possível dizerque Jesus não teria um perl para ser um missionário cultural outranscultural em nossos dias, por alta de requisitos mínimos parase encaixar (con orme as caixas de encaixe hoje vigentes em muitasigrejas e agências missionárias do mundo): caminhou à margem dareligião e da cultura; abraçou não apenas as vulnerabilidades humanascomo escolheu ser humilde entre os humildes e desgraçados; nãoprimava por demonstrações sobrenaturais de poder, pelo contrário,em muitos milagres que realizou pedia total sigilo daquele(a) que o

recebeu; não partiu para o caminho da apologética ou de esa da é,cercando-se de argumentos ortes para “de ender” a perspectiva doreino de Deus, de modo que, em Jesus, não se az ninguém se achegarao reino pelo poder do argumento, mas pelo caminho da ragilidade,da in antilidade espiritual, do diálogo, do arrependimento, do perdãoe da graça. Como lembra Comblin (1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança radica justamente nessa vulnerabilidade”.

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na tradução A Mensagem – não será arrancado, pois ele está ali poruma razão: para esbo etear nossa prepotência e nos azer aceitarcom gratidão nossas raquezas, pois é através delas que o poder deDeus se aper eiçoa em nós, pois quando somos racos, então é que

somos ortes (2Co 12.7-10). Essa sim é, nos dizeres de Nietzsche, uma“verdade sangrenta”.ermino com uma rase de David Bosch (1979, p. 77, tradução

minha), daquelas que precisamos lembrar não apenas na mente, masgravar com lança pontiaguda no coração: “A igreja não é composta degigantes; apenas seres humanos eridos podem guiar outros até a cruz”.

R

BOSCH, David.A spirituality of the road.Scottdale, Pennsylvania: HeraldPress, 1979.COMBLIN, José.Teologia da missão.2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1983.

FORD, Michael.O profeta ferido:um retrato de Henri J. M. Nouwen. PriorVelho, Portugal: Paulinas, 2005.MENEZES, Jonathan.Humanos, graças a Deus!Em busca de umaespiritualidade encarnada. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013.NOUWEN, Henri.Discernment.Reading the signs o daily li e. New York,NY: HarperOne, 2013._________.Gracias! A Latin American journal. Maryknoll, New York:

Orbis Books, 2005._________.O Sofrimento que cura. São Paulo: Paulinas, 2001._________. Lifesigns. Intimacy, ecundity and ecstasy in Christianperspective. New York: Image Books, 1990.ZABA IERO, Julio.Lugares e modos da teologia para a igreja e a realidadebrasileira contemporânea. Palestra pro erida na Consulta Nacional daF L-B em Belo Horizonte/MG, em 07 de junho de 2012. Material em vídeo.

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M I

U M P (I)

I

Neste curso, como já deve ter cado claro, partodo pressuposto evangélico (isto é, do Evangelho) daintegralidade do ser humano e da vida. Desse modo, a

missão de Deus não mais pode ser esquartejada – como nopassado – sem que isto tenha implicações sérias para quemo az, graças ao conhecimento que hoje muitos cristãos eigrejas têm a respeito. De ende-se que não é possível – pormais que se tente – separar o ser espiritual do ser ísico,psíquico, emocional, intelectual, humano, ideológico epolítico, uma vez que tudo isso e muito mais permeia o serhumano em sua complexidade. E é precisamente partindodo ponto da indivisibilidade do ser que gostaria de explorarum pouco nesta unidade algumas acetas dessa relação entremissão e política. Nesta unidade, partirei da conceituaçãode política na ordem do ser e do agir humanos, abordandoa distinção já mais ou menos conhecida entre “a política” e“o político” e o que isso implica.

O

1. Conhecer e entender as possíveis di erenças entre“o político” e “a política”;

2. Reconhecer que “ser político” é parte de nossomodo de ser cristão/ cristã no mundo, bem comoda missão.

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–, torna-se necessária e útil uma di erenciação entre “a política” e “opolítico”, não só para mostrar que uma coisa não necessariamente semistura com a outra, mas também para resgatar a consciência quantoao sentido originário do ser político para além de opções partidárias

e/ou institucionais.Dessa orma,a política nos remete à es era institucional dospartidos, das ideologias, dos projetos políticos ligados ao poder políticoe ao governo;o político, por sua vez, representa esta constituiçãoprópria de cada pessoa e do social. De acordo com Nicolás Panotto(2012, p. 115, tradução minha), o político “não é tare a de especialistasou de certas instituições, mas é parte constitutiva de toda pessoa, todogrupo, toda comunidade”. Mais do que cidadania (isto é, homens emulheres aceitos dentro de um estado legal), o político, para ele, é“o lugar de toda pessoa na construção constante de sua identidade e‘lugar no mundo’, não de orma alienada, mas em interação constantecom outros e outras”.

Nesta acepção, não é exatamentea política que nos permeiapreliminarmente, maso político, de modo que o que acontece napolítica está (ou deveria estar) sujeita aos processos do político. Nos

termos de Retamozo Benítez (2009, p. 79, tradução minha), “o político possui um caráter substantivo e uma unção instituinte, emboraa política suponha uma lógica instrumental de administração doinstituído”. Em outras palavras, o que nas instâncias do político se

omenta e se cria acabam desembocando na administração disso naparte da política. Isto pode ser exemplicado pela situação em quegrupos ou movimentos sociais (o político) instituem os termos da lutapelos direitos dos homossexuais, e o governo estabelece e administra asbases (projetos, leis, políticas públicas) em que esse instituído passaráa uncionar (pelo menos na teoria).

Embora sobreviva e se propague debaixo de uma nuvem dedesconança e ceticismo, prero dizer que a política não e má em si;maus são os desígnios e más são as motivações e as ações e etivas dosinstituintes e dos governantes, isto é, de quem “ az” a política ser o queela tem sido por milênios. Nela encontramos de modo escancarado oque Jacques Ellul (2010, p. 24) chamou de duas grandes característicasdo ser humano: acobiça e o desejo por poder . Por essa razão é que

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concordo com Ellul quando ele arma que a política az parte do“domínio do Diabo” (2006; 2010). E uma base clara para esta armaçãoestá no relato de Lucas 4.5-7, da tentação de Jesus no deserto:

Para a segunda prova, o Diabo transportou-o até o pico de

uma imensa montanha. entando ser convincente, mostrou-lhe todos os reinos da terra num relance. Então ez a proposta:“ udo isto é meu. Eu mando em tudo e posso entregar estesreinos com o seu ascínio a quem eu quiser. Basta que você meadore e tudo será seu!” ( A Mensagem).

O que esse texto está armando inverte a lógica com a qual muitagente interpreta as Escrituras e o modo como nelas se concebe podere autoridade; aqui, tudo o que diz respeito aos domínios políticosda terra – governos, estados, autoridades e instituições políticas– pertencem ao Diabo e são outorgados por ele. Isso se torna maisacentuado na medida em que, con orme ressalta Ellul (2010, p. 65),“Jesus não rebate a armação; ele não diz ‘não é verdade, você não tempoder sobre reinos e estados’... ele não contesta o Diabo. Ele rejeita estepoder porque o Diabo lhe pede pra se prostrar e adorá-lo”.

E a pergunta que ca diante disso é: existe algum meio deenvolver-se com o poder político – seja ele institucional, religioso ougovernamental – e seus meandros, e não ter de curvar-se ao Diabo?Lembrando aqui que etimologicamente Diabo vem dediabolos, quesignica “aquele que divide”. De modo que a política – institucionale partidária – tem sido ator de divisão entre os seres humanos.Enquanto deveriam se utilizar do poder para servir, utilizam-no paradominar, subjugar, oprimir, causar mais injustiça, roubar, extorquir,

reverter todo o possível em bene ício próprio.A questão aqui, porém, é de discernimento de como as coisassão na raiz na política e na economia das ações humanas, e não dedemonização da política – como que dizendo: já que é do domíniodo Diabo, o crente não pode se meter com política, mas precisa sea astar, se preservar, se puricar, até que o Senhor venha. Não! Isso já tem se mostrado como coisa do passado, tanto para o bem quantopara o mal. Apesar de tudo, é assim que as coisas uncionam emnosso mundo, e nosso papel é reetir sobre o que precisa ser eito a

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despeito de nossa crença ou descrença na política do modo como elase apresenta em nosso país hoje. A pergunta de João Dias de Araújo– “que estou azendo se sou cristão?” – continua ressoando hoje e demodo ainda mais especial, dada a ausência de novas “utopias possíveis”

especialmente entre as gerações mais jovens.Apesar disso, há sinais de esperança no ar; e um deles, no Brasil,se deu com as jornadas de junho de 2013, com as mani estações quetomaram as ruas do Brasil, que implicou na população tomandoa cidade, interrompendo seu silêncio ou seu trânsito para protestarcontra o aumento de tari as no transporte público, começando porSão Paulo, e se estendendo para inúmeras outras cidades e metrópolesdo país. Começou com uma agenda, e ao longo oram acrescidastantas outras na pauta dos protestos que se deagraram. Se antesestava em casa, então o Brasil oi para as ruas para nalmenteexpressar, de modos aleatórios e a partir de vozes não uníssonas, seudescontentamento com a política do modo como tem sido eita hámuitos anos. Foram protestos em que o político apartidário deu a suacara, revelando, o desgaste, a descrença e a intransigência para compartidos e movimentos de massa, e que proibiu até que muitos destes

participassem das mani estações.Raquel Rolnik (in MARICA O et. al., 2013, p. 8), qualicouo movimento como sendo umterremoto, “que perturbou a ordemde um país que parecia viver uma espécie de vertigem ben azeja deprosperidade e paz, e ez emergir não uma, mas uma innidade deagendas mal resolvidas, contradições e paradoxos”. No entanto, umdos saldos positivos deste processo oi que nele vimos renascer,segundo Rolnik, precisamente as utopias de que tanto carecemos,demonstração não apenas de que “o gigante acordou”, como se dissena época obviamente se re erindo à nação brasileira, mas também queo anseio por mudança partiu da base, do povo,do político que há emcada um de nós e que precisa ser exercitado, como já dito, mesmo quenão acreditemos mais na política como meio ecaz de resolver nossosproblemas coletivos, nem que não queiramos nos envolver com ela.

A resposta de Jesus à tentação da política não oi a de seautodeclarar apolítico, nem de “ ugir da raia”; como “ser político” e, bemacima disso, como lho de Deus e instaurador de seu Reino na terra,

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ele resiste lutando com armas di erentes, não orçosas e violentas, mas,ainda assim, radicais, estabelecendo o que poderíamos chamar aquide um contrapoder . Não se omitiu de ações públicas, de uma políticade amor e solidariedade, não apenas com as vítimas do sistema, mas

também com os opressores (Zaqueu é um exemplo); denunciava osmodos de vida das pessoas, mas não excluía ninguém de seu convívio,nem mesmo os membros do Sinédrio, seus adversários diretos. Elenão abraçou o caminho da política, sendo avesso ao poder político,mas tampouco se omitiu de “ser político”, isto é, da luta pela dignidadehumana e pela construção de relações de paz, reconciliação e justiçaentre as pessoas como parte damissio Dei.

Em suma, usando outra vez as palavras de Robinson Cavalcanti(2004, p. 63):

A política de Cristo pode ser apreendida na Escritura toda, naação da Igreja, nos sinais da história e, mui particularmente,no Jesus histórico, que não pede ao Pai que tire seus discípulosdo mundo, mas que os livre do mal, que os chama para enviar,que os envia para alar e viver, amar e cuidar. Vocação, donse missão. Salvação de algo, mas para algo. Uma vida solidária(social e politicamente) não é parte do conteúdo do evangelho,mas sua consequência necessária.

Voltando à relação do começo: seser humano e ser cristãonão éuma via paralela aoser político, mas são canais que, na vida, se misturam,aquilo que a conversão gera em meu ser precisa se ver reetido emminhas relações/ações públicas. É participar da vida pública de minhacidade, dos movimentos, das ações e dos setores da sociedade em quemelhor posso desenvolver as habilidades que Deus me deu a serviço

de um bem comum, a serviço do Reino de Deus – que se não semani esta apenas no terreno da religião, mas em todo lugar em que seluta por e se celebra a paz, a justiça e a alegria no Espírito Santo. Comodisse Jesus, ao instruir seus discípulos sobre como deveriam procederquando entrassem numa cidade para anunciar o Evangelho, “o reinode Deus está próximo de vocês” (c . Lc 10.9).

Portanto, pensar no político enquanto dimensão de ser-no-mundo vai além do parco envolvimento que temos durante o períodode eleições, do pleito por cargos e bene ícios políticos, da luta pelo

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poder político e da política institucional e partidária. em a ver comenvolver-se e interessar-se pela minha cidade e seus problemas econtribuir de tal modo que “a vontade de amor, de justiça e de paz doSenhor alcance a melhor realização possível” (BONINO, 2011, p. 34).

C

Vimos nessa unidade alguns desaos concernentes à relaçãoentre espiritualidade e política. Observou-se que, embora sejamosconstituídos pessoal e socialmente pelo político em nosso modo de

ser, com raras exceções, vivemos numa sociedade que padece de umaconsciênciado político precisamente por causa de seu desencantoe ceticismo para coma política; um tempo no qual a palavra“engajamento” ainda não tem sido sucientemente incorporada comoatitude de vida – mesmo considerando alguns sinais evidentes de umpossível despertar. Na próxima unidade, portanto, pretendo prosseguirreetindo sobre a questão então pensando particularmente na ideiade encarnação, enquanto qualidade da missão, e no engajamento daigreja nas questões sociais e políticas que a cercam.

R

BONINO, José Miguez.Em busca da política.Rio de Janeiro: NovosDiálogos, 2011.CAVALCAN I, Robinson.Cristianismo e política:teoria bíblica e práticahistórica. Viçosa, MG: Ultimato, 2004.ELLUL, Jacques.Políticas dos homens, políticas de Deus.São Paulo: FonteEditorial, 2006._________.Anarquia e cristianismo.São Paulo: Garimpo, 2010.ROLNIK, Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações.In: MARICA O, Ermínia [et. al.].Cidades rebeldes:Passe Livre e asmani estações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta

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Maior, 2013, pp. 7-12.PANO O, Nicolás. Los evangélicos y ló político: análisis histórico y nuevosacercamientos. In:Práxis Evangélica,n. 20, novembro de 2012, pp. 105-119.RE AMOZO BENÍ EZ, Martín. Lo político y la política: los sujetos

políticos, con ormación y disputa por el orden social. In:Revista Mexicanade Ciencias Políticas y Sociales, vol. II, núm. 206, maio-agosto, 2009, pp.69-91.

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M I

U M P (II)

I

Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus, queapresentei o vosso corpo por sacri ício vivo, santo e agradávela Deus, que é o vosso culto racional. E não vos con ormeis

com este século, mas trans ormai-vos pela renovação da vossamente, para que experimenteis qual seja a boa, agradável eper eita vontade de Deus (Rm 12.1-2).

Como disse São Gregório, o Grande: “É melhor arriscar-se aprovocar um escândalo do que calar a verdade”. Hoje, parece, temos

eito o inverso: calado a verdade para que o escândalo seja o menorpossível, e o esvaziamento de nossas igrejas seja uma possibilidaderemota. Endossamos denitivamente a religião doself ( AYLOR,2005) , numa espécie de evangelho às avessas: importa que o(a) crentesaia da igreja eliz, de bem com a vida, satis eito e quase que utuandoem “espiritualidade”, mesmo que isso não produza uma base sólidapara que ele(a) possa en rentar os dilemas e adversidades do dia-a-diacom o discernimento e a lucidez do Espírito. O que acontece é queos problemas se acumulam e permanecem lá, na amília, no trabalho,na vida cotidiana, e será preciso mais uma dose de culto, de louvor,

de êxtase na veia do crente para que ele possa suportar as pressõesexternas contra as quais não tem sido educado na igreja a resistir com aorça e sabedoria do alto, mas com adroga dos “cultões” e “louvorzões”,

da qual tanto prezamos e dependemos.É uma igreja que perdeu o oco da missão e trans ormação do

ser humano todo por meio da vivência e proclamação do evangelhoem sua integralidade. Os cristãos reunidos em Lausanne zeram aseguinte condência: “Con essamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e alhamos em nossa missão, em

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razão de nos termos con ormado ao mundo ou por nos termosisolado demasiadamente” (PAC O DE LAUSANNE, Art. 1º). Qual é oimpacto e atualidade dessa armação para a os cristãos hoje? Será quetemos sido menos con ormados com este século que nossos irmãos e

irmãs admitiram estar sendo em 1974? O que, anal, caracteriza essacon ormação com o mundo?Agir em con ormidade com o mundo, como sabemos, é assumir

a sua orma. Uma igreja que se con orma é aquela que absorve ou éabsorvida pelo estilo de vida preconizado pelo mundo e pelos seussistemas. É aquela que se curva aos seus ditames, cooperando para apropagação dos imperativos que têm impregnado as mentes de homense mulheres no século XXI, tais como o consumismo e o individualismo.Conformismo, segundo Robinson Cavalcanti (2005, p. 19), “é um ajuste àsestruturas existentes de orma acrítica, passiva, preguiçosa, abúlica”. Poroutro lado, poderíamos alar de uma igreja que rejeite esse ajuste, por sea astar demasiadamente dos “valores mundanos”. Mas não deixa de sercon ormada, à medida que se compromete mais com a manutenção desuas estruturas e, consequentemente, não abre espaço para a solidariedade,alteridade e trans ormação tanto no pensar como no agir.

Uma igreja con ormada é, no linguajar de Cavalcanti, umacomunidade do reino que “perdeu o reino” de vista. A igreja é o “novoIsrael” que substitui o velho Israel. Falhará a igreja em antecipar os sinaisdo reino que já veio a partir de Cristo? erá razão certo pensador quandodiz que o reino poderá vir “por meio da igreja, sem ela ou, até, contra ela?”.

O ato é que, em sua Palavra, o Senhor nos insta a que sejamosincon ormados com o presente século. Quem são as pessoas incon ormadas?De acordo com Cavalcanti (2005, p. 19), diante das ormas, sua orma éoutra; elas são incon ormadas, negam-se a tomar a orma”. Um dos desaosde uma igreja politizada ou engajada, portanto, é o incon ormismo. Étambém uma das maneiras de atestação de que o reino “já” veio:

O reino é ainda atestado pela nossa incon ormação, nossa rejeiçãoe atitude crítica em relação ao estado de coisas contrário aomodelo de Deus: o anti-reino das trevas e nossa trans ormação,de nós próprios e de nossos relacionamentos, pela renovação denossa mente, que sintoniza a mente de Cristo e agora consegue ver além da mera letra (CAVALCAN I, 1997, p. 119).

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Quero nesta unidade sugerir pelo menos mais três desaos àagenda da igreja atual, tendo em vista a intersecção entre missão epolítica até aqui preconizada. Estes desaos serão ponto de partida dasdiscussões que apresento adiante.

O

1. Reconhecer a importância de uma igreja engajada nosterritórios do político;

2. Conscientizar-se sobre a dupla tare a de não con ormar-secom e de se engajar na busca pela trans ormação deste mundo;

3. Adotar a encarnação, a compaixão e a solidariedade comoqualidades ou modos de ser da missão con erida à igreja.

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U “Que estrago ez o neoplatonismo em nossa igreja,

desencarnando-a, desencarnando a nossa mensagem, reduzindo-aa uma ginástica cerebral e a um inconsequente exercício místico”(CAVALCAN I, 1997, p. 120). Com isso, Cavalcanti arma que umacorrente losóca chamadadualismo, a qual pressupõe a divisão entrecorpo e alma, sagrado e pro ano, mundo terrestre e espiritual, tomouconta do pensamento e estilo de vida desenvolvido na igreja cristãdesde o século IV. Prova disso está na ideia, ainda corrente no meioevangélico, de que existem lugares mais sagrados que outros, ou atémesmo práticas que conguram uma “santidade”, visto que privilegiam

a elevação da alma ou espírito em detrimento da matéria, em si, má.Durante muito tempo, ser cristão signicou (e em alguns contextosainda signica) viver uma vida extremamente regrada e obediente,con orme os dogmas e areta doutrinada igreja. A identidade cristã, nessestermos, é uma identidade xa, inexível, baseada num tradicionalismoengessado e estéril. Essa concepção ainda sobrevive, e é resultadotambém da inuência do undamentalismo norte-americano que paracá oi exportado. O que predomina nesse modelo é o isolacionismo, istoé, a ausência do mundo. Mundo, para muitos evangélicos, é tudo aquiloque “jaz no maligno” e nada se pode azer por ele.

Há uma patente con usão aqui entre “ser” e “estar” no mundo.“O mundo que jaz no maligno não é a criação de Deus, mas todos ossistemas que se a astam do modelo de Deus” (CAVALCAN I, 1997,p. 120). Como vimos na unidade 6, em sua oração sacerdotal (João17), Jesus arma que nem ele, nem tampouco seus discípulos “são” do

mundo (no sentido de provir, pertencer). Provimos do e pertencemosao Pai e ao Reino dos Céus. Porém, a verdade que nos desaa é que,assim como o Pai enviou Jesus Cristo ao mundo, como expressãoinequívoca de seu grande amor pelo mundo, o mesmo Jesus agora nosenvia ao mundo como embaixadores de uma “revolução silenciosa”que deve ser produzida pela encarnação desse amor no mundo.

Dessa orma, uma igreja engajada é aquela que se az presente nomundo a m de trans ormá-lo, juntando-se a ele como expressão do“sim” de Deus ao mundo (BOSCH, 2002), e endossando a pro unda

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amabilidade divina por toda a criação. Con orme o Pacto de Lausanne(Art. 4º), “a nossa presença no mundo é indispensável à evangelização,e o mesmo se dá com aquele tipo de diálogo cujo propósito é ouvir comsensibilidade, a m de compreender”. Outra expressão desse engajamentoestá no con ronto e negação das realidades de morte que no mundoimperam, como outra vez recorda o Pacto (Art. 5º): “A mensagem desalvação implica também uma mensagem de juízo sobre toda orma dealienação, de opressão e de discriminação, e não devemos ter medo dedenunciar o mal e a injustiça onde quer que existam”.

A igreja hoje é chamada a lutar contra a morte, a resistir às orçasde morte. Essa tare a começa por a astar as vozes da morte, que dizem:“isto não dará certo”; “O Brasil não tem jeito”; “Por que trabalhar

quando tudo o que edicamos pode ser destruído por outros?”; “Lutarpra quê, militância é coisa do passado”; “Por que realizar mais umencontro, escrever mais um livro ou gastar tempo debatendo quandoa realidade não quer ser trans ormada?”. Em oposição a essas vozesdiscursivas que nos rodeiam, precisamos de resistência e participação,como ressonância da voz do Espírito de Deus que nos insta a amaro mundo. De acordo com Henri Nouwen (2001, p. 65), resistência“signica dizer ‘não’ para todas as orças de morte onde quer que

elas possam estar e, como corolário, dizer um claro ‘sim’ a tudo o querepresenta a vida, sob qualquer orma em que possamos encontrar”.

U , “A salvação que alegamos possuir deve estar nos trans ormando

na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A fésem obras é morta” (PAC O DE LAUSANNE, Art. 5º). Apesar dessa

consciência dos líderes reunidos em Lausanne, e de muitos outros quecompreenderam que a mensagem do Evangelho deve trans ormar oser em suas di erentes dimensões, vimos poucos avanços em termosde aceitação dessa perspectiva entre a imensa maioria dos evangélicosno Brasil, por diversos atores que aqui não vale nomear.

Após anos e anos de resistência da ala undamentalista-conservadora da igreja quanto ao seu engajamento nas lutas dopolítico, também da luta inglória dos cristãos progressistas instandoa que acordássemos para a necessidade urgente de assumirmos

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nosso papel como cidadãos também “daqui” e não somente “de lá”, ea levantarmos nossas vozes contra as injustiças que imperam e nossopaís, chegamos ao século XXI, diria eu, com um saldo negativo. Não merero apenas ao relativo desinteresse geral das pessoas pela política oupor projetos que englobem o coletivo. O ato que marca a participação(ou não) dos evangélicos nas instâncias públicas é que ainda persistemmentalidades e posturas antigas, aliadas ao con ormismo generalizadoe à visível apatia.

Embora existam iniciativas relevantes de vozes dissonantesda maioria no meio evangélico, é de causar pesar e vergonha, o atode que a política, um dos meios de participação na sociedade civil,tem sido tão pouco aproveitada para aplicação ao bem comum e, ao

contrário disso, tem servido como trampolim de projetos pessoais ecorporativistas que, na maioria dos casos, atendem às ambições depoder de líderes mal-intencionados e totalmente despreparados paraexercer os cargos para os quais oram eleitos. Robinson Cavalcanti(1997, p. 122-123) escreveu há décadas atrás que:

Grosso modo, estamos trocando a alienação por uma presençaconservadora, reacionária, comprometida, clientelista esiológica. Lotes de votos estão sendo negociados em trocade lotes de terrenos, telhas, tijolos e empregos. Políticosevangélicos têm apoiado teses as mais danosas aos interessesdo bem comum do povo brasileiro. Em vez de sermos parte dasolução, estamos re orçando os problemas.

Se o cristão de ato tem vocação para isso, o envolvimento comas estruturas de poder requer, acima de tudo, o exercício da ética cristãe um caráter que se molda ao de Cristo. Não bastam boas intenções

no sentido de ajudar a igreja ou aos irmãos da é, nem a de esa estérilda moral individual, mas uma atitude pro ética e um incon ormismosanto com as injustiças que grassam nesses lugares. Precisamos de maiscobeligerância (inclusive com não cristãos) em projetos de reexão eação que convirjam aos valores do Reino, privilegiem o bem comume a trans ormação integral da sociedade. Projetos que passem pelainclusão dos mais pobres, a conscientização dos mais abastados e suamobilização junto aos intelectuais e as camadas mais “esclarecidas”,por uma sociedade mais justa e raterna, que combata a violência e

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o bastante e osse ecazmente capaz de cuidar, compreender suasaições e amar sem pedir nada em troca. Isso denota não apenas a

alta do Supremo Pastor (Deus) na vida dessas pessoas, mas tambémde trabalhadores que, submissos ao chamado do Senhor da Seara, se

dispusessem a ir à colheita, doando seu tempo e cuidados para que elaseja uma boa colheita.Jesus olhou para as multidões e teve compaixão delas. Compaixão

é di erente dedó. Dó é um sentimento de alguém que está distantedo outro e nada pode (ou quer) azer a respeito da dor alheia (porisso é desprezível, uma piedade de achada, egoísmo dis arçado).Compaixão, porém, literalmente signica padecer junto, so rer junto,sentir a mesma paixão, se colocar na mesma dimensão, partilhardo lugar existencial em que o outro se encontra e estar suscetívelàs contingências desse lugar tanto quanto o outro está. Uma coisa ésaber que milhões de brasileiros vivem abaixo da linha de pobreza.Outra é vivenciar uma situação em que se está “abaixo da linha depobreza”. Uma coisa é ter consciência domix de con usão, alienação,competição, depressão e carências que são vividas pelas pessoas hoje.Outra, bem di erente, é entrar no meio de tudo isso sem se julgar um

estranho, alienígena ou pensar que nada daquilo tem a ver contigo.A compaixão, segundo Henri Nouwen (2003, p. 95-96),É a via para a certeza de que somos cada vez mais nós mesmos,não quando somos di erentes dos outros, masquando somosuma e a mesma coisa. Na verdade a principal questão espiritualnão é: ‘Qual o teu contributo especíco?’, mas: ‘O que é que tutens em comum?’. Não é o ‘suplantar’ mas sim o ‘servir’ que

az de nós pessoas mais humanas; não é o demonstrarmos anós mesmos que somos melhores que os outros, mas simcon essarmos que somos precisamente como os outros.

A impressão que tenho é a de que perdemos a capacidade dechorar, lamentar e nos compadecer pela dor e a desgraça alheia(LOPES, 2006). odo dia vê-se nos noticiários um bocado de genteso rendo pela violência e exclusão engendradas por um sistema quepropõe a “liberdade”, mas uma liberdade que apenas alguns gozam.Roubos, sequestros assassinatos, prisões; é gente so rendo e azendo

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so rer por todos os lados, do banco do ônibus ao carro importado:torturas, humilhações e morte. E a gente? “A gente tá vendo tudo, tá vendo a gente... querendo ou não”, é o que disse o cantor Gabriel OPensador na canção “Palavras repetidas” (2005).

O problema, outra vez digo, está na indi erença e na apatia demuitos em achar que essas ocorrências ao nosso redor não nos dizemrespeito. Mas, se Salomão estava certo sobre a inevitabilidade decertos males nesta existência sem sentido, o que inclui tanto ímpiosquanto justos, uma hora “o raio” poderá atingir a qualquer um denós. Não há homem que não peque, assim como não há quem nãoso ra as consequências de seus atos ou de sua inoperância. Quandoou se ormos abordados diretamente por um desses males, quemsabe acordemos para a realidade, abramos nossos olhos e vejamos, apartir de nosso próprio so rimento, nosso Deus chorando pela dor eos gemidos de sua criação. Então, as dores do mundo não poderão seresquecidas ou ignoradas, como diz Nouwen (2005, p. 21):

Nossa dor az com que experienciemos o abismo de nossa própria vida, no qual nada está estabelecido, claro ou óbvio, mas tudo estáconstantemente passando e mudando. E, à medida que sentimos

a dor de nossas próprias perdas, nossos corações, doendo, abremnosso olho interno para um mundo no qual as perdas são so ridasmuito além de nosso próprio mundinho de amília, de amigos ede colegas. É o mundo de prisioneiros, re ugiados, pacientes deaids, crianças amintas e os incontáveis seres humanos que vivemem constante medo. Então, a dor de nossos corações chorososconecta-se com os lamentos de uma humanidade que so re. Então,nosso luto torna-se maior que nós mesmos.

Caminhando para o m, lembro-me de outro poeta, JoãoAlexandre (1994), quando arma em uma de suas mais conhecidascanções, “Em nome da justiça”, que: “Enquanto se canta e se dança deolhos echados, tem gente morrendo de ome por todos os lados. ODeus que se canta nem sempre é o Deus que se vive não, pois Deusse revela, se envolve, resolve e revive”. Precisamos conhecer melhoro Deus a quem dirigimos tantos sacri ícios de louvor e adoração.Adoração é muito mais do que isso que se tem ensinado nos cultos (eagora até em escolas próprias pra isso). Por quê? Porque a adoração

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maneira como testemunhas vivas de Jesus nos variados contextos denossa sociedade, na política, sim, mas, para bem além dela, em nossoscontextos imediatos.

R

BOSCH, David.Missão transformadora.São Leopoldo, RS: ES ; Sinodal, 2002.CAVALCAN I, Robinson.Igreja, um lugar de transformação e liberdade. Rio de Janeiro: GW, 2005.________.A Utopia Possível. Viçosa, MG: Ultimato, 1997.LOPES, César M. Mobilizando a igreja local para uma missão integraltrans ormadora. In: BARRO & KOHL.Missão Integral Transformadora. Londrina: Descoberta, 2006, pp. 131-171.NOUWEN, Henri J. M.Estrada para a paz. Escritos sobre paz e justiça. SãoPaulo: Loyola, 2001.________.Mosaicos do presente. Vida no Espírito. 3ª ed. São Paulo:Paulinas, 2003.________.Com o coração em chamas. Aparecida, SP: Santuário, 2005.PAC O DE LAUSANNE. Disponível em: <http://www.lausanne.org/pt/>.Acesso em 27 jun. 2014.

AYLOR, Charles.As fontes doself . A construção da identidade moderna.2ª ed. São Paulo: Loyola, 2005.DiscograaGabriel O Pensador. Palavras Repetidas. CD:Cavaleiro Andante. Epic, 2005.João Alexandre. Em nome da Justiça. CD:Todos são iguais. Luz Para oCaminho, 1994.

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M I

U M C (I)

I

O conceito de cultura talvez seja um dos maisdi íceis de ser empregados e até mesmo denidos. Isto,pois “cultura” abrange uma gama de signicados. Pode seconceber cultura como sistema de valores, signos, símbolos,

herdados historicamente e por meio dos quais as pessoasde uma determinada civilização se comunicam entresi. Há também a concepção de cultura como instrução,erudição, saber, educação. Além daquela que a entendecomo expressões artísticas de todo tipo, expressões da vida material e espiritual dos indivíduos, abrangendo seuconjunto de crenças, doutrinas e concepções, adotados etransmitidos de geração em geração. Assim, podemos alarnão apenas de “cultura”, expressando uma coesão, mas de“culturas” híbridas e di usas, podendo ser comparada auma “tapeçaria”, complexa, repleta de cores e nuances portodos os lados.

O historiador José D’Assunção Barros (2005, p. 57)arma que “toda a vida cotidiana está inquestionavelmentemergulhada no mundo da cultura”, e que a simples existência

de um indivíduo, já há a produção de cultura, sem que estenecessariamente seja um artesão, um intelectual ou umartista.

Essa gama de aspectos pode con undir o leitor nosentido mais estrito de como o termo será aplicado nessaunidade. Gosto de pensar na cultura, utilizando a conhecida

rase de Rubem Alves, como “um jeito particular de sergente”. A rase engloba três aspectos importantes para sepensar a cultura:

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a) Ela éum jeito: ou seja, é uma maneira ou modode ser, que organiza, regulamenta e lega ideias, valores,símbolos, padrões associados de comportamentos,produtos, e assim por diante.

b) Ela é particular : a cultura está inserida nas“culturas” e suas peculiaridades e, por isso, pluralidades; demodo que se pode alar, por exemplo, num jeito peculiar deser brasileiro (“jeitinho brasileiro”), ou em jeitos peculiaresde se expressar o tal “jeitinho”.

c) Ela éde gente:é algo humano, demasiadamentehumano. Não se pode pensar a cultura sem levar emconsideração o ser humano, porque as “dimensões dacultura” (c . HIEBER , 1999, p. 31) tanto o conhecimento(dimensão cognitiva), quanto os sentimentos (dimensãoa etiva), bem como os valores (dimensão avaliadora) sãoprodutos derivados deste humano em seu modo de ser.

Assim, quando alarmos de cultura aqui, lembremo-nos dessas três categorias presentes na rase da Alves:modo, particularidade e humanidade. Isso implica dizer

que a cultura não é tudo, mas de algum modo ela seexpressa por meio de uma ampla gama de coisas. Portanto,se a cultura é um jeito, é particular e é de gente, con ormemeu aporte inicial, logo, há sim uma relação com o modocomo pensamos e vivemos a missão, já que ela envolve ummodo particular de ser: cristão e humano. Dessa orma, asnoções de cultura, missão e teologia estarão em livre e nãosistemática relação nesta unidade.

O

1. Denir alguns parâmetros bíblicos para se pensara relação entre a missão e a cultura.

2. Reconhecer como a qualidade de nossa relaçãocom um contexto e cultura especícos é determinante paraa vivência de uma missão trans ormadora.

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C : -Imagine um enorme jardim, cheio de ores e plantas dos mais

diversos tipos, repleto de belezas naturais e paisagens estonteantes,que possui uma riqueza e diversidade tal, como a imagem que muitosde nós temos do Éden, no Gênesis. Pois bem, tal jardim mantém-se nacondição original de “intocado”: o solo, as plantas, os animais, as ores,árvores e rutos. Mas digamos que o Criador do jardim resolvesse criarum ser com capacidades congênitas suas, de criar, cultivar e cuidar. Esseser, na imagem bíblica, é o humano ( Adam), imagem e semelhança deDeus. Deus ez todas as coisas no princípio, e agora o erece a dádiva deser cocriador e mordomo ao ser humano. udo o que, portanto, surgede suas mãos, como subproduto da criação, é “cultura”.

Segundo observa Richard Niebuhr em seu clássicoCristo ecultura (1967, p. 64),

Cultura é o ambiente articial e secundário que o homemsobrepõe ao natural. Ela abrange a linguagem, hábitos, ideias,crenças, costumes, organização social, arte atos herdados,processos técnicos e valores.

Adotando este conceito de Niebuhr, gostaria que olhássemospara a questão da cultura, do ponto de vista teológico, a partir de duasrealidades complementares, que se desenvolve a seguir.

A

Leiamos um texto no livro de Gênesis que embasa esta perspectiva:

Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem,con orme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes domar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda aterra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente aochão”. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deuso criou; homem e mulher os criou. Deus os abençoou, e lhesdisse: “Sejam érteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem aterra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu esobre todos os animais que se movem pela terra” (Gn 1.26-28).

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O princípio da criação do ser humano é um princípio cheio deecundidade. Deus, que é criativo, não somente dota o ser humano

da mesma capacidade criativa, como o incita a ser partícipe diretoda criação. A grande terra e tudo que nela há em termos de recursos

naturais oram dadas ao ser humano, para que, a partir de então, estea sujeitasse (no sentido de um domínio cuidadoso), se multiplicassee a enchesse. A terra passa ser sua habitação e objeto de cuidado emanipulação. “Manipular” aqui tem o sentido de manusear, orjar, aterra. A criação não tem sua orma nal. Deus dá ao homem a dádivade designar, instituir, nomear, cultivar, em bene ício dele e da criação.

Segundo pontua Marcos Monteiro (2007, p. 31) “o artíce dacultura é o homem”. Logo, a cultura pode ser vista como uma espécie dematéria-prima secundária da criação; é o natural sendo trans ormadoem articial, como da laranja se az o suco da laranja. Niebuhr nos dáuma lista mais ampla dessa ilustração:

Um rio é natureza, um canal é cultura; uma peça bruta dequartzo é natureza, uma echa é cultura; um gemido é natural,uma palavra é cultura.Cultura é a obra de mentes e mãoshumanas. É aquela porção de herança do homem em qualquerlugar ou tempo que nos oi legada intencional e laboriosamentepor outros homens, e não o que nos tem vindo por intermédiode seres não humanos ou através de seres humanos que agiramsem intenção de resultados ou sem o controle do processo(NIEBUHR, 1967, p. 55. Gri o meu).

E essa cultura, arma Monteiro, como mani estação humana,tem a sua legitimação na vontade de Deus, anal, sem esseassentimento divino, nada do que oi eito, bem como as palavras de

ordem e conrmação diante do que oi eito, teria sido possível (vejao segundo ponto). De tal modo que “isso não é nada menos do que aarmação da bondade do homem e da sua criação (cultura), por si só”(MON EIRO, 2007, p. 31).

E essa legitimidade vem pela atitude do próprio Deus no princípioquanto ao que havia sido eito: “Viu Deus tudo quanto zera, e eis queera muito bom” (Gn 1.29).

Mas com a queda, as coisas que originalmente eram boas oramcorrompidas pelo pecado. Assim, a cultura carrega as marcas da

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ambiguidade humana, como elabora Monteiro: “homem-para-Deusversushomem-em-pecado” (idem).

E o grande problema não são as coisas em si, e sim o uso que delasse ez. O mau-uso das coisas que Deus declarou como sendo boas, bem

como a exploração da natureza pelo homem, ou homens militandocontra si mesmos, é uma expressão do ódio contra o próprio Deus,que os ez. A lei de Deus, por sua vez, veio para coibir o “mau uso”das coisas em si e todas as artimanhas provenientes da declaração detotal independência do homem contra Deus. Mas o pecado também

ez com que zéssemos um “mau uso” da lei, que deveria servir à vida,mas acabou militando contra ela.

Logo, o que era para coibir o mau uso, acabou coibindo a coisaem si, pelo ato de não conseguirmos, por nós mesmos, vencer o mauuso, con orme Paulo desenvolve em Romanos 7. O pecado (outro serque em nós habita), desse modo, provou-se mais orte que a próprialei. Assim, Deus se ez lei em nosso lugar (Cristo) e carregou nosso

ardo. Passamos, assim, a viver pela graça.A graça, por sua vez, não é a negação e nem o m do pecado, é

a redenção do pecador – “A minha graça te basta”! Assim, a graça éessa dádiva única de Deus capaz de conduzir-nos de novo ao bom usodaquilo que ele declarou bom – a cultura humana. A graça é o que geraa possibilidade de redenção da cultura.

A , D

“O undamento da cultura é o próprio Deus”, segundo de ende

Monteiro. Pode-se, assim, conrmar que há algo de essencialmentebom na cultura, visto que provém de Deus. A cultura seria entãouma realização humana sob auspícios divinos. Ele deu esse voto deconança ao ser humano, ele assinou esse “cheque em branco”.

Igualmente, há algo de essencialmente ruim na cultura – antideus,anti-humano, ruto do mau cultivo da terra, da não solidariedade eharmonia, da superabundância do pecado nas relações. Mas issonão é motivo para armar que a cultura em seu todo é ruim, ou queDeus seria um opositor da cultura e que, portanto, para se viver uma

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Missão Integral 162

espiritualidade genuinamente cristã seria preciso apartar-se dela. Seos elementos gregários de uma determinada cultura contém algo, umacentelha que seja de divino, logo Deus não é seu oposto, pois seriaassim o oposto de si mesmo.

A oposição de Deus, bem como a de seus lhos, é contra oselementos da cultura que denotam a ação dessa mancha inerente aoseu artíce que é o pecado. Sua oposição, porém, não é violenta ouirracional. A solução divina não seria a eliminação da cultura, mas asua redenção por intermédio da graça. Não se arranca ora um braçosó porque nele há uma in ecção. Antes, trata-se a in ecção, procurandopreservar a integridade do braço. Ou, no máximo, arranca-se o braçoquando seu estado pode inter erir na integridade do corpo.

Nesse caso, há algo a ser eliminado, mas há também há algo a serpreservado. Como diz o ditado popular, não se pode jogar a criança

ora junto com a água do banho. A questão é: o que deve ser eliminadoe o que deve ser preservado? De acordo com Marcos Monteiro (2007,p. 36), “tudo que promove e constrói o homem deve ser conservado,celebrado e assimilado pelo evangelho; tudo que o destrói o homemdeve ser denunciado e abandonado”.

E para que isso não soe como a ideia, expressa na rase deProtágoras de Abdera, de que “o homem é a medida de todas as coisas”,poderia ser acrescentar que tudo aquilo que ere o ser humano e odestrói também representa uma a ronta contra o Espírito de Deus e,em muitas circunstâncias, contra a própria criação. Da mesma orma,in ringir e explorar a criação também representa militar contra a vidahumana, e contra o Deus da vida.

Isso, pois, no ser humano coexistem orças de vida e que militampela vida, e pulsões de morte, que militam contra a vida, como declaraJosé Comblin (2007, p. 28):

O que preocupa não é a nossa morte, mas a morte quedesencadeamos, que nos usa como instrumentos para mataros nossos irmãos. Pois, se há em nós orças de vida que nospermitem criar vida, servir a vida, há também orças de morteque matam. Somos capazes de destruir e de matar outros sereshumanos. (...) O problema maior não é que vamos morrer, masque podemos – consciente ou inconscientemente – matar ou

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ser coniventes com quem mata aos poucos. Mata-se até mesmopela indi erença diante da morte lenta ou rápida dos outros –que são pessoas como nós.

Para Comblin, o problema passa pela liberdade de escolha por vida

ou morte que os seres humanos possuem, que passa pela ação intencionalde “matar”, ou pela própria conivência indi erente para com as realidadesde morte que envolve nossos mais variados contextos de vida.

O texto de Deuteronômio 30.15-20 é um bom exemplo desseexercício de liberdade que desaa a cada pessoa: “Vê que proponho,hoje, a vida e o bem, a morte e o mal... os céus e aterra tomo, hoje, portestemunhas contra ti, que te propus a vida e a morte, a benção e amaldição”. Deus expõe diante de seu povo a possibilidade de escolha,todos os dias, por uma dessas realidades. A vida e a morte, segundo essetexto, são potencialidades inerentes às decisões que azemos todos os dias,das perguntas que tocam nossa autoconsciência ética e espiritual: comesse ato, estou optando pela vida ou pela morte? Estou matando ou dando vida? Destruindo ou construindo? Pintando ou borrando o quadro?

A dica que o próprio texto dá é, obviamente, um sinal o ertadopelo “Deus da vida”: “escolhe, pois,a vida, para que vivas, tu e a tua

descendência” (Dt 31.19). Escolhe a vida para que vivas!

C

Concluindo, como já havia sugerido David Bosch (2002, p. 28) aotratar damissio Dei(missão de Deus), existe umsim e umnão de Deus

ao mundo (cultura). O “sim” de Deus pode se expressar na solidariedadecristã com a sociedade e na valorização da cultura; o “não”, por sua vez,apareceria como expressão de nossa oposição e conito com a mesma.Isso propriamente para dizer que a igreja – sinal do reino de Deus einstrumento da graça na reconciliação da cultura – não é nem totalmenteidêntica e nem totalmente avessa à cultura.

Optar pelo ser humano e pela imersão em sua cultura é, portanto,optar pela vida e por uma espiritualidade da vida. E se nossa relaçãocom essa cultura passa pela escolha e preservação do que constrói e,

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ao mesmo tempo, denúncia e abandono do que destrói o humano, nos vemos diante de outra aporia: o queefetivamente promove e o que destrói?O que aproveitar e o que abandonar da cultura? Qual é o critério que nospermite responder satis atoriamente e com um mínimo de consenso

a essa questão?Entendo que essas perguntas envolvem decisões de cunhoético, que nos conduz a uma discussão mais ampla e concebida numhorizonte teológico de perspectivas plurais, por exemplo, acerca dasopções outrora e atualmente eitas sobre a cultura, que nos remeteà interpretação das Escrituras e análise da realidade, e a como oprotestantismo historicamente tem lidado com a cultura. Deixo esteassunto para outra disciplina deste curso que deve tratar disso, que é ade História do Protestantismo Latino-Americano.

R

BARROS, José D’Assunção.O campo da história. Especialidades e

abordagens. 3ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004.BOSCH, David.Missão Transformadora: mudanças de paradigma nateologia da missão. São Leopoldo: Sinodal/ES , 2002.COMBLIN, José.A vida. Em busca da liberdade. São Paulo: Paulus, 2007.HIEBER , Paul.O Evangelho e a diversidade das culturas. São Paulo: VidaNova, 1999.MON EIRO, Marcos.Um jumentinho na avenida. A missão da igreja e as

cidades. Viçosa: Ultimato, 2007.NIEBUHR, Richard.Cristo e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e erra, 1967.

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M IU

M C (II)

IPraticamente todos até hoje concordaram que o

evangelho oi concebido dentro de uma cultura e tempoespecícos, com seu povo, ética, costumes e padrões,construídos num universo plural e tenso, próprios daquelaépoca. odavia, a divergência maior está no tipo de relaçãoque há entre a revelação e a cultura, ou mais precisamente nopapel da mediação cultural nesse processo. Esse problemaestá ligado a uma “minimização da razão” (termo utilizadopara designar os métodos e o conteúdo dos conhecimentospertencentes a uma cultura) e à “exaltação da revelação” –a qual, por sua vez, indicaria um conhecimento de Deusderivado de Jesus Cristo e que se encontra numa suposta“sociedade cristã” (NIEBUHR, 1967, p. 101).

Pois bem, já vimos um pouco sobre o que pode serentendido por cultura, como ela se mani esta e qual a suarelação com a Bíblia, olhando para esse plano original deDeus, descrito no livro de Gênesis, a partir de duas realidadescomplementares: da cultura como sendo eminentementehumana e, ao mesmo tempo, eminentemente divina. Cabe,nessa unidade, tentar entender uma terceira realidade a partirdo entendimento do que érevelação, ou pelo menos delinear

uma compreensão possível, e como ela está relacionada coma questão cultural. Para tanto, meu interlocutor principalnessa breve conversa será Paul illich.

O1. Compreender como a compreensão de cultura,

como vista na unidade anterior, esta relacionada com arevelação e a missão cristãs.

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A

A palavra “revelação” na Bíblia tem o sentido de “tirar o véu”,descobrir aquilo que estava encoberto ou obscuro. Nas palavrasde illich (1987, p. 97), “é a mani estação de algo escondido quenão pode ser alcançado através das ormas ordinárias de conseguirconhecimento”.

Isso implica pensar que alguma coisa estava oculta e oi revelada.Que coisa é essa, e de quem ela estava oculta? Parece claro que ascoisas ocultas azem parte do âmbito do mistério divino. Essa é umaboa palavra para se re erir à revelação, “mistério”. Ora, mas se essa

coisa passa a ser revelada ela deixa de ser mistério, pois chegou aoconhecimento. Como pondera illich (idem, p. 98), “nada do quepossa ser descoberto por abordagem cognitiva metodológica deveriaser chamado de ‘mistério’. O que não é conhecido hoje, mas que poderáser conhecido amanhã, não é um mistério”.

O que me leva a reetir que, se a revelação é o ato de abrir ascortinas para o mistério divino, e esse mistério continua sendo mistériomesmo revelado, a revelação, portanto, não expõe tudo o que poderiaser dito a respeito daquilo a que ela se põe a revelar. Qual é então osentido da revelação? Quem, anal, abriu as cortinas, em que medida,e por quê? Quero prosseguir nesse raciocínio daqui a pouco.

Antes, respondendo à primeira questão, parece que essa revelaçãoseja a eitura daquilo que era impossível à razão humana. Ou seja, éuma “mani estação especial e extraordinária que remove o véu de algoque está escondido de orma especial e extra-ordinária”. Assim, a razão

seria da ordem do ordinário, enquanto a revelação seria da ordem doextraordinário. Ora, mas restaria algum papel ou unção ao ordinário àmedida que o extraordinário acontece? A resposta a essa pergunta nosconduz ao entendimento que gostaria que xássemos nesse instante.

É preciso pensar que a revelação é da ordem do divino, provémdele e se expressa por sua soberana vontade. E não apenas por suasoberana vontade, mas por seu amor inexplicável por sua, muitas vezes,relutante criação, especialmente pelo povo que Ele mesmo escolheupara si. Se ela provém de Deus, não há nada que o ser humano ou

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qualquer outra criatura possa, por seus próprios meios, azer paraalcançá-la. É um ato supremo da graça de Deus.

Nesse sentido cabe a distinção entre “religião” e “revelação”.Religião pode ser entendida, num sentido geral, como o es orço ou

conjunto de es orços humanos plasmados no sentido de alcançar aDeus.Religião é negócio humano. Já revelação é a automani estação deDeus, pelos meios que lhe aprouver, ao ser humano e por amor a ele.Revelação é negócio divino. É, na denição de illich (1987, P. 98), “amani estação daquilo que nos diz respeito de orma última. O mistériorevelado é de preocupação última para nós porque é o undamento denosso ser”.

Ora, se religião não é revelação, e se revelação é um ato queprovém de Deus e, num primeiro momento, não tem aparentementenada a ver com capacidades e es orços humanos, qual é então o pontode contato que e etiva a revelação como algo inteligível ao ser humano, já que um dos propósitos é o de “mostrar” algo a ele? Eis que entãoentra a unção da razão e cultura humanas nesse processo. Para quea revelação osse inteligível ao ser humano, Deus escolheu ormasordinárias para mani estar o extraordinário. Há, portanto, uma

correlação entre eles.Primeiramente ao revelar-se por meio de seu lho, Jesus Cristo,o verbo encarnado, que habitou entre nós, cheio de graça e de verdade,assumindo nossa condição, e ao mesmo tempo mantendo suacondição divina, para que a glória de Deus osse nele vista: “e vimossua glória, glória como do unigênito do Pai” (Jo 1.14). A encarnação,portanto, é o ponto de contato divino-humano em grau máximo. ÉDeus assumindo sua ace cultura, visto que Jesus oi um homem desua cultura, judeu de nascimento, lho de Maria e José, nascido emBelém, criado em Nazaré da Galiléia, aprendiz de uma prossão, ade carpinteiro, e também aprendiz e seguidor da lei e dos costumesreligiosos judaicos. Esse contato cultural se deu para revelar ao serhumano coisas pro undas sobre Deus e coisas pro undas sobre elemesmo. Anal, Deus habitou entre nós em orma humana.

E quando Jesus inicia seu ministério e começa a alar sobre o reinode Deus e a ministrar à vida de seus concidadãos terrenos, ele o az emtermos culturais. Sua linguagem expressa a revelação de Deus, de seu

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reino e sua vontade para o ser humano nos termos e imagens daquelacultura, sendo um aprendiz de sua cultura, contando histórias que têma ver com a vida de seu povo, e participando da celebração da vida pormeio da esta e do so rimento humano, em diversas circunstâncias.

Como ilustra Marcos Monteiro, Jesus era um aprendiz da palavrade Deus, e desde cedo se interessou por ela, aprendendo com maestriae en rentando os doutores da lei ao ponto de deixá-los perplexos.

Ao mesmo tempo, era um atencioso observador da natureza e dahistória dos homens, de modo a extrair a mensagem do Reino deacontecimentos corriqueiros, das ores e das aves, do trabalhodo agricultor (Mc 4.1-9), da dona de casa (Mt 13.33) e da ugado lho do azendeiro (Lc 15.11-32)... Ao contar histórias, Jesus valorizava a vida do povo como portador de mensagens e liçõesdo Reino, e criava uma identidade e uma base comum para odiálogo, abrindo espaço para que o novo – a presença do reino deDeus – se estabelecesse concretamente no antigo – a existênciacotidiana do povo. (...) A primeira aparição pública de Jesus

oi num casamento, onde o encontramos não como ocianteda cerimônia, mas como provedor do vinho (Jo 2.1-12). Seusadversários costumavam acusá-lo de participar de estas depecadores (Mt 11.19; Lc 5.30) e seus discípulos ormavam umgrupo irrequieto e barulhento, a ponto de incomodar a piedadeascética dos escribas e ariseus... (MON EIRO, 2007, p. 40-41).

Em segundo lugar, Deus se revela por meio das palavras daquelesque deram testemunho de seu lho, Jesus Cristo, que compõem a Bíblia.E essa revelação escrita se dá não somente por meio de linguagemhumana, como nos termos da própria cultura do ouvinte. rata-se de

um processo dinâmico de inspiração das Escrituras; dinâmico, digo,pois signica interação entre o sopro divino e a linguagem e ormas depensamento humano, imersas dentro de uma cultura especíca quepossui elementos tanto da imagem de Deus como do pecado humanoe que, portanto, é ambígua, isto é, nem totalmente boa, mas tambémnem totalmente pérda.

Disso, depreende-se, como observa illich (1987, p. 99),que a revelação mantém os eventos subjetivo e objetivo, natural esobrenatural, ordinário e extraordinário em interdependência ou

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tensão dinâmica. Em suas palavras, “revelação não é real sem o ladoreceptivo, e não é real sem o lado doador”, sendo Deus o doador e o serhumano e sua cultura especíca os receptores.

Como ilustração desse processo dinâmico, pode-se mencionar

também a inserção de paradigmas próprios daquela época nosdiscursos de muitas passagens do Novo testamento, como noschamados “catálogos de vícios e virtudes”, em que constam alhaspessoais e comunitárias, deveres e obrigações que se ordenam aoscrentes. Con orme analisa José Miguez Bonino (1982), estudosneotestamentários têm asseverado que esse gênero parenético(exortações) oi utilizado de modo paralelo às listas e instruções vigentes na época, inspiradas em correntes como a losoa estoica.Assim, como sublinha o autor,

É claro, portanto, que o Novo estamento utiliza, para ilustrar a vida cristã, os conceitos de virtude, de ordem, de subordinação,em suma, a trama de relações e regulamentações sociais aceitascomo positivas na cultura do momento. O crente não é chamadopara retirar-se a uma ilha onde domine outra ordem e outracultura, mas para participar na trama de relações e exigênciasde seu meio. O Novo estamento encontra nas normas e ormasda cultura uma linguagem adequada para expressar a naturezado amor que em Jesus Cristo o cristão aprendeu e recebeu – onovo homem pode viver nesse clima (BONINO, 1982, p. 103).

Um exemplo claro dessa incorporação de padrões socioculturaispara a ilustração da vida cristã está na carta de Paulo aos Colossenses,con orme segue

Mulheres, sujeite-se cada uma a seu marido, como convém aquem está no Senhor. Maridos, ame cada um a sua mulher enão a tratem com amargura. Filhos, obedeçam a seus pais emtudo, pois isso agrada ao Senhor. Pais, não irritem seus lhos,para que eles não desanimem. Escravos, obedeçam em tudo aseus senhores terrenos, não somente para agradá-los quandoeles estão observando, mas com sinceridade de coração, pelo

ato de vocês temerem o Senhor. udo o que zerem, açamde todo o coração, como para o Senhor, e não para os homens,sabendo que receberão do Senhor a recompensa da herança.

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É a Cristo, o Senhor, que vocês estão servindo. Quem cometerinjustiça receberá de volta injustiça, e não haverá exceção paraninguém. (Cl 3.18-25).

Essa é uma típica amostra de como na Bíblia muitos dos

preceitos estão estreitamente vinculados a padrões morais e éticos queconcernem a uma dada cultura; e no caso podemos alar de culturano plural, já que o mundo do Novo estamento emerge entre padrões judaicos, mas também helênicos. E no meio dessas “conveniências”culturais, de virtudes como a sinceridade, a tolerância e o respeito aooutro dentro de tradições próprias, há também a expressão de valoresdivinos absolutos e eternos, tais como o amor, a justiça, e a obediênciaao Senhor em primeiro lugar.

Isso é mais um dado que inclusive re orça o argumento de quea aplicação aos dias de hoje de textos como esse, que trazem regrasespecícas para a de esa das quais o apóstolo em momento algumparece evocar a autoridade do evangelho, precisam de uma devidacontextualização.

Como de ende José Comblin (1986), a “conveniência” asseveradano texto se re ere à sabedoria vivida e transmitida na tradição de Israel

de geração em geração. Logo, o que Paulo az não é transplantar ummodelo alienígena para substituir os anteriores, mas ele os mantém,apenas dando a eles a perspectiva do Senhor. Os cristãos precisamaceitar a condição estabelecida pelas regras de sua sociedade e cultura,mas dando a elas o valor que realmente têm – nem mais e nem menos.A di erença dos cristãos nesse processo de adesão ou respeito aos velhos costumes seria o modo como vivem sua espiritualidade e seinserem nessa condição humana.

Ao mesmo tempo, absolutos da cultura não devem sercon undidos com absolutos de Deus – embora, por uma hermenêuticadesleixada, se aça isso quase que o tempo todo na igreja. Como indagae analisa Comblin (1986, p. 73):

Estas regras não constituem a totalidade da concepção cristãdas relações de amília, menos ainda das relações sociais.O próprio texto exorta a viver tudo no Senhor. Mas nãodetermina em que consiste essa integração no Senhor. A longoprazo, não irá ela exigir mudanças na própria estrutura social,

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nas relações de amília? O que acontece quando mudam ascondições econômicas e culturais que orneceram a base da

amília tradicional aqui suposta? Estas regras não respondema tais questões. Certamente o próprio Paulo, como ninguém naantiguidade, jamais pensou numa trans ormação da estruturanem da sociedade, nem da amília.

No texto bíblico acima, vemos Paulo sugerindo a maridos, esposas,lhos, pais, escravos e senhores que continuem se subordinando àsregras estabelecidas pelas convenções sociais. Os limites, se assimpodemos dizer, da subordinação e valorização de tais regras sãoestabelecidos com a relativização destes à luz de um critério maior:tudo se az “ao Senhor”, como “para o Senhor”, agradando ao Senhor,

temendo ao Senhor, em serviço ao Senhor, esperando a recompensaque virá do Senhor. Essa é a “regra suprema”. E isso deveria valer tanto para a relação marido-esposa, pais-

lhos, senhor-escravos, que já possuíam suas normas próprias dentrodaquela cultura, mas que deveriam ser observadas a partir de uma regramaior. De tal maneira que: as mulheres continuam sendo submissas,mas os maridos precisam amá-las; os lhos precisam obedecer seuspais, mas os pais não devem irritá-los; os servos mantêm-se emsubordinação (embora a escravidão não se undamente na vontadede Deus, era quase inconcebível na época não haver escravos), masos senhores devem tratá-los com justiça, pois Deus trata a todosindistintamente, não azendo acepção entre pessoas. Isso lembrandoo que o próprio Paulo disse sobre nossa condição em Cristo, na qualnão há escravo ou livre, homem ou mulher, judeu ou grego, pois todossomos iguais perante Jesus Cristo (c . Gl 3.28).

Na perspectiva de Bonino (1982, p. 104), isso não se trata de purae simplesmente de cultivar virtudes ou adotar certas regras, mas de“integrar as relações e exigências da vida ética, da cultura na qual oindivíduo se encontra, com essa nova qualidade de ser do crente”, poisisso automaticamente o induz a melhorar os conteúdos das relaçõese exigências da sociedade. rata-se de uma integração crítica e nãoaculturação indiscriminada; é a troca de uma postura demonizadorada cultura por uma postura que integra elementos dessa cultura parapreservar o que é bom, e trans ormar o que é ruim.

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Isso signica que a radicalidade da missão cristã não se encontrano abandono do mundo ou na total subversão dos paradigmas oupadrões sociais e culturais de um dado contexto, mas da vivência daética de uma nova humanidade em Cristo dentro desse mundo. É “dar

a César o que é de César” e a Deus o que é de Deus.A avaliação de Marcos Monteiro vai nesse sentido de um incentivoà igreja a participar da cultura para trans ormá-la e, ao mesmo tempo,como oportunidade da própria igreja se reinventar e crescer:

Quando a Igreja participa da cultura ela cresce e ao mesmotempo isso contribui para libertá-la de seus determinismosredutores, abrindo-lhe a possibilidade de sair de si mesmaao acrescentar-lhe uma dimensão transcendental. (...) Comonão há revelação ora da cultura, o que ocorre de ato é ointercâmbio cultural no sentido de signicado, que contribuipara o enriquecimento da própria revelação. endo em vistaque nenhuma cultura em particular esgota o conteúdo darevelação, a teologia permanece sempre aberta a novas épocase culturas. (...) Sempre que a revelação entra em contato comuma nova época ou cultura, adquire uma nova ên ase oudimensão (MON EIRO, 2007, p. 42-43).

Nesse sentido é que Deus amou o mundo – encarnando-se nele– e nos convida a amá-lo por meio da encarnação na realidade emconjunto com a submissão ao propósito redentor de Deus na cultura.Esse amor não se conjuga na aplicação de um legalismo piedoso quese detém na simples exortação verbal de como as pessoas devem viver: “ aça isso, não mexa naquilo, não toques naquilo outro”, e assimpor diante. O amor tem a ver com o envolvimento e compromissode mudar o mundo, primeiramente por meio da mudança de nossamentalidade acerca de qual é o nosso papel nesse mundo. Assim, naspalavras de José Miguez Bonino (1982, p. 105):

Amar é impregnar a totalidade das relações com a totalidade doshomens da disposição concreta ao serviço e entrega que Deusmani esta. Amar é ingressar nas relações e exigências éticas dacultura na qual nos encontramos com a livre determinação do

novo homem em Cristo e repensar e reviver essas relações eexigências na orma nova que corresponde a esse novo homem

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critérios e ações estratégicos, bem como assegura um pouco mais arelevância da mensagem, mas, como arma Andrew Kirk (2006), “nuncapode denir as metas nais da missão”. ais metas, por sua vez, seriamestabelecidas, com indica o autor, através de uma pro unda reexão do

signicado do evangelho: “É por meio de uma interação constante comas armações undamentais da é que a Igreja pode discernir ormasespecícas através das quais a realidade de Jesus Cristo é boa nova paraum contexto em particular” (KIRK, 2006, p. 128).

Parece-me que a preocupação de Kirk é a de pontuarpossibilidades, mas também limites para ação missionária da igreja emsua relação com a cultura. Quando existe tal preocupação, começamos

a nos indagar sobre os critérios – o que promove ou destrói, o queaproveitar e o que abandonar. Esses critérios obviamente provêm dopróprio evangelho, mas podem ser relativizados por nossa apropriaçãoou interpretação da Palavra, que varia de acordo com nossos contextos.E isso gera conitos, pois daí surge também outros critérios que sãoengendrados a partir de atores secundários, geralmente ligados aoscostumes e às práticas cotidianas, tais como comer, beber, trabalhar,

descansar, namorar, se divertir, cultuar, etc.Esse conito é inevitável, pois somos diversos e nossas leiturastambém serão. Uma saída próxima rumo à conciliação seria a maior valorização do que é essencial e negociação de questões não essenciaisno evangelho. Outra importante questão é a dos riscos. Não se podeevitá-los, à medida que ingressamos nessa relação com o mundo ebuscamos respostas adequadas. Portanto, aprender a correr riscos elidar com eles é tão inevitável quanto é importante para a espiritualidadecristã, pois apenas re orça o ato de que somos vulneráveis e carecemosde um exame sempre constante de consciência e espírito diantede Deus, bem como de reconhecer nossa dependência do Espíritonesse processo. Se a Igreja perde essa dimensão de vulnerabilidade edependência, ela corre o risco de ser cooptada pelo sistema, tornando-se re ém das normas egoístas, iníquas e opressoras que gravitam nasrelações socioculturais num mundo caído.

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R

BONINO, José Miguez.Ama e faze o que quiseres. São Bernardo doCampo: UMESP, 1982.COMBLIN, José.Epístola aos Colossenses e Epístola a Filêmon.Petrópolis:Vozes; São Leopoldo: Sinodal, 1986.KIRK, Andrew . O que é missão? eologia Bíblica de Missão. Londrina:Descoberta, 2006.MON EIRO, Marcos.Um jumentinho na avenida. A missão da igreja e ascidades. Viçosa: Ultimato, 2007.NIEBUHR, Richard.Cristo e Cultura. Rio de Janeiro: Paz e erra, 1967.

ILLICH, Paul.Teologia sistemática. São Paulo: Paulinas; São Leopoldo:Sinodal, 1987.

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Nessas duas últimas unidades de nosso curso, queroo erecer uma possível contribuição ao exercício do papelteológico de leitura dos sinais dos tempos, retomando outra vezum velho vocabulário da teologia e da losoa, que é aquestãoda verdade1. Nesta unidade, desejo começar olhando paracomo em uma recente publicação (de 2012, edição espanhola),que é o documentoEl Compromiso de Cuidad Del Cabo(Compromisso da Cidade do Cabo, doravanteCompromisso) , abordou-se o tema. No escopo dos temas en ocados emperspectiva teológica, esta questão me pareceu representaruma candente preocupação, ruto, sobretudo, da avaliação queseus redatores azem de desaos contemporâneos como a pós-modernidade, a globalização e o pluralismo.

OCompromisso é resultante das discussões e temáticas doerceiro Congresso Mundial de Evangelização (Lausanne III),

ocorrido em Cape own, Á rica do Sul 2010. E compreendonão ser à toa tal ên ase aparecer justamente em um congressode evangelização, uma vez que, para a maioria dos evangélicos,evangelizar implica, necessariamente, “demarcar o território”da verdade cristã como orma de convencer o outro de que não

há outro caminho a percorrer, para a salvação, senão aqueleanunciado por Jesus em João: “Eu sou o caminho, a verdade, a vida, e ninguém vem ao Pai senão por mim” (Jo 14.6).

Algumas perguntas que me motivam nesta breveincursão: Por que dessa insistência com o testemunho e a de esada verdade na evangelização? Como Lausanne III compreendea questão da verdade? De que modo esta compreensão está

1 Vale mencionar que estas duas unidades são versões adaptadas de meu ensaio “A evangelizaçãocontemporânea como testemunho da verdade”, publicado naPráxis Evangélica 22, Out.-2013 (pp. 11-32). Agradeço aos editores da revista pela permissão em reutilizá-lo aqui.

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ou não relacionada com a percepção média evangelical sobreessa questão nos últimos tempos? Em unção de quais agendasteológicas e perspectivas se endereça o assunto?

Mas, antes de prosseguir, um importante esclarecimento.Como vimos nas primeiras unidades do curso, missão pormuito tempo (e ainda hoje) oi con undida com missões,como se ambos o conceitos ossem sinônimos. Observamosque são di erentes, e que a missão diz repeito àmissio Dei,enquanto missões são atividades que a igreja realiza em prolda proclamação do evangelho, enviando missionários para várias partes do mundo, especialmente entre povos “nãoevangelizados” (isto numa compreensão geral, apenas para

relembrar). O mesmo pode ser dito em relação àevangelização,que pode ser compreendida como a proclamação, por palavrase ações, das boas novas (o evangelho) do reino de Deus para ohomem todo e a todo homem, em todos os lugares (ou até osconns) da terra – para raseando aqui o lema do Congresso deLausanne (Lausanne I, 1974). Por conseguinte, a missão nãose resume à evangelização (ou proclamação), mas a segundaé uma dimensão e/ou o cumprimento de uma parte muito

importante da primeira, mas que não tem necessária primaziasobre outras dimensões da mesma missão, tais como serviço,adoração, ação social ou discipulado/ensino. endo dito isto,podemos prosseguir em nossa breve jornada.

O

1. Identicar as intersecções possíveis entre missãoe evangelização tomando como caso o documento “OCompromisso”, de Lausanne III.

2. Discutir a questão do testemunho cristão e daapologética “da verdade” a partir de elaborações recentesda chamada teologia evangelical.

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A Um dos primeiros temas propostos noCompromisso oi:

“Dar testemonio de la verdad de Cristo em um mundo pluralista yglobalizado”. A abordagem inicial ao tema, portanto, é bíblica, uma vez que o próprio Cristo, nas palavras de João, é aquele que veio dar“testemunho da verdade”. Mas o que signica dar “testemunho da verdade” no mundo atual? Gostaria de conjugar a resposta para talpergunta tanto com incursões ao documento quanto com observaçõese análises pessoais que serão eitas aqui e, sobretudo, mais adianteneste ensaio.

Lausanne III, como o movimento evangelical em geral, ainda

parece adotar a via da apologética moderna, de que devemos proclamare de ender a verdade em termos proposicionais, com argumentosconsistentes, como “embaixadores” e paladinos da verdade. No itemsobre “la verdad y los médios globalizados”, rma-se o seguintecompromisso:

Nos comprometemos com uma renovada participación críticae creativa em los médios y la tecnologia como ormas deabogar por la verdad de Cristo em nuestras culturas mediáticas.Debemos hacerlo comoembajadores de verdad , gracia, amor,paz y justicia de parte de Dios (EL COMPROMISO, 2012, p.41 – Gri os meus).

Observe que a participação nos meios de comunicaçãoglobalizados é vista como uma maneira de “advogar” ou “de ender”a verdade, agindo ou atuando como “embaixadores” da verdade.Embaixadores, em geral, são aqueles que possuem a unção de chear

a missão diplomática de seus países e são tidos como legítimosrepresentantes da nação de onde procedem em terra estrangeira. Nosdicionários da língua portuguesa, denições da palavra “representante”convergem para a ideia de alguém que retrata, reete ou reproduz aimagem de alguém a outro alguém com na clareza. Em nosso caso,um embaixador de Cristo representa a imagem da verdade de Cristonos meios em que vive. Obviamente, quase ninguém veria nestepressuposto um problema, anal o chamado do cristão, segundo osevangelistas, é para que vá e aça discípulos de Jesus (ou da verdade) em

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renovação do espírito de nossoentendimento(E 4.23), e no re azer-separa o plenoconhecimento (Cl 3.10). Em Romanos ele também ala datrans ormação e do não assumir a orma deste mundo por meio do queele chama de renovação damente (Rm 12.2). A tare a dodiscernimento,

por sua vez, não é aquela em que podemos conhecer a mente deDeus, mas em que passamos a ter “a mente de Cristo” (1Co 2.16), enos tornamos atentos à ação do Espírito no mundo. Fica claro aquique o exercício da é não é um “salto no escuro” pura e simplesmente,mas envolve um treinamento do entendimento com todo o nosso ser,nosso intelecto sim, mas também nossas emoções. O Espírito não alaa uma parte de nós, mas a todo o nosso ser; e esse ser é “espiritual”não porque se apartou do corpo ou da racionalidade humanas, mas namedida em que cogita (pensa) e pulsa (sente) as coisas con orme soprao sopro do Espírito de Deus.

Nesse sentido, uma das mais assertivas denições de evangelização vem do mundo evangelical britânico, e é de John Stott em seu livroOuça o Espírito, ouça o mundo:

A verdadeira evangelização precisa “ouvir duas vezes”, ouvircom sensibilidade, pois a testemunha cristã ca entre a Palavrae o mundo e está, consequentemente, na obrigação de ouvir aambos. Nós ouvimos a Palavra a m de descobrir mais e mais dasriquezas de Cristo. E ouvimos o mundo a m de discernir, dentreas riquezas de Cristo, quais são as mais necessitadas e comoapresentá-las a ele da melhor maneira (S O , 1998, p. 124).

A singularidade desta visão de Stott está precisamente emconceber a evangelização menos como um alar e mais como um ouvir,

ou pelo menos em considerar que o ouvir deve preceder qualquerorma verbal de proclamação (se necessária) ou mesmo qualquer tipode ação. Além disso, essa escuta se congura comodupla; ouvimosao Espírito, que nos ala pela Palavra, e também aos clamores domundo que nos rodeia (não necessariamente nessa ordem), e assima evangelização se dá, também, a partir de um duplo encontro: o daPalavra com o mundo, e o do/a discípulo/a com seus companheiros/asmundanos. E o propósito deste encontro, em que a escuta é a premissainicial, ao que parece, não é azer com que a visão cristã da verdade

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prevaleça sobre a cosmovisão do outro, mas em que haja diálogo,que na sua essência é uma tentativa não tanto de convencer, quantode compreender e conviver respeitosamente. Segundo observa Stott(1998, p. 124), “diálogo é uma conversação séria na qual nós estamos

dispostos a ouvir e aprender, assim como alar e ensinar. É, pois, umexercício de integridade”.Minha própria visão sobre a evangelização contemporânea

também passa pelo caminho do encontro e do diálogo, embora istonão signique que o diálogo seja um substituto do evangelismo, masse trata de mais um meio que, assim como o próprio evangelismo,também está, em seus próprios termos, a serviço damissio Dei2. E o quese busca no encontro não é necessariamente converter o outro à minha verdade por meio da mera persuasão, nem tampouco de de ender a écristã do que quer que seja – como se todo tipo de acusação a ela eita

osse passível de uma advocacia, e não de reconhecimento honestoe arrependimento – mas de uma conversa ranca sobre perspectivase labores di erentes de vida e de é, buscando primariamente não oconsenso (embora alguns consensos sejam possíveis), mas o mútuoenriquecimento sem a orçosa necessidade de abandono das convicções

prévia e precariamente assumidas, sobretudo, porque, embora se creianelas rmemente, reconhece-se a ragilidade e precariedade de seudepositário.

O paradoxo da é, nesse sentido, é que a despeito de ela ser a é decada um, teologicamente alando ela é umdom, maior que a própriapessoa que o recebeu. Resta saber se isto ainda poderia ser chamadode “apologética” (de esa da é). Aposto que não. Sobretudo, porqueembora o es orço de convencimento do outro de que a é cristã é válida, relevante e melhor que outras crenças tenha sido uma respostaconsiderada certeira em um mundo cético quanto ao valor da religiãocomo oi, e em parte (bem pequena) ainda é, o mundo moderno,ainda mais o cientíco, creio que essa não é a principal ou a melhorestratégia – a de de esa propositiva da é – de evangelização em nossosdias. Na próxima unidade explicarei melhor por quê.2 Clark Pinnock (1992, p. 147, tradução minha) oi quem disse que “não é apenas para os propósitosdo evangelismo mais imediato que devemos nos engajar no diálogo em busca da verdade, porqueo diálogo serve a missão de Deus na es era da trans ormação histórica também, e os e eitos daobediência podem ser maiores que aquilo que previamente pretendíamos”.

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Nisto, é preciso ressaltar, minha atual posição também di ereem muito da evangelical, sobretudo de uma segunda dimensão da“apologética sólida” de Lausanne e da visão evangelical que gostaria demencionar, que é a de uma argumentação lógica e dedutiva em de esa

dos conteúdos da é. Esta é uma dimensão complementar à primeira,sem dúvida, mas também um aviltamento desta. Isto, pois admito que aé seja racional, embora não apenas racional, e que viver pela é implica

em o erecer, com máximo es orço de clareza e coerência, a razão doque cremos e por que cremos dessa orma. O que não concordo é como peso dado pelos apologetas da verdade aos argumentos racionaise lógicos sobre a é. Um dos grandes arautos dessa perspectiva, semdúvida, oi o norte-americano Carl F. H. Henry, teólogo e editor

undador daChristianity oday . Algumas de suas perspectivas sobre a verdade da é cristã oram endereçadas em seu livrooward a recoveryof Christian belief(1990), que reúne ensaios de palestras o erecidas porHenry na Escócia em 1989.

Em um dos ensaios em que mais en atiza a questão da verdade(“Presuppositions and theological method”), sua armação centralé a de que a consistência racional é um “teste para a verdade”, e um

meio para que a teologia não se trans orme em mero deísmo3

.Como quase toda apologética, por sua natureza de ensiva, possui seusadversários, os escolhidos de Henry neste ensaio são os empiricistas,os neokantianos e os existencialistas. Os dois primeiros pelo apeloà objetividade, e o último pelo apelo à subjetividade na busca peloconhecimento. No campo teológico, ele rejeita tanto a visão liberal,de negociar os absolutos da é bíblica a m de adequar seu discurso àsexpectativas do ser humano moderno, quanto a de Kierkegaard e decertos neo-ortodoxos, como Karl Barth (pelo menos em parte de suaobra), por de enderem, segundo ele, que a verdade na religião residemais no campo da é (como salto) do que depende de raciocínios ouevidencias lógicas e testes racionais. Para Henry, tais visões não podemser con undidas com a ortodoxia evangelical, para a qual, em sua visão,“é inaceitável a armação irracionalista de que o absurdo intelectual éo que torna dignas as crenças religiosas ou que a obediência espiritual

3 Fideísmo é uma vertente epistemológica que arma a independência da é em relação à razão, sendoque, na busca e alcance da verdade, a é é superior e não necessita da razão.

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depende de um ‘salto de é’ indi erente a considerações racionais”(HENRY, 1990, p. 39, tradução minha).

Sua premissa básica, assim, é a da legitimidade de uma teologiadedutiva – undada em argumentação racional, sistemática e lógica sobre

a é – e a invalidade da alternativa evidencialista, isto é, a que necessitada evidência empírica como prova para argumentos racionais (HENRY,1990, p. 40). Um tanto acertadamente, Henry arma que mesmosistemas cientícos consagrados, como a teoria da evolução de Darwinou a teoria da relatividade de Einstein, em certo nível, necessitam de é,ou seja, da aposta de que as coisas são como e etivamente se acreditaque sejam. “Em suma”, diz ele, “sem a é, nem a ciência, nem a losoa,

nem a teologia podem azer progressos” (HENRY, 1990, p. 44). Ateologia dedutiva, embora se ancore na verdade da é, de ende que oteste para esta verdade é sua consistência lógica, a partir da inteligívelauto-revelação de Deus; acredita na orça do argumento, na de esaproposicional da é e vericável por meio da Bíblia como meio ecaz dese alar “autoritativamente” sobre Deus. Em tese, não vejo Henry caindona armadilha in antil de crer na correspondência da verdade com osdiscursos (teológicos) sobre ela. Ainda assim, ele insiste na ên aseunilateral de que o Espírito usa a verdade, atestada pelas Escrituras etestada pela consistência lógica do discurso, como um instrumento depersuasão e testemunho (HENRY, 1990, p. 59).

A questão crucial aqui, para mim (embora já tenha antecipadominha posição a respeito), é indagar se esse tipo de apelo autoritário epersuasivo no testemunho seria algo urgente e a melhor maneira de setratar da verdade contemporaneamente e se a principal questão de nossaparte com a verdade hoje é a de sua “de esa”. Se a verdade é, para nspráticos, uma pessoa (Jesus), como e qual é a unção e o lugar para o alardela autoritária, persuasiva e propositivamente? Minha insistência nessadiscussão se dá precisamente por entender que ainda há uma orte correnteno meio evangelical de insistência nessa proposta, que não imputo comosendo errada, talvez só um pouco ora do lugar. Crê-se, em certos círculosapologéticos evangelicais, con orme disse Henry (1990, p. 71 – raduçãominha), que “a expressibilidade proposicional é, obviamente, uma pré-

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condição para a avaliação de qualquer sistema. Um sistema que nãopode ser expresso propositivamente envolve uma ambição à verdade nãocompartilhável e que de nenhuma orma pode ser testado”.

Vale dizer que ser proposicional não é um problema em si. Neste

momento, ao reabrir esta discussão, estou lançando mão de argumentos,de perspectivas e, espero eu, de razoáveis proposições. Ou seja, não souadepto do irracionalismo ou do “vale tudo”. O que me parece um tantoultrapassada é a pretensão à verdade (a com “V” maiúsculo) a partirdas proposições; é todo o peso que se dá a elas, como se um pequenosinal de incoerência em minha ala (o que sempre é uma possibilidade),menos até do que em minha vida, osse prova da invalidade de meu

discurso, pois este não corresponderia à verdade (e qual corresponde?).Em suma, é a pretensão a ser a única “voz da verdade” em um mundoplural. É claro que em uma discussão nos avaliamos mutuamente combase na assertividade e coerência de nossas proposições, o que nãosignica que: (a) elas sejam in alíveis; nem que (b) a sua consistêncialógica invalida, automaticamente, o discurso supostamente menosconsistente de outrem, bem como elimina sua possível aceitação como

“verdade particular” em certo contexto.Ou seja, o que me parece estar em oco aqui é um debate comodisputa, não como diálogo, quando tratamos nossas convicções nessestermos. Isso ca mais claro ainda quando Henry diz que “se as armaçõesrevelacionais cristãs são verdadeiras, nenhum outro sistema poderá sermais compreensivamente consistente” (HENRY, 1990, p. 82, traduçãominha). A aposta aqui, portanto, não está tanto na verdade em si, que

se basta, mas na superioridade de consistência e coerência lógica do“sistema cristão” em relação aos demais em sua acessibilidade à verdade.Para Henry, em suma, embora não se possa provar (como queriam osempiricistas) que o que se arma no sistema cristão corresponde à verdade reivindicada, sua relevância losóca depende da armação deque a verdade cristã tem validade universal, com alguma garantia paraisso sendo apresentada (ver HENRY, 1990, p. 88).

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C

Para nalizar, eu diria que uma resposta coerente a estasarmações de Henry pode ser encontrada na seguinte armação deGeorge Lindbeck (1984, p. 69 – radução minha):

Assim como a gramática por si mesma não pode armar nadaque seja verdadeiro ou also a respeito do mundo em que alinguagem é usada, mas apenas sobre a própria linguagem,também a teologia e a doutrina, na medida em que são atividadesde segunda ordem, nada podem armar de verdadeiro ou also

sobre Deus e sua relação com as criaturas, mas apenas alar arespeito de tais armações.

A visão de Lindbeck parece coincidir com a ideia de que a teologianão produz teorias de correspondência com a verdade, uma vez que elaseria uma espécie de “ ala sobre a ala”, isto é, não o próprio espelhoda ala de Deus, mas uma ala acerca tanto da ala de Deus (isto é, dasEscrituras, que contêm sua Palavra) quanto das demais alas sobreDeus.4 Enm, penso que uma coisa é a armação (racional, propositiva ecoerente) de suas convicções em diálogo, escuta e respeito com as demais;outra, bem di erente, é a armação da sua em detrimento e exclusão dasdemais convicções (como que dizendo: se a minha convicção nasce e éexpressão da verdade, a do outro não pode ser, anal, a verdade “é umasó”: ou é verdade, ou é mentira, não tem “meio termo”).

Ademais, diria que se alguma evidência (ou prova) pode serreivindicada pelos que se consideram discípulos da verdade (Cristo), esta

seria, nos termos de André Comte-Sponville (2008, p. 58), uma “evidênciamuda”, isto é, que se basta em si mesma, no ser mesmo, na vivência mesma,sem necessitar, orçosamente de de esa, argumentação ou discurso. Nisto,particularmente, quero di erir minha análise e abordagem à questão da verdade da de Lausanne III, de Henry (com todo respeito à sua grandezae importância como intelectual cristão) e de boa parte dos evangelicais,mais claramente na última unidade deste curso.

4 Para um apro undamento neste assunto, ver o capítulo 29 (“Nomear”), de meu livro:Humanos, graças a Deus (2013).

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R

COM E-SPONVILLE, André.Valor e verdade. São Paulo: Martins Fontes, 2008.EL COMPROMISO de Ciudad Del Cabo. Una con esión de e y un llamado a laacción. Comité Lausana Latinoamérica, 2012.HENRY, Carl F. H.Toward a recovery of Christian belief . Wheaton, Illinois,EUA: Crossway Books, 1990.LINDBECK, George A.e nature of doctrine. Religion and theology in apostliberal age. Philadelphia, Pennsylvania: Westminster Press, 1984.MENEZES, Jonathan.Humanos, graças a Deus! Em busca de uma espiritualidadeencarnada. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2013.PINNOCK, Clark H.A wideness in God’s mercy. Te nality o Jesus Christ in aworld o religions. Grand Rapids, Michigan: Zondervan, 1992.S O , John.Ouça o Espírito, ouça o mundo. 2ª ed. São Paulo: ABU Editora,1998.

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A ( ) -Quando alo sobre “verdade” como cará claro – alo em um

sentido (cristão) pós-moderno1, o que implica em uma tentativa dedialogar com os discursos, losócos, sobretudo, ditos pós-modernossobre o assunto. Nesse sentido, não aço di erenciação aqui entre uma verdade “teológica” e uma verdade “losóca”. Isto, pois a questão da verdade permanece sendo, no undo, uma questão losóca, aindaque tenha implicações teológicas pro undas e envolva diretamentea prossão de é e o testemunho cristãos – bem como o de outrasreligiões e crenças.

Se tomarmos, por exemplo, a discussão entre Pilatos e Jesus

retratada por João (18.33-38) – aliás, o único que investe nesteencontro, e não por acaso, na orma de diálogo retomando temastransversais de seu evangelho (verbo, testemunho, reino, verdade) –a teologia e a losoa estão em intercâmbio. O tema (teológico) doreino surge de uma pergunta objetiva de Pilatos: “Você é o rei dos judeus?”. No que Jesus apro unda a questão, dizendo que seu reinonão é deste mundo, pois se osse seus servos lutariam para que os judeus não o prendessem. Assim, Pilatos replica: “Então você é rei?”. EJesus se esquiva outra vez de uma resposta objetiva, alegando que oiPilatos quem disse isso, mas re orçando o sentido de sua missão (envio– “para isso eu vim”), que é a de dartestemunho da verdade.O temada verdade, portanto, surge na ala de Jesus ligado ao testemunho de vida, de modo que aqueles que “são” da verdade, isto é, “todos aquelesque se importam com a verdade, que possuem algum sentimento para1 A noção de “pós-moderno” que aqui utilizo segue a bastante conhecida concepção de Jean-FrançoisLyotard (1988, p. xvi), como sendo um estado, que se podia achar na Europa em ns dos anos 1970,de “incredulidade em relação aos metarrelatos”. Metarrelatos são os grandes relatos de explicação darealidade que, para o conteúdo de seu discurso, reivindicam o valor e verdade (absoluta). Dentre elespodem ser incluídos os das grandes religiões, como o cristianismo, o Judaísmo e o Islamismo, porexemplo, mas também nas chamadas losoas especulativas da história (isto é, que tem a pretensãode apresentar o sentido nal da história), como o marxismo, por exemplo, com a ideia da históriacomo sendo resultado da “luta de classes”, e a sua culminância na eliminação de todas as classes eno estabelecimento de apenas uma: o proletariado. Isto para ilustrar com alguns exemplos apenas.Podemos dizer que a teologia, também, é construída em torno de metarrelatos (como o do reinode Deus), mas pode abandonar (como eu de endo) a pretensão de alar (do reino, de Deus ou da vida) em termos meta ísicos, isto é, absolutos. Como resultado, a teologia não apenas se baseia emmetá oras (da própria Bíblia), como também ala em termos meta óricos. Embora a mensagem doEvangelho, pela é, seja concebida como absoluta, o mensageiro, sua experiência e sua ala, não são(nem poderiam ser).

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com a verdade” (v. 37, radução A Mensagem), segundo ele, o ouvem.O diálogo, contudo, se encerra com uma pergunta (a que não quer

calar) losóca (digo eu) de Pilatos: “O que é a verdade?”. E depois,o que ouvimos não é uma resposta, uma elaboração doutrinária,

teológica ou losóca sobre o tema; não vemos Jesus repetindo todosos seus principais ensinamentos sobre o Reino ou dando uma sínteseteórica da verdade; de ato, não ouvimos nada, ou melhor, Pilatos nãoouviu ou obteve o que queria, porque Jesus manteve-se em silêncio...Silêncio que disse sem dizer, que armou sem armar, que signica. Edentre muitas coisas que ele pode estar signicando, é que a verdadenão pode ser denida, expressa em linguagem; quando isso acontece,ela deixa de ser “a verdade”. Uma verdade particular, segundo FrederickBuechner (1977, p. 16), pode ser declarada em palavras; mas a verdade,em si, não, ela é o que é e pronto. No caso de Jesus, é uma pessoa, umser, teoricamente inapreensível. Além disso, uma resposta eliminariaqualquer sentido para a “busca”, como muito bem analisa Buechnerno trecho de seu ensaio sobre “A verdade das histórias”, que aqui açoquestão de transcrever:

Jesus não diz que a religião, ou que seus próprios ensinamentos,

ou o que as pessoas ensinavam sobre ele, seja na Bíblia, na Igrejaou em qualquer sistema de ética ou doutrina teológica eram a verdade. Existem verdades individuais em todos esses meios,segundo esperamos e acreditamos, mas verdades individuaisnão são o que Pilatos estava buscando ou o que você e euestamos buscando, a menos que eu tenha perdido meu ponto.Verdades sobre isto ou aquilo correspondem a um centavo deuma dúzia, incluindo as verdades da religião. A VERDADEé o que Pilatos busca: a verdade sobre quem nós somos equem Deus é, se há um Deus, a verdade sobre a vida, sobrea morte, sobre a verdade em si mesma. Esta é a verdade quetodos estamos atrás. É uma verdade que não pode ser posta empalavras, pois as palavras não podem contê-la. É uma verdadeque nunca pode ser ensinada em nenhuma doutrina ou credoincluindo o nosso próprio porque ele nunca permanecerá pormuito tempo, mas está sempre se movendo e mudando como oar. É uma verdade que está sempre acenando pra gente a partirde di erentes lugares e vindo até nós de di erentes direções. E

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penso que é precisamente por isso que sempre que Jesus tentacolocar esta irrevogável e inexpressível verdade em palavras, eleusa a orma que se move, muda e acena para nós de di erentesmaneiras e vem até nós de di erentes direções. Ou seja, ele contahistórias (BUECHNER, 1992, p. 130-131).

O problema apontado por Buechner é o de tantos que tentamresponder objetivamente à pergunta “O que é a verdade?”, qualseja, o de não entender que para ela não há resposta sucientementesatis atória e denitiva. Diante dela, Jacques Ellul, em seu livro A palavrahumilhada (1984, p. 29), disse: “Certamente não responderei, dando-lhe um conteúdo, porque seria contestado, obrigar-me-ia a azer umimenso desvio, excederia às minhas orças”. É nisso, portanto, que se

trans ormam tentativas de conter, denir: em imensos desvios, desviostremendamente contestáveis. Por isso, Ellul completa dizendo que nãopodemos con undir a “questão da verdade” com a própria verdade:

A questão da Verdade não é a verdade. Não apelo para a meta ísica.Não é a verdade porque não é o questionamento que o homem

az a si mesmo sobre sua vida. É ainda um jogo intelectual e umamaneira de estar ora da verdade. Portanto, que depois de tudo,possa ele dar uma resposta, pouco importa; que a resposta venhadele ou seja objetivada, enquanto losoa ou revelação, tambémpouco importa. Mas quando o homem questiona sobre sua vida (consciente ou inconscientemente), então ca ormulada aquestão da verdade, e quando o homem arma tê-la resolvido,mente (ELLUL, 1984, p. 30 – Gri os meus).

Concordo com Ellul. A meu ver também não importa, se é losoaou se é a matéria da revelação (teologia), pois ambas acabam caindo no

mesmo beco sem saída quando tentam trans ormar a questão (antigae legítima) da verdade na própria verdade, armando tê-la resolvido.Isto é o que Nietzsche chamou de “igualação do não igual”; reduzira verdade a conceitos ou proposições é igualar aquilo que não podeser igualado. Assim, neste caso propositadamente estou “misturandoas coisas”, uma vez que, a meu ver, tratar da questão da verdade éter de pensar tanto teológica quanto losocamente, caso se queiraproblematizar a questão, e não apenas armar a correspondência entrepalavras e coisas, dizendo “isto é verdade” e pronto, ou se resignando

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ao modo (dogmático) de que aminha interpretação2 é “a verdade”, já asua é menos verdade.

A tentativa de estabelecer a equivalência entre uma verdadeparticular de nosso discurso e a verdade em si resulta em dogmatismo.

A verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém. Ser cristãosignica viver no limear entre o anseio pela dádiva de ser cada vez maispossuído e capturado pela verdade na vida e a boa-nova libertadora denão poder apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como“evidência muda”.

V , Quando Richard Rorty, lendo Nietzsche, parte do ponto de que

a verdade é construída, isto é, de que é uma produção que se realizano mundo da ala e da linguagem, ou de que é “uma propriedade deentidades linguísticas, de rases” (2007, p. 31) e não pode simplesmenteser “achada” lá ora, a qual verdade ele está se re erindo? Ora, pensoque à verdade “conhecida” por meio de nossas proposições ou rases.Em outras palavras, para vericar a verdade em termos cognitivos eobjetivos, eu preciso dizer: “Isto ou aquilo é verdade”. E quando digoisto, ela já não mais pode ser “a verdade”, e sim “verdade para mim”ou “para nós” (pensando em um coletivo ou rebanho). E verdade paramim ou nós é sempre parcial.

Isto implica então que, quando armamos que “Cristo é a verdade”, ele deixa de ser “a verdade”? De modo nenhum (não pelomenos do ponto de vista de quem crê que é assim). De novo trazendo

Ellul ao diálogo, “a verdade é sempre verdade apesar e contra tudo...rme, estável, exível, indiscutível”. Isto porque a verdade “é” (nocaso de Cristo, uma pessoa), acima de nossas cogitações, estimativase apreensões. E, mudando um pouco a rase de Wittgenstein, paratudo aquilo que é a linguagem cala. Aquilo que “é” não pode serdeclarado sem que, no nível da ala, se torne apenas um ragmento– eis o problema em reduzi-lo em conceitos ou denições. Podemos2 Uso o termo aqui pensando na acepção dada por Gianni Vattimo (2010, pos. 1135 – raduçãominha): “A interpretação é a ideia de que o conhecimento não é puro reexo do dado, mas apenas umaaproximação interessada ao mundo com esquemas que também são mutáveis ao longo da história”.

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que a verdade em questão, que se arma ser relativa, é mesmo relativa.Do contrário, como diz Law, “eu poderia tornar qualquer armação verdadeira crendo nela: ‘Posso voar’, por exemplo. Obviamente a maioriadas verdades não é relativa desse modo”. De que modo então elas são

relativas? Na medida em que se assume que não as possuímos em si, anão ser na orma de descrições ou representações, que são relativas namedida em que são ragmentárias ou que não abarcam o todo.

Armar a relatividade de nossos pressupostos não é o mesmoque endossar o relativismo. Neste caso, embora não haja um critériouniversal de julgamento (para dizer o que é válido e ou que não é),isto também não signica que seja plausível armar qualquer coisaque se queira. É preciso armar e sustentar (não con unda com“comprovar”) a armação dentro de certos limites e deixar que os paresou a comunidade julguem ser razoável ou não. A contingência nãonos impede de de ender nossas convicções, apenas nos alerta quantoa seus limites, tanto na abrangência quanto no respeito às convicçõesdo outro. Endossando o que disse Isaiah Berlin (apud. ROR Y, 2007,p. 92): “Reconhecer a validade relativa das próprias convicções, masainda assim de endê-las resolutamente, é o que distingue o homem

civilizado do bárbaro”. E, acrescento, não deveria ser esta também umadistinção do cristão (pós-moderno ou não)?

S Retomando algumas questões trabalhadas na unidade anterior

(e até em resposta a elas), aqui parto do pressuposto, certamentepolêmico em certos círculos, de que apologética émá teologia, como

disse certa vez meu ex-pro essor, hoje colega, Júlio Zabatiero. Primeiro,porque nasce do princípio de “de esa da é”. E desde quando urge quea é seja de endida? Ora, desde quando ela tem sido “atacada”, diriaalguém. E isso vem acontecendo desde que a é cristã começou a serpropagada, então a apologética, por assim dizer, é uma espécie decontra-ataque. E o problema é que quando urge alar do evangelhocomo “de esa” nossa perspectiva tende a ser echada para as demaise para o diálogo. Entendo, porém, que precisamos, sim, responder àsinterpelações eitas a é, mas sem a preocupação em azer do diálogo

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um tribunal onde ela possa ser de endida e, no m das contas, quando“ganharmos a causa”, ser absolvida de suas acusações – o que já nãopoderia ser chamado de “diálogo”. Dar razão da esperança que há emnós, como diz Pedro, é di erente de de ender a é, que em si, existe

para ser inde esa, rágil, e sujeita a retaliações, como oi Jesus. Ele nãode endeu a é, a causa, a missão, mas procurou integrá-las com divinacoragem e discernimento a sua vivência e prática diárias.

Segundo, porque a de esa precisa se assemelhar ao ataque parapoder partir para o contra-ataque. Nesse aspecto, a apologética peca,pois ainda persiste num diálogo de surdos com a linguagem cientícado século XIX, em pleno século XXI, armando “certezas” onde sótemos “impressões”, “linguagens”, “interpretações”. Nesse sentido, acerteza e a verdade que armamos, pela é, armamos mais com a vida, e menos com o discurso ou de modo proposicional. O discurso,por sua vez, é recheado de incertezas, de imprecisão, de subjetividades.E assim precisa ser, pois se congura como discurso humano sobre odivino, a parcela alando sobre o todo, ou, para raseando Ellul, aquiloque há de mais imper eito e temporal alando sobre o per eito e eterno.Que conseguiríamos com nossa “ ala sobre Deus” senão expressar

uma parte? Ora, o próprio Paulo oi quem disse que hoje conhecemosapenas uma parcela da verdade (“conheço em parte”), e então, quando vier o que é per eito, conheceremos como também somos conhecidos(ver 1Co 13.12).

erceiro, se nossa teologia é, por natureza, recheada de proposiçõessobre Deus, de endo que estas sejam modestas e assumam-se como umdiscurso em meio aos outros, e não “O Discurso” e “A verdade”, como amaioria das apologéticas acaba se colocando quando apresenta o Cristotravestido de sua roupagem teológica, sem, porém, que se reconheça aslimitações óbvias dessa roupagem. O CristoVerdade-Caminho-Vida éabsoluto como ser, mas acaba sendo (e precisa ser) relativizado quandopassa pela via dos conceitos humanos. Nesse sentido, querer que Cristoseja equivalente a nossas ideias sobre Ele é uma pretensão para lá de

unesta, e é onde pecam muitas das apologéticas, do passado e do presente.Doutrinas não são absolutas; podem ser, sim, percepções

relativas, ainda que éis, de um princípio absoluto. A relatividade ouprovisoriedade da doutrina não é uma negação ou diminuição do

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absoluto, mas é a assunção de nossa incapacidade de compreendê-lo.Se or absoluto não pode ser reduzido – e em grande medida isso é oque são nossos conceitos ou percepções de Deus: reduções. Que alhamainda mais quando não se assumem como tais, e ainda se vêem no

direito de dizer quem está e quem não está do lado “da verdade”. Masa questão é: se é absoluta, como pode ser expressa? Pode ser expressapor meio da parcialidade imper eita do discurso – ou da vida. Armarque expressamos ou vivemos em parte, é a maneira como Paulo em 1Coríntios, capítulo 13, nos ensinou a viver na casa do conhecimentosem abandonar a casa do amor.

No entanto, reitero o que já disse anteriormente: armar quenosso conhecimento não é capaz de “dar conta”, de deter a verdade oualcançar a verdade objetiva, não signica dizer que “não existe maisuma verdade absoluta”, e sim que não pode haver uma visão (humana)absoluta da verdade. Posiciono-me, portanto, a avor assunção dacondição relativa de nossas percepções, e não do relativismo (a ideia deque “tudo é relativo”). Se tudo é relativo, então nada é relativo (?), poiso “tudo” se trans orma em “absoluto” no dizer do relativista. No m, orelativismo acaba sendo outra orma de apologética, tão desatualizada

e desconectada quanto a primeira no tempo em que vivemos.O modo apologético, por sua vez, sustenta-se sob a pretensão nãoapenas de “ alar de Deus” (o que já seria um hercúleo desao), mas de“ alar por Deus”. Muitas vezes ainda cede ao que C. S. Lewis chamoude “o erta do bruxo”, ao trocar sua vocação (teológica) para ser a maismodesta dentre as ciências, pelo conhecimento como poder: paralegislar, dominar e condenar. Lutou contra seu próprio princípio desustentação, de que a orça de seu discurso e vida reside precisamenteem sua raqueza. antas vezes tem cedido à tentação de não questionarseus próprios pressupostos, lidar mal com os questionamentos alheiose, se isso não bastasse, de decretar como “herege”, “liberal”, “relativista”ou coisa que o valha quem ousa questionar a orma ortodoxa de pensarque tanta distinção e louvor cultivam.

Ademais, esse apego errenho ao poder do argumento queconvence, em nosso tempo, não convence tanto quanto o poder da vivência (ou especialmente se não atrelado a esta). Lembrando oque disse Lewis, em A abolição do homem: “Numa batalha, não são

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os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seuspostos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... emrelação a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (LEWIS,2005, p. 22). Enm, para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais”

(passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos naatitude, no sentimento), pois “o peito” é o elemento intermediário quetrans orma o homem em homem, enquanto, “pelo intelecto ele é apenasespírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (LEWIS, 2005, p. 23).

O que tudo isso me leva a pensar? As “ideias boas” e bemarticuladas, em si, podem convencer, mas não trans ormam, nãogeram “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homensque, para ns mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte domeio, pois, como reitera Lewis (ora se re erindo a certos racionalistasde sua época), “não é o excesso de pensamento que os caracteriza, masuma carência de emoções érteis e generosas. Suas cabeças não sãomaiores que as comuns: é a atroa do peito logo abaixo que az com quepareçam assim” (LEWIS, 2005, p. 23). Meu problema com a apologéticareacionária moderna (embora nem toda ela) está exatamente aí:esquecendo-se da “parte do meio”, muitas vezes ela sacrica a caridade

no altar da verdade, coisa que Jesus nunca ez. Pelo contrário, segundo vejo Jesus pre eriu sacricar a verdade (ele mesmo, segundo João) emnome da caridade. Jesus é o maior exemplo de que as palavras nãosão tão convincentes quando ou se descoladas da vida. Ou como sediz por aí, palavras convencem, exemplos arrastam. E pergunto seestamos dispostos a azer o mesmo hoje, ou seja, crucicar “a verdade”de nossas opiniões e posicionamentos teológicos em nome de algomaior que ela: a caridade. alvez aí esteja um mote para pensarmosnum discipulado e testemunho em contextos pós-modernos, assuntode meu próximo e último tópico.

S -

enho me ocado até aqui em travar uma discussão teórica,em primeiro plano, sobre a questão da verdade no meio cristão, semme preocupar muito com as implicações disso no que diz respeito

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às posturas ético-relacionais do cristão chamado a dar “testemunhoda verdade”, con orme o exemplo de seu mestre. Agora quero pensarem algumas implicações da ordem da práxis propriamente dita daevangelização, não a partir da ótica de “como” se evangeliza, mas “em

que base”. E penso (não somente eu, é claro) que esta base – a despeitode quem, como ou onde – érelacional , a partir de um paradigma da presença –que, na realidade, espero ser bem mais que um paradigma.

No anseio por de ender nossas convicções cristãs em meio a ummundo onde elas são cada vez menos consideradas como relevantes paraa vida em geral, tendemos a nos ocar muito em questões – a questãodo aborto, a questão da corrupção, a questão do homossexualismo, aquestão da verdade – e com isso perdemos de vista os relacionamentoscom as pessoas em torno das quais se levantam tais questões. Em outraspalavras, asquestões tendem a ser mais importantes que as pessoas. Eque implicações isto tem? Penso que elas são mais ou menos óbvias.No que diz respeito à verdade, por exemplo, reitero: se a verdadepassa a ser tratada mais como questão e objeto de de esa – a “minha verdade” contra a “verdade dos outros” – a tendência é que se percade vista o princípio (no caso cristão, relacional, de amor) que servecomo combustível para que essa verdade possa ser reconhecida como verdade-vida e não verdade-morte. A de esa da questão da tolerânciapode, da mesma orma, se tornar mais importante que o ser tolerante,inclusive com quem não é. Aliás, é uma contradição em termos, ode ender a tolerância e não tolerar que não tolera. E o mesmo poderiaser dito da justiça, ética, solidariedade, compaixão, e assim por diante.

Henri Nouwen retratou muito bem isto quando disse de modobastante pessoal, que sua própria trajetória para a Arca, em oronto

– morada de pessoas com necessidade especial, onde passou os dezúltimos anos de sua vida – é o movimento de “uma vida orientada porquestões” a uma “vida orientada para pessoas”. E a isto acrescentou:“Vi a igreja na Holanda ser destruída por crescentes divisões quantoa questões de autoridade, sexualidade e eminismo.Quanto maioresas questões se tornam, menor ca o lugar para onde as pessoas podem voltar a m de armar seu amor umas pelas outras e rezar juntas pelamisericórdia de Deus” (NOUWEN, 2001, p. 207 – Gri o meu). Nãopenso que Nouwen esteja de endendo (e nem eu tampouco) um total

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abandono a certos temas como “questões” a ser de endidas desdecertos pontos de vista, apenas que não deixemos que elas se tornemgrandes demais ao ponto de nos cegar para algo que deve ser maiorque elas – na verdade, razão para que elas existam – ou seja, as pessoas,

a quem Deus ama.Quando a de esa da retidão e do “caminho certo” se torna maisimportante que a conexão com as pessoas, podemos estar diante de umcabal exemplo de como estar no caminho torto e equivocado, mais pertodo arisaísmo que de Jesus.

Penso que dar testemunho da verdade em um mundo pós-moderno é partir mais do paradigmada presença que do discurso.Ainda que não prescindamos totalmente dos discursos e admitamosque eles ainda possam ser válidos, entendo que a presença e o modocomo nos azemos presentes “entre os outros” no mundo é o que (ainda)pode azer di erença, e até dar mais crédito ao que alamos. A vida, nessesentido, não apenas ala mais que a própria ala, mas a legitima. Nossapresença não é equivalente à presença de Cristo – uma vez que ele jáse az presente, com ou sem a gente – mas é um reexo possível de suapresença: solidária, amorosa, não excludente, dialogal, trans ormadora.

Não necessariamente através de grandes gestos, mas de pequenos gestoseitos no dia a dia, quando ninguém está vendo, quando não há jornalque noticie e nem público que aplauda. Pequenos gestos são, assim,“sinais de esperança”, como disse Hans de Wit, que ainda de ende a idéiade que “assim como o mal começa muitas vezes com coisas pequenas – acriação da imagem do inimigo, a pressão social, a proibição da dúvida– também o bem muitas vezes se realiza por meio de pequenos gestos deamor ” (DE WI , 2010, p. 302 – Gri o meu).

Dessa orma, ao invés da insígnia de “embaixadores doevangelho”, prero a insígnia paulina de que somos “colaboradorescom o evangelho”. O colaboradorco-labora e nãolabora em lugar de.Nosso trabalho é inútil e pretensioso quando achamos que o Espíritoestá do nosso lado, e não que nós é que, pela graça, no colocamos aolado dele, seguindo suas pegadas no mundo e “ouvindo duas vezes”,usando outra vez a instigante metá ora de Stott.

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Quero nalizar com outra metá ora instigante para pensar em

nossa postura na evangelização, cujo autor oi Paulo: é a de um “tesouroem vasos de barro” (2Co 4.7). Ela designa o contraste entre nossahumanidade, que como o vaso vem do pó, é rágil, vulnerável e sujeitaa quebra, com o eterno poder do evangelho e a divina companhia,que não podem ser contidos, mas que escolhem precisamente oque há de mais raco e incerto para se “abrigar”. A pergunta é: porquê? Paulo dá a resposta no mesmo verso: “Para mostrar que estepoder que a tudo excede provém de Deus, e não de nós”. Curioso,não? emos um “poder”, mas que não é precisamente “nosso”, nemnos az maiores que ninguém, antes ressalta nossa ragilidade e nãoimunidade às contingências e so rimentos de qualquer ser humano.Mesmo possuindo, ou melhor, sendo possuídos pelo tesouro, nósnunca deixaremos de ser simples “vasos”.

O vaso não existe para ser trans ormado em co re- orte e blindado,mas existe para morrer: “Pois nós, que estamos vivos, somos sempre

entregues à morte por amor a Jesus, para que a sua vida também semani este em nosso corpo mortal. De modo que em nós atua a morte;mas em vocês, a vida” (2Co 4.10). O vaso não existe para “proteger” aintegridade do tesouro (ela não pode ser erida), mas é o tesouro queé o erecido para restaurar a integridade do vaso. Não somos, portanto,caçadores ( omos achado por ele e nele), de ensores e nem detentoresdo tesouro (somosdetido-libertos nele); este tesouro não precisa desentinelas, co res de segurança ou guardiões, mas de simples vasos que

não querem resplandecer, mas que anseiam para que, pela graça, otesouro neles resplandeça.Paulo, portanto, nos convida a rever nossa teologia do poder e da

verdade, e a reservar um lugar em nossa vida e missão como igreja aoacolhimento e aceitação da raqueza, em louvor à ragilidade. Somentequando assumirmos este lugar de vulnerabilidade em nossa relaçãocom o mundo e nos variados contextos em que o Senhor no coloca, opoder de Deus poderá se aper eiçoar em nós para alcançar as pessoas(tantas vezes desorientadas) no caminho, em verdade e com vida.

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