4723163 teologia da missao integral

Upload: magno-pires

Post on 04-Apr-2018

222 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    1/30

    TEOLOGIA PROTESTANTE LATINO-AMERICANO: UM OLHAR A PARTIRDA TEOLOGIA DE MISSO INTEGRAL.

    I INTRODUO.

    Para que o mundo e, em especial a Amrica Latina, oua a voz de Deus . Nisto se

    resume a tarefa da Teologia de Misso Integral: fazer a voz de Deus ser ouvida em sua

    integralidade, e, pela integralidade dos homens e mulheres, que em nosso continente to

    marcado pelas investidas do mal presentes nas estruturas de opresso, vivem suas vidas.

    Para o pleno cumprimento desta misso a Teologia de Misso Integral tem refletido eproduzido a mais trs dcadas. sobre esta reflexo e produo que queremos nos

    debruar, no intuito de compreender este teologia a partir de sua metodologia, at o

    especfico de sua prxis.

    Para tanto, propomos uma abordagem metafrica que nos ir ajudar ao longo de todo o

    texto. Queremos ir pintando um quadro ao longo do texto para melhor visualizarmos essa

    escola da teologia protestante latino-americana.

    A moldura de nosso quadro o chamado esprito de Lausanne, que marca os limites em

    onde se do suas reflexes teolgicas. Dentro desta moldura pintado um horizonte, que

    corresponde ao movimento evangelical. Este movimento, na Amrica Latina, tem seus

    contornos delineados pelo esprito de Lausanne.

    Alm do horizonte h tambm uma perspectiva apresentado. H um olhar em perspectiva

    que olha o horizonte a partir de um lugar concreto. Esta perspectiva propriamente a

    Teologia de Misso Integral como especfico teolgico.

    Esta perspectiva, por sua vez, olha a partir de um lugar especfico as personagens que mais

    se destacam na pintura. Estas so as seguintes: Esprito, Homem e Palavra. Juntas, as

    personagens compem o ncleo da misso que pretende ser anunciada e vivida

    integralmente.

    1

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    2/30

    II. O Esprito de Lausanne como Matriz de uma Teologia protestante Latino-americana.

    Em 1974 reuniram-se em Lausanne, Sua, cerca de 4000 lderes e evangelistas de igrejas

    de dezenas de pases para orar, estudar, debater e planejar em torno do propsito comum: a

    evangelizao mundial. O lema do encontro foi inspirado no profeta Isaas, conclamando

    que o mundo oua a voz de Deus1.

    O Esprito do Senhor Deus est sobre mim, porque o Senhor me ungiu, para pregar boas novas aosquebrantados, enviou-me para curar os quebrantados de corao, a proclamar libertao aos cativos,e a pr em liberdade os algemados; a apregoar o ano aceitvel do Senhor e o dia da vingana donosso Deus (Is 61. 1-2).

    O mundo a que se refere o congresso de Lausanne o mundo marcado pelo individualismo

    acentuado pelo capitalista, onde reina uma espcie de darwinismo social, uma seleo de

    espcies baseada na fora violenta do capital. Samuel Escobar2 exemplifica bem esse

    contexto do congresso de Lausanne, sobretudo no que diz respeito realidade da Amrica

    Latina.

    Imagine toda a populao do mundo condensada numa aldeia de 100 habitantes. Desse nmero, 67seriam pobres. Os 33 restantes, em grau variado, seriam ricos. De toda a populao, somente 7

    seriam norte-americanos. Os outros 93 ficariam vendo os 7 norte-americanos gastarem a metade detodo dinheiro do mundo, comerem um stimo de todo o alimento e usarem metade de todas as

    banheiras existentes. Esses 7 teriam dez vezes mais mdicos do que os outros 93. Nesse nterim,continuariam enriquecendo cada vez mais, enquanto os 93 continuariam empobrecendo.3

    Dirigindo a palavra a certa cpula norte-americana4 que havia participado da convocao

    do congresso, e que o estava financiando, ESCOBAR diz:

    1 Cf VVAA.A Misso da Igreja no Mundo de Hoje: Principais Palestras do Congresso Internacional deEvangelizao mundial Realizado em Lausanne, Sua. P. 7-9.2

    Samuel Escobar Peruano, missilogo batista, foi fundador da Fraternidade Teolgica Latino-americana.Foi membro efetivo do congresso de Lausanne, dando importante contribuio, inclusive em sua palestra AEvangelizao e a Busca de Liberdade, de Justia e de Realizao do Homem.3 Ibidem. P.173.4 O congresso de Lausanne tinha na sua convocao uma face bastante conservadora. A evangelizao que se

    pensava propor era de corte convarsionista, onde clara a descontinuidade indivduo/sociedade. Esta faceconversionista estava estampada nas inmeras agncias de misso norte-americanas de corte fundamentalista,que subsidiavam a realizao do evento. Houve, porm, uma guinada na matriz teolgica orientadora docongresso; a participao de alguns telogos latino-americanos foi fundamental neste sentido. A presenalatino-americana em Lausanne, coloca em pauta a necessria reflexo sobre as estruturas sociais e oscontextos culturais dos povos onde a misso se realiza. Essa influncia se mostra em diversos momentos docongresso: na sua composio, eram inmeros os participantes vindos da Amrica Latina e Caribe; nas

    palestras apresentadas (quem sabe a participao mais intensa se encontre a) destacando-se duas: A

    evangelizao e o mundo de Ren Padilla, e A evangelizao e a busca de liberdade, de justia e derealizao pelo homem de Samuel Escobar; na composio de vrios documentos de desdobramento dasdiscusses e, na redao do pacto final, chamado Pacto de Lausanne.

    2

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    3/30

    Como parte dos 7 ricos, estamos procurando alcanar para Cristo o maior nmero possvel dentre os93. Falamos acerca de Jesus e eles nos vem jogar fora mais comida do que jamais esperariamconsumir. Estamos ocupados construindo belas igrejas, enquanto eles pedincham procura deabrigo para suas famlias. Guardamos dinheiro no banco, mas eles no tm o necessrio nem paracomprar comida para os seus filhos. Dizemos-lhes que o Mestre era servo de homens, o salvador quedisps de tudo o que era seu em nosso favor, e agora ordena que faamos o mesmo por ele... Somos

    a minoria rica do mundo. Podemos at esquecer isso, ou achar que o assunto no tem importncia.Mas fica a pergunta: e os 93 ? Podero esquec-lo tambm?5

    O mundo onde muitos no tm sequer o privilgio de serem explorados pelo sistema

    capitalista (que ironia), o mesmo que precisa ouvir a voz de Deus, que deve ouvir a

    Palavra de Deus, o verbo de Deus. Como anunciar a Palavra de Deus num mundo to

    injusto? Este o questionamento principal de Lausanne para a Igreja contempornea. Esse

    questionamento ganha ainda mais urgncia na Igreja que est no terceiro mundo e,

    especialmente na Amrica Latina.

    Como falar de justia a um povo injustiado? Como falar de igualdade onde reina a

    desigualdade? Como anunciar o Reino de Deus num mundo que no reconhece na Igreja

    seu representante? Em outras palavras, se a Igreja proclama que o reino j est presente

    entre ns, ela deve transparecer isso, sendo sacramento desse Reino. A Igreja, na

    perspectiva de Lausanne, sobretudo a partir do olhar Latino-americano exposto por Samuel

    Escobar, deve redefinir sua Misso a partir de Jesus que viveu sua vida e ministrio entre

    os homens e mulheres como apontado pelo Evangelho de Joo...Assim como o Pai me

    enviou, eu tambm vos envio a vs6.

    Comentando a aplicao deste versculo, nos estudos bblicos de Berlim, disse o pastor John Stott:Atrevo-me a garantir que embora estas palavras representem a forma mais simples da GrandeComisso, elas so ao mesmo tempo as que exprimem maior profundidade, as que nos interpelammais poderosamente e tambm, por desgraa, as mais esquecidas. Nestas palavras Jesus nos deu,no somente um mandato de evangelizar (o Pai me enviou, Eu vos envio), seno tambm uma

    norma de evangelizao (assim como o Pai me enviou, Eu tambm vos envio). A misso da Igrejano mundo ser como Cristo em tudo. Jesus foi o primeiro missionrio e toda a nossa misso derivadele.7

    A no observao deste ... assim como o Pai me enviou... se constitui no maior

    equvoco que a Igreja pode cometer acerca de sua misso. como ficar dando avisos de

    que a praia perigosa para algum que est se afogando. No nos atiramos gua para

    salv-lo. Espanta-nos ter que nos molhar8. Ir ao mundo assim como Jesus veio, implica5 Ibidem. P. 174.

    6 Jo 20.21.7ESCOBAR, Samuel.A Servio do Reino de Deus .p.24.8Ibidem.

    3

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    4/30

    encarnar-se, tomar sua forma, identificar-se com suas dores e, sobretudo, assumir a misso

    de dignificar e humanizar os homens e mulheres, principalmente os que mais carecem.

    Mas, a todos quantos receberem, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus9.

    Embora Lausanne tenha sido marcado por inmeras tenses, sobretudo em funo da

    presena subsidiria de grupos mais conservadores (que salientavam o conversionismo e o

    anti-ecumenismo como a forma mais adequada de ao da igreja), a tnica principal do

    congresso foi determinada por uma viso que passou a identificar sua abordagem

    teolgica, e o esprito de Lausanne, a saber: a viso integral acerca da misso da igreja. A

    teologia de Lausanne ento conhecida como teologia da Misso Integral. O principal

    lema desta teologia o evangelho todo, para todo o homem e o homem todo.

    Esse esprito de Lausanne a matriz da teologia de misso integral, que por sua vez

    influenciaria o pensamento teolgico latino-americano. Porm, antes de falarmos de sua

    recepo em nosso continente, cabe ainda mencionar esse espritopresente no documento

    final do congresso, chamadoPacto de Lausanne.

    Faremos aqui um recorte em parte dos artigos do pacto onde julgamos estar mais explicito

    o chamado esprito de Lausanne10, bem como a virada teolgica, e, a contribuio dos

    telogos latino-americanos11.

    Introduo.Estamos profundamente tocados pelo que Deus vem fazendo em nossos dias, movidos aoarrependimento por nossos fracassos e desafiados pela tarefa inacabada da evangelizao.1.Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamos em nossa misso,em razo de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isolados demasiadamente.4.A nossa presena crist no mundo indispensvel evangelizao, e o mesmo se d com aquele tipo dedilogo cujo propsito ouvir com sensibilidade, a fim de compreender.5.Afirmamos que Deus o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilhar o seu interesse

    pela justia e pela conciliao em toda a sociedade humana, e pela libertao dos homens de todo tipo de

    opresso. Porque a humanidade foi feita imagem de Deus, toda pessoa, sem distino de raa, religio, cor,cultura, classe social, sexo ou idade possui uma dignidade intrnseca em razo da qual se deve ser respeitadae servida, e no explorada. Aqui tambm nos arrependemos de nossa negligncia e de termos algumas vezesconsiderado a evangelizao e a atividade social mutuamente exclusivas (...) afirmamos que a evangelizaoe o envolvimento scio-poltico so ambos parte do nosso dever cristo (...) A mensagem da salvao implicatambm uma mensagem de juzo sobre toda forma de alienao, de opresso e de discriminao, e nodevemos ter medo de denunciar o mal e a injustia onde quer que existam. Quando as pessoas recebemCristo, nascem de novo em seu reino e devem procurar no s evidenciar, mas tambm divulgar a retido do

    9 Jo.1.1210 Mais tarde, principalmente no quarto captulo, trabalharemos alguns destes artigos do Pacto de Lausanne

    juntamente com a carta final do Clade II.11 Para maiores informaes sobre o movimento de Lausanne, visiteLausanne Committee for World

    Evangelization:http://lausanne.org.Os nmeros identificadores dos pargrafos indicam os nmeros dos respectivos artigos do Pacto. Grifonosso.

    4

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    5/30

    reino em meio a um mundo injusto. A salvao que alegamos possuir deve estar nos transformando natotalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A f sem obras morta.6.Afirmamos que Cristo envia o seu povo redimido ao mundo assim como o Pai o enviou, e que isso requeruma penetrao de igual modo profunda e sacrificial. Precisamos deixar os nossos guetos eclesisticos e

    penetrar na sociedade no-crist (...) A igreja ocupa o ponto central do propsito divino para com o mundo, e o agente que ele promoveu para difundir o evangelho (...) A igreja antes a comunidade do povo de Deus

    do que uma instituio, e no pode ser identificada com qualquer cultura em particular, nem com qualquersistema social ou poltico, nem com ideologias humanas.7.Afirmamos que propsito de Deus haver na igreja uma unidade visvel de pensamento quanto verdade.A evangelizao tambm nos convoca unidade, porque o ser um s corpo refora o nosso testemunho,assim como a nossa desunio enfraquece o nosso evangelho de reconciliao (...) Confessamos que o nossotestemunho, algumas vezes, tem sido manchado por pecaminoso individualismo e desnecessria duplicaode esforo.8. (...) Deve ser permanente o processo de reavaliao da nossa responsabilidade e atuao missionria.Assim haver um crescente esforo conjugado pelas igrejas, o que revelar com maior clareza o carteruniversal da igreja de Cristo.9. (...) A reduo de missionrios estrangeiros e de dinheiro num pas evangelizado algumas vezes talvez sejanecessria para facilitar o crescimento da igreja nacional em autonomia, e para liberar recursos para reasainda no evangelizadas (...). Todos ns estamos chocados com a pobreza de milhes de pessoas, e

    conturbados pelas injustias que a provocam. Aqueles dentre ns que vivem em meio opulncia aceitamcomo obrigao sua desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir mais generosamente tanto paraaliviar os necessitados como para a evangelizao deles.10. (...) As misses, muitas vezes tm exportado, juntamente com o evangelho, uma cultura estranha, e asigrejas, por vezes, tm ficado submissas aos ditames de uma determinada cultura, em vez de s Escrituras.11.Confessamos que s vezes temos nos empenhado em conseguir o crescimento numrico da igreja emdetrimento do espiritual, divorciando a evangelizao da edificao dos crentes.12. (...) Por outro lado, por vezes tem acontecido que, na nsia de conseguir resultados para o evangelho,temos comprometido a nossa mensagem, temos manipulado os nossos ouvintes com tcnicas de presso, etemos estado excessivamente preocupados com as estatsticas, e at mesmo utilizando-as de forma desonesta.A igreja tem que estar no mundo; o mundo no tem que estar na igreja.13. (...) Ao mesmo tempo, recusamo-nos a ser intimidados por sua situao. Com a ajuda de Deus, nstambm procuraremos nos opor a toda injustia e permanecer fiis ao evangelho, seja a que custo for. No

    nos esqueamos de que Jesus nos previniu de que a perseguio inevitvel.14. Cremos no poder do Esprito Santo. O pai enviou o seu Esprito para dar testemunho do seu Filho (...) Demais a mais, o Esprito Santo um missionrio, de maneira que a evangelizao deve surgir espontaneamentenuma igreja cheia do Esprito (....) a fim de que o seu fruto todo aparea em todo o seu povo, e que todos osseus dons enriqueam o corpo de Cristo. S ento a igreja inteira se tornar um instrumento adequado emSuas mos, para que toda a terra oua a Sua voz.

    III Misso Integral como Especfico Teolgico do Evangelicalismo Latino-americano.

    Logo aps ter assentado a moldura que enquadra a Teologia de Misso Integral (TMI)12: o

    esprito de Lausanne, pretendemos expor outros trs elementos que compem nossa

    reflexo: o evangelicalismo, a TMI, e a temtica teolgica nuclear da teologia latino-

    12 A partir daqui usaremos a sigla TMI todas as vezes que nos referirmos Teologia de Misso Integral. Ascitaes feitas TMI anteriormente no corresponderam a essa normatizao porque a TMI ainda no era osujeito da reflexo.

    5

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    6/30

    americana que nos propomos a trabalhar. Os dois primeiros faremos neste captulo, e o

    terceiro tomar a ateno do prximo captulo.

    No sentido de ilustrar esta proposio diramos que o esprito de Lausanne a moldura

    deste quadro teolgico, o evangelicalismo o horizonte, a TMI a perspectiva e, a temtica

    teolgica nuclear (Esprito+homem+palavra=Misso) o sujeito mesmo da pintura. Como

    no caso da obra de arte, estes elementos se integram compondo uma viso do todo. Num

    simples olhar eles no so distintos, porm, numa viso mais detida possvel perceber

    suas especificidades. O que pretendemos, portanto, , a partir das especificidades, perceber

    o todo.

    Antes, porm, de forma introdutria, queremos situar a recepo do congresso de

    Lausanne, e seu esprito, em nosso continente. Apontar algumas caractersticas do evento

    que fez sua recepo (CLADE II), pelo menos do ponto de vista formal, e, transcrever a

    carta de intenes que marcou a perspectiva majoritria do congresso, bem como da TMI.

    3.1 Recepo de Lausanne na Amrica Latina.

    No dia 31 de Outubro de 1979, dia em se comemora a Reforma Protestante do sculo XVI,

    eram dadas as palavras de abertura do Segundo Congresso Latino-Americano de

    Evangelizao (CLADE II). Samuel Escobar13 dirigiu as palavras de abertura a um

    auditrio com delegaes de vinte e um pases da Amrica Latina e Caribe, somando ao

    todo 220 participantes entre os quais vinte e duas mulheres14.

    Como aponta Luiz Longuini Neto, o mtodo de participao adotado para o CLADE II

    proporcionou um amplo aprofundamento na realidade latino-americana:

    O Clade II assumiu como ponto de partida, um perodo preparatrio de leituras e uma anlisedetalhada da realidade latino-americana de cada regio, realidade esta que foi analisada basicamentenos aspectos poltico, socioeconmico, cultural, religioso, moral e espiritual... Cada regio teveliberdade de apresentar e organizar seu relatrio conforme a necessidade, assim os enfoques forammultidisciplinares15.

    13 Fra o mesmo Samuel Escobar que contribuiu para a mudana de rumo do congresso de Lausanne em1974. Sua participao no Clade II reflete a importncia de seu pensamento na teologia evangelical latino-

    americana.14Cf. LONGUINI NETO, Luiz. O Novo Rosto da Misso .p.185.15 Ibidem.

    6

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    7/30

    Outro destaque que merece ser feito quanto a abrangncia do CLADE II. Os temas

    tratados tocaram nas diversas temticas especificamente importantes para a realidade

    latino-americana tais como: indgenas (com nfase nos povos quchuas); mundo rural e

    campons; mundo urbano; famlia; crianas; polticos; e grupos marginalizados

    (refugiados, presos, drogados, prostituio)16.

    O CLADE II deixou uma marca simblica muito importante quando optou por no

    produzir nenhum documento com pretenses totalizadoras e oniabragentes, mas uma

    pequena e rica carta de intenes. Por outro lado foram produzidos diversos textos de

    apoio e reflexo para subsidiar a recepo do congresso nos diversos pases participantes.

    O objetivo principal, no que tange ao mtodo de trabalho, no era impor um pacote concebido emterra estranha, ao contrrio, incentivou a participao e a reflexo de todos. Esse processo corajoso,criativo, dialgico e testemunhal ficou claro na variada, riqussima e relevante produo de todos osgrupos de trabalho17.

    A riqueza do CLADE II pode ser vislumbrada na carta final:

    Ao Povo Evanglico da Amrica Latina18

    Amados Irmos em Cristo:Que a graa e a paz do Deus Trino seja com cada um.

    1. Antecedentes. Dez anos depois da realizao do Primeiro Congresso Latino-Americano de Evangelizaoem Bogot, Colmbia, reunimo-nos em Huampani, Peru, de 31 de outubro a 8 de novembro de 1979, 266

    participantes procedentes de diferentes setores do povo evanglico da Amrica Latina. Nosso propsito temsido considerar juntos a tarefa evangelizadora a que somos chamados a cumprir nas prximas dcadas.2. Reafirmao. Procuramos deliberar sobre nossa misso submetendo-nos autoridade suprema da Bblia,a Palavra de Deus, direo soberana do Esprito Santo e ao senhorio de Jesus Cristo, num ambiente de amorfraternal. Nesta atitude, reafirmamos nossa adeso declarao do Primeiro Congresso Latino-Americano deEvangelizao e ao pacto do Congresso Mundial de Evangelizao, realizado em Lausanne, Sua, em julhode 1974.3. Lealdade. Estamos profundamente agradecidos a Deus por nossa herana evanglica e pelos esforos esacrifcios realizados de parte dos pioneiros, tanto nacionais como estrangeiros. Decidimos renovar nossocompromisso de lealdade ao evangelho e de fidelidade tarefa de evangelizar no contexto de nossa Amrica

    Latina. Ao mesmo tempo, sentimos que devemos responder ao desafio missionrio que, em nvel mundial,representam os milhes de pessoas que no conhecem a Jesus Cristo como Senhor e Salvador.4. Tragdia. Temos ouvido a Palavra de Deus que nos fala e que tambm escuta o clamor dos quesofrem. Temos levantado os olhos para o nosso continente e contemplado o drama e a tragdia em que vivemnossos povos nesta hora de inquietao espiritual, confuso religiosa, decadncia moral e convulses sociaise polticas. Temos ouvido o clamor dos que tm fome e sede de justia, dos que se encontramdesprovidos do que bsico para sua subsistncia, dos grupos tnicos marginalizados, das famliasdestrudas, das mulheres despojadas do uso de seus direitos, dos jovens entregues aos vcios ouimpulsionados violncia, das crianas que sofrem fome, abandono, ignorncia e explorao. Por outrolado, temos visto que muitos latino-americanos esto se entregando idolatria do materialismo, submetendoos valores do esprito aos valores impostos pela sociedade de consumo, segundo a qual o ser humano valeno pelo que em si mesmo, mas pela abundncia dos bens que possui. H tambm os que, em seu desejo

    16 Ibidem. p.186.17 Ibidem.18 Ibidem. p. 192-193. Grifo nosso.

    7

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    8/30

    legtimo de reivindicar o direito vida e a liberdade ou de manter o estado de coisas vigente, seguemideologias que oferecem uma anlise parcial da realidade latino-americana e conduzem a formasdiversas de totalitarismo e violao dos direitos humanos. Existem, ainda, vastos setores escravizados

    pelos poderes satnicos que se manifestam em formas variadas de ocultismo e religiosidade.5. Pecado. Vemos este quadro sombrio que nos apresenta a realidade latino-americana, luz da Palavra deDeus, como expresso do pecado que afeta radicalmente a relao do homem com Deus, com seu prximo e

    com a criao. Percebemos em tudo o que se ope ao senhorio de Jesus Cristo a ao do esprito doAnticristo que j est no mundo.6. Renovao. Louvamos ao Senhor, contudo, porque em meio a esta situao o Esprito de Deus tem semanifestado poderosamente. Animamos o testemunho que temos compartilhado no Clade II da obramaravilhosa que Deus est realizando em nossos respectivos pases. Milhares tm-se entregado a JesusCristo como Senhor, encontrando nele libertao e incorporando-se s igrejas locais. Muitas igrejas tm sidorenovadas em sua vida e misso. O povo de Deus avana em sua compreenso do que significa odiscipulado radical num mundo de mudanas constantes ou sbitas.Tudo isso fruto do evangelho que mensagem de salvao e esperana em Jesus Cristo, em quem estosujeitas todas as coisas. Animados por esta esperana, decidimos intensificar nossa ao evangelizadora.Queremos, ainda, dedicar-nos com maior empenho ao estudo da Palavra de Deus para escutar, comhumildade e esprito de obedincia, o que ele tem a dizer nesta hora crtica de nossa histria.7. Confisso. Confessamos que como povo de Deus nem sempre temos atendido s demandas do evangelho

    que pregamos como demonstra nossa falta de unidade e nossa indiferena frente s necessidades materiais eespirituais de nosso prximo. Reconhecemos que no temos feito tudo o que com a ajuda do Senhordeveramos realizar em benefcio de nosso povo. Porm, propomo-nos a depender do poder transformadordo Esprito Santo para o fiel cumprimento da tarefa que est diante de ns. Cremos que na prxima dcadao Senhor poder abenoar de maneira singular o seu povo, salvar integralmente a muitssimas pessoas,consolidar ou restaurar nossas famlias e levantar uma grande comunidade de f, que seja umaantecipao, em palavra e ato, do que ser o reino em sua manifestao final.Como um apoio para a ao que nos corresponde, apresentamos o Documento deEstratgia elaborado

    por todos os participantes deste Congresso. Recomendamos seu uso de acordo com cada situao.8. Misso.No amor de Cristo, instamos a nossos irmos na f a que propaguem estes anelos e se dediquem misso de Deus, tomando em considerao que a noite vem, quando ningum pode trabalhar.

    No desejo de que Deus cumpra o seu propsito no mundo, em sua igreja e em nossas vidas, e que os povoslatino-americanos escutem a voz de Deus, encomendamo-nos todos sua graa e lhes enviamos uma

    saudao fraterna.

    3.2 O Evangelicalismo Latino-americano.

    O movimento evangelical19 latino-americano20 o horizonte onde a TMI acontece. Como

    identidade teolgica de corte protestante, ele se constitui em relao com outras

    identidades teolgicas presentes na Amrica Latina. Para marcar bem essa construo

    identitria, faremos um percurso que vai de sua relao com estas outras identidades, at

    chegarmos aos seus elementos especficos.

    Como identidade teolgica, o movimento evangelical deve ser apresentado como um ser

    evangelical, a partir, do seu crer em perspectiva evangelical. exatamente aqui que se

    inscreve seu carter relacional. A afirmao de uma forma de crer geralmente se d na19 O termo evangelical tomado aqui no no sentido amplo de evanglico, mas para identificar um grupo decristos comprometidos com certo movimento, com certa postura, com certa maneira de viver a f crist.Usaremos, portanto, evangelical para designar o indivduo e movimento evangelical (ou evangelicalismo),

    para caracterizar o movimento. Cf LONGUINI NETO, Luiz. Op. Cit.20 A delimitao latino-americano para o evangelicalismo se d em funo de sua presena em outros lugares,e, tambm, porque aqui ele ganha contornos especficos.

    8

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    9/30

    justaposio, ou at mesmo na contraposio, de outras formas de crer. Isso se acentua

    bastante num ambiente teolgico de misso, onde os limites do fundamentalismo persistem

    em balizar a vivncia da f.

    O evangelicalismo, ou movimento evangelical, originou o fundamentalismo norte-

    americano de 1910, que buscou formular um conjunto de afirmaes teolgico-

    doutrinrias21 que pudessem fazer frente ao liberalismo teolgico.

    Em 1910, durante a Assemblia Geral da Igreja Presbiteriana Americana, nos EstadosUnidos, foi tomada uma deciso sobre os cinco pontos fundamentais da f crist. Aestratgia visava confrontar os candidatos ao ministrio pastoral que haviam feito o cursode teologia no Union Theological Seminary de Nova Yorque com as doutrinas verdadeirasda f crist22.

    Num primeiro momento, o fundamentalismo era o prprio evangelicalismo. E sua defesa

    dos fundamentos era acolhida por boa parte do mundo protestante norte e sul americano.

    Porm, em 1948, com a fundao do CIIC (Congresso Internacional de Igrejas Crists) h

    uma radicalizao do fundamentalismo. Baseada numa reao ideolgica o movimento

    passou a lutar contra o liberalismo, ecumenismo, e o comunismo.

    Desta forma, todo fundamentalista evangelical, mas nem todo evangelical

    fundamentalista23.Isso significa que do ponto de vista do primeiro posicionamento quanto

    aos fundamentos da f crist, uns e ortros se encontram, porm, quanto ao levante

    ideolgico de 1948, eles se distanciam.

    Samuel Escobar comentando essa ideologizao teolgica operada pelo fundamentalismo

    assinala que ele foi uma reao teolgica teologia liberal da Europa, que degenerou para

    uma identificao do Reino de Deus com o american way of life. Afirma ainda: Por haver

    degenerado, o fundamentalismo no pode representar a alternativa bblica, slida e

    ortodoxa. No comeo da terceira dcada de nosso sculo, a crtica sria do liberalismo foi

    empreendida pela neo-ortodoxia, a teologia de Barth, Brunner e Niebuhr24.

    21 Os cinco pontos fundamentais, chamados The Fundamentals so os seguintes: 1) Nascimento virginal deJesus, 2) Ressurreio corprea de Jesus, 3)Inerrncia das Escrituras, 4)Teoria substitucionria da expiao,5) Eminente volta de Cristo. Cf REYLY, Duncan Alexander. Histria Documental do Protestantismo noBrasil. 3 ed. So Paulo, Aste, p.243, nota 101.

    22 LONGUINI NETO, Luiz. Op. Citp.22.23 Ibidem. p. 23.24 ROLDN, Alberto Fernando.Para que serve a Teologia? p. 122.

    9

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    10/30

    Falando ainda da identidade teolgica do evangelicalismo, na narrativa de Alberto

    Fernando Roldn, Escobar conclui responde seguinte pergunta:

    Somos fundamentalistas? No. As razes: o antiintelectualismo simplista, a falta de

    seriedade no estuda da Bblia, o esprito reacionrio, o extremismo direitista poltico e arecusa a aplicar o evangelho a toda a vida e cultura (...) Esclarece, no obstante, que simcremos que h fundamentos bsicos claros, cremos na autoridade das Escrituras, cremosno legado doutrinrio de vinte sculos de cristianismo bblico 25.

    De acordo com sua posio de distanciamento do fundamentalismo, e fidelidade a certa

    ortodoxia bblica, Samuel Escobar dir em sua palestra sobre A responsabilidade social da

    Igreja no CLADE I que: Para cumprir a responsabilidade social da igreja, no

    necessrio nem abandonar a evangelizao nem adotar uma teologia liberal ou no

    evanglica. Trata-se simplesmente de levar nossas crenas s ltimas conseqncias26

    . Ospontos centrais de sua fala foram os seguintes: a misso da igreja e o contexto social, o

    caminho da encarnao, o caminho da cruz e da ressurreio, e a esperana crist27.

    Do ponto de vista da relao com o fundamentalismo, a formao identitria do

    evangelicalismo latino-americano toma uma direo paralela de continuo distanciamento.

    Uma outra identidade teolgica que contribui para a formao do movimento evangelical

    latino-americano a teologia da libertao (TdL). Esta ser um elemento de fundamental

    importncia, mesmo que crtica, para melhor delinear o conceito de integralidade da TMI.

    Na palestra proferida no CLADE II: Esperana e desesperana na crise

    continental28,Samuel Escobar, se valendo muitas vezes das anlises feitas por outros

    telogos evangelicais latino-americanos, faz uma leitura da presena teolgica na Amrica

    Latina ao longo dos sculos XIX e XX, sobretudo, acentuando nesta presena a postura

    frente s duras realidades poltico-econmico-culturais da segunda metade do sculo XX.

    Analisando a conjuntura social latino-americana do final da dcada de setenta, quando

    acontecia o CLADE II, Samuel Escobar observa o seguinte:

    O intento mais sistemtico e articulado de interpretar esta situao desde uma sistemticacrist a chamada Teologia da Libertao. Uma variedade de movimentos polticos, amaior parte deles vinculados de uma ou outra forma ideologia marxista, tem feito da

    25 Ibidem.26 Ibidem. p. 123.27 Ibidem.

    28 ESCOBAR, Samuel.Esperana e desesperana na crise continental. In O presente, o futuro e a esperanacrist. Principais apresentaes do II Congresso Latino-americano de Evangelizao (CLADE II). SoPaulo: ABU, 1982.

    10

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    11/30

    palavra libertao o termo que engloba a utopia ou a esperana humana que se prega agoraa nossos povos. Quase se poderia dizer que em resumo a teologia a que fazemos refernciacontedo ou vocabulrio cristo ou bblico ao programa poltico-social de umconglomerado de foras cujo elemento comum a anlise marxista da situao latino-americana e um projeto expressado em linguagem do socialismo marxista. Esta tendnciateolgica estava presente nas filas do catolicismo (dentro do qual surgiu) e na reunio de

    bispos do CELAM em Medelim, 1968. Alguns de seus conceitos centrais e seuvocabulrio aparecem nos documentos finais de Medelim. Um setor do protestantismoecumnico ou conciliar foi virando lentamente rumo a posies que terminaram porcoincidir com a dos telogos catlicos. Boa parte dos telogos de origem protestante que seinscrevem nesta corrente militaram primeiro nas filas do ISAL (Igreja e Sociedade naAmrica Latina)29.

    O comentrio de Samuel Escobar marca a relao de dilogo crtico com a teologia da

    libertao, sobretudo com sua dimenso protestante presente na ISAL. Os telogos

    evangelicais tambm em um grupo de reflexo e prtica teolgica. Este grupo surgiu logo

    aps o CLADE I, em Cochabamba, Bolvia, em 1970. Foi denominado FTL (Fraternidade

    Teolgica Latino-americana). A nfase desta consulta de fundao foi a necessidade de

    tomar conscincia de nossa situao e reconheceu-se que as ideologias de hoje, pode ser

    o aguilho que Deus quer usar para que escutemos sua voz30.

    A partir da, era de dentro da FTL que a teologia evangelical se pronunciava, inclusive com

    relao s outras identidades teolgicas. Neste sentido Pedro Arana e Andrs Kirk (FTL)

    fazem uma avaliao da ISAL (TdL): Na ideologia da ISAL, Deus se traduz como

    revoluo. O povo de Deus como tropas revolucionrias. O propsito de Deus como

    humanizao. E a palavra de Deus como os Escritos revolucionrios. Nada esconde que

    tudo isto humanismo marxista31.

    Samuel Escobar entende que essa uma crtica que, sobretudo, deve ser direcionada ao

    abandono das bases bblicas e evanglicas que se substituam logo pelo marxismo, como

    chave para entender no s a realidade seno tambm o texto bblico32. uma crtica,

    portanto, hermenutica da TdL a partir do conceito de centralidade bblica que os

    evangelicais recebem da tradio protestante33. No necessariamente um problema com o

    instrumental terico de anlise da realidade, antes a compreenso de que este instrumental

    incide sobre a prpria Bblia como instrumento hermenutico.

    29 Ibidem. p. 161.30 ROLDN, Alberto Fernando. Op. Cit.p. 123.31 ESCOBAR, Samuel. Op. Cit.p. 162.

    32 Ibidem.33 Na Reforma protestante foi assentado junto com o princpio da Sola Scriptura a regra hermenutica que aBblia sua prpria regra de interpretao.

    11

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    12/30

    Para aprofundar a reflexo acerca da relao entre esperana e utopia latino-americanas, e

    o pensamento marxista em nosso continente, Samuel Escobar observa o seguinte:

    No nosso trabalho sobre o Reino de Deus e a tica social e poltica latino-americana,

    fizemos referncia ao desafio da escatologia marxista. Mencionamos a forma em que aviso utpica do futuro, tal como a apresentam os marxistas, consegue atrair a muitos sereshumanos em nosso tempo, particularmente em continentes onde certo tipo de religio(como o catolicismo latino-americano) produziu uma estrutura social injusta e uma situaode subdesenvolvimento. Quer dizer que a esperana marxista se voltou a esperana demuitos latino-americanos. A esta situao a Teologia da Libertao responde, tomando aesperana marxista e tomando-a como prpria, e reduzindo a esperana bblica paraacomod-la a esta esperana humana. Tal o produto final de uma hermenutica na qual averdade revelada deixa de ser autoritativa e a chamada cincia moderna (que o que omarxismo pretende ser) passa a ser a fonte de autoridade e verdade para a vida34.

    Mais uma vez a crtica de Samuel Escobar centra-se na questo hermenutica,

    pontualmente numa suposta superao da autoridade bblica pela leitura marxista da

    realidade. Ele no nega que a TdL, usando o instrumental de anlise marxista, consegue ler

    e se aproximar da esperana (e at da falta desta) e da utopia do povo latino-americano.

    Mais do isto, essa constatao o leva a perguntar, e posteriormente articular, pela resposta

    que os evangelicais do a esta questo.

    Aqui est o n da questo e seu aspecto ideolgico, que como vemos corresponde aos fatoshistricos que antes resumimos. O que no temos, ns, os evanglicos que evangelizam,

    uma expresso evanglica da esperana crist e bblica que seja pertinente ao momento emque vivemos (...) Assinalar a influncia destas esperanas humanas no suficiente. Cedoou tarde, ao completar-se o processo de evangelizao, temos que explicar o que aesperana crist e como ela se relaciona com a vida sobre a terra; e alm do mais, como elaserve de guia ao cristo para decidir sua atitude diante das esperanas humanas35.

    A identidade teolgica dos evangelicais latino-americanos se afirma numa tenso entre o

    fundamentalismo e a TdL. Em sua auto-compreenso isso se d a partir da inalienvel

    centralidade das Escrituras Sagradas. Queremos destacar, e mais tarde pretendemos

    mostrar, que essa tenso no antittica, mas, dialtica. Antes, porm, vale a pena ilustrar

    essa tenso com as palavras do bispo anglicano Robinson Cavalcanti, um dos

    representantes deste movimento no Brasil.

    No atual estgio brasileiro, os defensores do evangelho integral (Holismo) ainda estosujeitos a imcompreenses, sendo confundidos (s vezes intencionalmente) pelosconservadores como liberacionistas, em virtude de suas nfases quanto ao social. Para ostelogos da libertao os holistas no passam de neofundamentalismo esclarecido ereformista. O Holismo, por sua vez, nunca pretendeu existir como um contraste com as

    34 Ibidem.35 Ibidem.

    12

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    13/30

    outras duas posies ou como via mdia, mas afirmar sua histria prpria que, para osholistas, se confunde com a histria de uma parcela importante do cristianismo36.

    Para fechar este tpico, preciso ainda dar umas ltimas pinceladas na questo da

    identidade teolgica evangelical, sobretudo, a fim de apontar seus elementos constitutivos,

    para alm do exerccio aportico que at aqui fizemos. Depois de olhar a formao

    identitria evangelical dialticamente, preciso olh-la pontualmente a partir de seu

    interior. Para tanto, queremos evocar algumas definies do serevangelical de

    importantes pensadores desta movimento, privilegiando os latino-americanos.

    Samuel Escobar37, num artigo escrito em 198238, classifica o ser evangelical a partir dos

    seguintes elementos:

    1) A herana teolgica da Reforma: somente a f, somente a Escritura, somente a Graa esomente Cristo.2) A paixo evangelstica, oriunda dos grandes avivamentos do sculo XVIII, sobretudo ode Wesley.3) A piedade pessoal, caracterstica do despertamento no luteranismo alemo de fins dosculo XVII que conhecemos como pietismo: a nfase na deciso pessoal e na experinciade uma relao com Deus, seguida por uma vida de orao e piedade associada a umaintensa vocao missionria.4) A postura anabatista de separao entre igreja e Estado.5) A tica puritana: uma vida distinta e consagrada a Deus, com altos nveis de conduta.6) A dimenso social do evangelho: um claro sentido de servio, de obrigao social e de

    postura proftica perante os males da sociedade39.

    J Robinson Cavalcanti40, define o ser evangelical nos seguintes termos:

    Preocupados com o equilbrio, com a herana sadia da tradio conservadora, osevanglicos, grosso modo, desenvolveram as seguintes caractersticas: (1) Leiturareverente das Escrituras. Como palavra de Deus escrita por homens. Uso criterioso deferramentas cientficas. Possibilidade de errncia dos leitores e intrpretes; (2)Confecionalidade credal. Credos e confisses como explicaes teis, parciais e suficientesda f; (3) Soteriologia seletiva. Apenas alguns sero salvos. Divergncia sobre o conceitode penas eternas; (4) Cristologia. Trinitria com nfase nas duas naturezas; (5)

    Evangelismo. Anncio a toda a criatura, com sensibilidade transcultural; (6) Misso daigreja. Anncio, edificao, comunho, servio e denncia proftica; (7) Milagres. Crenatanto nos bblicos quanto nos atuais, evitando-se o ceticismo, a ingenuidade e ocurandeirismo; (8) Escatologia. Diversidade de posies, com tendncia ao amilenarismo

    ps-tribulacionista; (9) tica. Individual e social. Diferena entre aberraes eimperfeies. Espao para a liberdade criativa, defesa da democracia, pluralismo quanto aosocioeconmico, dilogo criativo com o mundo, santidade ativa (fazer coisas)41.

    36 CAVALCANTI, Robinson.A utopia possvel: em busca de um cristianismo integral.p. 28.37 Cf. nota 2.38 ESCOBAR, Samuel. Qu significa ser evanglico hoy? In FRESTON, Paul.F Bblica e crise brasileira.

    p.8.

    39 Ibidem. p. 9.40 Bispo da igreja anglicano, um dos mais profcuos escritores evangelicais brasileiros.41 LONGUINI NETO, Luiz. Op. Cit.p.24.

    13

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    14/30

    Paul Freston42aborda a questo da identidade teolgica evangelical43, privilegiando sua

    centralidade bblica como foco irradiador de sentido para as demais dimenses possveis.

    Dessa forma, ser evanglico na prtica, equivale a inserir-se dentro de uma determinada

    tradio, definida como evanglica. Ser evanglico, nesse sentido, deveria significar serradicalmente bblico (...) Quais as implicaes do ser radicalmente bblico para o nosso usoda Bblia como indivduos e como comunidades? (...) Em primeiro lugar, ao invs defetichizar a Bblia, honrando-a como smbolo, temos que lev-la a srio, por meio dotrabalho rduo de interpretao e aplicao. Levar a Bblia a srio nas duas dimenses: i)como livro humano, produto histrico e cultural que participa do grande princpio humanoda encarnao, e que por exige a aquisio de uma certa cultura bblica (...) e exige quefaamos a ponte com o nosso contexto (a contextualizao no um simples adendoopcional, mas parte integral da tarefa de ser bblico; no se pode ser bblico apenasestudando a Bblia!); e ii) como livro divino, normativo, que exige a meditao sria eobedincia criativa44.

    Duas coisas so facilmente depreendidas destes relatos: a centralidade bblico-

    missiolgica, e a forte nfase na integralidade da f crist. Da centralidade bblica o

    integral iluminado. Isso faz com que o movimento evangelical seja conservador do ponto

    de vista teolgico, porm, criativo em suas inmeras leituras da realidade, sobretudo no

    que diz respeito questo social.

    Neste especfico teolgico que o social, o movimento evangelical e a TMI no partem de

    uma mediao exclusiva. H uma abertura s cincias sociais, porm, isso no se constituiu

    num mtodo fechado e exclusivo. Como afirmou Robinson Cavalcanti45 h mesmo uma

    pluralidade quanto ao socioeconmico.

    ele mesmo, que de forma bastante aguda, em dilogo criativo com o pensamento de

    Pedro Arana, vai melhor delimitar as relaes do evangelicalismo e de sua teologia

    (Misso integral) com as mediaes cientficas, sobretudo as cincias sociais. Para ele o

    evangelicalismo em sua rejeio polarizao do social versus individual no ensino

    evanglico, procura, contudo, procura recuperar todo o ensino e toda a prtica histrica das

    Escrituras e da Igreja no tocante ao social, ao econmico ao poltico e ao cultural. A sua

    teologia sistemtica no pra na dogmtica, mas inclui a tica, a tica social46.

    42 Telogo e socilogo, ex-assessor da Aliana Bblica Universitria (ABU). Em sua tese de doutorada emsociologia, defendida na Unicamp, estudou a relao entre os protestantes e a poltica no Brasil.43 Tanto o texto de Cavalcanti quanto de Freston toma a expresso evanglico como sinnimo paraevangelical. Isso no se d aleatoriamente, mas antecedido de uma discusso crtica.

    44 FRESTON, Paul. Op. Cit. p. 12-13.45 Cf. nota 41.46 CAVALCANTI, Robinson. Op. Cit.p.26.

    14

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    15/30

    A partir do esprito de Lausanne em seu lema: O evangelho todo para o homem todo e

    para todos os homens, Robinson Cavalcanti marca o lugar teolgico do evangelicalismo:

    distancia-se do neofundamentalismo em sua crtica ao indivduo, ao legalismo, ausncia

    de um projeto existencial cristo, vinculao necessria ao capitalismo etc47. E ainda:

    Se compartilha com os telogos da libertao a tarefa histrica da promoo humana,

    deles se afasta, no s pelos aspectos doutrinrios, mas pela maneira de fazer teologia 48.

    De forma positiva ele continua:

    Pedro Arana, j citado, entende a teologia como sendo ...Uma reflexo da f sobre arevelao especial de Deus para a comunidade missionria no meio das circunstnciashistricas, com o fim de compartilhar o testemunho do Reino de Deus. Como herdeiros daReforma, os telogos do evangelicalismo integral (Holismo) entendem que a teologiacomea sempre com a revelao, nunca com o processo histrico ou a situao humana.

    Comea-se, axiologicamente, a partir da Bblia e de Jesus Cristo e, cronologicamente, apartir da realidade histrica. A teologia deve estar a servio da misso da igreja, que temhaver com a salvao integral (Holstica) de seu povo e, por meio dele, com o bem estarintegral do mundo. dever da igreja ensinar todo o conselho de Deus, julgando a leitura e a interpretao darealidade histrica luz da Palavra de Deus. Por essa razo, ns no podemos por um selode infalibilidade cientfica em nenhum instrumento humano, a despeito de quo cientfico ecompleto ele aparente, seja ele um marxismo dogmtico, um revisado, ou qualquer outroque possa aparecer. Completa Arana49.

    Esta perspectiva de Robinson Cavalcanti est de acordo com o congresso de Lausanne,

    quando em seu pacto, especificamente no artigo que trata da responsabilidade social da

    igreja, diz:

    Afirmamos que Deus o Criador e o Juiz de todos os homens. Portanto, devemos partilharo seu interesse pela justia e pela conciliao em toda a sociedade humana, e pela libertaodos homens de todo tipo de opresso. Porque a humanidade foi feita imagem de Deus,toda pessoa, sem distino de raa, religio, cor, cultura, classe social, sexo ou idade possuiuma dignidade intrnseca em razo da qual se deve ser respeitada e servida, e noexplorada. Aqui tambm nos arrependemos de nossa negligncia e de termos algumasvezes considerado a evangelizao e a atividade social mutuamente exclusivas (...)afirmamos que a evangelizao e o envolvimento scio-poltico so ambos parte do nossodever cristo (...) A mensagem da salvao implica tambm uma mensagem de juzo sobre

    toda forma de alienao, de opresso e de discriminao, e no devemos ter medo dedenunciar o mal e a justia onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo,nascem de novo em seu reino e devem procurar no s evidenciar, mas tambm divulgar aretido do reino em meio a um mundo injusto. A salvao que alegamos possuir deve estarnos transformando na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A f semobras morta50.

    Na compreenso do evangelicalismo e da TMI, a assuno de instrumental cientfico

    condio de hermenutica exclusiva pode comprometer a condio proftica da teologia.

    47 Ibidem.

    48 Ibidem.49 Ibidem.50 Cf. nota 11. Grifo nosso.

    15

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    16/30

    Isto no significa a ausncia de mediaes cientficas no fazer teolgico evangelical, antes,

    uma maior multiplicidade destas. Temos chamado a ateno para a necessidade de uma

    abertura para as ferramentas das cincias sociais, para a necessidade de uma espiritualidade

    integral e uma misso integral, para a reafirmao do Estado laico, democrtico, pluralista

    e multicultural51.

    Depois de termos exposto a moldura (esprito de Lausanne), e o horizonte (movimento

    evangelical) onde a teologia protestante latino-americana que optamos por trabalhar se

    coloca, preciso ainda apontar, a partir do horizonte exposto, a perspectiva prpria desta

    teologia. Isto faremos aprofundando seu teologmeno fundamental: misso integral ou

    holismo teolgico.

    3.3 Misso e integralidade: binmio estruturante da TMI.

    Seguindo a metfora que propomos, passamos a um terceiro elemento, alm da moldura

    (esprito de Lausanne) e do horizonte (movimento evangelical): a perspectiva (teologia de

    misso integral). A perspectiva pode ser confundida com o horizonte, porm, ela uma

    viso deste, marcada por um lugar de observao. A TMI esta visagem da realidade

    latino-americana a partir de um lugar (integralidade). A partir de um horizonte busca-se

    uma perspectiva marcada pelo lugar teolgico ocupado. Este lugar, ou perspectiva,

    vazado por um apelo realidade concreta. Sua nfase ser o social, no por opo

    ideolgica, mas por ser o elemento da realidade latino-americana que mais grita pela

    justia do reino de Deus.

    Esta perspectiva: o conceito de misso integral para a teologia, tem na tradio protestante

    um histrico bem definido. Presente j no texto bblico e na histria da igreja, noCongresso de Lausanne (Sua 1974) que tem suas razes modernas, e sua sistematizao

    programtica. Na Amrica Latina, o 1 e 2 Congressos Latino-americanos de

    evangelizao (CLADES) (Bogot 1969; Lima 1979), marcam a recepo e

    conseqente implementao da TMI. Esta implementao se fez possvel, em grande

    medida, em funo da criao da Fraternidade Teolgica Latino-americana (FTL), em

    1970, logo aps o CLADE I. No Brasil, o 1 Congresso Nacional de Evangelizao (Belo

    51 CAVALCANTI, Robinson.A igreja, o pas e mundo: desafios a uma f engajada.p. 44.

    16

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    17/30

    Horizonte 1983), marco oficialmente o acolhimento desta teologia por parte dos

    protestantes brasileiros, embora alguns j o acompanhassem desde Lausanne52.

    O conceito de Misso Integral, porm, no somente um categoria ou captulo da histria

    da igreja, especialmente do protestantismo. , antes, uma categoria teolgica que tem se

    imposto na reflexo e prxis latino-americano, sobretudo, no movimento evangelical.

    Segundo Enio Mueller53: O conceito de misso integral tem se imposto (...)

    especialmente em crculos evanglicos mais abertos do Terceiro Mundo, como uma forma

    til de expressar a conscincia de que o evangelho tem, alm da sua dimenso

    evangelstica, uma inelutvel dimenso de responsabilidade social54.

    Surge na teologia protestante latino-americana uma conscincia aguda de fracasso em

    algumas dimenses as misso da igreja. Como expressa o Pacto de Lausanne:

    1.Confessamos, envergonhados, que muitas vezes negamos o nosso chamado e falhamosem nossa misso, em razo de nos termos conformado ao mundo ou nos termos isoladosdemasiadamente.5.Aqui tambm nos arrependemos de nossa negligncia e de termos algumas vezesconsiderado a evangelizao e a atividade social mutuamente exclusivas (...) afirmamos quea evangelizao e o envolvimento scio-poltico so ambos parte do nosso dever cristo7.(...) Confessamos que o nosso testemunho, algumas vezes, tem sido manchado por

    pecaminoso individualismo e desnecessria duplicao de esforo55.

    Acompanhado desta conscincia de precariedade em seu conceito teolgica, surge tambm

    um posicionamento de converso frente s estruturas de pecado geradoras de misria e

    desigualdade:

    5.A mensagem da salvao implica tambm uma mensagem de juzo sobre toda forma dealienao, de opresso e de discriminao, e no devemos ter medo de denunciar o mal e ainjustia onde quer que existam. Quando as pessoas recebem Cristo, nascem de novo emseu reino e devem procurar no s evidenciar, mas tambm divulgar a retido do reino emmeio a um mundo injusto. A salvao que alegamos possuir deve estar nos transformando

    na totalidade de nossas responsabilidades pessoais e sociais. A f sem obras morta.52 Em nvel latino-americano devem-se destacar alguns nomes como Samuel Escobar, Ren Padilla, PedroArano, Emilio Nues, Robinson Cavalcanti, Valdir Steuernagel (todos de uma primeira gerao). Tambm necessrio mencionar as revistas Pensamiento Cristiano e Certeza e Mission. Para a presena da TMI noBrasil preciso mencionar a importncia de alguns movimentos: Aliana Bblica Universitria (ABU), AViso Nacional de Evangelizao (VINDE), o Corpo de Psiclogos e Psiquiatras Cristos (CPPC). E, ainda,a presena da Fraternidade Teolgica Latino-americana, e da Viso Mundial, na fomentao de encontros dereflexo e aprofundamento teolgico-pastoral.53 MUELLER, Enio.A Interpretao da Bblia e a Misso Integral da Igreja. In STEUERNAGEL, Valdir(org).A Misso da Igreja.p. 53-63. Este texto uma coletnea de artigos sobre os mais diversos temas dateologia em perspectiva da TMI.Alm do presente artigo, Enio Mueller d uma importante contribuio para a teologia em sua tese sobre a

    relao do marxismo e da TdL: Teologia da Libertao e Marxismo. So Leopoldo: Sinodal, 1996.54 Ibidem. p. 53.55 Cf. nota 11.

    17

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    18/30

    9.Todos ns estamos chocados com a pobreza de milhes de pessoas, e conturbados pelasinjustias que a provocam. Aqueles dentre ns que vivem em meio opulncia aceitamcomo obrigao sua desenvolver um estilo de vida simples a fim de contribuir maisgenerosamente tanto para aliviar os necessitados como para a evangelizao deles56.

    Esta mesma estrutura se pode perceber na carta final do CLADE II. Tanto a confisso

    acerca da necessidade de rever a presena no mundo, quanto aguda sensibilidade social,

    so marcas da igreja protestante presente naquele lugar. Em ambos os casos h uma clara

    viso propositiva que estava sendo assumida pela TMI:

    7. Confisso. Confessamos que como povo de Deus nem sempre temos atendido sdemandas do evangelho que pregamos como demonstra nossa falta de unidade e nossaindiferena frente s necessidades materiais e espirituais de nosso prximo. Reconhecemosque no temos feito tudo o que com a ajuda do Senhor deveramos realizar em benefcio denosso povo. Porm, propomo-nos a depender do poder transformador do Esprito Santo

    para o fiel cumprimento da tarefa que est diante de ns. Cremos que na prxima dcada oSenhor poder abenoar de maneira singular o seu povo, salvar integralmente a muitssimaspessoas, consolidar ou restaurar nossas famlias e levantar uma grande comunidade de f,que seja uma antecipao, em palavra e ato, do que ser o reino em sua manifestao final.4. Tragdia. Temos ouvido a Palavra de Deus que nos fala e que tambm escuta o clamordos que sofrem.(...)Temos ouvido o clamor dos que tm fome e sede de justia, dos que seencontram desprovidos do que bsico para sua subsistncia, dos grupos tnicosmarginalizados, das famlias destrudas, das mulheres despojadas do uso de seus direitos,dos jovens entregues aos vcios ou impulsionados violncia, das crianas que sofremfome, abandono, ignorncia e explorao.(...)H tambm os que, em seu desejo legtimo dereivindicar o direito vida e a liberdade ou de manter o estado de coisas vigente, seguemideologias que oferecem uma anlise parcial da realidade latino-americana e conduzem aformas diversas de totalitarismo e violao dos direitos humanos57.

    Enio Mueller faz a interpretao da teologia majoritria que sustentava certo conceito de

    misso presente na Amrica Latina, sobretudo, infundida pelas inmeras agncias

    missionrias norte-americanas presentes em nosso continente. Essa interpretao abre sua

    conceituao teolgica sobre as categorias Misso e Integral. Ele diz:

    A leitura teolgica da realidade humana at ento feita, especialmente no mundoevanglico, era por demais devedora de uma concepo filosfica do homem comoentidade dividida em vrios compartimentos: corpo, mente e alma (...) Uma excessiva

    influncia, mesmo que residual, da cosmoviso grega, que perpassa o histria daautocompreenso do cristianismo, era detectada a. O resultado, na prtica, era asupervalorizao do espiritual em detrimento de outros aspectos da realidade humana, oque no fim no vinha em benefcio nem do prprio espiritual58.

    Tendo assentado a topologia de onde surge a TMI, passamos tentativa de tratar

    teologicamente as categorias Misso59 e Integral como so tomadas na TMI. Isso56 Ibidem.57 Cf. nota 1858 MUELLER, Enio. Op.Cit.p. 53-54.59 A categoria teolgica misso, vem sendo amplamente estudado no protestantismo ao longo de todo o

    sculo XX, sobretudo em sua segunda metade. Vale a pena destacar duas importantes obras que aprofundamesse estudo. A primeira, em nvel internacional, a monumental Transforming Mission: Paradigm Shifts inTheology of Mission de David Bosch, publicada em portugus pela editora Sinodal com o ttulo: Misso

    18

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    19/30

    faremos, como mencionamos acima, com o trabalho de Enio Mueller, e, aprofundando,

    para o conceito de Misso, o pensamento de Samuel Escobar.

    Este ltimo que dedica sua reflexo questo da misso na Amrica Latina j a cerca de

    quatro dcadas, estabeleceu uma trplice tipologia para compreender as teologias

    subjacentes aos movimentos missionrios presentes em nosso continente desde o

    Congresso de Lausanne em 1974. A primeira delas o que ele chama de missiologia ps-

    imperial.

    Esta a missiologia vinda dos evangelicais da Gr Bretanha e Europa e caracterizada porum evidente carter imperial. Com isso, quero dizer uma conscincia de que o domnioimperial que costumavam exercer j passou e novos modelos de relacionamentos tm sido

    desenvolvidos. Para esta missiologia havia duas fontes de questes srias sobre misses:por um lado o declnio das igrejas crists na Europa e suas influncias de perda naformao de valores e atitudes em seus contextos e, por outro lado, a emergncia de novasformas de cristianismo no Terceiro Mundo (...) O que caracteriza essa missiologia que ozelo tradicional evangelical est associado com a disposio para corajosamente tomar aslies da histria e explorar a Palavra de Deus usando as melhores ferramentas dos estudos

    bblicos no servio da misso60.

    A segunda tendncia missiolgica presente na Amrica Latina ela chama de missiologia

    gerencial. Esta, devido a influncia pragmtica que recebe, contribui muito para o

    enfraquecimento e reducionismo dos fundamentos teolgicos da misso, sendo a presena

    majoritria entre os organismos de misso estrangeira em nosso continente61.

    A nota distintiva desta missiologia que se desenvolveu especialmente ao redor do grupo deinstituies evanglicas em Pasadena, Califrnia (EUA), conectou-se Escola deCrescimento da Igreja e a movimentos tais como AD 2000, o esforo para reduzir amisso crist a uma empresa gerencivel. Cada caracterstica dessa missiologia torna-seinelegvel quando percebida com o conceito de que admitia a inteno quantificadora. Osconceitos tais como grupo de pessoas, povos no-alcanados, janela 10/40, adote

    um povo, e espritos territoriais expressam tanto um sentido forte de urgncia e umesforo para usar cada instrumento disponvel para fazer a tarefa possvel (...) A aomissionria reduzida a uma tarefa linear que traduzida tanto a os passos lgicos paraserem seguidos em um processo de gerenciamento pelos objetivos, na mesma maneira naqual a tarefa evangelstica reduzida a um processo que pode ser carregado nos princpios

    posteriores do marketing62.

    Transformadora: mudanas de paradigma na teologia da misso. Em nvel latino-americano (j que foitraduzido em 2006 para o espanhou pela CLAI) destaca-se o trabalho de doutoramento de Luiz Longuini

    Neto O Novo Rosto da Misso: os movimentos ecumnico e evangelical no protestantismo latino-americano,que foi publicado pela editora Ultimato e recentemente traduzido para o espanhou com apoio do CLAI.60 ESCOBAR, Samuel.Missiologia Evanglica: Olhando para o Futuro na Virada do Sculo. p.153,155. In

    Missiologia Global para o Sculo XXI.p. 145-172.61 Cf. ibidem. p. 157.62 Ibidem. p. 155.

    19

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    20/30

    Finalmente, a terceira tendncia missiolgica presente na Amrica Latina corresponde

    mais adequadamente, sobretudo em relao segunda, realidade de um continente

    mergulhado em extrema crise social, por vezes legitimada por estruturas teolgicas que

    embalam certo ardor missionrio que em nada contribui para a reflexo da f em

    perspectiva integral. Samuel Escobar chama esta tendncia de Uma missiologia crtica da

    periferia.

    Das terras que costumavam ser territrios missionrios, uma nova missiologia temcomeado a se desenvolver e est deixando sua voz ser ouvida. Lausanne I foi caracterizada

    pela abertura a ouvir daquela nova reflexo, ao mesmo tempo contextual e engajada.Poderamos dizer que o impulso bsico desta missiologia sua natureza crtica. A questo

    para esta missiologia no quanta ao missionria requerida hoje, mas que tipo de aomissionria necessria. E a preocupao com a qualidade se liga naturalmente com as

    perguntas sobre o dinamismo social do evangelho e aquele poder transformador daexperincia de converso a Jesus Cristo63.

    Na mesma direo de Samuel Escobar, Enio Mueller tambm chama a ateno para a

    contribuio de telogos do Terceiro Mundo que insistem em que a realidade social est

    numa relao indissocivel com a teologia, e que, portanto, isso deve ser problematizado

    pela mesma64. Isso exige da teologia protestante uma reformulao do conceito de misso,

    sobretudo, no sentido de descol-lo da tarefa evangelizadora. A tarefa da evangelizao,

    que a igreja no pode abandonar, no pode ser uma grandeza absoluta que coopta todas as

    demais tarefas reduzindo-as a meras estratgias para sua eficaz realizao.

    O Pacto de Lausanne representa muito bem este momento criativo da igreja crist

    protestante, quando coloca paralelamente os temas da evangelizao e da responsabilidade

    social lado a lado. Sem dvida, isso testemunha vigorosamente a conscincia missiolgica

    amadurecida que adota uma perspectiva mais abrangente de misso65.

    O outro conceito que igualmente precisa ser verificado luz da teologia, mais

    especificamente da TMI, o Integral (ou holstico). Enio Mueller comea por observar que

    no tempo em que vivemos h um forte apelo superao de esquemas que pretendem

    explicar a realidade a partir de chaves compartimentalistas. H um anseio por vises mais

    63 Ibidem. p. 159.64 MUELLER, Enio. Op. Cit.p.54.65 Cf. ibidem. p.55.

    20

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    21/30

    totais, por enxergar mais a unidade por trs dos elementos dspares (...) de nossa to

    fragmentada e dividida realidade social66.

    Esta tendncia ao holismo se expressa diferentemente em cada espao onde acolhida. No

    caso da teologia ela disposta numa dupla relao: em ntima escuta das Escrituras

    Sagradas, e, em dilogo criativo com os instrumentais tericos disponveis. Na

    aproximao destes dois elementos cunha-se uma metodologia teolgica que atrai e

    incorpora elementos (pensamento dialtico, nova era, ecologia, abordagens sistmicas...)

    numa abordagem que pretende anunciar todo o evangelho, a todo o homem, e, ao homem

    todo.

    Tudo isto deixa claro tambm que a nossa misso, neste final de sculo e de milnio, devervoltar a acontecer num marco de leitura intensiva da Bblia, de lcida percepo dasrealidades presentes, e, sobretudo, de colocar estes dois em face um do outro. Com isso aPalavra de Deus poder voltar a exercer um papel poderoso na compreenso etransformao destas realidades, desde as das pessoas individualmente at a dum cosmosque se torna a cada dia parte integrante da nossa existncia como seres humanos svsperas do terceiro milnio. E isto passando pelas complexas realidades das nossasrelaes sociais e comunitrias67 .

    Com isto ns conclumos quase todo o quadro que nos dispusemos a pintar. A moldura

    (esprito de Lausanne) foi colocada, o horizonte (movimento Evangelical) foi traado, aperspectiva (Teologia da Misso Integral) foi delineada, e porque no confessada, resta

    somente agora pincelar os personagens (temas principais da TMI) para terminar nosso

    exerccio pictrico.

    IV Esprito, Homem e Palavra: Temas Fundamentais da Teologia de Misso

    Integral no Contexto Latino-americano.

    Nesta parte do trabalho pretendemos apontar trs temas teolgicos que formam, ao menos

    em nossa compreenso, o ncleo do pensamento teolgico do evangelicalismo latino-

    americano. Propor essa tese no um exerccio seguro e fora de riscos de equvoco.

    Buscando sustentar este pensamento, nos valeremos dos documentos finais de Lausanne e

    do CLADE II, como tambm de pronunciamentos feitos, sobretudo, neste segundo evento.

    66 Ibidem.67 Ibidem. p. 61.

    21

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    22/30

    Esprito, Homem e Palavra articulam um mesmo acontecimento teolgico na TMI: a

    misso. o Esprito que pelo, no, e para o Homem (homem e mulher) suscita a Palavra

    salvadora de Cristo, que no faz outra coisa que o prprio Cristo no tenha feito: anunciar

    a boa nova do Reino de Deus, que na compreenso da TMI pode ser traduzida pela

    salvao integral de Deus para toda a sua criao. Isto constitui a misso!

    4.1 O Protagonismo do Esprito na Teologia de Misso Integral.

    O pacto da Lausanne pronuncia-se da seguinte forma num artigo especfico sobre a

    pneumatologia:

    Cremos no poder do Esprito Santo. O pai enviou o seu Esprito para dar testemunho do seuFilho (...) De mais a mais, o Esprito Santo um missionrio, de maneira que aevangelizao deve surgir espontaneamente numa igreja cheia do Esprito (....) a fim de queo seu fruto todo aparea em todo o seu povo, e que todos os seus dons enriqueam o corpode Cristo. S ento a igreja inteira se tornar um instrumento adequado em Suas mos, paraque toda a terra oua a Sua voz68.

    Embora o documento, e o prprio congresso, terem fortes traos cristolgicos, estes so

    compreendidos como efetivamente revelados pela ao do Esprito, pois o Esprito de

    Cristo e, sua misso dar testemunho da novidade de vida anunciado no mistrio daencarnao.

    No caso do CLADE II o protagonismo do Esprito como hermeneuta da integralidade

    teolgica ainda mais acentuado:

    2. Reafirmao. Procuramos deliberar sobre nossa misso submetendo-nos autoridadesuprema da Bblia, a Palavra de Deus, direo soberana do Esprito Santo e ao senhorio

    de Jesus Cristo, num ambiente de amor fraternal.4. Tragdia. Temos ouvido a Palavra de Deus que nos fala e que tambm escuta o clamordos que sofrem. Temos ouvido o clamor dos que tm fome e sede de justia, dos que seencontram desprovidos do que bsico para sua subsistncia, dos grupos tnicosmarginalizados, das famlias destrudas, das mulheres despojadas do uso de seus direitos,dos jovens entregues aos vcios ou impulsionados violncia, das crianas que sofremfome, abandono, ignorncia e explorao.6. Renovao. Louvamos ao Senhor, contudo, porque em meio a esta situao o Esprito deDeus tem se manifestado poderosamente.7. Confisso. Reconhecemos que no temos feito tudo o que com a ajuda do Senhordeveramos realizar em benefcio de nosso povo. Porm, propomo-nos a depender do podertransformador do Esprito Santo para o fiel cumprimento da tarefa que est diante de ns69.

    68 Cf. nota 11.69 Cf. nota 18.

    22

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    23/30

    Se j nos documentos finais de Lausanne e do CLADE II aparea uma forte presena

    pneumatolgica, no desenvolvimento do CLADE II que isto fica ainda mais claro. Na

    primeira parte da publicao sobre o congresso, chamada O Desafio da Reforma da

    Dcada de 80 h uma abordagem, feita em dois tempos, que surpreende por sua

    pneumatologia arrojada. Merece destaque, principalmente, a primeira parte da

    comunicao feita por J. Norberto Saracco70 intitulada O Esprito e a Palavra na

    Comunidade Evangelizadora71.

    A presena de um palestrante pentecostal no CLADE II j um evento que merece

    destaque, tanto pela dimenso ecumnica que o evento teve, quanto, sobretudo, pela

    contribuio especfica que o pentecostalismo pode dar como de fato deu. J na introduo

    sua fala Norberto Sarocco aponta uma grande capacidade de integrao dos aportes

    tericos com o protagonismo pneumatolgico.

    O fato de ser um congresso Latino-americano de evangelizao no se justificar pelalocalizao geogrfica, nem pela esmagadora maioria de representantes latinos, mas sim

    pelo levar a srio, em termos de misso, as mltiplas faces da realidade latino-americana.No afirmo isso em virtude de um chauvinismo simplista, seno por considerar que aPalavra eterna e soberana de Deus fala, no poder do Esprito, ao homem que est imersonuma realidade histrica e social concreta72.

    Na perspectiva de apontar a centralidade do Esprito na misso da comunidade no mundo,

    bem como sua ao para vencer as estruturas de opresso ele diz:

    A comunidade conta com o poder do Esprito para curar os enfermos, dar vista aos cegos eanunciar aos pobres que h uma boa notcia para eles: o poder do Esprito vence o opressor.O Esprito operar de diferentes maneiras para cumprir seus propsitos. Poder ser atravsde elementos sobrenaturais, mas tambm nos processos histricos onde uma comunidadeevangelizadora seja fiel a seu Senhor. Por essa razo, a comunidade chamada a confiar no

    poder do Esprito, mas tambm a viver as demandas do evangelho dentro da histria, nasegurana de que no h poder humano ou espiritual superior ao Esprito de Deus73.

    Esta viso exposta por Norberto Sarocco, num contexto onde a categoria de misso integral bastante conhecida, supera o j dito ampliando para outras esferas o conceito de

    integralidade. Ser integral no somente superar os esquemas fragmentrios da cultura

    ocidental, tambm, na perspectiva dele, superar a mentalidade teolgica racionalista que

    70 J. Norberto Saracco, poca, era diretor de educao teolgica da Igreja de Deus Pentecostal da Argentina.71 SARACCO, J. Norberto. O Esprito e a Palavra na Comunidade Evangelizadora. In O Presente, o Futuroe a Esperana Crist: Principais Apresentaes do II Congresso Latino-americano de Evangelizao

    (CLADE II). P. 33-43.72 Ibidem. p. 33.73 Ibidem. p. 40.

    23

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    24/30

    confina no plano do obscurantismo a possvel ao sobrenatural de Deus para a realizao

    de seu propsito.

    Esse apelo dimenso sobrenatural da f, coloca a questo da integralidade num nvel

    onde todas as coisas esto sob o senhorio de Cristo que age na fora do Esprito. O mais

    importante, que isto no se d na negao das responsabilidades e do engajamento na

    histria, mas, este engajamento e responsabilidade so possveis medida que o Esprito

    possibilita. Exatamente o mesmo Esprito que pode agir, segundo seu senhorio, em outras

    esferas da realidade.

    De qualquer forma, a Palavra de Deus que age, e assim o faz no poder do Esprito.

    Vemos que a Palavra est intimamente unida s obras poderosas do Esprito. A questo

    no qual dentre os dois o mais importante, mas antes reconhecer que ambos formam

    um todo inseparvel74. Essa centralidade do Esprito no anuncio integral da Palavra, d

    comunidade tambm o discernimento para julgar a ideologia travestida de misso quando

    esta aparece.

    O Esprito tambm quem guia a comunidade a descobrir a Palavra e interpret-la. Aceitar

    que o Esprito ensinar igreja todas as coisas (Jo 14:26) exige dela humildade e abertura.Os que possuem respostas enlatadas e frmulas precisas, as quais aplicam em qualquersituao, como se todos os homens e sociedades fossem iguais, rechaam a funo

    pedaggica do Esprito (...) Fidelidade ao Esprito buscar teologias que sejam fiis aoevangelho cada situao75.

    O Esprito aparece como aquele que articula e interpreta a realidade em situaes histricas

    concretas. Na promessa de estar conosco todos os dias, est includa a dimenso

    hermenutica do Esprito que a tudo interpreta, porque a tudo submete. O Esprito, que o

    de Cristo, tem a mesma misso de gerar e renovar a vida, e onde est o Esprito de Cristo,

    a h vida e liberdade.

    A comunidade evangelizadora deve ser sinal desta vida do Esprito que se manifesta emcada um de seus membros. Mas no s um exemplo de vida, deve proclamar a vida alionde existe a morte no unicamente a morte espiritual, mas todas as manifestaes deanti-vida que se fazem presentes em nosso tempo. Onde impera a fome e a misria, aangstia e a dor, a tortura e o assassinato...a comunidade deve levar , em sua mensagem eem seu testemunho, a vida do Esprito76.

    74 Ibidem.75 Ibidem.76 Ibidem. p. 41.

    24

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    25/30

    O Esprito lana os homens e a mulheres misso da vida no interior da histria, onde, e s

    onde, a Palavra que se encarnou deve ser anunciada. Qualquer anncio que no revele o

    radical mistrio da encarnao, mesmo que isto se d pelos mais nobres motivos, no

    movido pela fora do Esprito do encarnado.

    Quando uma comunidade evangelizadora, em nome da espiritualidade, renuncia viver suahistria e fixa os olhos no que transpe os limites da realidade do mundo, trai o Esprito emnome da espiritualidade (...) A vida no Esprito no compatvel com a apatia diante dasnecessidades do mundo. E mais, o fruto mais importante do Esprito o amor, que se fazcarne na entrega ao irmo e quele que sofre. No bblica uma experincia no Espritoque subtraia a comunidade evangelizadora da histria77.

    4.2 O Homem como Este Homem: uma antropologia concreta.

    A antropologia presente na TMI uma antropologia concreta, onde por Homem no se

    entende uma categoria filosfica abstrata, antes, este ou aquele homem, ou melhor, estes e

    estas, aqueles e aquelas. Esta questo fundamental para dar densidade ao conceito de

    integralidade. Integrasse a partir do particular, no de categorias universais e abstratas. Os

    grupos presentes no horizonte da misso devem ser chamados por seus nomes, revelando

    assim seus rostos muitas vezes invisibilizados pelo pretenso anncio da boa nova.

    O evangelicalismo deste continente, articulado na Fraternidade Teolgica Latino-americana(FTL) tem denunciado o embranquecimento dos negros e dos ndios convertidos, seudesenraizamento cultural e perda de identidade, bem como a anglo-saxonizao dosconvertidos brancos e mestios. Temos deplorado o surgimento de subculturas protestantesisolacionistas, misto de legalismo fundamentalista e tradicionalismo ibero-catlico pr-moderno78.

    Este acento numa antropologia concreta e integrada pode ser observado nos documentos

    finais de Lausanne e do CLADE II. No caso de Lausanne a mxima: o evangelho todo,

    para todo o homem e o homem todo, mostra que apesar das tenses entre evangelicais

    (integrais) e fundamentalistas (convresionistas), a perspectiva concreta acerca daantropologia teve bastante fora, embora seja verdade que as tenses permaneceram muito

    fortes.

    No caso do CLADE II esta perspectiva est mais fortemente delineada. Isto pode ser

    verificado em pelo menos dois aspectos: o primeiro se encontra na carta final do

    congresso, quando analisando a realidade latino-americana afirma:

    77 Ibidem.78 CAVALCANTI, Robinson. Op. Cit. p. 44.

    25

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    26/30

    4. Tragdia. Temos ouvido o clamor dos que tm fome e sede de justia, dos que seencontram desprovidos do que bsico para sua subsistncia, dos grupos tnicosmarginalizados, das famlias destrudas, das mulheres despojadas do uso de seus direitos,dos jovens entregues aos vcios ou impulsionados violncia, das crianas que sofrem

    fome, abandono, ignorncia e explorao. Por outro lado, temos visto que muitos latino-americanos esto se entregando idolatria do materialismo, submetendo os valores doesprito aos valores impostos pela sociedade de consumo, segundo a qual o ser humano valeno pelo que em si mesmo, mas pela abundncia dos bens que possui. H tambm os que,em seu desejo legtimo de reivindicar o direito vida e a liberdade ou de manter o estado decoisas vigente, seguem ideologias que oferecem uma anlise parcial da realidade latino-americana e conduzem a formas diversas de totalitarismo e violao dos direitoshumanos. Existem, ainda, vastos setores escravizados pelos poderes satnicos que semanifestam em formas variadas de ocultismo e religiosidade79.

    O segundo aspecto para verificarmos a dimenso concreta e integrada da antropologia

    presente na TMI, ainda nos remetendo ao CLADE II, o informe regional produzido pelo

    Brasil para colaborar nas discusses sobre a misso80, a partir da realidade com suas

    positividades e mazelas81.

    Neste informe esto presentes os homens e mulheres brasileiras em sua mais ampla

    representatividade: cultural, classe social, faixa etria, etnias, gnero, religio... Os grupos

    so apresentados a partir daquilo que os identifica em sua dignidade, buscando, de forma

    propositiva, apontar o desafio colocado para a misso por cada um deles82. Ao trmino da

    primeira parte do informe, destinada a um balano das condies scio-econmicas doBrasil, l-se: que numa futura avaliao da dcada de 80 conste que a igreja de Cristo no

    Brasil procurou responder aos desafios de seu tempo83.

    4.3 A Palavra como sacramento do Reino: A Centralidade da Palavra na Teologiade Misso Integral.

    Os temas do Congresso de Lausanne (Que o mundo oua a voz de Deus) e do CLADE II

    (Que a Amrica Latino oua a voz de Deus) apontam para centralidade da Palavra na TMI.

    Mas essa Palavra que central na TMI recebe dela uma densidade teolgica, um peso

    79 Cf. nota 18.80 O Clade II assumiu como ponto de partida, um perodo preparatrio de leituras e uma anlise detalhadada realidade latino-americana de cada regio, realidade esta que foi analisada basicamente nos aspectos

    poltico, socioeconmico, cultural, religioso, moral e espiritual... Cada regio teve liberdade de apresentar eorganizar seu relatrio conforme a necessidade, assim os enfoques foram multidisciplinares. Cf. nota 15.

    81Informe Regional do Brasil. In O Presente...Op. Cit.p. 76-84.

    82 Esse documento merece um estudo mais aprofundado, que poderia revelar a perspectiva teolgica do grupobrasileiro presente no CLADE II. Porm, isso ficar para uma outra pesquisa que pretendemos desenvolver.83 Ibidem. p. 78.

    26

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    27/30

    qualitativo. No , portanto, qualquer anncio, antes, aquele que feito luz do mistrio

    da encarnao. O Cristo encarnado na realidade histrica cristifica-a integralmente.

    A palavra que requerida da comunidade evangelizadora no palavreado ou pura

    verbalizao, a espada do Esprito (Ef 6:17), ou seja, o instrumento do Esprito paracumprir sua misso redentora (...) As obras do Esprito nem sempre so espetaculares eassombrosas: tambm obra do Esprito quando se transformam situaes sociais e culturasde opresso, como resposta a uma igreja que proclama as boas novas do evangelho nacerteza de que a Palavra no voltar vazia84.

    A TMI oferece, portanto, uma regra de discernimento para pesar a Palavra anunciada, no

    sentido de verificar sua procedncia. Toda Palavra de Cristo instaura o Reino como ele

    prprio o fez. No possvel, portanto, que haja pregao do evangelho sem que os sinais

    do Reino sejam perceptveis. Se no houver justia, paz e alegria no Esprito, o anncio daPalavra no passa d palavreado vazio (ou quem sabe cheio de ideologia).Em suma, a

    Palavra gera uma comunidade crstica.

    Na comunidade evangelizadora, como sinal da nova criao, devem ficar abolidos osprivilgios e prerrogativas que imperam no mundo: no pode haver judeu nem grego, nemescravo, nem liberto, nem homem, nem mulher, porque todos voz sois um em Cristo (Gl3:28). na forma de vida da igreja que se detecta sua fidelidade ou no ao evangelho, namedida em que ela aceita o Reino de Deus. Quando a comunidade evangelizadora cede tentao de privilegiar uns em detrimento de outros, quando confunde os elementos de

    cultura com o evangelho, quando tolera relaes de domnio dentro de si e em suamensagem, ou quando busca ser reconhecida e aplaudida, evitandoo caminho da cruz, a, ento, prostitui-se85.

    A igreja de Cristo criatura da Palavra. dela que a Igreja se origina. Desta forma ela est

    submetida ao seu juzo e, convocada constantemente converso: Eclesia Reformata

    Semper Reformanda. Isto s possvel porque o Esprito que move a igreja, a move para

    dentro da histria impulsionando-a a conformar-se mente de Cristo, para que dessa forma

    homens e as mulheres possam ouvir a voz de deus que chama a novidade de vida.

    tambm o Esprito quem assume a condio de hermeneuta no ministrio da vivncia e

    do anncio da Palavra. ele quem leva a todos ao pleno conhecimento de Cristo e do

    Reino: ele quem nos faz lembrar de todas as coisas.

    Tanto a atitude do intrprete diante de Deus, como sua tradio eclesistica e a cultura aque pertence so fatores que condicionam constantemente o contedo e a compreenso daPalavra de Deus. Na medida em que, como comunidade da Palavra, levamos a srio estes

    84 SARACCO, J. Norberto. Op. Cit.p.40.85 Ibidem. p. 36.

    27

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    28/30

    condicionamentos, poderemos proclamar mais fiel e efetivamente a Palavra de Deus. aquionde reconhecemos a necessidade da assistncia do Esprito, para nque, em meio a nossas

    palavras provisrias, possamos ir encontrando a palavra eterna. Porm este encontro no um acontecimento mstico, mas histrico86.

    Finalmente, a Palavra gestada e interpretada na comunidade pela fora do Esprito, no

    somente aquela proclamada com nossas palavras. No somente o discurso que revela ao

    mundo a Palavra de Deus, embora seja importante. Esta revelao da Palavra de Deus ao

    mundo, se d medida que a igreja faz o cominho kentico de Cristo. A igreja anuncia a

    Palavra quando assume o mistrio da encarnao como sua prpria forma de ser no mundo.

    Nisto constitui sua misso: ser integralmente kentica.

    A comunidade evangelizadora deve ser portadora da boa notcia para os pobres, de sadepara os quebrantados de corao, liberdade para os cativos e oprimidos, viso para os cegose tudo aquilo que implique em manifestar o ano agradvel do Senhor (Lc 4:18s). A palavraque tem sido dada a comunidade no simples verbalizao; transmitida atravs de

    palavras, mas tambm atravs de acontecimentos libertadores. A Palavra se faz ao, e serfiel Palavra no t-la gravada de cor, mas viv-la, de tal maneira que cada ato dacomunidade aponte em direo total, para onde a comunidade caminha na esperana,ouseja, que cada ato seja, de fato, evangelizador87.

    V CONCLUSO.

    O quadro est pronto: o esprito de Lausanne delimita como moldura o horizonte

    protestante latino-americano, este horizonte, o evangelicalismo, visto a partir da teologia

    de misso integral como se fosse olhado em uma perspectiva prpria. Este olhar em

    perspectiva encontra no centro do quadro algumas personagens que se destacam: Esprito,

    homem e Palavra juntos, compem a razo de ser da teologia holista: a misso.

    Desta forma pretendemos ter exposto a multifacetada face de um protestantismo latino-

    americano, que tem feito de seu estandarte a misso de que o mundo, e especialmente

    aquela parte que se encontra na Amrica Latina, oua a voz de Deus. A voz de Deus que

    se pretende fazer ouvida chama a todos desde as entranhas da realidade histrica para uma

    vida integralmente vivida na plenitude e no poder do Esprito. Pois somente este, pode

    86 Ibidem. p. 37.87 Ibidem. p. 38.

    28

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    29/30

    possibilitar que em um solo to maltratado como o de nosso continente, o evangelho todo,

    possa ser anunciado para todo os homens e mulheres em sua integralidade.

    BIBLIOGRAFIA.

    BOSCH, David J. Misso Transformadora: Mudanas de Paradigma na Teologia da

    Misso. So Leopoldo, Sinodal. 2002.CAVALCANTI, Robinson. A Utopia Possvel: em busca de um cristianismo integral.

    Viosa, Ultimato. 1997.

    ______________________. A Igreja o Pas e o Mundo: Desafios a uma F Engajada.

    Viosa, Ultimato. 2001.

    ESCOBAR, Samuel.A servio do Reino. LTC. 1985.

    FRESTON, Paul.F Bblica e crise Brasileira. So Paulo, ABU. 1992.

    GONZLES, Justo L. Dicionrio Ilustrado dos Intrpretes da F. So Paulo,Academia Crist. 2005.

    29

  • 7/29/2019 4723163 Teologia Da Missao Integral

    30/30

    LONGUINI NETO. Luiz. O Novo Rosto da Misso: Os Movimentos Ecumnico eEvangelical no Protestantismo Latino-americano.Viosa, Ultimato. 2002.

    O Presente, o Futuro e a Esperana Crist: Principais Apresentaes do II Congresso

    Latino-americano de Evangelizao (CLADE II). Viosa, ABU.

    REILY, Duncan Alexander.Histria documental do Protestantismo no Brasil. So Paulo,ASTE. 2003.

    ROLDN, Alberto Fernando.Para que serva a Teologia? Londrina, descoberta. 2000.

    STEUERNAGEL, Valdir (org).A Misso da Igreja. Belo Horizonte, Misso Editora.1994.

    STOT, John.John Stot Comenta o Pacto de Lausanne.So Paulo, ABU Editora. 1983.

    TAYLOR, William D. (org).Missiologia Global para o Sculo XXI. Londrina, Descoberta.2001.

    VVAA. A Misso da Igreja no Mundo de Hoje: As principais Palestras do CongressoInternacional de Evangelizao Mundial em Lausanne, Sua.So Paulo. ABU editora.1982.

    http://lausanne.org Lausanne Commitee for World Evangelization.

    30

    http://lausanne.org/http://lausanne.org/