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Filosofia da Religião Jonathan Menezes

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Faculdade Teologica Sul Amaricana

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Page 1: FTSA - Filosofia Da Religião

Filosofiada

Religião

Jonathan Menezes

Page 2: FTSA - Filosofia Da Religião

Setembro/ 2015

Professor autor: Jonathan MenezesCoordenadoria de Ensino a Distância: Gedeon J. Lidório JrProjeto Gráfico e Capa: Mauro S. R. TeixeiraRevisão: Éder Wilton Gustavo Felix Calado

Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR86055-670 Tel.: (43) 3371.0200

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SUMÁRIO

Unid. 01 - Que estuda a Filosofia da Religião?.............................05

Unid. 02 - A Religião.......................................................................13

Unid. 03 - O Sagrado.......................................................................23

Unid. 04 - Os Mitos.........................................................................33

Unid. 05 - O que é a fé?...................................................................43

Unid. 06 - Dúvida............................................................................55

Unid. 07 - Sentido............................................................................65

Unid. 08 - O Trágico........................................................................77

Unid. 09 - Modernos.......................................................................89

Unid. 10 - Crítica Moderna...........................................................101

Unid. 11 - Crítica de Nietzsche.....................................................117

Unid. 12 - Desconstrução..............................................................131

Unid. 13 - Pós_Modernos..............................................................145

Unid. 14 - Morte de Deus.............................................................157

Unid. 15 - Novo Ateísmo...............................................................171

Unid. 16 - Verdade.........................................................................185

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Filosofia da ReligiãoUnidade -1

Que estuda a Filosofia da Religião?

Introdução

Nesta unidade de abertura de nosso curso, gostaria de investir esforços para falar de duas coisas basilares: a primeira é entender o que é e o que estuda a Filosofia da Religião, ou seja, qual é o seu objeto; a segunda é definir qual método ou caminho pretendo adotar neste estudo. Ao final, o objetivo é que saiamos convencidos das razões pelas quais esta disciplina pode ser útil e importante para o “fazer” teológico, e também cientes do que isso irá requerer de cada um de nós, pois gostaria que fizesemos um trabalho conjunto, em que eu me proponho a formular questões e oferecer alguns caminhos para os problemas epistemológicos que iremos enfrentar, tentando, com isso, auxiliá-lo/a na busca por soluções possíveis, que não serão dadas de “mão beijada” aqui. Isto significa que este curso não oferece respostas? Sim, oferece, mas com elas, e até mais do que respostas, ele oferecerá perguntas, favorecendo o pensamento aporético1. Eventualmente, você poderá perceber que uma posição ou perspectiva em particular está sendo apresentada ou privilegiada. E esta é mais uma razão para que você desenvolva melhor sua criticidade, tanto para poder avaliar as formas de reflexão aqui expostas, como para formular sua própria reflexão sobre os assuntos em questão.

1 Aporético vem de aporia e indica uma dificuldade ou dúvida racional diante da impossibilidade objetiva de uma resposta ou conclusão definitiva a respeito de algo (ver Unidade 13 deste curso).

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Objetivos

1. Entender quais são os objetos de estudo da Filosofia da Religião;

2. Reconhecer o método de estudo a ser utilizado;3. Identificar a importância desse tipo de estudo para

a teologia e vida cristãs.

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A Filosofia da ReligiãoAo favorecer o pensamento aporético, como expliquei acima, quero

provocar a fome de pensar. Mas, você poderia perguntar, em que vamos pensar? E esta pergunta nos conduz ao coração da Filosofia da Religião. Ao estudar teologia na FTSA você perceberá, se já não percebeu, que o tema da religião é estudado por vários campos do saber: antropologia, história, sociologia, psicologia. Assim sendo, qual é o diferencial da filosofia em relação aos outros campos no estudo da religião?

A filosofia se ocupa da vida, é um amor à sabedoria que desemboca em modos de conceber, interpretar e dar significado à vida. Sua tarefa é a de fazer perguntas e promover uma reflexão profunda sobre temas e problemas que atingem qualquer ser humano. Como diz Thomas Nagel (2011, p. 2), “ela [a filosofia] se faz pela simples indagação e arguição, ensaiando ideias e imaginando possíveis argumentos contra elas, perguntando-nos até que ponto nossos conceitos de fato funcionam”. De que se serve, portanto, a filosofia? De perguntas ou problemas e conceitos criados para tentar dar conta deles. Ela também subsiste pela contestação desses mesmos conceitos, na desconfiança diante do óbvio, e da provisoriedade das ideias.

MAS, AFINAL, O QUE É A FILOSOFIA?

Se perguntarmos a dez filósofos, “o que é a filosofia”, ouso dizer que três ficarão em silêncio, três darão respostas pela tangente, e as respostas dos outros quatro vão ser tão desencontradas que só mesmo outro filósofo para entender que o silêncio de uns e as respostas dos outros são todas abordagens possíveis à questão proposta (IGLESIAS, in REZENDE, 2008, p. 12).

O que pretendo sob o título de filosofia, como fim e campo de minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E contudo não o sei... Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a filosofia deixou de ser um enigma?... Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com suas definições (HUSSERL, 2001, p. 143).

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Toda a esfera da vida pode ser objeto da filosofia. Há algumas razões para isso:

Primeiro, todas as coisas podem ser examinadas e questionadas a nível filosófico e científico. A filosofia começa com o espanto do filósofo diante da realidade (espantado, ele lança perguntas). Remetendo ao que disse Platão: “A única coisa que precisamos para nos tornarmos bons filósofos é a capacidade de nos admirarmos com as coisas” (GAARDER, 1996, p. 10). As explicações, por sua vez, são da ordem do provisório: trata-se de um convite à reflexão, que nasce da impossibilidade (e cresce nela) de explicar o porquê de todas as coisas.

Segundo, enquanto as ciências focam particularidades, a filosofia se ocupa do universo todo. Mas há coisas que as ciências não estudam e que acabam sendo objetos da filosofia, como: o valor da vida, a natureza do bem e do mal, a origem e o valor da lei moral, etc. Alguns objetos, porém, são mais caros: lógica, epistemologia, metafísica, cosmologia, ética, teodicéia, política, estética. Se método é o arrazoague ou discussão, a justificativa ou indagação lógica, é racional. Serve-se todo tempo do logos “razão”. Um exemplo está no método socrático chamado de maiêutica (que literalmente significa “parteira”), que consiste em “parir” ideias complexas a partir de perguntas simples e articuladas dentro de um contexto ou assunto.

Terceiro, o fim da filosofia é o chamado “o saber pelo saber”: apreço pelo saber em si e pela “verdade” que está escondida nas coisas e que se descortina parcialmente no olhar investigativo, nos conhecimentos profundos.

Portanto, se desde os primórdios, na antiguidade clássica, a filosofia incorpora e elabora questões cruciais à vida humana, Deus e a religião não poderiam ficar de fora. Sempre foram temas da filosofia ocidental. De algum modo, toda filosofia pressupõe uma filosofia de Deus ou da religião. No entanto, a filosofia da religião, como ramo relativamente recente da filosofia, tem contornos e objetos próprios.

Segundo Paul Tillich (1973, p. 16), “a filosofia da religião é a teoria da função religiosa e suas categorias”; ou podemos pensar simplesmente com John Hick (1970, p. 11), que ela é a “reflexão filosófica

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sobre a religião”. Com efeito, apesar de sua estreita aproximação com as diferentes formas de teologia “na verdade, o modo como teólogos significam a experiência de Deus é um dos objetos de sua preocupação”, ela se diferencia delas no sentido de que a teologia se funda na relação ser humano-Deus e numa leitura filosófica da revelação.

A filosofia da religião (como campo do saber, e não necessariamente do modo com estudaremos aqui) não deve ser religiosa nem aceitar a revelação (TILLICH, 1973, p. 10), ou seja, enquanto uma pessoa, movida, talvez, pela moral religiosa pode se perguntar se é certo ou errado se ter relações sexuais pré-matrimoniais, o filósofo pergunta: “O quê ou quem define o certo e o errado nessa questão - parafraseando aqui a Thomas Nagel (2011, p. 3).

Esta disciplina se ocupou, historicamente, em pensar filosoficamente os mais diferentes problemas relacionados com Deus e a religião, problemas como a existência de Deus, o bem e o mal, o destino humano, ou os atributos de Deus. Por vezes se aproximou da apologética e da teologia natural2, cuja preocupação principal é defender a razoabilidade da fé e de Deus no mundo, podendo assumir, em casos extremos, um teor quase proselitista. Quero não apenas evitar tal abordagem nesse curso, como adotar uma atitude crítica em relação a ela; não abordarei também temas ligados à natureza de Deus e seus atributos, simplesmente por entender que ela não contribui muito para o que consta na ementa desse curso, isto é, estudar a “diversidade do fenômeno religioso”, ao mesmo tempo em que se aproxima do que muito provavelmente você já viu ou verá em Teologia Sistemática.

Sendo assim, em que me concentrarei? Basicamente na própria religião como prática humana - seus elementos básicos, e até certo ponto sua diversidade - e, mais particularmente, na fé, linguagem e experiência religiosas. Como diz Severino Croatto (2001, p. 22), “a filosofia da religião fala de Deus e do ser humano religioso. É um saber, não um compromisso. Não substitui o ato religioso, mas reflete criticamente a respeito dele”. 2 O respeitável trabalho da L’Abri Fellowship Brasil ainda hoje é um exemplo notável dessa aproximação. Ver: http://www.labri.org.br/

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Caminhos metodológicos

O título acima é quase um pleonasmo, só que proposital. Método literalmente significa percorrer um caminho (no grego met: ‘depois’ ou ‘que segue’/ hodós: “via” ou “caminho”), e a metodologia seria então uma espécie de reflexão sobre o caminho (a ser) adotado. Que caminhos metodológicos serão aqui adotados? Na citação feita ao final do tópico anterior, de Severino Croatto, temos algumas pistas.

1. Quais são seus objetos? Deus e o ser humano religioso, ele diz, mas eu diria: Deus como constructo ou em função do ser humano religioso, suas experiências e modos de significação do sagrado. A filosofia metalógica3 da religião estuda o fenômeno religioso dentro do qual o conceito de Deus é muito importante. Entretanto, como defende Tillich (1973, p. 67), só fala de Deus a partir do significado que este recebe em uma ação religiosa. Logo, embora a moderna filosofia da religião tenha se construído a partir de uma série de especulações filosóficas e teológicas sobre o ser de Deus e seus atributos, para os propósitos deste curso, penso que seja mais interessante pensar nos sentidos, nomes e imagens de Deus nas diferentes religiões, cujas premissas e resultados são inevitavelmente antropomórficos4, isto é, levam a uma personificação do divino. Mas será que estas personificações ainda são “Deus” ou conseguem se referir a ele?

Para Wilkinson e Campbell (2014, p. 92), a linguagem e, por conseguinte, as ideias, conceitos, metáforas, ou imagens que utilizamos para descrever Deus, sempre resultará em fracasso. Mas este é, para eles, o problema com a crença: o crente sempre tentará descrever Deus de alguma forma, e normalmente se utilizará de frases, que são sempre inadequadas. O que coloca, também, o problema da linguagem: existe alguma linguagem que seja “adequada” para se falar de Deus? Em outras palavras, existe algum “falar” que possa ser fiel a quem Deus, o Eterno, é? Um dos postulados da filosofia da religião está em reconhecer esta inadequação e problematizar o

3 Definida como “estudo da metateoria da lógica”. Enquanto a lógica estuda os sistemas lógicos podem ser utilizados para a produção de argumentos verdadeiros, a metalógica “estuda as propriedades dos sistemas lógicos” (WIKIPEDIA, 2015), isto é, os sistemas e linguagem formais e suas interpretações, utilizados para a constituição de um objeto – como, por exemplo, “Deus”. 4 Referente a antropomorfismo, que significa a transformação de tudo em ser humano ou à sua imagem.

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uso destes conceitos também usando outros conceitos5. Afinal, quem pode fugir deles?

2. Em que ela consiste? Em um saber, não um compromisso. Ou seja, embora fale de Deus e da religião, o produto é um saber racional, articulado e lógico. Isto para dizer que o filósofo da religião pode até ser um crente, mas quando filosofa, não o faz a partir do pressuposto da defesa de sua crença, mas de sua problematização. De outro modo, um filósofo que se diz descrente, por exemplo, pode falar de Deus (como um personagem), de modo apaixonado, sem que isso resulte necessariamente num compromisso com Deus ou com uma religião. Luiz Felipe Pondé, em seu livro Os dez mandamentos e mais um, admite se encaixar nesta última categoria. Ele começa o livro dizendo: “Este livro foi escrito por um homem que não recebeu o dom da fé. Caminho nos campos do Senhor, como diz a Bíblia, como um cego em um jardim. Aqui está, contudo, a chance de fazer minha teologia. A teologia de um homem sem fé” (PONDÉ, 2015, p. 9). Por minha vez, gostaria de convidá-los a fazer um pouco mais do que o filósofo profissional: a pensar que podemos refletir com paixão, não ignorando os questionamentos existenciais sobre a fé que nos atingem diretamente, ou seja, a função da filosofia da religião aqui é a de também nos ajudar a refletir sobre nossa própria experiência religiosa, não para nos afastar, pelo contrário: é para nos levar a uma profundidade maior na fé. E isso não pode acontecer se não nos lançarmos no risco de questionar nossos próprios pressupostos e noções fundantes.

3. A que ela nos leva, portanto? A uma reflexão crítico-filosófica sobre as práticas religioas, de um modo mais amplo, e mais específica e pessoalmente a investigar e problematizar o que consiste a “minha religião”, mesmo que nem todos gostem deste nome. Reconhecendo isto, o caminho metodológico pelo qual gostaria que andássemos consiste em analisar realidades em que o ato religioso se manifesta, mesmo que numa pretensa irreligiosidade, através de perguntas 5 Nesse sentido, gostaria de recomendar, aos que desejos se aprofundar neste assunto, a leitura do livro A palavra humilhada, de Jacques Ellul (1984). Ali ele apresenta, por exemplo, a ideia de que a linguagem ou a palavra é um cativeiro, do qual somos prisioneiros e não podemos nos livrar. Toda tentativa de encerrar a verdade (ou Deus) numa palavra torna-se um atentado contra a própria verdade; resulta, como Nietzsche bem apontou, na “morte de Deus”. Para mais, ver discussão na unidade 14 deste curso.

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filosóficas tais como: qual é o sentido da fé? Para que serve Deus? O que é e para que serve a religião? Debruçaremos-nos, para começar, sobre esta primeira pergunta na próxima unidade.

Referências bibliográficas

CROATTO, José Severino. As linguagens da experiência religiosa. São Paulo: Paulinas, 2001.ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984.GAARDER, Jostein. Sophie’s world. London, UK: Phoenix House, 1996.HICK, John. Filosofia da religião. Rio de Janeiro: Zahar, 1970.HUSSERL, Edmund. Meditações cartesianas. São Paulo: Madras Editora, 2001.IGLESIAS, Maura. O que é filosofia e para que serve. In: REZENDE, Antonio (Org.). Curso de filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.NAGEL, Thomas. Uma breve introdução à filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2011. PONDÉ, Luiz Felipe. Os dez mandamentos e mais um. Aforismos de um homem sem fé. São Paulo: Três Estrelas, 2015.TILLICH, Paul. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Ediciónes Megápolis, 1973.WIKIPÉDIA. Metalógica. Disponível em: wikipedia.org/wiki/Metalógica. Acesso em: 20 Ago. 2015. WILKINSON, M.; CAMPBELL, H. Filosofia da religião: uma introdução. São Paulo: Paulinas, 2014.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 2A Religião

IntroduçãoQualquer um que se considere “religioso” e fala demais está se enganando. Esse tipo de religião é mera conversa fiada. Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo sem Deus (Tiago 1.27-28, A Mensagem). 

A palavra “religião” é antiga e remonta aos tempos bíblicos, por exemplo. No Novo Testamento, a aparição mais conhecida do conceito se encontra no trecho de Tiago, acima citado.1 Sabemos que na antiguidade cristã existiam inúmeras religiões entre os diferentes povos; até mesmo os gregos e os romanos eram bastante religiosos, praticavam o politeísmo, que é a crença em ou culto a vários deuses. Sabemos também que o cristianismo primitivo teve uma base religiosa, advinda do judaísmo, sobretudo. Jesus e os apóstolos eram judeus e seguiam os princípios da religião judaica.

No caso de Tiago, a palavra aperece com apenas um sentido possível, pois, como explica Frank Whaling (in McGRATH, 1993, p. 547), “o simples uso da palavra ‘religião’ implica em uma teoria sobre a religião”. Logo, Tiago parece teorizar sobre o que ele denomina “religião verdadeira”. Sobre isso, gostaria de propor um início de unidade diferente a você: antes de prosseguir neste estudo sobre o que é a religião e seus possíveis significados filosóficos, dedique-se a este texto de Tiago, podendo utilizar dicionários ou comentários bíblicos, partindo das questões abaixo relacionadas:

1 Outras ocorrências: Cl 2.18; At 26.5. No primeiro, o termo em grego (threskeia) significa “adoração religiosa”, e no segundo, “sistema religioso”.

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(a) Qual é o sentido da palavra “religião” em Tiago?

(b) Em que consiste, para ele, a religião “pura” ou “verdadeira”, e como ele identifica a “falsa religião”?

(c) Qual é o significado mais comum da palavra “religião”? Pesquise e compare.

(d) O que de comum há entre este(s) significado(s) e o que é apresentado por Tiago?

*O que proponho acima é apenas um exercício. Não conta como avaliação.

Objetivos

1. Encontrar possíveis sentidos para “religião”;2. Perceber o que uma teoria ou concepção de religião

pode revelar sobre seu objeto – que, para Tillich (1973), é o “incondicional”.

3. Analisar as razões próprias e ambiguidades da religião.

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O que é religião?Religião é um sopro humano na busca pelo incondicional. Essa

é a definição que usarei como ponto de partida. De onde a retiro? Primeiramente, da ideia de que a religião nasce do desejo ou busca pela transcendência (ou pelo infinito) que há em todo ser humano. Eclesiastes chama isso de um senso de “infinito” que há no coração humano: “Deus pôs a eternidade no coração do homem sem que este saiba as obras que Deus fez do princípio até fim” (Ec 3.11). De acordo com Harold Kushner (1999, p. 25), “Deus plantou em nós uma fome que não pode ser saciada, uma fome de sentido e significado”. Essa “eternidade no coração”, expressa bem essa fome pelo inexplicável, indizível, pelo que está além de nós; é o senso de vazio e escuridão diante de uma infinitude que não cabe dentro de nós, mas que desejamos desesperadamente: viver, e viver eternamente! Como diz Luiz Felipe Pondé (2015, p. 23), “somos seres feitos de abismos”.

A busca pela transcendência na contemporaneidade assume outras facetas, mas expressa o mesmo anseio. Segundo John Stott (1998, p. 246), consiste no anseio “pela realidade suprema, que se encontra além do universo material. É um protesto contra a secularização, isto é, contra a tentativa de eliminar Deus de seu próprio mundo”. Trata-se de uma reabertura que vemos crescer no mundo atual de um espaço, que vinha sendo ocupado pelo racionalismo, o progresso e a ciência, por exemplo, como conquistas modernas, para a experiência do transcendente. Daí advém o renascer da espiritualidade, ou melhor, das espiritualidades, em um renovado senso do divino, do mistério e do temor. Neste tempo, vemos o florescer da religiosidade, como expressão espontânea e busca de relacionamento das pessoas com Deus através de ritos, performances e adorações, e menos da religião institucional e seus mecanismos de controle ou domesticação. O senso de infinito no coração humano nos conduz ao transcendente.

Minha definição aqui pretende convergir tanto com a visão clássica romântica de Friedrich Schleiermacher (2000, p. 35), para quem a religião, em sua essência humana, “é sentido e gosto pelo infinito”, como a de Paul Tillich (1973, p. 61), que a define como “a orientação do espírito ao significado incondicional”. Em outro lugar, o

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autor define religião como “preocupação suprema (ultimate concern), manifesta em todas as funções criativas do espírito bem como na esfera moral na qualidade de seriedade incondicional que essa esfera exige” (TILLICH, 2009, p. 45). Gosto pelo infinito, orientação para o incondicional, preocupação suprema: todas indicando tanto uma origem ontológica, como um telos (fim último) para a religião.

Mas isso, é claro, não é tudo. O texto de Eclesiastes também diz que isto se dá sem que o ser humano conheça as obras ou o percurso de Deus do princípio até o fim, exceto, acrescento, por aquilo que Deus mesmo deixou, seus rastros, primeiramente no universo criado, ou seja, o ser humano tateia pelo infinito, mas só consegue encontra-lo através de expressões finitas. Em Romanos, o apóstolo Paulo diz que “os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas...” (Rm 1.20). Quer dizer, parte do que de Deus se pode conhecer está, desse modo, manifesto na vida que pulsa em nós e além de nós, na natureza. Pode-se inferir então que a religião nasce, em segundo lugar, do seguimento humano pelo caminho em que se encontram os vestígios, os rastros, ou as pegadas do divino ou do incondicional.

Religião, revelação e o condicionalComo seres humanos, somos, contudo, condicionais. Pertencemos

à humana condição: mortal, limitada e, biblicamente falando, pecaminosa ou concupiscente. O pecado é o que, originalmente, segundo Gênesis (3.1-7), nasceu de uma tentativa do homem e da mulher originais de se igualar a Deus na ciência do bem e do mal e, por conseguinte, foi o que os afastou da presença desse mesmo Deus, deixando sua companhia no jardim para viver à sua própria sorte. A fim de reencontrar Deus, o ser humano precisa, deste evento em diante, buscá-lo desesperadamente, desejando se “religar” a Deus. Para tanto, ele necessita de guias, de referenciais, de mediadores humanos. Dessa maneira, a religião, em terceiro lugar, nasce da necessidade da religação e, por conseguinte, de mediação entre o divino e o humano.

Religião é, na expressão latina, religare, prática normalmente

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sustentada pela ação ritual, como o sacrifício, por exemplo. Para atravessar o fosso que separa Deus e suas criaturas é necessário construir pontes; daí a ideia de pontificante ou sumo pontífice, que é o construtor de pontes, identificado com “os especialistas do sagrado [sacerdotes, xamãs, padres, pastores], que dentro da comunidade estão preparados para realizar as ações rituais e têm capacidade tradicional para executar as cerimônias que asseguram aos restantes membros a proteção dos poderes divinos ou demoníacos, mais que naturais” (BAZÁN, 2001, p. 46). Havendo a necessidade de mediação e ordem, a religião migra do campo subjetivo da busca pelo incondicional para o campo objetivo (condicional) das práticas, dos sistemas de crenças e valores, da tradição e da institucionalização. Daí a necessidade que muitos estudiosos viram na separação entre religião institucional (o sagrado domesticado) e religiosidade (a religião “primitiva”, o sagrado selvagem, usando aqui o termo de Roger Bastide).

Nesse sentido cabe a distinção - que já apresentei em outro curso (MENEZES, 2014, p. 164-165), e retomo aqui - entre “religião” e “revelação”. Religião também pode ser entendida, nos termos gerais aqui expostos, como o esforço ou conjunto de esforços humanos plasmados no sentido de alcançar a Deus. Religião é negócio humano. Já revelação é a automanifestação de Deus, pelos meios que lhe aprouver, ao ser humano e por amor a ele. Revelação é negócio divino. É, na definição de Tillich (1987, p. 98), “a manifestação daquilo que nos diz respeito de forma última. O mistério revelado é de preocupação última para nós porque é o fundamento de nosso ser”. Como ele explica em outro lugar:

“Revelação” se refere a uma ação divina, “religião” a uma ação humana. “Revelação” é um acontecimento (happening) absoluto, singular, exclusivo e autossuficiente; “religião” tem a ver com feitos meramente relativos, sempre recorrentes e nunca exclusivos. “Revelação” significa a entrada de uma nova realidade na vida e no espírito; “religião” nos remete a uma dada realidade de vida e a uma função necessária do espírito. “Religião” tem a ver com cultura; “revelação” com aquilo que se encontra além da cultura (TILLICH, 1973, p. 9, tradução minha).

Ora, se religião não é revelação, e se revelação é um ato que

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provém de Deus e, num primeiro momento, não tem aparentemente nada a ver com capacidades e esforços humanos, qual é então o ponto de contato que efetiva a revelação como algo inteligível ao ser humano, já que um dos propósitos é o de “mostrar” algo a ele? Eis que então entra a função da razão e cultura humanas nesse processo. Como expressa Tillich (1973, p. 10, tradução minha), “se a revelação é a irrupção do Incondicional no mundo do condicional, não é possível impedir que ela se condicione, convertendo-se em uma esfera junto a outras esferas, a religião lado a lado com a cultura”. Em outras palavras, para que a revelação fosse inteligível ao ser humano, Deus escolheu formas ordinárias para manifestar o extraordinário. Há, portanto, uma correlação entre eles. Disso, depreende-se, como observa Tillich (1987, p. 99), que a revelação mantém os eventos subjetivo e objetivo, natural e sobrenatural, ordinário e extraordinário em interdependência ou tensão dinâmica. Em suas palavras, “revelação não é real sem o lado receptivo, e não é real sem o lado doador”, sendo Deus o doador e o ser humano e sua cultura específica os receptores.

Razões próprias e ambiguidades da religiãoA religião pode ter muito de Deus ou dos deuses – seu caráter,

valores, exigências e verdade –, mas também tem muito do humano. Torna-se problemática precisamente quando o humano pretende reduzir o incondicional ao condicional, ou melhor, igualá-los. É óbvio que se há algo de Deus que pode ser dito, é porque ele se revelou. E, também, se algo dessa revelação pode ser apreendido, é porque o verbo se encarnou. Entretanto, a confusão se arma quando queremos controlar ou monopolizar o conteúdo e a ação do verbo. Logo, o verbo, que na linguagem joanina, é amor e vida, pode se degenerar, na forma religiosa, em ódio, violência e morte. Mas por que isso acontece? Aqui entra o que chamo de razões próprias e ambiguidades da religião.

Parodiando o conhecido dito de Blaise Pascal, a religião tem razões que a própria razão desconhece. Ela envolve o intelecto, é claro, mas menos o intelecto que o coração, e menos o coração que as entranhas. Um religioso vive por certos princípios, e na defesa apaixonada desses princípios os perde muitas vezes de vista, sendo capaz de afirmá-los

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como confissão, mas negá-los, consciente ou inconscientemente, como prática. As práticas religiosas, desse modo, nem sempre coadunam com as teorias provenientes de uma determinada religião.

Nesse sentido, vale apelar para a, quem sabe polêmica, mas contundente, afirmação de John Caputo de que “a religião é para os amantes, apaixonados pelo impossível, que fazem com que o restante de nós pareça vago”, ao que ele completa dizendo que:

Na religião, o amor de Deus está exposto habitualmente ao perigo de confundir-se com a profissão de alguém ou o ego de alguém, ou o gênero de alguém, ou a política de alguém, ou a ética de alguém, ou o esquema metafísico favorito de alguém, ao qual este se sacrifica de maneira sistemática. Então, ao invés de fazer sacrifícios pelo amor de Deus, a religião se inclina a fazer um sacrifício do amor de Deus (CAPUTO, 2005, p. 121, tradução minha).

Pode-se depreender desta fala de Caputo que toda forma de religião é um tipo de antroporfismo; fala-se do “amor de Deus”, da “vontade dos deuses”, do sacrifício “para Deus”, mas, no fim, o que isto significa? Como não atrelar as experiências e significações do sagrado com as paixões e idiossincrasias do humano, do profano, do mundano? Ademais, outra razão própria da religião é que, ao que parece, ela mexe não apenas com os gostos, preferências ou meras opiniões das pessoas, mas, em grande parte, com o “tudo ou nada” de sua existência. É isso que Caputo expressa no livro Truth (2013), onde ele reflete sobre a verdade e sua relação com a religião. Em suas próprias palavras:

Religião envolve nossas mais profundas convicções e mais apaixonadas crenças sobre nascimento e morte, doença e saúde, infância e velhice, amor e inimizade, guerra e paz, misericórdia e compaixão. Por essa razão é que pessoas religiosas são capazes de investir a vida toda trabalhando em favor dos pobres e dos doentes, dedicando-se às vítimas da AIDS na África, por exemplo, e também porque, em contrapartida, são igualmente capazes de incendiar um lugar colocando-o abaixo em um acesso de intolerância. A religião é irredutível tanto a um quanto ao outro e remover a raiva é remover a paixão; mas se você remover a paixão, remove também a religião. Conquanto haja religião, bem

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como paixão, a chance para a justiça sempre virá acompanhada do risco da injustiça (CAPUTO, 2013, p. 61, tradução minha).

É essa ambiguidade da religião que pode tornar artificial e até inútil, em certos casos, o discurso sobre “paz” ou “tolerância” entre as religiões ou convicções semelhantes, caso não se reconheça que a violência, a guerra, a disputa, a intolerância, ódio e injustiça sempre fizeram parte da história das religiões em todo o mundo tanto quanto, ou mesmo em decorrência das diferentes práticas e preceitos sobre o amor, a tolerância, o respeito, a justiça, equidade, paz, e assim por diante. Não são os deuses que estão em guerra, mas os seus seguidores. Eliminar esta ambiguidade - parece-me que este é o ponto de Caputo - é o mesmo que remover a religião.

A percepção é que, considerando as “razões próprias” e as ambiguidades da religião, conforme analisadas há pouco, as pessoas, em suas crenças, estão dispostas a tolerar umas as outras, mas “até certo ponto”, ou seja, até o ponto em que, por exemplo, a tolerância não significa ter de negociar, ou mesmo minimizar em nome da convivência ou do bem comum, convicções “fortes” de fé. Daí a recorrência a ideia de John Caputo sobre a religião como sendo não um processo racional, mas um negócio feito “para os amantes”, que se entregam passionalmente à causa, custe o que custar.

Por essa razão, parte fundamental do discurso dos ateístas2 converge na direção de que se abolirmos a religião do mundo, haveria menos guerras, menos violência, menos intolerância. A história contemporânea das religiões no Brasil, porém, parece seguir em outras direções, que reverberam tanto no desejo de mais religião, por um lado, quanto no anseio por menos religião, sem perder, porém, o elemento da transcendência3. Embora se encontrem em categorias diferentes, ambos, porém, parecem partilhar do mesmo processo de “reencantamento do mundo”. Isto significa que, apesar de tudo, ao que parece, o ser humano não consegue se desvencilhar ao todo, por mais

2 Como é o caso de Sam Harris em seu livro Carta a uma nação cristã (2007), e Richard Dawkins em seu Deus, um delírio (2007). O segundo, já no prefácio de seu livro, convida os leitores, no espírito da música “Imagine”, de John Lennon, a imaginar um mundo sem religião e, consequentemente, sem guerras, ataques suicidas, cruzadas, massacres, perseguições, evangélicos televisivos extorquindo dinheiro de seus fiéis, e assim por diante (DAWKINS, 2007, p. 14). A descrença em Deus e desejo de extirpação da religião da face da terra é o que diferencia estes “neoateus” dos chamados “sem religião”, por exemplo. Não se pode, dessa forma, colocar no mesmo bojo de análise os ateístas, agnósticos e sem religião.3 Explorarei mais esta questão na quarta e última parte de nosso curso, ao falar da religião para os pós-modernos.

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que queira, da religião. O que ela tem de tão especial? É o que continuarei analisando nas próximas unidades.

Conclusão

Nesta segunda unidade vimos um pouco sobre como o conceito de religião pode nos levar a diferentes caminhos e sentidos. Começando com a teoria de Tiago sobre religião, instiguei você a que pensasse nos significados que ela assumiu naquele texto e contexto específicos e por que. Então partimos para definições mais ou menos aceitas de religião. Baseado em Tillich principalmente, defendi a ideia inicial de que a religião é “um sopro humano na busca pelo incondicional”. Isto significa que há algo no ser humano que o move em direção ao infinito, ao Eterno, ao desconhecido, mesmo que não seja possível explicar as razões para isso. Ora, mas isso não garante o contato ou o alcance. Afinal, como pode o condicional e o que há de mais incerto atingir ou incondicional, ou o que há de mais certo e necessário no universo?

A resposta é: não é possível. Na visão de Eclesiastes, isso se deu de propósito: temos essa eternidade no coração, mas não sabemos nada sobre os caminhos do Espírito, que sopra onde quer. Mas o Eterno é gracioso, e resolve se revelar. O incondicional toca parcialmente o condicional através da revelação. A religião, embora diferente da revelação, é também e paradoxalmente resultante dela. Daí sua relação com a cultura; não se encontra Deus em um vazio-sócio cultural, e sim nos termos de uma cultura e tempo específicos. Por fim, vimos com Caputo que, como envolve o incondicional, a religião é coisa para os amantes, e pode virar um negócio de vida ou morte, sem grandes garantias do que vem primeiro ou tem a primazia. O Deus bíblico é o Deus da vida; as construções e práticas religiosas ao longo do tempo, porém, pintaram-no também como Deus da guerra, da intolerância e da morte. Muitas pessoas se afastaram de Deus por causa disso. E, ainda assim, a religião não foi extinta; pelo contrário, cresce cada vez mais a necessidade dela. Pode ser exatamente porque a sede pelo incondicional nunca cessa, apesar dos descaminhos do religioso condicional. Isso é uma pista pelo menos. Estamos apenas começando...

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Referências bibliográficas

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 3O Sagrado

Introdução

A unidade passada consistiu num esforço no sentido de buscar orientações e definições sobre o conceito de religião. Meu ponto de partida foi o texto de Tiago 1.27-28, uma das poucas passagens do NT em que o termo literal em grego (thrëskos) aparece indicando uma tese sobre religião. E a tese de Tiago é bem específica: o que ele chama de “religião verdadeira” pode ser vista como uma religião operante; define-se menos pelo que professa e mais pelo que pratica; menos por seu corpo de crenças e mais por sua piedade.1 Logo, se existe uma religião verdadeira, é porque há uma falsa. E a “falsa religião”, para ele, tem a ver com ser ouvinte e confessante de uma religião (ou da Palavra), e não praticante, e nesse sentido sua definição está muito próxima da de Jesus em Mateus 7.24-27. A religião vã é aquela que é muito operante no falar – de quem não consegue refrear a própria língua ou controlar o que diz –, mas inoperante na vida; rápida e ferina na emissão de juízos, e por isso carente de misericórdia. E, como Tiago diz, “a misericórdia triunfa sobre o juízo” (Tg 2.13).

A noção de Tiago é importante para que os cristãos diferenciem melhor o que é trivial e vão, em sua própria religião, do que é, biblicamente, seu foco e essência. Para a filosofia da religião, porém, trata-se apenas de uma tese possível. Mas uma tese interessante quando pensamos, por exemplo, na definição de John Caputo da religião como

1 Lembrando que “piedade”, em Tiago, tem a ver com estender a mão ao próximo, oprimido e marginalizado – diferente do sentido com o qual estamos habituados na espiritualidade cristã, de “piedade” como vida de devoção a Deus, indicando mais uma prática individual intimista.

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sendo para os amantes e os apaixonados, para aqueles que fazem o tudo ou nada da vida “em nome de Deus” ou “pelo amor de Deus”, e cujas ações podem resultar tanto em paz quanto em guerra, tanto em caridade quanto em violência. Desse modo, como vimos, Deus tanto pode “usar” o fiel para o bem, quanto “ser usado” pelo fiel (fanático) como arma, para a destruição e o mal. A complexidade dessa relação se dá precisamente porque não se tratam de anjos ou demônios, mas de seres humanos.

Assim, a pergunta dessa aula é: porque a religião é assim tão apaixonante? Para começar a responder, pretendo retornar, primeiro, à definição de Paul Tillich (1973, p. 61): “A religião é a orientação do espírito para o incondicional”. Na unidade 2, falamos por alto que o “incondicional” é o que não pode ser condicionado; toca a pessoa incondicionalmente, mas não pode ser controlado (ROCHA, 2010, p. 22). Mas a religião, na prática, não funciona, muitas vezes, de modo contrário: tentando condicionar o incondicional ou domesticar Deus, o Espírito, o sagrado? Isto me conduz a uma segunda e principal questão, que se divide em três perguntas: o que é o sagrado? Que elementos o formam ou distinguem? Pode o ser humano domesticá-lo?

Objetivos

1. Definir o que é o sagrado;2. Identificar as formas elementares que o distinguem;3. Problematizar a questão da linguagem e seus limites

na relação com o sagrado.

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O que é o sagrado? Breve aporte bíblicoComeço com uma história mais ou menos conhecida. O livro

de Êxodo, no capítulo 3, relata que Moisés levava uma vida pacata em Midiã pastoreando o rebanho de seu sogro, Jetro. Certo dia, Moisés conduzia o rebanho por um monte chamado Horeb, quando o anjo apareceu em uma chama no meio de uma sarça, que ardia, mas não era consumida. Curioso do fato, Moisés tentou aproximar-se para ver o que era aquele fenômeno – uma sarça que ardia, mas não queimava – e de repente ouviu seu nome sendo chamado, era uma voz que dizia: “Não chegue mais perto. Tire as sandálias de seus pés. Você está sob um lugar santo”, ou sagrado (Êx 3.5).

Em seguida, a voz se identificou como sendo do Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Então o texto diz que Moisés escondeu a face, temendo olhar para aquela manifestação de Deus. A palavra hebraica para “santo” aqui é qo.desh, que significa separado para um propósito específico, diferente, singular, e depois foi aplicada a lugares (como Kadesh-Barnea, cidade do extremo sul de Judá), a coisas e à própria condição da pessoa-em-Deus – expressa na conhecida frase “sede santos, pois eu sou santo” (cf. Lv 11.44, 1Pe 1.16), que também nos dá a conhecer que o “santo” ou separado é distinto do resto. O ato de ter que tirar as sandálias do pé parece indicar que não se deve pôr em contato o “impuro” com o santo, ou do profano com o sagrado – e é apenas sintomático que muitas religiões, até hoje, adotem esta prática.

Isso nos conduz à questão: o que torna um lugar, evento ou coisa santo/sagrado? No caso acima narrado, “o que torna santo o lugar é o fato de Deus estar ali, falando com Moisés, afirmando ser o Deus de Abraão, Isaque e Jacó. Assim, como Deus ‘esteve com’ essas pessoas, agora Deus ‘está com’ Moisés, tornando a presença divina conhecida e sentida por meios visuais e auditivos” (HOUSE, 2005, p. 115). Nesse sentido estrito, o sagrado é marcado pela e depende da epifania2, uma vez que Deus é “O Santo”.

Desse modo, sagrado (falando de lugares ou objetos) é tudo aquilo que é tocado pela natureza e presença divinas e prova do 2 Aparição ou manifestação divina. Lembrando que evento semelhante também aconteceu com Jacó (em Gn 28.11-22), quando, através de um sonho, ele se viu na presença de Deus e chamou aquele lugar de “terrível”, batizando-o depois de Betel ou “casa de Deus”.

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assombro próprio desse encontro. Este assombro, na terminologia de Rudolf Otto (2007, p. 44), recebe o nome de mysterium tremendum, ou o sentimento do “mistério arrepiante”, que se traduz, como vimos, no emudecimento e humilhação de Moisés diante do Santo ou do Sagrado. No pensamento de Otto, o santo ou o sagrado aparece na figura do numinoso ou inefável, que literalmente significa aquilo que não pode ser dito, nem conhecido, pois foge ao acesso e compreensão racionais. É o que Tillich chama de “incondicional”. Aqui a experiência com o sagrado é irracional, pois irredutível tanto ao entendimento quanto à linguagem. O problema que o texto bíblico traz pra gente, contudo, é: sendo inefável, por que Deus escolhe uma expressão audível e visível (voz e sarça) para se manifestar? Isso nos conduz à relação entre sagrado e profano.

Sagrado e profano: a visão de Mircea EliadeAinda seguindo a narrativa sobre Moisés e a sarça ardente, pode-

se dizer que a manifestação divina, mais que uma epifania, foi uma hierofania. Mas quem disse isso e o que significa?

Quem disse isso – ou melhor, um dos estudiosos que trabalhou com esse conceito – foi o historiador das religiões Mircea Eliade em O sagrado e o profano (1996), livro que se tornou um referente indispensável para os estudos da religião. A tese de Eliade neste livro é de que, (1) primeiro, o sagrado precisa ser concebido em sua integralidade, isto é, não apenas como o “totalmente outro” (metafísico, sobrenatural) de Otto, que se manifesta também no natural e racional. (2) Segundo, que uma definição preliminar do sagrado é que ele é “oposto ao profano”, sendo sua intenção no livro explorar e ilustrar as variantes desta oposição. (3) Terceiro, que o “profano”, como modus operandi de um mundo dessacralizado ou secular, é uma descoberta relativamente recente, e remete ao homem não religioso das sociedades modernas. “Secular” ou “profano”, nesse sentido, significa em tese ser livre ou autônomo em relação ao sagrado e à religião, diferenciando-se, assim, dos homens das sociedades arcaicas, que eram existencialmente religiosos.

Entretanto, para Eliade, seria um ledo engano dizer que, porque

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não aceita mais as ingerências da religião ao modo arcaico, o homem e a mulher “secularizados” tenham uma existência inteiramente profana ou dessacralizada. E isto nos conduz, (4) em quarto lugar, à ideia central de seu livro de que “o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no Mundo, duas situações existências assumidas pelo homem ao longo da sua história” (ELIADE, 1996, p. 20). Há uma ligação entre ambos na vida, ainda que um se defina por ser uma negação ou antítese do outro.

Não se pode achar, como defende Eliade (1996, p. 27), nem uma existência profana em “estado puro”, nem o sagrado em “estado puro”. No primeiro caso, é porque “seja qual for o grau de dessacralização do mundo a que tenha chegado, o homem que optou por uma vida profana não consegue abolir completamente o comportamento religioso” (Ibid.). No segundo caso, como o autor defende em outro lugar, “um dado religioso ‘puro’, fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado humano que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico” (ELIADE, 1989, p. 22).

Por isso, talvez seja possível dizer que, para Eliade, em toda epifania há uma hierofania – que etimologicamente significa que “algo sagrado se nos revela”. Isto não significa que Deus ou O Sagrado seja ou esteja em tais objetos. Como explica:

A pedra sagrada, a árvore sagrada não são adoradas como pedra ou como árvore, mas justamente porque são hierofanias, porque ‘revelam’ algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado, o ganz andere. Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente (ELIADE, 1996, p. 18).

Seguindo o que diz Eliade, o sagrado não é exclusivo das religiões e dos religiosos; na verdade, não é necessário ser religioso para que se tenha uma existência marcada pelo sagrado. Isto se dá, também, com algumas categorias religiosas, tal como o “mito”, sobre o qual veremos na próxima unidade. O problema da hierofania nos conduz, porém, à última pergunta: pode o sagrado ser domesticado?

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Os símbolos e simulações do sagrado

Sabemos, através de Tillich (2009), que sagrado-em-si é o incondicional, que não se reduz a nada nem a ninguém; não pode ser domesticado ou manipulado. A relação com esse sagrado, porém, coloca diante de nós o problema da manifestação, isto é: para se fazer conhecido, esse sagrado precisa se revelar em formas ou conteúdos que são inteligíveis à razão e experiência humanas. Contudo, na medida em que se manifesta de forma ordinária, o sagrado já não se encontra mais em “estado puro”, deixou de ser o sagrado-em-si transformando-se no sagrado-para-nós. Este último é o sagrado transmutado em linguagem ou forma humana. Tillich defende que, por ser fenômeno humano, a linguagem é contaminada com o condicional, de modo que:

Não existe linguagem sagrada caída de um céu sobrenatural para ser encerrada nas páginas de um livro. O que existe é a linguagem humana, baseada em nosso encontro com a realidade, em evolução ao longo do tempo, usada para as necessidades cotidianas, para expressão e comunicação, literatura e poesia, bem como para mostrar a preocupação suprema (TILLICH, 2009, p. 89).

Assim, a linguagem não é o espelho da realidade do sagrado; fala mais do ser humano do que do ser divino, nesses termos. Minha linguagem é prostituída; volta e meia incorpora novos amantes e novos parceiros/as, sem mesmo se dar conta. E não há nada que passe por seu filtro sem ser afetado e que, portanto, possa ser expresso em estado puro: nem as coisas do mundo, muito menos as coisas do céu. As ideias, os conceitos, os símbolos são, assim, formas de depuração da realidade e não o seu reflexo. Quanto mais ciente disso me faço, menos pretensiosos serão meus atos de fala ou mesmo minha teologia. A teologia, mais que qualquer outra modalidade de saber, deveria estar ciente do estado de depuração a partir do qual ela surge; pretende falar de Deus, mas todo significado que dá para esta palavra não passa de uma mirada através de uma brecha ou um pequeno buraco na parede que dá uma visão (apequenada) para fora. Admitir isso não é uma forma de relativizar a verdade, mas de preservá-la.

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Nossa linguagem participa da verdade, mas não pode ser “a verdade”. Assim também se dá com a linguagem simbólica ou com os símbolos religiosos, que, como assevera Tillich (2009, p. 102, 103), “abrem determinado nível da realidade, oculto, que não pode ser aberto de outra maneira” e, assim, “produzem a experiência da dimensão humana da profundidade. E deixam de existir quando perdem essa função”. Ele ainda afirma que essa realidade suprema é a realidade do sagrado, de modo que os símbolos são símbolos do sagrado: “participam na santidade do sagrado”, mas esta participação não os iguala ou identifica ao sagrado. “O transcendente absoluto está além de todos os símbolos que o representam” (Ibid., p. 102).

Ou seja, Tillich admite que estes símbolos religiosos participam de algo fora deles. Pense, por exemplo, na pomba, que simboliza o Espírito Santo descendo sobre nós; ou, para voltar ao exemplo original, pense naquela sarça ardente, como expressão do “Eu Sou” falando com Moisés. Tanto a pomba quanto a sarça são linguagens simbólicas: participam da realidade (de Deus e do Espírito), na medida em que nos remetem à qualidade de sua manifestação, mas não são Deus ou o Espírito em si. Os símbolos cumprem bem sua função enquanto não se dá um status maior para eles do que este, a saber, o de participação na realidade a qual se referem.

Entretanto, como observa Tillich (2009, p. 103), a religião tem uma natureza ambígua: é “construtiva e destrutiva ao mesmo tempo. A religião é santa e pecadora”; afinal, como vimos na unidade 2, religião é negócio humano. Como não carregaria as ambiguidades próprias de seu artífice? Por essa razão, é que mesmo o exercício da religião, que supostamente produz a experiência da dimensão humana da profundidade, é carregado pelo pecado original: aceitando a oferta da serpente, tentamos usurpar o lugar do absoluto. E isto se dá, por exemplo, quando absolutizamos os símbolos do sagrado e, assim fazendo, eles se transformam em ídolos. Tudo o que tenta ocupar o lugar de Deus no coração humano é um ídolo; até mesmo pessoas podem ser, que dirá símbolos.

Por isso, Tillich (2009, p. 104) encerra sua linha de argumento alertando que “sobre todas as atividades sacramentais da religião, com

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seus objetos sagrados, livros doutrinas e ritos santos, paira o perigo da ‘demonização’. Tornam-se demoníacos quando são elevados ao status do sagrado imaginando-se incondicionais e absolutos”. A natureza do símbolo, bem como sua função numa dada religião, é maculada toda vez que este ocupa o lugar do absoluto. Logo, ele já não é mais símbolo do sagrado, mas um ídolo. Não se trata mais do original, e sim de sua simulação.

Simular, na acepção de Jean Baudrillard (1991, p. 9), “é fingir ter o que não se tem”. O símbolo passa a ser simulação toda vez que pretende ou promete ter o que não tem; parte do princípio da equivalência ou de igualação do não igual, como dizia Nietzsche. O problema é que esse princípio de igualação que rege a simulação é, por consequência, um princípio de aniquilação. Dizer que uma imagem é igual à realidade seria o mesmo que aniquilar a realidade. Em termos teológicos, dizer que um símbolo, que nos remete (por participação) ao sagrado ou a Deus, equivale a seu referente (Deus), significa a abolição ou morte de Deus3. Tentar domesticar o sagrado, por assim dizer, é o mesmo que transformá-lo naquilo que ele já não é mais: num demônio ou num ídolo.

Em contrapartida, pelas razões acima expostas e caso se queira evitar a idolatria, Severino Croatto defende que é preciso aceitar que:

A linguagem da religião, ou mesmo da Bíblia, é simbólica. É um preconceito inexplicável entender o simbólico como irreal. Tem lugar quando se confunde o objeto convertido em símbolo com aquilo a que esse mesmo objeto remete e que pertence a um âmbito transfenomenal, inalcançável se não se revela de alguma maneira no ser humano. Se bem observada, esta condição simbólica da linguagem religiosa rompe com a univocidade ou uniformidade das linguagens impostas dogmaticamente. As novas experiências de Deus correspondem a novos símbolos e a um novo discurso da fé e da teologia, do querigma ou proclamação. Se um novo discurso e novos símbolos não são gerados, é sinal de que Deus está oculto porque não há uma fé vivente que o descubra e expresse com novas linguagens (CROATTO, 2002, p. 17, tradução minha).

3 Veja discussão sobre a morte de Deus na unidade 14 deste curso.

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Conclusão

Nesta unidade vimos, em primeiro lugar, que, quando falamos de sagrado, falamos do inefável e do incondicional, que não pode ser

acessado nem condicionado pelo ser humano, pois é totalmente distinto. Em segundo lugar, avançamos para o campo da manifestação do sagrado, e assim aprendemos que sagrado e profano são “duas modalidades de ser” que formam a essência da religião, no entendimento de Mircea Eliade. Num primeiro plano, o sagrado se defi ne em oposição ao profano e vice-versa. Num segundo plano, concebeu-se que não há uma existência sagrada ou profana em estado puro, de modo que o sagrado se

revela no profano e o profano não perde inteiramente, por mais que pretenda, sua dimensão sacral.

Sabemos, assim, que o sagrado pode se manifestar em objetos, lugares ou pessoas, nas chamadas hierofanias. O que diretamente colocou diante de nós o problema de saber se esse sagrado pode ser ou não contido ou domesticado. A fi losofi a da religião de Paul Tillich ajudou no sentido de mostrar que, na linguagem religiosa, criadora de símbolos do sagrado, o que temos não é o sagrado-em-si, mas o sagrado-para-nós, transmutado em experiência e linguagem humanas. E que toda vez que tomamos símbolos como a coisa-em-si, mudamos seu status, transformando-o em um ídolo ou demônio, nos dizeres de Tillich. As palavras fi nais do último tópico (uma citação de Severino Croatto) oferecem para gente o que pode ser considerada a linha mestra deste curso: tudo o que realmente temos é linguagem. Logo, a fi losofi a da religião não tem Deus como objeto, mas a linguagem, a experiência e os símbolos do sagrado.

Mircea Eliade

Paul Tillich

Mircea Eliade

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Referências bibliográficas

BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem: e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2006.BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. CROATTO, Severino. Hermenéutica práctica. Los princípios de la hermenêutica bíblica em ejemplos. Quito: Centro Bíblico Verbo Divino, 2002. ELIADE, Mircea. Sagrado e profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996._______. Origens. História e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989.HOUSE, Paul R. Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Acadêmica, 2005.OTTO, Rudolf. O sagrado. São Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes, 2007.ROCHA, Alessandro. Uma introdução à filosofia da religião. São Paulo: Vida, 2010.TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009._______. Filosofia de la religión. Buenos Aires: Ediciónes Megápolis, 1973.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 4

Os mitos

Introdução

Como vimos na unidade passada, o sagrado tem tanto uma dimensão transcendente quanto imanente, e não pode ser entendido fora dessa intersecção. Pode ser inapreensível e não domesticável em sua natureza inteira (infinita, inefável), mas somente se constitui como tal na medida em que é reconhecido, nas hierofanias. Desse modo, há o sagrado-em-si e o sagrado-para-nós, conforme ressaltei ao final daquela unidade.

Esta unidade está em íntima conexão com a anterior na medida em que aqui pretendo desenvolver uma das dimensões do que se chama de linguagem religiosa. Meu interesse particular está nos mitos: o que são? Que tipo de práticas eles engendram ou regras de funcionamento social que ajudam a gerir? Que crenças comuns gravitam em torno do mito? Como se dá sua aceitação ou rechaço no mundo moderno? Essas são algumas perguntas que devem nos guiar na reflexão adiante.

Objetivos

1. Definir mito;2. Reconhecer o que torna um mito verdadeiro para

um grupo ou povo;3. Compreender os contornos que os mitos ganham

na modernidade.

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Gênesis e o mito cosmogônico Gênesis1 aponta para um ser humano que foi criado a fim de

gozar das benesses de um universo, fundado ex nihilo (do nada) para ser a sua morada. Deus disse: “façamos o homem à nossa imagem, segundo a nossa semelhança”. E assim se fez. “Deus criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus ele o criou; criou-os macho e fêmea”. Os termos “imagem e semelhança” definem o ser humano, em seu estado original, com relação a Deus. Eles foram feitos do material divino e dele possuem a centelha que aquece seus corpos e os movem para a vida. No tempo mítico, Deus não estava longe de suas criaturas, em especial, da humanidade que espelhava seus traços. Como diria Paulo, o apóstolo, na Divindade (Javé) eles tinham a vida, o movimento e o ser, e eis que afirmaram alguns dos poetas gregos a quem Paulo cita para os atenienses: “Pois nós somos de sua raça” (Atos 17.28).

E Deus gerara seres de sua raça e da própria criação; do solo, pó da terra, ele molda o homem; com seu Espírito (rúah) ele confere o sopro de vida (nefesh), que anima a vida carnal do homem, de modo que ele se torna um ser vivo, vivo para governar a própria vida que pulsa, rasteja, cresce e gravita a seu redor. A imagem e semelhança divinas refletem-se na capacidade do homem de criar e dominar: “Sede fecundos e prolíficos, enchei a terra e dominai-a. Submetei os peixes do mar, os pássaros dos céus e todo animal que rasteja sobre a terra!”.

Eis o homem em sua condição mítica e primitiva: com mais privilégios que os próprios anjos, ele é colocado sobre um jardim, o jardim do Éden (do “prazer”), para ali ser mordomo-beneficiário de tudo o que Deus fez, e que viu “que era muito bom”. Mas o homem não podia estar só, isso não era bom aos olhos do Criador. Do próprio homem, fez-se a mulher, sua companheira e ajudadora; ligados “umbilicalmente” e espiritualmente, ambos tornam-se também “uma só carne”, vivenciando os prazeres da existência e em harmonia entre si, com o restante da criação e, o mais fundamental, em perfeita sintonia com seu Deus.

Este mito remete, pois, à criação do humano na terra, conforme relatos cosmogônicos do livro de Gênesis. É rico em detalhes, figuras e 1 Cf. Tradução Ecumênica da Bíblia (TEB), relatos de Gênesis 1 e 2.

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representações que, per si, geram um modelo, um paradigma correlativo à origem do universo. Nele está implícita a ideia de relacionamento sem rupturas entre o ser humano e a divindade, o imanente e o transcendente. Sua produção se dá a partir de diferentes testemunhos de algumas tradições literárias (em especial, a sacerdotal) do povo hebreu, dando sustentação e fundamentação a toda a cultura religiosa e política posteriormente formada.

Eis a função do mito, na visão de Mircea Eliade, em seu livro O Sagrado e o Profano: revelar como uma realidade veio à existência, contando-se uma história sagrada. Nesse sentido, a recorrência perene do homem religioso a um “tempo sagrado” significa uma tentativa de restauração de um estado temporal e cósmico em sua origem ou princípio (arché), precedente ao estado existencial profano. Conforme elucida Eliade (1996, p. 72), “é o eterno presente do acontecimento mítico que torna possível a duração profana dos eventos históricos”.

Em outra obra, Origens, Eliade informa que nas línguas europeias a palavra “mito” indica, maiormente, “ficção” “imaginação, história fantasiosa. O autor, porém, se propõe, no capítulo da obra em que analisa o misto cosmogônico e a “história sagrada”, a estudar culturas em que o mito significa verdade a respeito de algo, revela a realidade de algo.

O mito tem a característica primordial de contar como qualquer coisa se originou - o homem, o mundo, uma instituição, e assim por diante.

Segundo Eliade (1989, p. 97), o “mito cosmogônico” tem precedência sobre os demais, posto que nele se baseiam todos os demais mitos de origem. É, nesse sentido, exemplar ou paradigmático. Conforme analisa, “esta história sagrada primordial, reunida pela totalidade de mitos significativos, é fundamental porque explica, e por isso mesmo justifica, a existência do mundo, do homem e da sociedade” (Ibid., p. 97). Esta é a razão, prossegue o autor, porque a mitologia é considerada, ao mesmo tempo, uma verdadeira história: “ela relata como surgiram as coisas, fornecendo o modelo exemplar e também as justificações para as atividades do homem” (Ibid., p. 97).

Eliade ainda focaliza o exemplo dos povos Dayak, de Bornéu (ilha asiática). Como para outros povos primitivos, o mito cosmogônico influencia os princípios que governam a existência cotidiana desses

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povos, de modo que a história sagrada é “re-vista” na vida da comunidade e na existência individual de cada membro. “O que aconteceu no princípio descreve simultaneamente a perfeição original e o destino de cada indivíduo” Ibid., p. 99). Ainda baseado nesse exemplo, pode-se aferir, por fim, que os mitos de criação do mundo (cosmogonias) são muito similares entre muitos povos primitivos. Nota-se, na seguinte descrição de Eliade, uma patente similaridade (em alguns aspectos) entre o mito Dayak e o mito cosmogônico do Gênesis:

No princípio, diz o mito, a totalidade cósmica encontrava-se ainda indivisa na boca da cobra d’água enrolada. Surgem então duas montanhas e das suas colisões repetidas nasce a realidade cósmica: as nuvens, os montes, o Sol e a Lua, etc. as montanhas são as sedes das duas divindades supremas e são também essas mesmas divindades. Elas, contudo, só revelam as suas formas no final da primeira parte da criação. Na sua forma antropomórfica, as duas divindades supremas, Mahatala e sua mulher, Putir, procedem à obra cosmogônica e criam o mundo superior e o mundo inferior. Mas falta ainda um mundo intermédio, e a humanidade para o habitar. A terceira fase da criação é levada a cabo por dois calaus, macho e fêmea, que são na realidade idênticos às suas divindades supremas (Ibid., p. 99 - grifo meu).

Percebe-se que um dos aspectos que indicam similaridade entre os referidos mitos é a indicação de uma “terceira fase” da criação, em que as divindades criam macho e fêmea, para levar a cabo essa fase, e criam-nas “idênticas” às divindades, à sua “imagem e semelhança”. Ambos os mitos, portanto, relembram aquilo que Mircea Eliade, Rudolf Otto e outros estudiosos da religião já observaram: a religiosidade, o anseio pelo eterno e transcendente, é uma expressão inata ao ser humano. Há uma referência a isso no Antigo Testamento, em Eclesiastes 3.11, quando se diz: “Tudo fez Deus formoso no seu devido tempo; também pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras que Deus fez desde o princípio até o fim”.

Ou seja, além da beleza do universo, Deus permite ao homem ter um senso limitado e parcial acerca do devir histórico, permanecendo veladas, porém, a intencionalidade e ação divinas no que tange ao

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futuro de sua criação. O homem tem um relance, uma chama acesa em seu coração, mas não a plenitude da revelação dos tempos. Assim, coloca-se em suspenso, pasmado e tateante diante do mistério da eternidade e de sua própria existência, mantendo apenas aquela chama animada, lá no fundo, que o mantém unido ao sagrado.

A alma humana contém a atração pelo numinoso, na linguagem de Otto; segundo os autores Paim, Prota e Rodriguez (1997, p. 20), “a alma humana possui o instinto religioso. Ele se revela nesse impulso interior, nessa busca tateante, nessa ‘saudade do absoluto’ que a tantos homens persegue”. E é precisamente essa “saudade do absoluto”, que faz com que os homens criem e recriem o tempo todo seus mitos, fazendo-os ressurgir com novas facetas, porém, em torno desse pathos ancestral. “O homem”, expõe Eliade (1996, p. 89), “só se torna verdadeiro homem conformando-se ao ensinamento dos mitos, imitando os deuses”.

Mitologia moderna: religião sem DeusNesse tópico pretendo fazer convergirem dois pontos de vista:

o de Mircea Eliade com o de Roger Bastide. Embora em instâncias de pesquisa diferentes, ambos se ocupam de um só objeto mais amplo: de religiões e de homens. E aqui quero focar especificamente a mitologia moderna. A expressão parece estranha, à medida que todos sabem que um dos intentos da modernidade foi o de romper com os mitos erigidos até então, apresentando, em contrapartida, uma nova plataforma que tornaria obsoletas quaisquer buscas por referenciais de vida na religião tradicional (de matriz cristã) ou, caso se prefira, no universo transcendente (ou das religiosidades). Bastide (2006, p. 97) afirma: “se há uma época que entrou em guerra contra os mitos, essa época é a nossa”.

Tentava-se criar, portanto, o homem a-religioso ou secularizado, isto é, que não cria nem tinha a necessidade sequer de recorrer à hipótese da existência desse Deus (o Absoluto), que supostamente inventou o cosmos. Assim, num mundo até então orientado por crenças, dogmas e teologias, busca-se implantar um novo governo: o do homem, por meio da razão e da ciência; de uma humanidade

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que, pela técnica, caminhava irremediavelmente ao progresso. Estava em curso, como diz Eliade (1996, p. 165), a dessacralização da morada humana, parte integrante da transformação do mundo nas sociedades industriais do Ocidente moderno. O sagrado era visto como um obstáculo à emancipação do ser humano, à conquista de sua liberdade. O homem só seria verdadeiramente livre quando matassem o último deus.

Contudo, com a ávida intenção de fazer implodir os deuses e os mitos, o homem moderno cria outros mitos. Um deles é apontado por Eliade: de uma existência totalmente dessacralizada. Mesmo o homem a-religioso conserva traços de uma vida religiosa, ainda que sejam traços imemoriais ou inconscientes. Não existe vida profana em “estado puro”, como nos apontou Eliade (1996, p. 27) na discussão da unidade passada. Em outras palavras, um homem “profano”, queira ou não, conserva traços comportamentais religiosos de seus antepassados, embora não lhes atribua uma significância propriamente religiosa. Isso quer dizer que muitos dos que se autodeclararam “sem-religião”, ainda continuaram se comportando religiosamente através de “mitologias camufladas” (pelo secularismo) e “ritualismos degradados” (Ibid., p. 166).

Dessa forma, Roger Bastide (2006, p. 97) inicia seu ensaio sobre a mitologia moderna, fazendo alusão à observação de Karl Marx de que “nossa civilização, longe de destruir os mitos, multiplicou-os”; e, também, cita Bérgson: “o homem é uma máquina de inventar deuses”. De fato, ao tentar abolir todos os deuses e mitos criados pelas religiões, a modernidade acabou inventando muitos outros, erigindo para si uma religião própria, porém, uma religião “sem Deus”. Mata-se o Deus cristão, o Senhor criador do Universo, para edificar altares “religiosos” (sem ser) a novos deuses, como a razão e a ciência. Como ressalta Bastide, o objetivo era de desmitificar tudo.

E na verdade só criaram mais um mito, o da desmitificação, infinitamente mais mistificador que os outros todos que se queria abolir. Pois o homem não pode viver sem mitos; o mito está, de certa forma, na raiz ontológica de seu ser, e todo indivíduo que se respeite irá sempre negar-se a se deixar castrar para ser bem mais domesticado. (...) A ciência não destruiu esses mitos, destruiu apenas a sua ordenação; logrou apenas, em seu esforço obstinado de negação, cumprir o papel das Bacantes, dispersando mundo

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afora os membros arrancados de Dioniso, Orfeu e Osíris... Só logrou matar a mitologia “culta”, deixando-a perpetuar-se em estado “selvagem” e, por conseguinte, ainda mais passível de irromper dentro de nós com toda a sua fúria por estar agora “incontrolada” (Ibid., p. 97-98).

“E como não haver uma criação incessante de mitos, se é verdade que a mitologia é uma necessidade ontológica do homem?”, indaga o autor (Ibid., p. 99-100). Ele continua: “Ao homem, que já não pode apoiar-se em mais nada, pois nada mais tem sentido, só resta apoiar-se em si mesmo e fazer jorrar de sua revolta novas flores míticas” (Ibid., p. 103). O mito do progresso, sem dúvida, é um dos motores que movem o homem moderno. Ele cria a ilusão de que humanidade progride não mais guiada pela providência divina, mas por seu próprio esforço e inteligência. Arranca os homens de seu desespero, gerando sentido ao presente ao futuro. Ele não é mais “ordenado” no universo, mas agora “ordena”. Descobre-se, portanto, nos termos de Bastide, uma nova arquitetura mítica.

Esse autor retraça o caminho da mitologia moderna em três etapas, que resumirei abaixo:

• (a) Um primeiro esforço se dá a partir da ciência. Inicia-se aqui o processo de cultivo do prazer com o natural sem a necessidade de ou referência ao sobrenatural (materialismo cientificista). A matéria e as leis físicas passam a ser suficientes para explicar a realidade. Os progressos espetaculares alcançados pela ciência, a partir do século XIX, introduzem o homem num universo mítico e “fabuloso”; é a criação de uma nova religião, em que o homem se religa ao mito, no entanto, sem a interferência dos deuses. “Parece que, subitamente, a ciência supera o homem que a construiu e torna-se pura divagação do espírito, aproxima-se da magia”. Bastide afirma que o mecanismo de fabricação de mitos consiste, nesse particular, “em dissociar um elemento do discurso conceitual do conjunto que lhe dá o seu verdadeiro sentido, retendo apenas a “fulguração” e transformando-o em “imagens violentas” - a violência aqui provindo da ruptura voluntária introduzida na coerência da linguagem científica” (Ibid., p. 104).

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• (b) Um segundo esforço se dá a partir da técnica. Nesse caso, a máquina é, literalmente, o fabricante de novos mitos. Já não há como impedir o progresso. A via é de transformação tecnológica do mundo, o crescimento econômico, a expansão de fronteiras da natureza para o “bem da humanidade”. Tudo passa a ser objeto de manipulação em nome da civilização moderna, do “desenvolvimento” (que também é mito). Como explica Bastide, “a princípio, o homem tentou manter a sua antiga mitologia dentro desse novo clima. Tentou dar às cidades artificiais e às maquinas invasoras os mesmos significados simbólicos a que estava habituado” (Ibid., p. 105).

Entretanto, alguns resultados dessa mitificação da técnica, dessa criação de novos símbolos, da substituição ou aniquilação do arcaico, têm sido catastróficos: o século XX representa o cemitério das mitologias e das utopias modernas. O preço da exploração e tecnologização da vida tem sido o colapso geral do ambiente e da natureza. Os mitos da técnica não conseguiram, assim, exorcizar por completo o pavor do ser humano moderno, nem tampouco conferir as “respostas” que se buscava.

• (c) Por fim, um terceiro esforço, segundo Bastide, é de ordem sociológica. Trata-se da “fabricação das utopias”. O movimento das utopias é paralelo ao do desenvolvimentismo; caminha na contramão dos valores erigidos em torno do mito do progresso, rejeitando e contrapondo, ideologicamente, o modelo de sociedade, até então, proposto. Bastide defende que as utopias “não passam, na verdade, de mitos da sociologia, da marca da recusa do homem em aceitar a época em que vive tal qual moldada pela história” (Ibid., p. 107). Tem, no entanto, a mesma finalidade da mitologia natural: “transcender a sua finitude acrescentando um suplemento de significação às coisas”. Enquanto a mitologia natural transpõe esse suplemento ao além místico, a utopia situa seu suplemento no além histórico: o futuro (Ibid., p. 108). A revolta inerente ao mito das utopias, porém, não lhe garantiram um futuro muito promissor, na análise de Bastide.

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A constatação desse sociólogo nesse artigo é a de que os significados míticos não foram instintos da história, mesmo numa existência cada vez mais dessacralizada. Num mundo cada vez mais fragmentado, restam, por sobre as demais, de acordo com Bastide, as “mitologias pessoais”, através das quais os mitos permanecem vivos:

Sobrepondo-se, fusionando-se também nos momentos de crise ou abalos em nossas estruturas sociais. Aquilo que Nietzsche, com efeito, invocara com todo desejo, “a morte de Deus”, só podia terminar com a multiplicação dos antigos deuses voltando à tona, ou com a criação de novos deuses - a “ciência”, a “técnica” - de ora em diante reivindicando para si o privilégio de holocaustos sangrentos... O homem continuará sendo, sim, uma fábrica de mitos, o que não é grave enquanto o mito continuar sendo a expressão de nossa luta contra a incompletude, e de nossa necessidade de “ser” plenamente (Ibid., p. 109-110).

Conclusão

Esta unidade objetivou sugerir que os mitos retornam e sobrevivem graças ao homem, cujo referencial de existencialidade depende da recriação de mitologias. Geração vai, geração vem, e os mitos parecem adaptar-se (e não ser abolidos por) às transformações dos tempos. Mas, embora transcendam as temporalidades – enquanto remetem a uma história sagrada, paradigmática, meta-temporal – são re-significados nas épocas e vivências concretas dos homens, isto é, indicam uma experiência histórica e remetem a um clima social e às regras de funcionamento uma determinada cotidianidade, à medida que alteram a cosmovisão e o “sentido da história” para os seres humanos.

Nesse sentido, é necessário ao filósofo da religião, que, antes, estude e compreenda a história (e os mitos) que envolvem dado fenômeno religioso, a fim de que, como consequência, apreenda sua contribuição para a cultura em seu todo. Ao estudar um fenômeno religioso, o pesquisador se depara com uma série de elementos pouco apreensíveis por categorias racionais e históricas. Todavia, nem mesmo

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isso deve impossibilitar uma filosofia da religião, pois, como elucida Mircea Eliade (1989, p. 22):

Um dado religioso “puro”, fora da história, é coisa que não existe, pois não existe um dado que não seja, ao mesmo tempo, um dado histórico. Toda experiência religiosa é expressa e transmitida num contexto histórico particular. Mas admitir a historicidade das experiências religiosas não implica que elas sejam redutíveis a formas não-religiosas de comportamento. Afirmar que um dado religioso é sempre um dado histórico não significa que ele seja redutível a uma história não-religiosa – por exemplo, a uma história econômica, social ou política.

Referências Bibliográficas

BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2006.ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ________. Origens. História e sentido na religião. Lisboa: Edições 70, 1989.PAIM, A., PROTA, L., e VELEZ RODRIGUEZ. Religião. Londrina, EDUEL, 1997.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 5

O que é a fé?

IntroduçãoQuando o meu coração estava amargurado e no íntimo eu sentia inveja, agi como insensato e ignorante; minha atitude para contigo era a de um animal irracional. Contudo, sempre estou contigo; tomas a minha mão direita e me susténs. Tu me diriges com o teu conselho, e depois me receberás com honras. A quem tenho nos céus senão a ti? E na terra, nada mais desejo além de estar junto a ti. O meu corpo e o meu coração poderão fraquejar, mas Deus é a força do meu coração e a minha herança para sempre (Sl 73.21-26, NVI).

À luz do texto bíblico acima, gostaria de te convidar para um início de unidade diferente: uma breve reflexão sobre a fé hoje. Em seguida, prosseguiremos com definições filosóficas sobre fé, em diálogo com Paul Tillich e Sören Kierkegaard.

Pois bem, uma das coisas que mais me preocupa hoje quando o assunto é “fé” é o pouco espaço que nossas definições e percepções mais ou menos comuns deixam para o lado incerto e fraco da fé. Sobretudo porque, ainda que o conceito de fé tenha um aspecto doutrinário ou quase definitivo - e se não respeitar aquilo, não será considerado fé - o fato fundamental é que a fé não existe fora da pessoa. E, como pessoas, adotamos, criamos, defendemos e obedecemos a convicções, mas também somos abalados em relação a elas, o que denota uma dupla condição de fragilidade: (a) primeiro a condição da vida humana; (b) a condição de nossas certezas, que muitas vezes se abalam na medida em que invariavelmente nosso mundo se abala. A questão no caso é se saberemos ou não a lidar com a ambiguidade óbvia que nos contitui como humanos e,

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como tal, também atinge nossa própria fé?Os salmos são cheios dessas ambiguidades, como

este que lemos acima, cuja autoria é atribuída a Asafe. Ao que tudo indica, este homem andava com Deus, buscando e apreciando seus conselhos; mas no meio dessa trajetória cometeu alguns deslizes próprios de quem, mesmo sendo de fé, é gente, é humano; e o que possivelmente o tornava um homem de Deus não era apenas o fato de que ele foi um “escolhido” de Deus, mas de que também, a despeito de suas dúvidas, inquietações, medos e outros sentimentos demasiadamente humanos, ele prosseguia escolhendo Deus. E escolher Deus implica em admitir sua dependência, é ser honesto com Ele, é saber que Ele “é” e continua “sendo”, a despeito de nós não sermos, e que ele permanece, apesar de nossos desvios e fraquezas.

É disso que ele está tratando nesse texto. Nele ele admite ter sido tomado pela inveja e amargura em seu coração em relação aos arrogantes e ímpios, mas prósperos; que pisam nos outros e só pensam em si mesmos, mas, a despeito disso, parecem se dar bem em tudo: não adoecem, estão sempre fortes, oprimem os outros, agem como quem pode se apossar da terra, como se esta fosse só deles; além disso, ainda zombam de Deus, não se preocupam com nada e só vão aumentando sua riqueza. O salmista então é tomado pela insensatez e conclui que toda a sua busca por se manter reto e puro, em agir corretamente e temer a Deus, foi inútil, pois o fez penar ainda mais enquanto esses pérfidos aí gozam de todas as benesses que ele, pelo bem realizado, deveria estar gozando. Quer dizer, quem não se sentiria injustiçado? Quem não se veria tentado e duvidar do caminho da retidão, isto é, dos caminhos de Deus? Quem não passaria pelo vale da insensatez e da amargura como passou o salmista por um momento, que não sabemos quanto tempo durou? É isto que chamo de “mundo abalado”; perdemos nosso chão, e vemos como nossas convicções podem ser solapadas e se perder nestas horas.

Mas o salmista não era insensato ao todo; simplesmente

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porque, diante de Deus, ele admitiu fraquejar, reconheceu seus minutos de bobeira e insensatez; mas mesmo neles, percebeu que não saiu do lado de Deus. Para onde poderia correr? Qual seria, afinal, o sentido de tudo isso? Ele decidiu que melhor é continuar andando com Deus. O sentido de sua fé era maior que a própria fé, pelos modos pelos quais ela se constrói, pelos invólucros frágeis nos quais ela, muitas vezes, se sustenta. O coração humano é enganoso, como defendeu Jeremias. Por ele passam torrentes de pensamento, impulso e volição que podem nos afstar tanto do centro de quem somos, como da própria fé. Por isso, como diz o salmista, ele pode sim fraquejar, e é bom que ele fraqueje, pois é fraquejando que reconhecemos nossas fragilidades, vulnerabilidades, defeitos; e quando sabemos disso, fica talvez mais fácil entender que somos apenas humanos, e que a força do nosso coração vem não dele, mas de quem o fez e faz pulsar, ou seja, Deus - isto para quem é de fé.

O objetivo dessa unidade, então, é entender (filosoficamente) melhor a fé: o que ela é? De que maneiras ela pode se expressar? E, por fim: que relação possível há entre fé (enquanto certeza) e as incertezas do viver? A ideia aqui é explorar essas perguntas a partir do horizonte cristão, que já é suficientemente complexo.

Objetivos

• Definir fé;• Identificar alguns de seus modos de expressão;• Refletir sobre os chamados “paradoxos da fé”.

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Em que consiste a fé?Em Temor e tremor, Kierkegaard (2012, p. 17) dizia que ainda

que se possa formular sistematicamente toda a substância da fé, “não quer dizer com isso que se alcance a fé, como se nós a penetrássemos ou tivesse ela se introduzido dentro de nós”.

Essa frase diz algumas coisas: primeiro, que em toda definição de fé há uma indefinição mais ou menos explícita; isto é, quanto mais tentemos definir a fé, mais ela permanece indefinível. Segundo, que fé não é essencialmente um “conhecimento”, pois como ele diz no livro Migalhas filosóficas, todo conhecimento passa pelo plano temporal e histórico, e, se a fé envolve uma relação com o eterno, então seria absurdo falar que ela é um conhecimento (KIERKEGAARD, 2008, p. 91). Terceiro, que saber qualquer coisa sobre a fé, no sentido histórico, não faz de ninguém uma pessoa de fé, no sentido existencial.

É útil aqui a definição pessoal de fé de Hermann Hesse:A fé, como eu a entendo, não é fácil de traduzir em palavras. Talvez possa ser assim expressa: Creio que, apesar do seu absurdo patente, a vida ainda sim tem um sentido; eu me resigno a não poder perceber este sentido com a razão, mas estou pronto a servi-lo, mesmo que para tal tenha que me sacrificar. A voz desse sentido, ouço-a em mim mesmo, nos instantes em que estou completa e verdadeiramente vivo e alerta. O que a vida exige de mim nesses instantes, quero tentar realizar, mesmo indo contra os padrões vigentes e as leis comuns. Ninguém pode ter essa crença sob imposição, nem se forçar a ela. Só se pode vivê-la” (HESSE, 1971, p. 7).

Posso saber muito de teologia ou ter um conhecimento bíblico invejável, por exemplo; e ainda assim não ser um crente: ela em nada afeta meu viver. Posso ter sido testemunha ocular de manifestações miraculosas, que suspostamente apontem para a existência de Deus (como muitos foram no tempo de Jesus, segundo relatos do Novo Testamento), e nem por isso poderia ser considerado um discípulo (Ibid., p. 88), isto é, alguém cuja vida é seguir os rastros do mestre Jesus. Amá-lo e confiar nele significa fazer o que ele manda, guardando sua palavra (Cf. Jo 14.21; 15.14).

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Kierkegaard se expressou bem a esse respeito quando analisou a situação do “discípulo contemporâneo”, isto é, daquele que, por viver na época em que Jesus se encarnou, pôde presenciar muitos de seus ditos e feitos. No entanto, o ponto de Kierkegaard é que o fato de conhecer uma circunstância histórica - como aquela da Palestina nos dias de Jesus –, pode fazer de alguém uma testemunha ocular, mas de forma alguma o transforma automaticamente em um discípulo, “o que aliás se pode ver pelo fato de que para ele este saber não significa nada mais que algo histórico”, ao passo que a fé, ainda que seja um paradoxo que une o que nosso autor chama de “eternização do histórico” e a “historicização da eternidade”, ou seja, ainda que o incondicional se manifeste de modo histórico, a fé essencialmente fala daquilo que está além da história (KIERKEGAARD, 2008, p. 88, 91).

Mas isto ainda deixa sem resposta a pergunta principal aqui: o que é a fé? Partirei da definição de Paul Tillich (1957, p. 24) em Dinâmica da fé:

Fé, como estar tomado por aquilo que nos toca incondicionalmente, é um ato central da pessoa inteira. Se acontecer que apenas uma das funções que constituem a pessoa é identificada com a fé, desfigura o sentido da fé.

Sabemos três coisas por aqui: é ser tomado pelo que nos toca incondicionalmente; trata-se de um ato da pessoa inteira, ou seja, tudo o que há em mim é orientado pela fé; ela deixa de ser fé quando envolve apenas parte do que eu sou. Nos termos de Kierkegaard (2010, p. 88), a fé é uma paixão, que penetra na totalidade do ser. Então, toda tentativa de dar significados à fé, retomando Tillich (1957, p. 10): “de derivá-la de alguma outra coisa; pois essas tentativas já pressupõem fé”.

Isso significa que a fé, que se manifesta antes de tudo no “centro do eu pessoal, no qual percebemos o incondicional, o infinito, e por ele somos possuídos” (Ibid. p. 10), acaba gerando nesse ser, curioso do sentido da vida, o desejo de derivá-la em outras coisas. Que outras coisas são essas? Com base na reflexão de C. S. Lewis (2005, p. 184-185) em Cristianismo puro e simples, podemos falar em pelo menos dois sentidos a partir dos quais se compreende fé:

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1. Crença: um conjunto de credos centrais que formam a base da fé de alguém. Trata-se da fé que é aceita e defendida a partir de doutrinas consideradas verdadeiras. Há uma diferença, portanto entre a fé, no sentido apontado por Tillich, e a fé como “crença”.

2. Virtude: consequência do caráter do crente. Trata-se da fé que vive e age a partir de um conjunto de orientações de cunho moral, como fazer o bem ou ser misericordioso. Lewis, porém, pergunta: o que há de moral ou imoral em se acreditar ou não em determinados princípios de fé? Acredita-se não porque vê nisso um dever, mas porque crê que aquela fé (e ele está falando propriamente aqui de suas “evidências” ou conteúdos) é verdadeira. Não crer não faz da pessoa que descrê alguém imoral necessariamente. Entretanto, para pessoas de fé, é “inevitável que surjam boas ações” (LEWIS, 2005, p. 198).

O homem e a mulher de fé, contudo, ainda são assaltados pela possibilidade do fracasso no cumprimento de sua virtude e, como consequência, pelo difícil encontro com quem são de verdade. Como bem lembra Lewis (Ibid., p. 189, 190), essa tentativa, porém, é positiva no sentido de que “nenhum homem sabe realmente o quanto é mau até se esforçar muito para ser bom”; de tal modo que “a principal lição que aprendemos quando tentamos praticar as virtudes cristãs é que fracassamos”. É precisamente esse fracasso (bem desenvolvido e reconhecido por Paulo em Romanos 7), numa perspectiva bíblica, que pode reconduzir o fiel aos braços do incondicional e de sua graça, que nos possibilita tanto o perdão quanto a reconciliação.

Os paradoxos da féNa famosa definição de Hebreus, a fé é “a certeza daquilo que

esperamos e a prova das coisas que não vemos” (Hb 11.1). Tomada fora do contexto e de modo descomplicado, essa definição pode enganar um pouco no aspecto dessa “certeza” e dessa “convicção”sobre a qual fala o texto. Que tipo de certeza é essa? Em que se baseia tal convicção? A tese de Hebreus 11, no verso 1, perde muito de seus sentidos possíveis se desatrelada de todo o texto. Minha intenção não é fazer uma exposição

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do texto, e sim apontar alguns paradoxos da fé importantes nele. O primeiro é o paradoxo da fé entre a certeza e a incerteza. Do que

a fé é pode ser certa? Daquilo que, do ponto de vista humano, aparenta ser o mais incerto. A fé, por exemplo, é certa da existência de Deus, não porque Deus tenha se mostrado de maneira clara por meio de evidências ou provas, e sim porque, na linguagem de Tillich, esta pessoa foi tomada pelo incondicional e o eterno. Como diz Kierkegaard (2012, p. 77): “A fé é antecedida por um movimento de infinito; é apenas então que ela surge, nec inopinate1, em razão do absurdo”. Tillich (1957, p. 65), de modo semelhante, também afirma que “todo ato de crer pressupõe participação naquilo para que está dirigido. Sem uma experiência anterior do incondicional não pode haver fé no incondicional”.

O cientista tem provas de uma realidade na medida em que essa realidade se dá a investigar, e então ele tem uma certeza objetiva. O médico pode chegar a ter certeza sobre as origens de uma doença X, porque os exames que ele fez provaram que ela veio da ação de uma bactéria Y. Na fé não é assim. A fé não é apenas certeza do mais incerto, como certeza que se sustenta sob condições incertas. Hebreus diz que quando Deus chamou Abraão, por exemplo, este se dirigiu “a um lugar que mais tarde receberia como herança, embora não soubesse para onde estava indo” (11.8). Abraão partiu na certeza da promessa, no entanto, sem saber. Creu para essa existência, mas não obteve o que esperava nessa existência. Creu porque foi movido pelo incondicional, e porque teve a coragem da fé e o risco de suportar suas eventuais dúvidas e incertezas. E, como diz Tillich (1957, p. 15), “é suportando corajosamente a incerteza que a fé demonstra o mais fortemente o seu caráter dinâmico”.

O segundo é o paradoxo da fé entre o visível e o invisível. Já disse anteriormente que o fundamento da fé (o incondicional) se encontra além da concreticidade dos fatos, portanto, além do que os olhos podem ver, de modo que a testemunha ocular, digamos, de um milagre, não necessariamente se torna um discípulo. Como disse Ariovaldo Ramos (2015) recentemente, “milagre não gera fé, gera festa”. Hebreus diz que a fé é “prova das coisas que não vemos”. Então “fé”, nesse sentido mais estrito, significa confiança naquilo que não se pode ver, ao que não se tem acesso imediato. 1 Expressão latina, que significa “de maneira inesperada”.

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Tomemos o exemplo de Moisés (11.23-29). O texto diz que, ao abandonar as riquezas e pompas do palácio no Egito, Moisés “permaneceu firme como quem vê o que é invisível” (v. 27). Ora, a própria ideia de “ver o invisível” já é um paradoxo. Logo, os olhos que “viram” não são estes humanos, mas os da fé, que se cria a partir da visão do inexistente porque “vê além”. Aqui facilmente alguém pode se recordar do que Jesus disse a Tomé, segundo o evangelho de João. Depois que este o viu e tocou em sua mão e em seu lado, declarou “Senhor meu e Deus meu”. Vendo aquilo, Jesus replicou: “Porque me viste, creste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20.26-29). “Assim, a fé crê no que não vê” (KIERKEGAARD, 2008, p. 118)

O terceiro é o paradoxo da fé entre a promessa e a realização. Chegamos a culminância dos outros dois paradoxos: o discípulo, que tem a confiança certa nas condições mais incertas, que crê naquilo que não vê, mas espera ansiosamente, deve também, como os “heróis da fé” de Hebreus, acreditar e viver segundo orienta a promessa, sabendo, porém, que pode não chegar a experimentá-la em vida. Quando pensamos na figura do herói no sentido hollywoodiano, a imagem que mais comumente surge é de poder, luta, com eventuais contratempos, mas sabendo que, no fim, o triunfo é certo, pois o herói sempre vence. Sem muita consciência projetamos essa imagem na vida, e não diferente na vida de fé. Nutrimos a certeza de que aquele que plantou o bem, lutou para alcança-lo, trabalhou duramente para sua conquista, ao final, será recompensado. Entretanto, a realidade é mais complexa que isso. Eclesiastes tentou nos alertar a esse respeito ao concluir que a vida é miserável, fugaz, cheia de sofrimento e sem sentido; que a sabedoria pode trazer vida, mas nem por isso o sábio está garantido em comparação com o tolo, às vezes a vida vira do avesso, e vemos o sábio sofrendo muito enquanto o tolo, apesar de suas tolices, só se dá bem. Ele também diz que sol nasce para todos e o fim é o mesmo para todos, pobres ou ricos, sábios ou tolos, justos ou injustos. E que, durante a vida, “cedo ou tarde, a má sorte atinge a todos. Ninguém pode prever a desgraça. Como peixes capturados numa rede cruel ou pássaros numa gaiola, os homens e as mulheres são capturados pelo mal acidental e repentino” (Ec 9.11-12, A Mensagem).

Podemos discordar, ficar bravos e profundamente incomodados

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com Eclesiastes, e com certa dose de razão, afinal, geralmente não somos preparados para lidar com as más notícias - nem pela família, tampouco pela sociedade ou pela religião - , apenas com as boas, como se o otimismo e o pensamento positivo nos garantissem vitória e vida longa. Contudo, de nada adianta espernear, fechar os olhos ou negar a realidade. Quem pensa que a vida de fé pode blindá-lo contra o sofrimento, facilmente envereda pela rua do engano e da ilusão. Primeiro, porque não há nenhuma garantia cósmica de que ter fé é ter proteção e segurança; segundo, porque não há nenhuma garantia bíblica, no sentido global, que sugira isso. Muito pelo contrário. Andar nos caminhos da fé, por sua própria natureza e pela natureza da vida, implica em enfrentar dificuldades várias, como foi o caso dos anti-heróis de Hebreus. Experimentaram, sim, a proteção divina em algumas circunstâncias e até viram algumas promessas sendo cumpridas, mas também “enfrentaram abusos, açoites e, sim, algemas e prisões”; alguns “foram apedrejados, serrados ao meio, assassinados a sangue frio”. Vaguearam pela terra, sem teto, força ou amigos, “vivendo como podiam nas periferias cruéis do mundo”, que, como diz o autor, não era digno deles! (11.32-38, A Mensagem).

E o autor de Hebreus finaliza claramente expressando o paradoxo em questão: “Entretanto, nenhum desses exemplos de fé puseram a mão na recompensa prometida. Deus tem um plano melhor para nós: que nossa fé se junte à deles, para formar um todo completo, como se a vida de fé que eles tiveram não fosse completa sem a nossa” (11.39-40, A Mensagem). Caminhar na fé, segundo Hebreus, implica em lançar-se nos paradoxos sem seguro de vida ou de triunfo. Aliás, Kierkegaard foi taxativo e um tanto duro a esse respeito, seguindo a lógica ilógica de Hebreus, quando disse que:

Em verdade, se ocorresse à fé alguma vez a ideia de avançar assim, triunfalmente en masse, então ela não precisaria autorizar alguém a cantar refrões satíricos, porque de nada adiantaria proibi-lo a todos. Mesmo que os homens emudecessem, ouviríamos sobre esta louca procissão uma risada estridente como aqueles sons zombeteiros que a natureza faz ouvir no Ceilão; pois a fé que triunfa é a mais ridícula de todas as coisas. Se a geração contemporânea de crentes não teve tempo de

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triunfar, nenhuma outra o conseguirá; pois a tarefa é a mesma, e a fé é sempre militante; mas enquanto ainda houver luta haverá a possibilidade de derrota, e por isso, no que concerne à fé, jamais se triunfa antes do tempo, ou seja, jamais se triunfa no tempo [...]. (KIERKEGAARD, 2008, p. 152-153, grifo meu).

Que vantagem há na fé? Que proveito ela, porventura, traz? Afora as promessas falsas provenientes de uma falsa piedade - porque apartada da vida real - , a resposta honesta pode ser: nenhuma! E quem disse que a fé tem a ver, primordialmente, com vantagem e com proveito? Se algum proveito há na fé - claro que estou falando aqui da fé cristã - esse não está primeiramente voltado para a pessoa em si, mas para o próximo da fé, tanto no presente, quanto no futuro, pois a fé que vive no paradoxo se concretiza de várias formas já, só que plantando sementes para a eternidade. O final do capítulo 11 de Hebreus é sugestivo de que a fé do discípulo não é fé em si ou para si, mas é fé para a posteridade, é a fé que cresce e amadurece nos outros. É, nesse sentido, uma dádiva, um bem comunitário, um tipo de fé que se forja na junção do si mesmo e do/com o outro. Ali germina, ali cresce, e dali se expande para a eternidade.

Conclusão

A fé é um fenômeno complexo para a Filosofia da Religião. Sobretudo porque ela pode se expressar fenomenalmente, mas normalmente não se retém em fenômenos, expandindo-se para o terreno do indizível. Por isso, foi conveniente trabalhar com Kierkegaard e Tillich nesta unidade, pois foram filósofos que compreenderam essa dimensão anterior ou precedente da fé, que dogma religioso nenhum pode expressar ao todo ou reter; na verdade, segundo Tillich, todo conteúdo ou reflexão sobre a fé no sentido cristão já pressupõe a existência da fé. Pois, mais que um conhecimento, a fé é um sopro do incondicional movendo-se no coração do condicional e do humano. Instiga menos palavras e mais ações, embora todo esboço de fé no ser envolve alguma reflexão sobre a fé. Kierkegaard apropriadamente

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a definiu como um paradoxo, e o texto de Hebreus pode ser muito instrutivo sobre alguns dos paradoxos derivados da vida na fé, e que geram uma reflexão mais profunda sobre seus significados. A intenção nas próximas unidades é a de aprofundar ainda mais isso através do diálogo entre a fé e: a dúvida, o sentido e o trágico.

Referências bibliográficas

HESSE, Hermann. Minha fé. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1971. KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. _______. Migalhas filosóficas: ou um bocadinho de filosofia de João Clímacus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. São Paulo: Martins Fontes, 2005.PETERSON, Eugene. A Mensagem. Bíblia em linguagem contemporânea. São Paulo: Editora Vida, 2011. RAMOS, Ariovaldo. Convergir. Palestra proferida na Soul Igreja Batista, Rio de Janeiro, 15/09/2015. Ver: <https://goo.gl/jjgTJN>. Acesso em 16 set. 2015.TILLICH, Paul. Dinâmica da fé. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1957.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 6

Dúvida

Introdução

Nessa unidade, sigo falando de fé, partindo agora de sua relação intrínseca com a dúvida. Às vezes tenho a impressão de que a religião, que, a meu ver, deveria ser a amiga número 1 da dúvida - já que se funda no mistério e no sagrado - , tornou-se sua pior e mais cruel inimiga. Porque a religião lida diretamente com a fé das pessoas, e, embora nem sempre pertencer a uma religião seja garantia de uma fé viva (muitas vezes é exatamente o oposto), em tese, ela se nutre e cresce a partir da fé pessoal e coletiva. Especialmente em contextos fundamentalistas - em que se exige uma responsividade segura do fiel em relação à espécie de doutrina na qual professa crer, e em que, como contrapartida, oferece-se a revelação da verdade bíblica e uma promessa ao fiel de que, nesta vida ou pelo menos na outra, todo o seu sofrimento será eliminado - , a fé aparece como arquiinimiga da dúvida, e duvidar passa a ser sinônimo de blasfemar, apostatar da fé.

Mas será que tem que ser assim? A fé cristã, em particular, não pode conviver com a dúvida radical, que questiona tudo, desde nossa existência nesse mundo, os paradoxos da vida, e até mesmo a ação de Deus? Em contrapartida, quais seriam os benefícios da dúvida para a vida de uma pessoa de fé? Essas são algumas das questões que nos tocam neste sexta unidade. Temo que, neste segundo conjunto de aulas especialmente, minhas análises assumam uma tonalidade um tanto particular ou

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pessoal, pela natureza do tema. Assim sendo, você tem toda liberdade para discordar de minhas perspectivas, uma vez que nenhuma delas é fruto de uma tentativa de imposição ideológica, mas do desejo de provocar a fome de pensar, e pensar-por-si.

Objetivos

• Problematizar a relação entre fé e dúvida;

• Identificar alguns dos traços da dúvida radical.

• Refletir sobre possíveis benefícios da dúvida à fé.

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Os limites entre fé e a dúvidaPeter Rollins em seu Insurrection (2011), tem como foco de

análise a questão da dúvida. No capítulo 2, ele fala sobre a experiência dos líderes na igreja com a dúvida. Numa situação ideal, para que como igreja participemos da crucificação, ele defende que precisamos de líderes que experienciem pública e abertamente “a dúvida, a incerteza e o profundo mistério, líderes que as vejam como parte da fé cristã e importante para o contínuo desenvolvimento de uma espiritualidade sadia e propriamente cristã” (ROLLINS, 2011, p. 65, tradução minha). Concordo com Rollins quando ele também observa que não é que não existam líderes que experimentem estas coisas; o problema reside em encontrar líderes que admitam experimentá-las - ainda que, secretamente, muitas vezes, enfrentem momentos de incredulidade, ou pior: enquanto exteriormente lutam para manter uma imagem austera de fé, interiormente já deixaram de acreditar nas coisas que pregam. Nas palavras do autor:

Todos sabem que a maioria dos pastores tem dúvida e, de tempos em tempos, experimenta um sentimento de ausência divina, e sabe-se que normalmente é bem mais que isso. Também é evidente que eles frequentemente sentem-se impedidos de expressar isso por meios públicos quaisquer - exceto em casos em que adotam uma linha segura de afirmação de que Deus é grande o bastante para conter a dúvida (...). Nas raras ocasiões em que o pastor se levanta e declara abraçar o desconhecido, uma crise entre os congregantes pode ocorrer. Não porque a congregação agora duvida, mas porque a fé do pastor gerou uma barreira psicológica protetora que conteve a dúvida deles. (...) Apenas quando o pastor bane a dúvida ou é substituído por alguém que possa ocupar o papel crente-em-nome-de-nós, a igreja pode outra vez agir como um cobertor de segurança metafísica, prevenindo-nos de experimentar a ansiedade de nossa existência (ROLLINS, 2011, p. 66, tradução minha).

Esse quadro é muito triste e adoecedor para ambas as partes, pastor e congregação. No entanto, quando lemos as Escrituras de modo sério e abrangente, e não simplesmente procurando justificativas

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furtivas em versículos aleatórios para problemas que não são simples de se resolver, percebe-se que o oposto pode ser dito e feito em relação à dúvida. A maior parte dos chamados “heróis da fé” teve dúvidas, e, em algum momento, cometeu deslizes tomando “os pés pelas mãos”. A lista de Hebreus 11 é emblemática. Abraão, que há muito é referendado como “pai da fé”, por exemplo, em Hebreus aparece como aquele que, pela fé, deixou sua terra e sua parentela para mudar-se ao lugar destinado por Deus e creu, mesmo diante de sua escassa vitalidade e da esterilidade de Sara, na promessa de que sua descendência seria tão numerosa quanto às estrelas do céu e incontável como a areia do mar (cf. Hb 11.11-12).

No entanto, conhecemos a estória de Abraão e Sara - e aqui não repetirei o foco de análise da unidade anterior. O ponto aqui está em que recordemos que Abraão, mesmo tendo crido na promessa, não titubeou quando Sara, sentindo-se culpada por ser estéril e não ter-lhe dado filhos, ofereceu sua escrava, Hagar, para que seu marido a possuísse e a engravidasse e desta união nasceu Ismael, filho da descrença de Abraão, por assim dizer (Gn 16). Isso sem falar que Sara riu da ironia da promessa original externando sua dúvida: “Poderei realmente dar à luz, agora que sou idosa”? (Gn 18.13), e depois ainda mentiu sobre ter rido.

Com estórias como a de Abraão e Sara, aprendo que promessas não são garantias divinas para a manutenção da fé, e sim fruto do relacionamento entre o ser humano e Deus gerado e gerido em fé. Porém, se tratamos as promessas divinas como um elemento gregário, isto é, como sendo a fonte originária do ato de caminhar na e pela fé, logo elas se tornarão não um telos pelo qual a fé se norteia, mas objetos de veneração e obsessão, ou mesmo moedas de troca que justificam a fé. Abraão não creu na promessa pela promessa em si, mas pela fidelidade do Senhor, que é quem promete. Logo, a vida pela fé não encontra sua razão de ser nas promessas, mas na pessoa do próprio Deus.

Mas não percamos nosso foco aqui, que é a questão da dúvida. Vimos que Abraão e Sara duvidaram, mesmo estando na fé. Se for verdade, como se diz em Hebreus, que “sem fé é impossível agradar a Deus, pois quem dele se aproxima precisa crer que ele existe e que recompensa aqueles que o buscam”(11.6), também é verdade, conforme

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o mesmo texto, que esta fé “é a certeza daquilo que esperamos e a prova das coisas que não vemos” (11.1); ou, na tradução A Mensagem (na versão em inglês), a fé é o firme fundamento sob o qual estão todas as coisas que fazem a vida valer à pena, e “nosso controle sobre o que não podemos ver”. Que controle se pode ter sobre o que não se pode ver, ou sobre o que não é materializável? É claro que aqui a linguagem é paradoxal. O que o autor de Hebreus está dizendo pra gente, a meu ver, é que a fé é a única e real certeza que subsiste em meio às incertezas da vida. Posso estar convicto de minha fé mesmo quando tudo, até mesmo a própria fé, parece estremecer. A fé faz-se chão onde já não se pode mais encontrar chão; é o que dá significado a um caminhar numa estrada perdida e sem rumos definidos. Mas este sustento, esteio, chão e certeza residem não numa suposta força que emana de nós mesmos, ela misteriosamente é suprida pelo Espírito de Deus.

Frente a frente com o paradoxoDessa forma é que retorno outra vez ao paradoxo, e por isso

defendo que a fé deve aprender a conviver com a dúvida: porque ao mesmo tempo em que as dúvidas e questionamentos, e a angústia daí proveniente, podem-nos fazer passar pelo vale do ceticismo e das incertezas, são elas que nos movem outra vez em direção a Deus, nos levam a interpelá-lo em oração, a escancarar diante dele nosso eu ferido e fragilizado; elas nos conduzem ao lugar em que a expressão de súplica, lamento e confiança podem bailar juntas numa única e expressiva dança que é a dança da vida, e a sair dali com uma fé mais madura e mais humana. Por isso é que, demasiadamente humano, identifico-me com o salmista, que orou dizendo: “Até quando, Senhor? Para sempre te esquecerás de mim? Até quando esconderás de mim o teu rosto? Até quando terei inquietações e tristeza no coração dia após dia? Até quando o meu inimigo triunfará sobre mim?”, e, na mesma oração, declarou: “Eu, porém, confio em teu amor; o meu coração exulta em tua salvação” (Sl 13.1-2,5). Também me uno ao pai do menino possuído por um espírito que o impedia de falar, que, diante da exclamação de Jesus de que “tudo é possível ao que crê”, respondeu: “Creio, ajuda-me a vencer a minha incredulidade” (Mc 9.23,24).

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Fé e dúvida são como o joio e o trigo: no mesmo lugar em que uma brota, há a possibilidade da outra crescer; e se tentarmos extirpar uma em detrimento da outra, a dúvida em detrimento da fé, se tentarmos separá-las abruptamente porque em nossa teologia é inconcebível um espaço em que ambas possam juntas gravitar, pode ser que joguemos fora também o precioso junto com o que entendemos ser vil, e a fé seja cortada antes mesmo que seu fruto cresça, amadureça e apareça. Como afirma Rollins (2011, p. 19) em tom de celebração: “Acreditar é humano; duvidar, divino”.

Alguns ateus costumam alegar que não aderem à fé, nem a Deus, porque são caminhos fáceis, que nos infantilizam, nos livram da dor de viver, de encarar (e abraçar) a vida como ela é, e nos transportam para outra vida, uma vida idílica, sem problemas, incertezas ou dor e, como consequência, promovem uma espiritualidade do sobrenatural, do metafísico, do etéreo. Particularmente penso que eles estão, pelo menos em parte, certos nestas alegações, pois sinto exatamente a mesma coisa quando olho para a religião por muitos praticada, embora estas não sejam razões suficientes para que eu abandone a fé, ou para que ela seja de mim extirpada. Entretanto, não é nenhum absurdo pensar o contrário, ou seja, que a descrença seja um caminho fácil - no fundo, creio que nenhum dos dois caminhos deveria ser enquadrado como “fácil” Mas se eu tivesse que indicar um, escolheria a descrença, que é relativamente mais cheia de recursos de todo tipo (materiais, empíricos, lógicos, racionais) que o da crença, ou melhor, da fé - isto para quem, como eu, rejeito a apologética moderna. Isto, pois entendo - e não somente entendo, experimento na pele - que crer é particularmente difícil. Requer de mim o esforço de persistir, de aceitar, de descansar, em meios às minhas inúmeras inquietações, dúvidas e a própria “falta de fé” em certos momentos, cruciais eu diria.

De fato, não é necessário crer quando sua única fidelidade e confiança estão naquilo que vê, no mundo material, nas leis do universo, na vida que pulsa naturalmente, a única que realmente temos. A fé, por sua vez, torna-se imperativa no ser quando sensivelmente constata que nada disso é o bastante, quando a vida vira vaidade ou quando nada faz sentido, como se constata em Eclesiastes. Então, por que é que alguma coisa precisa existir (por trás e movendo os relances

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de eternidade que meu coração abriga) ao invés de nada? Aí é que está: não precisa existir! Posso até concordar racionalmente que há grandes probabilidades de que tudo seja um nada, e de que este “nada”, misterioso e inescrutável, seja “tudo”. Mas meu espírito diz outra coisa; minha angústia também. Conduzem-me de novo a Deus, por mais resistente que eu seja a este nome ou ao que nossas ideias fizeram dele. Aqui reside o crer: crer a despeito da própria descrença, esperar contra a esperança. Esperar e agir, sem deixar de sonhar o real, vivendo-o.

As palavras de John Caputo são alentadoras neste sentido e vêm ao encontro do que estou tentando defender:

A fé não é segura. A fé não é fé sempre, de forma que os buracos e as rachaduras da fé se enchem com mais fé e o conjunto se converte em um todo perfeito, contínuo e equilibrado. A fé é sempre, e esta é sua condição, fé sem fé, fé que necessita sustentar-se de um momento a outro, de uma decisão a outra, mediante a renovação, reinvenção e repetição da fé, que está, se me permitem, continuamente exposta à descontinuidade (CAPUTO, 2005, p. 49, grifo meu).

Para fins meramente didáticos, confesso que já fui assaltado por questões cruciais sobre a fé em Deus, tendo questionado quase tudo, tanto que às vezes pareceu que não restaria pedra sobre pedra ou chão para se pisar. Também reconheço que o ateísmo de certo tipo já foi uma iminente tentação; não o ateísmo militante e pseudocientífico, mas aquele lúcido, de espírito irênico, que respeita a crença alheia sem deixar de se posicionar, e se posiciona de modo coerente, honesto, visceral também, embora sem abandonar a via racionalista ou existencialista, e por isso incomoda espíritos pensantes que são honestos para com suas dúvidas - já que nem todo pensante é honesto, embora quase todo honesto seja, por assim dizer, um pensante, uma vez que a honestidade parte do reconhecimento -, e rejeitam simplismos e silogismos, ateístas ou teístas.

Por isso, a fé, em suma, é um desafio. Como permanecer crendo quando “Deus”- ou seja, a ideia, seus sistemas ou as grandes narrativas de referência - está morto e a sua religião em ruínas? É preciso muito mais que o anseio por consolo e alento para manter a fé de espíritos

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honestos viva; antes - e este é meu caso -, é preciso a coragem de assumir-se como um não-ser sem fé, um não-ser sem Cristo. E que não quer a fé como refúgio do mundo, mas como modo de ser-ver-viver-agir no mundo. Quer, portanto, uma fé humana, uma fé mundana. Mais que o “salto no escuro” de Kierkegaard, crer é querer crer, como o homem que a Jesus disse: “creio, mas ajuda-me na minha falta de fé”; crer é crer que se crê (VATTIMO, 2004) ou acreditar em acreditar, e é ter razões mais profundas que as que, pelas limitações próprias de nossa finitude, cabem na razão, razões da sensibilidade última de cada ser, razões nem sempre explicáveis ou demonstráveis.

Conclusão

Permanecer na fé, contra todos os questionamentos que eventualmente fazemos aos seus conteúdos, como diz Tillich (1957, p. 24), é um ato de coragem, e mostra que a fé é bem maior que os invólucros que inventamos para contê-la; em suma, é ser possuído por “aquilo que nos toca incondicionalmente”. Envolve a pessoa inteira. Não somente a razão, tampouco só as emoções. Não apenas convive com a dúvida existencial, mas se alimenta dela. Sua única certeza é a do incondicional. Seu principal mote é o impulso de viver, a despeito da própria morte.

Em resumo: fé é aquilo que, mesmo manquejando, se mantém quando todos os seus adornos perdem sua razão de ser, e quando só resta o que Tillich (2009) chama de “certeza ontológica” ou “elemento incondicional da fé”, absoluto que não se retém em linguagem nem pode ser enquadrado em conceito algum, mas que, na falta de um nome melhor e condizente, e enquanto dele é preciso falar, concordo em prosseguir antromorfisticamente chamando-o de ‘O eterno’, ‘Deus’, ou simplesmente “Paizinho”. Mas, se a fé humana está sempre em construção, inacabada, seu próximo passo talvez seja menos palavra e rito, e mais silêncio e ação ou vida. Quem sabe já estejamos caminhando nessa direção. Tomara que sim.

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Referências bibliográficas

CAPUTO, John D. Sobre la religión. Madri: Tecnos, 2005.ROLLINS, Peter. Insurrection: to believe is human; to doubt, divine. New York, NY, USA: Howard Books, 2011. TILLICH, Paul. Teologia da cultura. São Paulo: Fonte Editorial, 2009.________. Dinâmica da fé. 4ª ed. São Leopoldo, RS: Sinodal, 1957.VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 7

Sentido

Introdução

Há algum tempo, aprendi com Francis Schaeffer (2001, p. 61) em seu clássico Verdadeira espiritualidade, que quando perguntas honestas são feitas elas requerem de nós (cristãos em geral e pregadores do Evangelho, especialmente) respostas intelectualmente honestas - ou honestas desde as entranhas, como prefiro dizer. Mas em que isso implica? Implica em não esconder, mas ajudar a escancarar o que a vida real já torna evidente. Aliás, quanto mais experiência se acumula no caminhar, mais se deveria ser assaltado de honestidade e realismo - bem, neste caso especialmente, reconheço que é uma questão de perspectiva. Há quem diga que escolher ficar alheio à dureza da realidade sempre faz muito mais bem à “saúde” que enfrentá-la. Talvez sim. Mas esse tipo de escolha normalmente conduz a pessoa ao problema anteriormente levantado da “vida não examinada”.

Dessa forma, como disse C. S. Lewis em sua autobiografia: “O que me agrada na experiência é a sinceridade que nela percebo. Você pode tomar quantos desvios quiser; mas basta manter os olhos bem abertos, que logo verá a placa de alerta. Talvez você se tenha enganado, mas a experiência não tenta enganar ninguém. O universo se mostra fiel sempre que você o testa com justiça” (LEWIS, 1999, p. 182). O problema é que nem sempre estamos de olhos abertos, seja por insensibilidade, opção ou por pura preguiça de abrir os olhos. A pior enganação é aquela em que a gente finge que tudo está bem e sob controle enquanto

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um universo de coisas, boas e ruins, acontece em nosso entorno. Desejar encará-las não nos torna necessariamente pessimistas ou cínicos, mas nos torna mais humanos.

Quando pensamos particularmente no significado da vida, algumas das inúmeras perguntas que eventualmente surgem, sem que necessariamente reverberem ou tenham lugar, podem ser:

(a) Perguntas sobre origem e fim: Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?

Por que tememos tanto a morte?(b) Perguntas sobre o porquê da vida:Que razão tenho para viver? Que proveito tem tanto

trabalho? Qual é o sentido de realizar algo se, ao morrer, meu ser e minhas ações serão esquecidos?

(c) Perguntas sobre o sofrimento:Pelo que ansiamos profundamente? Por que nunca

nos sentimos realmente satisfeitos? Por que coisas ruins acontecem a pessoas boas? (KUSHNER, 2008). Por que justos e injustos são igualados em todas coisas?

(d) Perguntas sobre as grandes buscas humanas:O que é e como se obter justiça? O que é e como se

obter a paz? O que é e como se obter felicidade?(e) Perguntas sobre a razão da bondade:Faz diferença a maneira pela qual vivo? Faz diferença

que eu seja bom, fiel e honesto? Fazemos o bem pelo bem em si ou para sentir menos culpa?

(f) Perguntas sobre o significado da fé:Deus existe? Por que crer nele? Se ele existe, por que

não se mostra? O que Deus pensa/sente/espera em relação a mim? Qual é a sua vontade para minha vida, se há alguma? Deus necessita mesmo de nossa existência?

(g) Perguntas sobre o significado de se relacionar: A que se deve nosso anseio por comunidade? Por que

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nos destruímos mutuamente? Como alguém, sendo egoísta e mau, pode fazer o bem?

(h) Perguntas sobre o significado de progresso:Como podemos viver melhor? Por que às vezes parece

tão simples e outras tão complexo viver? Como se continua a viver depois que se constata que toda a sua existência foi um fracasso?

O que vemos acima é apenas um exemplo das milhares de perguntas que podem brotar de uma sincera reflexão sobre o a vida, o que certamente envolve o estar-na-fé daquele/a que é de fé. Essa unidade, assim, é uma proposta de reflexão - com breves provocações pessoais - sobre o sentido da vida e o sentido da fé.

Objetivos

1. Lidar com algumas das perguntas sobre o sentido da vida e da fé;

2. Imaginar, através de Eclesiastes, como é possível encontrar algum significado, diante da natureza nonsense da vida humana.

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Por que perguntar sobre o significado da vida?Para explorar essa questão, gostaria de me debruçar sobre o livro

de Eclesiastes. Suporei aqui que você já conheça o livro, já o tenha lido, ou pelo menos tenha uma noção do que ele trata, por isso vou direto ao ponto. Eclesiastes é praticamente o único livro da Bíblia em que vemos esta questão - do sentido da vida - sendo endereçada e enfrentada de modo honesto e realista-prático. É um livro que fala muito ao homem e mulher de hoje não porque seja “pós-moderno”, mas porque é extemporâneo e intempestivo, usando aqui termos nietzschianos. Extemporâneo porque coloca problemas que estão além do próprio tempo em que o autor escreve; num certo sentido e usando um clichê, vale para todas as épocas - mas especialmente para a nossa, afinal, é a única que conhecemos, mesmo que parcialmente. É intempestivo porque é impertinente, incomoda, gera desconforto, até porque parte do lugar de alguém que já não tem mais tempo para perder com besteiras.

Como bem analisa Harold Kushner em seu belo livro, Quando tudo não é o bastante,

Eclesiastes era um homem sábio, na meia-idade ou já passado por ela, que tentava lidar com seu medo de envelhecer e morrer sem ter sentido que havia vivido de verdade. Ele nos dá a impressão de procurar desesperadamente por alguma coisa que dê à vida um significado menos efêmero. (...) Eclesiastes não é um mero professor de sabedoria, ainda que mais honesto e direto que a maioria deles. Não é apenas um inimigo da afetação e da hipocrisia. É um homem com um medo desesperado de morrer antes de aprender a viver. Nada do que já fez, nada do que fará terá importância, pois um dia morrerá e será como se nunca tivesse vivido. E ele não consegue suportar este medo de morrer e desaparecer sem deixar um traço de si (KUSHNER, 1999, p. 21; 22, grifo meu).

Seguindo a linha de raciocínio de Kushner e ensaiando uma primeira resposta, digo que examina a vida quem a experimenta, se enfada, se inquieta, se angustia, se humaniza e teme que a vida passe rápido, a hora da morte chegue a qualquer instante e “tudo” não tenha passado de “um

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nada”, vazio de significado. Examina a vida quem sabe que vai morrer e que, portanto, precisa logo aprender a viver. Mas a urgência de aprender a viver não pode ser confundida com instantaneidade. Ninguém aprende esse tipo de coisa de um dia para o outro. A gente leva quase uma vida toda para aprender a viver, e quando aprende, quem sabe já não reste muito tempo. No entanto, encanto-me com o exemplo daquelas pessoas, experientes e vividas, que chegam a um estágio de maturidade invejável, mas, ainda assim, não desistem da “beleza de ser um eterno aprendiz”, como se diz na canção “O que é o que é”, de Gonzaguinha. Essas pessoas me ensinam que não há quem tenha aprendido a viver e que não tenha nada mais a saber, a aprender e a experimentar. A trajetória nesta vida só termina depois do suspiro final.

Mas, não contente ainda com esta primeira resposta, persisto na pergunta: por que examinamos a vida e nos perguntamos sobre seu significado? Aqui vão mais dois palpites.

Em primeiro lugar, examinamos a vida porque - transformando aqui uma pergunta de Kushner em afirmação - Deus plantou em nós uma fome que não pode ser saciada, uma fome de sentido e significado. Em Eclesiastes, diz-se que: “Deus fez tudo perfeito a seu tempo e pôs a eternidade no coração do homem, sem que este possa descobrir as obras de Deus do início ao fim” (Ec 3.11). Afinal de contas, o que é essa tal de “eternidade no coração do homem”? A palavra literal no original pode ser traduzida como “duração” (Ver: TEB, p. 1113), que não é o tempo linear, mas a soma de tudo: do sentido da história, do mundo e da eternidade, do que está escondido. Ou seja, o ser humano tem, por obra e graça de Deus, alguma participação na visão divina do sentido da história; mas o que Deus fez e fará, do princípio ao fim, está oculto e não pode ser descoberto. Quer dizer, Deus nos deu um senso do infinito e do eterno, sendo nós finitos, sabendo apenas parcialmente e vendo as coisas apenas de relance. A realidade, a essência de tudo (se elas existem), porém, estão distantes e inacessíveis a nós.

Em segundo lugar, examinamos a vida porque, como outra vez diz Kushner (1999, p. 81), “experimentar o significado da vida em poucas e pequenas coisas, faz mais por nossas almas que uma só experiência religiosa avassaladora”. E o exame cuidadoso nos põe diante do problema da consciência. E a consciência, baseando-me aqui na

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reflexão de Eclesiastes, é sempre um fato doloroso. Com isso quero dizer que quando alguém se dedica, como o sábio de Eclesiastes, a explorar todas as coisas que são feitas debaixo do sol (Ec 1.12) - ou pelo menos todas as coisas mais ou menos acessíveis a esta pessoa - precisa estar preparado/a para o que pode vir pela frente. Os resultados ou conclusões nem sempre são os/as mais agradáveis. Por essa razão é que O Pregador conclui (1.17) que esforçar-se para “obter conhecimento e sabedoria produz um vazio”, é correr atrás do vento e nadar contra a maré. E ainda acrescenta que “quanto mais se sabe, maior é a responsabilidade; quanto mais se aprende, maior é o sofrimento” (1.18).

É esse paradoxo que Miguel de Unamuno chama de “sentimento trágico da vida”, como se pode ver na passagem abaixo:

Esse sentimento, mais do que surgir de ideias, as determina, ainda que depois essas ideias reajam sobre ele, corroborando-o. Algumas vezes pode provir de uma doença adventícia, de uma dispepsia, por exemplo, mas outras vezes é constitucional. E não adianta falar, como veremos, de homens sadios e doentes. Além de não haver uma noção normativa de saúde, ninguém provou que o homem tenha que ser naturalmente alegre. Mais ainda: o homem, pelo fato de ser homem, por ter consciência, já é, em relação ao burro ou a um caranguejo, um animal doente. A consciência é uma doença (UNAMUNO, 2013, p. 32, grifo meu).

“Mas, espera aí: a consciência não é uma benção?”, poderia bem indagar alguém. Depende do ponto de vista que encaramos. Quando afirmo “a consciência é uma doença”, meu lado contestador logo me diz que isso não faz sentido, e que a consciência é, na verdade, uma benção. Quando, no entanto, sou tomado pela dor proveniente de meus lampejos de consciência - afinal, como o autor de Eclesiastes atesta, pensar dói - vejo que isso também não faz sentido e, por um momento de honestidade, tomo a frase de Unamuno quase como que uma oração. A benção da consciência é poder saber mais ou menos em que solo está pisando; a maldição é a incapacidade de mudar de solo apenas pelo “poder de saber”. Eis o paradoxo da sabedoria: o saber é superior à ignorância; mas quem sabe, além de sofrer mais, ainda é nivelado por baixo, pelas contingências da vida, com quem não está nem aí para o

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saber e prefere abraçar o adágio: “A ignorância é uma benção”.Entrementes, é a presença da consciência que nos permite não apenas

que estejamos cientes de nós, mas cientes do mundo-em-nós e de nós-no-mundo. A consciência não está apenas para nós, ela também está para o outro e para o universo exterior a nós. O ser humano só se torna uma “pessoa” quando se reconhece no mundo, na natureza, nos acontecimentos do cotidiano e, assim, também se reconhece em outros seres humanos, como um ser-em-relação.

A pergunta que fica diante deste tópico é: o que fazer diante do desespero, do desalento, do sentimento de vazio e do sentimento trágico da vida? Uma possível “saída”, como vimos no primeiro tópico, está na aceitação jubilosa de si mesmo e da condição inelutável da realidade que nos envolve. No entanto, aceitar não significa resignar-se, desistir da luta. Pelo contrário, permanecemos lutando, mas não necessariamente como quem dá socos no ar, tentando atingir um inimigo que tampouco conseguimos reconhecer. Eclesiastes não nos permite apresentar saídas artificiais, nem soluções instantâneas. Ele nos instiga a tentar a enxergar a vida de outro modo e, consequentemente, a viver melhor, a fazer melhores escolhas.

Se não há jeito, o jeito é aproveitar a vida!Portanto, vá, coma com prazer a sua comida, e beba o seu vinho de coração alegre, pois Deus já se agradou do que você faz. Esteja sempre vestido com roupas de festa, e unja sempre a sua cabeça com óleo. Desfrute a vida com a mulher a quem você ama, todos os dias desta vida sem sentido que Deus dá a você debaixo do sol; todos os seus dias sem sentido! Pois essa é a sua recompensa na vida pelo seu árduo trabalho debaixo do sol. O que as suas mãos tiverem que fazer, que o façam com toda a sua força, pois na sepultura, para onde você vai, não há atividade nem planejamento, não há conhecimento nem sabedoria (Ec 9.7-10).

Uma das respostas ao desespero e ao sentimento de vazio, em Eclesiastes, está na máxima implícita no texto acima exposto: aproveite a vida! Diante da análise de que “tudo é vaidade”, isto é, de que é passageiro ou efêmero, de que nada faz sentido, o Pregador chega então ao seguinte pensamento: que mais nos resta, assim, senão aproveitar a

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vida, gratos por aquilo que de bom ela nos oferece, ao mesmo tempo em que cientes de suas limitações? Que mais nos resta com todo o trabalho no qual nos empenhamos senão gozar, e gozar bem, de seus frutos? Se aquilo que construímos não passa de um “castelo de areia”, que vai se desintegrar no próximo momento, que ficará de “herança” para pessoas que não necessariamente trabalharam para conquistar ou merecer, o que nos resta senão o uso consciente disso tudo em prol da vida? Por isso, ele diz: vá e viva, viva o máximo que puder, com intensidade, aproveite cada chance que você tem de fazer o que tem que fazer, deixando o mínimo possível para o dia de amanhã, que é sempre incerto.

Ainda precisamos desenvolver mais uma práxis da fé que afirme a vida, celebre o prazer e as dádivas que Deus nos deu, e nos inspire a ser gente. Temos dificuldade com essa ideia porque facilmente nos vemos abusando das dádivas que Deus nos deu. Tomamos o prazer pelo prazer, como um fim em si mesmo, apenas para atenuar o desejo. Mas Eclesiastes vem mostrar no texto acima que aproveitar a vida não é o mesmo que abusar dela, e que mesmo em prazeres fugazes podemos nos realizar, principalmente quando reconhecemos que são fugazes. Como elucida Ed René Kivitz (2009, p. 156), “não confunda o efêmero com o nada; a sabedoria está não em desprezar o efêmero, mas em não absolutizar o que não dura para sempre”.

Isto é o que poderíamos chamar de viver o presente como “um presente”, isto é, uma dádiva ou dom divino. Muitas vezes, preocupados demais com o futuro ou ressentidos do passado, perdemos a noção do que é viver o presente. Um dos contos da sabedoria budista diz que, certa vez, perguntaram ao Buda o que mais lhe surpreendia na humanidade, e ele respondeu “os próprios homens”. A razão foi a seguinte:

Os homens perdem a saúde para juntar dinheiro, depois perdem dinheiro para recuperar a saúde. E por pensarem ansiosamente no futuro, esquecem-se do presente de tal forma que acabam por não viver nem o presente e nem o futuro. E vivem como se nunca fossem morrer... E morrem como se nunca tivessem vivido (BUDDHA CHANNEL, 2014).

Essa era, na interpretação de Kushner anteriormente aludida, a fonte do desespero e preocupação do autor de Eclesiastes: o sentimento

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de que estava morrendo sem nunca ter realmente vivido. Dessa forma, o paradoxo do prazer, em Eclesiastes pode ser assim resumido: ao experimentar o prazer da vida, descobri que é vaidade; porém, ao provar os dissabores do viver, fruto do trabalho sem recompensa e dos esforços sem sentido, entendi que nada melhor ao ser humano do que aproveitar a vida ao lado da mulher/homem que Deus lhe deu. Isso implica em extrair o que há de melhor de cada dia, de cada oportunidade, de cada pequeno gesto que direcionamos uns aos outros. E assim vamos aprendendo a viver e, como observa Kushner (1999, p. 86), “quando aprendemos a viver, a própria vida é recompensa”.

A vida humana assim existe não como uma antessala de outra vida, mas para ser vivida e aproveitada aqui e com a intensidade que cada momento permite. William McNamara, em seu livro A experiência humana: uma loucura divina, disse o seguinte:

A vida humana realmente vivida é sempre uma aventura e uma descoberta. Se nós não estamos rompendo barreiras, atingindo níveis mais profundos de ser, tornando-nos mais e mais humanos, isto é, irradiando Deus primorosamente, então nós estagnamos. Perdemos nossa glória original (MCNAMARA, 2010, p. xiii, tradução minha).

Uma fé encarnada celebra a transitoriedade da vida sem medo ou resignação quanto ao que virá ou o que será (após a morte), sem tratá-la nem com o desprezo dos ascéticos, nem com o excessivo apego dos hedonistas, por uma única razão: a vida é uma dádiva divina e não uma posse humana.

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Conclusão

Ao final de Eclesiastes, o contraponto do Pregador à máxima que perpassa o livro todo - de que “tudo é vaidade” ou de que “nada faz sentido” - resume-se em poucas palavras: “Teme a Deus e faça tudo o que Ele mandar” (Ec 12.13).

Aqui talvez seja importante que diferenciemos duas palavras que tecnicamente são sinônimos: “temor” e “temer”. Quando falamos em “temer”, normalmente seguimos o sentido correto da palavra, que se refere ao sentimento de medo ou receio em relação a alguma coisa. Já “temor” não tem a ver com “medo” - embora no dicionário (Michaelis) a palavra também apareça associada a um medo acompanhado de respeito. Eclesiastes, contudo, não está dizendo: “tenha medo de Deus e, por isso, faça tudo o que Ele mandar”. Até porque, na linguagem bíblica da Primeira Carta de João, se “Deus é amor” (4.8), logo, “no amor não existe medo; antes, o perfeito amor lança fora o medo. Ora o medo produz tormento; logo, aquele que teme não é aperfeiçoado no amor” (4.18).

O temor, por sua vez, é fruto do amor e da graça e não do medo; consequentemente, temor não é medo, é uma livre reverência e admiração em relação a Deus. Podemos reiterar, então, conforme o olhar de Eclesiastes, que obedecemos a Deus não por medo, mas por temor e amor; não por um receio de ser punidos, mas pela convicção (mesmo incerta, como vimos no primeiro tópico) de que é a melhor coisa a se fazer diante de tantas opções e caminhos que temos hoje a nosso dispor, mas cujo fim não necessariamente é vida. E, seja esta boa ou má notícia, nunca deixaremos de nos perguntar sobre o significado da vida.

O autor de Eclesiastes é bem parceiro neste aspecto, pois nos insta a que sejamos amigos dos paradoxos e a desistir desse empreendimento de buscar ou oferecer respostas prontas e saídas artificiais para as aporias existenciais que vez por outra nos assaltam. E, como lembra Kivitz (2009, p. 220, 224), “quem quer resposta pronta não encontra no cristianismo o seu melhor caminho. (...) Resposta pronta é exigência de quem ainda tem medo de viver por fé”. Kushner também é bastante assertivo quando afirma que:

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Se pudéssemos fazer hoje algo que resolvesse de maneira definitiva e permanente o problema da vida, não precisaríamos de um amanhã. Por que iria Deus criar o amanhã? A vida não é um problema a resolver de uma vez; é um desafio constante, a ser vivido dia após dia. Nossa busca não deve ser pela Resposta, mas pela maneira de fazer de cada dia uma experiência humana (KUSHNER, 1999, p. 81).

Acrescento à perspectiva de Kushner que a vida não é feita de encaixes permanentes. Ninguém é feliz para sempre, sofrerá para sempre, será sempre famoso, estará sempre em alta ou com bom astral o tempo todo; ninguém perderá nem ganhará de modo perene, todo mundo perde e ganha um pouco na vida; nem tudo do que hoje parece definir quem sou, permanecerá intacto quando e se eu chegar aos 40, 50 ou 60 anos; não há algo como pura bondade ou pura maldade; ninguém é tão feio que não possa ser o bonito de alguém, nem tão lindo que não possua feiura alguma. Viver é simples, e viver é complexo; a vida é difícil, mas nós também dificultamos bastante a vida. Por isso, minha melhor metáfora para a vida neste momento é a de que ela é um tremendo labirinto, com muitos caminhos traçados, outros a ser inventados, mas as saídas não são muito abundantes. É preciso muita atenção e calma para não perder o essencial de vista, para não se perder nesse labirinto e jamais se encontrar. Bem-aventurado não é quem supostamente encontra “a saída” ou “a resposta” rapidamente, mas quem aprende a criar caminhos quando já não mais parecem existir.

Viver não é para os afortunados; é para os corajosos!

Referências bibliográficas

KIVITZ, Ed René. O livro mais mal-humorado da Bíblia. A acidez da vida e a sabedoria do Eclesiastes. São Paulo: Mundo Cristão, 2009.KUSHNER, Harold. Quando tudo não é o bastante. São Paulo: Nobel, 1999._________. Quando coisas ruins acontecem a pessoas boas. São Paulo: Nobel, 2008.

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LEWIS, C. S. Surpreendido pela alegria. São Paulo: Mundo Cristão, 1999. MCNAMARA, William. The human experience: a divine madness. Silver Spring, MD: Beckham Publications Group, 2010.MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna. Formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012. NOUWEN, Henri. Life of the beloved: spiritual living in a secular world. New York, NY: Crossroad, 1992. PORTAL Buddha Channel. Contos e Koans - Palavras sábias. Disponível em: <www.buddhachannel.tv>. Acesso em: 04 de Nov. 2014. SCHAEFFER, Francis. True spirituality. 30th anniversary edition. Carol Stream, IL, USA: Tyndale House Publishers, 2001. STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. 2ª ed. São Paulo: ABU Editora, 1998. TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA (TEB). São Paulo: Edições Loyola, 1994.UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Estampa Livros, 2013.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 8

Trágico

Introdução

Preciso reconhecer e adiantar que a proposta dessa unidade é quase uma contradição em termos, uma espécie de “patinho feio” para o campo da fé e da experiência religiosas. Isto, pois estar na fé pressupõe certa briga, certo litígio com algumas formas ou condições de existência, e se vale da crença de que é possível transfigurá-las, ultrapassá-las. Por sua vez, o trágico brota da afirmação da vida e de toda inelutabilidade que a atravessa. A fé (cristã, sobretudo) pressupõe o “lutável”; o trágico, o “inelutável” - ou o fato de que nem tudo pode ser transformado dentro de um estado humano de coisas. O que irei propor, porém, nasce tanto da recusa de associar a fé a um otimismo cego - ou quem sabe a qualquer espécie de otimismo1 - defendendo a aceitação jubilosa da “irresolução” de certas coisas, quanto da resistência à postura de resignação que indevidamente utiliza o trágico como muleta para o pessimismo ou o fatalismo. Aqui, portanto, tento descobrir o ponto em que o lutável e o inelutável se encontram.

Essa reflexão é resultante de uma relutância em aceitar que não há nenhuma conciliação ou releitura possível do trágico com ou sob a cosmovisão cristã - ainda que não muito ortodoxa. A insistência neste diálogo, porém, se deve a dois fatores: primeiro, entendo que nem toda culpabilidade que autores como Nietzsche impõem ao cristianismo (como veremos na unidade 11) é justa para com a cosmovisão judaico-cristã como um todo; segundo, por essa razão,

1 Isso não faz de alguém um pessimista, apenas um não-otimista convicto. Não amadurece quem quer ver e viver apenas “o lado bom da vida”, mas quem deseja ver e viver a vida como ela é (ou como a nós se apresenta), assumindo corajosamente o ônus e o bônus de ser-no-mundo, por melhor ou pior que ele seja.

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o trágico não precisa necessariamente ser um elemento estranho à fé cristã; muito pelo contrário, pode-se defender que, para ser cristã, ela precisa, também ou até certo ponto, abraçar o trágico como parte da condição humana e como atitude diante da existência.

Para tanto, explorarei sentidos possíveis para o trágico, num diálogo aberto com a filosofia nietzschiana, para, por fim, pensar um pouco mais em sua relação com a fé e a experiência religiosas.

Objetivos

1. Definir o trágico;2. Reconhecer o trágico no pensamento e vida de

Nietzsche;3. Refletir sobre a relação entre o trágico e a fé e

experiência religiosas.

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Nietzsche e o trágicoNa antiguidade os gregos foram os responsáveis por introduzir

uma forma de representação dramática que colocava em questão a relação do homem com o sofrimento, chamada tragédia. Concebe a existência humana como um drama e a dramatiza através da arte, da música, do teatro. A partir da tragédia desenvolve-se uma concepção trágica de mundo ou o que outros, como Unamuno (2013), preferem chamar de “sentimento trágico da vida”. Esta concepção trágica origina-se em parte na consciência do homem em relação à sua mortalidade, que o diferencia dos deuses. O sentimento trágico nascia ali a partir de uma briga deste homem com o seu destino último, a morte, e a dificuldade de aceitar seus limites e sua fragilidade. Como bem disse Michel Quost (1978, p. 90), “a tragédia do homem é que ele é limitado em seus meios e infinito em seus desejos”. Portanto, sua angústia e desespero procedem da vontade de ser-mais e de ser-além daquilo que sua finitude permite.

Por isso, os gregos criaram a tragédia como um meio educativo e uma forma de “mostrar ao homem que ele é sempre frágil, mortal, passível de sofrimento”, ao mesmo de conscientizá-lo sobre a força própria que possui para existir e se impor ao mundo, e de que, porém, “não pode acreditar ser superior à vida nem querer negá-la”. A função da tragédia é confrontar o homem, por meio da ficção, “para que possa viver e se fortalecer com a dor inevitável, própria de tudo o que vive” (MOSÉ, 2012, p. 69). Logo, na concepção trágica, o homem não passa por sofrimentos nesta vida a fim de elevar-se rumo à outra vida, uma vez que para o trágico não há outra existência a ser afirmada a não ser esta. Esta é a existência principal e não uma antessala. De tal modo que “a tragicidade da existência não é nada que possa ser resolvido ou superado; é, ao contrário, o caráter próprio da existência humana: um ser mortal que sabe que é mortal, que tem consciência da finitude e do limite”. Como contraponto à angústia proveniente dessa consciência sobre sua finitude, o homem possui o sentido estético, a arte, capaz de transformar seu pranto em dança, sua tristeza em alegria e vontade de viver (Ibid., p. 70).

É aqui que Nietzsche aparece como um dos principais pensadores

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trágicos, que atribui a si mesmo a descoberta do conceito do trágico (NIETZSCHE, 2009, p. 85), como filosofia e atitude para com a vida. Esta concepção nasce nas obras da juventude deste autor, como O nascimento da tragédia, de 1872 – em que ele bebe exatamente da filosofia e mitologia grega, mais particularmente no exemplo do deus Apolo (da beleza e perfeição) em contraste com o deus Dioniso (do prazer e do vinho) -, e esta acaba se tornando uma noção central em toda a sua obra. Como definir “o trágico” a partir do pensamento de Nietzsche? Ao contrário da compreensão aristotélica, que concebe o trágico como “o exercício de paixões deprimentes e de sentimentos reativos”, em Nietzsche o trágico tem contornos de paixão, não a que resulta em ressentimentos e no niilismo, que ele combatia ferozmente, mas uma paixão pela vida, que tem como corolário a afirmação “múltipla ou pluralista” da vida em sua inteireza (DELEUZE, 2001, p. 28-29). A isso ele chamava de “dionisíaco” ou simplesmente “o trágico”, como se pode notar pela seguinte passagem de seu Crepúsculo dos ídolos:

O dizer sim à própria vida, mesmo nos seus mais estranhos e mais duros problemas; a vontade de viver, que se alegra com o sacrifício dos seus tipos mais elevados à própria inesgotabilidade - eis o que chamo de dionisíaco, eis o que adivinhei como a ponte para a psicologia do poeta trágico. Não para se livrar do terror e da compaixão, não para se purificar de uma emoção perigosa mediante a sua descarga veemente (assim entendera Aristóteles), mas para, além do terror e da compaixão, ser ele mesmo o eterno prazer do devir - prazer que encerra em si também a alegria do aniquilamento... (NIETZSCHE, 2002, p. 119, grifos no original).

Repitamos Nietzsche: Sim à vida, mesmo em seus mais estranhos e duros problemas. É relativamente fácil afirmar o que costumamos chamar de “lado bom da vida”, somente o que melhor nos agrada, que nos dá um pouco do ébrio e ilusório sabor da felicidade; o desafio, porém, é afirmar a vida inteira com tudo o que nela se tem de direito e de torto também, suas alegrias e tristezas, o grito de dor ao lado da expressão de contentamento, o lamento e a gratidão, a luz e as sombras.

Nietzsche vê na figura de Dioniso, o deus grego dos excessos,

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um protótipo e realização de uma alegria própria de viver a vida como ela é em toda a sua multiplicidade de cores e sabores, desenvolvendo o que, como vimos, ele denomina “vontade de viver”. Como observa Paul Tillich (1972), a vida tem aspectos vários e ela é ambígua. Desejar a vida passa pela afirmação dela mesma tanto quanto da morte, que a pertence. Afirmar a morte não é o mesmo que desejá-la, mas sim reconhecer que vida e morte são companheiras de jornada. A vontade de viver deve ser escoltada por uma necessária coragem de viver. Tillich (1972, p. 21), lendo Nietzsche, defende que “coragem é a potência da vida em se afirmar a despeito desta ambiguidade, enquanto que a negação da vida, devido sua negatividade, é uma expressão de covardia”. Sendo confrontado pelas intempéries da vida, o ser corajoso ou trágico, não a nega ou desiste dela facilmente, mas desenvolve uma “vontade de potência”, ou seja, de mais vida.

Amor fati: o sim à vidaNietzsche resumiu essa coragem para a vida numa expressão

bastante singular: amor fati, ou amor ao destino. É a fórmula do amante e afirmador não apenas da vida, mas de sua própria sina, por mais terrível que ela seja. Quando pensamos em destino normalmente temos em mente o futuro, como na canção de João Sérgio, “O amanhã”, em que ele questiona exatamente o que será e o que irá lhe acontecer, respondendo por fim que “seu destino será como Deus quiser”. Veja que o apelo à vontade de Deus não é algo exclusivo de uma religião, como o islamismo ou o cristianismo, por exemplo, tão permeados por esse discurso. Percebo que a música representa um sentimento muito humano: como não tenho a menor ideia do que será o meu destino, então entrego a Deus esperando que seja o melhor possível - por que mais entregaria, não é mesmo?

Sim, em Nietzsche há um elemento de fatalidade e incerteza, de um destino implacável e inapelável, mas nem por isso ele o entrega a Deus. Pelo contrário, o amor fati indica tanto um abraçar do destino incerto, quanto o fazer de seu próprio destino que, embora incerto, não é necessariamente pré-determinado por Deus. Alguns ateístas, como Robert Solomon (2003) e André Comte-Spoville (2007),

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admitem que existe uma força que nos precede e é maior que nós, uma força poderosa que rege a vida, mas não reconhecem que ela seja sobrenatural, pelo contrário, ela é natural2.

Entretanto, a capacidade do homem de se ultrapassar, de enfrentar a sendas do destino é ainda predominante no amor fati, que não pressupõe outro desejo senão o de concentrar-se nesta vida, em imprimir nela potência e positividade (não confunda isso com positivismo nem com otimismo). Na Gaia ciência (ou a ciência alegre, afirmadora), Nietzsche estabelece seus propósitos a este respeito:

Quero aprender cada vez mais a considerar como belo o que há de necessário nas coisas: - assim serei daqueles que tornam belas as coisas. Amor fati: que esse seja doravante meu amor. Não quero mover guerra à feiura. Não quero acusar, não quero acusar nem mesmo os acusadores. Desviar meu olhar, que seja essa minha única negação! E, numa palavra, para ver grande: só quero ser um dia afirmador! (NIETZSCHE, 2008, p. 192, grifos no original).

Por que a necessidade de afirmar? O próprio desejo de viver já não seria a afirmação? Deveria ser, se parte do viver não fosse negada. Negada por quem? Pelo cristianismo. Nietzsche deseja esposar a inelutabilidade contra a vida, contra o que há de mais feio nela, não quer fazer guerra a nada na vida, mas, para tanto, precisa fazer guerra a quem faz guerra contra ela, precisa fazer guerra ao cristianismo. E fez, em todos os livros que escreveu, direta ou indiretamente, acusando os acusadores. Fez especialmente a moral cristã ascética (“metafísica do verdugo”, como ele chamou), vetor da negação e maldição a esta existência que tantos impõem a si mesmo e aos outros, oferecendo como remédio a eternidade, superior, supra e contranatural. Como corolário, para esta religião, segundo o martelo de Nietzsche, a vida é a própria negação do viver: da dor, da beleza, da arte, do corpo, do sexo - principalmente deste último. Ele rejeitava com veemência, por exemplo, a pregação da castidade como um verdadeiro atentado contra a santidade da vida, como “incitamento público ao antinatural”. Que ironia, não? A pregação da santificação do corpo, a fim de conservar a 2 Mais sobre esta naturalização da espiritualidade tratarei na unidade 15 deste curso, quando discutirei a minha versão do chamado “novo ateísmo”.

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alma, vista como profanação e atentado. Ele conclui, então, que “toda expressão de desprezo à vida sexual, toda contaminação da mesma pelo conceito “impura” é um crime contra a vida em si - é o pecado intrínseco contra o espírito santo da vida” (NIETZSCHE, 2009, p. 80).

Desse modo, como esclarece Oswaldo Giacoia (2014, grifo meu):Trágico é um pensamento capaz de acolher e bendizer tanto a criação como a destruição, a vida como a morte, a alternância eterna das oposições, no máximo tensionamento. Uma filosofia trágica prescinde de uma visão jurídica e culpabilizadora da existência,  acredita na inocência do vir-a-ser, não nega nem condena, mas aceita a vida sem subtração e nem acréscimo. Uma existência trágica é aquela que, sem depender de uma crença na ordenação e significação moral do mundo, não considera o mal e o sofrimento como uma objeção contra a vida.

Além disso, a fórmula do amor fati também serviu a Nietzsche como meio de afirmação de quem somos: mais que conhecer-se a si mesmo, o homem precisa tornar-se quem ele realmente é. Sua autobiografia, Ecce homo (Eis o homem), um dos últimos livros por ele escritos antes de entrar no estado de demência em que padeceu ao longo de 11 anos até sua morte, em 1900, tem como mote exatamente a questão de “como a gente se torna o que a gente é”. Ali ele polemiza com o “conhece-te a ti mesmo” de Sócrates, afirmando, em contrapartida, que o tornar-se quem se é “pressupõe que a gente não saiba, nem de longe, o que a gente é” (NIETZSCHE, 2009, p. 63). O exame perene da vida, conforme explorei na unidade anterior, não implica em que venhamos saber quem de fato somos, a não ser por aproximação. Somos, assim, seres tanto capazes de conhecer, como do desconhecimento, graças a Deus!

Da filosofia para a vida: a experiência de Nietzsche

O sentimento trágico da vida em Nietzsche, mais que a dor provocada pelo reconhecimento na pele de que “a vida é tragédia e a tragédia é uma perpétua luta, sem vitória nem esperança dela”, como declarou Unamuno (2013, p. 29), reside em não apenas suportar a

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dor de viver, mas amá-la, pois a grandeza do homem, para Nietzsche (2009, p. 67-68), está em não querer ser diferente do que é, nem para frente nem para trás, abraçando tanto a feiura como a beleza. Experimentar a alegria (trágica) de viver a vida como “força maior”, isto é, “independente de qualquer circunstância própria a provocá-la” ou mesmo a contrariá-la, como defende o filósofo trágico Clemént Rosset (2000, p. 12), é mesmo um enorme desafio e, ouso dizer, uma experiência para poucos. Nem Nietzsche, o mais fervoroso crente na faculdade deste “homem superior” afirmador da vida, conseguiu levá-la a cabo sem grandes percalços. Sua vida ultrapassou os limites de seus conceitos; paralelamente a sua celebração do dionisíaco, e a sua defesa da atitude trágica (alegre), ele foi a própria expressão da tragédia3. Ao longo sua curta vida passou por muitos problemas de saúde, desde que adoeceu seriamente enquanto servia o exército; experimentou várias vezes a solidão, desilusões (amorosas inclusive) e amargura, assim como alternâncias entre euforia e depressão. Um romance baseado em sua vida, Quando Nietzsche chorou (2009), de Irvin D. Yalom, constrói um enredo dramático sobre esse lado sombrio da vida do filósofo. E como se relata no texto biográfico de abertura de suas Obras incompletas (1999, p. 8-9): “Depois de 1888, Nietzsche passou a escrever cartas estranhas. Um ano mais tarde, em Turim, enfrentou o auge da crise; escrevia cartas ora assinando “Dioniso”, ora “o Crucificado” e acabou sendo internado em Basiléia, onde foi diagnosticada uma “paralisia progressiva”. Provavelmente de origem sifilítica, a moléstia progrediu lentamente até a apatia e a agonia. Nietzsche faleceu em Weimar, a 25 de agosto de 1900”.

Todos, negadores e afirmadores, amantes ou indiferentes, estão sujeitos aos mesmos tipos de intempéries; uma coisa é afirmar a totalidade da vida enquanto se tem vigor, e outra é prosseguir afirmando enquanto se é golpeado por ela4. Não negar o sofrimento 3 É sintomático que em seu Crepúsculo dos ídolos, Nietzsche tenha defendido que “os homens de mais espírito, suponho que são os mais ousados, experimentam também, de longe, as mais dolorosas tragédias; precisamente por isso honram a vida, porque esta lhes contrapõe o seu máximo antagonismo” (NIETZSCHE, 2002, p. 80). 4 Isso me faz recordar no exemplo de C. S. Lewis. Bastante conhecido por seu brilhantismo, sua visão analítica quase cirúrgica, o autor de O problema do sofrimento, também passou por uma grande perda e dor em sua vida, com a morte de sua esposa Joy anos depois. Então, da visão analítica e de fora expressa brilhantemente naquele primeiro livro, ele saltou para a visão trágica e visceral da dor em seu Anatomia de uma dor, em que ele procura desmantelar todas as formas de consolo possíveis e questiona até mesmo a Deus. Como declarou seu enteado, Douglas Gresham, na introdução ao

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não é o mesmo que se comprazer nele. Não há dúvidas também de que o ressentimento, tão combatido por Nietzsche, é o oposto da aceitação, é a luta infértil, negadora e massacrante da própria pessoa ressentida. No entanto, por mais que a postura afirmadora me encante, eu seria um cínico se negasse as eventuais dificuldades que alguém possa ter na luta constante consigo mesmo, com seu ego muitas vezes convulsivo em meio aos infortúnios óbvios que todos passamos - e eu acrescentaria: temos de passar. O ser humano está para a dor tanto quanto está para a cura, e não experimentará a alegria de viver como “força maior” enquanto não aprender, mesmo a duras penas, a admitir que uma necessita da outra. Enquanto isso, muitos tropeços ocorrerão como parte deste aprendizado e ninguém pode garantir a ninguém um futuro, muito menos um final feliz.

Conclusão

Em resumo, a atitude trágica para com a vida demanda gratidão. Ser grato por tudo. Essa foi uma atitude que o apóstolo Paulo, por exemplo, tentou incutir nas comunidades por onde passou: gratidão por tudo e gratidão em tudo. Tudo mesmo, inclusive aquelas coisas que desprezamos (em nós, nos outros, no mundo), pelas situações boas ou más. Em Romanos 8.28 está a conhecida máxima paulina de que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. E me ponho a pensar: quem, de fato, ama a Deus? Ama a Deus aquele religioso que fervorosamente se dedica a fazer tudo “em nome de Deus”, mas tem ojeriza do samaritano enquanto se orgulha de seus feitos espirituais? Pode amar ao Deus da vida aquele que, de um jeito ou de outro, abomina esta vida? Pode amar a Deus e à vida quem não é grato, inclusive pelos espinhos na carne que tem de carregar? O fato de que a vida nos escapa, de que não está sob nosso controle, não nos dá garantias de que seremos felizes, bem-sucedidos e com saúde, deveria ser um motivo para valorizá-la ainda mais.livro: “Este diário é um homem que se desnuda emocionalmente em seu próprio Getsêmani. Trata da agonia e do vazio de uma dor, tal como poucos de nós têm de suportar, já que, quanto maior o amor, maior o luto e, quanto mais profunda a fé, mais ferozmente Satanás toma de assalto sua fortaleza” (Ver: LEWIS, 2006, p. 22).

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Nas palavras de André Comte-Sponville (2007, p. 57):Que haja algo de desesperador na condição humana, quem pode negar? Mas não é motivo para deixar de amar a vida, muito pelo contrário! O fato de que uma viagem tem de ter fim é motivo para não realizá-la ou não aproveitá-la? O fato de que temos uma só vida é motivo para desperdiçá-la? O fato de que não há, para a paz e a justiça, nenhum triunfo garantido, nem mesmo nenhum progresso irreversível, é motivo para deixar de lutar por elas? Claro que não! São, ao contrário, motivos bastante fortes para dar à vida, à paz e à justiça - e a nossos filhos - toda a nossa atenção. A vida é tanto mais preciosa quanto é mais rara e mais frágil. A justiça e a paz, tanto mais necessárias, tanto mais urgentes, quanto que nada garante a sua vitória. A humanidade, tanto mais surpreendente quanto mais só, mais corajosa, mais amante.

Portanto, não importa o que se diga, faça ou a maneira como se dá significado à própria vida, é inescapável: everybody is broken! Traduzindo: todo mundo é, pelo menos um pouco, quebrado, ferrado, ferido. O modo como enfrentamos isso faz toda a diferença sobre o tipo de pessoa que a gente se torna, sobre a vida que leva, em suma: sobre nossa fé. Uma sina muito infeliz poderia se resumir em: passar pela existência sem nunca ter se encontrado ou conhecido. Ele ou ela realizou tantas coisas, foi aplaudido/a, reconhecido/a, acumulou aduladores (o que no Facebook e outras redes sociais, alguns chamariam amigos), títulos, honrarias, coisas e mais coisas. E, no entanto, nunca se tornou quem realmente era. Nunca teve a coragem de assumir seu verdadeiro ser. A existência autêntica pode ter seu preço (e geralmente tem). Mas, para pagá-lo, certamente não teremos de vender nossa integridade. O problema de se tentar negociar aqui e ali, e agradar a gregos e troianos, a corintianos e palmeirenses, a liberais e a conservadores, é que a pessoa começa falando como se fosse de Deus, mas termina vendendo a alma ao Diabo. Ganha o mundo todo, mas perde sua alma.  O mundo inteiro não vale uma só alma.

Por isso, a pessoa de fé pode não rechaçar, mas adotar a atitude trágica, afirmando a vida com tudo o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos, a fim de tornar-se nada mais que humana, e tornar-se (e gostar de) quem é, não acima ou abaixo, diferente ou palatável: apenas ela mesma - cheio de gratidão a Deus e à vida por isso.

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Referências bibliográficas

COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2007. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Porto, Portugal: RES Editora, 2001. GIACOIA, Oswaldo. Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da totalidade da existência. In: IHU On-Line. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/>. Acesso em 21 de janeiro 2015. MOSÉ, Viviane. O homem que sabe. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. NIETZSCHE, Friedrich. Ecce homo. De como a gente se torna o que a gente é. Porto Alegre, RS: L&PM, 2009. _______. A gaia ciência. 2ª ed. São Paulo: Editora Escala, 2008._______. Crepúsculo dos ídolos: ou como se filosofa com o martelo. Lisboa, Portugal: Edições 70, 2002. _______. Obras incompletas. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.QUOST, Michel. Construir o homem e o mundo. São Paulo: Duas Cidades, 1978.ROSSET, Clemént. Alegria. A força maior. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. YALOM, Irvin D. Quando Nietzsche chorou. 35ª ed. Rio de Janeiro: Agir, 2009. SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para céticos. Paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. UNAMUNO, Miguel de. Do sentimento trágico da vida. São Paulo: Estampa Livros, 2013.

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Anotações__________________________________________

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 9Modernos

Introdução

Nesta unidade quero explorar, em termos gerais, a questão sobre o que ou em que criam/creem os modernos. Para tanto, certamente terei de responder algumas perguntas, tais como: quem foram/são os modernos? O que é a modernidade? Quais são suas bases e o que vem estabelecer? E, mais particularmente, qual é a sua relação com a crença, com o tema ou a ideia de Deus e com a religião? Isto para começo de conversa, e suponho que o máximo que poderemos alcançar aqui é “um começo”, já que se trata de um tema tão vasto e que pode ser explorado sob diferentes perspectivas.

Isto já é indicativo de que aqui adoto uma perspectiva ou ponto de vista e, dessa forma, deixo tantos outros de lado. Meu interesse ou ponto de chegada nesta reflexão reside no universo da crença e da religião. E daqui me vejo inclinado a dizer que é um equívoco pensar que os modernos ou a modernidade representa um período em que não se cria em mais nada, ou ainda, que não se cria mais em Deus. Digo isso por duas razões: primeiro, porque, como veremos, ainda que na modernidade a crença num Deus criador e provedor do universo e da vida tenha sido posta em cheque, isto não implicou no fim da religião cristã e de sua influência. Em muitos aspectos, ela cresceu ainda mais nesse período que, digamos, compreende o século XVIII, sobretudo.

Segundo, porque o descarte de Deus protagonizado por pensadores modernos não implica em dizer que eles

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saíram do universo da credulidade para o da incredulidade. Apenas que, ao invés de erigir seus altares para Deus, eles passaram a erigir altares para outros deuses que a própria modernidade criou para si sob o pretexto da não crença, da não religião e da racionalidade pura - que veremos mais ao final de nossa reflexão. Minha intenção aqui é expor e analisar pontos de vista sobre o que aqui chamo de “crença dos modernos”, e pensar de que maneira até hoje ainda somos ou não afetados por isto. A discussão pode render, e diante da enormidade dessa tarefa e o pouco espaço que temos, serei mais pontual na narrativa que segue.

Objetivos

1. Conhecer alguns dos paradigmas da era que antecede aos modernos;

2. Analisar a sustentação das bases ou “crenças” modernas;

3. Verificar o caráter “religioso” do adeus à religião pelos modernos.

1. O universo da crença entre os pré-modernosAntes de falar dos modernos, precisamos ter ou relembrar uma

noção básica sobre o que existia antes deles ou do universo que tentaram sobrepor. Não farei um salto muito grande ao passado, não é necessário. Concentrar-me-ei em apenas delinear, a partir da Idade Média, qual era o centro e sentido de existência das pessoas, e qual era o papel específico da religião nisto tudo. Pense nisso como uma introdução bastante limitada, porém necessária para o que vem adiante.

A Idade Média foi um período da história de consolidação da crença em Deus e do cristianismo como instituição no ocidente europeu. Digo “crença”, tendo em mente aqui a distinção feita (e já mencionada na unidade 4) por Harvey Cox entre o que ele chamou de “era da fé”

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e “era da crença”. A “era da fé” começou com Jesus e os discípulos, e cresceu com os seguidores para os quais a fé era a vida vivida no Espírito do Cristo, com esperança e segurança no estabelecimento do reino de Deus, “uma nova era de liberdade, cura e compaixão que Jesus tinha demonstrado”. Já a “era da crença”, vem depois, marcadamente no II século de existência da igreja, quando seus líderes começaram a formular programas de orientação aos novos recrutas de Jesus, que não o conheceram pessoalmente, nem aos seus discípulos. Segundo Cox, “a ênfase na crença começou a crescer quando essas instruções primitivas foram transformadas em catecismos, substituindo a fé em Jesus por declarações a seu respeito” (COX, 2009, p. 5).

Isto foi criando uma classe especializada de teólogos que passaram a ser os intérpretes oficiais da fé cristã, e a formular seu credo próprio em concílios como o de Niceia (325 d.C.) e o de Calcedônia (451 d.C.). O primeiro foi convocado pelo imperador Constantino, que investiu esforços para a institucionalização do cristianismo - o que veio a se oficializar somente em 380 d.C., com Teodósio I, que a tornou religião oficial do império - e naquele concílio foi instituído o credo apostólico. O segundo decidiu temas importantes, como a dupla natureza de Cristo (humana e divina), segunda pessoa da Trindade. Segundo Cox (2009, p. 7), a era da crença resistiu duramente a cerca de 1500 anos, ou seja, a Idade Média toda e encontrando seu discutível eclipse com a Revolução Francesa e o Iluminismo, ambos ambientados na Europa do século XVIII. Antes, porém, alguns atribuem à Reforma Protestante e ao Renascimento o papel de crítica e transição em relação a este antigo modelo, para o novo paradigma que viria surgir com o Iluminismo.

A visão de mundo pré-iluminista ou pré-moderna foi marcadamente influenciada e orientada pela religião cristã e sua visão sobre Deus, o mundo e o ser humano. Segundo Stanley Grenz (2008, p. 93), de Agostinho até a Reforma, o campo intelectual e dominante da sociedade foi regido por teólogos que, mesmo discordando em vários pontos, coincidiram em sustentar a crença de que a realidade era um todo ordenado, tendo Deus como seu Criador, redentor e único regente. Este Deus governa em seu alto e sublime trono, nas alturas e acima da terra, mas penetrou nos negócios humanos para promover a nossa salvação, e depois revestiu alguns homens com uma autoridade

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especial para que tudo fizessem em nome dele aqui na terra. Aqui entra, por exemplo, o papel da ordem e da hierarquia que

dominam a igreja institucionalizada até os dias de hoje. A igreja passou a ser o reino, e fora dela não se pode obter salvação, parafraseando o famoso dito de Orígenes. Todo o universo e seus mistérios, a vida e a morte, o espaço e o tempo, eram explicados a partir de Deus, que “continuava a operar na vida dos seres humanos, dirigindo o fluxo da história e, de modo mais significativo ainda, agindo na igreja, por intermédio da graça que era comunicada por meio de atividades eclesiásticas” (GRENZ, 2008, p. 94).

2. Ruptura moderna: a religião dentro dos limites da razão

Era da razão: é como costuma ser chamado o período que sucede ao do Renascimento europeu e marca uma ruptura, ainda que não completa, mas certamente radical, com os valores e crenças estabelecidos e consolidados por mais de mil anos da história do Ocidente cristão. A Renascença, que literalmente significa “renascimento” ou “reavivamento”, havia sido um período em que se viu um reavivar do espírito clássico ou da herança cultural da antiguidade, mais particularmente das civilizações grega e romana, que para os renascentistas eram notáveis inspirações para uma evolução nas artes, na filosofia e nas ciências. O humanismo foi um de seus principais ideais e ressaltava a beleza, grandeza moral, e a inteligência do ser humano (o “homem natural”), em franca oposição com a visão medieval, em que o homem era diminuído em relação à criação, imbuído de um sentimento de culpa por causa de seu pecado e de eterna dívida para com Deus. Exaltou a busca do conhecimento conforme a visão científica e questionou veementemente a autoridade da igreja (GRENZ, 2008, p. 92).

Entender esta transição é de suma importância para a compreensão dos rumos da religião na modernidade. Paul Tournier, em seu livro Mitos e neuroses (2002), apresenta uma analogia interessante e didática sobre isso. Primeiro, ele compara a Antiguidade à infância da humanidade, em que o infante descobre sem muito esforço e espontaneamente a

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beleza da arte, da poesia, das questões filosóficas, e do lúdico - aliás, quase tudo para ele é lúdico. Depois a humanidade passou pela Idade Média, que ele compara com a idade escolar, entre os 8 e 15 anos, tempo em que a criança aceita sem questionamentos a autoridade dos pais e dos professores, pois de tudo sabem e em tudo são perfeitos. É a idade da religião aprendida, seguida e não questionada. Depois vem o período do Renascimento, representado pela adolescência, em que aquele infante cresce, começa a amadurecer em algumas áreas e a se embriagar com experiências e saberes novos. Esta nova experimentação do corpo e do mundo, o faz questionar e levantar-se contra as autoridades que antes respeitava candidamente, reclamando o direito de pensar por si e de conduzir-se a si próprio, rejeitando qualquer forma de subordinação (TOURNIER, 2002, p. 14-15).

A analogia de Tournier para por aí. Mas eu prossigo pensando a partir dela, porque agora preciso falar do Iluminismo ou da Idade da Razão, cuja chegada representou um distanciamento ainda maior do ideário e cosmovisão medievais, e uma consolidação da desconstrução promovida pelos renascentistas, estabelecendo um novo pensamento não somente na filosofia, mas também na ciência. Segundo Grenz, foi de fundamental importância para esta virada, ainda no período do Renascimento, a afirmação de Nicolau Copérnico (1473-1543) de que a terra não era o centro do universo, colocando o sol como centro do sistema solar. Posteriormente, Galileu Galilei (1564-1642), famoso cientista italiano, levaria adiante o heliocentrismo copernicano, teoria que seria condenada como herética pela Inquisição, que também condenou Galileu. Esta e outras descobertas “solaparam paulatinamente o modelo medieval do cosmo como estrutura de três andares em que o céu localizava-se espacialmente acima da terra e o inferno na parte inferior dela” (GRENZ, 2008, p. 100). E, diga-se de passagem, é impressionante como esta remota e improvável visão medieval ainda tem um forte apelo simbólico sobre a visão do “mundo espiritual” de muitos crentes - o céu (e Deus) está “lá em cima”, e o inferno (e o Diabo) “lá em baixo”, e todas as imagens dantescas decorrentes disso, que pintam a Deus como um ser irado e punitivo, definitivamente distante da humanidade.

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O período iluminista (século XVIII), seguindo a trilha de Tournier, pode ser comparado à fase adulta da humanidade, de emancipação ou independência em relação a seus referenciais anteriores; Deus e a religião não estão mais no comando e oferecem todas as respostas; o ser humano independente, guiado pela razão e instrumentalizado pela ciência, ocupa agora o proscênio da história, que passa a ser reinterpretada à luz dessa virada, que muitos chamaram de “virada antropocêntrica”, em que Deus desocupa o centro das explicações da realidade e o ser humano o assume. Entra-se numa nova era em que a religião de nossos pais cada vez mais deixa de ser a nossa religião; como contrapartida, fundamos uma nova religião (para nós mesmos, oculta talvez), que não é a religião de Deus ou da igreja, e pode ser chamada de religião da humanidade, onde os mitos, as crenças místicas e supertições improváveis do passado dão lugar à razão e ao saber científico, que se fundam nos princípios científicos e de objetividade, ou seja: acredita-se apenas naquilo que a razão pode, em tese, dar conta, e no que pode ser comprovado por métodos de verificação e verossimilhança.

Não me deterei em analisar e detalhar as correntes de pensamento e pensadores iluministas, pois esse não é o foco aqui. Quero, porém, concentrar-me no conteúdo e na visão iluminista de modo geral, mencionando um exemplo ou outro apenas. Stanley Grenz aponta algumas características ou marcas fundantes do pensamento iluminista, sobre as quais passo a discorrer a seguir:

1. Razão. Já disse anteriormente que o iluminismo também é visto como “era da razão”. Não a razão como as capacidades mentais do ser humano apenas - ainda que a exaltação destas capacidades esteja implícita –, mas a razão como estrutura da mente humana que permite com que esta possa discernir a estrutura do mundo externo. Aqui temos uma influência forte de Immanuel Kant (1724-1804), que, diferentemente de John Locke (1632-1704), entendia que não era a experiência da realidade que determinava a estrutura racional, mas a estrutura racional é o que nos permite ter alguma experiência da realidade. Nas palavras de Grenz (2008, p. 103):

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O princípio iluminista da razão, portanto, supunha a existência de uma habilidade humana capaz de conhecer a ordem fundamental de todo o universo. Foi sua crença na racionalidade objetiva do universo que deu aos intelectuais da Idade da Razão a confiança de que as leis da natureza são inteligíveis e de que o mundo pode ser transformado e submetido à atividade humana. Foi também sua devoção à harmonia do mundo racional e às obras da mente humana que tornaram o exercício da razão crítica tão importante para os pensadores do Iluminismo.

2. Natureza. Os intelectuais iluministas enfatizavam que toda forma de conhecimento precisava estar alicerçada e resultasse da própria natureza das coisas, e que o universo é regido pelas leis da natureza. Ainda que acreditassem na natureza como “obra de Deus”, a descoberta de seu funcionamento e suas leis não é produto da fé em Deus, mas da razão capaz de ler cientificamente “o livro da natureza”.

3. Autonomia. A elevação destes dois princípios anteriores, que promoveram a “virada antropocêntrica”, acabou provocando um terceiro: o da autonomia desse ser humano racional, que assume e reivindica sua identidade antropocêntrica e individualista. Não mais se apelaria para as autoridades externas do passado (a Bíblia ou o magistério da igreja), mas a uma autoridade interna ao homem, proveniente do uso da razão. O iluminismo, nesse sentido, é a libertação desse ser humano das tutelas que antes o cercavam, utilizando a definição de Kant. Em suma, representa sua saída da condição de menoridade (dependência) para a de maioridade (independência). Leiamos Kant:

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“O iluminismo é a saída do homem de sua menoridade autoimposta. Menoridade é a inabilidade de usar o próprio entendimento sem a ajuda de outro. Esta menoridade é autoimposta quando sua causa reside não na ausência de entendimento, mas na ausência de coragem e determinação para utilizá-lo sem a guia de outro. Sapere aude! [Ouse saber!]. ‘Tenha a coragem de utilizar seu próprio entendimento’ – este é o lema do iluminismo”.

In: KANT, Immanuel. An answer to the question: what is Enlightenment? In: _______. Perpetual peace and other essays. Indianapolis, IN: Hacket P. C., 1983, p. 41 (tradução minha).

4. Progresso. O forte otimismo em relação ao futuro, como resultado desta visão, bem como dos avanços científicos e tecnológicos atingidos na Europa ocidental graças às revoluções (científica e industrial), promoveram a crença de que o mundo caminhava para se tornar o melhor dos mundos, e de que a marcha da humanidade era uma marcha inevitável para o progresso. Isso distingue, por exemplo, a virada do século XIX para o XX, da do século XX para o XXI; enquanto a primeira é marcada pelo otimismo e uma forte confiança no futuro promissor, a segunda, diante das catástrofes vivenciadas no século XX, é permeada por uma desconfiança e pessimismo em relação ao futuro. Os iluministas, “apesar dos altos e baixos da história, estavam convictos de que, de modo geral, o processo histórico do mundo estava direcionado para o alto e para frente” (GRENZ, 2008, p. 107).

Estes quatro pilares, junto com outros também marcantes, como a própria confiança na ciência, na harmonia do universo e nas utopias sociológicas (como o marxismo), foram constituindo aquilo que chamamos de cosmovisão moderna ou modernidade, marcada pelo desejo por controle, autonomia e poder, e pela construção de uma identidade antropocêntrica, cujos atrativos são, para nós, hoje, absolutamente óbvios, como coloca Charles Taylor (2010, p. 358): “Uma sensação de poder, de capacidade, no fato de conseguir ordenar nosso mundo e a nós mesmos e, na medida em que esse poder estava relacionado com a razão e ciência, uma sensação de ter produzido grandes ganhos em conhecimento e compreensão”. Tudo isso fez elevar

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uma crença fundamental dos modernos e que resume tudo: “de que o conhecimento, inevitavelmente, leva ao progresso e que a ciência, associada à educação, libertará a humanidade de nossa vulnerabilidade à natureza e a todas as formas de escravidão social” (GRENZ, 2008, p. 120).

Conclusão

Finalmente, se a crença moderna pode ser resumida nessa confiança quase inabalável na razão e conhecimento humanos e sua capacidade de desvendar os mistérios do universo, onde fica o papel da religião? A religião permanece tendo, dentro da visão moderna (iluminista), um papel, mas este é quase que inteiramente secundário, subordinado aos pilares anteriormente elencados. Se para Kant, “nenhuma realidade que transcenda o espaço e o tempo pode ser conhecida pela empresa científica” (GRENZ, 2008, p. 115), que se fundamenta na experiência sensível, então a religião deve assumir um papel naquilo que ele chamou de “razão prática”, associada com o campo moral da vida humana. Isto, apenas na medida em que ela não ultrapassa os limites da razão, e desta se faz serva - o saber não pode ser suprimido para dar lugar à fé, porque a fé só tem lugar onde a razão é suprimida. A noção de “pecado original”, por exemplo, não tem lugar aqui. O ser humano não é impulsionado por uma pecaminosidade que lhe é inerente, nem deve ser guiado “pela mão divina” a fim de superá-la. Pelo contrário, o homem, guiado pela razão, deve estabelecer para si uma conduta moral que se torne uma experiência universal, isto é, válida para todos, não porque alguém “disse que é (ou tem que ser) assim”, mas porque sua própria consciência o diz em função de seu “dever”.

Daqui, Kant traz à luz o que ele chamou de “imperativo categórico”, ou um princípio formal do dever, que assim ele resume:

“Assim age de modo que a máxima de tua ação possa tornar-se uma lei universal”.

In: KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010, p. 159.

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Como se pode perceber, o imperativo categórico de Kant pode ser interpretado como uma releitura iluminista de uma das regras de ouro de Jesus Cristo no sermão do monte: “Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles lhes façam; pois esta é a Lei e os Profetas” (Mt 7.12). E isto prova que os princípios religião cristã ainda faziam parte da mentalidade iluminista, só que reinterpretados de acordo com seus propósitos e pressupostos humanistas e racionalistas: uma religião da humanidade, como destaquei anteriormente.

Falando propriamente da crítica cristã à modernidade, lembro aqui a tese defendida por Vinoth Ramachandra em seu livro A falência dos deuses (2000). Citando G. K. Chesterton, o autor diz que “quando um homem volta as costas para Deus, não é que ele apenas não crê em nada, mas é que ele crê em tudo” (RAMACHANDRA, 2000, p. 31). Esta frase é indicativa de como as coisas funcionam no mundo moderno: no abandono de Deus, os modernos prosseguiram criando e estando permeados por uma avalanche de outros deuses ou ídolos. Como ele defende, “a adoração de qualquer ídolo provoca o surgimento de seu contra-idolo com o passar do tempo” (Ibid., p. 245). Parte da abordagem de Ramachandra se concentra no que ele chama de “idolatria” no livro, tendo como alvo precisamente os credos modernos. A tese por ele declarada revela o tom combativo e crítico à modernidade, pois parte da “convicção de que o descarte do Deus da revelação bíblica, (...) tem aberto o caminho para o surgimento de novos deuses que, tal como seus antigos equivalentes, acabam por destruir seus devotos” (Ibid., p. 31).

Esta análise de Ramachandra se assemelha a de Roger Bastide, na medida em que o último defende a ideia de que não é possível que o homem viva sem criar mitologias, pois isso é uma necessidade ontológica (i.e., de seu próprio ser). Ele continua: “Ao homem, que já não pode apoiar-se em mais nada, pois nada mais tem sentido, só resta apoiar-se em si mesmo e fazer jorrar de sua revolta novas flores míticas” (BASTIDE, 2006, p. 103). O mito do progresso, sem dúvida, é um dos motores que movem o homem moderno. Ele cria a ilusão de que humanidade progride não mais guiada pela providência divina, mas por seu próprio esforço e inteligência. Arranca os homens de seu desespero, gerando sentido ao presente ao futuro. Ele não é mais

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“ordenado” no universo, mas agora “ordena”. Descobre-se, portanto, nos termos de Bastide, uma nova arquitetura mítica.

Entretanto, alguns resultados dessa mitificação da razão e da técnica, dessa criação de novos símbolos, da substituição ou aniquilação do arcaico – como vimos na unidade 4 desse curso –, foram (e ainda são) catastróficos: o século XX representa o cemitério das mitologias e das utopias modernas. O preço da exploração e tecnologização da vida tem sido o colapso geral do ambiente e da natureza. O ídolo da ciência (o progresso) gerou seu próprio contraídolo: a falta de sentido. Os mitos da técnica não conseguiram, assim, exorcizar por completo o pavor do ser humano moderno, nem tampouco conferir as “respostas” que se buscava. A constatação desse sociólogo é a de que os significados míticos não foram instintos da história, mesmo numa existência cada vez mais dessacralizada. Num mundo cada vez mais fragmentado, restam, de acordo com Bastide, as “mitologias pessoais”, pelas quais os mitos permanecem vivos.

Referências bibliográficas

BASTIDE, Roger. O sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Cia das Letras, 2006.COX, Harvey. The future of faith. New York, NY: HarperOne, 2009. GRENZ, Stanley J. Pós-modernismo: um guia para entender a filosofia do nosso tempo. São Paulo: Vida Nova, 2008.KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2010._______. Perpetual peace and other essays. Indianapolis, IN: Hacket P. C., 1983.RAMACHANDRA, Vinoth. A falência dos deuses. São Paulo: ABU Editora, 2000.TAYLOR, Charles. A era secular. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2010.TOURNIER, Paul. Mitos e neuroses: a desarmonia da vida moderna. Viçosa, MG: Ultimato, 2002.

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Anotações__________________________________________

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 10

Crítica Moderna

Introdução

Quero iniciar esta unidade com uma recapitulação do que estudamos na anterior. Nosso estudo sobre em que creem os modernos começou postulando que é um equívoco pensar que no princípio da modernidade filosófica, com o Iluminismo, estava a descrença como mola mestra. É claro que Deus como fundamento passa a ser uma ideia questionada, questionamento que se consolida com o que chamamos de “virada antropocêntrica”: Deus deixa o centro para que a razão (ou o homem racional) o ocupe. Entretanto, mesmo questionada, a religião continuou desempenhando certo papel no período iluminista, como vimos no exemplo de Kant e seu imperativo moral - um papel secundário, é verdade, mas o objetivo dos iluministas em geral não era o de aniquilar com a religião. A maioria daqueles filósofos possuía uma origem religiosa, cristã, sobretudo; a diferença é que a religião passa a ser interpretada não mais sob uma base metafísica, mas racional e moral. Mais que isso: mesmo com o lento processo de secularização (queda da influência da religião na sociedade), constatou-se que, muitas vezes, houve uma troca de deuses ou de profissão de fé: sai a fé em Deus e nas doutrinas religiosas, entra a fé nas leis da natureza, na ciência, na razão e no progresso; em suma: fé na humanidade, uma religião da humanidade.

Nesta unidade, quero propor um exame dos avanços dessa perspectiva iluminista em pensadores que se encontram na transição do século XIX para o século XX; ainda podem ser considerados modernos porque são frutos de culturas e civilizações europeias ocidentais modernas, mas em certos

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aspectos foram críticos da modernidade e dos filósofos do Iluminismo, sobretudo em sua postura com relação ao conhecimento e em relação à religião. Eles representam não só o avanço da desconfiança em relação aos valores tidos como “absolutos”, mas a emergência do ateísmo “como negação de Deus e afirmação da essência do homem” (ZILLES, 1991, p. 129). Ora abraçam a razão e a ciência, ora se colocam na contramão destas, propondo um novo tipo de racionalidade, cada um a partir de sua própria base. Não veremos todos os pensadores que se interpuseram nesta corrente; quero nessa unidade trazer à discussão apenas três: Feuerbach, Marx e Freud. Nietzsche, em minha interpretação, é um ponto fora da curva, portanto, ficará para a próxima unidade.

A ideia é que examinemos brevemente a crítica que cada um fez à religião, tentando observar pontos de encontro e desencontro entre o que cada um diz, e finalmente chegar a uma base relativamente comum sobre o que aqui chamo de crítica moderna à religião. O convite é que façamos isso, em primeiro lugar, de maneira aberta, tentando compreender as críticas em si e se apropriar delas de modo crítico-construtivo. Do ponto de vista da fé, tendemos a ser defensivos em relação às críticas ateístas, e a reproduzir visões de consenso (normalmente superficiais) sobre elas, ou mesmo a construir apologéticas. Entretanto, como diz Alessandro Rocha (2010, p. 128), para se elaborar uma filosofia da religião é preciso atentar para os possíveis significados da crítica e propor um diálogo; mais que isso, “é preciso traduzir criticamente suas ideias para o presente, desmascarar ídolos construídos pela própria fantasia humana e desfazer a ignorância não esclarecida no campo religioso” (Ibid., p. 130). Em suma, é preciso fazer um duplo movimento crítico, ou seja: em primeiro lugar, de reconhecimento das dimensões em que essas críticas à religião são, de fato, plausíveis tanto quanto, em segundo lugar, estabelecer uma crítica sobre a crítica da religião. Tomemos esta unidade como um primeiro exercício.

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Objetivos

1. Elaborar uma filosofia da religião em diálogo com a crítica moderna;

2. Conhecer, de modo introdutório, em que consistiu essa crítica;

3. Refletir sobre como ela reverbera ainda hoje e fazer uma crítica da crítica.

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1. Feuerbach: a religião é espelho do homemFeuerbach é um dos precursores de uma geração pós-iluminista

em que a religião (cristã) já não serve mais aos propósitos da razão ou a propósito algum: trata-se de um elemento derivado do próprio ser humano e que precisa ser extirpado caso esse queira de fato experimentar a emancipação preconizada pelos iluministas. Pois, de acordo com Urbano Zilles (1991, p. 99), “para algumas ideologias modernas não há libertação do homem sem negação de Deus. Postulam total autonomia econômica e política do homem, sem nenhuma referência a valores religiosos ou metafísicos. Todas ideologias partem do pressuposto de que a religião é expressão e causa da alienação humana. Nesta linha situa-se o ateísmo de Feuerbach e Marx”. Feuerbach é um dos primeiros filósofos a se declarar ateísta, e sua crítica viria ser expandida pelos chamados “mestres da suspeita”: Marx, Nietzsche e Freud - e, em certa medida, até mesmo repetida, como veremos mais adiante. O que Feuerbach faz basicamente é retirar o absoluto de Deus e da religião e transferi-lo ao próprio homem, por isso proclama uma “nova religião”, ateia por sinal (Ibid., p. 99). Como ele faz isso?

Em primeiro lugar, propagando um materialismo no qual existem apenas o homem e a natureza e nada além disso. Somente o ser é real. Propõe, nesse sentido, uma “antropologia relacional”, na qual a razão tem papel importante - fugindo, é claro, do idealismo de seu mestre, Hegel, postulando que o ser não vem do ideal ou do pensamento, mas, porque há o ser, há também a razão, o pensamento, mas com ela também interagem a afetividade, a sensualidade e a vontade (ESTRADA, 2003, p. 152). Feuerbach propõe, assim, o que na filosofia moderna chamamos de “giro antropocêntrico” (Ibid., p. 152), isto é: a compreensão da vida, da religião e de Deus se dá num movimento ascendente (do homem para Deus) e não descendente (de Deus para o homem). Em outras palavras, a realidade fundamental é a natureza e é, ao mesmo tempo, criada pelo homem, ou melhor, por sua consciência.

Em segundo lugar, e seguindo o ponto anterior, propondo que o segredo da religião é a antropologia. Seu livro, A essência do cristianismo (1841), é considerado um texto fundante da crítica ateísta à religião e um dos textos clássicos da filosofia da religião. Seu foco principal, contudo, é o cristianismo. O método de Feuerbach passa por perguntar

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de onde surge a religião, e uma síntese da resposta que ele deu pode ser: a religião é um produto da essência humana, isto é, de sua consciência; uma revelação de seus anseios e desejos mais íntimos e primitivos. Dessa forma, como dito, ele reduz a teologia à antropologia, equivalendo “essência de Deus” com a humana. Os atributos de Deus se referem sempre ao homem, sua vontade é, na verdade, um reflexo da vontade humana. Assim, “a projetar a si mesmo, o homem aliena-se de si mesmo, gerando a divisão em si mesmo. A alienação religiosa, segundo ele, é tomar como Deus algo que, na verdade, é apenas expressão do próprio homem, ilusão, ídolo” (ZILLES, 1991, p. 103). Abaixo segue um trecho e amostra da crítica de Feuerbach.

“A consciência de Deus é a consciência que o homem tem de si mesmo, o conhecimento de Deus é o conhecimento que o homem tem de si mesmo. Pelo Deus conheces o homem e vice-versa pelo homem conheces o seu Deus; ambos são a mesma coisa. O que é Deus para o homem é o seu espírito, a sua alma e o que é para o homem seu espírito, sua alma, seu coração, isto é também o seu Deus: Deus é a intimidade revelada, o pronunciamento do Eu do homem; a religião é uma revelação solene das preciosidades ocultas do homem, a confissão de seus mais íntimos pensamentos, a manifestação pública de seus segredos de amor. [...] A religião é a essência infantil da humanidade; mas a criança vê a sua essência, o ser humano, fora de si - enquanto criança é o homem um objeto para si como um outro homem. O progresso histórico das religiões é apenas que o que era considerado pelas religiões antigas como algo objetivo, é tido agora como algo subjetivo, i.e., o que foi considerado e adorado como Deus é agora conhecido como algo humano. A religião anterior é para a posterior uma idolatria: o homem adorou a sua própria essência. [...] E a nossa intenção é exatamente provar que a oposição entre o divino e o humano é apenas ilusória, i.e., nada mais é que a oposição entre a essência humana e o indivíduo humano, que consequentemente também o objeto e o conteúdo da religião cristã é inteiramente humano. A religião, pelo menos a cristã, é o relacionamento consigo mesmo, ou mais corretamente: com a sua essência...”.

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Ludwig Feuerbach, A essência do cristianismo, 1842.

2. Marx: a religião é o ópio do povoMarx, por sua vez, parte da crítica de Feuerbach; concorda com

ele que a religião não faz o homem, mas o homem quem faz a religião. Opõe-se, porém a ele, por considerar que suas críticas se assentam mais na esfera abstrata da religião, ao passo que, para Marx, “a origem da religião está nas relações sociais pervertidas que geram a alienação do homem a nível prático em teórico” (ESTRADA, 2003, p. 167). No livro A Ideologia Alemã, escrito em 1845 em parceria com seu amigo Engels, Marx promove sua emancipação das teias do pensamento hegeliano e da filosofia alemã como um todo, assentada na ideologia de Hegel, como é o caso do próprio Ludwig Feuerbach, “objeto” particular das críticas de Marx nessa obra.

Inicialmente, como dito, Marx se vale do vocabulário e da crítica de Feuerbach à teologia e à religião, que, na verdade, consiste numa humanização de todos os atributos supostamente divinos. Deus e a religião não passam de construtos humanos; nascem da consciência e representações humanas, finitas. Vai além, contudo, ao ponderar que “toda crítica filosófica alemã de Strauss a Stirner limita-se à crítica das representações religiosas”, como se toda relação dominante fosse uma relação religiosa, de tal modo que tudo se converteu em culto e o “mundo foi canonizado” (MARX; ENGELS, 1976, p. 24, 25). Ele foi bastante enfático ao chamar essa crença comum no domínio da religião, enquanto princípio “fundamental” de interpretação da realidade, de “fantasias” e “ilusões da consciência”.

A verdadeira revolução do pensamento, na visão de Marx, não pode acontecer senão por uma revolução a partir da práxis, que provém não do embelezamento de pressupostos metafísicos, mas de pressupostos reais, a partir das condições materiais de vida produzidas pela ação de indivíduos reais. Esses pressupostos, segundo Marx, “são, pois, verificáveis por via puramente empírica” (Ibid., p. 27). O primeiro deles é a existência de indivíduos humanos vivos. A história existe porque existem os homens, e ela se modifica ou se desenvolve pela ação

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dos homens, tão logo eles começam a produzir seus meios de vida. Para Marx, os homens não se distinguem dos animais por sua capacidade de pensar ou por sua consciência, como acreditava Feuerbach, mas por sua capacidade de produzir. “O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção”(Ibid., p. 28).

Com isso, sua interpretação da realidade e da história passa a ser sumariamente social e econômica, emancipando-se, desta feita, de uma visão idealista do mundo. A história (o que inclui a religião) passa a ser analisada a partir de um viés social e, mormente, econômico, como ele mesmo defende: “a história da humanidade deve sempre ser estudada e elaborada em conexão com a história da indústria e das trocas” (Ibid., p. 42). A interpretação marxista da realidade social encontra seu fundamento principal na base de produção material e organizacional dos indivíduos em uma determinada sociedade. Assim, ele estabelece uma “ruptura” clara com a base ideológica hegeliana anterior: as ideias e representações existem em função de uma atividade material que as precedem. A ideologia nada mais que é um reflexo dos processos engendrados na materialidade das ações. A superestrutura está para a estrutura, e não o inverso. A consciência é gerada pela, e não geradora da vida material. Logo, “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”(Ibid., p. 37).

A condição de existência dos homens e de sua história, portanto, está intimamente atrelada à materialidade. Por isso, não pode existir um a problematização da consciência (sã, pura, da qual supostamente surge a religião), sem antes haver uma problematização das condições materiais de vida, geradoras da consciência humana. A religião, portanto, não é reflexo da consciência, mas das condições e estruturas materiais e socioeconômicas do capitalismo. A religião aliena o homem de sua condição, desviando a atenção desse mundo e sua transformação para outro mundo, para o além, servindo como uma espécie de calmante, e por isso é o “ópio do povo”. Essa relação deve ser esclarecida a partir da realidade concreta em que o homem subsiste. A religião é expressão da alienação do homem, mas não é a sua origem ou seu fundamento; pelo contrário, é resultante de determinantes históricos, sociais e econômicos. Como explica Urbano Zilles (1991, p. 127, 128), “a essência da alienação do homem encontra-

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se no contexto econômico, no tipo de relações de produção geradas no mundo capitalista. Aí há duas classes sociais: os proprietários dos meios de produção e os não proprietários”, isto é, o proletariado. Marx acreditava (no sentido utópico, e aqui aparece sua filosofia da história), que destruindo essa relação econômica de exploração, destruir-se-ia com ela também a religião. Ou seja, “para eliminar a alienação religiosa é preciso eliminar todas as condições de miséria que a originam” (Ibid., p. 128), o que para ele ocorreria com a crítica das ideologias, especialmente a burguesa, a eliminação de uma sociedade de classes e a definitiva implantação do comunismo. O reino de Deus dá lugar ao reino dos homens.

“A religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião: este é o fundamento da crítica irreligiosa. A religião é a autoconsciência e o autossentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade. Este Estado, esta sociedade, engendram a religião, criam uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, seu compêndio enciclopédico, sua lógica popular, sua dignidade espiritualista, seu entusiasmo, sua sanção moral, seu complemento solene, sua razão geral de consolo e de justificação. É a realização fantástica da essência humana por que a essência humana carece de realidade concreta. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo que tem na religião seu aroma espiritual. A miséria religiosa é, de um lado, a expressão da miséria real e, de outro, o protesto contra ela. A religião é o soluço da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, o espírito de uma situação carente de espírito. É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da critica do vale de lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade”.

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Karl Marx, Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, 1843.

3. Freud: a religião é ilusão infantilFreud, famoso escritor considerado “pai da psicanálise”, também

era ateísta e dirigiu, em algumas de suas obras, algumas críticas à religião - em grande parte uma extensão das críticas feitas anteriormente por Feuerbach, Marx e Nietzsche. Boa parte delas ele as condensa em um ensaio chamado O futuro de uma ilusão (1927) – sobre o qual gostaria de discorrer brevemente aqui.

O olhar de Freud sobre a religião está em íntima conexão com seu conceito de “repressão”. Ele começa o ensaio falando sobre a repressão proveniente da cultura. A cultura humana é vista por Freud como aquela parte da vida humana que se elevou acima da condição dos animais, ou seja, é a força contrária à força da natureza. Para ele, cultura abrange “por um lado, todo o saber e toda a capacidade adquiridos pelo homem com o fim de dominar as forças da natureza e obter seus bens para a satisfação das necessidades humanas e, por outro, todas as instituições necessárias para regular as relações dos homens entre si e, em especial, a divisão dos bens acessíveis” (FREUD, 2014, p. 37, grifo meu). Freud supõe que, graças às imperfeições das formas da cultura, sobretudo pelo uso indevido de seus bens, a cultura pode se transformar em algo “imposto a uma maioria recalcitrante por uma minoria que soube se apropriar dos meios de poder e coerção” (Ibid., p. 39). A cultura exerce o papel de domínio da natureza, segundo Freud, e não diferente a religião. Para ele a religião não passa de uma neurose obsessiva. Como explica Zilles (1991, p. 145), “a neurose é a fuga do adulto ao mundo infantil”. Os conflitos que não foram resolvidos naquela fase, ressurgem dos porões do subconsciente na fase adulta. E a religião seria, para ele, uma forma de regressão da pessoa a seu estado infantil.

Ainda de acordo com Zilles (1991, p. 146), Nessa regressão, o pai exerce papel importante devido ao complexo de Édipo. Representa fase decisiva entre os 4-6 anos de idade. No seu relacionamento carinhoso com a mãe,

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a criança sente o pai como rival. Divide o amor da mãe com o pai que, não raro, transforma-se no desejo de mata-lo. Mas, ao mesmo tempo, a criança sabe que precisa do pai. Com isso constitui-se o conflito entre amor e ódio, afeição e hostilidade, admiração e medo do pai.

O que tem isso a ver com a religião? Qual sua “origem” ou “essência”? São perguntas que Freud se propõe a responder. E sua resposta pode ser sintetizada da seguinte forma: esse ser neurótico não quer encarar o mundo ou a realidade em sua dureza peculiar, suas incertezas e perigos, nem ter de lidar com o fato indelével de sua própria mortalidade. Busca, assim, em seu universo de desejos meios através dos quais possa encontrar consolo e amparo, e ali encontra sua nostalgia de “um pai onipotente que o console e proteja, em sua angústia pela dureza da vida” (Ibid., p. 147). Encontra esse pai em Deus, que vai exigir dele renúncia a seus impulsos interiores em troca de amor e proteção.

A religião, assim, é como uma “ilusão infantil”, que ensina a seus adeptos - e aqui Freud está pensando particularmente no cristianismo - a permanecerem tranquilos, uma vez que “tudo o que acontece neste mundo é a realização dos propósitos de uma inteligência superior que, mesmo por caminhos e descaminhos difíceis de entender, acaba por guiar tudo para o bem, ou seja, para a nossa satisfação” (FREUD, 2014, p. 63). Além disso, a providência divina paira sobre o universo e não somente garante proteção a seus filhos aqui na terra, como lhe dá a certeza de que “todos os pavores, sofrimentos e rigores da vida estão destinados à extinção: a vida após a morte, que continua nossa vida terrena assim como a parte invisível do espectro se une à visível, traz toda a completude de que talvez tenhamos sentido falta aqui” (Ibid., p. 64).

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“Acho que preparamos suficientemente o caminho para uma resposta a ambas as perguntas. Ela será encontrada se voltarmos nossa atenção para a origem psíquica das ideias religiosas. Estas, proclamadas como ensinamentos, não constituem precipitados de experiência ou resultados finais de pensamento: são ilusões, realizações dos mais antigos, fortes e prementes desejos da humanidade. O segredo de sua força reside na força desses desejos. Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo perdura através da vida tornou necessário aferrar-se à existência de um pai, dessa vez, porém, um pai mais poderoso. Assim o governo benevolente de uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida; o estabelecimento de uma ordem moral mundial assegura a realização das exigências de justiça, que com tanta frequência permaneceram irrealizadas na civilização humana; e o prolongamento da existência terrena numa vida futura fornece a estrutura local e temporal em que essas realizações de desejo se efetuarão. As respostas aos enigmas que tentam a curiosidade do homem, tais como a maneira pela qual o universo começou ou a relação entre corpo e mente, são desenvolvidas em conformidade com as suposições subjacentes a esse sistema. Constitui alívio enorme para a psique individual se os conflitos de sua infância, que surgem do complexo paterno - conflitos que nunca superou inteiramente -, são dela retirados e levados a uma solução universalmente aceita”.

Sigmund Freud, O futuro de uma ilusão, 1927.

A teoria de Freud, assim como a de Feuerbach e Marx, teve também um teor de profecia em relação à religião. Enquanto “neurose obsessiva universal da humanidade”, como esse psicanalista a classificou, que teria sua origem no complexo de Édipo e na relação com o pai, a religião haveria de desaparecer tão logo se consumasse o processo de libertação total do ser humano em relação ao complexo de Édipo, o

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que culminaria em um processo de emancipação e crescimento do ser humano e a consequente dispensa em relação aos serviços da religião. Freud mesmo compreendia que, naquela época (final da década de 1920, período pós-Primeira Guerra Mundial), já se podia constatar “o declínio da influência religiosa” (Ibid., p. 121), ou seja, cada vez menos pessoas perseguiam aquela “ilusão”. Quem se encarregaria de sepultar definitivamente a religião? De acordo com ele, em primeiro lugar, seria o encontro do ser humano com a “vida hostil”, e, em segundo lugar, a própria ciência (no caso dele, a Psicanálise) teria o papel de “aumentar nosso poder e permitir que organizemos nossa vida” (Ibid., p. 132). Então ele indaga: seria isso também uma ilusão? Não. Segundo ele, a ciência havia logrado êxitos o bastante para que se comprovasse não ser uma mera ilusão.

Conclusão: para uma crítica da crítica

Chegando ao final dessa unidade - que expressou, ao modo de síntese, algumas das críticas mais conhecidas sobre a religião na modernidade, e que estão na base de seu ateísmo, pode-se claramente perceber que cada uma dessas críticas tem algo de igualmente assertivo e impreciso sobre a religião, especialmente considerando que talvez nunca tenha se falado tanto de religião, em termos cotidianos e de estudos sobre religião, e é claro que é possível observar - fazendo aqui uma síntese das críticas - que ela ainda é recheada de antropomorfismo, alienação e ilusões, tão próprias do ser humano como seu artífice. No entanto, e precisamente pelas razões anteriormente apontadas, por mais sofisticados que fossem esses pensadores em suas áreas, não é muito difícil rebater com segurança muitas de suas críticas - que, aliás, vêm sendo requentadas por alguns ateístas até hoje. Em primeiro lugar, porque, seguindo aqui o raciocínio de Júlio Zabatiero (2010) sobre uma filosofia da religião em “tom pós-metafísico”, tem-se tornado cada vez menos cabível que se fale em uma “essência” ou “origem” da religião, que nos permitiria falar dela em sentido unívoco e universal.

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Em segundo lugar, e como corolário, porque cada vez mais se fala em religião em termos de pluralismo de discursos, de crenças e de práticas, isto é, a partir de leituras particularizadas e estudos de caso particulares - como os realizados por antropólogos, sociólogos e historiadores da religião. Logo, o repertório, vocabulário e as interpretações sobre a religião são cada vez mais polissêmicos, permeados por uma riqueza teórico-metodológica e por uma plurivocidade.

Além disso, gostaria de mencionar a crítica feita, em 1928, por um discípulo de Freud, o também psicanalista e pastor Oskar Pfister, num ensaio intitulado A ilusão de um futuro, em clara referência e resposta ao ensaio de Freud publicado no ano anterior. Pfister procura mostrar, em tom altamente respeitoso e deferente em relação a seu mestre, que existem outras versões da religião (em especial, da cristã) que não combinam com as críticas que ele faz em tom generalizante - o mesmo tom que, de modos diferentes, também se pode notar em Feuerbach e Marx. Ele recusa aceitar a acusação que via em Freud de que aderir a uma religião era como cometer um suicídio intelectual. Pelo contrário, defendia ele que “uma fé fortalecida pela razão é muito mais valiosa que uma fé simplesmente copiada e aprendida” (PFISTER, 2003, p. 36), e que isso podia ser encontrado pelo menos na tradição protestante. Além disso, também não consentia com o julgamento freudiano de que a religião seria uma espécie de fuga da realidade; ainda que ela pudesse ser praticada como “ilusão” aqui e acolá - por uma “grande parcela de cristãos psiconeuróticos”, afinal, dizia ele, “tudo depende da forma como a devoção é construída, o quanto ela atua de maneira repressora” (Ibid., p. 53) -, isto não era inteiramente verdade sobre o cristianismo, no qual ele via um “realismo autêntico” (Ibid., p. 41).

Sua crítica central reside, porém, à crença fiduciária (e quase religiosa) de Freud no poder da ciência que funcionaria, para ele, como um substituto grosseiro para a religião, o que denotava que o brilhante intelecto de Freud se excedia “num intelectualismo, o qual, extasiado pelos seus sucessos, esquece seus limites”. Ou seja, o problema não era a ciência em si, mas a incapacidade de alguns cientistas, como Freud, “de avaliar grandezas estéticas e éticas” e de encontrar, em seu edifício científico, um lugar para os “valores afetivos”, os quais se podia notar

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na própria vida pessoal de Freud com uma “riqueza admirável”, mas que se encontrava ausente de seu conceito de ciência (Ibid., p. 49). Parte da religião (e aqui digo eu, pois Pfister também parece ser um filho da tradição essencialista moderna), em contrapartida, é capaz de acolher com facilidade as dádivas da ciência, acrescentando a ela, contudo, “uma plenitude de outras riquezas, de bens e forças vitais”, não desejando substituí-la em momento algum - isso num plano ideal, levantado por Pfister (Ibid., p. 53).

Esse me parece ter sido um problema comum da modernidade científica: a separação entre a razão e as “paixões” do ser humano, dentro das quais se colocam a fé e a religião. Uma pergunta, no entanto, fica: é possível remover as paixões sem levar consigo o próprio humano, isto é, sem provocar a sua abolição? Isso me faz lembrar a crítica de C. S. Lewis em A abolição do homem. Dizia ele que: “Numa batalha, não são os silogismos que vão manter os relutantes nervos e músculos em seus postos na terceira hora de bombardeio. O mais rude sentimentalismo... em relação a uma bandeira, país ou regimento será bem mais útil” (LEWIS, 2005, p. 22). Enfim, para Lewis, além de “cerebrais” (racionais) e “viscerais” (passionais), precisamos de “homens de peito” (íntegros, magnânimos na atitude, no sentimento), pois “o peito” é o elemento intermediário que transforma o homem em homem, enquanto, “pelo intelecto ele é apenas espírito, e pelo seu apetite ele é apenas animal” (Ibid., p. 23).

Ora, raciocinava-se: as teorias científicas e ideias inteligentes, em si, podem até convencer com clareza suficiente sobre diversos fatos da natureza, mas, como disse Pfister (2003, p. 51), não nos fariam “atingir aquela moralidade que proporciona à vida dignidade e verdadeira saúde interior”. Em outras palavras, não são capazes de, por si mesmas, formar “homens de peito”, na acepção de Lewis, no máximo, homens que, para fins mais “sublimes”, correm o risco de ignorar a parte do meio, pois, como reitera Lewis (ora se referindo a certos racionalistas de sua época), “não é o excesso de pensamento que os caracteriza, mas uma carência de emoções férteis e generosas. Suas cabeças não são maiores que as comuns: é a atrofia do peito logo abaixo que faz com que pareçam assim” (Ibid., p. 23).

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Referências bibliográficas

ESTRADA, Juan A. Deus nas tradições filosóficas, Vol. II: da morte de Deus à crise do sujeito. São Paulo: Paulus, 2003. FEUERBACH, Ludwig. A essência do cristianismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. 2ª ed. Porto Alegre: L&PM, 2014.LEWIS, C. S. A abolição do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005.MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2ª ed. São Paulo: Boitempo, 2010.MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Grijalbo, 1976.PFISTER, Oskar. A ilusão de um futuro. In: WONDRACEK, Karin H. K. (Org.). O futuro e a ilusão. Um embate com Freud sobre psicanálise e religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 2003. ZABATIERO, Júlio P. T. Rumo a uma filosofia da religião em tom pós-metafísico. In: Horizonte, Belo Horizonte, v. 8, n. 16, jan./mar. 2010, pp. 12-32. ZILLES, Urbano. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991.

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Anotações__________________________________________

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 11

Crítica de Nietzsche

Introdução

Friedrich Wilhelm Nietzsche foi um filósofo e filólogo alemão, nascido em 15 de Outubro de 1844 em Röcken, uma localidade próxima de Leipzig. Ele era filho e neto de pastores, portanto, nasceu no seio do protestantismo. Quando criança, seus colegas de escola o chamavam de “pequeno pastor”, devido a esse legado. Na juventude, ele se especializou em grego, alemão, latim, em estudos bíblicos, até que foi se dedicar aos estudos de teologia e filosofia, em Bonn. Porém, influenciado por seu dileto professor Ritschl, foi para Leipzig e resolveu largar essa formação e partir para os estudos em filologia (sua principal formação). Considerava a filologia não apenas como história e estudo das formas literárias, mas como estudo das instituições e das ideias.

O afastamento de seu berço original (o protestantismo) se evidenciou na vida de Nietzsche como “ruptura”, graças à leitura de filósofos como Fichte e Arthur Schopenhauer, e de poetas como Hölderlin e Lord Byron. A partir de então, ele começa a encontrar asilo no niilismo e numa leitura da existência como tragédia – coisa que, como vimos na unidade 8, teve a ver também com sua leitura dos gregos. Ao longo de seus 66 anos de existência, até sua morte em 1900, Nietzsche escreveu muitas obras, poemas e cartas. Dentre as mais conhecidas estão: O nascimento da tragédia (1871), Humano, demasiado humano (1878), A gaia ciência (1881), Assim falou Zaratustra (1883), Além do bem e do mal (1885), Genealogia da moral (1887), Crepúsculo dos ídolos (1888) e O Anticristo (1888).

Embora um dos temas mais conhecidos, em relação à

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crítica desse autor à religião, ser a sua declaração da “morte de Deus”, minha intenção não é a de analisar a morte de Deus nietzschiana nessa unidade – tarefa que deixarei para a unidade 14, que trata especificamente disso a partir do prisma pós-moderno. No presente estudo, as principais perguntas são: que religião Nietzsche rejeita e por quê? Que tipos de representações de Deus lhe foram projetadas pelos cristãos de sua época? Em que medida essas críticas não representam outra forma de excesso e autodestruição? Farei isso a partir de três declarações que podem ser entendidas como leituras da crítica de Nietzsche ao cristianismo em particular.

Objetivos

1. Conhecer alguns dos pontos filosóficos da crítica de Nietzsche à religião;

2. Observar as representações de Deus que ali se fizeram presentes;

3. Identificar o papel que a própria religião teve nisso tudo;

4. Reconhecer caminhos de redescoberta do prazer e da afirmação da vida.

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O cristianismo é a religião do Dogma e o desastre do homem

Esse foi um dos pontos nevrálgicos de distanciamento desse filósofo de sua matriz cristã. Um dos problemas centrais no pensamento de Nietzcshe diz respeito à verdade. O que é a verdade? De onde ela provém? A esse respeito, ele escreveu um ensaio em 1873, que denominou “Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral”. A verdade proclamada ainda em seu tempo era a da metafísica (no campo das ciências naturais e do espírito) e a moral (pelo cristianismo). Se a verdade não está nem na metafísica e nem na moral cristã, onde está ou em quem? Para Nietzsche, a verdade pode ser vista como:

Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismo, enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, aparecem a um povo sólidas, canônicas, obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas (NIETZSCHE, 1999, p. 57).

A verdade da filosofia, ou mesmo a do cristianismo, para ele, jamais poderia ser conhecida como Verdade, porque sempre é fruto de uma compreensão ou olhares parciais, de uma transformação de Deus pelo homem e no homem (antropomorfismo), das palavras pelo homem, sempre imaginando que com essa manipulação possa representar as coisas tais como são. Mas não. O que se produz não passa de metáfora (semelhança ou reflexo da coisa) ou metonímia (outra palavra para a coisa), mas nunca a coisa em si.1

Nietzsche parte da tese de que o conhecimento foi inventado. Isso na primeira frase do referido texto: “Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem-número de sistemas solares, havia uma vez um astro, em que os animas inteligentes inventaram o conhecimento” (NIETZSCHE, 1999, p. 53). Na percepção 1 Esse aspecto da discussão ficará mais claro na terceira parte do curso, quando trataremos da religião a partir de uma perspectiva pós-metafísica - que, aliás, é em grande parte inspirada em Nietzsche.

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de Michel Foucault (2002, p. 14), quando Nietzsche usa a palavra “invenção” tem sempre em mente uma palavra que se opõe a ela – e que, diga-se de passagem, foi por muito tempo cara aos teólogos – que é a palavra “origem”. Quando ele fala que o conhecimento foi inventado, significa, portanto, que o conhecimento não tem uma origem, isto é, não existia antes de ser inventado, não é “dado” pelo universo.

Foucault usa um exemplo da análise desse filósofo, que é o da religião. Nietzsche critica seu mestre, Schopenhauer, que em sua visão cometeu o erro de buscar a “origem” da religião em um sentimento metafísico – como também fizera Friedrich Schleiermacher, para quem “religião é sentimento” – “que estaria presente em todos os homens e conteria, por antecipação, o núcleo de toda religião, seu modelo ao mesmo tempo verdadeiro e essencial”. O protesto desse filósofo, nas palavras de Foucault, é que aquela seria uma análise da história da religião “totalmente falsa, pois admitir que a religião tenha origem em um sentimento metafísico significa, pura e simplesmente, que a religião já estava dada, ao menos em estado implícito, envolta nesse sentimento metafísico” (FOUCAULT, 2002, p. 15). Em outras palavras, as religiões, assim como a cultura e a história, não são dadas, mas são fabricadas pela linguagem.

Com isso, parte-se de dois princípios: 1) somos irremediavelmente ligados à atividade de nomear; 2) “nomear é dar forma ao mundo”, pelo menos à parcela do mundo cabível à nossa compreensão e explicitada pela linguagem. Nomear não é nem representar, nem dar conta do mundo. Nomear é criar. Logo, o conhecimento – não um dado, mas uma produção – é apenas uma visão parcial do objeto conhecido. A linguagem conceitual não é uma tradução, mas uma invenção. Não há afinidade entre o conhecimento e seu objeto. Dizer “isso é fé”, não significa dar conta da coisa em si, a fé. Mas essa é uma condição indissociável do conceito, que segundo Nietzsche nasce por “igualação do não igual”, isto é, por identificação do não idêntico.

Na primeira parte de A gaia ciência Nietzsche faz uma menção mais direta a esse problema da linguagem quando afirma que, para nós, mais importa saber como se chamam as coisas do que o que elas são. Penso que exatamente por não sabermos o que as coisas são, em sua “essência”, é que nos aferramos na atividade de nomear, de dizer

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“isto é assim”, “aquilo é assado”. Mas, pergunto: quem está livre de tal condicionalidade? Com isso, Nietzsche denuncia o abismo existente entre nós e o mundo tido como essencial. Nossa relação com ele não é mediada pela correspondência, e sim pela criação: “Só os criadores podem destruir! Mas não esqueçamos isto: basta criar novos nomes, apreciações, novas verossimilhanças para criar, com o tempo, novas coisas” (NIETZSCHE apud. MOSÉ, 2005, p. 85).

A prática religiosa e teológica, muitas vezes, é pautada pela negação de que somos criadores, pois tal negação nos permitiria sobreviver na ilusão “necessária” de que aquilo que produzimos discursivamente, os significados que damos ao mundo, correspondem à verdade. Essa é, aliás, a ilusão do fundamentalismo, seja ele religioso ou científico. Tal ilusão é seu escudo de proteção contra a conflitividade gerada pela consciência de que não se lança mão de verdades e sim de interpretações, como defendeu nosso autor. É preciso, portanto, manter os signos e os códigos combinados a fim de que continuemos não só protegidos pela “nossa verdade”, mas pela crença coletiva na identidade. E só permanecemos nessa crença, diz Nietzsche, graças à nossa capacidade de esquecer. Como analisa Viviane Mosé (2005, p. 73), “sem esquecer a pluralidade sensível que gerou a palavra, o homem não teria chegado a concluir que a identidade forjada pelas palavras pudesse corresponder efetivamente às coisas”.

Era difícil para quem se auto-intitulava “espírito livre” ser comandado pelas mordaças da verdade dogmática, aceitando passivamente o “julgamento”. Seu livro O Anticristo, poderia ser lido, assim, como o anticristo do cristão. Contra os cristãos, ele afirma: “Ao fazerem Deus julgar, julgam eles próprios; ao glorificarem a Deus, glorificam a si próprios, ao exigirem precisamente as virtudes para as quais são aptos (...) na verdade fazem o que não podem deixar de fazer” (NIETZSCHE, 1999, p. 401), porque isso se constitui como mandamento, dever, ordem, obrigatoriedade.

O grande combate de Nietzsche em outro de seus livros, Humano, Demasiado Humano, não é a religiosidade em si, como categoria inata ao ser humano, mas a religião e seus dogmas que, ao apresentar-se como verdade, aprisionam o ser humano e matam a liberdade de expressar suas emoções ao indizível, em dar vazão às pulsões de incompletude

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que procedem do interior e não se completam com meras ritualidades do exterior. Nas palavras do filósofo, “nisto se percebe que os espíritos livres menos ponderados se chocam apenas com os dogmas, na realidade, e conhecem bem o encanto do sentimento religioso; é doloroso para eles perder este por causa daqueles” (NIETZSCHE, 2005, p. 93).

O cristianismo fala de amor, mas gera a imagem de um Deus algoz e sádico

O remédio do cristianismo para os males da humanidade é apontar a imagem de um Deus que é amor, consolo, abrigo. Mas, ao mesmo tempo, para que a coisa não seja assim tão gratuita, tão fácil, e para que haja a necessidade da religião, do religare, ele precisa nutrir e propagar a existência da doença como mal moral inerente ao homem. Nesse sentido, o homem jamais se livrará do “corpo desta morte” e de suas intermináveis culpas escravizantes a menos que se renda ao remédio curador do cristianismo, expresso nos sacramentos, nos ritos, nas penitências e disciplinas – é claro que Nietzsche desconsidera aqui uma teologia da graça de Deus, até porque dificilmente a tenha encontrado na versão de cristianismo que carrega em mente em sua crítica. Como ele acreditava, “o cristianismo nasceu para aliviar o coração, mas agora deve primeiro oprimi-lo, para mais adiante poder aliviá-lo” (Ibid., p. 90).

Isso me faz lembrar o binômio prêmio-castigo, castigo-prêmio que se via na relação dos senhores de engenho com seus vassalos no período de escravidão negra no Brasil (séc. XVIII). Para não perder seu escravo, o Senhor devia dar alguns mimos e presentes de vez em quando para deixá-lo contente; por outro lado, se abrisse muito a guarda, o escravo poderia afrouxar na obediência; logo, o castigo também se fazia necessário a fim de que o escravo soubesse qual era o seu devido lugar, respeitando a autoridade do senhor. Em algumas práticas religiosas a dinâmica é semelhante, mais do que pensamos. A violência e o abuso são simbólicos, quase imperceptíveis, mas tão danosos quanto os atentados ao físico, porque machucam a alma, o interior, e levam, muitas vezes, a uma viagem sem volta rumo à cela da

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angústia, da depressão, da loucura, ou ainda a uma profunda decepção geradora de rupturas com a igreja e com o Deus que ela diz servir.

A religião que ele rejeita é do Deus da lei, da ira, do castigo, do juízo e da condenação. Do Deus produto das mentes humanas mórbidas e achatadas pela ideia de justiça contra a maldade que lhe é própria e contra tudo o que sua consciência afetada transforma em maldade, até as coisas bonitas, dádivas de Deus, mas que justiça alguma, a não ser a justiça graciosa do Filho, poderia redimir. Não seria melhor que esse “Deus” morresse mesmo? Nietzsche declara sua percepção da seguinte forma:

Deus; é porque olha nesse espelho claro que o seu ser lhe parece tão turvo, tão incomumente deformado. Depois o angustia o pensamento do mesmo ser, na medida em que este paira ante sua imaginação como a justiça punidora: em todas as vivências possíveis, grandes ou pequenas, acredita reconhecer a cólera e as ameaças dele, e mesmo pressentir os golpes de açoite de seu juiz e carrasco. Quem o ajudará nesse perigo, que, em vista de uma duração imensurável da pena, supera em atrocidade todos os outros terrores da imaginação? (Ibid., p. 94, grifos meus).

Logo, se essa ideia de Deus é geradora das mais cruéis e contraditórias mitigações da alma humana, a conclusão mais lógica para Nietzsche foi: “Acabando a idéia de Deus, acaba também o sentimento do ‘pecado’, da violação de preceitos divinos, da mácula numa criatura consagrada a Deus” (Ibid., p. 96). Pense, por um instante, na plausibilidade da crítica. A maneira como concebemos, entendemos e nos relacionamos com Deus; as ideias e imagens que forjamos e apresentamos aos outros acerca Dele, serão determinantes para a maneira como eles/as o receberão, seja com gratidão e alegria, com tristeza, medo e decepção, ou com adagas a fim de apunhalar e “matar” Deus, extirpando-o de vez de suas vidas. Podemos condenar ou ignorar tal atitude toda vez que ela acontece? O que ou quem garante que as representações de Deus que a religião emite, ainda hoje, não são brechas para tal atitude crítica ou de rejeição? Sendo assim, quem, de fato, estaria sendo rejeitado: Deus ou a ideia?

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O cristianismo é inimigo do corpo, do humano e da vida

Um dos maiores paradoxos envolvendo “o Deus cristão” reside, portanto, no fato de neste se encontrar, ao mesmo tempo, a origem da vida e do prazer e, no discurso dogmático de muitos cristãos, o meio mais eficaz de sua depreciação. Religião e prazer, nesse sentido, seriam antônimos, nunca se cruzam tampouco se fundem. No cristianismo, o corpo foi relegado a ser apenas um instrumento imperfeito através do qual Deus quer que nossas almas elevadas sejam por meio do ascetismo, isto é, da negação desta vida, deste corpo e deste mundo, sendo assim conduzidas à perfeição e galardão que encontraremos noutro plano, noutra vida, no mundo suprassensível também conhecido como “céu”; em contrapartida, o destino daqueles que se entregaram às paixões deste plano, da carne, do vinho, da alegria e do prazer, é perecer no fogo eterno, também conhecido como “inferno”. Desse modo, quase sempre no Ocidente cristão, ou especialmente desde Agostinho, a moral religiosa se desenvolveu como uma espécie de flagelo do prazer, incitando-nos a ver as coisas naturais como profanas e rechaçáveis, dando valor apenas às sobrenaturais, ou àquilo que se enquadra dentro de tal ou qual padrão moralmente aceito.

Essa foi uma questão crucial para a ruptura de Nietzsche com o cristianismo, ao qual ele chamou de platonismo para o povo. Para ele, a religião da clemência, piedade, castigo, penitência, redenção, remissão de pecados, juízo final, etc., seria como um mundo de ficções. Em suas palavras: “Depois que o conceito ‘natureza’ foi inventado como contraconceito para ‘Deus’, ‘natural’ tinha de ser a palavra para ‘reprovável’ – aquele inteiro mundo de ficções tem sua raiz no ódio contra o natural” (NIETZSCHE, 1999, p. 355). Em, Além do bem e do mal, pode-se encontrar crítica semelhante quando esse autor diz que os “homens espirituais” da Europa, em nome de Deus e dos princípios cristãos, foram os responsáveis pela deterioração dos valores e da raça europeia, ao desprezarem a natureza e, ao mesmo tempo, oferecer a ela consolos molestos, que rebaixavam os demais a uma condição inferior. E completa:

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Inverter todas as apreciações de valores, era isso que elas deviam fazer! Enfraquecer os fortes, diminuir as grandes esperanças, tornar suspeita a felicidade que reside na beleza, abater tudo o que é soberano, viril, conquistador e dominador, esmagar todos os instintos que são próprios ao tipo de “homem” mais elevado e melhor sucedido, para nisso subsistir a incerteza, a miséria da consciência, a destruição de si, transformar até mesmo todo o amor pelas coisas terrenas e pela dominação na terra em ódio contra o mundo terreno – essa é a tarefa que se impôs a Igreja e que deveria se impor até que enfim, para ela, “renúncia ao mundo”, “renúncia aos sentidos” e “homem superior” se tivessem fundido num só sentimento (NIETZSCHE, 2011, p. 76, grifos no original).

Nietzsche, contudo, foi incapaz de reconhecer que o Deus bíblico pode ser interpretado de outra forma, não como inimigo do natural, mas criador e amante crônico de tudo o que é natural, a começar pelo ser humano. Afinal, Ele criou e com o propósito de amar. Como poderia Deus ser a antítese daquilo que foi formado à sua imagem e semelhança? Talvez o problema de Nietzsche, assim, não seja tanto com (o ser de) Deus, que concedeu muitas coisas boas para que o homem delas gozasse, mas com o próprio homem, ou melhor, com o homines religiosi (Ibid., p. 62), que, por causa do coração humano corrompido que não soube (e ainda não sabe) gozar equilibradamente as dádivas proporcionadas por Deus, não apenas condenou os atos, como também as coisas em si (sexualidade, prazer, humanidade, natureza, etc.), que Deus havia declarado que eram “muito boas” no Princípio.

Com a queda, as coisas que originalmente eram boas foram corrompidas pelo pecado. Não a coisa em si, mas o uso que dela se faz. A lei de Deus veio para coibir o “mau uso” da coisa em si. Mas, o pecado gerou o “mau uso” da lei, que deveria servir à vida, mas acabou militando contra ela. Logo, o que era para coibir o mau uso, acabou coibindo a coisa em si, pelo fato do ser humano não conseguir, por si mesmo, vencer o mau uso (vide Rm 7). O pecado (outro ser que habita nos membros do humano), desse modo, provou-se mais forte que a própria lei. Assim, Deus, através de Jesus Cristo, fez-se lei e propiciação em lugar do ser humano carregando um fardo que era

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seu. Dessa feita, esse mesmo ser humano é chamado a sair do estado da lei (e do pecado) para o estado da graça, que não é nem a negação e nem o fim do pecado, mas a redenção do pecador - “A minha graça te basta!”, foi a resposta de Deus ao pedido de Paulo para que arrancasse dele o espinho na carne. Assim, a graça é essa dádiva de Deus, única capaz de conduzir o homem de novo ao bom uso daquilo que Deus declarou bom.

O contrário dessa visão, para Nietzsche, fez de Deus uma ideia a ser abolida, e do cristão, apenas um judeu de confissão ‘mais livre’ (NIETZSCHE, 1999, p. 363). Ele também critica essa tendência da igreja de seu tempo de açoitar, condenar, difamar e suspeitar de tudo o que fosse Humano, Demasiado Humano:

É fácil ver como os homens se tornam piores por qualificarem de mau o que é inevitavelmente natural e depois o sentirem sempre como tal. É artifício da religião, e dos metafísicos que querem o homem mau e pecador por natureza, suspeitar-lhe a natureza e assim torná-lo ele mesmo ruim: pois assim ele aprende a se perceber como ruim, já que não pode se despir do hábito da natureza (NIETZSCHE, 2005, p. 102).

Conclusão

Como exercício duplamente crítico, tanto de uma parcela do que foi e é a religião, quanto, depois, da crítica de Nietzsche, um bom começo quem sabe pode ser o de reconhecimento. De fato, faz parte da artimanha de alguns religiosos – que perderam, ou sequer (e talvez convenientemente) nunca encontraram o estado da graça, sobre o qual falei há pouco – a de suspeitar da natureza e até mesmo rechaça-la. É claro, além pode dizer que isso é devido à própria crença na doutrina cristã do pecado original, que apregoa a concupiscência inerente à natureza humana, e diante disso nada podemos falar, a menos que, para nós (e aqui falo propriamente a cristãos) ela seja falsa. Não sendo falsa, ela significa alguma coisa na interpretação cristã da humanidade. Ora, mas dizer que o ser humano é pecaminoso

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não significa, necessariamente, jogar fora toda a beleza, o prazer e a alegria de ser gente – como vimos na unidade 7. Então, parece que a crítica de Nietzsche tem alguma razão, mas é imprecisa pelo mesmo motivo pela qual as de Feuerbach, Marx e Freud são: trata-se de um vaticínio generalizante, que diz alguma coisa sobre o cristianismo, mas não diz tudo, e nem poderia – até mesmo considerando que ele fala, especialmente, ao contexto europeu.

Um segundo passo pode ser o de ampliação de nossos horizontes sobre as “relíquias à beira-mar” (YANCEY, 2004) que podem ser encontradas se olharmos com atenção em meio aos restos de um grande naufrágio (CHESTERTON, 2008). Essas relíquias representam precisamente aquilo que muitos ascetas cristãos rejeitaram veementemente como sendo “mau” e “pagão”, e o que Nietzsche e os hedonistas desejaram em excesso: o prazer, a gratidão e a afirmação da vida. Philip Yancey louva a oportunidade de, em momentos sombrios de sua vida religiosa, ter encontrado em pessoas como o jornalista, romancista e apologista cristão G. K. Chesterton (1874-1936), um ponto de equilíbrio e novas razões para crer que todas as coisas provêm de Deus e devem ser recebidas e gozadas como dádivas que Ele doou liberalmente ao mundo (YANCEY, 2004, p. 58).

Chesterton, em seu celebrado livro Ortodoxia, publicado originalmente em 1908, critica a atitude de Nietzsche como o supremo afirmador da vontade, comparando-o a Tolstoi, que ele vê do lado oposto. Chesterton vê na afirmação incondicional da vontade de Nietzsche como um paradoxo, pois, segundo ele, “aquele que não quer rejeitar nada, quer a destruição da vontade; pois a vontade não é apenas a escolha de alguma coisa, mas também a rejeição de quase tudo”. Ou seja, aquele que nunca diz não à sua própria vontade, aniquila essa vontade e rejeita, com isso, tudo o mais. Afirmar tudo pode ser o homônimo oculto de negar tudo. O mesmo se poderia dizer na postura de quem rejeita tudo, pois isso não é propriamente uma escolha; escolhe-se com base em critérios, sendo o mais comum deles o que chamamos de “bom senso”. Negar tudo é o mesmo que escolher nada tanto quanto é o aceitar tudo. E, ao eliminar-se a escolha, elimina-se também a singularidade. Chesterton rejeita as duas posturas como coisas que não levam a lugar

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algum, terminando no vazio. Dizia ele que:A insensata adoração do desregramento e adoração materialista da lei acaba no mesmo vazio. Nietzsche escala montanhas assustadoras, mas no fim acaba chegando ao Tibete. Senta-se ao lado de Tolstoi na terra do nada e do Nirvana. Eles estão desolados – um porque não pode agarrar nada, o outro porque nada pode largar. A vontade tolstoiana é congelada pelo instinto budista de que todas as ações especiais são más. Mas a vontade do seguidor de Nietzsche é igualmente congelada por sua visão de que todas as ações especiais são boas; pois, se todas as ações especiais são boas, nenhuma delas é especial. Ambos se encontram numa encruzilhada: um deles odeia todas as estradas e o outro gosta de todas elas. O resultado é... bem, há coisas que não são difíceis de imaginar. Eles ficam parados na encruzilhada (CHESTERTON, 2008, p. 72).

Chesterton, em contrapartida, tenta enxergar a vida como mais do que um prazer; ela é, para ele, “um excêntrico privilégio” – e foi isso que o reconduziu, outra vez, do ateísmo para a fé. Esse autor (Ibid., p. 107-108) dizia: esse universo e essa vida são realmente “uma joia”, um milagre, algo ímpar e que assim devem ser tratados. E que, apesar dos defeitos óbvios desse mundo, ele tem um propósito; e se tem um propósito e sentido, e eles são belos, deve ter alguém muito gracioso que lhes deu origem. Assim, prossegue ele:

Considerei que a forma apropriada de agradecer a ele é alguma forma de humildade e limitação: deveríamos agradecer a Deus pela cerveja e o vinho francês não os bebendo em excesso. Devíamos também obediência ao que quer que nos tenha criado. E por fim o sentimento mais forte: entrara na minha cabeça uma vaga e vasta impressão de que, de algum modo, todo bem era uma sobra a ser guardada e tida como sagrada proveniente de alguma destruição primordial. O homem salvara seu bem como Crusoé salvara seus bens: ele os salvara de um naufrágio (Ibid., p. 108).

O desafio posto por Chesterton, portanto, pode nos ajudar a pensar melhor sobre a crítica de Nietzsche, bem como sobre nossa relação com a vida: ele não está nem para o prazer desmedido, nem

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pela negação total, mas para o gozo consciente, recheado de gratidão e de zelo, uma vez que as nossas coisas são também as de Deus, e vice-versa. Como seres humanos, cometemos excessos, é claro, e isso não deveria ser encarado de modo tão claudicante, como um absurdo. Mas os excessos e os extremos, no fim das contas, têm-se provado inimigos da vida, e não o contrário, porque a levam para o precipício da destruição ou para o marasmo da conservação.

Referências bibliográficas

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Anotações__________________________________________

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Desconstrução

Introdução

Nas duas últimas unidades tivemos a oportunidade de examinar pontos de vista variados sobre a razão da descrença em Deus, do rechaço à religião, da não razoabilidade da fé, dentre outras coisas que se podem achar sobre isso entre os pensadores modernos. O parâmetro foram as críticas dos “mestres da suspeita”, Marx, Nietzsche e Freud, além de Feuerbach, cujo pensamento de alguma forma foi seminal para os demais. É claro que aqui foram deixados de fora inúmeros outros exemplos, por falta de espaço. Não há dúvida, porém, de que a contribuição desses pensadores é fundamental para a compreensão da crítica ateísta que permaneceu no século XX, tomando mais corpo a partir de sua segunda metade – como veremos melhor nas unidades 14 e 15. Em resumo, alguns dos postulados estudados foram:

a. Feuerbach. A religião é fruto de antropomorfismo, e explica-se melhor pela antropologia que pela teologia. Pois Deus é uma criação proveniente da consciência humana, em função de seus desejos e carências; em suma, é uma projeção do próprio homem, de modo que, ao se olhar para o homem verá o seu Deus e vice-versa.

b. Marx. A religião é resultado da alienação humana – e não o seu fundamento, como pensam alguns. É um produto das condições materiais e socioeconômicas, que geram a alienação das massas e, com ela, a necessidade da religião. Por isso, é o “ópio do povo”.

c. Nietzsche. A religião representa uma atrocidade contra a humanidade, pois é inimiga da vida; oprime para depois oferecer o amargo remédio da “libertação”,

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que carrega consigo o germe de seu oposto, a escravidão. Promove uma ideia de Deus que inquieta e humilha as gentes, fazendo-as se sentirem más, culpadas e pecadoras.

d. Freud. As doutrinas religiosas são ilusões, “realizações dos mais antigos e prementes desejos da humanidade”, sendo a força desses desejos – como o ódio edipiano e, ao mesmo tempo, desejo de proteção em relação à figura do “Pai” – aquilo que dá origem e mantém a ideia de Deus.

Muito próxima das ideias acima elencadas está a do filósofo, que recebeu o prêmio Nobel de literatura em 1950, Bertrand Russel, no ensaio (de 1929) intitulado Por que não sou cristão. Ali ele defende que a religião está embasada no medo-pavor: do mistério, da derrota, da morte e do que vem depois dela – aliás, ateístas contemporâneos, como o falecido Christopher Hitchens e Lawrence Krauss, defendem que a crença em Deus está intimamente atrelada com o pavor da morte. Além disso, tanto em Freud como em Russel se pode notar uma confiança quase cega nas possibilidades que a ciência oferece de conferir sentido a questões (do mundo físico) que a religião não pode responder, porque é irracional e altamente voltada para o “celeste porvir”. Russel é ainda mais explícito que Freud, quando afirma que “a ciência pode ajudar-nos a superar este modo covarde com o qual a humanidade tem vivido por tantas gerações”, e também convida seus leitores a “ver o mundo como ele é” e a “conquistar o mundo pela inteligência” (RUSSELL, 2014). O problema dele e de outros pensadores modernos reside exatamente aí: na medida em que querem pôr fim na metafisica pelo viés da religião, não abrem mão da metafísica pelo viés da ciência, pois só uma visão essencialista da realidade pode sustentar que ela pode ser conhecida “tal como ela é”. Fica evidente, como já destaquei antes, que se trata de uma substituição de crença: sai o Deus déspota e suas doutrinas aterrorizantes, não confiáveis e improváveis, e entra, a inteligência e ciência

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humanas, com um projeto não menos messiânico de salvar a humanidade do estado de menoridade em que se encontra.

Meu convite, porém, foi (e permanece sendo) para que tomemos as críticas desses ateístas não apenas de um lugar e prisma reacionário e defensivo, mas também autocrítico, perguntando-nos: em que medida essas críticas reverberam, mesmo que parcialmente, no modo de ser religioso e religião ainda hoje? Que posturas ou práticas poderiam surgir daí? Um dos riscos óbvios, para aqueles/as que são de fé, é o de se cair na trama dos argumentos, sentir-se enfraquecido/a ao ponto de colocar em cheque a própria fé no incondicional ou, pelo menos, a expressão confessional ou crença que ela abraça, de escanteio.

O desejável – pensando aqui em termos de uma filosofia da religião em “tom pós-metafísico” –, porém, é que seja um exercício saudável de dupla criticidade: (1) a crítica dos pressupostos ateístas e o que há de plausível e implausível neles; (2) a crítica dos pressupostos da própria religião, que pode incluir tanto um olhar analítico e fenomenológico, quanto pessoal, isto é, uma reflexão sobre nossas próprias crenças – por isso, propositadamente, não exclui o plano pessoal de concepção da fé nem os privei de minhas próprias interpretações até aqui. E a ideia nessa unidade é a de tentar fazer uma síntese sobre o que significa permanecer crendo, escolhendo a fé, diante das eventuais desconstruções pelas quais passamos em meio a um universo de descrença e ceticismo, ou mesmo de dúvidas e incertezas que nos cercam, tanto no plano intelectual (teológico e filosófico) quanto no plano existencial. Farei isso em dois momentos: no primeiro, discorrendo sobre a sustentação e os limites da crença (no cristianismo, basicamente a única religião sobre a qual tenho discorrido aqui) e, no segundo, apresentando o que aqui chamarei de “arte de perder chãos”.

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Objetivos

1. Compreender o papel da razão na significação e testemunho da fé;

2. Descobrir um novo tipo de racionalidade, orgânica e vital, na expressão da fé.

3. Refletir sobre a necessidade e (arte) de perder chãos, de desconstrução para uma nova construção.

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Raciovitalismo: sobre o ato de crer e de pensarImmanuel Kant, no ensaio chamado “Uma resposta à pergunta:

o que é o iluminismo”, sobre o qual falei brevemente na unidade 9, afirma que nada mais é requerido para esse esclarecimento a não ser a liberdade, talvez a mais inofensiva de todas elas, pensava ele: a liberdade para fazer o uso público da razão em todos os meios. No entanto, contendia ele que de todos os lados se podia ouvir vozes dizendo: “Não raciocine”! “O oficial diz: ‘Não raciocine, apenas obedeça’; o inspetor diz: “Não raciocine, apenas pague’; o pastor diz: ‘Não raciocine, apenas creia” (KANT, 1983, p. 37). Em todos esses casos Kant via um movimento contrário ao da emancipação iluminista, restrições penetrantes à liberdade. Está inclusa aí a crítica a religião, ou mais precisamente a postura do sacerdote de obstrução do pensamento pela via da preconização de uma fé em que tudo o que se tem de fazer é “apenas crer”.

Ainda hoje é o que parecem querer dizer alguns sacerdotes e líderes religiosos: creia e obedeça apenas, não questione! Em certa medida, é possível consentir que esse “apenas crer” envolve uma dimensão da fé, de confiança e entrega ao incondicional ou mesmo de “salto”, como diria Kierkegaard. É quando alguém não tem muita escolha ou nada mais a fazer senão render-se diante do mistério, do inexplicável e do poder divino. É algo se vê no evangelho de Marcos no exemplo de Jairo, um dos mais importantes membros da sinagoga. Desesperado diante da iminente morte de sua filhinha, ele recorre a Jesus pedindo que impusesse suas mãos sobre ela e a salvasse. Marcos apenas relata que Jesus “foi com ele” (Mc 5.24). Depois da intercorrência de outra situação, alguns da casa do chefe da sinagoga foram até Jairo e estranharam ele ainda incomodar o mestre, uma vez que sua filha, segundo eles, já estava morta. O texto diz então que Jesus, sem se importar com tais palavras, afirma àquele pai: “Não temas, crê somente” (5.36). Que outro recurso Jairo tinha? Em tal situação, ou era crer e esperar pelo impossível, ou simplesmente abraçar as más notícias trazidas por aqueles homens, não crer e perder a esperança.

Em outros contextos, “apenas crer” pode servir como instrumento de controle e manipulação, como Kant já alertava no século XVIII; ou

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mesmo para a desculpa e preguiça de pensar, afinal, como já foi dito, “pensar dói”. Contudo, será a fé algo tão simples que possa ser traduzida, para todos os efeitos, em um “apenas” isso ou aquilo? Acreditar apenas? Tenho trabalhado com a noção central de Tillich, de que fé significa ser movido por aquilo que nos toca incondicionalmente; não se retém em conteúdos, mas os pressupõe e pode ser expressa parcialmente através deles. Pois, para além do “salto” ainda resta se perguntar: no que acredito? Por que acredito? Como pontua Alister McGrath (2012, p. 19), fé é um assunto relacional e tem a ver com confiar em Deus; não obstante, “parte da dinâmica mais íntima da vida de fé é o desejo de entender mais a respeito de quem e em que confiamos”. Assim, a fé, não apenas crê, mas busca entendimento e se expressa, também, através de raciocínios, acordos, convicções firmes e bem assentadas.

Em outras palavras, para além da dimensão do incondicional e do inexprimível, há algo que pode e deve ser pensando e também expresso; por atos, é claro, mas também por palavras, fazendo uso da razão. Teologia, como defende McGrath (2012, p. 19), “é uma paixão da mente, um desejo de entender mais sobre a natureza e os caminhos de Deus e o impacto transformador que isso tem na vida”. Esse é o convite do apóstolo Pedro na conhecida passagem que diz: “...antes, santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15). O que essa esperança expressa? Qual é seu sentido? Como ela pode falar à condição do homem e da mulher no século XXI?

Pelo visto, o uso da razão – a despeito da cisão interposta pela modernidade – ainda é algo importante a fé. Parafraseando McGrath (2012, p. 21), Cristo não será santificado, nem reinará, em nossos corações “se ele não nos guiar nossos pensamentos também”. Ele ainda afirma que “a vitalidade da fé cristã está na empolgação e no completo prazer intelectual causados pela pessoa de Jesus de Nazaré”. Então, se alguém te perguntar: por que Jesus e não Maomé, Buda ou Krishina? Qual é o sentido do que vocês, cristãos, chamam de encarnação? Não é possível, desse modo, estar na fé – sobretudo para quem escolhe pensar e pensar por si – sem se defrontar seriamente com questões como essas. A bíblia fala de zelo e obediência, mas também fala de

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entendimento. A situação ideal é quando o zelo caminha de mãos dadas com o entendimento. Parafraseando o que disse na unidade 8 sobre a dúvida, se existisse um lugar em que a o ser humano estivesse e sua racionalidade não, poderíamos falar de uma fé sem razão – poderíamos dizer o mesmo de uma razão sem fé? Na prática, porém, isso é tanto uma impossibilidade quanto um pecado contra o dom de Deus.

O contraposto a uma parte do racionalismo moderno, crítico e supostamente irreligioso, não é o irracionalismo, mas uma racionalidade vitalizada – que reconhece tanto os limites de seu pensamento, quanto a pluralidade de pensamentos e interpretações que nos permeia. É uma fé que nem “apenas pensa”, nem “apenas crê”, mas que assume a complexidade e riqueza da experiência humana íntegra e holisticamente, que reflete tanto quanto ama, que pensa tanto quanto sente. Une a paixão do pensamento pelo paradoxo e pela vida. Resulta em uma fé dialogal e uma racionalidade vital ou um raciovitalismo, tal como propõe Alessandro Rocha em diálogo com Michel Maffesoli. Esse raciovitalismo se constitui como:

Um deslocamento epistemológico em relação ao racionalismo moderno. Tal deslocamento encontra sua justificação e legitimidade na opção pela integralidade da vida como espaço de racionalidade, em contraposição à opção da razão moderna pelo acento unidimensional de sua compreensão de racionalidade na mente humana. (...) “Buscar uma racionalidade orgânica”. Esta é a tarefa que estamos propondo até aqui. Essa racionalidade nós assumimos como raciovitalismo. Fazemos isso exatamente porque compreendemos que o racionalismo é “particularmente inapto para perceber, ainda mais apreender, o aspecto denso, imagético, simbólico, da experiência vivida”. (ROCHA, 2010, p. 115).

Abertura: sobre a arte de perder chãos Tendo em vista o exposto até aqui, pode-se dizer que uma

racionalidade vital não é a do tipo “forte” ou rígido, tal como se vê na modernidade, mas uma racionalidade aberta, relacional e, em muitos casos, “frágil”, não no sentido de que pensa ou reflete mal (desleixada e irresponsavelmente), mas de que reconhece as limitações próprias do

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pensamento e da linguagem humana, bem como se esvazia da pretensão dogmática de se impor como “o saber” entre outros, passando a se admitir como “um saber” entre outros.

A vida intelectual – que, como vimos, não é uma atividade distinta da vida de fé ou “espiritual” –, como a pensa João Batista Libanio (2006, p. 81), “só se desenvolverá se se mantiver uma atitude de abertura ao diferente, ao novo, ao questionamento”. De acordo com ele, como filhos/as de uma época e uma cultura específicas (na qual se insere a religião) todos/as fazemos parte de uma tradição (ou mais que uma). Por exemplo, o que concebemos como “fé” (falando de seus conteúdos) é fruto de uma vivência dentro de uma tradição, em que a experiências individuais alimentam e são alimentadas por experiências coletivas. Entretanto, como reitera Libanio, “viver só da tradição”, tratando-a de modo rígido ou definitivo, “termina em um processo repetitivo. Aqui entra o que ele chama de atitude de abertura enquanto “capacidade de assumir uma autocrítica da própria tradição de dentro dela” (Ibid., p. 81).

Essa atitude se opõe, na visão de Libanio, tanto a uma concepção puramente ortodoxa, que trabalha com a perspectiva excludente de sim ou não, ou, ou; quanto também uma concepção relativista, que desqualifica a tradição assumindo uma postura em que anything goes, ou qualquer coisa vale, e que pode facilmente ser trocada por outra coisa no próximo momento. Ao invés, ele propõe uma concepção dialética, que “busca a síntese entre a tradição e a novidade da experiência, chegando a novas formas de verdade. Retém a positividade da tradição, nega-lhe a negatividade e assume do presente sua força crítica positiva. Vão assim construindo novas e mais ricas sínteses de verdades” (Ibid., p. 82).

Nesse sentido, uma tradição nunca deve se impor como absoluta, e toda vez que o faz recai no risco da idolatria. Isso, porém, aconteceu e ainda acontece na história das religiões, e do cristianismo em particular. Basta recordar o período da Reforma Protestante, por exemplo, que teve, como uma das razões principais de sua ocorrência, a elevação da igreja, sua ordem, seus dogmas, à condição de absoluta, inquestionável, acima da própria Palavra de Deus. Somente através dela se podia conhecer o verdadeiro Deus e a legítima mensagem das Escrituras. Contra isso se impôs o que Paul Tillich (2006, 1992) chamou

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de princípio protestante. Segundo ele, “o princípio protestante é a reafirmação do princípio profético em seu ataque contra uma igreja que se considerava absoluta e que, por isso, se encontrava demoniacamente deformada” (TILLICH, 2005, p. 234), ou, parafraseando o que ele disse em outro lugar (TILLICH, 1992, pp. 209-221), trata-se do protesto divino e humano contra toda tentativa de absolutizar o que é apenas relativo e temporal. Quando a igreja quer igualar a si mesma, ou o que ela diz/faz, a Deus, torna-se um ídolo ou um demônio, deixa de ser igreja – congregação de pecadores salvos pela graça de Jesus Cristo e, por isso, conscientes de que seus saberes e experiências são sempre “em parte” – e passa a ser uma Babilônia ou uma sucursal do inferno. Contra essa tentação, gostaria de propor, como exercício de reflexão, o que aqui estou chamando de “arte de perder chãos”, cuja premissa é a de uma desconstrução sadia e intencional de todos os solos provisórios sobre os quais assentamos nossas crenças. Pode ser representado pela figura abaixo:

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Tentarei explicar o que quero dizer com essa imagem através do seguinte:

1. Na parte inferior da figura estão o chão da fé e o chão da história que, embora distintos, não se encontram em planos diferentes. Fé é fé no incondicional. Trata-se de chão invisível e indizível, em primeiro plano, por isso é chão enquanto sustentação incondicional do que denominamos fé. Essa fé, porém, não nos desistoriciza nem nos desumaniza, mas nos comissiona, segundo a premissa de encarnação vigente no evangelho, a entrar na história como antecipadores da eternidade através de gestos que Paulo chamou de “permanentes”: a fé, o amor e a esperança.

2. A caminhada humana, porém, nos impõe a busca por sentido e, assim, a criação de sentidos possíveis para aquilo que acreditamos e sobre o porquê de acreditarmos nessas coisas. Esses são o que poderíamos chamar de “chãos finos e frágeis”, porque provisórios.

3. Esses, por sua vez, são constituídos por manifestações temporais e impermanentes na esfera da cultura – ética, estética e religião. A cultura humana, inventada e invencionista, incita a cada ser humano a dar formas – símbolos, mitos, representações do “real”, e, par os de fé, da própria fé, da religião e de Deus, expressas pelos conteúdos, dogmas, crenças, tradição.

4. Esses chãos, como já disse, são frágeis e provisórios – e essa é a sua propriedade. O ato de tentar equipará-los à própria realidade ou ao incondicional é parte do antropomorfismo, de modo que a crítica de Feuerbach, tal como vimos na unidade 10, torna-se válida nesse caso: a realidade (ou o incondicional) é fruto da consciência que o homem tem (ou imagina ter) de si mesmo. A consciência que o ser humano tem da realidade, porém, não é capaz, por mais que pretenda, dar conta ou espelhar a própria realidade. Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo (2008), desenvolve a tese de que, com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que, aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto que o real, em si, nos escapa. A realidade não se dá a conhecer plenamente,

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não é inteligível em sua essência. Na mesma medida em que é ininteligível, também é cruel (ou seja, dura). Daí a cegueira voluntária consiste no efeito psicológico ilusivo produzido pelo efeito do espelho: no encontro com o outro da realidade (seu duplo, sua representação), penso estar em contato com ela mesma (ROSSET, 2008, p. 91). O mesmo pode funcionar para o relacionamento da pessoa de fé com o incondicional; a ilusão, nesse caso, consiste na pretensão de falar por Deus, ou de que a imagem verdadeira de Deus está expressa na ideia ou na representação. É aqui que a ilusão pode se converter, ao mesmo tempo, em manipulação e em idolatria.

5. Nietzsche e seu perspectivismo trouxe para gente a ideia de que tanto a realidade, quanto o que chamamos de “verdade”, são criações da linguagem. A linguagem coloca diante de nós um mundo de possibilidades e também de impossibilidades. A palavra pronunciada coloca uma parcela do mundo em movimento, mas nunca é a expressão exata desse mesmo mundo. Isso é o que Jacques Ellul (1984, p. 21) chama de “bendita incerteza do discurso; é o que lhe confere toda a riqueza”. O discurso, completa ele, é sempre ambíguo, jamais transparente. Posso me esforçar para que o outro compreenda exatamente o que estou dizendo, contudo, “não sei, exatamente, o que o outro está entendendo daquilo que digo” (Ibid.). Mas é no meio desses buracos, insucessos e mal-entendidos da linguagem que, segundo Ellul, reside uma nova expansão da vida, em que se recomeça incessantemente, e se deve trabalhar na interpretação do discurso e do texto num movimento sempre em construção e, por isso, sempre susceptível de múltiplas definições. Como expressa Ellul:

A confusão da linguagem impede a posse do ser, seu cativeiro. Eis-me diante de um instrumento de infinita riqueza, inesperada, de uma polifonia desencadeada pela menor frase. A ambiguidade do discurso, e mesmo sua ambivalência, mesmo a oposição entre o momento em que é enunciado e o momento em que é recebido, produzem as mais intensas atividades sem as quais seríamos formigas, abelhas, tornar-nos-íamos ressequidos, esvaziados de nosso drama e da nossa tragédia. Nascem aí o símbolo, a metáfora, a analogia. (Ibid., p. 21).

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6. As possibilidades impossíveis da linguagem deveriam, assim, nos conduzir a uma tarefa mais honesta, humilde, dependente daquilo que somos e temos – e, por isso, impeditiva do atrofiamento dogmático –, e da graça de Deus e, por tudo isso, alegre e celebrativa. Eis o extraordinário, diria Ellul: é uma benção para o ser humano viver assim, cativo da linguagem, distante da completude e, ao mesmo tempo, em busca dela, pois do contrário, acrescentaria eu, não seriamos seres humanos e sim deuses, ou semideuses. Isso é redenção e não desgraça, sobretudo quando se pode assumir jubilosamente a provisoriedade desses “chãos” da linguagem e permitir que eles se desmanchem e se refaçam num movimento dinâmico. Esses chãos estão para a queda assim como o peixe está para a água. O objetivo, porém, é perder o chão sem cair no abismo, e essa é uma arte bastante arriscada que somente os corajosos e aventureiros se dispõem a aprender e se permitem desenvolver. Deixar o chão ruir pode ser, ao invés da “ilusão voluntária” de quem os iguala à realidade, um mergulho consciente e voluntário. Ora, não foi assim com a encarnação do Cristo? Não foi um mergulho (ou enfraquecimento) voluntário na humanidade e na história? Veremos mais sobre isso na unidade 14 sobre a “morte de Deus”.

7. Em conclusão, é possível pensar que esse mergulho voluntário tem tanto uma dose de imanência quanto de transcendência (pensando naqueles dois chãos primários da figura), em que recebemos tanto um banho de realidade quanto da fé no incondicional e, a partir daí, fazemos uma revisão de paradigmas, de pressupostos, de nossos chãos. Aqui reside um aspecto muito importante: um chão cai para que outro seja construído – portanto, não se trata de desconstrução pura e simples que redunda num vazio. E isso se dá num movimento dinâmico – como as águas do rio que correm para o mar e de lá voltam a correr (Ec 1.7). Nesse sentido, pode-se pensar que nunca voltamos os mesmos de cada novo mergulho, de cada nova imersão e experiência. A esperança – falando propriamente contra o dogmatismo e a intolerância – é que voltemos mais maduros, melhores, mais tolerantes e generosos. É isso que se espera de uma filosofia da religião, bem como de uma teologia, em “tom pós-metafísico”, como veremos na última parte desse curso.

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Referências bibliográficas

ELLUL, Jacques. A palavra humilhada. São Paulo: Paulinas, 1984. KANT, Immanuel. An answer to the question: what is Enlightenment? In: _______. Perpetual peace and other essays. Indianapolis, IN: Hacket P. C., 1983.LIBANIO, João Batista. Introdução à vida intelectual. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 2006. MCGRATH, Alister. Teologia pura e simples. O lugar da mente na vida cristãROCHA, Alessandro R. Experiência e discernimento: recepção da palavra num cultura pós-moderna. São Paulo: Fonte Editorial, 2010.ROSSET, Clément. O real e seu duplo. Ensaio sobre a ilusão. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2008.RUSSELL, Bertrand. Por que não sou cristão. Porto Alegre, RS: L&PM, 2014.TILLICH, Paul. Teologia Sistemática. 5ª ed. Revista. São Leopoldo, RS: Sinodal, 2005. _________. A era protestante. São Bernardo do Campo, SP: Ciências da Religião, 1992.

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Anotações__________________________________________

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 13

Pós-Modernos

IntroduçãoOs tribalistas já não querem ter razão, não querem ter certeza, nem juízo, nem religião. Os tribalistas já não entram em questão, não entram em doutrina em fofoca ou discussão... chegou o tribalismo no pilar da construção. Pé em Deus e fé na taba.

(Os Tribalistas)

Durante algum tempo entendi que esse trecho da musica “Tribalistas” resumisse bem o “espírito pós-moderno”. Hoje, penso que ela resume parte (explico depois).

Também até certo tempo concordei com a alusão feita por um professor sobre a pós-modernidade, na música “Caviar”, do Zeca Pagodinho: “Você sabe o que é caviar? Nunca vi nem comi eu só ouço falar”.

Hoje, minha aproximação com a pós-modernidade, ainda que em construção e provisória, é menos preconceituosa e mais generosa – no sentido de tentar ouvir mais atentamente o que está em questão; ela não possui uma só voz, mas várias.

O esporte predileto dos cristãos em geral, em alguns livros que li, é atacar o pós-moderno, associando-o ao relativismo (desprezo pela ideia de uma única verdade ou da verdade em si), ao pluralismo (desprezo pelas concepções fechadas e, ao mesmo tempo, abertura a qualquer concepção) e ao espiritualismo (busca pela espiritualidade nos “lugares errados”).

Prefiro pensar nessas designações como caricaturas: reproduções deformadas de alguma coisa, que não são o único nem o mais verdadeiro retrato da pós-modernidade. Estamos falando de algo mais complexo do que parece.

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Assim, diante do desafio de entender em que creem os pós-modernos, e qual é o lugar da religião entre eles, meu desejo aqui é indagar se há outro caminho a trilhar além do rechaço. Pensar nas contribuições que podemos extrair de uma conversação pós-moderna (ou com pós-modernos). Verificar as ondas possíveis de se surfar nesse “mundo”. E é também pedir ao Senhor que nos dê abertura de mente para ler e interpretar os “sinais dos tempos” (Mt 16.1-3). Será que a fé cristã, tal como praticada hoje, está apta a interpretar os sinais dos tempos? Ou não temos conseguido nos acautelar em relação ao que Jesus chama de “fermento dos fariseus”?

Objetivos

1. Compreender, em linhas gerais, em que creem os pós-modernos;

2. Pensar nas contribuições que podemos extrair de uma conversação pós-moderna sobre a religião;

3. Conhecer formas e perfis de uma religiosidade pós-moderna.

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O que é pós-modernidade?O conceito de pós-modernidade não é dos mais fáceis de

definir. Porque se trata de um objeto que se insere na perspectiva do múltiplo: múltiplas abordagens, perspectivas e nomenclaturas. A pós-modernidade é, assim, um grande número de coisas sob diferentes interpretações.

Fora isso, ainda há a questão de que se trata de um fenômeno de protesto, que tem muito mais desconstrução do que construção em vista. Definição é coisa moderna. A cultura moderna é que fez com que nos habituássemos a “pôr fim em”, fechar questão, conceituar.

Nós fizemos um pacto com os conceitos. Eles nasceram para dar conta do mundo, para ser uma designação fiel das coisas às quais eles remetem. Se digo, por exemplo, “Deus”, o dizer em si já me remeteria à entidade a qual desejo designar (ver discussão na unidade 14). Parte-se do pressuposto da correspondência entre a palavra e a coisa em si; o conceito é igualado à realidade que ele tenta descrever.

Sobre isso, Rob Bell (2005, p. 23) disse o seguinte: “Nossas palavras não são absolutas. Apenas Deus é absoluto, e Deus não tem a intenção de partilhar seu absolutismo com ninguém, especialmente palavras que as pessoas usam para falar sobre Ele. E isso é uma das coisas com a qual pessoas têm se debatido desde o princípio: Deus é maior que nossas palavras, cérebros, cosmovisões e nossas imaginações”.

Bem, tudo isso para dizer que eu não tenho uma definição. Mas, vamos chegar lá...

Quem fala em “pós” está querendo dividir algo. Se uma coisa é X, e outra que vem depois de X mais ainda não tem por certo o que é, então ela é designada provisoriamente como pós-X. Então o prefixo da palavra pós-modernidade, indica que estamos falando de um fenômeno que desponta como transbordamento de algo, que vai além, no caso, da modernidade.

Segundo François Lyotard (1993, p. xvi), simplificando ao extremo, o pós-moderno se define pela “incredulidade em relação aos metarrelatos” - que são os grandes relatos que buscam uma explicação universal (única) e correspondente à realidade. Por exemplo (e voltarei repetidas vezes a esse ponto nas próximas unidades): minha

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linguagem (conceito) dá conta da realidade que pretendo descrever. Ou a coincidência entre a capacidade (o que eu posso chegar a fazer) e o desejo (o que eu quero que seja feito).

O moderno, assim, pode ser descrito por aquele que crê nessas correspondências e o pós-moderno como aquele que desconfia, abandona ou descrê na possibilidade de coerência plena entre elas.

Uma sociedade é moderna, segundo Zygmunt Bauman (1997, p. 10), “na medida em que tenta, sem cessar, mas em vão, “abarcar o inabarcável”, substituir diversidade por uniformidade, por ordem coerente e transparente”.

A que podemos comparar? Brian McLaren (2008, p. 228) faz uma comparação interessante

a partir de um conhecido filme: o mundo de Jurassic Park é o mundo moderno. “Um sonho de controle. Tecnologia por diversão e lucro. Mas trata-se de um sonho torto. A natureza, por sua vez, tem uma corrente de caos passando através dela”. É um mundo que desejava controle, mas que perdeu o controle. E o olhar crítico a esse mundo vê que ele “desencadeou os velociraptors da degradação ambiental, os tiranossauros rexes da opressão ética, os componentes computadorizados da lascívia e da cobiça” (Ibid., p. 229).

A frase de Michel Quoist (1978, p. 90), cabe bem aqui: “A tragédia do homem é que ele é limitado em seus meios e infinito em seus desejos”. A limitação não é o problema, o problema é a pretensão à infinidade (viver sem limites). E essa tragédia do homem está em sua gênese. Mas ela tem contornos outros que não apenas o da pretensão de ser (orgulho), que passa tanto pela incapacidade de decidir (transferência de responsabilidade e dependência), quanto de não assumir quem ele é, ou seja, seu destino humano.

A tragédia do homem, nesse sentido, não é apenas a de querer ser mais, mas a de não querer se ele mesmo - o que pode resultar tanto num desejo de “ser mais” (orgulho), como o de “ser menos” (preguiça). Essa é a tese de Harvey Cox em seu livro Que a serpente não decida por nós (1970), em que ele relembra que, no caso do “pecado original”, proveniente da oferta da serpente à Eva e, por tabela, a Adão, o

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orgulho (o desejar ser como Deus) é resultado e não origem, que para ele está na palavra latina acedia, traduzida por “preguiça” ou “apatia”. Segundo Cox, foi a preguiça ou apatia de Adão e Eva, que deixaram que a serpente decidisse sobre o que eles deveriam ser, que provocou o desejo. Para ele, “o homem é aquela criatura criada para plasmar e realizar seu próprio destino. Todas as vezes que cede esse privilégio a outrem, deixa de ser homem” (COX, 1970, p. 11). O caminho do arrependimento pela preguiça está na decisão de ser quem se é, recusando terceirizar seu destino a quem quer que seja.

Pode-se dizer que parte do ímpeto moderno seguiu essa tendência, e parte acabou traindo no momento em que esse ímpeto se converteu em absolutismo, isto é, em ser mais ou se colocar além de sua potência ou possibilidades humanas. Acabou, por fim, decretando sua própria abolição, usando a linguagem de C. S. Lewis (2005, p. 72), ao ceder à “oferta do bruxo”, que segundo ele corresponde à tentativa de subjugar a realidade a seus desejos e, assim, “ao processo pelo qual o homem cede objeto atrás de objeto, e finalmente a si próprio, à Natureza, sempre em troca de poder”. E essa acabou sendo mais uma maneira de deixar a serpente decidir sobre o que deveria fazer, como expressa Cox (1970, p. 12).

Voltando de novo nosso olhar ao pós-moderno, pode-se dizer que ele se recusa a determinismos e destinos fixos, a promessas utópicas de salvação terrena, e se concentra nas alternativas que se apresentam a ele no momento, julgando possibilidades e decidindo quase sempre de modo provisório. Também se configura pelo desencanto para com as teorias modernas (são apenas teorias), para com o sujeito moderno (do conhecimento, da potência) e sua habilidade de conhecer (na verdade, conhecemos só em parte). A modernidade, segundo Bauman, refere-se essencialmente à “solução de conflito”, a não admissão do erro, da contradição e negação do conflito, pois sempre há uma “solução”.

Se pudéssemos usar outra comparação, o símbolo da modernidade seria o sólido (certezas, precisão, convicções inabaláveis) e o da pós-modernidade seria o líquido (incertezas, dispersão, convicções fluentes). Ao mesmo tempo, não entendo que esse “pós” esteja se referindo a algo “cronológico”, nem ao abandono total de princípios, como verdade, fé, ou conceitos morais anteriormente estabelecidos,

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mas da “rejeição de maneiras tipicamente modernas de tratar seus problemas morais” (BAUMAN, 1997, p. 8), de modo absoluto, unívoco e coercitivo.

Em contrapartida, a pós-modernidade pode ser representada em dois conceitos, utilizados por Bauman, que endereçam sua aceitação do conflito e da pluralidade:

1. Ambivalência. Compreende o estado em que não sabemos exatamente como agir nem prever o que vai acontecer. Ambivalente é a situação ou pessoa que admite a falta de ajuste entre a capacidade e o desejo, assume o limite dos seus meios frente à sua infinitude de desejos. Ela seria também seria efeito desse “alvoroço organizador” que a modernidade idolatrou (BAUMAN, 2011, 287).

2. Incerteza. Indica uma dificuldade ou dúvida racional diante da impossibilidade objetiva de uma resposta ou conclusão definitiva a respeito de algo. Representa, portanto, um estado que passa a ser cada vez mais aceito pelos pós-modernos, de incerteza, apologia do erro, e assunção da natureza inacabada de seu conhecimento a respeito da realidade. A incerteza também se dá no campo ético, entre “escolhas já feitas” e aquelas que “ainda serão” feitas num mundo sem garantias prévias (Ibid., p. 369).

Um dos erros da vida acadêmica hoje é o de continuarmos sendo modernos no sentido de buscar a suficiência e evitar o erro a todo custo, como se ele fosse o câncer da ciência. Pelo contrário, o câncer da ciência se chama sufi-ciência! É quando o cientista ou intelectual pensa que a ciência tem todas as respostas e é capaz de tudo e mais um pouco. Essa falsa assunção pode ser (como em parte foi) sua ruína. Pois o erro não é defeito, mas é a condição de continuidade e processualidade da ciência, pois “ciência sem erro é dogma”, afirma Pedro Demo (1995, p. 53), e mais: “A renovação do conhecimento é diretamente proporcional a presença do erro”.

Por isso é que eu disse lá no começo que esse negócio “tribalista” de não querer mais ter razão, juízo, certeza ou religião não é tudo o que se pode dizer sobre a pós-modernidade. A diferença não está exatamente no conteúdo, mas na forma. O pós-moderno faz uso da razão, constrói juízos e até admite algumas (“pequenas”, como diz Bauman) certezas, porém, reconhecendo os limites de sua razão, a provisoriedade de seus

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juízos e as dúvidas presentes mesmo em suas convicções. Além disso, é também uma caricatura dizer que o pós-moderno

“de carteirinha”, como diz McLaren (2008, p. 234), não crê na verdade absoluta. Ele não duvida da existência de uma verdade absoluta lá fora, mas de nossa capacidade de apreendê-la, codificar numa linguagem e transmitir a outras pessoas e fazê-las compreender de uma maneira “absolutamente exata”. O problema deles não é a verdade absoluta, mas o conhecimento absoluto.

Decadência da religião?Como vimos nas unidades 9 e 10 desse curso, um dos

vaticínios reverberados por alguns pensadores modernos é o de que a religião chegaria ao fim quando a humanidade se encontrasse emancipada da “ideia de Deus” ou alcançasse uma razão totalmente destranscendentalizada.

Anderson Clayton Pires no artigo “O fim da religião e o último homem”, vê esse vaticínio se cumprir na atualidade. Contra autores como Jürgen Habermas, que defendem a “ressacralização do mundo”, Pires confirma a perspectiva mais comum sobre a secularização (ver unidade 14) defendendo que o mundo moderno (que para ele é o atual) é um mundo em que a religião passa por um estado de saturação de seu discurso e razão de ser. Desse modo, para ele, “parece mais sensato dizer que “a religião chegou a sua derrocada, ao seu fim. Essa conclusão parece ser irrefutável! Seu discurso se tornou inaudível, quando não cacofônico. Isso por uma razão muito simples: dela foi abolida a sua alma, a escatologia, escatologia do começo da esperança” (PIRES, 2014, p. 54, grifo meu). Destaque proposital para o uso termo “irrefutável” utilizado pelo autor em relação à sua tese, o que demonstra que ele ainda se encontra com os dois pés e o corpo inteiro na mentalidade modernista - o que não é nenhum demérito ao texto em si, apenas uma constatação de uma metodologia que particularmente não me agrada. As razões para isso se encontram adiante e também nas próximas unidades.

De minha parte, penso que é bastante temerário falar em “decadência” ou “declínio” da religião, em primeiro lugar, porque, esse

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é um conceito problemático: quem define e/ou determina o que está ou não em decadência, a partir de qual ponto de vista e por que razão? Além disso, como apontou Jacques Le Goff (2013, p. 378), decadência é uma palavra “manipulável para fins ideológicos”, e a pergunta então vira: a quem interessa que a religião esteja em decadência? Para Le Goff, o melhor então é se falar em “mudanças” e “transformações” pelas quais a cultura (e a religião) passa, ou o termo “crise”, não menos problemático, mas mais adaptado às realidades históricas (Ibid., p. 379).

Em segundo lugar, porque a busca de uma “religião sem religião”, como disse John Caputo (2005) e bem expressa no apelo dos tribalistas, não pode ser visto como um apelo universal, mas tipicamente pós-moderno, o que também nos leva a concluir que o “espírito pós-moderno”, nos dizeres de Stanley Grenz (2008), se encontra de modo particular em algumas sociedades ou grupos, mas não em uma lógica universal. Mas, mesmo no caso pós-moderno, tem-se dado cada vez mais boas-vindas à (expressões da) religião, como mais uma vez expressa Caputo – que pode ser vista também como em franca contradição com a tese de Pires acima exposta:

Para o assombro dos eruditos que rechaçam a religião em todas as partes, que predisseram a morte de Deus desde meados do século XIX até o XXI, a religião retornou em todas as suas múltiplas variedades. Até mesmo dizer isso pode levar ao erro, já que, principalmente, os intelectuais diziam que a religião havia desaparecido; ninguém fora da academia pensou em absoluto que ela havia ido a parte alguma. A religião regressou inclusive entre os intelectuais de vanguarda que têm conferido nova legitimidade descreditando aos que a descreditavam, suspeitando dos que dela suspeitavam, duvidando dos que dela duvidavam e desmascarando aos que a colocavam em evidência (CAPUTO, 2005, p. 87, tradução minha).

Em terceiro e último lugar, porque as instituições e denominações ora em “decadência” continuam vivas, ativas e atendidas por milhares de pessoas – embora deixem de assistir a uma camada significativa da sociedade, que Danièle Hervieu-Léger chamou de “peregrinos”. De acordo com a autora, para este grupo de pessoas a crença permanece mais viva do que nunca hoje, enquanto as instituições tradicionais

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produtoras de sentido são cada vez mais questionadas e deslegitimadas em sua função reguladora (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 09). Enquanto isso, proliferam-se “religiões ‘à la carte’, religiosidade ‘flutuante’, crenças ‘relativas’, novas elaborações sincréticas: a ‘religiosidade vagante’, de que falava um dia J. Séguy, já está situada, em sua indeterminação específica, no centro de toda reflexão sobre a religião nas sociedades modernas” (Ibid., p. 25).

É nesse contexto que, na análise da autora, ressurge, ao lado do “convertido” (aquele/a já pertencente e fiel a uma agremiação religiosa) a figura do “peregrino”, que tem como insígnia própria a andança pelos diferentes caminhos religiosos e as mais diversas trilhas espirituais, para além das instituições, que podem implicar em presença na comunidade, mas que não se coadunam com o formalismo, a normatização e a “prescrição” advindas das instituições religiosas. Não mais dogmas, leis ou controle, nem tampouco necessidade de pertencimento.

Fazem parte desse grupo pessoas que declaram coisas do tipo: “gosto de Jesus, mas não da igreja”, “amo os ensinamentos de Buda, mas não me vejo como budista”, “frequento rodas de energização espiritual, mas não sou religioso”, e assim por diante. Para Hervieu-Léger (2008, p. 89), o peregrino desponta hoje como símbolo de uma “religião em movimento”, sob o “signo da mobilidade”, da “associação temporária”, ou mesmo da não associação. Segundo ela completa, essa religiosidade peregrina se caracteriza “pela fluidez dos conteúdos de crença que elabora, ao mesmo tempo pela incerteza das pertenças comunitárias às quais pode dar lugar”.

A meu ver, categorias sociológicas como a ideia de “religião de mercado” não podem ser utilizadas como modo genérico de classificação dessas peregrinações. Elas são, em minha interpretação, fruto de um movimento em sua maior parte espontâneo em direção à experiência religiosa ou “espiritual”, porém demarcada pelo desgaste para com a resposta ou proposta presente em igrejas de recorte tradicional – que continuam provendo, por sinal, um grupo grande de fiéis que precisam e talvez jamais abandonem este modelo. É óbvio, portanto, que a categoria dos “peregrinos” se refere a um número cada vez mais expressivo de pessoas (como se pode notar pelo último Senso do IBGE, 2010), mas que não representam a maioria.

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Resta-nos saber se existirão mais expressões eclesiológicas no protestantismo - religião marcada por uma ética e prática baseadas na “conversão”, no batismo e membresia de fiéis - capaz de ser “Igreja” para essas pessoas que já não querem nada com as “igrejas” nos moldes tradicionais e institucionais. A autora fala no deslocamento do testemunho evangélico: menos proselitismo e convencimento e mais atitudes. Segundo ela, “a problemática da “missão” não cessou de se deslocar, desde cerca de meio século, da conquista direta das almas para o testemunho ético supostamente capaz de dar crédito, em um mundo “distante da religião”, ao poder da mensagem evangélica”(HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 133).

Conclusão

Para concluir essa reflexão, transformo a representação renovada, sobre a qual a autora fala (Ibid., p. 134), sobre uma “igreja aberta”, em alguns questionamentos para nossa reflexão final, retornando ao ponto que comecei a levantar no parágrafo anterior.

Que papel a igreja tem a desempenhar, por exemplo, numa fatia de cultura (e aqui prefiro falar em fatia que na cultura em si) como a urbana, pós-moderna ou líquido moderna (como prefere o Bauman), pós-paradigmática, de posicionamentos, “desideologias” e religiosidades fluidas, de espiritualidade ao invés de religião (tradicional), de encantamento com o sagrado, com o transcendente, e menos com suas expressões doutrinárias e/ou institucionalizadas; de menos certezas, dogmas e posturas rígidas ou sólidas, e mais incertezas, dúvidas, paradoxos, liquidez; de saturação do individualismo e da autossuficiência modernos, de renascimento das tribos, dos ajuntamentos por gostos, como tem dito Michel Maffesoli (2012)?

Que lugar e papel as igrejas ainda podem desempenhar para inúmeras pessoas que não escutam mais o que ela diz (ou escutam e detestam) e não querem saber dela, pois a consideram uma voz tacanha, ultrapassada, anacrônica - isso quando não intolerante, mesquinha, pretensiosa à verdade universal? Quem tem sido e será igreja para os

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“sem igreja”, “sem religião”, “sem instituição”, para os desencantados com os modelos religiosos e institucionais vigentes? Que igreja existirá para quem está sedento não de ser convencido, por vias lógicas e argumentativas, de que a fé faz sentido, mas de relacionamentos que indiquem como e onde podem encontrar sentido de vida, experiência, amor, amizade e comunidade? O que ela tem a propor para pessoas não dão a mínima para quantidade, pirotecnia espiritual e entretenimento, e, portanto, jamais entrariam em muitos dos templos evangélicos ou católicos existentes, mas ainda assim é encantada pela mensagem de Jesus e dos evangelhos?

Ou ainda, será que a mesma igreja, que sabe muito bem como ser igreja para os “convertidos”, poderá ser igreja para os “peregrinos” (usando aqui as terminologias de Danièle Hervieu-Léger), os cavaleiros andantes, que não se encaixam em lugar ou sistema tradicional algum, não se veem contemplados pelos invólucros de Deus existentes? Tenho algumas percepções de uma igreja que imagino para esse público, perfil cultural e contexto. Mas as guardarei para última unidade desse curso. Antes, temos outros importantes temas a tratar. O próximo é a chamada “morte de Deus”.

Referências bibliográficas

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HERVIÈU-LÉGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.LE GOFF, Jacques. História e memória. 7ª ed. Revista. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2013.LEWIS, C. S. A abolição do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005. LYOTARD, Jean-François. O pós-moderno. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993.MAFFESOLI, Michel. O tempo retorna: formas elementares da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.MCLAREN, Brian. A igreja do outro lado. Brasília: Palavra, 2008.PIRES, Anderson C. O fim da religião e o último homem: uma crítica cristã à razão destranscendente. In: Ciberteologia: Teologia & Cultura, n° 48, Ano X, 2014, pp. 32-59.QUOIST, Michel. Construir o homem e o mundo. São Paulo: Duas Cidades, 1978.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 14

Morte de Deus

Introdução

“Os deuses também se decompõem. Deus morreu! Deus continua morto! E fomos nós que o matamos” (NIETZSCHE, 2008, p. 150).

Os vínculos e convicções religiosas, associadas a preconceitos históricos, fizeram e fazem com que muitos, até hoje, interpretem essa afirmação de Nietzsche de modo literal, isto é, como decreto de morte ao “Deus da fé”. A reflexão filosófica para a qual o/a convido, nessa unidade, porém, pretende contradizer esse senso comum por entender que ele faz bem pouco sentido. Pois, como veremos:

(1) Não se trata de uma afirmação categoricamente ateísta, mas filosófica. E a questão é mais simples do que parece, e pode revelar uma grande incoerência nos pressupostos e na militância ateísta até hoje: se Deus não existe – como alegam os ateístas, muitos deles única e exclusivamente com base na falta de evidências – como se a falta de evidência para a existência de algo já fosse evidência para a inexistência desse algo –, então não faz sentido declarar a sua morte1;

(2) Logo, Nietzsche não “mata Deus”, apenas declara a sua morte. E não foi uma morte tranquila, natural, uma “morte morrida”, mas foi trágica e processualmente um

1John Caputo (2005, p. 84) até faz uma brincadeira genial com essa questão, pensando no retorno do religioso hoje. Ele diz que Marx, Freud e Nietzsche declararam, cada um a seu modo, um tipo de “morte de Deus”. Entretanto, Marx, Nietzsche e Freud morreram, enquanto Deus está vivo e parece gozar de boa saúde, obrigado! A ironia de Caputo faz sentido quando pensamos, por exemplo, que esses pensadores tentaram inibir o falar sobre Deus, mas na pós-modernidade o que vemos, um tanto curiosamente, é uma nova proliferação e pluralização desse falar. Prova de que o Deus, que morreu num certo sentido e para alguns, para outros, também ressuscitou num certo sentido.

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assassinato, uma “morte matada”. Essa morte declarada seria, nesse sentido, de “uma representação linguístico-religiosa de Deus” (ROCHA, 2010, p. 149).

O que significa, portanto, a morte de Deus, quem é esse Deus que morre e para quem ele morre? Ademais, o que isso tem a ver com o tema religião e pós-modernidade?

É o que tentarei responder nessa unidade, através de um diálogo com filósofos e teólogos pós-modernos e a partir da versão da morte de Deus nietzschiana, entendendo, como expôs Charles Taylor (2010, p. 658), “que essa expressão é usada numa variação incontável de versões”, sendo uma delas proveniente do processo de libertação pela ciência (ver unidades 9 e 10), e considerando que “no mundo moderno, deram-se condições, nas quais não é mais possível crer em Deus do modo honesto, racional, sem confusões ou falsificações ou reserva mental” (Ibid., p. 659).

Objetivos

1. Verificar o sentido nietzschiano para a “morte de Deus”;2. Refletir criticamente sobre as vantagens que os

pós-modernos enxergam nessa morte;3. Desenvolver uma atitude crítica para com as

representações e ideias sobre Deus que grassam em algumas práticas religiosas contemporâneas.

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Um cenário teológico e cultural da morte de DeusEm 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das

mais conhecidas e lidas do mundo, trazia na capa a pergunta: “Deus morreu?” (Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da capa, que ele levou cerca de um ano para terminar, tempo que passou entrevistando líderes religiosos e teólogos. Depois de publicado, esse número “se tornou símbolo da tumultuosa década de 1960” (MOHLER, 2009). Causou um rebuliço somente equalizado pela afirmação de John Lennon, anos depois, de que os Beatles eram mais populares que Jesus.

O editor da revista recebeu mais de 3.500 cartas de leitores (sacerdotes e religiosos em sua maioria) furiosos pelo conteúdo do artigo, e aquele número acabou se tornando recorde de vendas da revista em mais de vinte anos, provando que o tema “Deus” ainda causava espécie mesmo entre aqueles que anunciavam sua morte – bem, se não causasse, não haveria razão de ser para tal anúncio. Em 2008, a Los Angeles Times nomeou a “Is God dead?” como uma entre as 10 capas de revista que mais chocaram o mundo.

Sobre o que tratava o artigo? Gostaria de começar citando um trecho:Deus está morto? Essas três palavras representam uma intimação para uma reflexão sobre o sentido da existência. Não mais se trata de uma questão de zombaria dos céticos para os quais a descrença é o teste da sabedoria e Nietzsche é o profeta que ofereceu a resposta correta há um século. Dentro do próprio cristianismo, agora confidentemente se renovando tanto na forma quanto no espírito, um pequeno grupo de teólogos radicais argumentaram que devemos aceitar o fato de que Deus está morto e seguir a vida sem ele. Como essa questão se diferencia da antiga afirmação de que Deus não existe e nunca existiu? A tese de Nietzsche era de que homens autocentrados e batalhadores mataram Deus e estabeleceram isso. A atual turma da morte de Deus acredita que, de fato, Deus está absolutamente morto, mas propõe esposar e escrever uma teologia sem theos, sem Deus. Pensadores cristãos menos radicais sustentam que pelo menos o Deus moldado segundo a imagem do homem, o Deus sentado no céu, está morto e que - como tarefa central da religião hoje - eles buscam imaginar e definir um Deus que

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possa tocar as emoções e envolver as mentes humanas (ELSON apud. MOHLER, 2009, tradução minha).

O artigo sinalizava mudanças significativas que vinham ocorrendo na Europa e nos Estados Unidos nessa época, e revelou ao grande público um movimento teológico que estava crescendo e que ficou conhecido como teologia radical ou da morte de Deus, que tinha como alguns de seus representantes os teólogos Thomas J. Altizer e William Hamilton, que juntos escreveram o livro A morte de Deus (1967). Afirma que, nesse caso, não eram ateístas ou céticos que encabeçavam o movimento, mas teólogos, que constatavam a morte de Deus, na cultura e na religião, e postulavam uma teologia desintoxicada das imagens e ideias de Deus provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional, que falasse de Deus em outros termos, de uma maneira nova, menos transcendente e mais imanente, e que pudesse aproximar esse Deus teísta - o Deus da providência, que de longe governa o mundo e dita como as coisas são e têm que ser aqui embaixo - das mentes e corações de homens e mulheres vivendo em uma situação secular. Não se tratava, obviamente, de mudar quem Deus é, mas de transfigurar sua imagem de modo que fizesse sentido a esse ser humano secular.

A secularização, como vimos, pressupõe (como um de seus sentidos possíveis) um mundo desencantado em relação a um mundo anterior, sustentado pelos valores da religião. Na segunda metade do século XX, após adventos como o nazismo, a II Guerra e o holocausto, a civilização europeia e ocidental vivia as consequências da tragédia que a acometeu; ruíram-se as esperanças e o solo moderno que pregavam o progresso, um futuro melhor para a humanidade, o controle do ser humano sobre a história. Entrava em colapso também outro modelo, o da cristandade - que começara com Constantino no século IV e tinha como ideal a construção de uma sociedade “à imagem e semelhança da igreja”, sendo que a fé cristã deveria “impregnar todos os aspectos da vida social, cultural e religiosa e inclusive política” (CAPUTO; VATTIMO, 2010, p. 21 - tradução minha). Esse ideal cai precisamente quando o modelo de civilização nele assentado mostra seu poder destrutivo. Essa postura crítica tem, como matriz, ainda o ceticismo moderno em relação à religião e particularmente o cristianismo. Em

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parte, é um resultado tardio desse ceticismo.Logo, acompanhou esse colapso o nascimento de uma nova

cultura, mais secular, que cada vez mais se recusava a prosseguir vivendo sob a égide do Deus da cristandade, abrindo precedentes para uma era “pós-religiosa” ou “pós-cristã”. Esses teólogos da morte de Deus consideravam o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer como uma espécie de profeta do movimento, já que, no final de sua vida, já na prisão da Gestapo (a polícia de Hitler), ele começou a renovar seu modo de pensar teológico e a esboçar ideias sobre um “cristianismo sem religião”. Esse esboço se deu através de cartas diversas, trocadas com seu amigo Eberhard Bethge, onde ele falava com sinceridade sobre como via a situação do cristianismo naquela época e depois foram reunidas no livro Resistência e submissão. Eric Metaxas (2011) afirma que uma das principais passagens sobre esse tema pode ser achada em uma carta de Bonhoeffer a Bethge em 30 de abril de 1944, e cita a passagem:

O que me vem incomodando sem cessar é a questão: o que o cristianismo realmente é, ou, na verdade, quem Cristo realmente é para nós hoje em dia. É findado o tempo em que todas as coisas podiam ser ditas por meio de palavras, quer teológicas, quer piedosas, e assim é o tempo da introspecção e da consciência - e, portanto, o tempo da religião em geral. Movemo-nos em direção a um tempo sem religião; hoje, da forma que são, as pessoas são simplesmente incapazes de ser religiosas. Mesmo os que se descrevem como “religiosos” não agem em conformidade com isso, e é de presumir, portanto, que a religião à qual se referem é algo bem diferente (BONHOEFFER apud. METAXAS, 2011, p. 501).

A crítica de Metaxas à interpretação dada pelos teólogos da morte de Deus para o “cristianismo sem religião” é que, “o que Bonhoeffer quis dizer com “religião” não era o cristianismo verdadeiro, mas o cristianismo imitativo e abreviado contra o qual passou a vida lutando” (Ibid., p. 502). De fato, em anotações posteriores, que datam de agosto de 1944, Bonhoeffer (2003, p. 500) sustentava a ideia de que a “expulsão de Deus para fora do mundo” seria fruto do próprio descrédito da religião, por viver sem Deus. Fala muito de Deus, mas vive sem Ele.

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Quando ele fala de “religião”, refere-se a um cristianismo de certa espécie, uma vez que, segundo ele, “o cristianismo surge do encontro com um ser humano concreto: Jesus”, mas ainda admite que essa é uma experiência de transcendência. A alternativa para viver esse encontro genuinamente, naquele contexto, seria (acreditava Bonhoeffer) viver um cristianismo sem religião, uma vez que a religião, deduz-se, ao invés de aproximar, afastava as pessoas de Cristo. Ele chegou a falar, ainda, de um “cristianismo inconsciente”, em que a mão esquerda não sabe o que a direita faz; ou seja, é um tipo de cristianismo que aparece pela atitude de vida e não pelo alarde das palavras e atos anunciados.

Na introdução do livro Despues de la muerte de Dios, de Caputo e Vattimo, Jeffrey Robbins sustenta que as palavras de Bonhoeffer, como uma voz profética, converteram-se num elo entre, por um lado, uma fé desencantada diante do horror provocado por sua própria impotência e fracasso moral no mundo e, por outro lado, uma sensibilidade cultural e religiosidade emergente forçada a recolher os destroços e imaginar um futuro alternativo, que se despertaria após a morte de Deus e o colapso da cristandade. Nesse sentido, “para Bonhoeffer, esse esforço para redimir o cristianismo das comodidades da religião era uma aposta arriscada, sem garantias, que cortaria a relação entre o chamado de Cristo aos discípulos e a associação do cristianismo com os centros de poder, e a identificação cultural com os adornos culturais da civilização” (ROBBINS, in CAPUTO; VATTIMO, 2010, p. 23, tradução minha).

A teologia da morte de Deus causou grande burburinho no meio teológico e algum impacto na cultura, bastante difícil de mensurar na verdade, mas até o final dos anos 1960 já havia perdido muito de seu vigor original, graças ao surgimento de novos movimentos de espiritualidade pós-modernas ao estilo “nova era”, mostrando que Deus até podia estar morto para alguns acadêmicos, teólogos e filósofos, mas dificilmente morreria na experiência religiosa de pessoas comuns - como vimos na unidade 13. Tanto que, em 1969, a Time, seguindo as tendências do momento (afinal, o objetivo é vender revista tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está voltando à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da capa de 1966 sobre a

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morte de Deus, mas que, naquele instante, ela se encontrava em declínio uma vez que os teólogos da morte de Deus caíram em silêncio, enquanto ministros de todas as denominações embarcavam em novas e dinâmicas maneiras, trazendo o divino de volta à existência. Se aqueles teólogos estavam silentes, afirmam Robbins e Crockett (2015, p. 2), o pastor e evangelista Billy Graham estava em alta e sua notoriedade na América do Norte e no mundo todo só crescia, ao passo que ele se tornou conselheiro espiritual de uma sucessão de presidentes por cerca de 50 anos, começando com Dwight Eisenhower até George W. Bush. A morte de Deus, nesse sentido, parece ter sido abafada por um “reavivamento” pelo qual passou o cristianismo, bem como com o surgimento de novas expressões de religiosidade pós-modernas. Mas isso não implica que esse movimento e sua filosofia tenham morrido. A seguir pretendo explicar por quê.

A morte de Deus em um sentido (nietzschiano) pós-moderno

Antes de entrar no assunto desse tópico propriamente, quero voltar um pouco à discussão sobre a secularização. A teologia da morte de Deus pretendia ser uma teologia secular, no sentido de que afirma este mundo em que o verbo se fez carne e nossa experiência humana comum, bem como fala de Deus em uma linguagem não-metafísica, ou seja, a partir de uma linguagem assumidamente humana e, por isso, limitada. Esse é um dos pressupostos defendidos por uma das expressões teológicas contemporâneas chamada de “teologia secular radical” ou simplesmente “teologia radical”, que retoma e amplia as noções defendidas pela teologia da morte de Deus, como vimos, e também pela teologia secular, que também surgiu nos anos 1960, de John A. T. Robinson e Harvey Cox. Segundo Mike Grimshaw (2015, p. 4), a teologia secular radical engloba tanto a ideia de um Deus que é totalmente ou “radicalmente outro”, quanto a compreensão de que esse Deus, que é Santo (único), também necessita de um “não santo ainda” (not yet holy), pois, como ele explica:

Sem um não santo ainda não há Deus, e uma linguagem que não possa falar do santo e do não santo ainda é a linguagem do

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ídolo. Essa linguagem do santo e do não santo ainda é, portanto, uma linguagem iconoclasta2, uma linguagem da criação que se posiciona contra o ídolo da natureza, uma linguagem do Verbo feito carne. Essa é a linguagem do sempre agora [ever now] contra o ídolo da história, uma linguagem que é a linguagem da ética universal, de uma fé e esperança “que consiste em mudar o mundo ao invés de mudar de mundo, desse mundo como arena da fé ao invés de objeto de seu desprezo (Ibid., p. 4, tradução minha).

A linguagem do sempre agora não se prende nem ao passado, nem ao futuro; é uma linguagem forjada a partir da vivência do presente e na busca de transformação desse mundo, de modo que o interesse na eternidade reside em que ela possa ser vivenciada, ainda que parcialmente, nesse sempre agora. Ou seja, para os teólogos radicais, ser “secular” e ser “cristão” (com ou sem religião) não são coisas separadas, assim como Deus e o mundo. Deus não é o mundo, mas se faz presente nele por meio de seu Espírito, e de seus filhos e filhas. Antes de tudo, “secular” (saeculum), como expressa Grimshaw (2015, p. 3), significa “uma experiência temporal da condição humana dentro de um determinado espaço”. Nesse contexto, para a teologia secular, a secularização representa não a expulsão de Deus e da experiência com o sagrado para fora do mundo, mas uma nova inclusão na qual a vida nesse mundo e a “vida com Deus” não circulam em vias opostas; e a morte de Deus - ou seja, a morte de uma ideia e de toda pretensão de falar de Deus em termos absolutos - é o que possibilita esse renovado reencontro. Logo, como explica ele:

A teologia secular, portanto, é a hermenêutica, em relação a uma tradição, dessa experiência temporal de ser gente no aqui e agora do tempo e do espaço. Preocupada com o aqui e agora, preocupada com uma experiência humana partilhada, o secular, com o seu devir cultural e societário ao qual chamamos secularização, é aquele que dá ao mundo sua dignidade intrínseca uma vez que ele emerge e é expresso por meio de um engajamento com esse mundo e com essa vida. Nisso ele é uma expressão de fé e esperança oposta a posição secularista

2 “Iconoclasta” aqui pode ser tomado mais ou menos no sentido literal, de quem rechaça a adoração de imagens, ícones ou símbolos do sagrado, como se fosse o próprio sagrado. O iconoclasta trava, assim, um combate contra a idolatria.

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niilista e negadora que tão frequentemente se opõe a qualquer expressão de fé e esperança nesse e desse mundo e nossa vida (Ibid., p. 3, tradução minha).

Assim, essa experiência da teologia radical é ao mesmo tempo secular e pós-secular. Secular no sentido de afirmação desse mundo e dessa vida; pós-secular, porque não aceita que a presente condição de secularização venha no sentido de banir as novas expressões de experiência com o sagrado ou de espiritualidade, palavra tão em voga. Esse movimento pós-secular, como destaca Caputo (2005, p. 81, tradução minha), “tem conseguido se autoconvencer de que Deus veio ao mundo para se colocar à parte do neoplatonismo cristão”(que abraçou, desde a antiguidade, a metafísica), e “permanece completamente estupefato pela constatação de que a metafísica medieval tem perdido sua força entre os pensadores contemporâneos”.

Em que sentido e como entra, para os pós-modernos, a questão da morte de Deus nessa discussão? Isso passa, em primeiro lugar, por entender que Deus é esse rejeitado por Nietzsche – e talvez seja interessante que você retorne à unidade 11 e à discussão sobre a crítica desse filósofo ao cristianismo para relembrar algumas coisas. Por hora, gostaria de citar uma passagem de seu livro A gaia ciência, que pode ser esclarecedora nesse momento e para fins dessa discussão. Leiamos Nietzsche:

Considerar a natureza como se fosse uma prova da bondade e da providência divinas; submeter a história ao crédito de uma razão divina, como testemunho constante de uma ordem moral do universo e de uma finalidade; interpretar nosso destino, como o fizeram durante tanto tempo os homens piedosos, vendo nele sempre a mão de Deus que dispensa e dispõe tudo em vista da salvação de nossa alma: aí estão as maneiras de pensar que hoje estão ultrapassadas, que têm contra elas a voz de nossa consciência que, no julgamento de toda consciência delicada, passam por inconvenientes, desonestas, por mentira, feminismo, covardia - e essa severidade, mais que qualquer outra coisa, faz de nós bons europeus, herdeiros da mais longa e da mais corajosa vitória sobre si mesma que a Europa já tenha conquistado (NIETZSCHE, 2008, p. 269, grifos meus).

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Aqui se pode notar um Nietzsche bastante orgulhoso do serviço que ele, como “bom europeu”, acreditava prestar à Europa - já no final do século XIX - ao constatar a “morte de Deus”. Considerava isso um ato de bravura e coragem que viria salvar a Europa da pusilanimidade dos “homens piedosos”. Então, voltemos à pergunta do começo: que Deus é esse que ele declara como “morto”? Pela primeira parte da passagem pode-se inferir que é ao “Deus moral”, aquele que servia como fundamento e justificativa para todas as ações dos religiosos, inclusive as más ações, e que, além de ter criado o universo, deveria levar o crédito também por colocar sua mão em todas as coisas e determinar o destino da humanidade. Na perspectiva de Harvey Cox (1970, p. 10), Nietzsche percebeu corretamente que um Deus vampiro que não permita ao homem ser um criador deve ser morto, e de bom grado realizou ele mesmo o deicídio”.

Fica claro aqui que Nietzsche não briga com Deus, mas briga com uma ideia de Deus sustentada pelo teísmo, ou seja, com uma teologia - até por isso ele se refere a “maneiras de pensar” ultrapassadas. Esse parece ser um mal congênito da teologia em tom metafísico (essencialista): fala-se de Deus tendo-se a ilusão de poder expressar o original. Quando fala de um atributo de Deus, por exemplo: “Ele é Todo-Poderoso”, é como se aquele atributo, isto é, aquela linguagem, nos conduzisse diretamente a essência do eterno. De igual modo, dizer “Deus”, “O Eterno”, “Majestoso” ou “Rei dos Reis” não é menos problemático, uma vez que o nome quer se remeter à “coisa em si”, e logo nos vemos face a face, de novo, com o problema da idolatria. Além de tudo, toda linguagem que tenta aprisionar, dar conta ou falar em termos absolutos sobre algo, é uma linguagem exclusiva: não admite outras interpretações, leituras ou experiências. Apenas aquela (a sua) expressa, de fato, quem Deus é, o que diz em sua Palavra, e qual é a sua vontade para a humanidade. Ao que parece, o que a assunção teológica da morte de Deus quer fazer é precisamente denunciar essa pretensiosidade de se estabelecer uma fala normativa e única sobre Deus, e liberar uma nova experiência e um novo falar, não em termos metafísicos, mas metafóricos.

Desse modo, a interpretação que filósofos contemporâneos dão a famosa declaração de Nietzsche difere bastante da do senso comum.

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Nietzsche, embora fosse ateu, não estaria declarando a “morte de Deus” (o eterno ser), afinal, para ele, Deus não existia, e esta seria outra forma de absolutização, o que em sua filosofia ele tanto condenava. Como explica Alessandro Rocha (2010, p. 52), “Nietzsche não declara a morte de Deus; ele constata sua morte”. A morte de Deus, nesse sentido, é a morte do fundamento, a morte da metafísica, a constatação de morte de tudo o que, sendo relativo, coloca-se diante de nós, ou pior ainda, por nós mesmos, na condição de absoluto: a lei, a física, a gramática, os dogmas, a verdade. Nesse aspecto pode-se notar uma aproximação muito clara entre a morte de Deus e o que, como vimos na unidade 12, Tillich chamou de “princípio protestante”.

De acordo com John Caputo (2005, p. 80, tradução minha), “a declaração da “morte de Deus” tem como finalidade decapitar tudo aquilo que se atreva a se colocar a si mesmo em Maiúsculas, o que incluía não apenas a fumaça e o incenso dos mistérios cristãos, como qualquer coisa que reivindique ser a Palavra Final”. E hoje, como ainda ressalta Caputo (Ibid., p. 94), o pluralismo religioso e a proliferação das mais estranhas e quase inomináveis crenças de todo tipo, não serve para rechaçar, mas para confirmar a “morte de Deus” no sentido nietzschiano. E como defende Rocha (2010, p. 150), “a constatação da morte de Deus”, do modo como vimos até aqui, pode ser “uma grande benção para a teologia e a espiritualidade, à medida que liberta seu discurso das amarras da metafísica platônica, que cristalizada, gestou tão somente uma discursividade excludente”.

Conclusão

Diante do exposto, é possível pensar que, talvez, a possibilidade que se apresenta para que a fé bíblica sobreviva no mundo de hoje é que “Deus”- ou um Deus de certo tipo - morra. Deus é mais efetivo quando seu nome é menos usado, e quando só o amor aparece – como Bonhoeffer bem depreendeu do “óbvio ululante” do Sermão do Monte ao propor um “cristianismo inconsciente”, em que se assume jubilosamente que não devemos alardear palavras ou feitos, de modo

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que é prudente que a mão esquerda não saiba ou pelo menos não se lembre do que a direita faz. Pois, no fim das contas, são os atos de fé, amor e esperança que nos unem e glorificam a Deus e não as palavras.

Por isso, minha sugestão final é que não nos apressemos tanto em brigar com a ideia da “morte de Deus”, tampouco em condenar impiedosamente a descrença e o abandono de Deus, ou em tentar refutar a todo custo o ateísmo. Hoje consinto que talvez a crença seja mais perigosa que a descrença. Pois é a crença em Deus, o uso do nome de Deus, os atos em nome de Deus, que muitas vezes dão razão de sobra para a descrença; de fato, constituem-se na pedra de toque do ateísmo. Podem inspirar fé, não nego isso - e aqui reside o valor da espiritualidade, da comunidade e da tradição -, mas também inspiram coisas muito ruins e destrutivas. Deus não precisa ser “salvo” do anticristo, do antideus ou do antirreino; na perspectiva da fé cristã, eles já estão derrotados. Deus precisa ser o radicalmente outro de Deus, ou melhor, de nós, que inventamos, emulamos, usamos, manipulamos e, como corolário, matamos Deus. E esse Deus que nós matamos precisa mesmo morrer e permanecer morto, pelo bem de Deus e pelo bem da humanidade.

O que muita gente não se dá conta é que Deus permanece mais vivo que nunca toda vez que “Deus”, a ideia, morre. Isso passa inclusive pela tese defendida por Gianni Vattimo (2004, p. 12), de que, à luz do que ele chama de situação pós-moderna, com a morte deste “Deus fundamento último”, torna-se possível reencontrar com mais vigor a fé cristã. Porque, segundo ele, “se Deus morreu, ou seja, se a filosofia tomou consciência de não poder postular, com absoluta certeza, um fundamento definitivo, então, também não existe mais a “necessidade”de um ateísmo filosófico”. Entretanto, como veremos, com ou sem necessidade, o ateísmo subsiste em diferentes formas hoje; não apenas em sua faceta cientificista e militante, mas tentando assumir uma forma de espiritualidade e de vida dignas da humanidade. É com esse ateísmo que gostaria de dialogar na próxima unidade.

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Referências bibliográficas

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Anotações__________________________________________

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 15

Novo Ateísmo

Introdução

O conceito de “Espiritualidade”, numa situação pós-moderna, torna-se um termo cada vez mais polissêmico, uma vez que abriga cada vez mais concepções ou práticas diferentes e que não se reduzem mais ao universo cristão ou religioso. Harvey Cox explica que, para ele, existem três razões pelas quais este termo passou a ser bastante usado: (a) porque ainda é uma forma de protesto, representando uma moção que cresce por todos os lugares contra as pressões e abusos da “religião”; (b) porque representa uma tentativa de muitos em dar voz à reverência e maravilhamento diante da complexidade da natureza; (c) porque reconhece as cada vez mais finas camadas de separação entre as diferentes tradições, e se fixa mais no presente e no futuro que no passado (COX, 2009, pp. 13-14).

Como consequência, a espiritualidade não só passa a designar um amplo espectro de práticas que denotam uma busca pelo transecdente, mas também foi absorvida por grupos de pessoas que não querem mais (ou apenas) uma espiritualidade da transcendência, mas também da imanência, uma espiritualidade que invade e é sorvida pelo secular, pelo natural e pelo comum da vida, que cruza as fronteiras entre o sagrado e o profano e tem a ver, sobretudo, com a busca humana pelo seu próprio florescimento e felicidade. Isto é o bastante para justificar o interesse neste tema pelo grupo que aqui chamarei de “novos ateus”1, e meu interesse no que eles têm dito a respeito de espiritualidade, e no que é possível aprender ou abstrair deste encontro

1 Rótulo que reconheço não ser sem problemas. Mas quando aqui uso o termo “novos” é apenas para diferenciá-los dos “velhos ateus”, cientificistas e militantes, que fazem do ateísmo uma quase religião.

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entre a espiritualidade cristã e a ateísta. Até bem pouco tempo, quando pensava em ateísmo

contemporâneo ou novo ateísmo, logo me vinha à mente a figura dos chamados ateus militantes que, à semelhança do que fazem os fundamentalistas no campo da religião (tentando provar que “os outros” estão errados e só eles possuem “a verdade”), têm o propósito de evidenciar ao mundo que a religião é um mal desnecessário, pois, além de os religiosos, sobretudo os cristãos, não terem conseguido provar que Deus existe, ainda têm causado enormes males à humanidade – vide as cruzadas, inquisição, guerras santas, perseguições religiosas e terrorismos. Estou pensando aqui na crítica de ateístas como Richard Dawkins, Lawrence Krauss, Sam Harris, Christopher Hitchens, dentre outros, que declaradamente não são objetos de minha preocupação aqui. O curioso é que Alister McGrath coloca esses nomes acima citados como representantes do “novo ateísmo”, percepção da qual não compartilho por várias razões, e a que mais nos interessa aqui foi apontada pelo próprio McGrath (2012, p. 169-174), quando ele diz que esses ateístas se anunciam como propositores de um “novo iluminismo”, marcado por um “humanismo secular”, e um tremendo apreço pelo modelo racional e científico, que, por sua vez, deram origem ao velho ateísmo moderno. Em suma, esse ateísmo militante e divulgador da ciência nada tem de “novo” no sentido de que repete e varia os tons da canção moderna.

Lendo, porém, filósofos também declaradamente ateus como André Comte-Sponville, Robert C. Solomon, Luc Ferry e Alain de Botton, percebi que o ateísmo numa situação “pós” (moderna, cristã, secular ou metafísica) tem assumido facetas mais interessantes, cujas marcas, para mim, são modéstia ou humildade, paixão pela vida, e uma profunda reverência aos mistérios da existência e do universo. Estas são distinções não apenas da filosofia ateísta destes autores (e aqui também não estou dizendo que eles se colocam como “pós-modernos”, na verdade alguns até a criticam), mas de

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sua espiritualidade. O que me tem despertado atenção nesses novos ateus é precisamente a combinação de sua descrença em Deus (ou no transcendente) e sua paixão ou interesse pela vida e espiritualidade humanas – e por isso escolhi dialogar com eles aqui.

Também interessam ao diálogo (pós-moderno) sobre religião porque creio que eles se encaixam mais ou menos na classificação de “neoateísmo” de Richard Rorty, pois a meu ver eles assumem que, como diz o autor, “nem aqueles que afirmam nem aqueles que negam a existência de Deus podem afirmar plausivelmente que eles possuem evidência para suas perspectivas” (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 51). Mais ainda, compreendem que aquelas pessoas desafinadas, como o próprio Rorty se assume, e que se acham “totalmente impossibilitadas de ter um interesse na questão de se Deus existe não têm nenhum direito de ser desdenhosas em relação às pessoas que acreditam apaixonadamente na sua existência ou em relação às pessoas que negam tal existência com paixão igual” (Ibid., p. 48). Concordando ou discordando, portanto, penso que com essa estirpe de ateístas é possível um diálogo, como pretendo mostrar a seguir.

Objetivos

1. Conhecer quem são esses “novos ateus” e o que pensam;

2. Avaliar sua percepção ateísta sobre espiritualidade e religião;

3. Buscar proximidades e conflitos entre essa perspectiva, de uma espiritualidade sem Deus, e a perspectiva cristã.

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Espiritualidade ateístaQue tipo de espiritualidade é esta que se delineia nos escritos

destes novos ateus? Para responder essa pergunta, gostaria de começar recorrendo a uma história pessoal. Há algum tempo, um amigo, residente na Finlândia, chamou-me pelo Skype para uma conversa. Queria ele falar sobre algumas de suas experiências com universitários naquele país, especialmente com colegas ateístas. Contou-me que passou a desenvolver amizade com eles, discutindo sobre tudo, inclusive (como não poderia deixar de ser) sobre a fé. Sendo cristão, esse meu amigo estava preocupado com como ele poderia argumentar sobre e dar razão à fé com estes que diziam não crer em Deus, e tinham grande resistência para com a religião – nenhuma novidade aqui, já que os países da Europa Ocidental se tornaram majoritariamente seculares2. A novidade, para mim na época, foi em perceber que aqueles ateístas com os quais meu amigo estava convivendo estavam cansados não apenas de religião, mas de toda forma de pensamento que se encerra em sistemas, inclusive a do próprio ateísmo militante ou pseudocientífico. Especialmente um deles, reclamava que a convivência com seus pares ateus se tornava cada vez mais insuportável, por se acharem donos da razão e desejarem provar que as teorias em que acreditavam eram a verdade; a ciência seria a chave, e não mais a religião (outra vez: nada de novo). E ele dizia: “é muito melhor conviver com você (esse meu amigo), porque concordamos em não concordar sobre a fé, mas pelo menos a gente se respeita e podemos ter um diálogo honesto, humano”.

Lembro, então, de ter dito a meu amigo: a resposta está aí, não precisamente na qualidade de seus argumentos, mas na lealdade de sua presença e amizade. Hoje já não faz tanto sentido entrar num 2 Muitas teorias sobre secularização já foram escritas, o que denota que este assunto é complexo e que não há unanimidade a respeito de como ele se define. Também trabalhei alguns sentidos para “o secular” na unidade passada. Nessa discussão, me atenho e adoto a noção defendida por Charles Taylor em sua soberba obra Uma era secular (2010). No sentido comumente aceito, secularidade, como diz Taylor (2010, p. 15), “consiste no abandono de convicções e práticas religiosas, em pessoas se afastando de Deus e não mais frequentando a igreja”. No entanto, o que ele define como “era secular” converge melhor para a condição desses novos ateus sobre o qual estou falando: “uma Era Secular é aquela na qual o eclipse de todas as metas que vão além do florescimento humano se torna concebível, ou melhor, enquadra-se na variedade de uma vida imaginável para multidões de pessoas. Essa é a ligação crucial entre a secularidade e um humanismo autossuficiente” (Ibid., p. 34). A ideia de “florescimento humano” me será muito cara na discussão que segue.

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debate com diferentes para que, no fim, o que tem o melhor argumento “vença”. Num espaço em que há respeito às diferenças, tudo é discutível e questionável, e nada pode ser desprezado; todo pensamento é provisório, nenhum fundamento é absoluto, e toda crença, relativa. E no fim, todos podem estar abertos ao mistério e a apreciar mais a vida (e os relacionamentos) do que nosso suposto saber sobre ela, sempre muito limitado.

O que me chama atenção na espiritualidade ateísta? Em primeiro lugar, é o reconhecimento da, e reverência à graça

que permeia a vida – que nós chamamos de graça divina, e eles de dom da natureza – e que não se confina em espaço, pensamento, doutrina ou religião alguma. Para mim, é inútil a discussão sobre a ideia de “graça comum” e “graça especial” nesse contexto. Acredito que existe a graça de Deus, ela permeia sua criação, move a vida para o bem e a transforma; acreditar que a graça nos salva ou mesmo afirmar dependência da graça não nos torna, a nós os cristãos, receptores exclusivos de todos os seus benefícios. Se Deus é, por natureza, gracioso, e se a existência divina, mesmo que misteriosa e discretamente, faz-se pulsar no universo em seus mais microscópicos detalhes, então não faz sentido a ideia de privatização da graça, tanto quanto a de privatização do Espírito. André Comte-Sponville e Robert Solomon, parecem entender isso, a seu modo, melhor que muitos cristãos. Não agradecem a Deus por essa graça obviamente, mas compreendem que, em relação aquilo que a natureza nos oferece de bom grado (a vida, a beleza, o bem, o prazer estético ou o sensual), dever-se-ia retribuir com gratidão – que, aliás, é uma atitude que o apóstolo Paulo nos instou abundantemente a cultivar, em relação a Deus e “por todas as coisas”, em quase todas as suas cartas.

Comte-Sponville em O espírito do ateísmo (2007) defende que crer ou não em Deus não altera a essência de nosso devir ou moral, tampouco o respeito à vida que precisamos nutrir. Segundo ele:

Quer você tenha ou não uma religião, isso não o dispensa de respeitar o outro, sua vida, sua liberdade, sua dignidade; isso não anula a superioridade do amor sobre o ódio, da generosidade sobre o egoísmo, da justiça sobre a injustiça. O

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fato de as religiões terem nos ajudado a compreender isso faz parte de sua contribuição histórica, que foi grande. Isso não significa que elas bastem para compreendê-lo ou detenham o monopólio desta compreensão. Bayle, desde o fim do século XVII, havia salientado vigorosamente: um ateu pode ser virtuoso, tanto quanto um crente pode não sê-lo (COMTE-SPONVILLE, 2007, p. 49).

Alain de Botton, em Religião para ateus (2010), demonstra uma intencionalidade ainda maior que a que se pode notar na fala de Comte-Sponville acima, ao não apenas reconhecer a contribuição das religiões à humanidade, mas também defender que deve ser possível que um ateu resoluto mantenha-se firme em suas convicções e, ao mesmo tempo, “considere as religiões úteis, interessantes e reconfortantes – e ter alguma curiosidade quanto às possibilidades de trazer algumas de suas reflexões e práticas para o campo secular” (BOTTON, 2011, p. 12). Ora, é precisamente isso que torna esses ateus diferentes de muitos do moderno ateísmo e até mesmo de muitos do moderno cristianismo: a honestidade de reconhecer que, primeiro (e como já dito), o fato de não acreditarem na existência de Deus não lhes dá o direito ou capacidade nem de provar que Deus não existe, tampouco de achincalhar a fé de quem nele crê; segundo, o fato de afirmarem com todas as forças a secularidade não significa ignorar, mas respeitar as conquistas que religiões como o cristianismo promoveram no mundo, não enfatizando apenas, como fazem os ateus militantes, os evidentes “males” que também provocaram. E mais: querem afirmar sua espiritualidade a despeito de sua irreligião, pois, para eles (e para mim também), espiritualidade e religião não são a mesma coisa, tampouco religiosidade e religião.

Embora, normalmente, sejam termos que se confundam, eles são sim diferentes. Religião tem a ver com a busca pelo fundamento último, como disse Paul Tillich, mas normalmente se retém em uma busca organizada, institucionalizada e dogmatizada. E ainda que o “sentimento religioso” ou a religiosidade possam estar presentes dentro das religiões, não se confinam nelas. Nesse sentido, uma pessoa pode ser não religiosa ou mesmo ateísta e, ainda assim, não matar a religiosidade, que pode ser descrita como esse anseio inerente ao humano pelo transcendente e/

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ou, no caso dos ateus, esse assombro e reverência diante do mistério da vida, que conflui para o desejo de que o espírito humano se desenvolva e floresça cada vez mais, com ou sem Deus. Nisso se resume a espiritualidade ateísta. Por isso, confessam com Hermann Hesse (1971, p. 103) – e como eu também hoje confesso –, que: “A religiosidade é-me sempre simpática, enquanto não suporto as teologias autoritárias com a reivindicação que cada uma faz de ser a única válida”.

Ora, se esses novos ateus são capazes de reconhecer tanto que sua visão não é a única válida, quanto aceitar ou admitir a visão do outro, do religioso, por que não podemos fazer o mesmo? Quer dizer: se um ateu é aberto o bastante para tentar reler princípios religiosos aplicando-os à sua espiritualidade naturalista ou “sem Deus”, por que não podemos ser abertos e maduros o bastante para enriquecer nossa percepção (cristã) de espiritualidade desde um olhar para o que estão dizendo, ainda que esse dizer também seja uma releitura e/ou aprofundamento do cristianismo? O que nos impede? A ortodoxia, o conservadorismo, nossos venerados “princípios”? Falo, porém, do ponto de vista de uma fé cada vez mais livre desses impedimentos para ser mais livre. Pois uma fé incapaz de dialogar é também incapaz de inteligência e, como corolário, de maturidade. Essa espiritualidade ateísta me recorda que Deus não é exclusivo de ninguém, nem obriga ninguém à fé sob a pena de arder no fogo do inferno, ou de viver eternamente sem bondade, sem beleza e sem vida.

A fé que cega, que transforma cristãos em paladinos da verdade, que desqualifica a crença (ou a descrença) do outro, que faz acepção entre “espirituais” e “não espirituais”, porque supostamente não pode juntar-se “à roda dos escarnecedores” ou misturar-se com os incautos e incrédulos, definitivamente não é a minha fé; tornei-me ateu em relação ao Deus que ela prega. Em contrapartida, desejo uma fé que não exclua, segregue ou mate; que não precise aniquilar o outro para se afirmar; que não sacrifique a caridade no altar da verdade teológica. Antes, entenda que a caridade é tudo o que nos resta quando aceitamos o destino do crucificado, isto é, na medida em que ela não pode ser detida, nem está a nosso dispor como ferramenta a ser aplicada onde, em quem ou como quisermos.

Como veremos melhor na última unidade, ou a verdade liberta

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ou não é a verdade; ou é inapreensível, ou é melhor que nem exista, pois se (pretensiosamente) pode ser apreendida, então ela exclui. Ora, se a verdade não pode ser uma patente, então ela deixa de ser um elemento divisor, e passa a ser canal de vida e liberdade. A “minha verdade” pode não ser a “sua verdade” e, certamente, nenhuma delas é “A Verdade”. Não desisto da verdade, especialmente quando reconheço não possuí-la. Mas, enquanto houver irmãos humanos que, mesmo negando, tenham essa pretensão, o melhor talvez seja deixá-la fora de questão. Pois, se a verdade “é”, então ela não pode ser uma questão. Transforma-se em caridade, e isso deve bastar para todo ser humano de bem.

Em segundo lugar, o que me chama atenção na espiritualidade ateísta é seu apelo ou desejo pelo natural, pelo humano, pela vida. Por que isso me chama atenção especificamente, já que não há muito de original no apelo em si? Ora, porque me parece que a espiritualidade cristã ainda vai demorar muito para se livrar de seu apego excessivo ao transcendente e, como corolário, de certo desprezo para com o imanente. Como disse na unidade 11, referindo-me à crítica de Nietzsche de que o cristianismo é um platonismo para o povo, não penso que esta alegação seja justa para com o escopo bíblico da tradição judaico-cristã, cuja premissa básica é a de que a fé implica em uma opção incondicional pela vida e o reflexo disso no dia a dia, na vida concreta de pessoas concretas. No entanto, é manifesto que não são muitos os crentes que a compreendem assim. Faça uma pesquisa com seus amigos cristãos, evangélicos ou católicos. Pergunte o que eles entendem por “espiritualidade”, e provavelmente você constatará que não estou delirando. Então, é sintomático que isso apareça precisamente do lado ateísta, pois esses novos ateus almejam uma espiritualidade naturalista, enraizada no mundo, desembocando no cotidiano, uma vez que, como declara Robert Solomon (2003, p. 39, grifo no original), para eles “o mundo espiritual não está em parte alguma senão aqui, seja o que for que esse ‘aqui’ designe”.

Desse modo, sua definição de espiritualidade requer reflexão, reflexividade e paixão pelo aqui da vida – e por isso é possível ver a conexão desses pensadores com os da teologia radical, sobre a qual vimos na unidade passada –, de modo que ele resume a espiritualidade

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naturalizada numa única expressão, ela é: “o amor reflexivo à vida” (Ibid., p. 33). Há não apenas uma afirmação, mas também um protesto nessa declaração. Primeiro em dizer que espiritualidade não é ausência da reflexividade e do pensar, mas, pelo contrário, tanto atrai quanto se alimenta de uma postura reflexiva no enfrentamento aos problemas existenciais, morais e sociais que o ser humano enfrenta dentro de um determinado contexto. O protesto também se revela pela insistência na afirmação da vida, de uma espiritualidade da vida, o que não me parece uma postura gratuita, mas se origina também da falha da espiritualidade cristã ocidental, mais fundada na negação.

O esforço cristão, porém, deve consistir em reafirmar a fusão entre Deus e a vida. Consinto com Solomon que a espiritualidade seja este amor reflexivo, mas adiciono desde um ponto de vista cristão que é a Deus e à vida, e quanto mais a Deus, mais à vida e vice-versa. “Se nossa esperança em Cristo se resume apenas a esta vida”, dizia Paulo, “somos os mais infelizes dos homens”. Acrescento, contudo, que se essa esperança não nos remete, e se essa eternidade não toca, também a essa vida e mexem com o modo como se vive, se ama, se alegra, se entristece, se ganha ou se perde, em suma, em como cada um é e se torna gente, então elas não valem de muita coisa; mais que isso, não passam de distrações metafísicas. Deixe-me dar um exemplo do que quero dizer com isso.

A narrativa de Lucas, no capítulo 10, conta que certa vez Jesus foi indagado por um expert na lei sobre o que ele deveria fazer para herdar a vida eterna. Sabedor de quem se tratava, Jesus perguntou: “O que está escrito na lei?”. No que o homem respondeu: “Ame a Deus de todo coração, com toda a sua alma, com toda a sua força e com todo o seu entendimento”, e acrescentou, “e ame a teu próximo como a ti mesmo”. Foi uma resposta correta do ponto de vista teológico, então Jesus disse para que aquele homem passasse a agir daquela forma, que assim ele viveria eternamente. No entanto, o líder religioso lançou a pergunta central ao diálogo: “Quem é o meu próximo?”. Então Jesus respondeu primeiramente com uma história, conhecida de todos nós, a do “bom samaritano”. Sobre um homem que viajava de Jerusalém para Jericó e foi repentinamente atacado por um bando de ladrões, que bateram nele e o deixou quase morto à beira da estrada. Passaram

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por ele dois homens bastante religiosos, primeiro um sacerdote, depois um levita, que, embora o tenham visto, atravessaram ao outro lado da estrada e foram embora sem prestar nenhum socorro. Mas um samaritano, também passando por ali, viu aquele homem quase morto e se compadeceu dele. Depois de fazer curativo nas feridas, colocou-o sobre o jumento em que viajava levando-o até uma pensão. Chegando lá deu duas moedas de prata ao dono e pediu que cuidasse dele, e que pagaria mais na volta se fosse preciso. Ao final da história, Jesus perguntou: “Então, que te parece? Quem foi o próximo daquele homem”. E o líder religioso respondeu: “Aquele que tratou com ele com bondade”. No que Jesus concluiu: “Pois então vá e faça você o mesmo” (Lc 10.25-37).

Esse texto é um exemplo clássico de como certas perspectivas sobre Deus podem nos afastar de Deus, e também nos distanciar do próximo. Muitas vezes a religião pode nos manter tempo demais ocupados com a observância da lei ou com foco demais no transcendente, e assim ambos se tornam formas de distração, como lembra Solomon (2003, p. 286) e, eu acrescentaria, de uma dupla distração: primeiro, de nós mesmos, de nossa inadequação natural ao cumprimento de toda a lei (como analisou Paulo em Romanos, capítulo 7) e, como consequência, nos tornamos hipócritas, pois falamos de um Deus de amor, justiça e paz, mas seguimos na esteira do Satanás divisor; segundo, de nosso próximo caído nas esquinas da vida. A grande sacada de Jesus foi ter usado exatamente um samaritano como exemplo de bondade – o samaritano que era execrado pelo judeu por ser de uma raça impura e pagã. Isso demonstra que ser religioso, do modo como eram o levita e o sacerdote, não faz de alguém, necessariamente, próximo de outro, tampouco agente do amor de Deus no mundo.

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Conclusão

Por fim, para responder à pergunta do começo, se é possível uma espiritualidade sem Deus, antes é preciso também perguntar: que Deus? Se for o Deus do levita e do sacerdote, posso dizer que também estou fora. Mas essa é uma questão difícil e nos conduz ao coração de uma questão já amplamente aceita pelos filósofos e outros estudiosos da religião, mas não muito pelos teólogos cristãos: a de que, quando falamos de Deus, inevitavelmente construímos uma imagem, uma ideia ou conceito não à sua semelhança, mas à nossa. E isso, como vimos no início desse curso, tem um nome: antropomorfismo, ou a atribuição de características humanas à deuses, ou mesmo à natureza e seus componentes. Não se pode atribuir isso (apenas) ao antropocentrismo, em que o homem é “a medida de todas as coisas”; antes, eu diria, é um produto inevitável da tentativa de falar qualquer coisa sobre o ser de Deus (dentre elas, o próprio entendimento de que ele é “um ser”), em descobrir como ele é ou dizer como ele age. Nesse sentido, a “morte de Deus” parece ser inevitável.

Mesmo com a revelação – elemento crucial às religiões monoteístas, que se baseiam em escrituras sagradas – o que temos é, do ponto de vista da fé, a palavra de Deus intermediada pelo pensamento, a experiência e as palavras, cultural e historicamente situadas, de seres humanos como nós. Não deixa de ser antropomorfismo, por isso a leitura da bíblia requer do povo de Deus discernimento e não apenas uma leitura e reprodução cegas e literais. Toda vez que alguém diz “Deus”, precisamos ficar com as “orelhas em pé” e tentar discernir que Deus é esse que está sendo recriado no discurso, mesmo daquelas pessoas que na igreja consideramos escolhidas e “ungidas” para isso. É preciso, nesse sentido, prestar atenção à crítica feita por Comte-Sponville (2007, p. 103), de que “todo antropomorfismo atinente ao absoluto é ingênuo e ridículo. O silêncio, diante do indizível, valeria mais”.

Como já disse e reitero, o antropomorfismo é inevitável em qualquer “fazer” teológico, e ele pode, sim, ser ingênuo e ridículo, especialmente quando confunde o absoluto da mensagem com o

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relativo do mensageiro e iguala aquilo que não pode, nem deve, ser igualado: a revelação com a religião, e o Espírito com a espiritualidade. Quando digo que pode ser assim, também quero dizer que não precisa ser assim. O discurso cristão ou religioso, a despeito de que maneira apareça e quando se faz necessário, deve ser o mais modesto possível; quando fala de Deus, deve fugir da tentação de falar por Deus, e jamais tentar torná-lo equivalente à mensagem. Quanto mais fiel alguém for ao evangelho, mais procurará resguardá-lo dos aprisionamentos de sua linguagem. Logo, Comte-Sponville está, a meu ver, parcialmente certo: na espiritualidade, o silêncio (e as ações concretas) valem mais.

Entretanto, mesmo que possa haver espiritualidade sem religião, não acredito que possa haver espiritualidade sem Deus. E aqui o que distancia um cristão, por exemplo, desses novos ateus é ainda a fé, e com isso não quero dizer que eles não têm espiritualidade, eu acredito que têm; mas o que eles chamam de apenas humano e apenas natural, o cristão chama de naturalmente e humanamente divino, pois acredita que mesmo onde “Deus” (sabe-se lá qual) é evitado, Ele, o alfa e ômega, permanece presente por meio de seu Espírito, inspirando justiça, vida e amor onde e em quem Ele bem quer, nos templos, nas ruas, nas esquinas, em meio a uma tempestade, uma cerimônia de casamento ou um tiroteio na favela, em uma religiosa caridosa, em uma prostituta, em um homossexual ou no samaritano viajante. A religião e a fé podem ser resistíveis, mas o Espírito do Deus eterno não paralisa diante da resistência.

Por fim, como é razoavelmente perceptível, a proposta desse novo ateísmo é, em parte, a realização (talvez inconsciente e apenas sintomática) do ideário dos velhos e novos teólogos da morte de Deus, com a diferença de que os primeiros desejam fazer isso sem precisar recorrer a qualquer perspectiva sobre o divino, e os segundos pretendiam (e pretendem) fazê-lo desde uma perspectiva renovada do divino. Por essa razão é que o filósofo, também ateísta, Michel Onfray chamou seus colegas, mais particularmente Comte-Sponville e Ferry, de “ateístas transcendentais” ou “ateístas cristãos”. No caso desses ateístas mais tranquilos, “a negação de Deus não é um fim, mas um meio para visar uma ética pós-cristã ou francamente laica”. Caracteriza-se, como prossegue ele, por uma negação de Deus “que afirma ao mesmo

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tempo a excelência dos valores cristãos e o caráter insuperável da moral evangélica” (ONFRAY, 2014, p. 42). E o que distingue o ateu cristão do cristão crente é “a escrita imanente do mundo”, isto é, que pretensamente exclui a transcendência de seu discurso. Entretanto, como expressa Onfray (Ibid., p. 43, grifos no original):

(...) o humanismo transcendental de Luc Ferry exposto em L’Homme-Dieu [O homem-Deus], a ética cristã e as grandes virtudes de André Comte-Sponville movem-se num terreno comum: a caridade, a temperança, a compaixão, a misericórdia, a humildade, mas também o amor ao próximo e o perdão das ofensas, a outra face estendida quando se é golpeado uma vez, o desinteresse pelos bens deste mundo, a ascese ética que recusa o poder, as honras, as riquezas como tantos outros valores que desviam da sabedoria verdadeira. Essas são as opções teoricamente professadas...

Como antídoto contra o ateísmo cristão, Onfray (Ibid., p. 44), propõe um ateísmo ateu, e, segundo ele, verdadeiramente pós-moderno, na medida em que “abole a referência teológica, mas também científica, para construir uma moral. Nem Deus, nem a Ciência, nem O Céu inteligível nem o arranjo de proposições matemáticas, nem Tomás de Aquino nem Auguste Comte ou Marx”. E no lugar deles coloca, “a Filosofia, a Razão” (com letras maiúsculas mesmo), e também a utilidade, o pragmatismo, o hedonismo individual e social, e luta do homem pelo homem (Ibid.). De novo: não seria isso, no fim das contas, a substituição dos ídolos da transcendência por ídolos da imanência?

No atual arranjo (pós-moderno ou não) de coisas, as observações de Onfray, a meu ver, colocam em cheque tanto a possibilidade de uma “espiritualidade sem Deus”, quanto a si mesmo e seu ateísmo, que se pretende “puramente ateu”. Só acreditarei num ateísmo desse tipo quando o próprio discurso ateísta, militante ou revisionista, tiver desaparecido do mapa, como o pragmatismo de Rorty (2006) parece propor. O efeito purificador, secular ou religioso, soa sempre mais pretensioso que real.

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Referências bibliográficas

BOTTON, Alain de. Religião para ateus. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2011.CAPUTO, John D. Sobre la religión. Madri: Tecnos, 2005.COMTE-SPONVILLE, André. O espírito do ateísmo. Introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2007. COX, Harvey. The future of faith. New York, NY: HarperOne, 2009. FERRY, Luc. O homem-Deus. Ou o sentido da vida. São Paulo: Difel, 2010.HESSE, Hermann. Minha fé. 4ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1971. MCGRATH, Alister. Teologia pura e simples. O lugar da mente na vida cristã. Viçosa, MG: Ultimato, 2012.ONFRAY, Michel. Tratado de ateologia. Física da metafísica. São Paulo: Martins Fontes, 2014.SOLOMON, Robert C. Espiritualidade para céticos. Paixão, verdade cósmica e racionalidade no século XXI. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. TAYLOR, Charles. Uma era secular. São Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010. VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004.

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Filosofia da ReligiãoUnidade - 16

Verdade

Introdução

Às vezes parece muito difícil, senão impossível para alguns, dizer “adeus” a certas coisas da vida: a pessoas, lugares, experiências (do presente ou do passado), objetos, valores, convicções - muito mais ainda às pretensões sobre as quais tanto tenho falado nas últimas unidades. Mas a certas coisas, como conceitos que por tanto tempo perseguimos e formamos, é preciso aprender a dizer adeus (mesmo que num aceno de distanciamento), talvez em nome de benefícios maiores. Esse é o convite de Gianni Vattimo (meu principal interlocutor nessa última unidade): para que abandonemos nossa pretensão à verdade, a fim de que rumemos para um mundo diferente, um mundo em que a verdade dá lugar à caridade: na vida, na religião, na filosofia, na política e assim por diante.

A que “verdade” Vattimo se refere e por que é preciso dizer “adeus” a ela? E por que ou em que medida ela seria oposta à caridade? É o que gostaria de discutir na presente e breve análise, a partir de uma das mais recentes obras do autor. Aqui procurarei dar continuidade a algumas das reflexões já expostas nessa última parte de nosso curso, além de, ao final, tentar pensar em implicações práticas sobre o tipo de igreja que pode ser imaginada e talhada para essa realidade - pós-metafísica e pós-moderna, como tenho dito. Isso não significa, como veremos, que toda as igrejas precisem ser como essa igreja que aqui será imaginada, uma vez que essa igreja está sendo imaginada em relação a uma fatia, a um retalho ou pedaço da cultura contemporânea - urbana, de classe média, pós-religiosa e pós-moderna. Nem tampouco que ela não possa ser imaginada de outras

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maneiras; portanto, que meu exercício de imaginação possa instigar o seu.

Objetivos

1. Reavaliar o discurso sobre a “verdade” no cristianismo;

2. Analisar a proposta de Vattimo de um “adeus à verdade” em seu sentido metafísico;

3. Imaginar uma igreja que possa responder aos apelos de uma camada de pessoas que se encontra fora do horizonte da religião institucionalizada.

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O pensamento de VattimoNo pensamento filosófico de Vattimo, destaca-se sua predileção

pelos filósofos alemães, em especial Nietzsche e Heidegger, que o suportam no postulado de uma filosofia pós-metafísica e niilista; a primeira, parte do anúncio do “fim da metafísica” e, como corolário, da descrença na possibilidade de uma descrição objetiva da realidade em si, crendo apenas a existência de leituras várias e a produção de um conhecimento participativo, envolvido e não neutro, que resiste em apelar para um fundamento universal ou aos “grandes relatos”; já o niilismo, para Vattimo (2004, p. 132), “é a perda da crença em uma verdade objetiva em favor de uma perspectiva que concebe a verdade como efeito de poder”, isto é, como efeito de acordos comunitários localizados. Essa forma de contrapoder intelectual anuncia, também, uma espécie de elogio à fraqueza como condição para a pluralidade e o diálogo.

Vattimo expressa isso em um de seus mais conhecidos conceitos, que ele chama de “pensamento fraco” (pensiero debole). “Fraco”, na concepção de Vattimo (2004, p. 30), “é o reconhecimento nietzschiano de que não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham o estado de coisas”. Embora tenha trabalhado essa noção mais especificamente no livro que leva o mesmo nome (Il pensiero debole, 1983), ela irá reaparecer de forma expressa e diluída ao longo de toda a sua obra posterior, e não muito diferente no livro que abaixo será referendado.

E para falar dele propriamente, gostaria de esclarecer algumas coisas: (a) a obra em análise é a tradução espanhola do original em italiano: Addio alla Verità (2009); (b) ainda não temos (até agora pelo menos) a obra em português, por isso da escolha dessa edição e, logo, todas as citações literais da obra são traduções minhas do espanhol para o português. Dito isto, concentremo-nos em sua exposição.

O adeus à VerdadeAdios a la verdad é uma obra que reúne reflexões que são bem

peculiares a anteriores escritos de Vattimo: (a) a ideia de que a pretensão

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à verdade é funesta numa era pós-metafísica (ou pós-moderna), em que presumidamente se reconhece que não temos acesso à verdade, pois não vemos o todo, a essência, a coisa em si; (b) o interesse em perceber como essa questão adentra o campo da política, propondo, assim, uma fenomenologia (ou ontologia) da atualidade, tendo como foco particular a democracia; (c) o aporte à religião (em particular, a cristã), a partir de um horizonte de um cristianismo secular, e que se quer “não religioso”; (d) a emancipação da filosofia do pensamento moderno “forte” para a construção de um “pensamento fraco”, por assim dizer, aberto, franqueado, reconhecidamente limitado.

Vattimo explora a relação entre a filosofia e a política contemporânea preconizando uma “política sem verdade”. Para ele, o mito da verdade objetiva, isto é, da verdade como correspondência entre uma representação da realidade e a realidade mesma, acaba sendo não só inimigo de um saber científico possível, como também da própria democracia, não apenas como conceito, mas, sobretudo, como prática. Assim, o “adeus à verdade” como correspondência é o início e a base da democracia, pois onde há democracia não pode haver uma classe de detentores da “verdade verdadeira”, que exerçam o poder de forma direta ou indireta. Esse adeus ocorre, assim, a partir do reconhecimento de que a verdade não se encontra “lá fora”, mas é fruto da interpretação e construção, individual e comunitária, pelo consenso e o respeito à liberdade de cada um. Logo, o que temos não é a verdade, mas são as verdades particulares, isto é, que são não universalmente, mas localmente válidas e sempre passíveis de revisão. Na medida em que se reconhece isso, afirma ele, “muitos autoritarismos são desmascarados, enquanto pretensões de imposição de comportamentos não partilhados, em nome de alguma lei da natureza, essência do homem, tradição intocável, revelação divina” (VATTIMO, 2010, p. 27).

Essa versão de uma liberdade democrática pode nos conduzir, como corolário, a um impasse ético, que Vattimo resume na seguinte pergunta: como justificar, do ponto de vista hermenêutico, o sincero escândalo que nos provocam tantos políticos que mentem? Ou seja, no “adeus à verdade”, como reconhecer e denunciar a mentira nociva ao bem individual ou comum? Coadunar-se-á com a descarada mentira?

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Ou, indo adiante, sem o parâmetro da verdade, como é possível se definir e diferenciar coisas tais como “mentira” e “bem comum”? Se a verdade absoluta é “mais um perigo que um valor”, que valores ainda podem ser defendidos que não resultem no mesmo perigo ora rechaçado - o de absolutizar aquilo que é apenas particular?

A resposta de Vattimo parece ser uma solução aberta e provisória ao problema: se é passível que tal conflito não pode ser vencido pela pretensão de se chegar à verdade das coisas, uma vez que o resultado sempre será diferente da verdade mesma, resulta que não mais se busque a verdade universal, mas a verdade comunitariamente válida ao grupo numa situação histórica dada.

No adeus à verdade suspende-se a pretensão a uma validade universal de pressupostos, e se dá boas-vindas a “verdades particulares” com validade relativa e temporária. Assim, não se trata de um total abandono da tarefa de distinguir práticas ou discursos que sejam verdadeiros ou falsos, mas de reconhecer que “a diferença entre verdadeiro e falso é sempre uma diferença que surge de interpretações mais ou menos aceitáveis e compartilhadas”, como produto não do autoritarismo da visão de uns sobre outros, mas de consensos solidariamente possíveis. Não que o papel do diálogo seja, necessariamente, o de produzir consenso, nem que o do intelectual não possa ser o de persuadir seus pares de sua posição. A diferença, para Vattimo, está na palavra interpretação, de modo que: “A filosofia não é expressão da época, é uma interpretação que com certeza se esforça por ser persuasiva, mas que reconhece sua própria contingência, liberdade e riscos” (Ibid., p. 61).

O Deus relativista e a caridadeUma ideia central e, certamente, polêmica abre a discussão que

se destina agora ao campo da religião: somente um Deus relativista pode nos salvar! Mas o que viria a ser isto? Um Deus “relativista”, para Vattimo, seria um sinônimo para um Deus kenótico, isto é, um Deus que se esvazia de si mesmo, e que se encarna nesse ponto da história, para nós que vivemos no mundo da “globalização realizada”, como o nomeia. Tal concepção reafirma o decreto da “morte de Deus” de

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Nietzsche (do Deus da metafísica, fundamento moral universal), e liberta o falar de Deus a partir do que esse nome significa para nós, que vivemos dentro de uma situação histórica dada. E isto Vattimo considera uma “libertação” proveniente da secularização: não somente para o filósofo ou para a sociedade democrática, mas para a igreja, que faz parte e está no meio disso tudo. Até porque, para Vattimo, ainda hoje a igreja cristã continua dando seu testemunho no mundo de modo normativo e absoluto, como sendo aquela autorizada a falar a verdade sobre Deus e a desvendar a natureza da vida mesma, e a arbitrar sobre ela. Nas palavras dele:

Diante da consolidação de fenômenos da secularização, a Igreja, não somente na Itália (que é nosso ponto de vista específico), apresenta, cada vez mais e com maior pressão, pretensões de reconhecimento de sua própria autoridade, e o faz em nome do fato de que a ela, a partir da própria revelação cristã, tem sido confiada a tarefa de defender a autêntica “natureza” do homem e de suas instituições civis. (...) Para a Igreja, a sociedade ideal segue sendo aquela em que Deus é o “fundamento” da convivência humana e em que a Igreja é reconhecida como aquela que fala em seu nome (Ibid., p. 65, 66).

Para Vattimo, a superstição mais grave e perigosa de todas consiste em conceber a fé como “conhecimento objetivo”, pois é isso que indispõe uma fé (no caso, a cristã) contra outras com violência metafísica (totalitária?). Além disso, faz com que a Igreja, em nome da natureza das coisas ou do homem, queira que toda a sociedade seja regida pelos princípios que ela professa, atentando contra princípios de liberdade como os do laicismo, da tolerância e da caridade1 (Ibid., p. 70). Como contraponto a esta percepção é que Vattimo se apropria da ideia cristã da kenosis (cf. Paulo em Filipenses 2.5-11), para dizer que esta se coloca como destino da metafísica nos dias de hoje, ou seja, em seu esvaziamento. Segundo ele, este esvaziamento pressupõe o rompimento da igualação entre Deus e a ordem do mundo real, ou da pretensão de adequar os pensamentos de Deus aos nossos pensamentos (sobre Deus, a natureza, o ser humano). Assim, ao invés 1 Sobre o assunto, quer sugerir a leitura de meu artigo na revista Estudos Históricos, chamado “Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade” (2015, pp. 189-209).

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do “Deus metafísico”, propõe-se a ideia de um “Deus relativista” ou “débil”, que já não pode assegurar, por vias objetivas ou propositivas, uma verdade universal ou mesmo não admitir e reconhecer uma diversidade doutrinária e/ou religiosa.

Antes que alguém venha a se revoltar contra essa última ideia, é preciso esclarecer duas coisas. Primeiro, Vattimo não está propondo que Deus (o Eterno) seja relativizado, mas que as ideias (que temos de Deus e da verdade) passem pelo mesmo processo de esvaziamento que vimos na kenosis do Filho, segundo Paulo. Segundo, o absoluto é o que está alheio a tudo: é o Totalmente Outro, o Eterno, o Incondicional. Não há porque se precaver tanto contra a relativização em questão, pois ela não tem em vista o absoluto em si, uma vez que esse não é passível de ser relativizado, tampouco de ser mais ou supra-absolutizado - ficar repetido, em alto e bom som, a Deus que Ele é absoluto (ou todo-poderoso) é tão inútil quanto tentar explicar a um peixe que este sabe nadar. Somente o relativo pode (e deve) ser relativizado, sobretudo quando nutre pretensões ao status de absoluto, ou ilusões de equivalência. Nomear ou conceituar um aspecto do Reino de Deus, por exemplo, e então dizer “isso É o Reino”, é o mesmo que pretensamente conferir a mesma natureza (absoluta) do reino. Por isso, Jesus ao se referir ao reino nas parábolas de Mateus, capítulo 13, nunca disse o que o reino é, e sim com o que se assemelha: “O reino de Deus é semelhante a ...” um homem que semeou a boa semente no campo (v. 24); um grão de mostarda, que um homem tomou e plantou em seu campo (v. 31); um fermento que uma mulher tomou e escondeu em três medidas de farinha (v. 33); um tesouro escondido no campo (v. 44); um que negocia e procura boas pérolas (v. 45); uma rede, que lançada no mar colhe peixes de toda espécie (v. 47).

Dessa maneira, como defende Alessandro Rocha (2010, p. 155), “nenhuma fala pode pretender uma identificação com a realidade que não seja aquela que circunda quem a propõe. As narrativas estão condenadas aos limites daqueles que as pronunciam. Nenhuma força divina potencializa um discurso conferindo-lhe alcance universal e uma decorrente univocidade”.

A kenosis e o pensamento fraco conduzem também a outra dimensão importante na filosofia de Vattimo que é a da caridade.

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Segundo ele afirma, a revelação judaico-cristã consiste na afirmação de que Deus é amor e não violência, e de que este é um anúncio “escandaloso”, fora das possibilidades de conhecimento (e aplicabilidade) humanas, que somente poderiam vir de um “Deus encarnado” (VATTIMO, 2010, p. 99). Assim, Vattimo nega-se a admitir que o pensamento fraco se resuma a uma espécie de pregação da ideia de tolerância apenas; o que ele tem em mente é um ideal de desenvolvimento da sociedade humana, a “redução progressiva de toda rigidez que nos opõe uns aos outros”, rumo à caridade. Pois a tolerância, por si só, concebe e convive bem com a existência de muros e barreiras entre as pessoas e suas crenças; já a caridade, segundo Vattimo, seria um “projeto de futuro”, que culmina com a “progressiva eliminação dos muros: muro de Berlim, muro das leis naturais que são propostas contra a liberdade dos indivíduos, muro da lei de mercado”, e assim por diante (Ibid., p. 93-94).

A pergunta que eu faria a Vattimo, nesse sentido, é se a caridade pode ser concebida mesmo como um “projeto”? E, se como projeto, ela não correria o risco de se tornar apenas mais uma bandeira? Nesse sentido, a proposta de caridade, segundo o evangelho, tem a ver com ser livre e deixar o outro ser livre da maneira como ele/a é, sem forçar a barra ou a barreira “entre nós”. Se romper barreiras será mais por iniciativa de quem é compungido pela caridade do que propriamente de quem empunha sua bandeira ou dirige o projeto - que, para mim, não é um projeto, mas um modo de viver diluído nas ações cotidianas de quem o vive (ou tenta viver). Em suma, meu receio é que, assim posta, a caridade se torne outra forma travestida de proselitismo, o que não me parece combinar em nada com a caridade cristã - tampouco com o todo da leitura de Vattimo a respeito dela, tirando essa colocação em específico.

O fim da filosofia?Por fim, Vattimo apresenta a visão do que para ele seria o “final

da filosofia”. Ele inicia com alguns pensamentos sobre ética na era do “adeus” à metafísica ou à “verdade como correspondência” Segundo o autor, a pergunta sobre a ética envolve o aspecto do dever - O que devo fazer? Que, aliás, é a segunda pergunta de Kant em sua Crítica à

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Razão Pura (as outras eram: Que posso saber? Que me é dado esperar?) “que, por sua vez, remete a um princípio racional do qual descende a resposta sobre como se deve agir. Um dos interlocutores de Vattimo, aqui, é precisamente Kant, uma vez que ele tanto faz referência a uma “razão prática”, quanto parece apontar para a obsolescência de imperativos categóricos (morais), sejam eles quais forem. A visão de Vattimo - que faz coro com a de outros pós-modernistas - é a de que, em uma sociedade secular, não há mais lugar para uma ética fundada em princípios estabelecidos, reconhecidos e intuídos universalmente. Ele reconhece, porém, que não há grande novidade nisso, uma vez que as chamadas “escolas da suspeita” (nietzschiana, marxiana e freudiana) já empreenderam há mais tempo uma tentativa desmistificação da moral e metafísica tradicionais, embora, penso eu, Nietzsche tenha sido o mais bem-sucedido em fazê-lo, pois rompe totalmente com esse modelo.

A filosofia que emerge, então, dessa reafirmação do pluralismo cultural pós-moderno, é uma filosofia carente de princípios últimos ou, por assim dizer, pós-fundacionalista. Mas, se ela é niilista, débil de fundamentos e de uma origem, como pode falar racionalmente e/ou não descambar para um irracionalismo puro e simples do tipo “vale-tudo”? Na perspectiva de nosso autor, ela o faz a partir de “eleições responsáveis” ou pontos de partida explícitos (não neutros, nem universalizantes), que surgem de “imperativos” ditados não pelo olho de Deus subjacente a toda moral, mas pelo contexto e suas situações específicas. Vattimo parece propor, assim, a troca de uma ética universal (com imperativos categóricos) por uma ética situacional (com imperativos contextuais, forjados a partir de uma pertença comunitária). A isto ele chama de ética da finitude: “aquela que tenta se manter fiel ao descobrimento da situação, sempre insuperavelmente finita, da própria procedência, sem esquecer-se das implicações pluralistas de tal descobrimento” (Ibid., p. 110).

Se se mantém o valor da procedência, isto significa que a herança cultural ou a tradição não têm que ser desprezadas. O que muda é o critério elegido para o acordo sobre o que “vale” e o que “não vale” da herança, que é o do diálogo ou encontro entre éticas finitas que, reconhecendo-se como tais, não cederão facilmente à tentação de

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imposição da verdade de uma sobre a(s) outra(s). Ou seja, numa ética da finitude o outro não mais se vê coagido ao silêncio em nome de princípios, mas respeitado em seu direito de fala/vida. “Respeito ao outro”, como define Vattimo (Ibid., p. 113), “é o reconhecimento da finitude que caracteriza a ambos e que exclui toda superação definitiva da opacidade que cada um leva consigo”. Desta feita, uma ética da finitude não abdica da racionalidade, mas reconhece a precariedade e provisoriedade dos saberes e posições dela provenientes. Isso ajuda a manter longe a ilusão de ser ver do lado da verdade e da pretensão de impô-la ao resto do mundo.

Conclusão

Encaminhando-me para o final, e falando como cristão, é preciso lembrar que os discípulos que “são”, isto é, que possuem alguma sensibilidade à verdade revelada em Cristo e identificada com o próprio, conforme a linguagem joanina no diálogo entre Jesus e Pilatos (João 19), não têm a necessidade de provar objetivamente a ninguém que são ou que estão do lado da verdade, tampouco defender a identificação de sua fé proposicional com a verdade em si ou defini-la em termos rigorosos, até porque esse é um empreendimento que o próprio Cristo se recusou a realizar. Como disse Vattimo em outro lugar,

A verdade que, segundo Jesus, nos tornará livres não é a verdade objetiva das ciências e nem mesmo a verdade da teologia (...). A única verdade que as Escrituras nos revelam, aquela que não pode, no curso do tempo, sofrer nenhuma desmistificação - visto que não é um enunciado experimental, lógico, metafísico, mas um apelo prático - é a verdade do amor, da caritas (RORTY; VATTIMO, 2006, p. 71).

Relendo as palavras de Jesus neste texto de João, vejo que o reino da verdade não se impõe nem se conforma ao modo dos demais reinos deste mundo, por meio do poder político, bélico ou simbólico, afinal, não há igualação possível entre o que ele (Jesus) entende por reino e as

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“práticas discursivas” (Foucault) ora existentes. Pelo contrário, ele fala de um reino não violento, mas de paz, solidariedade, justiça e amor. Enfim, é um reino em que a verdade é triplamente esvaziada e/ou sacrificada: na encarnação, na humilhação, quando emudece diante de seus detratores, e na cruz, onde, do modo mais nu e cru, ela se converte ou se plasma em caridade.

Em outro contexto e em outras palavras, ao falar sobre a discussão ou diálogo entre pessoas com convicções e opiniões díspares, o padre Michel Quoist parece indicar uma compreensão muito parecida ao sustentar que:

Qualquer pessoa pode mudar de opinião, e algumas vezes bastante rapidamente. Mas, raramente acontece que alguém mude de opinião pelos argumentos de um outro que decidiu convencê-lo. Assim, se, por uma verdadeira preocupação de difundir a verdade você resolveu fazer alguém evoluir, não diga: vou demonstrar-lhe que está errado, mas, vou ajudá-lo a descobrir a verdade por si mesmo. Muitas vezes o outro estaria pronto para aceitar “a” verdade e não a “sua” verdade. Por que você monopoliza a verdade? Ela existe independentemente de você. Em noventa por cento dos casos, quando você a açambarca, você a turva. Se você quiser ser bem sucedido em suas discussões, esqueça-se e respeite o outro. Não seja o rico que dá uma esmola ao pobre, mas o amigo que corre em direção ao amigo para se unir a ele, e com ele descobrir a verdade. Trata-se de uma verdade religiosa? Então nunca se esqueça que o cristianismo não se demonstra por meio de raciocínios ou de ideias [sic.], pois antes de ser uma doutrina, o cristianismo é uma pessoa. A verdade é Cristo. E não se discute Cristo, acolhe-se Cristo. “Discutir religião” é, antes de tudo, dar testemunho e ajudar o outro a encontrar Cristo (QUOIST, 1978, p. 163, grifos meus).

Em função da consciência muito clara disso que, há 55 anos, Michel Quoist entendeu e expôs, é que ler autores como Vattimo, hoje, é importante para estudantes de teologia interessados em pensar uma teologia em tom pós-metafísico, pois esse autor extrapola os limites disciplinares da filosofia, ao evocar questões como a do diálogo inter-religioso, a laicidade e o exercício de uma fé pública em uma sociedade secular; porque é um livro escrito por um filósofo cristão niilista, mas

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que acredita que o cristianismo ainda tem algum contributo a fazer neste mundo, desde que não tenha receio de renovar o pensamento e a mentalidade, coisa quase sempre necessária dada a provisoriedade de toda forma de pensamento. Indico-o, sobretudo, porque entendo que precisamos rediscutir e repensar nossa relação com a questão da verdade, não para dizer que ela não nos é cara, mas para, quem sabe, constatar que ela precisa continuar nos sendo cara de um modo diferente, um modo não-metafísico, arbitrário ou autoritário. Essa avaliação é praticamente impossível sem um reencontro sincero com a mensagem do evangelho, coisa que Vattimo tem feito a seu modo.

Por fim, gostaria de retomar algumas questões que trabalhei na unidade 13, como prometido. A questão anteriormente posta tem a ver com que tipo de igreja podemos imaginar para essa realidade pós-moderna ou pós-metafísica que venho explorando a partir da filosofia da religião. Sobre isso gostaria de discorrer um pouco a seguir - extrapolando, também eu, os limites disciplinares da filosofia da religião.

Começo sugerindo que essa igreja (essa que aqui imagino), por assim dizer, é (ou deveria ser) uma metáfora viva do amor de Deus ao mundo. Como metáfora, ela jamais deveria pretender falar de Deus em termos absolutos ou compreensivos, mas apenas por meio de aproximações e possibilidades; como metáfora, seu chamado é para anunciar as boas novas do reino ao mundo, podendo ser ouvida e aceita não pelo caminho do poder (físico ou simbólico), mas do esvaziamento do poder e da vontade, pela humildade e integridade (isto é, através do exemplo de vida e humanidade, tal como se pode ver e aprender em Jesus Cristo). É uma igreja que atrai mais pela vivência quase muda e marginal e menos pelas palavras mágicas e de poder ditas diante dos holofotes e das mídias.

Dessa forma, a vocação primária da igreja faz com que ela não esteja nesse mundo para estabelecer coisas - como que monumentos só dela, porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual deus) “, mas para peregrinar na liberdade do Espírito, seguindo seus rastros e obedecendo unicamente a um Senhor.

Que outras facetas teria essa igreja que os/as convido aqui a imaginar? Aqui vão algumas, como um resumo estendido do que disse até aqui:

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1. É uma igreja voltada para pessoas, e não negócios, programas, agendas, questões.

2. É uma igreja contracultural, no sentido de ser irreverente aos meandros de sucesso e relevância que respondem mais aos apelos do status quo, que à sua vocação radicada no evangelho do nosso Senhor.

3. É a igreja da dispersão, dos peregrinos, e não somente dos e para os convertidos; uma igreja que se reúne senão para se fortalecer na e para a dispersão.

4. É uma igreja que não quer ter a última palavra sobre nada, mas se coloca como uma parceira possível na busca por respostas aos problemas e às perguntas diversas da humanidade, como alguém que sonha, imagina e anseia ao lado das pessoas, e não acima delas.

5. É uma igreja que revê sua teologia do sofrimento e abraça o trágico não apenas como posição eventual, mas como atitude de fé, de empatia para com a vida, de resistência às forças de morte, sem renega-las ou sublimá-las em si mesma; afinal, onde houver trigo sempre haverá joio. Adotar o trágico significa afirmar a vida com tudo o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos a fim de que mais humanos nos tornemos, como humano foi e é o Senhor Jesus. Só pode abraçar e acolher aquele que padece quem não tem pavor do padecer. A dor e a cura, nesse sentido, não são inimigas, mas parceiras de jornada.

6. É uma igreja que não mete sua cumbuca em assuntos de Estado a não ser como cidadã, como lutadora pelos direitos, sobretudo, dos menos assistidos e dos oprimidos na esfera do político: os pobres, os negros, as mulheres, os homossexuais, os indígenas e assim por diante.

7. É uma igreja que fala em nome de Jesus, mas que não ousa falar por ele; prefere que as pessoas enxerguem a Jesus mais no espelho de suas práticas, e menos no poder persuasivo das palavras, a exemplo de Paulo, que disse: “Minha mensagem e minha pregação não consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1Co 2.4-5).

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8. Finalmente, é uma igreja que retoma sua vocação protestante, e assim não teme relativizar estruturas, poder e hierarquia por um único absoluto: a Mensagem. Como eu digo em meu mais recente livro (MENEZES, 2015, p. 70), quanto mais fiel sou ao evangelho e à verdade revelada na pessoa de Jesus, mais procurarei resguardá-los do aprisionamento de minha própria linguagem e experiências. Há somente um evangelho! E este não é meu, nem da igreja, nem de Paulo, Barnabé ou Pedro: mas de Jesus.

Referências bibliográficas

MENEZES, Jonathan. Espiritualidade em transformação: sentido, humanidade e vida. Rio de Janeiro: Novos Diálogos, 2015.________. Da tolerância à caridade: sobre religião, laicidade e pluralismo na atualidade. In: Estudos Históricos, vol. 28, n° 55, Jan.-Jun. 2015, pp. 189-209. QUOIST, Michel. Construir o homem e o mundo. São Paulo: Duas Cidades, 1978. ROCHA, Alessandro. Uma introdução à filosofia da religião. São Paulo: Vida, 2010.RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. O futuro da religião: solidariedade, caridade e ironia. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006.VATTIMO, Gianni. Adios a la verdad. Barcelona: Editorial Gedisa, 2010._______. Depois da cristandade: por um cristianismo não religioso. São Paulo: Record, 2004. _______. Creer que se cree. Buenos Aires: Editorial Paidós, 1996.