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FREI LUIS DE LEÓN: DO CANTAR DOS CANTARES REFERIDO A JÓ por Nilton José dos Anjos de Oliveira Tese de Doutorado em Teoria Literária Apresentada ao Conselho dos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro Orientador: Prof. Ronaldo Lima Lins Rio de Janeiro, 1º. semestre de 2007

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FREI LUIS DE LEÓN: DO CANTAR DOS CANTARES REFERIDO A JÓ

porNilton José dos Anjos de Oliveira

Tese de Doutorado em Teoria LiteráriaApresentada ao Conselho dos Programas de

Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Orientador: Prof. Ronaldo Lima Lins

Rio de Janeiro, 1º. semestre de 2007

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Oliveira, Nilton José dos Anjos de. Frei Luis de León: do Cantar dos Cantares referido aJó. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2007. Tese de Doutorado em Teoria Literária, 225 páginas.

RESUMO

Luis de León foi o mais importante tradutor da Universidade de Salamanca no

século XVI. Dentre as obras que traduziu nos ocupamos neste trabalho,

fundamentalmente, de seus comentários a dois livros veterotestamentários: o

Cântico dos Cânticos e o Livro de Jó – os únicos livros bíblicos que ele traduziu

por completo. A questão que permeou toda a tese foi: por que esses dois livros e

não outros? Quais as relações possíveis entre eles? O primeiro, um canto nupcial,

amores, o canto que se sobrepõe a todos os outros, o canto de amor; o segundo, o

sofrimento do inocente transcrito em poéticos clamores, beirando o absurdo e a

desdita. Poeticamente, nos ocupamos de certos ‘paralelismos’ temáticos que se

insurgiam tanto num livro quanto no outro: a sombra, proximidade e distância, o

toque, a esperança, os campos, fluxos e refluxos da vida.

Além de alguns retóricos e poetas romanos, Luis de Léon foi influenciado por

Agostinho de Hipona e são Jerônimo. Do mundo medieval, teve Petrarca como

grande referência e, do moderno, Erasmo de Roterdã. Em função disso, nos

ocupamos mais ou menos detidamente desses autores que supracitamos.

Um outro viés relevante em nosso trabalho foi o de tentar compreender até que

ponto a caridade pode se constituir em método interpretativo (da vida do texto e

do texto da vida), já que esse é o cerne do livro da Doutrina Cristã de Agostinho.

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Oliveira, Nilton José dos Anjos de. Frei Luis de León: do Cantar dos Cantares referido aJó. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2007. Tese de Doutorado em Teoria Literária, 225 páginas.

ABSTRACT

Luis de Léon was the most important translator of the University of Salamanca (Spain) in

the 16th century. Among his works of translation we have basically chosen to study in

this thesis his comments on two books of the Old Testament: “Song of Songs” and “Job”

– both are the only biblical books he translated completed. The guiding questions we have

had in mind all the way through in this thesis are: why did he translate these two books

and not others? Which are the possible relationships between both? The first book, a

nuptial song, the song that overcomes all other songs, the love song; the second one, the

suffering of an innocent man transcribed into a poetic cry, bordering on nonsense and

misfortune. Poetically we have dealt with some ‘parallelism’ in themes that emerge from

both books: shadow, distance and proximity, touch, hope, the ups and downs of fortune.

Besides some rhetoric and roman poets, Luis de Léon was influenced by Augustine of

Hippo and Saint Jerome. He had Petrarch as a great reference from the medieval world

and Erasmus from the modern world; for this reason we have studied these authors as

well.

Another relevant path we have taken in this thesis has been trying to understand how far

charity can be used as an interpretative method (to interpret a text life and the life of a

text), since it is the major point in Augustine’s “Christian Doctrine”.

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INDICE

INTRODUÇÃO............................................................................................................................ 01

1. AGOSTINHO DE HIPONA: POR UMA HERMENÊUTICA EDIFICANTE........................ 21

1.1. A CARIDADE COMO CRITÉRIO....................................................................................... 21

1.2. CARIDADE, FÉ E ESPERANÇA ....................................................................................... 26

1.3. DILEÇÃO: DIALETO DA CRIAÇÃO ................................................................................ 31

1.4. SINCRETISMO: O FLORESCER DA CULTURA ............................................................. 35

1.5. SENTIDOS DA SAGRADA ESCRITURA ......................................................................... 40

1.5.1. CONTROVÉRSIAS ANTI-MANIQUEÍSTAS: O MAL COMO SUBSTÂNCIA?.......... 41

1.5.2. VOLIÇÃO PELAGIANA E A RESPONSABILIDADE PELO MAL .............................. 44

1.6. O QUE PODE A CRIATURA? ........................................................................................... .49

1.7. CONHECER A LEI NÃO É SUFICIENTE ......................................................................... 54

1.8. ORÍGENES: CONTRA CELSO .......................................................................................... 56

1.9. QUEM COMPORTA A MENSAGEM? .............................................................................. 59

1.10. FIGURA NA FIGURA ........................................................................................................63

1.10.1. FIGURA E PREFIGURAÇÃO ........................................................................................67

1.10.2. CONFIGURAÇÃO DO POLÍTICO .................................................................................74

1.10.3. TRANSFIGURAÇÃO: A RODA DA HISTÓRIA ......................................................... 78

2. FREI LUIS DE LEÓN: TRADUTOR HUMANISTA ............................................................ 90

2.1. DA TRADUÇÃO ................................................................................................................. 90

2.2. DA TRADIÇÃO ....................................................................................................................95

2.3. TRADUTTORE-TRADITORE ............................................................................................ 99

2.4. A LETRA E AS LETRAS .................................................................................................. 103

2.5. DIVERSAS LETRAS ......................................................................................................... 106

2.6. LUIS DE LEÓN E A CONTRA-REFORMA .................................................................... 108

3. EXPOSIÇÃO DE JÓ ............................................................................................................. 114

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3.1. SEM PELE NEM RAMOS ................................................................................................. 114

3.2. DERRAMADO, SEM ESPERANÇA ................................................................................ 118

3.3. ANTES DE RAMIFICAR .................................................................................................. 123

3.4. O SILÊNCIO E O LIVRO .................................................................................................. 127

3.5. A DOR INJUSTIFICÁVEL ................................................................................................ 129

3.6. O DESLIGADO E A JUSTIÇA .......................................................................................... 133

3.7. A QUEM CLAMAR? ......................................................................................................... 139

3.8. UMA PRESENÇA QUE ESPANTA .................................................................................. 141

3.9. DA FRAGILIDADE EM PRANTO ................................................................................... 145

3.10. QUAL SERÁ A CHAVE DA TRADUÇÃO ..................................................................... 151

4. EXPOSIÇÃO DO CANTAR DOS CANTARES .................................................................. 154

4.1. JÓ NUM CANTO ............................................................................................................... 154

4.2. A SOMBRA DO ENCONTRO .......................................................................................... 156

4.3. TENDER PARA O ENCONTRO ...................................................................................... 159

4.4. SOPRAR O PÓ ................................................................................................................... 163

4.5. A CIDADE: A PAZ E O ESPANTO .................................................................................. 166

4.6. “EU DURMO E MEU CORAÇÃO VELA” ...................................................................... 172

4.7. ALGO ESCONDIDO, VULGAR, NA VULGATA ............................................................. 175

4.8. A DOBRA DENTRO DA DOBRA .................................................................................... 185

CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 187

BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 196

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INTRODUÇÃO1

Quando começamos a escrever esta introdução demo-nos conta de que a parte que

introduz o texto é posterior, no tempo da escritura, àquela parte que já foi produzida. Para

introduzir é preciso reler o produzido e assim o texto apresentado (para os outros) é

reapresentado para aquele que o escreveu. Mesmo que nos fosse impedido recapitular o

texto e assim capitularmos diante dele, ainda assim o leitor (o terceiro) seria induzido a

lê-lo de um jeito ou de outro ao sabor de diferentes introduções. Por outro lado, se cada

introdução nascesse muito diferente da que foi escrita anteriormente, e todas elas fossem

apresentadas ao terceiro, elas em conjunto desviariam a atenção do texto que as originou.

Contudo, só de modo imaginário podemos referir-nos às introduções não descritas, aos

fantasmas de introdução que não se apresentam e ainda freiam a introdução que quer

decantar. Mas, o que me interessa nesse momento é deixar claro que apresentar o texto

que segue, é primeiro, reprovar uma busca ou provar (não no sentido de dar provas, mas

de passar por provações) enquanto se busca; e segundo, ver o que precipita sobre papel,

que cai na rede ou do céu, de modo persistente. Noutras palavras, sobraria algum traço

comum em meio a tantas possíveis introduções imaginárias? Haveria uma palavra tema

que também fosse lema e leme que como uma agulha ferisse o texto e alinhavasse o

tecido? O belo terror da introdução é que a duplicidade fica ainda mais evidente já que,

como dissemos acima, aquele que escreveu, cravou e crivou sobre papel, torna-se leitor

de si mesmo: um escravo, um escriba. Mas, e a palavra tema-lema? A palavra leme? Ou a

palavra lama, aquela que umedecida amolda e se amolda com mais facilidade ao

contingente?

1 Como disse Pascal: ‘O último que se determina ao escrever uma obra é saber o que é preciso colocar emprimeiro lugar’. Cf. GOLDMANN. (1986), p.266.

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Que palavra é essa inclusiva e inclusive? Para nós: cáritas (caridade, amor). Mas,

se por vezes as palavras nos movem, elas também se movem. E não foi diferente com a

palavra caridade: que caminhos ela não percorreu já que ela está presente tanto no ‘caro

amigo’ como no ‘objeto caro’! A caristia2 celebrada pelos e para os mortos3 até a caristia

que mata por falta de eucaristia, por falta de alimento e comunhão. Do amado amigo, ao

objeto inacessível. Da celebração em torno dos que já se foram - dessa viuvez que impede

a fala4, mas não o amor5 – ao impedimento da vida por usurpação e usura6. Não é um

movimento simples compreender o movimento da caridade seja no sentido do que ela

transforma, como no que ‘ela foi transformada’. A caridade, concomitantemente, se

encarnou na história e foi utilizada para iludir e dominar, ou seja, para desencarnar. Se

através da caridade se pode discernir o joio do trigo, o que fazer quando no decorrer da

história se confunde no interior mesmo do dizer caridoso o joio e o trigo. Como outrora

teria ocorrido com os filhos de Jó que bendiziam a Deus e por isso ele dizia: Si pecaron

mis hijos, y bendijeron a Dios en su corazón; isto é, se dissessem alegres e contentes: Tenha

Deus sua glória, que isto nos basta7. E assim, o bendizê-lo seria maldizê-lo, já que elogiá-lo

é uma das maneiras mais sutis de apartá-lo. Arriscado tratar desse tema, pois colocar a

caridade como palavra centro, nos causa o temor de enterrá-la pouco a pouco com a

acumulação de tantas outras palavras: ao arriscar, o receio de riscar a caridade. A

provação a que nos referíamos (nada, perto da provação dos verdadeiramente desditados)2 Segundo ISIDORO DE SEVILLA, cáritas era uma comida ritual, em homenagem aos defuntos da família.(2004), p.818.3 “Os pagãos rezavam aos mortos, enquanto que os cristãos rezavam por eles.” LE GOFF. (1989), p.61.4 Sir FRAZER sugere que no hebraico tem-se um parentesco entre ‘viúva’ (Alemanah) e ‘mudo’ (illem).(1992), p.460.5 O silêncio não impede o amor já que propicia a escuta. LACAN teria dito: “um dos fins do silêncio queconstitui a regra da minha escuta é justamente calar o amor”. (2005), p.15.6 Como afirma, MERLEAU-PONTY: ‘A história tira ainda mais daqueles que tudo perderam, e dá aindamais àqueles que tudo tomaram. Pois a prescrição, que tudo envolve, inocenta o injusto e indefere asvítimas. A história nunca confessa’. (1991), p.02. Esta é uma das temáticas do Livro de Jó que fica aindamais evidente se for levado em conta somente a parte ‘original’ do mesmo, ou seja, do capítulo 3 ao 31.7 LUIS DE LEÓN. (1991a), p.41.

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é justamente o de através do fortalecimento desta palavra, desfalecer o gesto que é seu

esposo. Mas, junto ao receio, tini pouco mais forte o anseio de fundir palavra e gesto,

onde a palavra já não induziria o gesto, mas se converteria no gesto que nos cabe nesse

momento. Das núpcias entre palavra e gesto: gesta, gestação.

Esse é o sentido que permeia ou que quis permear todo o texto e por isso

iniciamos o nosso trabalho com um capítulo a respeito de santo Agostinho e a

hermenêutica edificante onde ele propõe a caridade como chave de leitura de toda a

Sagrada Escritura. Agostinho só confirmou com os elementos retóricos que teve acesso

em seu tempo e contexto aquilo que Jesus compôs com a própria vida no momento que

resumiu toda Lei, ao firmar que o sumo, o supra-sumo, o resumo, o mais relevante, o que

releva se revela através da caridade. Não renegou o passado judaico ao firmar isso, pois a

caridade é inclusiva inclusive, mas com isso cambiou a experiência da retidão como

também a do pecado, assim não se trataria mais de povo eleito, mas leito, leite e mel:

seiva que alimenta e recupera esse homem-humus que nasce por toda a Terra e do seio da

terra com as mais diversas esperanças.

E por que iniciamos o texto com Agostinho? Por paternidade intelectual e de

carisma: Luis de León foi da ordem dos agostinianos (como pouco antes dele Martin

Lutero e Erasmo de Roterdã). Além disso, ele teria afirmado que Petrarca foi sua maior

influência. Este, por sua vez, ao confrontar-se com a escolástica incipiente sugeriu que

para ser um ‘ótimo’ teólogo seria suficiente ler com atenção parte da Doutrina Cristã de

santo Agostinho8. Portanto, Agostinho não se constituiu para nós uma escolha aleatória,

mas trajetória, ele nos foi sugerido pelos autores supracitados porque é comum na história

8 A influência agostiniana na obra de Petrarca é evidente em seu poema épico chamado ‘África’ que é umaexpressão versificada do que Agostinho desenvolveu em prosa na Cidade de Deus, a respeito dos deusespagãos. A relação é tão direta que sugerimos por nossa conta que inclusive o título seja uma homenagem dePetrarca a Agostinho que como se sabe nasceu no norte da África. Cf. LEUBE. (1986), pp.7-32.

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ocidental revisitar uma mentalidade anterior a uma crise conflagrada e, por conseqüência,

aportar certa negatividade para os movimentos mais recentes como se eles fossem

responsáveis pela crise ocorrente. Assim, com a crise na cristandade deflagrada no século

XVI foi imputada à escolástica uma parte de responsabilidade pelos desvios: não porque

tivesse desviado a mensagem ou se desviado dela, mas sim porque sua arquitetura era tão

genuinamente bem construída, tão conseqüente, tão clara que se separou da vida. Assim,

a escolástica não se afastou da mensagem, mas da vida e assim invalidou a primeira.

Tudo estava tão claro para o filósofo escolar que ele já não conseguia ver o que poderia

existir por detrás desta filosofia. Por isso, o retorno à Patrística: não era só uma questão

de tradição, mas de paixão9. O apaixonado sofre e ao sofrer interage, depara-se com a

resistência da vida, mas não pára, enfrenta-a. A vida é assumida em sua tensão e em

Agostinho, por exemplo, o conflito não descamba em aflição10. Exemplo, um conflito na

alma que se debate entre a vida e a morte. A alma imortal e o corpo que fenece. A alma

em núpcias com o corpo: se ela não morre por que teme a separação do corpo se seu

‘futuro está garantido’? Quanto a isso, Agostinho afirmou num de seus Sermões:

Sei que quereis continuar vivos. Não desejais morrer. Quereis passar desta vidapara outra de tal maneira que não vos reergais como mortos, mas plenamentevivos e transformados. É isso que desejais. Esse é o mais profundo sentimento

9 BUBER traça um pequeno quadro comparativo entre a postura agostiniana e a tomista a respeito dohomem: “Santo Tomás não conhece um problema especial nem uma problemática particular do ser humano,tal como os sentiu e expressou Agostinho com o coração angustiado. De novo volta a repousar o problemaantropológico: no homem adormecido e nada problemático, sem a menor necessidade interrogante embusca de uma confrontação consigo mesmo”.(1986), p.29. 10 Numa carta em que Agostinho enviou a JERÓNIMO encontra-se o seguinte comentário a respeito daamizade interrompida entre este e Rufino: “Mísera e lamentável condição! Falaz ciência a que se funda navontade dos amigos atuais, na que não se dá a presciência do futuro! Mas, por que penso que alguém tenhaque se lamentar disto com outro quando o homem não sabe o que ele mesmo vai ser amanhã? Conhece atécerto ponto e com dificuldade o que atualmente é, mas ignora em absoluto o que será. (...) E nela [nacaridade] descanso sem receio, pois nela sinto a Deus, em quem me arrojo seguro e em quem descansotranqüilo. E nesta seguridade minha não temo em absoluto esse amanhã incerto da humana fragilidade doque antes me lamentava.” JERÔNIMO. (1995), pp.277 e 281.

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humano: misteriosamente, a própria alma anseia por isso e instintivamente odeseja11.

Há muito o corpo esteve vinculado ao desejo e a alma à vontade. Mas aqui é a alma que

deseja levar o corpo consigo como se o hábito da comunhão com ele a fizesse temer a

separação. Essa tensão que se encontra em Agostinho é mais próxima da vida, do que

aquela em que o homem através da abstração da vida e da morte a tudo esclarece e, por

fim, carece o vínculo. É a confluência, a coincidência que nos interessa; o friccionar que

gerou o fogo e a vida em sua reprodutibilidade sexuada. É esse roçar dos aparentemente

opostos, a disparidade dos pares ora parados ora em disparada. Como afirmou Merleau-

Ponty:

Os animalia e os homens são isto: seres absolutamente presentes que têm umaesteira de negativo. Um corpo percepiente que vejo é também uma certa ausênciaque o seu comportamento escava e prepara atrás de si. Mas a própria ausênciaestá enraizada na presença, é por seu corpo que a alma do outro é alma a meusolhos. As “negatividades” contam também no mundo sensível, que édecididamente o universal12.

Do corpo para alma, da alma para o corpo: se todas as separações fossem representadas

por uma ampulheta, o furo, a passagem onde a areia precipita para medir outra passagem

- a do tempo – bem seria a caridade, ela é o furo, o arejamento. Aqui não se trata de

intercessão entre partes, mas de vinculação. Essas partes separadas que somos só

evidencia que somos parte de, onde a percepção do outro é a nossa forma de recepcioná-

lo: empresto-me ao outro, faço-o de meus próprios pensamentos: isso não é fracasso da

percepção do outro, é a percepção do outro13. O vínculo entre a palavra e o gesto, entre o eu e

11 Sermão 344.4: 39: 1514. cf. BROWN.(1990), p.333.12 MERLEAU-PONTY. op.cit., p.190.13 IDEM, p.175.

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o outro, entre o corpo e alma. A partir disso é que Simone Weil teria afirmado que o

maniqueísmo é uma dessas tradições nas que se pode ter a segurança de encontrar a verdade se se

estuda com suficiente piedade e atenção14, justamente pelo fato de que essa tradição no seu

viés mais profundo enuncia uma luta entre os pares díspares. Não confundir, portanto, tal

tradição com qualquer manifestação de sectarismo que faz da própria afirmação a

negação do outro, e assim na luta entre o bem e o mal, o bem que vence se confunde com

aquele que tenta convencer.

Toda temática de um Deus unívoco, definitivamente claro, só depõe contra a

relação, pois os homens que se aproximam desse Deus não são portadores da suposta

clareza divina, mas sim da duplicidade que Ele ilumina. Para o que buscamos,

consideraremos Deus mais caro do que claro. Desse modo, o que nos é dado falar é a

respeito do vínculo, mais do que sobre o que se vincula. Ao se criar um vínculo com

quem quer seja, o vínculo criado torna-se o outro para nós e, para a tradição cristã o outro

que nunca será totalmente conhecido (e nem é isso que se almeja) só poderá ser

reconhecido através do amor. Ou seja, o amor é o propiciador do outro, sem os seus

desígnios o ‘outro’ será suprimido ou oprimido. Segundo Vattimo,

a revelação da Escritura não reside em fazer-nos saber como somos, como estáfeito Deus, qual é a natureza das coisas ou quais são as leis da geometria e coisassemelhantes, como se pudéssemos salvar-nos através do “conhecimento” daverdade. A única verdade da Escritura se revela como aquela que no curso dotempo não pode ser objeto de nenhuma desmistificação – já que não é umenunciado experimental, lógico, nem metafísico, senão uma apelação prática - : éa verdade do amor, da caritas15.

14 WEIL. (1998), p.38.15 VATTIMO. (2006), p.75.

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Aqui não se trata do ressentimento dos fracos contra os fortes, ou de qualquer

espírito de vingança, pois os ressentidos querem ser fortes e oprimir e os que se vingam

almejam suprimir. Diferentemente, a caridade em tudo só se depara com a fraqueza e

assim, para ela não existe antinomia entre fortes e fracos já que frágil é a condição

humana e de um modo mais lato, de todo o criado e assim, a caridade não resolve as

dicotomias, mas surge ela mesma como um dos termos. Deparar-se com a fragilidade:

querê-la ou querela (em Jó isto está muito bem sintetizado!). Terrível para história da

religião cristã que o par fragilidade-sofrimento tenha descambado no excludente pecado-

culpa16. Foi necessário que entendêssemos um pouco essa questão com Agostinho, já que

o livro de Jó mais do que tratar de um pecador, diz respeito a alguém que a ferro e fogo

depara-se com sua pequenez e relatividade. Não é mera coincidência, por exemplo, que

Jó sofresse de um problema de pele, por contraste, muitos povos antigos concebiam a

serpente como imortal justamente por cambiar a pele17, a cada muda uma mudança, a

cada muda, a permanência. Diferentemente, Jó com a pele ferida, cortada, diante da não

permanência: a experiência do não. Jó teve retirado os bens, os entes queridos e a saúde18.

Perdeu tudo que o dignificava: perdeu poder ou percebeu que não o tinha? William James

16 Segundo METZ, ‘a linguagem cristã a respeito de Deus perdeu muito cedo sua sensibilidade para osofrimento. Desde o princípio tratou de safar-se do inquietante problema acerca da justiça em favor dos quesofrem injustamente, transformando-o diretamente no problema sobre a redenção dos culpáveis’. (1996),p.13.17 FRAZER. op.cit., p.30.18 “Não temos que desejar a desdita; isso é contrário à natureza; é uma perversão; e, sobretudo, a desdita épor essência o que se sofre apesar de si mesmo. (...) Porém o que está de fato perpetuamente presente, o queem conseqüência sempre está permitido amar, é a possibilidade da desdita. Os três rostos de nosso ser estãosempre expostos a isso. Nossa carne é frágil; qualquer parte de matéria em movimento pode atravessar,desgarrar, aplastar ou deteriorar para sempre algum de seus mecanismos interiores. Nossa alma évulnerável, sujeita a depressões imotivadas, lamentavelmente dependente de toda classe de coisas e de seresem si mesmos frágeis ou caprichosos. Nossa persona social, da que quase depende o sentimento de nossaexistência, está constante e inteiramente exposta a todos os azares. O centro mesmo de nosso ser está ligadoa estes três aspectos por umas fibras tais, que sentem todas as feridas minimamente graves que neles seproduzem até chegar a sangrar. De forma especial, aquilo que diminui ou destrói nosso prestígio social,nosso direito a consideração, parece alterar ou abolir nossa mesma essência e assim temos por substância ailusão. (...)Não se pensa nesta fragilidade quase infinita quando tudo vai mais ou menos bem”. WEIL.(1995), p.76.

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sustenta que a impotência do homem e a potência de Deus são os temas exclusivos do

autor do Livro de Jó19: onde ajoelhar-se é a demonstração de quem já não tem os pés no

chão, e assim se dobra e dobrado, clama, como são Paulo: por isto dobro meus joelhos

diante do Pai de quem toma nome toda paternidade no céu e na terra20. Mas, o grito de Jó é

lançado para uma presença, e não compreendê-la é ainda pressupô-la e por ela ser

envolvido.

No Livro de Jó fazer questão a (interrogar) se confunde com o fazer questão de

(valorizar) Deus. Contemporaneamente, ainda vemos esta síntese na obra de Kafka que,

segundo a arguta percepção de Camus, saca de suas contradições razões para crer, razões para

esperar em suas desesperações fecundas, e que chama vida a sua aterradora aprendizagem da

morte21. Poderiam ser de Jó estas palavras raivosas de Clov (personagem de Beckett):

Emprego as palavras que me ensinastes. Se já não significam nada, ensina-me outras22.

O fim da metafísica pôs em xeque a verdade, mas não a busca do significado23. O

homem desamparado é aquele para quem a vida está por perder o significado: carece de

alimento e sinais, de sinal de alimento, tanto física quanto espiritualmente.

Diferentemente, para aquele que compreende a vida como não significando (ou seja,

significa a vida negativamente), apático, mesmo que visitado pelo tédio de algum modo

estará acompanhado e se sentirá seguro. Portanto, é no ponto de fricção de mundos e de

estados, é ali no limite de cada um, como uma fissura que divide parede em duas partes, é

19 JAMES. (2002), p.118. 20 Cf. ORÍGENES. (1992), p.40. Ao comentar um versículo do Êxodo onde se faz referência a escarlatedobrada Orígenes afirma: “Este calor, como já dissemos, indica o elemento fogo. Porém o fogo tem umadupla virtude: ilumina e queima.” IDEM, p.217. Para um homem que se dobra, um fogo que só o atingiráinteiramente se também for dobrado.21 CAMUS. (1983), p.179. É preciso assinalar que para Camus na vida persiste algo que escapa não só àcompreensão, mas à possibilidade de consolo, manifestação do absurdo. 22 BECKETT. (2006), p.48.23 Para Richard RORTY esses termos se igualam ao pressuporem um fundo ou fundamento que ainda éresquício metafísico. (2002), p.112.

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ali, propriamente na linha (de frente) que ocorre o combate. É ali, no rejunte dos azulejos

que a dilatação é percebida, e nessa ‘luta por espaço’ que eles poderão descolar e deslocar

ao chão: a queda e a quebra. Quando Pascal se deparou com o espaço infinito (que se

dilata na proporção de sua grandeza) e assimilou-o em seu coração24, percebeu que um

problema existencial pode advir também de uma crise na representação do mundo25. A

respeito disso, dirá Buber:

A solidão de Pascal é, em efeito, historicamente posterior à de santo Agostinho;é mais completa e mais difícil de superar. E de fato se produz algo novo, que nãohavia acontecido nunca: se trabalha na construção de uma nova imagem domundo, porém já não se constrói uma nova mansão cósmica. Uma vez que selevou a sério o conceito de infinito, não é possível converter o mundo numamansão para o homem. E na imagem do mundo tem que se colocar o infinito,coisa paradoxal, porque uma imagem, quando realmente o é, é também umafigura, limitada e se trata nada menos que de meter nela o ilimitado26.

Contudo, Pascal escapa da crise de representação recusando-se a representar o

Deus em que acreditava. Parecia intuir que o inapropriado advém da gula de apropriação.

Noutras palavras,

as provas metafísicas de Deus acham-se tão afastadas do raciocínio dos homense tão embrulhadas que pesam pouco; e, mesmo que isso servisse para alguns,serviria apenas durante o instante em que vissem essa demonstração; mas, umahora depois, receariam ter-se enganado27.

24 Contudo, como atesta Xavier Zubiri no prólogo de sua tradução do texto de PASCAL: [coração] ‘nãosignifica o cego sentimento, por oposição à pura razão cartesiana, senão o conhecimento constitutivo do sercotidiano e radical do homem’. (2004), p.09. 25 ORTEGA Y GASSET formula ‘dois princípios fundamentais para a construção da história: 1º. O homemconstantemente faz mundo, forja horizonte. 2º. Toda mudança do mundo, do horizonte, traz consigo umamudança na estrutura do drama vital’. (1989), p.43.26 BUBER. op.cit., p.34. Vemos aqui uma persistência da relevância de Agostinho: no Renascimento foirevisitado por teólogos e poetas para arrefecer a escolástica e, posteriormente, dentre outros, por Pascal,como contraposição ao racionalismo: “Já Pascal, e em seguida Kant, Hegel, Goethe e Marx, na Alemanha,elaborariam uma nova visão do homem, visão que, ao integrar as conquistas reais do racionalismo e doempirismo das luzes, se orienta não obstante, novamente, até a superação do pensamento conceitualfechado em si mesmo e se une assim, em alguns aspectos essenciais, através da filosofia da natureza dosséculos XV e XVI, à grande tradição agostiniana’. Lucien GOLDMANN. (1986), pp.228-229.27 PASCAL. (1988), p.165.

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Por conseguinte, evocará Isaías e dirá com ele: Tu és realmente um Deus escondido28. Mas,

e a caridade não seria uma representação de Deus? Pelo menos para Pascal não, pois ao

contrário, a caridade é a resposta contra toda e qualquer representação de Deus: Faz-se um

ídolo da própria verdade; pois a verdade, fora da caridade, não é Deus: é a sua imagem e um

ídolo que não se deve amar nem adorar29. Temos assim que só a caridade arrefece a

possibilidade de idolatria que ocorre quando se tenta representar Deus.

Contemporaneamente, Hannah Arendt sintetiza assim a apropriação metafísica de Deus:

Certamente não é que Deus esteja morto, algo sobre o qual o nossoconhecimento é tão pequeno quanto o que temos sobre a própria existência deDeus (tão pequeno, de fato, que mesmo a palavra “existência” está malempregada); mas que a maneira pela qual Deus foi pensado durante milhares deanos não é mais convincente; se algo está morto, só pode ser o pensamentotradicional sobre Deus30.

Esse ‘pensamento tradicional sobre Deus’ a que Hannah Arendt se refere diz

respeito ao que foi posteriormente denominado de Deus dos filósofos. Um Deus

apresentado organizadamente em sumas em que o método de abordagem é denunciar

contradições aparentes, para posteriormente enunciar a não-contradição. Toda confusão

advém do seguinte: um Deus deu a ordem, ordenou o mundo. Se existir uma desordem no

mundo é preciso resguardar Deus dela. Curiosa inversão na cultura ocidental: um Deus

protetor, necessitando ser protegido com fios de argumentos. A contradição aumenta na

mesma proporção em que se compreende Deus como ordenador. Foi imposta uma ordem

no discurso de Deus. Diferentemente, se a ênfase recai sobre o seu poder criador, desloca-

28 Is 14,15.29 PASCAL. (1988), p.181.30 ARENDT. (2000), p.10.

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se do argumento debatedor, combativo e negativo (como nos lembra Rosenzweig um

conceito é sempre negativo pelo menos com respeito a outros31) para a expressão poética

que é inclusiva. Enquanto o argumento é (con-) seqüencial, a poesia é a que mais se

aproxima da simultaneidade. O sofrimento de Jó entendido como conseqüência de é

moralizante, mas quando tal sofrimento é iluminado por seus amigos, por Deus, por seu

passado, por suas perdas, por suas desesperanças, todas essas incisões (coincidências)

elucidam a profundidade de sua dor bem como sua tentativa de compreender.

Os comentários anteriores do livro de Jó ficaram, por muito tempo, fadados a falar

ora da ira divina, ora da paciência de Jó. Contudo, nunca ficava claro o porquê da criatura

ser paciente e o Criador irado. Se o homem com todas as suas limitações se manifestasse

com ira e Deus com toda a sua onisciência fosse mais pacífico, isso sim seria

moralizador. Quem tudo pode não precisa irar-se, mas simplesmente ordenar. Mas, ali

não era diretamente o Criador quem ditava, mas aquele que tinha sido há muito seu porta-

voz: Satã, o hipócrita (por conseqüência, todos os porta-vozes de Deus carregam a

possibilidade da mesma mácula). Não continuaremos aqui essa cadeia de incidências,

mas podemos assegurar que essa multiplicação de perspectivas foi tornada possível com o

auxílio de um autor como Luis de León que longe de traduzir e comentar o texto com as

censuras tão comuns num tempo em que a Igreja ainda detinha poder sobre a

interpretação das Escrituras pôde lançar-se à garimpagem da língua hebraica e sugerir

diversas imagens para um mesmo versículo. É bem verdade que sua interpretação só não

foi mais perseguida porque ela ocorreu pouco depois da Reforma Protestante e, se por um

lado a Contra-Reforma objetivava continuar centralizando os modos de tradução e

interpretação das Escrituras Sagradas, algo patente no Concílio de Trento, por outro, o

31 ROSENZWEIG. (1997), p.63.

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receio de se perder quadros para o protestantismo fazia com que o ‘martelo das

feiticeiras’ não batesse tão forte sobre os humanistas católicos. Segundo Marcel Detienne

o protestantismo contribuiu sobremaneira para marcar a diferença dentro de uma estrutura

que se queria monolítica:

Da imaginação para arquitetar a comparação de civilizações, há grandenecessidade e, sem dúvida, os Reformadores nisso ajudaram, fazendo dançar oteto de São Pedro, quebrando mais de um vitral da catolicidade romana,estilhaçando a religião em mil seitas e heresias tão vivas quanto as chamas doinferno, obrigando a cada dia uns e outros a comparar as crenças, abrindo assimo caminho para aquilo que hoje se tornou uma coisa inata em nós: a crítica dastradições e de tudo o que nos é transmitido32.

É nesse intermédio que Luis de León pôde se ocupar não só do Livro de Jó, insistindo

menos na ira divina e mais nas rogações e interrogações, nas exclamações e clamores do

homem a Deus; e, no Cantar dos Cantares distanciou-se da leitura alegórica que

pressupunha uma relação de amor entre Deus e a Igreja, pois estava claro para ele que

‘originalmente’ tratava-se de um epitalâmio, um canto de núpcias entre um homem e uma

mulher. Contudo, nem num caso quanto no outro negou as leituras anteriores até porque

para ele, poderíamos adequar a formulação de Pareyson, de que a tradição por sua própria

natureza não pode avançar se não se renovando33.

Mas no nosso contexto atual, de que tradição se trataria? Hoje que o passado já

não é revisitado, mas reinventado, onde as nações se deparam com a impossibilidade de

uma história oficial e que se revalorizam tradições orais de diversas partes advindas,

ainda é possível falar de uma tradição que se renova? Paradoxalmente, as coisas se

mostram mais puras ao se apresentarem de modo sincopado. Se o futuro nunca foi para o

32 DETIENNE. (2004), p.21.33 PAREYSON. (1982), p.48.

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homem o tempo da segurança, há muito que o passado já não pode confortar como um

colchão já posto. E, se for correto afirmar que a história é uma forma de ressuscitar o que

estava morto, não é menos correto dizer que elegemos o que ressuscitar. Mesmo os

caridosos têm a tendência a ressuscitar o que já amam regando o próprio jardim:

No jardim de Milão, onde Agostinho lutava por chegar a uma decisão, o funestobruxulear da “esperança deste mundo” (aquele aglomerado sedutor e difuso deexpectativas predominantemente sociais ligadas ao sucesso, à posição social, aoconforto e à segurança, contra o qual tantos rapazes e moças comovidas pelomovimento ascético se opuseram tenazmente durante o século IV) haviaminguado para uma escolha de precisão implacável34.

Ou, quando são Jerônimo escreve ao papa Dámaso:

Sacudido pelo velho furor que enfrenta aos povos entre si, o Oriente desfaz empedaços a túnica inconsútil do Senhor, a túnica que foi tecida de uma só peça, eas raposas devastam a vinha de Cristo, até o ponto de que, entre as cisternas rotase sem água, se torna difícil adivinhar onde está a fonte selada e o jardimcercado35.

Ou, Luis de León ao traduzir e comentar o seguinte versículo:

Huerto cercado, hermana mia, Esposa; huerto cercado, fuente sellada. (...)Huerto cercado, isto é, guardado dos animais, para que não lhe danifiquem, etratado com curioso cuidado; que onde não existe cerca, não se pode criarjardim; como na alma que vive sem receio e sem recato nem aviso, não tem quepedir-lha nem planta nem raiz de virtude.Hermana mia, Esposa, entende-se, és tu huerto cercado. Repete-o pela segundavez para valorizar ainda mais a significação do que afirma. E fuente sellada, queé cercada com diligência, para que ninguém turbe sua claridade.(...) Segundo a verdade do espírito, é necessário advertir que no justo e navirtude estão juntos proveito, deleite e alegria com todos os demais bens, semhaver coisa que não seja de utilidade e valor; e que não só tem e produz fruto quedeleite o gosto e com que sustente sua vida, senão também possui verdor defolhas e olor da fama com que recreie e sirva ao bem de seu próximo. Comodeclara maravilhosamente o real profeta Davi, onde afirma que o justo é como aárvore plantada nas correntes das águas, que dá fruto a seu tempo, que está

34 BROWN. (1990), p.318.35 JERÔNIMO. (1993),p.126.

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sempre verde e fresco, sem secar nem cair a folha. E assinaladamente é deadvertir que todas estas árvores de que faz menção são de formosa vista eexcelente olor; para que confunda o desatino dos que se contentam para suasaúde com a fé que está escondida na alma, e não fazem caso das boas elouváveis mostras de fora [das obras], que são a folha e o olor que edifica oscircunstantes36.

Uma cerca envolvendo cada cultura, cada jardim. Cada amada e amado, um jardim. Em

cada crença, um jardim. Em cada canto da terra, um mundo que foi tomando uma forma

que nem seus cultores sabem exatamente como ocorreu. É possível acercarmo-nos sem

destruir. E não se trata de uma nostalgia do Éden, um jardim de delícias; mas, de

encantar-se com a vivência da partilha. É necessária a cerca para acercarmo-nos e

também para não fugirmos de nossa tarefa de plenificar a vida, pois desde que o horizonte

engloba o conjunto das sociedades humanas, o empreendimento de um só não tem mais sentido

algum37. E mesmo este respeito às múltiplas formas de manifestação cultural do ser

humano é já um jardim cercado que superou o etnocentrismo, mas não a

antropomorfização tão cara ao cristianismo e que Celso já criticara de modo tão mordaz:

Sapos reunidos em torno de um charco, ou vermes congregados em algum cantoasqueroso, dizendo: “Deus chegou mesmo a abandonar o mundo inteiro e osmovimentos dos céus, e menosprezou a terra imensa para dar atençãoexclusivamente a nós.” São como os vermes que dizem: “Primeiro há Deus, edepois Dele somos a categoria seguinte...e todas as coisas existem para o nossobenefício”38.

Compreender esses movimentos de nossa cultura, o nosso jardim foi o que objetivamos.

Um retrato que não poderia ser fiel (nem conseguiria), pois não quis ser retrato, mas trato

e tratamento. Dito isso, o leitor saberá melhor, literalmente, do que o texto trata.

36 LUIS DE LEÓN. (1991), pp.137-139.37 DETIENNE. (2004), p.48.38 Cf. BROWN. (1990), p.147. ORÍGENES. (1967), p.259.

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Frei Luis de León viveu na Espanha de 1527 - 1591, personificava, segundo

muitos de seus comentadores, o Renascimento espanhol39. Isso já seria suficiente para

enunciar a sua relevância. No entanto, quando nos apropriamos, paulatinamente, de sua

obra e a inserimos ou desvelamos o seu contexto histórico, é que podemos entender

melhor o porquê de sua luminosidade. Foi um erudito: tradutor – tanto de textos bíblicos

como também de poetas gregos e romanos como Eurípedes, Píndaro, Virgílio, Horácio

etc – dominava o hebraico, o grego e o latim e foi professor da Universidade de

Salamanca. Além disso, o pensador e o místico estão no mesmo nível que o poeta40.

Como tradutor, aproxima-se da tradição inaugurada por são Jerônimo de recorrer

ao texto em hebraico para dirimir dúvidas a respeito das traduções da Sagrada Escritura.

No entanto, frei Luis de León diferencia-se de são Jerônimo quanto ao método a ser

utilizado para a tradução: são Jerônimo, orientando-se por autores romanos como Cícero41

e Horácio42, era da opinião de que o tradutor não deve ter a preocupação de contar palavra

por palavra, mas pesá-las43; enquanto frei Luis de León afirmava que

o que traduz tem de ser fiel e cabal e, se for possível, contar as palavras paraoferecer tantas outras, e nem mais nem menos, da mesma qualidade e condição evariedade de significações que possuem as originais, sem limitá-las a seu própriosentido e parecer, para que aqueles que venham a ler a tradução possam entendertoda a variedade de sentidos que o original possibilita, se o lessem, e fiquemlivres para escolher dentre eles, o que melhor lhes parece44.

39LUIS DE LEÓN. (1951), p.16.40IDEM, p.15.41 “Sim, como espero, traduzi as orações deles [Esquines e Demóstenes] mantendo todas as suas altasqualidades, quer dizer, com suas idéias e figuras e encadeamentos da matéria, assinalando as palavras namedida em que não repugnam ao uso de nossa língua – nem todas, no entanto, foram vertidas do grego;contudo, nos esforçamos para que elas enunciem idéia similar” (Cícero, De optimo gen. orat. 23). InJERÓNIMO. (1962), p.491.42 “Não trates de verter, escrupuloso intérprete, palavra por palavra”. (Horácio. Ars poet. 133s). IDEM,IBIDEM.43 IBIDEM, p.485.44 LUIS DE LEÓN. (1951), p.65

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Desse modo, tanto são Jerônimo como frei Luis de León podem ser compreendidos como

hebraístas: de igual modo respeitaram a Edição dos Setenta Intérpretes, mas Jerônimo

sobrevoou essa edição grega para constituir a versão latina diretamente do hebraico. De

igual maneira, Luis de León bebeu dos Setenta e da Vulgata, mas quando se propôs a

traduzir alguns textos bíblicos quis ser fiel ao exercício de Jerônimo mais do que ao

resultado do mesmo e assim sobrevoou a versão latina e realizou a tradução do hebraico

para o castelhano.

Para são Jerônimo restou a incompreensão de muitos de seus contemporâneos,

entre eles, santo Agostinho de Hipona, com quem travou uma interessante polêmica

desenvolvida através de epístolas e, posteriormente, compreendida por ambos, como um

mal entendido. Santo Agostinho tinha motivações pessoais e pastorais para discordar da

perspectiva hebraísta de são Jerônimo: mesmo sendo um pensador brilhante não possuía

conhecimento suficiente do hebraico que o obrigava a recorrer às versões gregas e latinas

dos textos bíblicos. Como bispo, temia a multiplicação de interpretações da Sagrada

Escritura, a partir de novas traduções, o que poderia facilitar ainda mais o surgimento de

outras heresias.

No século XV aquela inquietação agostiniana parecia ainda se justificar, no

entanto, almejava-se – pelo menos por parte de religiosos que não resistiam ao

Humanismo - uma resposta mais positiva diante do problema das traduções dos textos

bíblicos e, desse modo, nas terras de Espanha, surge um personagem fundamental: o

cardeal Cisneros que tenta agregar o maior número possível de especialistas para a

realização de uma empreitada estupenda: uma nova tradução da Sagrada Escritura, com

uma motivação fundamental, como nos assevera Marcel Bataillon: a multiplicação dos

textos de toda espécie, defeituosos ou corretos, em edições de milhares de exemplares, fazia ver

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de maneira claríssima a importância da crítica verbal. A correção do texto bíblico estava na

ordem do dia45.

No entanto, com a morte do cardeal Cisneros em 1507, o Humanismo sofre um

pequeno refluxo na Espanha e no transcorrer do século XVI se tornará um Estado visitado

recorrentemente pelo Santo Ofício. Em 1559, o mais rigoroso de todos os Índices proibiu

drasticamente as traduções da Escritura em língua vulgar, por parciais que fossem46. A tradução

do ‘Cantar dos Cantares’, por parte de frei Luis de León, se deu entre os anos de 1561 e

1562. Em função do Índice supracitado, ele será encarcerado, posteriormente, por cinco

anos. A condenação da obra de frei Luis de León não se dá, portanto, em função de

qualquer comentário ‘equivocado’ que este poeta-tradutor possa ter feito da Escritura

Sacra, mas simplesmente pelo fato da Igreja temer que ocorresse na Espanha o mesmo

que ocorreu na Alemanha em 1517. Os responsáveis pelo movimento de Contra-Reforma

acreditavam que um dos motivos para o “sucesso” da Reforma Protestante teria sido a

vulgarização da Sagrada Escritura, traduzida para o alemão por Martin Lutero. Eram da

opinião de que a tradução da Bíblia para um língua vulgar tornou mais acessível, para um

número mais significativo de pessoas, as verdades da fé cristã. Disseminado o saber a

respeito de, diluiu-se, por conseqüência, a estrutura de poder eclesial constituído

(contudo, não podemos nos esquecer que a tradução para um língua vulgar não era

suficiente para divulgar um texto. No caso do protestantismo, há que se levar em conta o

modo eficaz com que ele utilizou as novas técnicas tipográficas inauguradas por

Gutemberg47).

45 BATAILLON. (1966), p.28.46 IDEM, p.46.47 ANDERSON. (1989), p.49.

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O que nos interessa, neste momento, não é colocar em xeque os argumentos de

uma ou outra parte, ou tomar partido por uma ou outra parte, pois bem se sabe que os

movimentos históricos estão sempre envoltos por uma névoa que os tornam complexos.

Mas, o que para nós é extremamente relevante, é notar o quanto a escolha de um texto a

ser traduzido, naquele contexto, era não só uma escolha que assumia contornos

exclusivamente estéticos, mas também políticos. Desse modo, a figura do tradutor

revestia-se, querendo ou não, naquela circunstância, de uma responsabilidade sem igual.

E isto se dá pelo menos por dois motivos: no momento mesmo do tradutor escolher um

texto, em detrimento de outro de um mesmo autor, induzirá, propositada ou

despropositadamente, a apreensão desse autor a partir de sua própria perspectiva

interpretativa. E, além disso, no ato de traduzir terá o poder de dar novas significações a

palavras que pareciam unívocas. É esta figura do tradutor como portador de uma espécie

de equivocidade que o tornava uma figura admirada, como também perseguida, pelo

menos quando se propunha a verter textos da Sagrada Escritura. Em se tratando de textos

bíblicos tradição (o que veio do passado e aporta no presente) e tradução (aquilo que

comportado no presente poderá ser lançado ao futuro) estão sempre em luta. Toda e

qualquer tradução que pudesse colocar em risco a tradição era censurada. A definição de

Plínio sobre a arte de traduzir – pôr coisas para os nomes e nomes para as coisas48 – quando

relacionada com os textos bíblicos geram uma problemática que transcende as regras

literárias, pois que a questão que se desvela é o direito ou não do tradutor renomear o que

foi nomeado por Deus.

Quando nos aproximamos de frei Luis de Léon tradutor, nos surpreendemos com

o modo como ele se comportou diante daquela problemática supracitada. Dentre os textos

48 cf. BATAILLON. (1966), p.33.

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bíblicos que tiveram por parte dele atenção especial estão o ‘Cantar dos Cantares’ (como

ele gostava de chamar) e o Livro de ‘Jó’. Mas, quanto ao modo de traduzir, e é isso que

nos interessa nesta introdução, ele realizou uma tradução comentada, pois que através dos

comentários poderia justificar a razão de suas escolhas. No entanto, os comentários

tornaram-se, em verdade, uma bela interpretação dos textos bíblicos e, o que é

surpreendente, revigorou os textos que ele, inicialmente, quis tão somente traduzir.

Portanto, conseguiu, de uma só vez, satisfazer as exigências do poder eclesial constituído

– já que não fez uma tradução livre, onde poderia incorrer no ‘erro’ de negar o esforço

dos tradutores da tradição – como também, não abriu mão de sua verve humanista, a

partir do momento que externou toda a sua erudição e poesia nos comentários.

Quando nos referimos ao Humanismo uma figura desponta na passagem do século

XV para o XVI: Erasmo de Roterdã. Ele propunha a abertura da Cristandade para as

redescobertas, ainda incipientes, que estavam ocorrendo dos autores antigos,

considerados pagãos pelo poder eclesial. Não conseguia admitir que a Igreja deixasse de

aproveitar e até agregar uma literatura tão fértil que permaneceu esquecida ou à margem

da Cristandade. Erasmo também propunha reformas desde que estas não conduzissem a

rupturas. Erasmo, Lutero, como também frei Luis de León, foram formados no seio da

mesma ordem religiosa, a agostiniana. No entanto, segundo a opinião do próprio Lutero49,

Erasmo identificava-se com são Jerônimo, enquanto ele afirmava ter sido mais

influenciado por santo Agostinho. Frei Luis de León situava-se, quanto às influências, a

meio caminho em relação àqueles autores do século IV, pois que, no que diz respeito à

espiritualidade e ao viés místico era de fato um agostiniano; mas em relação à erudição,

identificou-se mais com são Jerônimo, já que via com bons olhos a apropriação, por parte

49 FEBVRE. (1972), p.52.

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do cristianismo, de toda e qualquer bela letra. Como afirma Félix Garcia: as palavras são

para ele coisa sagrada, porque são o veículo da intimidade afetiva e ideal50.

50 LUIS DE LEÓN. (1951), p.15.

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1. AGOSTINHO DE HIPONA: POR UMA HERMENÊUTICA EDIFICANTE

1.1 A CARIDADE COMO CRITÉRIO

Quando no livro da Doutrina51 Cristã Agostinho explicita o modo pelo qual a

Sagrada Escritura deveria ser interpretada, ele impõe ao hermeneuta52 ou exegeta bíblico

(cristão) a seguinte pré-condição:

o que julga haver entendido as divinas Escrituras de alguma parte delas, e comesta inteligência não edifica este duplo amor de Deus e do próximo, ainda não asentendeu. Porém quem houvera deduzido delas uma sentença útil para edificar adupla caridade53 - mesmo que não diga o que se demonstra haver sentido naquelapassagem o que a escreveu - nem se engana com prejuízo, nem mente54.

Essa máxima de Agostinho acompanhou (ou deveria ter acompanhado!) todos os

intérpretes cristãos das divinas letras55. Aquela referência agostiniana à ‘dupla caridade’

se dá porque anteriormente ele afirmara que:

51 Doutrina é compreendido como paidéia, educação: “denota o processo educativo humano quedesenvolve e humaniza a natureza e, na nova perspectiva de Agostinho, ajuda a curar e santificar”.RIPANTI. (1980), p.17.52“O verbo hermeneuin designa, na origem, tanto (senão mais) a atividade de produção dos discursos comoo da sua compreensão. É a partir das categorias da retórica de Cícero que Santo Agostinho desenvolve aprimeira grande hermenêutica cristã”. TODOROV. (1980), p.20. Em AGOSTINHO, a seguinte passagemsobre ‘hermenéia’: “Diz-se chamado Mercúrio porque corre no meio, assim como a palavra corre entre oshomens. Por esse motivo chama-se em grego Hermes, porque palavra, ou a interpretação que se lhe dá, sediz hermenéia (...) Também lhe chamam núncio, porque por intermédio da palavra se expressam ospensamentos”. (1991), p.275.53 Grifo nosso.54AGOSTINHO. (1957). p.105.55 A título de exemplo, citemos Kierkegaard: “Esta intimidade do pensamento cristão com a vida(contrastando com a distância que a especulação mantém) e também esse aspecto ético do cristianismo,implicam precisamente a edificação, e uma separação radical, uma diferença de natureza, separam umaexposição desta espécie, não obstante o seu rigor, dessa forma de especulação que se quer ‘imparcial’, ecujo pretenso heroísmo sublime, bem longe de o ser, não é para o cristão mais do que uma espécie dedesumana curiosidade (...) Todo o conhecimento cristão, por estrita que seja de resto a sua forma, éinquietação e deve sê-lo; mas essa mesma inquietação edifica. A inquietação é o verdadeiro comportamentopara com a vida, para com a nossa realidade pessoal e, consequentemente, ela representa, para o cristão aseriedade por excelência; a elevação das ciências imparciais, muito longe de representar uma seriedadesuperior ainda, não é, para ele, senão farsa e vaidade. Mas sério é, eu vo-lo afirmo, aquilo que edifica”.KIERKEGAARD. (1974), p.331.

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Quatro são os gêneros que temos de amar: primeiro, o que está sobre nós; outro,nós mesmos; terceiro, o que está junto a nós; e o quarto, o que é inferior a nós.Sobre o segundo e o quarto não são necessários os preceitos. Pois por muito queo homem se aparte da verdade sempre lhe recai o amor por si mesmo e o de seucorpo; porque a alma que foge da luz imutável que reina sobre todos os seres, ofaz para imperar em si mesma e em seu corpo, portanto, não pode menos queamar-se a si mesma e a seu próprio corpo 56.

Portanto, o amar a Deus e ao próximo é que necessita ser preceituado. No entanto,

como a natureza divina é infinitamente superior a nossa, por isso o preceito doamor a Deus é distinto do amor ao próximo. Ele nos oferece sua misericórdiasomente por sua bondade, nós nos ajudamos mutuamente posto o olhar n’Ele;quer dizer, Deus se apieda de nós para que lhe gozemos, nós nos apiedamosmutuamente para gozar-Lhe57.

Necessário notar que Agostinho contrapõe ao gozar (fruir – aderir-se a uma coisa

pelo amor a ela mesma), o usar (utilizar – empregar o que está em uso para conseguir o que se

ama58). O que lhe interessa inicialmente é demonstrar os dois modos possíveis de relação

do homem com as coisas, como também, assentir que é justamente pelo fato do homem

situar-se entre o fruir e o utilizar que o faz, por vezes, confundir o que deve ser gozado e

o que deve ser usado59, e sentencia:

porém se queremos gozar das coisas que devemos utilizar transtornamos nossoteor de vida e algumas vezes também o torcemos de tal modo que atados peloamor das coisas inferiores nos retrasamos ou nos distanciamos da possessãodaquelas que devíamos gozar uma vez obtidas60.

Assim, aquele ‘aderir-se a uma coisa por amor a ela mesma’ deve vincular-se a Deus, pois

que só Ele é digno de ser amado por Ele mesmo. No entanto, poderia ser levantada uma56AGOSTINHO. op.cit., pp.85 e 87.57 IDEM, pp. 97 e 99.58 IDEM, p.67.59 IDEM, p.65.60 IDEM, IBIDEM.

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objeção: se o cristianismo propõe que amemos o próximo através de Deus, Este se

constituiria também num meio e não somente num fim. Teríamos assim uma utilização

de Deus para... De qualquer modo isso não seria uma contradição já que tradicionalmente

esteve pressuposto que Deus é ‘princípio, meio e fim’:

Porque disse o Senhor: ‘eu sou o caminho, a verdade e a vida’, quer dizer, eu souonde se vai, onde se chega e onde se permanece (...) Donde se infere quenenhuma coisa nos deve deter no caminho, já que o Senhor enquanto se dignouser nosso caminho, não quis deter-nos, senão que passássemos por Ele em frente,para que não nos apegássemos às coisas temporais que Ele fez e usou para nossasaúde, senão que passemos gozosos correndo por elas, para que mereçamos sertransportados e conduzidos até Aquele que libertou a nossa natureza das coisascorporais e a colocou à direita do Pai61.

Portanto, não há uma diminuição da dignidade divina pelo fato dele também se

constituir em mediador e, mais do que isso, é como mediação e mediador que Ele

participou da condição humana62. O homem e Deus se igualam no tocante à mediação, no

entanto, ao homem – pelo menos na perspectiva cristã – é subtraída a condição de

princípio e fim das coisas, por conseqüência, princípio e fim em si mesmo63. Assim, Deus

é uma ‘Coisa’64 da qual utilizamos, como também fruímos ou, para ser mais exato, o

homem pode utilizar todas as coisas (inclusive Deus), mas só a Deus ele pode fruir sem

causar danos a si mesmo, pois que tentar (tentação) fruir das coisas que foram criadas

para serem usadas constitui propriamente um abuso ou corruptela65. Tudo o que foi criado

é para ser usado já que não é fim em si mesmo, por conseqüência, a única coisa que é

61 IDEM ,p.103.62 “De fato, [Cristo] só é Mediador enquanto homem. Como Verbo não é intermediário, porque é igual aDeus e é Deus em Deus, sendo ao mesmo tempo um só Deus”. AGOSTINHO. (1990), p.264.63 Cf. AGOSTINHO. (1978), pp.48-49.64 Quando Agostinho iniciou a conclusão do Livro I da Doutrina Cristã afirmou que ‘o compêndio de tudoo que foi exposto desde que começamos a tratar dos objetos ou coisas, é entender que a essência e o fim detoda a divina Escritura é o amor da Coisa que temos de gozar e da coisa que conosco pode gozar d’Ela’.AGOSTINHO. (1957), p.105.65 IDEM, p.67.

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digna de ser fruída é, justamente, o que não foi criado. Mas, por que amar (fruir) o

incriado (o eterno) não causaria danos ao homem e, ao contrário, a tentativa de se fruir o

criado danos causaria?

Entre o temporal e o eterno existe esta diferença, que todo o temporal se amamais antes de possuí-lo e depois de possuído se despreza, já que não sacia aalma, onde para o eterno é o verdadeiro e seguro descanso. O eterno se ama commais intensidade quando é possuído do que quando é desejado, porque aninguém que o deseja lhe é concedido apreciar mais o desejado, que o que ele éem si mesmo, de sorte que possa desprezá-lo por encontrá-lo inferior; antes, pormuito que alguém imagine o que venha ser o eterno, achará que é muito maisquando o alcance66.

Assim, para Agostinho, o homem adscrito no desejo se cansa já que é movido

pela ilusão de poder suster o objeto que deseja. No entanto, o paradoxo do desejo é

justamente o de impor movimento àquele que deseja na ausência do objeto e esvair-se na

presença do mesmo. A dynamis do desejo é a não presença em dupla forma: quando a

ênfase recai sobre a imagem (‘objetos interiores’), a condição de permanência do desejo é

não encontrar o que parece procurar - não encontra porque não existe o que procura67; e

não procura porque aquilo que o desejo traz à ‘existência’ não é capaz de curar (aquele

que deseja) já que é em si mesmo imaginário e, não correspondendo a nenhum objeto, tal

imagem é propriamente um fantasma68. Assim, se não podemos ainda aderir à eternidade,

rechacemos pelo menos nossos fantasmas e afastemos de nossa vista interior esses jogos

ilusórios e bagatelas69. Entretanto, quando a ênfase do desejo recai sobre os ‘objetos

exteriores’ na tentativa (no vocabulário cristão: tentação) de se apossar deles, depara-se

66 IBIDEM, p.109.67 Poderíamos aqui falar como Ovídio no livro das Metamorfoses (III, 424-425) quando se referia a Narciso:“Néscio! Deixa essa imagem fugitiva; Nenhuma parte encerra, o que procuras; Sai, perderás num ponto oobjeto, que amas”. (1959), p.88.68 Cf. GILSON. (1995), p.77.69 AGOSTINHO. (1948), p.191.

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com a efemeridade desses mesmos objetos que serão arrancados de nossa presença

mesmo que não queiramos. Quanto a isso Agostinho dirá magnificamente:

O espaço nos oferece lugares amáveis; os tempos nos arrebatam o que amamos edeixam no ânimo um tropel de ilusões que balançam de uma coisa a outra nossosdesejos. Assim a alma se torna inquieta e desventurada, buscando inutilmentereter o que a aprisiona. Está convidada ao descanso, quer dizer, a não amar o quenão se pode amar sem trabalho ou turbação. Assim logrará seu domínio sobre ascoisas; assim já não será uma possessa, se não possuidora delas. Meu jugo,afirma, é suave (Mt 11,30). Quem se submete a ele, tem submetidas as demaiscoisas. Já não trabalhará, pois o submetido não oferece resistência. Porém osdesventurados amigos do mundo, que poderiam dominá-lo se quisessem serfilhos de Deus, porque lhes deu potestade para sê-lo (Jo 1,12), temem tanto oromper seu abraço, que nada mais fatigoso para eles que o não fatigar-se70.

Envolto que está pelo hábito de desejar71 o fantasmagórico ou o efêmero, a criatura mora72

em terreno movediço e sofre por estar nele. A proposta cristã é assim um convite, um

chamado a se viver com o desejo de uma outra forma. Não se trata de uma saída do

desejo, mas para o desejo. Desejar o finito é não só desejar o que tem um fim (o que

termina, justamente, por não ter finalidade), como também, é pôr fim ao próprio desejo.

Desejar o infinito é desejar o que não tem término (já que permanece tendo um télos) e,

por ‘nunca’ ser alcançado completamente não põe fim73 ao desejo de encontrar74. Há aqui

como que uma passagem do amanhecer (admasnecere - que se desvanece com o passar

das horas já prenunciando seu ressurgimento, bem como suas urgências) para o que

70 IDEM, p.151.71ARENDT. (1997), p.142.72ARENDT. (2000), p.12.73 Quanto a isso afirmou Nicolau de CUSA: “O fim que é o fim de si próprio é infinito e todo o fim que nãoé fim de si próprio é um fim finito. Tu, Senhor, que és o fim que dá o fim a tudo, és, por essa razão, o fimpara o qual não há fim, e assim, fim sem fim ou infinito, que escapa a qualquer razão”. (1988), p.181.74 E relacionando tal percepção com o desejo afirma: “Ó fonte das riquezas! Queres ser compreendido comoalgo que eu possua e permaneces incompreensível e infinito, porque és o tesouro das delícias cujo fimninguém pode desejar. Como pode o desejo desejar não ser? Pois, quer a vontade deseje ser, quer desejenão ser, o próprio apetite não pode descansar, mas é arrastado para o infinito. Desces, Senhor, a fim deseres compreendido e permaneces inumerável e infinito, e se não permaneceres infinito não serás o fim dodesejo. Com efeito, o desejo intelectual não se move para aquilo que pode ser maior ou mais desejável. Oratudo, para cá do infinito, pode ser maior. Por isso, o fim do desejo é o infinito”. IDEM, pp.194-195.

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permanece (permasnecere – desligado das horas anunciando a ressurreição). Somos seres

de um dia só não por fenecermos, mas porque simbolicamente chama-se de Dia o dia que

despertamos para a permanência e não para mais um amanhecer. Ou dito de uma outra

forma, a inversão agostiniana quanto à lógica do desejo é a seguinte: superar o

permanente desejar através do desejo ao permanente.

[Em contrapartida], de que modos [Deus] nos ama? Para usar ou para gozar denós? Se para gozar de nós, então necessita de nossa bondade, o que ninguém diráem sã consciência. Todo nosso bem ou é Ele, ou procede d’Ele. Quem podeduvidar, ou a quem está oculto que a luz não necessita do esplendor das coisasque ela ilumina? (...) Deus, pois, não goza, senão usa de nós. Se Deus não nosgoza nem nos usa não encontro de que modo nos ama75.

1.2. CARIDADE, FÉ E ESPERANÇA

Como vimos, a hermenêutica agostiniana das Sagradas Escrituras visa à

edificação, onde esta é, propriamente dita, uma proposição de amor a Deus e ao próximo

através de Deus. Desse modo, o amor para Agostinho está diretamente vinculado a Deus.

Dizer Deus é dizer amor (caridade) e vice-versa76. Parece claro para Agostinho que todo

aquele que ama, acredita no amor. Não acreditar no amor é, enfim, não dar créditos77 a

ele. Por conseguinte, assumido o vínculo entre Deus e amor faz-se necessário acreditar no

Deus que é amor. Temos assim que se titubeia a fé, a caridade languidece. Tudo o que se

aparta da fé se distancia da caridade, porque não pode amar no que não crê que existe78.

Portanto, anterior a todo assentimento ou refutação está a crença neste algo que se assente

ou se refuta79. É nesse contexto que podemos entender melhor a máxima agostiniana do

75 AGOSTINHO. (1957), p.99. Cf. também no ‘Da verdadeira religião’. (1948), p.115.76 LUBAC. (1988), p.84.77 AGOSTINHO. (1949), p.775.78 AGOSTINHO. (1957), p.107.79 GILSON. (1995), p.81.

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‘crer para compreender’80. A reflexão não só é posterior à crença, como possibilita a

afirmação ou o abandono de uma crença. No entanto, mesmo quando se abandona uma

crença em função da reflexão recai-se numa outra crença. Em função disso, o máximo

que se poderia chegar, segundo a percepção agostiniana, é a de tornar a reflexão a própria

crença (atitude comum aos céticos). Este argumento é desenvolvido por Agostinho

particularmente no seu livro Da utilidade de crer. Para aquilo que nos interessa e que

dizia respeito a relação entre fé e amor, onde aquela surgia como fundamento para este81,

Agostinho preocupa-se em discernir fé (crença) e credulidade, pois do mesmo modo que

existe uma grande diferença entre o que deseja conhecer uma coisa [o estudioso] e quem deseja

saber em geral [o curioso] (...) da mesma maneira diferencia-se o crente do crédulo82. O crente

nem age com suspicácia nem com credulidade, já que a suspicácia admite coisas

desconhecidas, porém duvidando algo delas e a credulidade as admite sem duvidar83. Portanto,

nem o suspicaz nem o crédulo agem, mas enquanto aquele rejeita, este ajeita. O primeiro

a tudo refuta, o segundo a tudo se submete. Para o crente a afirmação de que ‘Deus é

amor’ não resolve definitivamente a ‘questão’, pois que a partir da crença ele se propõe a

compreender o que ela envolve e como ela pode se desenvolver84. Esta relação entre

crença (religiosa) e reflexão é propriamente o intellectus fidei85, que não é uma

80 Sentença utilizada por Agostinho no início de seu O livre-arbítrio que por sua vez foi extraído do livro deIsaías 7, 9. Na tradução dos Setenta, utilizada por Agostinho, pode-se ler: Se não acreditardes nãoentendereis. No entanto, na Vulgata – neste caso mais fiel ao original hebraico e que Agostinho tambémconhecia – tal passagem indica algo ainda mais radical: Se não crerdes não subsistireis. AGOSTINHO.(1995), pp. 28 e 244.81 “A fé é o primeiro momento dessa reunião do homem a Deus, mas a caridade que a acompanha exorta ofiel ao esforço de ascese moral e de contemplação espiritual que é a própria vida cristã”. E. GILSON.op.cit., pp. 72-73.82 AGOSTINHO. (1948), p.867.83 IDEM, p.865.84 No Sermão 50 de santo Agostinho encontra-se: “Se acabaste (de conhecer), não é Deus que conheceste”.E no Sermão 52: “Se mais ou menos, pudeste compreender, teu raciocínio te enganou; não é ele, secompreendeste; e se for ele, não compreendeste”. Cf. LUBAC. (1970), p.30.85 Como nos assevera JASPERS: “A fé revelada, a que tomamos com seriedade, tem originariamente outrocaráter: não surgiu nem da desesperação do pensar, nem é em si mesma carente de pensamento. A férevelada foi uma fé pensante”. (1968), p.22.

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característica específica do cristianismo já que é um traço comum das religiões

monoteístas86.

Vemos persistir a tentativa de se compreender como se relacionam essas duas

formas de apreensão da realidade. Como nos atesta Merleau Ponty:

Não se trata de pôr a fé perceptiva no lugar da reflexão mas, ao contrário, deabarcar a situação total que comporta reenvio de uma a outra. O que se obtémnão é um mundo maciço e opaco ou um universo do pensamento adequado; éuma reflexão que retorna sobre a espessura do mundo para iluminá-lo, mas queem seguida lhe devolve somente a sua própria luz87.

Ou como diria Karl Jaspers a respeito dessa relação: ‘Fé é o fundamento prévio a todo

conhecimento, no que se aclara, porém sem nunca ser provado por ele’88. Quanto a isso já

Orígenes, no seu Contra Celso, sinalizava para um quê de irracionalidade de toda e

qualquer fé. Respondendo a objeção de Celso de que o cristianismo ‘ensina a crer, ainda

sem inquirir a razão da fé’, Orígenes afirma que eles (os que utilizam toda e qualquer

filosofia) fazem o mesmo que os cristãos, pois:

Efetivamente, o que se converte à filosofia e se mete, como por sorte, em umaseita filosófica, ou porque topou com um mestre da mesma, por que outra razãodá esse passo senão porque crê que seja essa escola a melhor? O que se decideser estóico, platônico, peripatético ou epicurista, ou de qualquer outra escolafilosófica, não espera ouvir as doutrinas de todos os filósofos ou das distintasescolas filosóficas, nem como se refutam umas e se demonstram outras; não, um

86 GUTTMANN. (2003), p.28.87 MERLEAU-PONTY. (2003), pp.43-44. O que objetivamos com tal passagem foi somente enunciar queexiste uma relação colaborativa entre fé e reflexão, ou ao modo patrístico entre fé e intelecto (intusleggere). No entanto, parece claro que o conceito de fé utilizado por Merleau-Ponty está mais conforme omodo como Agostinho apresenta tal conceito no ‘Da utilidade de crer’. A fé perceptiva de Ponty estádiretamente ligada ao visível; em contrapartida, a fé cristã relaciona-se com o invisível. Para o cristão a févincula-se a Deus e, desse modo, o mundo não pode ser objeto de fé para ele. Quando Deus não écompreendido como fundamento a fé desloca-se para o visível e o pensamento surge como o invisível. Napresença de Deus a fé direciona-se para o invisível e a reflexão é sobre o visível. Temos assim que, numcaso como no outro, a ‘fé e a reflexão’ são cooperativas e a fé é sempre anterior à reflexão.88JASPERS. (1968), p.37.

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impulso irracional – ainda que não o queiram confessar – os leva a praticar [taldoutrina]89.

Temos assim duas visadas do crente: a primeira delas diz respeito à compreensão

daquilo que crê (que no cristianismo enuncia-se, inclusivamente, como um ‘Daquele em

que se crê’, já que é um Deus pessoal90) e, a segunda, refere-se ao modo como esta crença

alimentará a ação, uma vez que de nada vale uma fé sem obras já que para o crente não

interessa nem a reação nem a inação, mas sim impor ação ‘àquilo’ que ele acredita ou agir

a partir daquilo que ele acredita91, pois quem em nada acredita, não age92. E onde

poderíamos acrescentar que acreditar em tudo também nos impede de agir. Tal questão

continua sendo extremamente relevante como enuncia Todorov:

Não é uma superioridade nem necessariamente uma maldição, mas, muito pelocontrário, um traço constitutivo do nosso tempo, precisamente: poder dar razão acada um dos campos opostos e não saber escolher entre os dois: como se acaracterística principal da nossa civilização fosse a suspensão da escolha e atendência para tudo compreender sem nada fazer93.

89 ORIGENES. (1967), p.47.90 Resguardamo-nos neste de momento de discernir e descrever o que viria a ser essa pessoalidade de Deuspara o cristianismo. Usener no seu estudo comparado das religiões tirou interessantes conclusões a respeitodas nomenclaturas divinas. Segundo ele, “existem três fases principais deste desenvolvimento: o primeirodeles diz respeito aos ‘deuses momentâneos’ (que não personificam qualquer força da Natureza etc); osegundo, os ‘deuses especiais’ (onde cada direção particular desta atuação humana gera seu correspondentedeus particular) e, por fim, os ‘deuses pessoais’ que só podem ser compreendidos unicamente pela históriada linguagem: a denominação do deus perde sua inteligibilidade, sua conexão com o tesouro vivo dalinguagem, [por conseqüência] tal nome tornou-se nome próprio o que implica, como o prenome de umapessoa, a pensar uma determinada personalidade”. Cf. CASSIRER. (1985), pp.33-37.91 Como afirma BLONDEL na esteira de Agostinho: “É bom propor ao homem todas as exigências da vida,toda a plenitude escondida de suas obras, para confirmar nele, junto à força de afirmar e crer, a coragem deagir”. (200?), p.VII-VIII.92 AGOSTINHO. (1947), p.205.93 TODOROV. (1980), p.151. A suspensão da escolha pode ser percebida, inclusive, no modo como seescreve. Volochinov, segundo o próprio TODOROV, teria afirmado num texto de 1929: “lemos que estaclasse de renúncia ao absoluto é uma característica (deplorável) da sociedade moderna: ninguém se atreve aafirmar nada com convicção e, para dissimular sua incerteza, se refugia nos diversos níveis da citação: nãofalamos mais que entre aspas”. (2005), p.86.

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Somado a isso por se tratar de duas visadas, implícito está que esse processo é

incessante, ou seja, não existe um momento em que o crente atinja um grau de perfeição

como acabamento - o cristão sempre tem algo por fazer e este por fazer é propriamente a

perfeição (per facere) que lhe cabe; como também é esperançoso, pois que só a esperança

anima os desesperados e surpreende os pretensiosos94. Enfim, o que passamos

rapidamente em revista disse respeito às três virtudes teologais: a fé, a esperança e o

amor, pois o que quer que narres faze-o de tal forma que aquele que te ouve, ouvindo, creia e,

crendo, espere e, esperando, ame95.

Referindo-se a essas três virtudes Agostinho afirmará no final do Livro I da

Doutrina Cristã: O homem que está firme na fé, na esperança e no amor e as retém

inalteravelmente, não necessita das Sagradas Escrituras, se não é para instruir a outros96. À

primeira vista pode parecer que para Agostinho esse homem exista e que por conseguinte

alguém entre os homens pode abrir mão das divinas letras. Assim compreendido teríamos

como que a cessação de um processo. Isso não seria paradoxal, mas fundamentalmente

contraditório, por tudo o que foi dito anteriormente. No entanto, a ênfase aqui recai sobre

a instrução que se refere a um outro. Desse modo, é o outro que repõe ‘o homem que está

firme’, no processo. Quando o outro se aproxima ou quando nos aproximamos dele, ele

se torna constitutivamente o próximo e é a partir dele, por ele e com ele que todo processo

(conversão) reafirma-se como inacabado97. Qual seria a situação limite que poderia se

apresentar para o homem que caminha firme na fé? Deparar-se com os inimigos. No94 “São pouquíssimos o que têm um conceito exato de suas forças; aos que se crêem de menos tem queestimulá-los para que não lhes abata o desespero; [por sua vez] tem que se conter aos que se crêem demais,para que a audácia não lhes lance ao precipício”. AGOSTINHO. (1948), p.871.95 AGOSTINHO. (1978), p.44.96 AGOSTINHO. (1957), p.109.97 LUBAC. (1970), p.29. Numa das questões que se põe a respeito da caridade (“Aumenta ilimitadamente acaridade?”) Santo TOMÁS DE AQUINO cita uma glosa de Pedro Lombardo em que está escrito: ‘Nenhumfiel, por muito que tenha crescido, pode dizer me basta. Quem diz isto sai do caminho antes de chegar aotérmino’. (1990), p.230.

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entanto, como atestam as Escrituras, mesmo o inimigo deve ser amado. Ou para ser mais

exato, os inimigos não têm porque não serem amados98, justamente:

porque não tememos que possam quitar-nos o bem que amamos; antes noscompadecemos deles, porque quanto mais nos odeiam tanto mais nos aproximamdo Bem que amamos. Se se voltassem para Ele lhe amariam como ao Bem que dáa bem-aventurança, e necessariamente nos amariam como companheirosparticipantes com eles do bem infinito99.

1.3. DILEÇÃO: DIALETO DA CRIAÇÃO

Refaçamos a situação questionando-nos: inserido na perspectiva cristã é ainda

possível denominar alguém com a alcunha de inimigo? A partir do momento que o

cristianismo propôs a superação da concepção judaica de povo eleito, com isso ele não

fez cair por terra a inimizade? Levando-se em conta a afirmação agostiniana o ‘inimigo’

não é forte suficientemente para retirar do cristão o Bem que ele ama. Desse modo, não

há motivos para temer quem quer que seja quando se está firme Naquele em quem se

acredita. Visto por esse prisma o inimigo contribui para que o cristão confirme e reafirme

em si mesmo o que ele sempre afirmou, já que em verdade o ‘aproxima do bem que ama’.

Por tudo isso esse inimigo que possibilita ao cristão tal aproximação do Bem, pode ainda

ser denominado de inimigo? Se o cristão concebe a todos como irmãos a inimizade

parece não fazer parte daquela proposta. Portanto, o que parece nascer dessas relações é

algo diferente: não existe um confronto entre o cristão e um inimigo, já que aquele

quando se impõe a tarefa de imitar a Cristo simplesmente acolhe o outro. O que o cristão

parece sinalizar é que o outro é inimigo de si mesmo quando não se abre para a caridade.

É este outro quem padece na relação consigo mesmo, como o próprio Agostinho antes da98 “Assim como as adulações dos amigos nos pervertem, do mesmo modo as censuras dos inimigos nosreformam”. AGOSTINHO. (1990), p.203.99 AGOSTINHO. (1957), p.95.

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conversão100. Assim, podemos compreender melhor o ‘antes nos compadecemos deles’.

Poderia-se objetar que a história da Igreja no Ocidente não confirmou tal interpretação e

mais do que isso esta atitude diante dos ‘inimigos’, mas isso depõe contra a Igreja

(mesmo assim não totalmente, já que por muito tempo ela foi hegemônica, mas não

homogênea) e, não necessariamente, contra a mensagem. Lembremo-nos, no entanto, de

que na época de Agostinho, a Igreja estava distante de ser um poder hegemônico e

tampouco era homogênea: já que havia, como nos lembra Burckhardt, muitas coisas que

encontravam livre jogo dentro do cristianismo e que mais tarde já não se podiam conciliar com

ele101. No caso específico da África, por volta do ano 400, a estrutura eclesial era um

mosaico de demasiadas e demasiado pequenas Igrejas autônomas, onde na maioria das cidades

havia dois bispos, um católico e um cismático102.

Retornemos à instrução propriamente dita já que por hora nos ocupamos

minimamente a respeito do outro a ser instruído. Recorramos novamente à Doutrina

Cristã: depois que Agostinho ocupou-se em diferenciar o fruir e o utilizar, ele faz uma

digressão muito interessante para posteriormente retomar aquela diferenciação:

Falamos e pronunciamos algo digno de Deus? Certamente sei que não disse nadado que havia querido dizer. Mas se disse, isto não é o que eu quis dizer. Por quesei disto? Porque Deus é inefável; e se fosse inefável o que foi dito por mim, nãoteria sido dito por mim. Tampouco deve denominar-se a Deus inefável, poisquando se diz isto algo foi dito. Não sei que luta de palavras existe, porque se éinefável o que não pode ser expresso, não será inefável o que pode ser chamadoinefável. Esta contenda de vozes deve ser melhor calada com o silêncio queapaziguada com as palavras. Sem embargo, Deus ainda que d’Ele não possamosdizer coisa alguma, escuta a oferenda de nossas vozes, e quer que nos alegremoscom nossas vozes dirigidas em elogio d’Ele. Assim procede que se chame Deus.Certamente que não se pode conhecê-lo através do ruído desta sílaba Deus,

100 “Por isso eu suspirava, atado, não pelas férreas cadeias de uma vontade alheia, mas pelas minhas,também de ferro”. AGOSTINHO. (1990), p.173.101 BURCKHARDT. (1945), p.134.102 VAN DER MEER. (1965), p.34.

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porém os conhecedores da língua latina, ao perceber seus ouvidos esse som,excitam-se a pensar numa natureza excelentíssima e imortal103.

Temos assim que o cristão é chamado a conversões intermitentes no decorrer de

sua existência advindas da aproximação do outro, propriamente denominado de próximo.

No entanto, quando se propõe a instruir o outro a respeito desse Deus em quem acredita

sente-se por vezes impotente para explicitar a proposta divina com suas próprias forças.

Se por um lado parece, como sugeria Agostinho acima, balbuciar quanto às palavras, por

outro lado, sabe que não conseguirá converter o outro através do silêncio. Isto pode ser

compreendido vertical (em relação a Deus) e horizontalmente (referido ao próximo). A

despeito da verticalidade o silêncio é acolhido, já que é parte da relação com Deus104 -

como atesta Agostinho uma confissão a Deus é e não é em silêncio, já que “é em silêncio

quanto às palavras; mas em clamor quanto aos afetos”105. Em contrapartida, na relação com o

outro parece não ser suficiente um clamor de afetos que não se comunique através da

palavra. Poderia-se objetar que na relação com Deus o silêncio também não é suficiente,

pois que enfim recorre-se às palavras para tingi-lo e atingi-lo. No entanto, na relação com

Deus por mais que o homem fale, quando enfim se cala tal silêncio é consolador, já que

Deus acolhe nossas palavras, nossos balbuciares e nosso silêncio – onde teríamos uma

insuficiência suficiente. Diferentemente, nas relações com os outros o falar, o balbuciar e

o calar parecem evidenciar uma insuficiência insuficiente, já que por vezes o falar assume

um querer se esconder (por detrás das palavras), o balbuciar um não dominar o que se

quer (com as palavras) e o calar um não saber dizer (através das palavras). Diante de tal

103 AGOSTINHO. (1957), p.69104 Como exemplo da relevância do silêncio citemos o gnóstico Valentim que no século II afirmava queDeus “unidade não gerada, imortal, incompreensível, inconcebível” tinha dois princípios: um masculino,“Pai ou Abismo” e um de natureza feminina, “Sigé (Silêncio)”. Cf. GILSON. (1995), p.29.105 AGOSTINHO. (1990), p.218; (1978), p.52.

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problemática Agostinho questiona-se: Por que não se aprende as divinas letras

imediatamente de Deus? E responde: a mesma caridade que aproxima mutuamente os

homens, com o laço da unidade não teria entrada nas almas para fundi-las e mesclá-las entre si,

se os homens nada aprendessem por meio dos homens106.

Uma relação estrita e imediata de cada indivíduo com Deus conduziria a uma fé

individualista que prescindiria da relação dos homens entre si, o que se constituiria na

negação do amor107. Vemos assim mais uma vez que não é possível prescindir do

próximo para se chegar ao encontro com Deus, ao contrário, é a relação com o próximo

que nos encaminha a Deus. Agostinho aqui atinge o cerne da questão: o problema não

reside em se discutir quem possa estar mais próximo de uma interpretação correta das

Sagradas Escrituras já que ninguém estará correto se estiver sozinho. É assim que no livro

da Trindade poderá dizer:

Que o leitor, onde somos igualmente confiantes, progrida comigo; onde estamosigualmente perplexos, pare para investigar comigo; onde se percebe em erro,venha para o meu lado; onde me percebe errando, chame-me para o seu lado. Demodo que possamos seguir o caminho, com amor, em direção a Ele, “cuja a faceestamos sempre procurando”108.

Assim vemos que para santo Agostinho a caridade é método e critério:

Senhor, ouço aí a Vossa voz dizer-me que só nos fala verdadeiramente aqueleque nos ensina. Quem não nos ensina, ainda que nos fale é como se não falasse.Mas além da Verdade Imutável quem é que nos ensina? Ainda quando somoselucidados pela criatura mutável, somos encaminhados também para a VerdadeImutável, onde verdadeiramente aprendemos. Então conservamo-nos de pé aouvi-lo e ‘enchemo-nos de alegria por causa da voz do Esposo’, que nos conduzà origem donde somos. (...) Ensina-nos porque é o Princípio. Ele nos fala109.

106 AGOSTINHO. (1957), p.59.107 LUBAC. (1988), p.61.108 AGOSTINHO. (1999), p.28.109 AGOSTINHO. (1990), p.274.

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É esse falar (fando) divino que constitui o nosso destino (fatum), já que fatum

deriva de fando110. ‘Senhor, ouço aí a Vossa voz dizer-me’: a fala só cala fundo através do

escutar atento (obedecere) e calando fundo faz-se dito para, enfim, constituir-se em

ditame. Para Deus, segundo Agostinho, não existe diferença entre dizer e criar111. Assim,

todo dizer d’Ele é criação. Quando o homem se abre para esse dizer criador, ele se recria.

Como também, tendo sido fecundado e insuflado pela caridade divina,

concomitantemente, propiciada e propiciadora do escutar atento112 - já que é relação

dialogal no seu sentido mais profundo – abre-se para o outro, filho do mesmo Pai, pois,

como afirma Buber: o em cima e o embaixo estão ligados um-ao-outro. A palavra daquele que

quer falar com os homens, sem falar com Deus, não se realiza; mas a palavra daquele que quer

falar com Deus sem falar com os homens, extravia-se113.

1.5. SINCRETISMO: O FLORESCER DA CULTURA

Persigamos o fio condutor dos argumentos agostinianos adscritos na Doutrina

Cristã. Ao final do primeiro livro ele escreverá: Até o presente falei das coisas tocantes à fé

(...) Ponhamos fim a este livro. Nos restantes dissertaremos a respeito dos signos conforme nos

conceder o Senhor114.

No segundo livro Agostinho seguirá uma tradição iniciada por Justino no início

do século II, qual seja, a de descobrir e assimilar elaborações que não sendo

110 AGOSTINHO. (1991), p.202.111 AGOSTINHO. (1990), p.273.112 “O falar, como o escutar, exige o reconhecimento da real alteridade do outro. Somente talreconhecimento oferece a possibilidade de um autêntico pensamento da palavra”. RIPANTI. (1993), p.10.113 BUBER. (1982), p.48.114 AGOSTINHO. (1957), p.111.

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precipuamente cristãs contribuirão para a expressão do cristianismo115. Foi levando em

conta essa assimilação que Clemente de Alexandria no século III afirmou que há dois

Antigos Testamentos e um Novo (...) A lei aos judeus; a filosofia aos gregos; a Lei, a filosofia e a

fé aos cristãos116. Essa assimilação foi na história filosófica do Ocidente o segundo grande

evento, onde o primeiro foi o nascimento da razão grega117. Poderíamos multiplicar os

exemplos de posição afirmativa em relação a essa assimilação, sem nos esquecermos de

que houve, desde o primeiro século, cristãos que lutavam contra tal processo que com o

passar dos séculos mostrou-se irreversível. Quanto a isso, vejamos como se posicionou

são Jerônimo (contemporâneo de Agostinho):

Tinha lido no Deuteronômio que a voz do Senhor manda aparar a cabeça e assobrancelhas da mulher cativa, e cortar-lhe todo o pelo do corpo e as unhas, eque somente assim se podia tomá-la em matrimônio. O que existe de estranho,pois, se também eu quero converter a sabedoria secular de escrava e cativa emisraelita, dada a graça de seu falar e a beleza de seus membros; se corto e aparo oque nela existe de morto, de idolatria, de luxúria, de erro e paixão, e unido a seucorpo purificado, engendro dela servidores do Deus Sabbah? Meu trabalho trariaproveitos à família de Cristo; meu adultério com a estrangeira faria crescer onúmero de meus companheiros de serviço118.

Nesse tocante Agostinho é da mesma posição. Portanto, é lícito e necessário aproveitar-se

ou apropriar-se das contribuições da filosofia, inclusive, para repudiar as ficções

supersticiosas que ainda [se] encontrar nos livros sagrados119.

115 Como afirma JAEGER, “Em realidade, os ideais culturais gregos e a fé cristã se mesclaram, por maisansiosos que estejamos de conservar imaculados uns e outra. (...) O contato criador do cristianismo com asidéias constantes da tradição grega deve ter dado ao pensamento cristão a segurança em sua própriauniversalidade (catolicidade)”. (1965), p.62.116 Cf. GILSON. op. cit., p.45.117 LIMA VAZ. (2002), p.11.118 JERÔNIMO. (1993), p.732.119 AGOSTINHO. (1957), p.147.

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Se no primeiro livro da Doutrina Cristã Agostinho afirmou que Deus não se

comunica imediatamente aos homens para que eles possam aprender uns com os outros

através da caridade, no segundo livro ele repõe tal questão se interrogando a respeito do

porquê de certas passagens obscuras estarem inseridas nas divinas letras. Sobre as

mesmas afirma:

Não duvido que tudo isto foi disposto pela Providência divina para quebrantar asoberba com o trabalho e para apartar o desdém do entendimento, o qual nãopoucas vezes estima pouco as coisas que entende com facilidade (...) O EspíritoSanto magnífica e saudavelmente ordenou de tal modo as santas Escrituras quepelos lugares claros satisfaz nossa fome e pelos obscuros nos desvaneceu ofastio. Em verdade, quase nada sai à luz daquelas passagens obscuras que não seache já dito clarissimamente em outro lugar120.

Desse modo, Agostinho sugere que o primeiro passo para se dirimir as dúvidas

relativas às passagens obscuras é a leitura de toda a Sagrada Escritura, já que ela mesma

responde o que se propõe. Mas, se mesmo assim o desentendimento persistir? Agostinho

sugere causas para tal desentendimento: ou a ambigüidade, ou o desconhecimento dos

signos que velam o sentido, acrescentando que os signos são ou próprios ou metafóricos121.

A melhor maneira de se remediar a ignorância dos signos próprios, segundo Agostinho, é

o conhecimento das línguas hebraica e grega. No entanto, Agostinho sugere que o mais

complexo é dar conta não dos signos próprios (Agostinho não fazia uso do hebraico122),

mas sim dos metafóricos que são geradores de ambigüidades. Como proceder diante de

tais passagens? Cotejar traduções, porque é muito difícil que os tradutores discrepem de tal

forma que não convenham entre si de algum modo123. Temos assim que quando a obscuridade

120 IDEM, pp.119-121.121 IBIDEM, p.129.122 ECO. op.cit., p.84.123 AGOSTINHO. (1957), p.135.

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advém de um desconhecimento do signo deve-se recorrer à língua do original,

diferentemente, quando advém da ambigüidade do signo deve-se buscar o original

advindo da língua, porque muitas vezes não só se traduzem as palavras, mas também modos

que não podem de maneira alguma se traduzir ao pé da letra124. Neste sentido o urgente desafio

é pôr-se a compreender as metáforas divinas (questão que ele desenvolverá melhor no

Livro III da Doutrina Cristã).

Ainda no Livro II, Agostinho questiona-se como a dialética (lógica) e a retórica

poderiam auxiliar no exercício de entendimento (impressão) e exposição (expressão)125

das Sagradas Escrituras. Quanto à dialética (lógica) afirmará que ela é de muito valor, no

entanto, ressalva que uma coisa é conhecer as regras do enlace ou da conexão e outra conhecer

a verdade das premissas (...) Alguns de tal maneira se jactam de haver aprendido a verdade das

conexões, quer dizer, a lógica, como se ela mesma fosse a verdade das sentenças126.

Agostinho segue aqui a mesma atitude de Gregório Nazianzeno127 – o mais

poético dos padres capadócios – que afirmava ser prova de ingenuidade reduzir o mistério

à lógica128. Resguardado o mistério – não confundindo assim a clareza do argumento com

a verdade que conduz à vida eterna129 – a lógica deve ser utilizada, contudo, tentando-se

“evitar o prurido de disputa e certa pueril ostentação de enganar o adversário”130, já que não

interessa - como afirmava Agostinho no Contra os Acadêmicos - discutir por discutir

124 IDEM, IBIDEM.125 Quanto a isso, em seu A instrução dos catecúmenos escrito para o inquieto Deogratias pode-se ler:“Quero, na verdade, que aquele que me ouve entenda tudo o que eu entendo, mas percebo que minhaspalavras não podem consegui-lo: o entendimento penetra a alma como rápido clarão enquanto que aexpressão é lenta e longa, e muito diferente daquele. Enquanto se desenvolve esta, já aquele se fechou emseu segredo... embora, maravilhosamente, imprima na memória algumas marcas que perduram durante aenunciação das sílabas”. AGOSTINHO. (1978), p.35.126 IDEM, p.179. Como nos assevera COCHRANE aqui se enuncia a diferença entre pensar seguro e pensarcorreto. (1992), p.403.127 P. BOEHNER. (1988), pp.85-86.128 GILSON. (1995), p.63.129 AGOSTINHO. (1957), p.181.130 IDEM, p.173.

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pois o que está em jogo é o destino da vida, dos costumes, de nossa alma, a qual confia vencer

a dificuldade de todos os sofismas e depois abraçar a verdade131. Veremos se repetir, em

relação à retórica, o mesmo posicionamento crítico dirigido à lógica. É sabido que

Agostinho tinha sido professor de retórica antes de sua conversão ao cristianismo. Aliás,

foi o ensino dessa ciência liberal que o conduziu à Roma e, posteriormente, à Milão onde

conheceu Ambrósio – um dos responsáveis, segundo seu testemunho, por sua conversão

ao cristianismo132. Através da retórica, confessava Agostinho depois de sua conversão:

era seduzido e seduzia, era enganado e enganava133; contanto que fosse diserto [disertus –

eloqüente], era antes um deserto [desertus] quanto à vossa cultura, ó meu Deus, único, verdadeiro

e bondoso Senhor do vosso campo – o meu coração134.

Agostinho certifica de que a retórica deve ser empregada para expor o que se

entende e não para entender o que se ignora135. Preceito esse que advém dos retóricos

romanos, particularmente Catão (domina o assunto, que as palavras virão136). No entanto,

sentenciará que do mesmo modo que é preferível ter amigos mais prudentes que belos, é

preferível ouvir palavras verdadeiras que elegantes137. Como também, conhecedor que era

do direito romano, afirmará: a palavra forense pode algumas vezes, talvez, ser chamada um

boa dicção, mas nunca uma bênção138.

131 AGOSTINHO. (1947), p.141.132 AGOSTINHO. (1990), p.112.133 IDEM p.75.134 IBIDEM, p.48.135 “Sucede muitas vezes que os homens conseguem mais facilmente as mesmas coisas para cuja consecuçãose aprendem tais artes, do que através das complicadas e fastidiosas regras de tais disciplinas. Como sealguém querendo dar regras para andar, avisara que não se deve levantar o pé que fica atrás, a não ser queestivesse já assentado o da frente, e depois descrevesse minuciosamente de que modo convém mover asarticulações dos pés e dos joelhos” . AGOSTINHO. (1957), p.181.136 Cf. HORÁCIO. (1997), p.56.137 Quanto a isso, era contrária a posição dele antes da conversão: “O que senti, quando tomei nas mãosaquele livro [a Sagrada Escritura], não foi o que acabo de dizer, senão que me pareceu indigno compará-loà elegância ciceroniana. A sua simplicidade repugnava ao meu orgulho e a luz da minha inteligência não lhepenetrava no íntimo”. AGOSTINHO. (1990), p.62.138 AGOSTINHO. (1978), p.52.

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Ao final do Livro II refere-se novamente à caridade edificante contrapondo-a à

ciência que incha (máxima paulina), onde poderá dizer que arraigados e cimentados

naquela, podemos compreender com todos os santos a latitude, a longitude, a altura e a

profundidade, isto é, a Cruz do Senhor139.

1.6.SENTIDOS DA SAGRADA ESCRITURA

Sem dúvida é no Livro III que encontramos a maior complexidade quanto aos

modos de interpretar as Sagradas Escrituras. Segundo Dilthey nele nos deparamos com “a

formação de uma coerente teoria hermenêutica”140. Uma parte deste livro, como também todo

o Livro IV, foi escrito por Agostinho cerca de trinta anos depois (em 426-427 d.C) do

início da obra. Já no seu A verdadeira religião escrita no ano de 390 enunciava um

quádruplo sentido da Escritura: histórico, profético, tropológico e anagógico141. No

entanto, um ano depois quando redigiu o seu Da utilidade de crer afirmou que a

compreensão das Escrituras se dá de quatro pontos de vista: o da história, da alegoria, da

analogia e da etiologia142. No seu Do Gênesis à letra (incompleto) manterá este quádruplo

modelo interpretativo e explicará em linhas gerais cada um deles:

Explicamos as coisas segundo a história, quando se narram os feitos executados,sejam divinos ou humanos; conforme à alegoria, quando os feitos e ditos setomam figuradamente; se expõem em sentido analógico quando se demonstra aconformidade entre passagens do Antigo e do Novo Testamento; e segundo aetiologia quando se dão as causas ou se diz o porquê dos feitos e ditos143.

1.6.1. CONTROVÉRSIAS ANTI-MANIQUEÍSTAS: O MAL COMO SUBSTÂNCIA?

139 AGOSTINHO. (1957), p.191.140 Cf. RIPANTI. (1980), p. 13.141 AGOSTINHO. (1948), p.191.142 AGOSTINHO. (1948), p.835.143 AGOSTINHO. (1957), pp.503-505.

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Resguardemo-nos por agora de explicitar mais detalhadamente os motivos de tal

diferença conceitual, já que quando cotejamos tais modulações com o que ele desenvolve

na Doutrina Cristã, percebemos que nesta obra Agostinho diferenciará basicamente a

interpretação literal da tropológica144. Afirma que primeiramente deve ser evitado – na

tentativa de se compreender as ambigüidades provenientes das palavras metafóricas –

tomar ao pé da letra a sentença figurada145. No Gênesis à letra - um de seus grandes

tratados antimaniqueístas – afirmará que:

em todos os livros santos convém inquirir que coisas eternas se insinuam ali, quefatos são narrados, que coisas futuras são assumidas e que preceitos se manda ouadmoesta serem cumpridos. Na narração das coisas feitas nos perguntamos setodas devem ser tomadas unicamente em sentido figurado ou devem ser aceitas edefendidas também conforme ao histórico ou literal. Nenhum cristão se atreverádizer que não devem ser entendidas em sentido figurado146.

A interpretação literal é necessária, mas não suficiente para se compreender os

mistérios das divinas letras. Quando os maniqueístas objetivaram demonstrar as

contradições das passagens veterotestamentárias utilizaram a interpretação literal para

alcançar o fim que almejavam. O exercício realizado por Agostinho no Gênesis à letra foi

justamente o de reutilizar o modo maniqueísta como modelo interpretativo para denunciar

os limites de tal interpretação. Referindo-se, por exemplo, ao Faça-se luz descrito no

Gênesis, Agostinho afirmou:

144 Tropos aqui resguarda uma referência tênue com o sentido instituído pelos retóricos romanos, pois setrata de um segundo sentido, mas para o Agostinho antimaniqueísta, é propriamente o moral: portanto, se aletra relaciona-se com a história, qual seria a moral da história? É disso que se ocupa a tropologia.Posteriormente, o sentido tropológico será paulatinamente substituído pelo sentido espiritual.145 IDEM, p.203.146 IDEM, p.577. Cf. também (1978), p.52.

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não entendo que se dissera com voz sonante, posto que o que se diz assim é corpóreo (...)Então foi criado e formado algum corpo vocal antes da luz. E se é assim, já existia otempo no qual transcorreu a voz, e passaram sucedendo-se os espaços de tempo e desom147.

Portanto, a partir de tal modelo interpretativo poderia ser encontrado uma contradição na

própria elaboração divina, já que o fiat lux foi dito para alguém ou para algo e, desse

modo, este alguém ou algo é anterior a luz que foi feita. Por conseqüência haveria um

criado anterior à criação da luz. De igual maneira Agostinho se referirá às águas que

ocupavam toda a terra. Para onde elas teriam ido quando foram congregadas? O que teria

sido feito com as ‘sobras’ de água? Todas essas questões são possíveis e enunciam um

contraditório. No entanto, persistir na interpretação literal da Sagrada Escritura é perdê-la

de vista, ou para ser mais exato, é insistir em querer ver o que está desde sempre e para

sempre longe do alcance da visão, já que o sentido está além da letra148: é uma miserável

servilidade da alma tomar os signos pelas mesmas coisas, e não poder elevar por cima das

criaturas corpóreas o olho da mente para perceber a luz eterna149; ou aquém, mas mesmo aquilo

que está dentro da letra, ou sob a letra, nem por isso, é literal150.

De qualquer maneira o que anima a discussão de Agostinho com os maniqueístas

não se limita à questão de método interpretativo. O que lhe interessa é o pano de fundo

dos discípulos de Mani, qual seja, a doutrina da dupla substância. É a realidade do mal

que Agostinho quer objetar. O sentido é anterior ao método: adscrita no método a

doutrina da dupla substância fazia com que os maniqueístas não defendessem a

continuidade entre o Antigo e o Novo Testamento – o que colocava em xeque ‘o valor da

147 IDEM, p.591.148 MERLEAU-PONTY. (2002), p.52.149 AGOSTINHO. (1957), p.205.150 LUBAC. (1970), p.23.

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Bíblia como revelação contínua da divina vontade’151. Múltiplos foram os

posicionamentos agostinianos em defesa da unidade na diferença dos dois testamentos.

Quanto a isto, na tentativa de superar tal percepção de contrariedade, utilizará as mais

diversas imagens como a que trata da interposição do silêncio na linguagem: se nós,

contendo ou regulando a voz, podemos interpor convenientemente o silêncio na linguagem, com

quanta maior razão não realizará convenientemente a privação do bem em algumas coisas o

perfeito Artífice de todas elas?152

A discussão foi se aprofundando de tal maneira que Agostinho aproximou-se cada

vez mais do motivo fundamental, repitamos: haveria o mal como substância? Invertendo

a perspectiva teríamos o seguinte: a única maneira de superar a visão maniqueísta – que

compreendia a existência como uma permanente luta entre o bem e o mal – seria a de

refutar tal paridade ‘enfraquecendo’ uma das partes. Parece óbvio qual delas Agostinho se

predispôs arrefecer. Foram os gnósticos os primeiros que especularam a respeito da

procedência do mal tornando-o um objeto do conhecimento. Existe algo de genuíno (para

não dizer original) nessa tentativa gnóstica, já que até então toda a filosofia tinha se

ocupado, por influência platônica, da ascensão para o bem (não é de espantar que alguns

poetas modernos denominados de malditos eram ou tornaram-se gnósticos, o que não

conspira contra a beleza e profundidade de seus escritos, mas depõe sobremaneira contra

a sua suposta originalidade). De qualquer maneira, Agostinho se via diante de mais uma

situação que o incitava à apologia. Mais uma vez, ele deveria utilizar os métodos

daqueles com quem debateria. Desse modo, a antignose tornou-se uma quase-gnose153:

151 COCHRANE. (1992), p.461.152 AGOSTINHO. (1947), p.995.153 RICOEUR. (1980), p.228.

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Se a gnose é gnose, isto é, conhecimento, saber, ciência, é porque,fundamentalmente (...) o mal é para ela uma realidade. Longe de proceder daliberdade humana para a vaidade do mundo, ele procede dos poderes do mundopara o homem.

Contra essa gnose do mal, os Padres gregos e latinos, com unanimidadeimpressionante, repetiram: o mal não tem natureza154, o mal não é alguma coisa;o mal não é matéria, não é substância, não é mundo. Ele não é em si, ele é de nós.O que cumpre rejeitar não é somente a resposta à questão, mas a própria questão.Não posso responder malum esse (o mal existe) porque não posso perguntar quidmalum (o que é o mal?) mas somente unde malum faciamus? (de onde advém quefaçamos o mal?) O mal não é ser, mas fazer155.

Existe aqui, como nos lembra Ricoeur, a confrontação de uma visão trágica

(maniqueísta) e uma visão ética (dos padres da Igreja, para ser mais exato, bíblica) da

existência, sintetizada assim por Agostinho: se há penitência, é que há culpabilidade; se há

culpabilidade, é que há vontade; se há vontade no pecado, não é uma natureza que nos coage156.

Portanto, para Agostinho – pelos menos o dos tratados anti-maniqueístas – o homem

torna-se (ou deveria tornar-se) responsável por aquilo que faz.

1.6.2. VOLIÇÃO PELAGIANA: RESPONSABILIDADE PELO MAL?

Intentando superar a dicotomia maniqueísta, afirmando assim a responsabilidade

do homem diante de seus atos157, retirando do mal toda a substancialidade, Agostinho viu-

se diante de um outro problema: Pelágio - que afirmava, exacerbando o voluntarismo, que

cada um peca por si. Tal embate carregava consigo inclusive o modo como cada um dos

contendores interpretava a escritura sacra. Numa passagem de Romanos 5, enquanto

Agostinho lia pecado em Adão, Pelágio lia pecar como Adão, já que para este por Deus154 ‘Nenhuma natureza (...) é má enquanto natureza, senão em quanto diminui nela o bem que possui’.AGOSTINHO. (1947), p.995.155 RICOEUR. (1980), p.230. Como afirma Ben Sirac: “Não faças o mal e o mal não se apoderará de ti”.Eclo 7,1.156 cf. IDEM, p.231. 157 cf. BROWN. (2005), p.434.

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ser justo não poderia querer nada de absurdo como punir um homem pelo pecado de um

outro que lhe é radicalmente estranho. Em Pelágio vemos, num olhar apressado, os

primórdios do que seria denominado pelo existencialismo sartreano da plena

responsabilidade do homem. No entanto, quando observamos de um modo acurado a

formulação sartreana – sem esquecer que Sartre já se situa num mundo secularizado –

percebe-se algo genuinamente ‘agostiniano’158, já que Sartre afirma que quando dizemos

que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela

sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens159. Mas a

especificidade do pensamento de Agostinho (neste caso poderíamos afirmar sem receios

de equívoco de seu sentimento) é de que a vontade não é tão decidida como poderia se

supor. Nela reside uma luta que já não diz respeito ao bem ou ao mal. Uma dificuldade

inerente ao ato de escolher, como o cativo que almejando libertar-se das cadeias que lhe

prendem tivesse que deixar uma das mãos: abrir mão da mão que não poderá mais

abrir160; ou como diria Agostinho no seu comentário aos Salmos: há que se estar embaixo

da prensa para sair bom, como o azeite da oliva161. É em função disso que Agostinho

formulará o conceito de pecado original, pois que ele foi:

levado, pela própria experiência da conversão, pela experiência viva daresistência do desejo e do hábito à boa vontade, a recusar com todas as forças aidéia pelagiana de uma liberdade sem natureza adquirida, sem hábito, sem

158 Como nos assevera Gerd BORNHEIM ‘é quase um lugar comum dizer hoje que santo Agostinho é umpensador existencial’. (2001), p.61.159 SARTRE. (1973), p.12.160 Como afirma Martin BUBER: “A alma enredada pelo torvelinho estonteante não pode perdurar nele. Elase esforça por sair. Se não voltar a calma que leva à normalidade usual, há duas saídas para ela. Uma estásempre à sua disposição: pode agarrar-se a qualquer objeto que o turbilhão lhe mostra e descarregar nelesua paixão. Ou pode, por sugestão de algo ainda incompreensível a ela, iniciar a obra ousada da auto-unificação. (...) [Neste caso] se a obra não tiver êxito, o que não é de estranhar num empreendimento de talenvergadura, conseguiu ao menos pressentir o que é orientação, ou melhor, o que é a orientação – porqueneste sentido estrito só existe uma. Portanto, na medida em que a alma se unifica, experimenta a orientação,sente-se como tendo recebido a missão de procurá-la. Estará a serviço do bem e pelo bem”. (1992), p.55.161 cf. VAN DER MEER. (1965), p.79.

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história e sem bagagens; que seria, em cada um de nós, um ponto singular eisolado de absoluta indeterminação da criação162.

Ricoeur afirma que apesar de antignóstico em sua intenção, o conceito de pecado

original tornou-se por assim dizer gnóstico na medida em que se racionalizou163. No entanto,

isso não deporia contra a tentativa agostiniana já que:

Pelágio talvez tenha sempre razão contra a mitologia do pecado original eprincipalmente contra a mitologia adâmica, mas é Agostinho que sempre temrazão através e apesar dessa mitologia adâmica164.

Contra o mal como natureza pressuposta pelos gnósticos (maniqueus), a vontade.

Contra o exacerbo da volição defendida por Pelágio, a herança (adâmica) como também a

graça:

A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma dá uma ordema si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande afacilidade, que o mandato mal se distingue da execução. E a alma é alma, e a mãoé corpo! A alma ordena que a alma queira; e sendo a mesma alma, não obedece.Donde nasce esse prodígio? Qual a razão? Repito: a alma ordena que queira –porque se não quisesse não mandaria – e não executa o que lhe manda!165

Vemos assim que o corpo não resiste aos desígnios da alma, ao contrário, o corpo

obedece à proposição anímica – neste sentido há como que uma harmonia entre corpo e

alma. O corpo não resiste à alma. Num (de)grau acima não ocorre tal consonância: a alma

resiste à alma. A alma se propõe algo. É ela mesma que se propõe, mas não se dispõe a

162 RICOEUR. (1980), p.235.163 IDEM, p.236.164 IBIDEM, p.237. Como essa mitologia perduraria ainda por muito tempo – extravasando seguramente oséculo em que viveu frei Luis de León – Agostinho torna-se, por mais esse motivo, autor fundamental.165 AGOSTINHO. (1990), p.181.

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realizar. Ela resiste a si mesma. Ela resiste. No entanto, tal resistência não advém de um

não querer, pois ela quer. Portanto, tem-se assim duas possibilidades: ou a alma finge

querer, ou ela se propõe algo a seguir, mas não consegue. No fingimento de querer há tão

somente um querer fingir. E não é disso que Agostinho se ocupa, pelo menos diretamente

(Não é difícil compreender o porquê de Agostinho ter precauções com o fingir: como a

ontologia agostiniana pressupõe, ou melhor, se funde com o amor, teríamos assim que

tanto amar fingir, bem como, fingir amar colocaria em xeque o amor como verdade que

ele quer resguardar para guardar-se nele. Poderíamos dizer que Agostinho visa atingir e

ser (a) tingido pelo amor, pois este como Criador não pode ter sido fabulado, inventado –

fingere; mas sim, alcançado, tocado - attingere). Assim, resta compreender o porquê da

alma se propor seguir e não conseguir: a alma quer, mas não pode (sozinha)166. Por

incrível que possa parecer o que está em jogo é a força167 e só através dela poderemos

compreender melhor aquela resistência, já que resistir aqui, repitamos, não diz respeito a

um não querer fazer, mas sim querer e não poder. Assim, a resistência é um fazer, um

realizar, um afirmar aquilo que foi trazido à existência. Pensemos numa mãe que

propiciou a existência a um filho. Ela deverá alimentá-lo para torná-lo resistente, ou seja,

alimentá-lo para que ele possa continuar existindo (resistindo), mais do que isso, ela

deverá insistir para que ele resista. Mas, a alma ordena a si mesma e resiste! O exemplo de

Agostinho parece não confirmar a noção de resistência que desenvolvemos na casuística

da mãe. Só parece, já que o que Agostinho explicita só pode ser apreendido em toda sua

166 Quanto a isso é assim que Agostinho descreve o seu estado antes da conversão: “Tão pesado é o fardo dohábito! Não quero estar onde posso, nem posso estar onde quero, de ambos os modos sou miserável”.AGOSTINHO. (1990), p.262.167 Como afirma Max SCHELER: ‘o que determina os “conteúdos da vontade”, enquanto conteúdosrepresentativos da intenção, os que lhes seleciona dentre a esfera do “possível” a priori (...) não é o prazerreal nem o resultado da ação (como estima Kant), senão tão somente, e antes de tudo, a vivência do “poder-fazer” ou do “não-poder fazer” no dito caso, (quer dizer, do “poder” ou da impotência da vontade)’. (1948),p.179.

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profundidade se não nos esquecermos da presença do Pai168. Lembremo-nos de que a

passagem supracitada encontra-se no Livro VIII das Confissões que trata justamente da

sua conversão, onde ainda não tinha encontrado o alimento que tanto procurava. Num

primeiro momento, a alma resiste, justamente, por ser ela mesma que ordena (a luta entre

o querer e o ‘não querer’). No entanto, num segundo momento, e é isso que Agostinho

quer demonstrar, a alma resistirá em realizar o bem que tanto almeja desde que se abra

Àquele que é a fonte de todo bem, pois só Ele poderá alimentar uma alma faminta de

amor: tudo posso naquele que me fortalece (superação do suposto antitetismo querer e

não querer – diz-se aqui suposto, justamente pelo fato de que não existe negatividade no

querer já que este é sempre afirmativo - para um querer e não poder que expressa, enfim,

a fragilidade humana169). Assim poderá dizer no Do espírito e da letra, ainda em resposta

aos pelagianos:

Eis aqui a consideração que não conduz à soberba, vício que levanta a cervizquando o homem põe antes de tudo a confiança em suas próprias forças,constituindo-se a si mesmo em razão autônoma de sua vida. Neste extravio seaparta daquela fonte de vida em cujas águas se bebe a justiça, isto é, a vida santa,e daquela luz indefectível por cuja a participação se acende em certa medida aalma racional, para chegar a ser ela também, mesmo criada e finita, umaverdadeira luz170.

1.7. O QUE PODE A CRIATURA?

168 Da mesma forma que a noção de ‘pessoa’, desenvolveremos melhor, posteriormente, a de ‘pai’.169 AGOSTINHO. (1949), p.767. “Paradoxo do espírito finito: riqueza e plenitude com relação ao mundoexterior que ele compreende pelo saber, transfigura pela arte, transforma pela técnica; pobreza e carênciacom relação ao outro que ele encontra no reconhecimento e no amor e, de modo radical, com relação aoOutro absoluto do qual espera a palavra última sobre a sua origem e sobre o seu destino”. LIMA VAZ.(1992), pp.242-243.170 AGOSTINHO. (1949), p.693.

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Na Cidade de Deus vemos Agostinho desenvolver a sua concepção de vontade de

poder, bem entendido, como uma vontade que quer poder se realizar, contudo, com

auxílio daquele que de fato pode171:

Pertence-nos, pois, a vontade e ela mesma faz tudo quanto, querendo, fazemos, oque não se faria, se não quiséssemos. Contudo, no que contra seu próprio querercada indivíduo padece por vontade de outros homens, a vontade influi, se não avontade desse homem, o poder de Deus. Porque, se a vontade se limitasse aexistir e não pudesse o que queira, estaria impedida por outra vontade maispoderosa. Mas nem mesmo assim a vontade seria outra coisa senão vontade, nemseria de outro, senão do que queria, embora não pudesse realizar seu desejo172.

Não se deve perder de vista, nem por um momento, que o que está aqui em

‘discussão’ é o poder que o homem tem para amar – exercício da caridade. O querer amar

depende do homem, o poder amar insistente e continuamente – mesmo e principalmente

quando ele cai na tentação do desamor – já não depende precipuamente dele173. É só com

o socorro – no sentido de suporte para a continuidade do correr -, com o auxílio do

animus (do Espírito Santo do Criador) que o cristão conseguirá não sucumbir no exigente

caminho do amor174. Com isso, o cristianismo retira toda a fatalidade da existência, como

também toda presunção diante dela. Somado a isso subtrai do amor todo o aparato

romântico e heróico que a ele foi cotejado no decorrer da história do mundo ocidental. A

simplicidade do amor cáritas tem receio, inclusive, de se confessar (“Se eu falo de mim

171 IBIDEM, pp.715 e 717.172 AGOSTINHO. (1991), p.205.173 AGOSTINHO. (1949), p.683. “São duas coisas muito distintas o querer e o poder, de sorte que nemsempre o que quer pode e o que pode quer; e assim, do mesmo modo que algumas vezes queremos o quenão podemos, outras vezes podemos o que não queremos. Mas já pelo mesmo som e evolução dosvocábulos se indica suficientemente que de querer (velle) se deriva o nome de vontade (voluntas), assimcomo de poder (posse) o de potência ou potestade (potestas). Portanto, assim como o que quer tem afaculdade de querer ou vontade, assim também o que pode tem a faculdade de poder ou potência. Mas paraque a potência realize alguma coisa é preciso que intervenha a vontade. Pois não se pode afirmar que obrapotencialmente o que executa alguma coisa se obra coagido”. IDEM, p.773.174 IDEM, p.687.

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mesmo, meu testemunho não é verdadeiro” Jo 5,31) no temor de transformar-se em mais

uma vaidade, como já sinalizava o livro do Eclesiastes. Essa experiência amorosa longe

de ser uma possibilidade dentre possibilidades, é um possível realizável, justamente pelo

fato dele já ter se realizado entre nós - o Verbo encarnou; o amor para o cristianismo não

é nada se for tão somente uma possibilidade, já que como possibilidade ele consome, mas

como realidade ou realizando-se ele consuma.

Não devemos, portanto, negar a possibilidade de que o homem viva sem pecadoporque não existiu algum que possamos demonstrar que isto tenha se realizadoperfeitamente, a exceção daquele que não é somente homem, senão também Deuspor natureza (...) se, não obstante, ainda há quem defenda ou julgue que existe,tenha existido ou haverá de existir algum homem adornado de tanta perfeição,não seria este, enquanto sou capaz de entender, um erro muito grave nempernicioso, quando se erra com boa fé, contanto que, quem assim pense nãojulgue ser ele mesmo tão perfeito, se com toda a verdade e evidência não ver quede fato é. Porém, há de se combater enérgica e denodadamente aos que julgamque é possível ao homem, somente com as forças de sua vontade, sem a ajuda deDeus, já alcançar a perfeita justiça ou já, uma vez alcançada, progredir maisnela175.

O não se abrir para Deus embrutece os homens já que:

inchados com aquele vicioso orgulho (...) fiados em suas próprias forças e comosuspensos sobre o vazio, donde não puderam encontrar seguro apoio, vieram acair, rotos e quebrantados, como sobre duras pedras, nas ficções dos ídolos176.

E, como nos assevera Von Balthasar:

Este sentir faltar o terreno debaixo dos pés, porém, não se pode imputar aoCristianismo mas tão-somente ao homem que não quer tomar verdadeiramente asério o Cristianismo. [Este] não cava diante do homem um abismo, mas, aocontrário, oferece-lhe um terreno sólido; este terreno porém está em Deus, não nopróprio homem, e o acesso a ele implica que o homem abandone o seu próprio

175 IDEM, pp.681 e 683.176 IBIDEM, p.709.

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terreno. (...) Fé, esperança e caridade são precisamente o terreno firme oferecidoao homem para caminhar177.

Isto aniquilaria no cristão a angústia seja no sentido desenvolvido ‘psicologicamente’ por

Kierkegaard como ‘desejo sem objeto’178, bem como no sentido etimológico do termo,

qual seja, o de aperto (angere - apertar)179. Como já foi antevisto o cristão, ao contrário,

deseja infinitamente um mesmo ‘objeto’ e seu ato de abertura permanente a este objeto

não lhe permitiria apertar-se, a partir do momento que se decida abrir-se:

Ainda que a doença da angústia em todos os seus matizes tenha atingido hoje ahumanidade, ela pode compreender-se bem, embora [o cristão] não a tenhaexperimentado em si próprio (o que é proibido), indagando, seja sobre as suascausas, seja sobre os efeitos e sobre as atitudes que dela derivam (...) Assim foinos primeiros tempos do Cristianismo quando os jovens cristãos penetravam,sem se contagiarem, entre os existencialistas da antigüidade em decadência, edavam aos fracos exemplo de uma vida vigorosa, que ia buscar a sua linfa emfontes e reservas completamente diferentes180.

Aqui surge uma diferença fundamental, quanto à permanência da abertura, entre

Cristo e os cristãos, já que Aquele se abre e recepciona ininterruptamente a vontade do

Pai. Diferentemente, o cristão em luta e luto (‘o morro porque não morro’ teresiano)

esforça-se para abrir-se.

Na iconografia cristã não deixou de ser percebido que mesmo no momento da

‘morte’ Cristo permaneceu de braços abertos. Sua condenação adveio da abertura que

realizou e se realizou nele. Os pregos que sustentaram seu corpo foram transformados,

por seus discípulos, em pregação. O que foi pregado na cruz o foi por sua abertura

177 VON BALTHASAR. (2000), pp.52-53.178 KIERKEGAARD. (1973), p.166.179 Cf. IDEM, p.43.180 VON BALTHASAR. (2000), pp.44-45.

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permanente a Deus. Simbolicamente, mesmo na morte de cruz uma abertura permanente;

que refunde inclusive o conceito de tempo181, pois segundo Agostinho: se por um lado o

tempo, separado dos movimentos corporais, é inimaginável, por outro, qualquer tentativa

de identificar o tempo com a moção de corpos particulares é inteiramente arbitrário182.

Ouvi dizer a um homem instruído que o tempo não é mais que o movimento dosol, da lua e dos astros. Não concordei. Por que não seria antes os movimentos detodos os corpos? (...) És em ti, ó meu espírito, meço os tempos! Não queirasatormentar-me, pois assim é. Não te perturbes com os tumultos das tuas emoções.Em ti, repito, meço os tempos. Meço a impressão que as coisas gravam em ti àsua passagem, impressão que permanece, ainda depois delas terem passado. (...)Fixa o olhar onde desponta o amanhecer da Verdade183.

Portanto, o que se trata aqui é a que ou a quem o homem se refere para constituir

seu tempo: relacionando seus próprios movimentos com o ciclo do sol, o sol se tornará

referência para o que ele deseja, quer ou deve fazer – no período de um dia, no período de

uma noite, por uma semana, um mês ou um ano. Contudo, mudando a referência,

convertendo seu ser para Deus se interrogará, enfim, o que deseja, o que quer ou o que

deve fazer referido à caridade. Desse modo, já não se tratará mais de afirmar que um

homem seja mais ou menos velho, mas sim, mais ou menos santo. É adscrito neste

sentido de tempo – como abertura – que Agostinho poderá afirmar: o tempo é um vestígio

de eternidade184 para o cristão, mas não para Cristo. É um vestígio porque para o cristão

esta abertura é uma fresta, uma aperture como diria Ricoeur – expressão que sugere uma

abertura apertada (mas não necessariamente angustiada e, muito menos angustiante). Tal

181 “A receptibilidade para tudo o que vem do Pai é o que para o Filho se chama tempo em sua forma deexistir como criatura, e estabelece a temporalidade. (...) Que Jesus tem tempo, significa antes de tudo isto:que não repele nem lança para o lado a vontade do Pai”. VON BALTHASAR. (2003), pp.24-25.182 COCHRANE. (1992), p.426.183 AGOSTINHO. (1990), pp.286,292 e 291.184 IDEM, p.277.

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imagem não sugere o sofrimento incessante daquele que busca o equilíbrio em cima do

fio de uma navalha onde a vida é sentida como corte ou morte. Não se trata de um

pessimismo ou de um otimismo diante da existência ou da história185, mas sim de uma

paciência diante das atribulações – tanto interiores quanto exteriores –, de uma humildade

diante das resoluções, bem como, de uma perseverança mesmo quando se corre o risco de

não mais acreditar de per si in vera. Assim, repleta de pesares a vida do homem se

apresenta: a cada peso um esforço, a cada peso uma postura. É o peso que lhe impõe

movimento ou que não lhe deixa olvidar que se movimenta, justamente, porque pesa. O

homem é assim presa do que lhe pesa, presa de seus pesares. Através do que mais pesa,

sopesa todo o resto e, por conseqüência, através do que mais preza, surpreende (e

apreende) todo o resto:

O corpo, por seu próprio peso, se esforça para ir ao seu lugar. O arraste do pesonão é meramente para baixo, senão para o próprio lugar. O fogo tende para cima,uma pedra tende para baixo. Vão instalados por seu peso, buscam seus lugares. Oazeite derramado embaixo d’água, vai para cima dela; a água derramada sobre oazeite se põe abaixo dele. Seus pesos lhes movem a buscar os lugarescorrespondentes. Quando estão fora de ordem, ficam inquietos; devolvidos a ela,descansam. Meu peso é meu amor; portanto, levado vou, onde quer que meleve186.

Quanto àquela abertura, mesmo o empírico Jung (como ele preferia se

autodenominar) afirma, parafraseando Rudolf Otto:

Não posso “dominar” um “nominosum”, mas apenas permanecer em atitude deabertura diante dele, deixando que me avassale e confiando no seu sentido. O

185 Pois um historiador conseqüente está atento ao caráter romântico e utópico tanto do otimismo quanto dopessimismo. POPPER. (1973), p.67.186 AGOSTINHO. (1990), p.335.

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princípio (do latim “prius”, ou seja, o que é “anterior”, primitivo, o que existe,“no começo”) é sempre algo superior e mais potente do que eu187.

1.8. CONHECER A LEI NÃO É SUFICIENTE

O debate com Pelágio possibilita a Agostinho explicitar uma outra diferença entre

o Antigo e o Novo testamento, no que diz respeito ao pecado e ao livre arbítrio: se o

caminho da verdade permanecesse sempre oculto ao homem, o livre arbítrio de nada lhe serviria

senão para pecar188. O que está evidenciado aqui é que a lei veterotestamentária tornava

claro em mandamentos talhados em pedra tudo aquilo que o homem deveria evitar. No

entanto, paradoxalmente, essa mesma lei era a geratriz do pecado, já que na ausência do

preceito o pecado não existiria:

A lei, ainda que boa, estimula com a proibição o apetite mal; como o ímpeto daágua que não deixa de pressionar determinado ponto, tornando-se mais violentocom a oposição de algum obstáculo, o qual, ao ser vencido, faz com que a águase precipite em maior quantidade e com mais violência (...) Pois eu não sei deque modo aquilo que se cobiça torna-se mais grato quando é proibido. E isto é oque inclina ao pecado mediante o preceito, e pelo que este mata quando se lheacrescenta a prevaricação, a qual não existe onde não existe a lei189.

O conhecimento da lei e, por conseqüência do pecado, não resolve o problema; ao

contrário, imputa o peso da culpa já que a letra, que proíbe o pecado, não justifica a ninguém,

senão que mata mais intensamente190. O que Agostinho queria demonstrar é que o dever191

187 JUNG. (2003), p.115.188 AGOSTINHO. (1949), p.685.189 IDEM, p.687.190 IBIDEM, p.721.191 “Pela lei tememos a Deus, pela fé esperamos n’Ele: mas para os que temem o castigo permaneceescondida a graça. E assim, a alma atormentada baixo o peso deste temor, se mesmo impotente, não lograrvencer a concupiscência do mal nem dissipar aquele temor, que a cerca como severo vigilante, refugie-sepor meio da fé na misericórdia de Deus, a fim de que a outorgue o que Ele manda e com a doce suavidadeda graça nela infundida pelo Espírito Santo consiga que lhe deleite mais o que Deus manda que o queproíbe. Assim é como a abundância de sua doçura, isto é, a lei da fé, a caridade escrita e derramada noscorações, se faz perfeita nos que esperam n’Ele, a fim de que a alma obre santamente, redimida não pelo

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não é suficiente para instituir relações mais justas entre os homens. Em se tratando do

homem interior é no querer que reside o início de sua libertação:

Quem acrescenta ciência, acrescenta dor [Ecl 1,18]; não porque a lei seja ummal, senão porque contém o preceito bom somente na letra, que o declara, e nãono espírito, que ajuda; preceito que se cumpre não por amor à justiça, mas portemor ao castigo, se cumpre servilmente; não se cumpre com pura liberdade, e,por conseguinte, não se cumpre. Porque não é bom o fruto que não brota da raizda caridade. Porque certamente, se ao ato acompanha a fé, que obra animada pelacaridade, já então começa a alma a deleitar-se na lei divina segundo o homeminterior, e esta complacência não é fruto da letra, senão dom do espírito, mesmoque ainda exista, outra lei nos membros que guerreie contra a lei da razão, atéque pela renovação do homem interior, que vai acrescentando-se dia após dia,desvaneça-se totalmente o homem velho, livrando-nos do corpo desta morte agraça de Deus por Jesus Cristo, Senhor nosso192.

Já no final do Livro III da Doutrina Cristã refere-se à utilização por parte de

‘nossos autores’ de todos os modos de falar que os gramáticos chamam com o nome grego

de tropos. E reitera que o conhecimento deles é necessário para resolver as ambigüidades da

Escritura; porque se tomar as palavras ao pé da letra o sentido é absurdo, tem-se de indagar se

aquilo que não entendemos se diz com este ou com aquele outro tropo193. Há locução trópica

em qualquer parte onde se diga algo para que se entenda outra coisa distinta do que foi

dito194. No entanto, como bem sinaliza Umberto Eco, Agostinho sabe muito bem que

metáfora e metonímia podem ser facilmente reconhecidas, mas o que fazer quanto às

expressões (...) que mesmo literalmente poderiam fazer sentido e às quais o intérprete é, no

entanto, induzido a atribuir sentido figurado?195 Agostinho afirma haver uma regra geral para

a interpretação das escrituras sacras:

temor do castigo, senão pelo amor da justiça. AGOSTINHO. (1949), p.769. (Grifo nosso)192 AGOSTINHO. (1949), pp.723 e 725.193 AGOSTINHO. (1957), pp.237 e 239.194 IDEM, p.259.195 ECO. (1989), p.84.

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Tudo quanto na divina palavra não possa se referir num sentido próprio àbondade dos costumes nem às verdades da fé, há que tomá-lo em sentidofigurado (...) A Escritura não manda, senão a caridade; nem repreende, senão acobiça (...) Chamo caridade ao movimento da alma que conduz a gozar de Deuspor Ele mesmo. E chamo cobiça ao movimento da alma que arrasta o homem aogozo de si mesmo e do próximo e qualquer outra coisa corpórea sem preocupar-se com Deus196.

1.9. ORÍGENES: CONTRA CELSO

Antes de passarmos ao livro IV da Doutrina Cristã faz-se necessário elucidarmos

minimamente a diferença entre alegoria e figura, bem como compreendermos o porquê de

Agostinho cotejar, por vezes, história e literalidade.

Uma das primeiras dificuldades que se põe no ‘discernimento’ entre alegoria e

figura é a seguinte: a Sagrada Escritura está carregada para o intérprete cristão daquilo

que foi denominado no próprio ato de interpretação tradicional, iniciado por Orígenes

(fundador da ciência bíblica197), mas vislumbrada já por São Paulo (particularmente na

Epístola aos Hebreus198), de uma alegoria in verbis e uma alegoria in factis. Quando

descrevemos acima o modo como Agostinho interpretou – confrontando-se com os

maniqueus – o livro do Gênesis ele objetivava demonstrar que uma interpretação ao pé da

letra sugeriria imagens e relações absurdas e, portanto, sinalizava aos maniqueístas que

deveria haver um segundo sentido àquilo que estava sendo exposto. Portanto, quando

alguém se põe a ler o livro do Gênesis sem relacioná-lo a qualquer outro livro

neotestamentário faz-se necessário, como vimos, a superação da interpretação literal

como se entende comumente. Para o cristianismo todo o Antigo Testamento através do

196 AGOSTINHO. (1957), p.213. cf. também p.221.197 LUBAC. (1970), p.52.198 IDEM, p.49.

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alegorismo in factis é figura quando comparado ao Novo Testamento, já que neste está

patente o que naquele latente está199. Há algo de extraordinário, para o cristão, nessa

inversão de precedência entre a sombra e o corpo, entre o original e a figura:

Paradoxo inaudito: não é a Verdade anterior a toda idade, não é esse divinoLogos que Filón dizia ser o mais antigo dos Filhos de Deus? ‘Jamais, dirá aindaTertuliano, existe a sombra antes do corpo, nem a cópia precede ao original’.Pois bem, tal é a originalidade desconcertante do Feito cristão: Ele é a substânciae o modelo, é a Verdade cuja sombra e reflexo se encontram no feito judeuanterior (...) É toda Lei dita pela boca do Batista: ‘O que vem depois de mim foifeito antes de mim200.

Dito assim, o que se configura no Antigo Testamento, realiza-se, consuma-se no Novo.

Faz-se necessário que caminhemos lentamente nesta discussão extremamente

complexa, que diz respeito à alegoria e à figura. Partamos do e o parágrafo anterior. Já

Orígenes deparava-se com um dilema: primeiro, afirmar contra Celso a possibilidade de

uma leitura alegórica da Sagrada Escritura, já que este teria afirmado dentre outras coisas

que as histórias de Moisés não passam de mitos vazios, de discursos que não admitem sequer

a interpretação alegórica201. Contudo, se existia a possibilidade dos estóicos

compreenderem alegoricamente os mitos gregos, por que algumas passagens da Sagrada

Escritura deveriam ser compreendidas ‘ao pé da letra’ e imputadas como absurdas?

Portanto, num primeiro momento Orígenes quer resguardar a não absurdidade através da

alegoria. Neste sentido, apesar de apologista cristão, põe-se a dialogar; diferentemente de

Tertuliano que segundo se acredita teria aceitado a condição de absurdidade da Sagrada

Escritura e proferido o ‘creio porque é absurdo’. Assim, acolhida a interpretação alegórica

199 IBIDEM, p.82.200 Cf. LUBAC. (1988), p.123.201 ORIGENES. (1967), p.56.

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no seio dos livros considerados santos pelos cristãos, Orígenes poderá dizer, referindo-se

às legendas gregas:

O leitor inteligente dessas histórias, que não quer deixar-se enganar por elas,saberá discernir que coisas poderá aceitar simplesmente, e que coisas explicarfiguradamente, indagando a intenção daqueles que inventaram tais legendas;saberá, enfim, a que coisas negará todo crédito, como escritas para agradar adeterminadas gentes202.

Contudo, o objetivo de Orígenes não é sugerir uma leitura necessariamente

alegórica dos textos sacros, mas sim afirmar que se foi tornada possível pelos estóicos

uma leitura de ‘implícitos’ a respeito dos mitos gregos, por que a Sagrada Escritura não

poderia contê-los? No entanto, o segundo sentido não seria necessariamente alegórico,

mas sim o que ele denomina de espiritual, pois muitas são, com efeito, as coisas da lei que

podem ser interpretadas e esclarecidas segundo o sentido espiritual203. Celso teria objetado que

se tal sentido fosse claro não haveria um número tão diverso de interpretações do mesmo

no seio do cristianismo. Objeção que Orígenes refuta da seguinte maneira:

não existe coisa em que tenham surgido seitas diferentes se a coisa não possuiuma origem séria e que seja útil à vida (...) Surgiram forçosamente bandos oupartidos não absolutamente por afã de dissensão ou disputa, senão pelo empenhoque muitos eruditos tiveram em entender a fundo os mistérios do cristianismo204.

1.10. QUEM COMPORTA A MENSAGEM?

202 IDEM, pp.76-77.203 IBIDEM, p.166.204 IBIDEM, pp.184-185.

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De igual maneira, quanto à história de Jesus, será necessária muita inteligência e indagação

para se poder adentrar na mente dos escritores, a fim de descobrir em qual sentido secreto foi

escrita cada coisa205. Portanto, teríamos assim que, se Jesus Cristo é o portador da

mensagem – portar206 esse que é também um comportar - Jesus é aquele que portando

uma mensagem conseguiu comportar-se em total acordo com ela207. Poderia-se objetar

que tudo aquilo que nos chegou historicamente diz respeito ao período de sua vida

pública e, por conseguinte, não existe nenhuma maneira de se provar que Jesus teria se

comportado anteriormente de maneira consonante. Contudo, tal objeção ruiria por si

mesma, pois o que acima ficou descrito é justamente que enquanto portou uma

mensagem, comportou-se de acordo com ela; na ausência da mensagem, não há como se

cobrar posturas. Como seres falantes e fazedores que somos, a contradição, quando se

trata da dimensão ética, apresenta-se justamente entre o falar e o fazer. A título de

exemplo citemos a enunciação proferida por Kierkegaard, autor que demonstrou com

extrema agudeza a experiência da angústia que se apresenta para todo aquele que percebe

em si mesmo o corte entre o que vive e o que idealiza: A imediatidade é a realidade, a

linguagem é a idealidade, a consciência é a contradição. No momento em que anuncio a

realidade, surge a contradição, pois o que eu digo é a idealidade208. Essa é a nossa experiência,

a nossa chaga. Diferentemente, aquele que comportava uma mensagem de amor não era

205 IBIDEM, p.77.206 E como afirma Irineu “portar se estende desde a dignidade e capacidade de manter uma carga, a carga deDeus, até a responsabilidade de levá-la e sustentá-la, e a força para custodiá-la, como uma mãe a seu filho,com toda classe de ajudas e assistências”. Cf. VON BALTHASAR. (1986), p.57.207 Marcel DETIENNE quando se pôs a compreender a genealogia do ‘conceito’ de verdade na GréciaArcaica fez a seguinte afirmação: ‘A palavra mágico-religiosa é, em primeiro lugar, eficaz, mas suaqualidade de potência religiosa introduz outros aspectos: primeiro, este tipo de palavra não se distingue deuma ação ou, se assim o quisermos, não há, neste nível, distância entre a palavra e o ato; além disso, apalavra mágico-religiosa não está submetida à temporalidade; enfim, ela constitui o privilégio de umafunção sócio-religiosa’. (1988), p.36. Como os mestres da verdade da Grécia Arcaica, a palavra de Jesus seconfunde com a sua ação, no entanto, distintamente – e aí reside a sua novidade – a sua palavra submeteu-seà temporalidade, já que o Verbo se fez carne. O tempo constitui-se assim o veículo para a eternidade, oucomo afirma Agostinho, o vestígio. 208 KIERKEGAARD. (2003), p.108.

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alvejado por tal contradição já que seu ideal era imediato, ou, para se dizer de um modo

mais aproximado: no momento mesmo que ele pronunciava (idealizava) a sua mensagem

ela se anunciava (realizava). Quanto a isso, dirá Kierkegaard em forma de oração:

Decerto há poucas obras que a linguagem humana, específica e mesquinhamente,denomina obras de amor; mas no Céu é diferente, aí nenhuma obra pode agradarse não for uma obra de amor; sincera na abnegação, uma necessidade do amor, ejustamente por isso sem a pretensão de ser meritória!209

Portanto, não haveria no Jesus comportador da mensagem – e é isso que acredita

seus seguidores (e estes são, em verdade, os que tentam vivenciar o que acreditam e, não

necessariamente os que dizem acreditar) – a separação entre realidade e idealidade. Se a

consciência é a conflagração de uma dúvida, seríamos levados a concluir, quanto a isso,

que Jesus não carregava consigo o peso da consciência. A certeza de amar manifestava-se

de modo tão totalizante e durável no portador da mensagem que ele passou a ser

compreendido como fazedor de milagres. Sua mensagem é dura e dura como a pedra, mas

feito água adequa-se ao sabor da demanda. Que se mudem as paisagens e os contextos, o

pretexto é imutável: amar.

Teríamos assim três situações diversas: a primeira, o portador da mensagem que

possuidor da ciência, da sapiência, não mais necessitava da consciência; a segunda, a

daqueles que visitados pela mensagem deparavam-se e deparam-se com a incômoda

situação de tornar o visitado, morada (ambiente específico da consciência); a terceira, a

daqueles que ignorando a mensagem não podiam, repitamos, ser condenados pelo

descumprimento de uma ‘lei’ que desconheciam (neste sentido, não há motivo para se

condenar os pagãos que eram assim denominados por morarem nos lugares distantes (nos209 KIERKEGAARD. (2005), p.19.

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pagòs), inacessíveis e, que dessa forma não tinham tomado contato com a mensagem. Por

isso, a necessidade de se propagar a notícia). No entanto, no decorrer da história a

confusão generalizou-se, já que houve como que uma fusão das situações: a situação do

converso é, propriamente, a segunda; contudo, não foram poucos os que assumindo

equivocadamente a primeira situação passaram a julgar e perseguir os que se encontravam

na terceira (na ausência da situação mediadora, retorno ao maniqueísmo). Em função

disso, a moral cristã descambou em moralismo, a caminhada tornou-se perseguição, o

agora suposto amor em vingança. Neste sentido, não há como não se dar créditos à

análise genealógica de Nietzsche de que a cristandade tenha se tornado a expressão cabal

da má-consciência210. Ou para se utilizar uma conceituação que desenvolvemos acima: de

um modo contraditório quiseram (ou quisemos?) ser transportadores da mensagem, sem

se comportar do modo como ela propunha: ‘impossível’ transportar o que não portamos!

Essa foi uma das mentiras denunciadas por Nietzsche. Contudo, para Agostinho, tais

deslizes só ocorrem ou por fraqueza, ou por ignorância211. Quanto ao fraco que se

fortaleça naquele que tudo pode, quanto ao ignorante que seja oferecido algo que o

certifique da necessidade de amar – na recusa tanto de um quanto de outro, já terá sido

rompido o véu da inocência e todo gesto a partir de então será compreendido como ato

premeditado, mas não necessariamente definitivo.

Agostinho tinha consciência (no sentido que emprestamos acima) daquela

segunda situação, pois que, literalmente ele se encontrava naquela situação de tomada de

consciência. Também ele experimentava o incômodo de sentir em si mesmo a distância

(que deve ser diminuída) entre o que se fala e o que se faz. Ele que tinha sido, segundo

210 NIETZSCHE. (1991), pp.27-81.211 AGOSTINHO. (1952), p.469.

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seu próprio testemunho, tão influenciado pelos ecléticos romanos – particularmente

Cícero – poderá dizer a respeito do mesmo quanto à problemática de que agora nos

ocupamos:

Cícero, o príncipe dos oradores romanos, disse de alguém que ‘Ele nuncaproferiu uma palavra que desejasse renegar’. Eis realmente um grande elogio –porém mais aplicável a um perfeito asno do que a um homem autenticamentesábio. (...) Se Deus mo permitir, reunirei e assinalarei, num trabalhoespecialmente dedicado a esse fim [referência ao livro das Retratações], todas ascoisas que me desagradaram em meus livros, com justa razão: assim os homensverão que estou longe de ser juiz parcial em meu caso. (...) Pois sou o tipo dehomem que escreve por haver progredido, e progride...por escrever212.

Tal passagem não deixa de nos criar embaraços, pois que tal asno bem poderia

ser, por tudo que até agora foi exposto, Jesus – já que segundo afirmamos ele não se

contradizia. No entanto, vemos aqui se descortinar algo verdadeiramente genuíno, qual

seja, um deslocamento minucioso do problema, que só vem confirmar a segunda situação

que enunciávamos, contudo, invertendo-a. Temos assim que a primeira forma de

contradição - da qual Jesus não participava - era justamente a da relação entre o fazer e o

falar, onde o contradizer do dito não seria um contradito, mas sim, um ato. No entanto,

Agostinho não está se ocupando aqui do Mensageiro, mas de alguém que como ele

recebeu a mensagem. Esse alguém não é representado nesse momento indivíduo, mas

visado como criatura e nesta condição seria estranho se arrogar o poder de não se

contradizer, seja na relação entre o fazer e o falar (contradição ética), seja no falar pelo

falar (contradição retórica). Mas onde está o genuíno neste deslocamento, senão na

pressuposição agostiniana de que o escrito pode contribuir para se perceber melhor o

processo de transformação? Dito de uma outra maneira, aquela contrariedade entre o falar

212 AGOSTINHO. (1953), pp.175 e 173. Cf. tb. BROWN. op.cit., p.441. (grifo nosso)

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e o fazer é agora assumida não nos seus aspectos negativos, mas ao invés, a escrita (como

fala talhada, como fala que se arquiva no receio do esquecimento) assume aqui uma nova

condição, qual seja, a de aliada para se esclarecer a contradição ética. Ao Livro (que

contém a boa notícia) cotejam-se os livros daqueles que envolvidos pela boa notícia e

dilatados por ela, passam a relatar para si mesmos (como para outros) como corre e

ocorre tal apropriação. Talvez, assim, compreendamos mais satisfatoriamente a passagem

(de Orígenes213) que foi o estopim dessa pequena digressão: surgiram forçosamente bandos

ou partidos não absolutamente por afã de dissensão ou disputa, senão pelo empenho que muitos

eruditos tiveram em entender a fundo os mistérios do cristianismo. Onde esse entender a fundo

não se resume a um exercício estritamente intelectual, mas sim, com o auxílio do

intelecto tender para o fundo no anseio de se compreender o sentido.

1.11. FIGURA NA FIGURA214

Relevante para esta questão a respeito do conceito de figura o ensaio homônimo

de Erich Auerbach, no qual este autor realiza um interessante trabalho histórico-filológico

do mesmo. Auerbach afirma que figura foi originalmente compreendida, a partir de

Terêncio, como forma plástica215. Diferentemente, Varrão vincula figura com ‘aparência

externa’ e ‘contorno’. Mas, a grande novidade de Varrão quanto ao conceito de figura é

que com ele tal palavra extrapola o campo da plástica quando ela começa a falar de

formas de palavras, assim, pela primeira vez figura é empregada no sentido de uma forma

gramatical. Somado a isso, Auerbach cita uma passagem de Varrão (De lingua latina

213 cf. nota 203.214 Relevante notar que a questão da figuração acompanha o próprio surgimento da escrita. Temos assim umprimeiro movimento da figura à palavra [BÓTTERO. (1995), p.17.]. A palavra foi suprimindo a [antiga]figura e foi se tornando figurativa. Ao figurar, fez de si mesma figurada. 215 AUERBACH. (1997), p.13.

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9,21) extremamente sugestiva para o tema que nos ocupamos: E acaso querem que haja

tanta diferença entre os dois sentidos, que sempre procuram alguns novos modelos de móveis

para os seus olhos, porém querem também que seus ouvidos estejam livres deles?216

Temos aqui uma interrogação que ratifica a teoria do conhecimento de Aristóteles

onde este asseverava no livro da Metafísica a supremacia do sentido da visão na

percepção da realidade. No entanto, percebido o objeto (os móveis – e o movimento

implica certa impressão da coisa percebida) através dos olhos, segue-se a descrição do

percebido e, para a compreensão da descrição o sentido que se impõe é, justamente, o da

audição. O conceito de figura quando se vincula à forma plástica valoriza explicitamente

o sentido da visão, mas quando Varrão institui o giro conceitual e coteja o mesmo às

palavras ele inaugura a aproximação do conceito de figura ao sentido da audição. Esta

formulação será muito cara aos padres da Igreja: primeiro, se Deus é compreendido como

Verbo, Palavra, a audição se antecipa à visão; por conseqüência, refunda-se o conceito de

realidade, pois que ela deixa de ser o que é visto diretamente pelo homem, pois por Deus

ter visto primeiro a palavra dele antecipou-se e tornou-se realidade. Dito de uma outra

forma: partindo do princípio de que Deus é o Criador e o ato de criação se deu através da

palavra, a criatura deve estar aberta para ouvir mais do que para ver e assim a palavra faz-

se divina.

Mas, se Varrão enuncia a transição é Lucrécio quem a executa e assim o conceito

de figura desloca-se definitivamente do visual para o auditivo. Somado a isso, Lucrécio

ao movimentar o conceito de figura de um sentido ao outro, encontra nesta palavra a

extensão e a graciosidade necessárias para substituir inclusive o conceito de movimento.

Portanto, ao impor movimento ao conceito original de figura desvendou a possibilidade

216 IDEM, pp.14-15.

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de utilizar figura como movimento. É neste sentido que Auerbach reitera que o conceito

de figura passou a ter uma dinamicidade maior que o de forma. Por sua vez, se forma

estava diretamente ligada a uma imagem modelar, qual seria a palavra que daria conta,

esteticamente, da cópia do modelo? Lucrécio sugere que figura resolveria tal problema,

justamente por sua mobilidade. Passa a usar figura para descrever, por exemplo, a

imagem que as crianças carregam de seus pais já que têm a figura de um e de outro217. E

como mais uma vez nos assevera Auerbach: constatamos aqui que só figura pode servir

para esse jogo entre modelo e cópia218. Tal enunciação não passará despercebida pelos

hermeneutas cristãos que acolherão, posteriormente, o conceito de figura para explicitar a

relação entre o Antigo e Novo Testamento, contudo, invertendo o lugar da cópia e do

modelo, já que se para eles o novo testamento é o modelo, o antigo é uma cópia

antecipada. Contudo, quanto a isso, seria mais lógico afirmar se tratar não da relação

entre modelo e cópia, mas sim de rascunho e forma final. No entanto, os padres da Igreja

não estavam aptos a aceitar que Deus tenha rascunhado a sua obra, para posteriormente

efetivá-la, pois que o rascunho com toda a sua condição de provisoriedade se constituiria

em sua obra, o que para eles era inaceitável, já que a ação de Deus é definitiva e sua obra

eterna e imutável. E assim se descortina mais um motivo para o acolhimento do conceito

de figura, na acepção de Lucrécio: ela de um só golpe responde à necessidade da

patrística de demonstrar a continuidade existente entre os dois testamentos (relação

configurada entre o pai e o filho, entre o novo e o antigo, figuração e prefiguração); bem

como, indica uma possível resolução para a imbricada questão a respeito da imutabilidade

divina, pois figura adequa-se à condição imutável de Deus sem negar, contudo, o

217 Como na imagem descrita por Ben Sirac no século II a.C: “O pai morre, é como se não morresse porquedeixa depois de si alguém semelhante a ele”. Eclo 30, 4.218 AUERBACH. op.cit., p.17.

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movimento do Mesmo. No entanto, uma terceira acepção desenvolvida por Lucrécio para

figura – onde esta se aproximava de visão de sonho, imagem da fantasia, fantasma,

ficção219 - não teve a mesma acolhida. Como vimos, Agostinho foi um dos grandes

representantes desta postura refratária quanto a esta aproximação. Auerbach afirma que

foram os poetas que estavam mais interessados nos matizes do significado entre modelo e

cópia, nas formas variáveis e na semelhança ilusória que habitam os sonhos220.

A relevância do conceito de figura não estava adscrita somente aos eruditos e

poetas romanos, mas também foi relevante o uso político da palavra por parte dos

retóricos, já que:

os oradores romanos desenvolveram uma técnica refinada para expressar ouinsinuar algo sem dizê-lo; na maioria dos casos algo que, por razões políticas outáticas, ou apenas por uma questão de efeito, preferiam manter em segredo ounão explicitado221.

Não existe dúvida de que tal nuance e uso da palavra figura – ‘manter em segredo

ou não explicitado’ – será aproveitado e adequado pela patrística para enunciar a relação

do homem com Deus. No entanto, com uma diferença fundamental: não se tratará tanto

de manter um segredo, já que tal atitude pressupõe conhecer o que se guarda ou saber o

que se esconde e não explicitá-lo em função de uma estratégia ou tática antevista e,

portanto, antecipadamente traçada. Desta forma, o segredo se constituiria num último

recurso, utilizado em casos excepcionais. Mas, diferentemente, transposto para o contexto

cristão o que se explicita não é mais um segredo que possa ser guardado ou lançado de

acordo com o interesse de um indivíduo ou grupo qualquer, mas sim que o explicitado é a

219 IDEM, p.18.220 IBIDEM, p.21.221 IBIDEM, p.25.

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existência como o segredo, justamente por ser sagrada. Quanto àquela primeira acepção

terá dito Agostinho: se o que fazes deve ser mantido em segredo é porque não deve ser

feito. Vemos assim que para o cristão, seria uma contradição guardar em segredo o que

lhe sustenta, já que o que se lhe pede é, ao contrário, a partilha do ‘segredo’-sagrado.

Somado a isso está pressuposto que o cristão sequer guarda o segredo, mas sim, está

guardado nele.

1.11.1. FIGURA E PREFIGURAÇÃO

Agostinho estava cônscio disto e irá ocupar-se no Livro IV da Doutrina Cristã de

toda dimensão ‘retórica’ inerente à propagação de qualquer mensagem, já que no início

do quarto livro afirmou que se os três primeiros livros trataram do modo de encontrar as

coisas que devem ser entendidas, o quarto tratará do modo de expor as já entendidas222. O

que está posto aqui é que a mensagem cristã além de superar o par - esotérico e o

exotérico – já que o Verbo sopra onde quer, o acolhimento da palavra como instrumento

de conversão, tem como conseqüência não a sua desvalorização, mas ao contrário, ela

deixa de ser flatus vocis para se tornar comportadora do sentido, portanto, palavra

encarnada. Se a vida foi insuflada a partir de um sopro, se tudo se fez a partir do Verbo,

no verbo haverá a dimensão divina. Tautologia aparente: no uso da palavra, o trânsito da

vida. Se não perdermos de vista que o ponto central da mensagem cristã é a experiência

do amor gratuito ou da gratuidade do amor poderemos compreender melhor o porquê

deste amor ser refratário a qualquer segredo, pois que ele em verdade só se constitui

quando se expressa. Esta experiência amorosa segrega qualquer segredo porque sua

profundidade só se confirma quando trazido à superfície, tornado face a face; quando vem

222 AGOSTINHO. (1957), p.263.

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à tona, instituindo tonalidades. Pôr em comum é tarefa deste amor: comunicar e

comungar da vida do outro, sair de si (‘êxtase’) para o outro, solidarizar-se. Quanto a

isso, Kierkegaard teria dito: ‘o homem verdadeiramente fora do comum é o homem

verdadeiramente comum’223.

A primeira referência ao conceito de figura no contexto patrístico, segundo

Auerbach, se deu com Tertuliano. Nele figura passa a relacionar-se implicitamente com o

‘conceito’ de história224 e explicitamente com o de verdade; pois, com o objetivo de

compreender a interação dos dois testamentos depara-se com o movimento da história e a

história do movimento sagrado. Se Cristo é o grande evento da história, qual teriam sido

as ocorrências que possibilitaram, não seu surgimento, mas sua vinda? Se num primeiro

momento Deus fez parte da história de um povo, agora em Cristo esse Deus fez-se

história. Por conseqüência, entende-se melhor o porquê de Tertuliano ter sugerido a

explícita relação de figura com verdade, já que a figuração divina do Antigo Testamento

necessitaria daquilo que Auerbach denominou de preenchimento, portanto, se o Deus

veterotestamentário era dos Céus – do céu e a partir do céu, para o cristianismo ele se

tornou senhor do céu e da terra já que na terra Ele habitou; se antes ele figurava entre os

homens, a partir do evento Cristo, Ele está verdadeiramente no meio de nós, onde este

verdadeiramente é o preenchimento: as figuras históricas reais devem ser interpretadas

espiritualmente, mas a interpretação aponta para um preenchimento carnal e, por

conseguinte, histórico – pois a verdade fez-se carne ou história225. Como afirma Marc

Bloch:

223 Cf. MOUNIER. (1976), p.99.224 AUERBACH. (1997), p.27.225 IDEM, p.31.

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Outros sistemas religiosos fundaram suas crenças e seus ritos sobre umamitologia praticamente exterior ao tempo humano; como Livros sagrados, oscristãos têm livros de história, e suas liturgias comemoram, com os episódios davida terrestre de um Deus, os faustos da Igreja e dos santos. Histórico, ocristianismo o é ainda de outra maneira, talvez mais profunda: colocado entre aQueda e o Juízo, o destino da humanidade afigura-se, a seus olhos, uma longaaventura, da qual cada vida individual, cada “peregrinação” particular, apresenta,por sua vez, o reflexo; é nessa duração, portanto dentro da história, que sedesenrola, eixo central de toda meditação cristã, o grande drama do Pecado e daRedenção. Nossa arte, nossos monumentos literários estão carregados dos ecosdo passado, nossos homens de ação trazem incessantemente na boca suas lições,reais ou supostas226.

Temos assim que o cristianismo encarnando Deus na história, esse Deus tornado

homem, desenvolveu o homem como história. Assim, Agostinho poderá assumir a

memória como uma afecção tão fundamental para homem. Por que o indivíduo não é

autônomo? Porque sua liberdade sendo de e para enuncia uma origem ou princípio, como

também, um fim ou finalidade de modo que a sua história só se descortina quando se leva

em conta a história, não só temporal, mas do espaço que ele está inserido. Neste contexto,

toda a apreensão é já e desde sempre uma compreensão, um apreender juntos tudo aquilo

que nos constitui, assim, o que interessa para o cristão – junto a sua história particular,

como tão bem sinalizou Marc Bloch – é a compreensão da história de um povo, contudo

sem esquecer, que povo para o cristianismo não é uma categoria que se relacione com um

clã ou uma raça, mas com qualquer um que esteja numa condição, que neste caso, é a

humana. É neste sentido que Agostinho no Livro XI das Confissões afirmará a

inexistência de um passado e de um futuro relacionando o primeiro com o que já não é e

o segundo com o que ainda não é. Contudo, o que ele quer dizer com isso é que um

passado que não age na pessoa, não é passado, mas esquecimento e, de igual maneira, um

futuro inativo é ilusão. O passado só assume um caráter afirmativo quando deixa de ser226 BLOCH. (2002), p.42. Interessante notar que COCHRANE enfatiza que – pondo ao revés o argumentode Bloch – a descoberta da personalidade é que tornou possível, pelo menos no que diz respeito aAgostinho, a descoberta da história. (1992), p.443.

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passado, para tornar-se um passando, de forma que o que está passando em nós, se está

passando em nós ou nos traspassando de alguma maneira está agindo em nós,

constituindo-se numa presença. Portanto, existe uma relação de dependência de um

homem para com outro, de uma época para com a outra. Habitamos em casas que não

foram necessariamente construídas por nós, assim nos portamos presentemente a partir de

projetos e projeções realizadas por antepassados. Compreende-se assim que todo salto

para frente é dependente de um chão que sempre esteve. É neste sentido que no que diz

respeito ao transcendente Scheleimacher afirmou que a característica fundamental

daquele que está inserido no cristianismo é uma relação de dependência com o Criador,

pois Ele assume aqui metaforicamente a imagem do chão que sempre esteve.

Quanto ao conceito de figura inserido no contexto patrístico, nos ocupamos tanto

de Orígenes, como de Tertuliano e, como bem sintetiza Auerbach:

A diferença entre a interpretação mais histórica e realística de Tertuliano e avisão ética e alegórica de Orígenes reflete um conflito corrente, que conhecemosatravés de outras fontes do cristianismo primitivo: uma facção lutava paratransformar os acontecimentos do Novo Testamento, e mais ainda do VelhoTestamento, em acontecimentos puramente espirituais, “espiritualizando” seucaráter histórico – a outra queria preservar a plena historicidade das Escrituras aolado de seu significado profundo. No Ocidente, esta última tendência saiuvitoriosa, embora os espiritualistas tenham mantido sempre uma certa influência,como se pode verificar pelo avanço da doutrina dos significados múltiplos daEscritura; pois, se os adeptos dessa doutrina reconhecem o sentido literal ouhistórico, procuram desligá-lo da conexão igualmente real com a prefiguração,construindo outras interpretações puramente abstratas ao lado da interpretaçãofigural ou em seu lugar227.

Agostinho surge como o sintetizador dessas duas correntes. As diversas conversões pelo

qual passou facilitava o seu trânsito pelas mais diversas interpretações. Somado a isso,

sua experiência pastoral induzia-o a beneficiar a unidade eclesial, tendo em função desta

227 AUERBACH. (1997), p.33.

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justificou, inclusive, a utilização da força pelo poder imperial, regulador das profissões de

fé, na contenda com o donatismo228.

A mensagem cristã com Agostinho começa a tomar contornos explicitamente

políticos, a cidade de Deus e a cidade dos homens mais do que uma relação antitética

carrega em seu bojo uma similaridade, a cidade. A cidade de Deus não é deste mundo por

se tratar de uma cidade celestial fora do tempo e do espaço, mas sim por se inverter o

deste num para este. O mundo no sentido de ordem, organização é o que se questiona, ou

melhor, o modo como ele está ordenado. Poderia-se objetar que toda reflexão propositiva

também é para este mundo, no entanto, ela também é a partir desse mundo e, assim, já

surge mundana. Mas, diferentemente, a mensagem cristã parte do princípio de que o

proposto não é do homem, mas sim para o homem. Desse modo, ela relativiza sem

desvalorizar as tentativas genuinamente humanas de realizar qualquer tipo de

transformação, pois o homem envolto por critérios instituídos por ele mesmo, pela força

do hábito, se colocará como centro e medida de todas as coisas229. Mas o que ou quem lhe

servirá de contraponto para que ele possa ter mais ciência de sua pontualidade? Sua

228 JASPERS. (1968), p.78.229 No ‘Sexto Princípio’ de seu artigo intitulado ‘Idéia de uma história universal em sentido cosmopolita’KANT enuncia o que seria para ele o problema de mais difícil resolução nas relações políticas entre oshomens: ‘o homem é um animal que, quando vive entre seus congêneres, necessita de um senhor. Porquenão resta dúvida que abusa de sua liberdade no que diz respeito aos seus iguais e ainda, como criaturaracional, deseja em seguida uma lei que ponha limites à liberdade de todos, sua egoísta inclinação animallhe conduz sedutoramente ali onde tem que renunciar a si mesmo. Necessita um senhor, que lhe quebrantesua própria vontade e lhe obrigue a obedecer a uma vontade que valha para todos, para que cada qual possaser livre. Mas, de onde escolhe este senhor? Da espécie humana, claro está. Porém este senhor é tambémum animal que necessita, por sua vez, de um senhor. Podendo, pois, proceder como queira, não se podeimaginar como procurar um chefe da justiça pública que seja, justo; seja que lhe busque em uma só pessoa,ou numa sociedade de pessoas escolhidas. Porque cada uma abusará de sua liberdade se não tem ninguémacima que exerça poder em benefício das leis. O chefe supremo tem que ser justo por si mesmo e, nãoobstante, um homem. Assim resulta que esta tarefa é a mais difícil de todas; sua solução perfeita éimpossível; com uma madeira tão retorcida como é o homem não se pode conseguir nada completamentedireito. O que nos tem imposto a Natureza é a aproximação desta idéia. Que será também o último a serposto em execução se deduz do fato de que os conceitos corretos acerca da natureza de uma constituiçãopossível exigem uma grande experiência, conduzida pela história, e, sobretudo, uma boa vontade disposta aaceitá-la; e estes três fatores dificilmente poderão coincidir e, se ele sucede, posteriormente, será fruto demuitos intentos vãos. (2000), pp.50-51.

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capacidade de duplicar-se para melhor compreender-se pode ter como conseqüência um

processo infinito de multiplicação de si mesmo. Aumentando o número de possibilidades

poderá simplesmente se perder em meio a elas. O exercício primordial da ética cristã é

renegar a construção matemática – e quanto a isso Pascal foi um de seus melhores

representantes – de partir do simples para o complexo ou do complexo para o simples,

pois parte do simples e no simples permanece como se pudesse proferir: eu quero

simplesmente isso230. É a repetição de um mesmo ato, mais do que de uma mesma

palavra. Nesse sentido entende-se melhor o porquê da mensagem cristã ter sido oferecida

aos simples de coração. Contudo, como o cristianismo espalhou-se (como uma praga,

diria Nietzsche) pelos mais diversos lugares e, como esses lugares carregavam e carregam

consigo seus modos culturais, a simplicidade da mensagem teve que se adequar à

complexidade das culturas. É a tentativa de compreender melhor esse homem situado

num tempo e num espaço para poder oferecê-lo a simplicidade que tornou o cristianismo,

no decorrer da história ocidental, depositário da mais variegada tradição. Violência da

história.

Como nos assevera Auerbach: toda tradição clássica fazia-se muito viva em Santo

Agostinho, e seu uso da palavra figura é mais uma comprovação231 desse aspecto, já que ele

utilizou tal palavra em todos os sentidos até agora antevistos. Isso se dá não tanto por seu

suposto ecletismo (advindo das influências ciceronianas), mas porque espiritualmente

percebia a relevância da noção e da experiência da unidade, mantendo-se assim numa

posição dialogal. Em síntese, Agostinho se vê desafiado pela seguinte questão: tendo se

230 Já Santo Irineu utilizava a simplicidade da mensagem cristã para refutar os gnósticos de seu tempo. Cf.VON BALTHASAR. (1986), p.45. E assim poderá dizer: “Para todos os que vêem existe somente uma via,ascendente, alumbrada pela luz celeste. Para os que não vêem existe vias escuras de toda a classe, quecorrem em direção oposta”. IDEM, p.47.231 AUERBACH. (1997), p.33.

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deparado com o cristianismo e obtido resposta através deste para as suas demandas

morais, como também, ‘psicológicas’ – o que lhe possibilitou dar cabo às suas tormentas

individuais tão bem descritas por ele no livro das Confissões; por conseguinte, já sem a

ansiedade diante de sua morte, de sua passagem no tempo, se dá conta de que a força de

uma mensagem em indivíduos constrange a própria força da mensagem. Noutras

palavras: para que a mensagem desse provas de sua força ela deveria romper o individual,

ou seja, não é suficiente que ela se imponha a um indivíduo e mesmo a uma assembléia,

mas à cultura. Assim se entende um pouco melhor o porquê de Agostinho não ter

descansado com os modos e proposições de outras seitas já que, para ele, se elas

respondiam – cada uma a seu modo – às demandas do indivíduo, em contrapartida,

tinham uma postura passiva quanto ao enfrentamento do mundo – pois seus adeptos se

deslocavam seja para os jardins, seja ‘para os portos’, respectivamente, para fora ou para

o limite da cidade:

Cínicos, cirenáicos, epicuristas, e igualmente os primeiros estóicos, quaisquerque fossem suas íntimas diferenças, eram sem embargo, historicamente falando,produto de uma época em que, atentos à insinuação que num momento depessimismo chegara Platão a preferir, os homens, geralmente falando, haviamdesistido de toda esperança de salvação política. Dirigindo-se a um mundo dedesarraigados, predicavam aqueles um evangelho de salvação puramenteindividual ou de salvação “na sociedade”, considerada como distinta das formaspolíticas e independente delas232.

1.11.2. CONFIGURAÇÃO DO POLÍTICO

É assim que ao Agostinho que confessa todas as minúcias de sua transformação

pessoal, coteja-se o Agostinho político da Cidade de Deus que ao contrário do que se

poderia pensar é um cultor de Roma; pois se por um lado ele se propõe defender o

232 COCHRANE. (1992), p.40.

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cristianismo da condenação de ter sido um dos responsáveis pelo fenecimento da Cidade

Eterna, por outro lado, a duração milenar do Império fez com que quisesse entender

melhor o porquê dessa duração. Talvez, acreditava ele, o cristianismo dando conta dos

equívocos políticos-morais de Roma pudesse perdurar mais que Roma! Não é por acaso

que ele se identificava com os moralistas romanos que teriam sugerido bem antes dele

uma cabal purgação da sociedade através da supressão de gratia (no sentido de influência

política), tumor, voluptas (Salustio), luxus, ambitus, libido (Cícero)233; bem como um

fortalecimento dos ideais cívicos, particularmente, a autoridade (auctoritas) e a prudência

(consilium)234. Não é de estranhar a presença de todos esses ‘valores e contra-valores’ nos

textos de Agostinho. Compreende-se melhor inclusive a sua ‘impaciência’ com os

donatistas. Se com os maniqueístas e pelagianos a diferença mantinha-se no âmbito

doutrinário seja no viés teológico ou filosófico, psicológico ou moral – que suspendia até

questões ontológicas, com o donatismo a contenda toma contornos explicitamente

políticos, já que os donatistas lutavam dentre outras coisas pelo direito de estabelecer

uma igreja independente das incipientes diretrizes romanas. Para Agostinho, tantas vezes

consultor de concílios e de papas, tornou-se urgente resolver as contendas com os

donatistas, pois como ele personificava a unidade, não seria fácil para ele defendê-la e

defender-se se viesse a sofrer uma derrota em sua casa (a África). Seria insuportável para

ele perceber o rompimento, logo após o surgimento do ‘sonho’ da unidade. E foi por isso

que ele se lançou com tanta ira contra o movimento donatista, no entanto, utilizando

todos os recursos e habilidades que ele possuía. Não é fácil conciliar os anseios pessoais

com as urgências políticas e assim mais uma luta se instaurou entre o Agostinho do ‘ama

e faça o que queres’ e o Agostinho que no receio da divisão, força a união. Como cotejar233 IDEM, p.32.234 IBIDEM, p.27.

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a caridade que apela (a lei única do evangelho) e a autoridade (princípio executivo e pilar

da estrutura política romana) que por vezes tem que se manifestar a contrapelo?235 Quanto

a isso poderá dizer aos donatistas:

Se em verdade sofreis alguma odiosa calamidade por parte dos nossos que nãoobservam a moderação e exigências da caridade cristã, diria sem vacilar queesses não são dos nossos, senão que o serão se se emendarem, ou serão separadosao final se perseverarem em sua malícia. Quanto a nós, não rasgamos as redespor causa dos peixes ruins, nem abandonamos a casa grande por causa dos vasosconvertidos em injúria. Vós, diferentemente, se pela mesma regra afirmais quenão são vossos os que assim prejudicam à Católica, demonstre vossa boadisposição, corrija o erro, abrace a unidade do espírito no vínculo da paz. Porquese nem aqueles os contaminam, nem a nós estes, não nos reprovemosmutuamente os crimes alheios: como grão bom cresçamos na caridade,suportemos juntos a palha até o forcado236.

No Da Verdadeira Religião afirma, inclusive, que a autoridade deriva da unidade

já que na religião deve considerar-se mais e mais digna de fé a autoridade dos que invitam à

unidade237. No livro da Trindade podemos encontrar sua ode à unidade:

Que o leitor, onde somos igualmente confiantes, progrida comigo; onde estamosigualmente perplexos, pare para investigar comigo; onde se percebe em erro,venha para o meu lado; onde me percebe errando, chame-me para o seu lado. Demodo que possamos seguir o caminho, com amor, em direção a Ele, “cuja faceestamos sempre procurando”238.

Assim, tal passagem não enuncia tão somente as elaborações eclesiológicas de

Agostinho, mas evidencia a influência sofrida por ele da estrutura política romana que

tinha a autoridade como princípio239. O Império durou por ter um centro. A partir da

235 Quanto a esta tentative de conciliação pode ser vista o sermão 162ª que inicia com o tema da caridadepara finalizar com a contenda com os partidários de Donato. AGOSTINHO. (1983), pp.544-567.236 AGOSTINHO. (1994),p.127.237 AGOSTINHO. (1948), p.69.238 Cf. WILLS. (1999), p.12.239 Peter BROWN emite o seguinte parecer a respeito da relação entre a Igreja e Roma no início do séculoIV no momento que Agostinho começou a representar a ortodoxia católica e seu mais influente ideólogo:“Se a igreja católica pretendia permanecer unida, só conseguiria fazê-lo validando a sociedade romana. Os

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queda daquele é a Palavra que deveria perdurar. Para que a palavra ecoasse fazia-se

necessário que ela fosse concomitamente portadora de um centro, de um cetro e de um

certo (certeza).

Agostinho tentou conciliar aquilo que já tinha sido antevisto por Cícero, qual seja,

uma adequação entre as luzes da razão e a religião. Este, diferentemente de Lucrécio, não

concebia a religião como superstição. Para Cícero rechaçar toda e qualquer religiosidade

seria, em termos contemporâneos, pôr em risco um relevante componente da vida

simbólica. Cícero acreditava que a verdade é filha do tempo240 e, se a religião é portadora

de uma vestuta verdade241, ou dito de uma outra forma, se a verdade enunciada pela

religião foi há muito prenunciada, romper com essa verdade seria gerar um homem

rompido, logo, corrompido. Explicita-se assim a importância dada pelos moralistas

romanos à tradição.

Agostinho: um romano convertido ao cristianismo. É inserido nesta questão da

unidade que ele se deparará com um grandioso problema que diz respeito a teogonia: se

como Cícero ele percebe a relação direta entre religião, autoridade e tradição que tem

como conseqüência uma afirmação do passado, como convertido não renegará o passado,

mas deverá renegar o passado romano. Como efetivar esse movimento tão complexo:

afirmar a tradição renegando um tipo de tradição e, o que é mais difícil: tendo crescido,

tendo sido formado nesta tradição? Desvincular-se sabedor da força do vínculo? O

laços que ligavam os súditos aos imperadores, os escravos aos senhores, as mulheres aos maridos e os filhosaos pais não podiam ser ignorados, e muito menos abruptamente abandonados para se recuperar um estilode vida “angelical”. Deviam, ao contrário, ser postos a serviço da causa católica”. (1990), p.328.240 Contudo, diferentemente, para o cristianismo a verdade sendo Deus, não poderia, por conseqüência, serfilha do tempo. Cf. COCHRANE. (1992), p.468.241 DURKHEIM afirmou quanto à verdade subjacente a toda e qualquer religião: “é com efeito, umpostulado essencial da Sociologia que uma instituição humana não poderia assentar sobre o erro e amentira: sem o que ela não teria podido durar”. (2000), p.148. Bem como, quanto à relevância da dimensãoreligiosa para a sociologia: “Sabe-se há muito tempo que os primeiros sistemas de representação que ohomem fez para si do mundo e de si mesmo são de origem religiosa”. IDEM, p.154.

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Império Romano expandiu-se não com pouca astúcia: retirou de muitos povos a

autonomia política e econômica, contudo, evitava se intrometer – desde que não causasse

problemas mais sérios – na expressividade simbólica dos povos dominados que eram

vistos pelo centro do Império com certo exotismo. Neste sentido que Hannah Arendt

afirmou que os romanos eram possuidores de uma religião da cultura. Teriam percebido

que a dominação político-econômica era suportável, mas o domínio do simbólico poderia

causar reações insuportáveis por parte dos povos dominados. Neste sentido, a dominação

da Judéia serve como exemplo: qual o problema que poderia causar aos romanos um

grupo de pescadores crentes num homem-Deus, desde que eles pagassem os tributos à

Roma? Contudo, se eles se negassem a pagar a César o que é de César! Dentre os povos

dominados, Roma acolheu a influência das crenças helênicas. E é aí que reside o

problema supracitado: Agostinho afirmava a tradição, inebriava-se com a duração do

Império, sabia da relação existente entre tradição e duração; mas, já convertido, não

poderia dar créditos ao politeísmo romano. Com o processo de derrocada do Império

concluirá que Roma acertou quando afirmou a tradição, mas errou no fundamento da

mesma, pois que a crença em deuses não era suficiente para referendar a unidade

(inclusive política), justamente, por se tratar de deuses. A unidade não poderia advir do

múltiplo, mas sim do uno: um Deus único, Uno. Retirar a formulação teogônica

agostiniana de seu contexto político é fazer ode a um pensamento que de tão puro já não

participa da história.

1.11.3. TRANSFIGURAÇÃO: A RODA DA HISTÓRIA

Portanto, haveria alguma novidade na percepção agostiniana a respeito do

‘conceito’ de figura? Segundo Auerbach, a elaboração de Agostinho sobre o tema – que

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em verdade é lema – enfatiza de modo original a relação entre figura e preenchimento.

Havíamos visto que o evento Cristo era o preenchimento do que estava prefigurado no

Antigo Testamento. Contudo, se tal evento fosse o preenchimento definitivo ele,

concomitantemente, fundaria e confinaria a história; constituindo-se ápice seria também

óbito da história (sagrada). É bem verdade que o Ocidente instituiu um antes e um depois

de Cristo parecendo sinalizar que tal evento foi um marco de sua própria história.

Todavia, tal demarcação carrega consigo certa nebulosidade, pois, se por um lado tal

evento enunciou a relevância de Cristo, por outro lado, tendo-o tornado marco zero

sugeriu que a história iniciasse com Cristo. Temos assim que enquanto Deus se fez

história, Ele passou a fazer parte da mesma; contudo, o ‘endeusamento’ de Cristo

incorreu no risco de retirá-lo mais uma vez da história242. Nesta circunstância, elevar

Cristo é, em verdade, relevá-lo – como todo objeto que de tão querido é posto fora do

alcance de todos, inclusive, daquele que supostamente o quer bem. Agostinho era cônscio

desse movimento. Assim, o sagrado só manteria a sua força enquanto se expandisse,

portanto, enquanto se dessacralizasse ou secularizasse243 e não enquanto se delimitasse.

Parecia óbvio para Agostinho que delimitar é limitar o alcance: o fermento só se justifica

estando misturado à massa. É a partir do contraste que se torna possível experenciar o

encontraste! Neste sentido o cristão, em verdade, não está nem dentro nem fora: ele é de

242 Parafraseando ORTEGA Y GASSET quando este se ocupava em entender a devoção à comodidadeinerente a todo pragmatismo científico, diríamos quanto à questão que agora desenvolvemos: a exacerbaçãoda devoção à Cristo gera comodidade, destituindo da mensagem cristã algo fundamental, já que eladesinstala. (1961), p.53. 243 Quanto a este processo de secularização afirmou LÖWITH: ‘O fato de o saeculum cristão ter-se tornadosecular coloca a história moderna sob uma luz paradoxal: ela é cristã na sua origem e anticristã no seuresultado. Ambos os aspectos provêm do sucesso terreno do cristianismo e, ao mesmo tempo, da suaincapacidade de converter o mundo como tal para o cristianismo. Esta falência pode ser explicada de duasmaneiras: ou materialisticamente, relacionando-a com o caráter ‘ideológico’ da mensagem cristã ou, então,religiosamente, como confirmação daquela proposição fundamental do Novo Testamento de que o reino deCristo não é deste mundo’. (1968), p.291.

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fronteira244. Um pé lá e um pé cá, um pé atrás e um pé na frente; é assim propriamente

que ele caminha. Instituir um lugar sagrado para nele descansar é fugir do mundo, é

abandonar a fronteira. Assumir o mundo é reproduzi-lo, mas não necessariamente recriá-

lo. É no limiar do sagrado e do profano que ele se encontra: feito um porteiro245 ele está

ali nos lugares de passagem, chegando a encarar, enfim, toda a (sua) vida como um lugar

de passagem. Ampliando a imagem: como adequar o evento do Jesus histórico sem negar

o movimento da própria história? Diante de tal problema Agostinho enfatizará um outro

aspecto da relação existente entre figura e preenchimento. Como afirmou Auerbach:

[nele] o confronto entre os dois pólos, o da figura e o do preenchimento, é àsvezes substituído por um desenvolvimento em três estágios: a Lei ou a históriados judeus como uma figura profética do surgimento de Cristo; a encarnaçãocomo preenchimento desta figura e ao mesmo tempo como uma nova promessado fim do mundo e do Juízo Final; e, por último, a ocorrência futura destesacontecimentos como o preenchimento derradeiro246.

Nas palavras de Irineu esta formulação soaria como ‘Deus é perfectus enquanto

infectus, enquanto o homem necessita do profectus’247. Para os cristãos, os profetas do

Antigo Testamento anunciavam a Cristo, o Profeta (mesmo aqui o exercício da

simplificação: dos profetas ao Profeta). Contudo, esse Profeta se sacrificou pelo pecado

dos homens. E isso deve ser melhor compreendido, pois que anuncia algo muito

relevante: o que ama não teme a morte já que sendo o amar princípio, meio e fim não

pode sentir a morte como fim. Mas, o que fazer para demover aqueles que entendem que

a morte seja o fim, senão testemunhar que é possível amar até o fim que eles concebem?244 IDEM, p.21.245 Como afirma SIMMEL: “A porta, por assim dizer, põe uma articulação entre o espaço do homem e tudoo que está fora do mesmo, por isso, supera a separação entre o dentro e o fora. (...) É essencial para ohomem, no mais profundo, o fato de que ele mesmo se ponha uma fronteira, porém com liberdade, isto é, demodo que também possa superar novamente esta fronteira, situar-se além dela”. (2001), p.49.246 AUERBACH. (1997), p.36.247 cf. VON BALTHASAR. (1986), p.63.

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Espiritualmente, a certeza de que o amor pode mais que a morte; e, fisicamente, o morrer

não é por si mesmo motivo para não amar. O sacrifício longe está de ser um ato heróico,

por mais que possa guardar certa similaridade a olho nu com as provas heróicas. Não se

trata de provas a serem realizadas para depois brindar a consecução de tais façanhas em

faustos banquetes, rodeado de admiradores. Assim, não se trata de uma prova, mas de

um: provas e quererás sempre reprovar – provações e reprovações do e no amor. E tudo

será tornado santo, sacrificium. Isto resguarda um suposto paradoxo: se o amar é tão

santificador, por que o homem deve estar sempre sendo lembrado ou alertado para amar?

Essa falta, essa distração ou esse hábito de não amar é propriamente o pecado: depor o

amor disposto. Está tão entranhada no homem que pode ser qualificado de pecado

original. Vemos aqui uma relação de continuidade e descontinuidade com o sentimento

judaico, pois se por um lado o cristianismo não salta sobre o profetismo judaico, por

outro, esse profectus não é mais a espera de uma ocorrência, mas a disposição para

realizá-la248. Em verdade, vai um pouco além disso, pois Agostinho denuncia como pagã

a frase: “Deus ajuda aos que se ajudam”. E acrescenta: “O certo é que também ajuda aos

que não se ajudam, para que eles possam se ajudar”249. Assim, aquela lembrança supradita

constitui de uma só vez o fio do tempo: lembrar o que até agora não foi feito, lembrar o

que se quer agora e lembrar o que pode ser feito a partir de agora. A partir disso

Agostinho poderá dizer, aprofundando e refazendo tal concepção:

O que é a previsão, senão o conhecimento do futuro? O que é o futuro para Deus,que atravessa todos os tempos? Se, pois, o conhecimento de Deus contém estascoisas, para Ele elas não são futuras, mas presentes; por isso, já não pode sernomeada previsão, mas apenas conhecimento250.

248 HEIDEGGER. (2005), p.143.249 cf. COCHRANE. (1992), p.441.250 cf. AUERBACH. (1997), p.38.

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Por conseqüência, o que restará à cana pensante senão, enquanto vai se

alimentando do modo de conhecer do Criador, reconhecer como Ele a relevância do

presente como momento propício para a decisão? Se para Deus tudo é presente, é no

presente que é possível encontrá-lo. Contudo, como sinaliza Pascal, nada mais difícil para

o homem do que assumir o presente. Ao renegar o presente, põe em fuga conjuntamente a

presença e a decisão:

Não nos limitamos jamais ao tempo presente. Antecipamos o porvir, comodemasiadamente lento em vir, como para apressar o seu curso; ou recordamos opresente para detê-lo como demasiado rápido, tão imprudentes que erramos nostempos que não são nossos, e não pensamos no único que nos pertence; e tãovãos, que pensamos nos que já não são nada, e deixamos escapar sem reflexão aoúnico que subsiste. É que de ordinário o presente nos lastima. O ocultamos denossa vista, porque nos aflige, e se não é agradável, nos pesa o vê-lo escapar.Tratamos de sustê-lo para o porvir, e pensamos em dispor as coisas que não estãoem nosso poder, para um tempo que não estamos seguros de chegar.Examine cada qual seus pensamentos, e os encontrará completamente ocupadosno passado e no porvir. Apenas pensamos no presente; e se pensamos nele, não ésenão para pedir-lhe luz para dispor do porvir. O presente jamais é nosso fim: opassado e o presente são nossos meios, só o porvir é nosso fim. Assim, jamaisviveremos, senão esperamos viver; e dispondo-nos sempre a ser felizes, éinevitável que não o sejamos jamais251.

No entanto, repitamos, tal conhecimento não é um ato estritamente intelectual,

mas envolve toda a pessoa. Conhecer Deus não é tratá-Lo como um objeto a ser

dissecado para enfim descobrir a verdade que Ele pode guardar. Como Deus é amor e, por

conseqüência, o amor é a verdade, estar com a verdade é amar. Assim, conhecer a

verdade é reconhecer e reconhecer-se enquanto se ama, pois quem ama pode mais.

Quanto a isso, não seria equivocado afirmar com Vattimo que a verdade do cristianismo

parece ser a dissolução do conceito (metafísico) da verdade252. O evento Cristo é desde sempre

251 PASCAL. (2004), pp.55-56.252 VATTIMO. (2006), p.76.

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a morte de um deus que deixou de ser senhor de todas as coisas: aniquilou-se. E assim,

desfanzendo-se de todas as suas potestades, dissolvendo num único gesto todos os seus

nomes assumiu o anonimato do amor - já que não interessa quem fez o bem desde o que

bem seja feito. O próprio fato de Deus ter se encarnado transfere o lugar da contenda,

pois não se trata mais de uma luta entre Deus e o diabo como forças que se digladiam

restando ao homem a condição de espectador ou fantoche. Sendo Cristo um novo Adão253

– mas não Adão de novo – redefiniu a condição humana. Cristo é um novo Adão: Adão é

propriamente o homem. Cristo é o novo homem, é o homem que se torna novo porque se

renova através da caridade. Curioso notar que já nos primórdios o cristianismo tenha sido

concebido como ateu não só por alguns judeus como também pelo Império254, pois

concomitantemente, compreendia de um modo novo a relação do homem com Deus no

seio do judaísmo e certificava a irrelevância das divindades romanas:

Para Juliano, não obstante, a “superstição galiléia” não pode nem sequerpretender representar o mais qualificado do judaísmo. Porque, entre as duasvertentes existentes na tradição judaica, a “Lei” e os “Profetas”, escolheu asegunda, isto é, a daqueles que queriam inovar mais do que conservar o códigomosaico. Assim, segundo ele afirma, “os galileus, como sanguessugas, chuparamo pior sangue daquelas origens, e deixaram a mais pura. (...) Seguiramdeliberadamente a homens que haviam transgredido sua própria lei e quepagaram adequada pena por ter preferido viver desafiando a lei e proclamandoum novo e estranho evangelho”255.

Temos assim, no que diz respeito à história para o cristianismo, o seguinte:

primeiro, a afirmação da vontade em detrimento da fortuna. Boécio assim caracteriza a

roda:

253 PASCAL. (2004), p.106.254 LÖWITH. (1968), pp.241255 cf. COCHRANE. op.cit., p.263.

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- O que é, pois, oh homem, que te levou à tristeza e ao pranto? Creio que tenhasvisto algo estranho e inesperado. Porém te equivocas se crês que a fortuna tenhacambiado em relação a ti. A mudança é sua conduta normal, sua verdadeiranatureza. Em teu caso particular se mostrou constante em sua inconstância. Éexatamente o mesmo que quando te adulava e te seduzia com o sinal de umafelicidade enganosa. (...) Se, pois, te submeteste à direção da fortuna, terás queadequar tua conduta a esta senhora. Pretenderás, acaso, deter o rumo tãocambiante de sua roda? Não vês, oh o mais obtuso dos mortais, que se a fortunase detém, deixa de ser o que é? (...) A inconstância é minha essência. Este é meujogo incessante, enquanto faço girar veloz minha roda, contenta ver como sobe oque estava abaixo e baixa o que estava acima256.

Paradoxo da roda: a maior descoberta humana depois do fogo, geratriz de todos os

avanços tecnológicos. Enviesados são os benefícios que ela pode trazer quando o homem

a utiliza para compreender sua passagem no tempo. A mesma roda que facilita o

transporte dos corpos, quando entroniza no humano corpo decompõe referências: impede

o passo. A cabeça roda, perda do compasso. Falências dos sentidos, falência do sentido.

Que o homem se locomova sobre rodas, neste caso, a técnica foi mais pertinaz que o

espírito (des) afortunado. Diferentemente o cristianismo, enfatizando a vontade, sugere o

caminho: um caminho com mais ou menos obstáculos, se as pedras estão no meio do

caminho ou se é um caminho de pedras, não nega a condição de caminho. E o que

caminha busca para si uma referência para que não perca a direção. Por conseguinte, se

trata de um caminhar reto (um corte na roda seguido de um esforço para desfazer seja o

cavo seja a cova que aquele corte fez nascer), mas não seguro, pois que vinculado à reta

está o infinito: a partir de tal movimento o que se evidencia é a finitude humana. Onde

estaria o elo entre o finito e o infinito? Já ouvimos esta resposta. O homem é um ponto da

reta, mas se dela salta gera com esse salto dois infinitos. Portanto, não se trata de estar

seguro quando se dá o salto, mas de corretamente deparar-se com a sua pequenez e

grandeza:

256 BOÉCIO. (2005), pp.58-59 e 61.

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É perigoso mostrar em demasia ao homem, quão semelhante é aos animais semmostrar-lhe sua grandeza. É também perigoso fazer-lhe ver em demasia suagrandeza sem sua baixeza. É mais perigoso ainda deixar que ele ignore um eoutro.É preciso que o homem não creia que é igual aos animais nem aos anjos, e quenão ignore nem um nem outro, senão que saiba um e outro.(...) Todas estas contrariedades, que pareciam ser o que mais me distanciava doconhecimento da religião, são as que me conduziram mais rápido à verdadeira257.

Uma segunda característica fundamental da história para o cristianismo é também

um esclarecimento, pois por tudo que foi visto até agora, particularmente, no que diz

respeito ao tempo e à encarnação de Deus, o cristianismo não concebe a história como

realização temporal de valores supratemporais, pois mesmo que o Criador fosse

concebido estritamente como fora do tempo (o que seria para o cristão negar

implicitamente o equilíbrio da relação entre as três pessoas da santíssima trindade, já que

enfatizaria a primeira pessoa), a criatura – que crê no poder do Criador, pois só ela pode

se sentir assim, já que o que não crê na criação se autodenomina ou se sente de outras

maneiras seja como homem, como mortal, como força, como ser racional, funcional,

como corpo, como percepção e poderíamos multiplicar as autodenominações - está no

tempo. O além do tempo é um mistério também para o que crê e é justamente por se

constituir num mistério que ele crê: é a experiência mais privativa da fé onde através da

oração, dos rogos e dos clamores o crente põe-se a ouvir a palavra divina para aprender

paulatinamente a não temer a morte em todas as suas possíveis manifestações. Todas as

suas incertezas são postas e dispostas, na certeza de que estão sendo ouvidas – pois

quando a incerteza recai sobre a presença do auditor configura-se a mais terrível crise de

fé. Portanto, como não duvida de que esteja no tempo, bem como, não duvida – apesar de

257 PASCAL. (2004), pp.100-101.

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não poder compreender – do além do tempo, põe-se a colaborar com o além no tempo. A

encarnação de Deus quitou do cristão crer estritamente na supratemporalidade, bem

como, por igual motivo, por se tratar de um Deus encarnado, crer na supertemporalidade:

Nossos sentidos não se dão conta de nada extremo: demasiado ruído, ensurdece;demasiada luz, ofusca; demasiada distância e demasiada proximidade, impedema visão; demasiada demora e demasiada brevidade no discurso, o obscurecem;demasiada verdade, nos pasma; os primeiros princípios têm para nós demasiadaevidência, demasiado prazer incômodo; demasiadas consonâncias sãodesagradáveis em música; e demasiados benefícios irritam, queremos ter comque sobrepagar a dívida (...) Não sentimos nem o calor extremo nem o frioextremo. As qualidades excessivas são inimigas e não sensíveis; não as sentimosjá, as padecemos. Demasiada juventude e demasiada velhice privam de espírito,as coisas extremas são para nós como se não fossem, e nós tampouco somos arespeito delas: nos escapam, ou nós a elas258.

Por incrível que possa parecer, o cristianismo antecipou-se em pôr fim a era dos

extremos. Contudo, o que nos resta entender é o seguinte: é possível afirmar que a cultura

ocidental se tornou de fato cristã? Se por um lado, o cristianismo contribuiu para muitas

transformações seja no aspecto econômico segundo Weber, seja nas ciências do espírito

segundo Dilthey, seja na concepção de história segundo Löwith, Cochrane, Marc Bloch;

portanto, em tão variados aspectos da cultura ocidental, por outro, o processo de

secularização que ele proporcionou, a capacidade que teve de se fundir com outras

culturas seja através da sugestão ou da imposição de sua mensagem nos impediria de

buscar uma pureza qualquer da mensagem, justamente, em função dessa mistura. Temos

assim, duas possibilidades se levarmos em conta que o fundamental da mensagem é a

caridade: ou o ocidente não se abriu para a caridade suficientemente, ou ele vem

confirmando a impossibilidade da mesma, entendendo-a como a mais persistente das

utopias. Ao se propagar, a mensagem se diluiu; e, assim, paradoxalmente, no cristianismo

258 PASCAL. (2004), p.31.

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adveio o teísmo e o ateísmo, a invenção científica e a criação estética, o desenvolvimento

da nação e da prática do progresso, a valorização das relações comunitárias, bem como, a

centralização do poder através do direito divino; utilizado igualmente por aristocratas que

justificam sua condição através da crença nos eleitos, como por revolucionários que

acreditam poder fundar uma nova ordem, certos de que Jesus lutou contra o poder

instituído. Ora ideologia, ora utopia. Ora utilizado para justificar o status quo, ora

utilizado para o quid pro quo. No ocidente ainda se nasce cristão, sem nunca ter

compreendido a mensagem (e quanto dista isto da afirmação de são Jerônimo de que ‘os

cristãos não nascem, se fazem’259. Na mesma linha Erasmo escreveu em seus Adágios: “Reis

e tolos já nascem feitos, não se fazem”260). Ninguém é tido como inventor antes de fazer um

invento, ninguém é chamado de artista na ausência da obra etc; contudo, é possível ser

cristão no ocidente sem nunca ter sido instrumento da caridade. Portanto, se a mensagem

se diluiu enquanto se propagou é necessário que compreendamos pelo menos uma da

formas de sua propagação.

O êxito histórico do cristianismo, sua força, resistência e duração históricas, tudoisto, afortunadamente, não prova nada a respeito da grandeza de seu fundador e,no fundo, poderia ser invocado contra ele. Porém, entre ele e esse fato histórico,existe um estrato muito terrestre e obscuro de paixão, erro, ânsia de poder ehonras, a força ativa do imperium romanum, um estrato do qual o cristianismoadquiriu seu gosto e seu resíduo terrenos que tornou possível sua continuidade nomundo e lhe deu, por assim dizer, sua resistência. A grandeza não pode dependerdo êxito, e Demóstenes tem grandeza ainda que não tenha tido êxito. Osseguidores mais puros e autênticos do cristianismo tenderam sempre pôr emdúvida e obstaculizar mais que fomentar seu êxito mundano, sua chamada “forçahistórica”; pois eles sabiam colocar-se fora do “mundo” e não se ocupavam do“processo da idéia cristã”. É a razão pela qual a história, em sua maior parte, osdesconhece e não os menciona. Para expressar-me do ponto de vista cristão, diriaque o diabo governa o mundo e é o senhor do êxito e do progresso; em todos ospoderes históricos, ele é o verdadeiro poder e, no essencial, sempre será assim –

259 JERÔNIMO. (1995), p.198.260 Cf. COLLISON. op.cit., p.54.

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por mais ingrato que isto possa soar nos ouvidos de uma época habituada adivinizar o êxito e o poder histórico261.

Não nos ocuparemos aqui das diversas nuances deste problema, mas tentaremos

elucidar uma delas a partir da Doutrina Cristã de Agostinho. E ela diz respeito ao lugar

da retórica na propagação da mensagem.

Segundo assevera Agostinho o melhor é que sabedoria e eloqüência caminhem

juntas, mas se isso não for possível, a sabedoria sem dúvida é a mais relevante, já que o

entendimento da Sagrada Escritura é mais louvável do que retê-la de memória262.

É índole própria dos bons engenhos amar a verdade nas palavras, mas não aspalavras por si mesmas. De que serve uma chave de ouro se com ela não se podeabrir o que queremos? E que importa que seja de madeira se com ela podemos,quando precisamente não buscamos outra coisa senão abrir o que está fechado?Porém como existe não pouca semelhança entre os que comem e os queaprendem, daí que para evitar o fastio dos demais não existe outro remédio quecondimentar os alimentos sem os quais não se pode viver263.[Contudo] por causa daqueles que fatigados já não agrada a verdade se não lhesdisser de tal modo que ainda agrade o discurso do que fala, se deu na eloqüêncianão pouco lugar ao deleite264.Contender em palavras é não procurar que a verdade vença ao erro, senão que tualinguagem se prefira ao do outro265.

Como vimos Agostinho acredita na verdade. Verdade que ele inicialmente buscou,

para enfim encontrar-se com ela. Num primeiro momento Agostinho quer que outro

afirme a sua verdade ou que ele esteja firme naquilo que ele acredita ser verdadeiro. Que

cada um esteja com a verdade é o que possibilita descobrir o erro. Ou seja, não é por se

ter muitas verdades que a verdade é posta em xeque, ao contrário, a multiplicação de

verdades faz concluir que muitos, apesar da diferença de percepção, acreditam nela.261 NIETSCHE. (2000), p.142.262 AGOSTINHO. (1957), p.271 e 345.263 IDEM, p.295.264 IBIDEM, p.297.265 IBIDEM, p.345.

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Agostinho quer superar de todos os modos o relativismo, já que crê no absoluto. Só entre

absolutos é que pode haver diálogo, pois só quem crê em algo absoluto poderá perceber

os seus equívocos. O relativista que supostamente respeita todas as facções, em verdade

as desrespeita, pois as iguala; não as ouve, já que entre elas não residirá nenhuma

diferença. Como o que nos move o conhecimento é o diferente e não o igual, o relativista

não quer conhecer o outro, mas a si mesmo, desvinculado dos outros (que ele nem

reconhece como tal). Assim, o relativista, paradoxalmente, se absolutiza. Atento a isso,

Agostinho, afirmará o absoluto e se porá a discutir inclusive com aqueles que se

absolutizam. Mais do que um movimento que vai dos olhos ao coração, como se

houvesse uma disjunção qualquer entre o estético e o ético, o que ele sempre almejou foi

olhar com o coração, inclusive, o seu coração: na noite dos sentidos, no encontro com o

sentido.

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2. FREI LUIS DE LEÓN: TRADUTOR HUMANISTA

2.1. DA TRADUÇÃO

Max Weber, no seu estudo intitulado A Ética Protestante e o Espírito do

Capitalismo, objetivou compreender a contribuição advinda da dimensão religiosa, ou

para ser mais exato, das práticas religiosas, nas transformações sócio-econômicas. Para

ele, não é evidente a relação conseqüente entre infra-estrutura e superestrutura como

tinham afirmado os autores afeitos ou influenciados pelo materialismo histórico. Por sua

vez, Weber não formulou a tese de que tão somente as práticas religiosas tenham definido

as transformações sócio-econômicas no tempo da Reforma Protestante266. Partindo de

uma percepção atualizada – a de que nos países onde o protestantismo triunfou, o

266 “Comecemos por dizer que de modo nenhum se trata, nestas análises, de procurar avaliar o conteúdo dasidéias da Reforma seja em que sentido for, seja ele político-social ou religioso. No nosso estudo,debruçamo-nos sobre aspectos de Reforma que, provavelmente, aparecerão como acessórios ou mesmoexteriores à consciência verdadeiramente religiosa. Com efeito, apenas procuramos precisar a parte quecabe aos fatores religiosos de entre a complexidade de fatores históricos que determinam odesenvolvimento da nossa cultura moderna, especificamente orientada para os assuntos temporais. Destemodo, pomos simplesmente a questão de saber quais, de entre certos conteúdos característicos desta cultura,os que se deverão atribuir à influência da Reforma como causa histórica. Para isso teremos de nos libertarda concepção segundo a qual a Reforma pode ser deduzida, enquanto ‘historicamente necessária’, dastransformações econômicas...” WEBER. (1996), p.63.

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capitalismo também se afirmou mais rapidamente – buscou as raízes desse ‘fenômeno’.

Se estiver correta a afirmação de que o capitalismo inicia o seu processo de hegemonia

com a ocorrência da Revolução Industrial no século XVII – mesmo que ‘revoluções

silenciosas’ estivessem acontecendo nos modos de produção anteriormente – seria

necessário compreender qual foi a influência da Reforma Protestante, bem como do

Renascimento, para que o espírito capitalista se afirmasse. Com isso, como assinala o

próprio Weber, ele não buscava refutar a concepção materialista da história, propondo

uma interpretação espiritualista; mas acreditava ser possível a realização de ambas para se

compreender de um modo menos sectário a História:

“Apesar de o homem moderno, mesmo com a melhor das boas vontades, nãopoder geralmente imaginar a influência que os conteúdos da consciênciareligiosa exerceram sobre a conduta de vida, a cultura e o caráter dos povos, nãoé nossa intenção apresentar a par de uma explicação causal, unilateral e‘materialista’ da cultura e da História uma outra espiritualista e afinal tãounilateral como a primeira. Ambas são possíveis, mas com ambas se presta ummau serviço à verdade histórica se forem consideradas como ponto de chegada enão ponto de partida da investigação”267.

Max Weber deixa claro em sua análise que o seu interesse fundamental, no que

diz respeito à religião, é o aspecto sociológico da mesma. Assim, tenta se resguardar de

qualquer crítica posterior que surgisse a partir de um viés teológico. Contudo, ele tem

consciência de que num momento qualquer de sua pesquisa terá que explicitar – mesmo

que de modo introdutório – de que maneira a doutrina de uma dada igreja ou seita268

influenciou e/ou modificou a postura do crente, diante e na sociedade e, para isso, deverá267 IDEM, p.140.268 “Uma ‘igreja’ é, pois, uma instituição constituída com vista à obtenção da graça, que administra os bensreligiosos de salvação, como se fosse um fundação de administração e doação. A pertença à igreja é, emprincípio, obrigatória, não significando a filiação nela (do acordo com a doutrina) qualquer prova da virtudedos seus membros, enquanto uma ‘seita’, pelo contrário, é uma associação voluntária, exclusiva, cujosmembros são indivíduos religiosa e moralmente qualificados para a ela aderirem. É voluntariamente quenela se entra, apesar da admissão depender da vontade dos seus membros através da demonstração dequalidades religiosas”. IBIDEM, p.199.

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recorrer àquela doutrina em si. Em resumo: a priori não interessa a Max Weber a doutrina

por si mesma, mas as conseqüências práticas da mesma. No entanto, posteriormente,

utilizará as doutrinas de cada igreja ou seita para fundamentar e justificar as diferentes

posturas em relação à sociedade e, nesse sentido, passará em revista às doutrinas

religiosas que mais lhe interessava: o calvinismo, o pietismo, o metodismo e as seitas

nascidas do movimento batista269.

Mas, qual o motivo de nos interessarmos aqui por essa análise de Max Weber?

Em que ela contribui para um melhor entendimento da obra de frei Luis de León, no que

diz respeito ao amor?

O motivo é que com o auxílio de Weber talvez possamos contextualizar

historicamente a obra de frei Luis, pois que aquele autor nos oferece pistas interessantes:

a primeira delas diz respeito à tradução dos textos sacros. Quanto a esta, é clara a

influência de são Jerônimo em frei Luis, pois que tanto um quanto outro são hebraístas,

no entanto, discrepam em relação ao método utilizado. Enquanto são Jerônimo recusa-se

a ‘contar palavras’270, ou seja, em sua tradução a palavra escolhida é desde já, por si

mesma, uma interpretação; em frei Luis, no processo de tradução ele elenca palavras

possíveis, de modo que o leitor escolha aquela que melhor lhe aprouve271. No entanto,

tanto um quanto outro querem ou buscam ser fiéis ao texto hebraico. Não é essa a postura

utilizada por Lutero quando se põe a traduzir os textos bíblicos, segundo nos assevera

Max Weber: em Lutero ‘o espírito do tradutor’ sobrepõe-se ao ‘espírito do original’

bíblico. É necessário dizer que estamos generalizando uma afirmação de Weber, pois que

este estava interessado estritamente no modo como Lutero criou uma nova interpretação

269 IBIDEM, p.88.270 JERÓNIMO. (1962), p.485.271 LUIS DE LEÓN. (1951), p.65.

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do conceito de vocação272. Este, anteriormente, estava vinculado a um chamamento de

Deus; no entanto, a partir de Lutero, ele assume uma perspectiva profana que se

disseminou rapidamente através do protestantismo, a ponto de ser utilizado

quotidianamente como sinônimo de profissão:

“Naquele conceito se expressa o dogma central de todas as seitas protestantes(...) que não reconhece qualquer superação da moral temporal através da ascesemonástica, mas exclusivamente o cumprimento no mundo dos deveres quedecorrem do lugar do indivíduo na vida social e que se tornam assim a sua‘vocação”273.

Estando correta a disjunção weberiana, poderíamos provisoriamente afirmar que

frei Luis de León é contra-reformista inclusive no seu modo de realizar a tradução. Em

tese, frei Luis quer resguardar o sentido original do texto hebraico. Mas, para

entendermos o que isso de fato representa devemos transcender a esfera pessoal de cada

um daqueles tradutores e explicitar o pano de fundo em que se move aquela diferença –

entre a perspectiva de frei Luis e a de Lutero – que é justamente a maneira como cada um

interpretou a História que naquele contexto ainda se confundia com a história da Igreja.

No intuito de precisar melhor o que vem a ser essa diferença entre ‘o espírito do

tradutor’ e o ‘espírito do original’ – nesse momento deslocando-os das análises

weberianas – nos deparamos com a seguinte situação: não é fácil separar essas duas

perspectivas. Não se pode negar que as traduções de frei Luis de León têm muito do

‘espírito do tradutor’ e que, de igual maneira, as traduções luteranas objetivavam

fortalecer o ‘espírito original’ da Palavra. Nesse sentido, acreditamos que seria mais

condizente, já que tornaria mais claro, que esse ‘espírito original’ fosse compreendido

como ‘espírito da tradição’. Com o par tradição-tradução talvez sejamos mais fiéis272 WEBER. Op.cit., p.55.273 IDEM, p.56.

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àquelas perspectivas, pois que tradição vincula a relação do passado com o presente (o

que foi dito e que chegou até nós) e a tradução vincula o presente ao futuro (o que será

dito ou reeditado para que chegue até aos pósteros). Desse modo, parece claro que é a

partir do presente que esses caminhos têm seu início. O que nos faz lembrar a máxima de

santo Agostinho (caro aos dois autores que nos ocupam nesse momento) de que não

existe passado ou futuro, mas sim, um passado presente e um futuro presente274.

Poderíamos, nesse momento, situar frei Luis na tradição e, do modo que agora

compreendemos esse conceito, pôr Lutero adscrito no grupo dos ‘tradutores’. No entanto,

não parece simples fazer tal assertiva, pois tanto um quanto outro ao recorrer ao passado

vislumbravam possibilidades futuras (diferentes) ao cristianismo. Devemos levar em

conta, portanto, algo extremamente relevante, qual seja, o modo como cada um tirou

proveito do que adveio do passado e de que modo esse passado surgia para cada um

deles. Não é fora de propósito lembrar uma passagem de Koyré que assim se posiciona

em relação às influências:

“Não podemos esquecer, ademais, de que a ‘influência’ não é uma relaçãosimples; pelo contrário, é bilateral e muito complexa. Não somos influenciadospor tudo aquilo que lemos ou aprendemos. Em certo sentido, talvez o maisprofundo, somos nós mesmos que determinamos as influências a que nossubmetemos; nossos ancestrais intelectuais não são de modo algum dados a nós;nós é que os escolhemos, livremente. Pelo menos, em grande parte”275.

Nesse sentido, nos parece que a diferença entre aqueles dois autores, no que diz respeito

ao traduzir, situa-se justamente na forma como cada um deles se relacionou com o

Humanismo. Frei Luis de León – acolhendo, dentre outros, a influência de Erasmo de

Roterdã – acreditava ser possível revitalizar a mensagem cristã com o auxílio da ‘bela

274 AGOSTINHO. (1990), p.284.275 KOYRÉ. (2001), p.17.

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literatura profana’. Portanto, teríamos em frei Luis de León a tentativa de reconstruir ou

reconstituir o passado a partir do próprio passado, o que faz supor que, para ele, o

passado ainda pudesse ser recuperado ou reexplorado. Noutras palavras: o passado

negado pela cristandade – o de toda a literatura tida como profana – poderia ser utilizado,

naquele momento, pela própria cristandade para se revigorar. Não é essa a atitude de

Lutero frente ao Humanismo, pois que ele não queria recorrer a um passado ‘paralelo’ ao

da cristandade para revigorá-la.

Em épocas passadas tanto o Renascimento como a Reforma foram considerados,regra geral, o alvorecer de uma nova época. (...) A liberdade e a verdadepareciam os atributos naturais do Renascimento e da Reforma, em oposição aoerro e engano da teologia e da Igreja medievais. Porém um estudo mais detidodos detalhes desembocou inevitavelmente na conclusão de que o conteúdo e opropósito do Renascimento e da Reforma eram paralelos, sim, porém durantemuito pouco tempo. (...) A rígida piedade dos protestantes, seu puritanismo e seuvigoroso impulso para a ação, oposto ao desejo de tranqüilidade e à indiferençaamiúde frívola dos humanistas, converteu o Renascimento e a Reforma emexpressões opostas no lugar de formas relacionadas num mesmo espírito276.

2.2. DA TRADIÇÃO

Lutero realiza um salto retroativo sobre a tradição. Desse modo, ele quer a voz de Deus –

diretamente. Assim ele rompe com a tradição e, não é demais lembrar que para tradição

(católica), Lutero se corrompe. Lutero não quer intermediários na relação do homem com

Deus e, em certo sentido, também não quer intermediários para compreender a Palavra de

Deus. Ele rompe com tudo aquilo que já tinha sido dito a respeito de Deus após o

cristianismo primitivo. A Sagrada Escritura e não mais os manuais de teologia. Assim

Lutero refuta o passado sem negar a origem. Compreende-se assim a rapidez com que se

276 HUIZINGA. (1960), p.237.

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disseminou a sua mensagem, já que descarregava o homem do século XVI de seu passado

histórico. Portanto, neste sentido Lutero é original. O paradoxal é que Lutero na ânsia de

saltar por sobre a história, realizou-a, mudando o curso da mesma.

Temos então que Luis de León e Lutero têm o ‘espírito do tradutor’, no entanto, o

primeiro quer permanecer na tradição (humanista) e que se auxilia inclusive, para

revigorá-la, em ditos de outras culturas; que se encanta com o passado ‘esquecido’ ou

recalcado que foi sendo aos poucos redescoberto, reelaborado e recriado. Diferentemente,

Lutero é um tradutor que salta retroativamente sobre a tradição277 e que numa atitude de

coragem ou loucura quer afirmar a Boa Nova em sua ‘pureza’, na certeza de que o vigor

ainda reside na própria Mensagem. E como nos atesta Ortega y Gasset, nos períodos de

crise - como foi o século XVI - são sempre bem vindas as atitudes simplificadoras278, pois

que elas caminham de par em par com a certeza – e esta, por sua vez, sempre foi prevista

como a genuína mãe do sentido279. Lutero objetivava – sem levar em conta até aqui as

questões político-eclesiais que também impulsionaram a Reforma – simplificar a

mensagem cristã, pois que acreditava, com todo o coração, que ela nasceu simples entre

os simples. Diferentemente, frei Luis de León tinha consciência de que a mensagem cristã

sofreu muitas modulações, pois a partir de são Paulo penetrou nas mais diversas culturas

277 ‘O ponto de vista de Lutero é mais ou menos o seguinte: a Sagrada Escritura é sui ipsius interpres. Nãose tem necessidade da tradição para lograr uma compreensão adequada dela, nem tampouco de uma técnicainterpretativa ao estilo da antiga doutrina do quádruplo sentido da Escritura, já que sua literalidade possuium sentido unívoco, que deve ser intermediado por ela própria, o sensus literalis’. GADAMER. (1997),pp.274-275.278 ORTEGA Y GASSET. (1989), p.114.279 Quanto a esta questão da certeza, interessante a comparação realizada por Stefan ZWEIG entre Lutero eErasmo: ‘[Este] o apóstolo da tolerância não nascera para lutador, talvez porque, em última análise, nãonutria nenhuma convicção firme que lhe importasse defender. As naturezas objetivas possuem poucacerteza; duvidam facilmente do próprio parecer e estão prontas a acolher os argumentos contrários.Conceder a palavra ao adversário já significa, porém, ceder-lhe terreno. Só combate bem o frenético, o queenterra o gorro da obstinação até às orelhas, para não ouvir nada, e se envolve na sua idéia fixa como numacouraça. Para Martin Lutero, o monge extático, todo contraditor era um enviado do inferno, um inimigo deCristo que lhe cumpria exterminar, enquanto Erasmo, o humanitário, sabia compadecer meigamente até osexcessos mais ferozes do adversário’. (1936), p.113.

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para propagar-se280. É isso que um autor como frei Luis de León não queria ou não podia

negar, pois que para ele seria negar por completo a história (da Igreja), e os movimentos

contraditórios da mesma. Na raiz do problema – que acompanha o cristianismo desde os

seus primórdios - o que estava em jogo era, inclusive, a possibilidade ou não da religião

cristã manifestar-se de modo puro, ou seja, sem as contra-influências da cultura pagã.

Assim se compreende um pouco melhor o porquê de alguns protestantes denominarem-

se, ainda no século XVI, de puritanos – já que esse conceito não se restringia ao aspecto

moral. No entanto, quando passamos em revista a história dos influxos e contra-influxos

culturais ocorridos no Ocidente, aquele puritanismo –como qualquer outro – é de todo

impossível:

“Quando tratamos de responder à pergunta de por quê o cristianismo, que na suaorigem é um produto da vida religiosa do judaísmo tardio, sofreu estatransformação tão completa, ou por que a antiga cultura grega adotou ao chegar aseu fim esta fé oriental que parece estar tão distante da forma clássica dopensamento grego, nos deparamos com grandes dificuldades, tanto se somoshumanistas clássicos como se somos cristãos. Os humanistas modernos tendem aver a herança grega como uma cultura auto-suficiente e essencialmenteantropocêntrica, tornando-lhes difícil entender que, ao surgir, já não o era (se éque alguma vez o foi) na época em que o cristianismo ofereceu seu próprioconceito de homem e de vida humana às gerações posteriores da civilização‘grega’. (...) Por outro lado, os cristãos de nossos dias, que são donos de umateologia definida – seja a de Santo Tomás ou a de Martin Lutero - dificilmentepodem compreender uma forma de cristianismo que não destaca ainda,teologicamente, as idéias que lhes parecem essenciais. Se queremos chegar a umacompreensão verdadeira deste fenômeno histórico, não devemos esperar queencontraremos a confirmação de nosso puritanismo unilateral moderno, sejahumanista ou teológico, no pensamento greco-cristão primitivo. Comumente, oque encontramos na história é precisamente o oposto a essa coerência lógica bemdefinida que exigimos a nossas teorias. Em realidade, os ideais culturais gregos ea fé cristã se mesclaram, por mais ansiosos que estejamos de conservarimaculados uns e outra. (...) O contato criador do cristianismo com as idéias

280 ‘Se a história do cristianismo começa com o Jesus histórico, a história da teologia cristã começa com osescritos do Novo Testamento. O hiato cronológico entre ambos está na origem de diversos problemas, que aciência das origens do cristianismo estuda com grande aparato histórico, filológico e hermenêutico. Entreeles, avulta o seguinte: por que o cristianismo, em vez de desenvolver-se como religião popular, tornou-se,em período de tempo surpreendentemente breve, uma religião culta, apresentando uma teologia altamentedesenvolvida’. LIMAVAZ. (1986), p.72.

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constantes da tradição grega deve ter dado ao pensamento cristão a segurança emsua própria universalidade (catolicidade)”281.

Nesse aspecto estrito, Lutero não podia repetir a atitude, por exemplo, de santo Tomás de

Aquino, que tentou adequar – assimilação e recriação282 - no e ao contexto do século

XIII as novidades advindas do mundo árabe (novidades essas que só chegaram até ele em

função do movimento bélico-religioso que foram as Cruzadas283), onde a Suma contra os

Gentios surgia como obra de fronteira, confronto e polêmica já que objetivava auxiliar os

pregadores (dominicanos) espanhóis na conversão e na disputa com árabes e judeus284; e,

por sua vez a Suma Teológica surgia como obra fundamental que só pôde ser realizada

em função da contra-influência advinda dos árabes e judeus que traziam com eles muitas

elaborações e originais da obra de Aristóteles285. Lutero não queria mais adequar a

mensagem, pois que para ele essa adequação era, em verdade, dissolução da mensagem.

Em certo sentido, a paixão de Lutero pela renovação da Igreja, sua ânsia em depurar-se de

sua própria culpa286, como também sua intuição de que a culpa advinha do passado, teve

como conseqüência a negação do passado histórico. Na pressuposição de que a História

subverteu a Mensagem, negou a História. O que Lutero realizou com a religião – uma

espécie de nostalgia em relação à terra prometida, alguns literatos alemães, três séculos

depois dele, fizeram com a arte (inclusive a literatura), num movimento nostálgico em

relação à Hélade. A beleza, como também o limite, da nostalgia é, justamente, constituir-

se num arroubo. Lutero parecia não querer ou não poder perceber que a mensagem cristã

281 JAEGER. (1965), pp.61-62.282 LIMA VAZ. op.cit., p.32.283 ORTEGA Y GASSET. Op.cit., p.55.284 GRABMANN. (1959), p.14.285 LIMA VAZ. op.cit, pp. 26-28.286 FEBVRE. (1972), p.47.

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que chegou até ele já vinha, desde o início287, ‘contaminada’ pelas mais diversas

influências culturais e, que desse modo, a própria depuração só se tornava possível se

ousasse tentar compreender o modo como aquelas influências ocorreram, como também

os conflitos que elas geraram e geram na própria Mensagem. Desse modo, vemos como

Lutero se distanciou do que se convencionou denominar humanismo cristão, já que:

Na rígida delimitação operada pela carne do Lógos feito homem residetambém a explosiva transposição de um humanismo cristão. Nesta visãocristã do homem podemos (não, antes devemos!) ousar recolher com umamplo abraço tudo aquilo que de verdadeiro e de sublime foi pensado erealizado no longo percurso da história e nas profundidades da alma. (...)O humanismo cristão tem uma única possibilidade de propor-se aomundo: ele ama. Mas, posto que só se pode amar a pessoa, ele ama ohumano, em todas as suas formas e dimensões... 288

não restando dúvida, no entanto, de que também ele enunciou um outro modo de

manifestação do cristianismo.

O catolicismo quer levar adiante todo o peso de sua história, inclusive, tendo que

conviver com todas as atrocidades que realizou. Faz parte de sua história a origem da

mensagem, como também os meios e os modos pelos quais ela se propagou. O

protestantismo quis romper com o passado, na pressuposição ou na certeza, de que era

possível saltar sobre a cristandade para deparar-se, tão somente, com a origem. Não é

mera coincidência que o protestantismo tenha se tornado uma religião de rupturas já no

limiar de sua própria origem289.

287 ‘Resguardemo-nos desse tratamento repartido que tantos historiadores protestantes reservaram à Bíblia eaos Padres [à Patrística], não encontrando nestes mais que infiltrações e contaminações “helenísticas”,enquanto que em são Paulo ou em são João não sabiam ver mais que “revelação” ou ao menos “religião”pura. Essa crítica severa e essa ingenuidade lhes cegava igualmente. Platônicas ou estóicas, e porindispensáveis que tenham sido para obra deles, eram muito menos elementos de filosofia que guiavam aespeculação dos Padres, que uma percepção aguda das exigências cristãs’. LUBAC. (1988), pp.31-32.288 RAHNER. (1980), p.05.289 É digno de nota as conseqüências psicológicas dessa ‘postura’ protestante: C. G. JUNG afirma que emseus trabalhos terapêuticos o número de protestantes que o procuravam era num número muito maior que oscatólicos. Dentre os mais diversos motivos para tal ocorrência estava justamente a característica protestante

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2.3. TRADUTTORE-TRADITORE

Vimos, portanto, que o exercício da tradução – do que vai ser levado adiante –

tanto para frei Luis (influenciado por Erasmo) como para Lutero, era fruto desde-já da

posição que cada um assumia diante da História (eclesial), estando assim além da

polêmica ‘traduttore-traditore’290 tão relevante para todos aqueles que estudam, por

exemplo, o desenvolvimento da ciência. A estrutura objetiva e progressiva do espírito

científico possibilita o reconhecimento de anacronismos e o quanto eles podem retardar o

próprio desenvolvimento da ciência291. No entanto, não é assim que ocorre com aquilo

que se denominou convencionalmente de ‘ciências humanas’, particularmente daquelas

que se ocupem da dimensão religiosa292. Em se tratando de textos bíblicos o máximo que

se apresenta é a hegemonia de uma interpretação em detrimento de outras possíveis, onde

a própria interpretação hegemônica é, em si mesma, uma traição. Inseridos na polêmica

‘traduttore-traditore’ só nos seria possível esclarecer o porquê e o como cada um

daqueles tradutores contraiu o escrito considerado sacro. Por outro lado, essa traição não

ocorre, já que de um modo ou de outro, no cristianismo a palavra sacra necessita ser

interpretada. Assim, como trair a palavra é uma pré-condição, esquece-se inclusive que

ela surge sempre como traição. Diferentemente, na ciência, é o entendimento que se

impõe como condição, sendo possível afirmar que alguém estava em erro por não ter

de rompimento com o passado que conduzia o crente para um estado permanente de incertezas. (2000), pp.290 KOYRÉ. (1991), pp.256-258.291 ‘Pode-se discutir muito acerca do progresso moral, do progresso social, do progresso poético, doprogresso da felicidade; existe no entanto um progresso que é indiscutível; o progresso científico,considerado como hierarquia de conhecimentos, no seu aspecto especificamente intelectual’.BACHELARD. (1973), p.170.292 Como atesta CASSIRER: ‘De todos os fenômenos da cultura humana, o mito e a religião são os maisrefratários a uma análise meramente lógica. (...) Quanto ao pensamento religioso, não está de modo algumem oposição, necessariamente, ao pensamento racional ou filosófico. (...) Com base apenas na razão, nãopodemos penetrar nos mistérios da fé. No entanto, esses mistérios não contradizem, mas completam eaperfeiçoam a razão’. (1997), p.121.

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entendido. Portanto, se para o referencial científico é possível discernir ‘tradução e

traição’, no texto religioso, metaforicamente, para o evento Cristo, será sempre necessário

o beijo ‘traidor’ de Judas. Parafraseando santo Tomás de Aquino, em relação ao texto

sacro, o leitor deve ser não só racional, mas também inteligente - a inteligência assume

aqui o seu sentido etimológico de intus leggere – leitura (ler, colher, recolher, escolher293)

interior; ‘pois quem diz espiritual, diz interior’294. Num contexto estritamente exegético a

questão que se impôs não foi tanto o par tradução-traição, mas sim, literalidade e

alegorismo do texto sacro.

Quanto a frei Luis de León – tendo em vista o que até agora desenvolvemos –

entendemos melhor o motivo de ele ter se apropriado, por exemplo, da obra de Petrarca,

já que via nesse autor um modelo para aquilo que ele mesmo objetivava, como já foi dito:

revigorar a mensagem cristã com o auxílio do Humanismo urgente – se levarmos em

conta que o Humanismo tenha se manifestado por diversas vezes, recebendo inclusive a

denominação de ‘renascimento medieval’295, antes de sua imposição definitiva no limiar

do século XV296. Petrarca vai de Cícero a Agostinho: da eloqüência ao cristianismo –

caminho similar ao do próprio Agostinho. Sua reverência a Agostinho ia a tal ponto que

quando interrogado sobre o que era necessário para se tornar um bom teólogo, afirmava:

‘a leitura da Sagrada Escritura e do Livro II da Doutrina Cristã’297. Petrarca via em Agostinho

o humanista cristão por excelência. Como atesta Etienne Gilson, diferentemente, Erasmo

de Roterdã via em são Jerônimo o precursor do humanismo298. Lutero optou por

293 HEIDEGGER. (2002), p.160.294 Segundo santo Tomás de Aquino: ‘Quanto mais espiritual é uma coisa, tanto mais intrínseca’. Cf.LUBAC. (1970), p.25.295 PATER. (1944), p.39.296 LIMA VAZ. Op. cit., pp. 66 e 78.297 GILSON. (1995), p.898.298 IDEM, pp.902-903.

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Agostinho299, no entanto, retirando dele o viés humanista, como também, e o que parece

ser o mais relevante, discrepando quanto ao princípio de autoridade (eclesial)300. Luis de

León cotejou Agostinho e Jerônimo301.

Em linhas gerais teríamos a seguinte estrutura: Petrarca tentou realizar ‘a união do

espírito clássico com o cristão’302; no entanto, com essa atitude contribuiu para que outros

autores recuperassem o classicismo independente do cristianismo (conseqüência essa que

Petrarca criticou), que desembocaria no neopaganismo italiano do século XVI. Erasmo

faz o caminho inverso ao de Petrarca, pois vai da Letra às letras, ou como ele denominava

a bonae literae, na certeza de que não se ‘deveria tachar de profano o que é piedoso e conduz

à boa moral’303. A crítica realizada por Erasmo quer atingir todos aqueles que na tradição

cristã têm um rasgo de obscurantismo: ‘o termo que emprega para tudo o que é velho e

rude é “gótico”304. No entanto, quando se pôs a continuar o processo de renascimento das

artes, iniciado com Petrarca, fortaleceu consciente ou inconscientemente, as mais diversas

manifestações de heterodoxia, abrindo caminho, inclusive, para o movimento de

Reforma. A partir disso não encontrou mais descanso em sua vida, pois que variadas

vezes foi interrogado de que lado estava. Buscava a liberdade sem querer romper com o299 FEBVRE. (1972), p.121.300 ‘É impossível encontrar a religião verdadeira sem submeter-se ao jugo pesado de uma autoridade e semuma fé prévia naquelas verdades que mais tarde se chegam a possuir e compreender, se nossa conduta nosfaz dignos disso’. AGOSTINHO. (1948), p.865.301 Não é demasiado reiterar a importância dos literatos romanos, particularmente Cícero e influência queele exerceu tanto em Agostinho quanto em Jerônimo. Cícero teria feito referência ao estudo de humanitatiset literarum. Cf. HUIZINGA. (1960), p.217. Agostinho confessou sobre um livro de Cícero [Hortêsio]:“Não era para limar a linguagem (...) não era para limar a linguagem, repito, que utilizava aquele livro (...)Não era o estilo, mas sim o assunto tratado que me persuadia a lê-lo”. AGOSTINHO. (1990), p.61. EJerônimo contou para Eustáquia um sonho desventurado que teria lhe ocorrido: “Já se preparavam minhasexéquias e, em meu corpo gelado o calor vital da alma somente palpitava num rincon do meu peito tambémtíbio, quando, arrebatado subitamente no espírito, sou arrastado até o tribunal do juiz, onde havia tanta luz edo resplendor dos assistentes saía tanto fulgor que, derrubado por terra, não me atrevia a levantar os olhos.Interrogado acerca de minha condição, respondi que era cristão. Porém o que estava sentado me disse:“Mentes; tu és ciceroniano, tu não és cristão; pois onde está teu tesouro, ali está teu coração” (Mt 6,21).JERÔNIMO. (1993), pp.242-243.302 HUIZINGA. (1956), p.110.303 IDEM, p.111.304 IDEM, IBIDEM.

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catolicismo: “Gosto tão pouco das afirmações, que de bom grado tomaria partido pelos cépticos

em tudo o que permitem a autoridade inviolável das Sagradas Escrituras e os decretos da

Igreja”305. Não queria o gótico medieval, mas também não se via nas fileiras da Reforma

Protestante. Lutero, por sua vez, já não queria, pois que já não precisava, contar com o

renascimento das letras, já que ela tinha, efetivamente, cumprido o seu papel, qual seja,

enfraquecido o poder centralizado de Roma.

2.4. A LETRA E AS LETRAS

As letras minaram a Letra (da autoridade), no entanto, por si mesmas elas não

tinham, para Lutero, nenhuma beleza. Fazia-se necessário a recuperação da Sagrada

Letra, tão somente, por ela mesma306 (compreende-se inclusive o porquê de Erasmo,

representar para Lutero, uma postura a ser criticada307). Quanto a relação entre

Renascimento e Reforma, não é essa a posição de Menendez y Pelayo, já que afirma

peremptoriamente que ‘dizer que a Reforma tomou do Renascimento o espírito de rebeldia é

não dizer nada, porque a rebeldia é muito mais antiga no homem que o Renascimento e a

Reforma’308. Este autor alega que na raiz do problema está uma questão étnica que

permeia, segundo ele, grande parte da história da Europa, qual seja, ‘o ódio inveterado dos

305 Cf. IBIDEM, p.123.306 ‘A Escritura como única regra de fé; o desprezo da tradição e dos Padres da Igreja, menos acentuado nosprimeiros reformadores, sobretudo Melanchton, que nos seguintes...’ MENENDEZ Y PELAYO. (1956),p.749.307 Numa carta de 1534, Lutero assim se posiciona diante de Erasmo: ‘Não se pode tolerar a tirania deErasmo em suas anfibologias, senão que temos que julgá-lo pelo que disse; se fala como Ario, julguemo-loariano; se fala como Luciano, julguemo-lo luciânico; se fala como gentil, julguemo-lo gentil...; porém esserei anfibológico senta-se seguro no trono da anfibologia, e nos pisoteia com seus dois pés (dupla contrição)estúpidos cristãos... Porém nós, os cristãos, é quem devemos julgar o mundo e os anjos, e de fato já estamosjulgando, longe de tolerar a tirania dos anfibolistas, proclamamos a liberdade por meio de duascondenações: a primeira, condenando todos os ditos ambíguos de Erasmo..., e a segunda, concenando emaldizendo suas glosas e interpretações simplistas... Eu certamente desejaria que todas as obras de Erasmofossem varridas de nossas escolas...’ Cf. GARCIA-VILLOSLADA. (1965), pp. 274-275.308 MENENDEZ Y PELAYO. (1956), p.742.

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povos do norte contra a Itália’309. Esse método de análise sugere que o posicionamento

dúbio de Erasmo era fruto da mistura de seu sangue germano com o ‘bom gosto’

romano310. E sentencia:

para dar-lhes razão [àqueles que acreditam que o Renascimento influenciou omovimento de Reforma] seria necessário que demonstrassem que os grandesartistas e escritores do Renascimento italiano eram partidários ou fautores dadoutrina da fé que se justifica sem as obras, ponto capital da doutrina luterana311.

Apesar de sua percepção sugestiva no que diz respeito às relações étnicas, não é demais

lembrar que discrepamos razoavelmente dessa análise de Menéndez y Pelayo:

implicitamente, ele quer imputar aos protestantes um quê de ignorância quanto às letras

(artes); como também, parece não querer compreender que o relevante não é descobrir

nos renascentistas posicionamentos claros sobre as questões de cunho teológico, até

porque, segundo Lucien Febvre, para os homens do início do século XVI,

não era absolutamente necessário a coincidência entre as opiniões filosóficas eas crenças religiosas. Calvino por uma parte e os católicos tridentinos por outralevaram a cabo essa concordância, estabelecendo cada um por sua conta doissistemas perfeitamente harmônicos312.

Mas sim, como e até que ponto os renascentistas imbuídos pelo obrar criativo

contribuíram para esfacelar paulatina e indiretamente o princípio de autoridade até então

em voga, qual seja, o de autoridade eclesial. Nesse aspecto, teríamos o seguinte: tanto no

Renascimento como na Reforma vigora de modo latente o surgimento do indivíduo313, ou

309 IDEM, p.743.310 IBIDEM, p.742.311 IBIDEM, p.741.312 FEBVRE. (1993), p.171.313 ‘Na Idade Média, ambas as faces da consciência – aquela voltada para o mundo exterior e a outra, para ointerior do próprio homem – jaziam, sonhando ou em estado de semivigília, como que envoltas por um véucomum (...) Na Itália pela primeira vez (...) erguia-se o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espiritual

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numa conceituação filosófica, o sujeito – que terá uma elaboração mais sistemática, um

século depois, com Descartes. Contudo, deve-se assinalar que esse processo de

individuação não é a causa dos movimentos de Reforma314 – até porque o século XVI é

prenhe de reformas que também estavam adscritas no próprio seio das ordens religiosas

vinculadas ao catolicismo e que não tinham como rasgo fundamental o indivíduo – mas

um componente relevante.

Até agora nos ocupamos em demonstrar de um modo introdutório as relações

entre dois grandes personagens do século XVI e, a partir deles enunciar o que estava em

jogo nos movimentos de reforma, particularmente, no modo como cada um deles

relacionava-se com o humanismo. No entanto, tanto Erasmo quanto Lutero foram

testemunhas oculares de uma novidade técnica, qual seja, a descoberta da imprensa. Até o

fim da Idade Média os livros eram copiados e transportados para outras bibliotecas,

geralmente de mosteiros, mais do que lidos. Desse modo, toda leitura heterodoxa feita

antes da invenção da imprensa era mais facilmente dominada ou extinta por Roma315, pois

que ela não chegava a alcançar um grande número de leitores-adeptos. Lançado o autor e

seus textos na fogueira era como se ele não tivesse passado com suas idéias pela terra.

Num tempo de credulidade e tremor não era difícil encontrar, inclusive, delatores da

‘sobrevivência’ de uma obra qualquer do autor purgado como herético. Mesmo nas

grandes cidades daquela época não se conhecia o que outrora seria denominado de

anonimato. Assim, a fogueira permanecia acesa não só para os autores heterodoxos, como

também para os possíveis leitores afeitos à heterodoxia. O único recurso para aqueles que

e se reconhece como tal’. BURCKHARDT. (1991), p.111. Contudo, segundo HUIZINGA, Burckhardt erra‘ao considerar o individualismo como o aspecto dominante e fundamental do Renascimento, [já que] nomelhor dos casos é um traço entre muitos, que se combina com outros totalmente contraditórios’. (1960),p.248. 314 FEBVRE. (1977), p.122.315 ANDERSON. (1989), p.48.

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não quisessem fenecer na fornalha era a abjuração. No entanto, a nova técnica refez a

circunstância, pois com a disseminação mais rápida dos textos, o autor dos mesmos

perdia o controle sobre a obra e, justamente esse descontrole passou a protegê-lo da

fogueira. Não tinha mais sentido queimar o autor, pois que seus pensamentos rapidamente

alcançavam muitos. Não era mais possível queimar os leitores deliberadamente: primeiro,

já não eram tão poucos; segundo, a condenação de todos os leitores criaria um problema

de ordem pública já que causas naturais selavam o destino de tantos e, por fim, esses

‘leitores heterodoxos’ advinham de uma nova classe, a incipiente burguesia e em função

disso os problemas aparentemente morais evidenciavam um conflito de interesse político-

econômico.

2.5. DIVERSAS LETRAS

Os séculos XV e XVI são terríveis inquisitoriais, nunca o martelo das feiticeiras

cravou tão forte; no entanto, a potente batida do martelo era já prenunciação da perda de

seu impacto, algo como o último suspiro, a última pirra, a última centelha:

os senhores do mundo capitulavam inconscientemente ante o fato de que o poderdo espírito criador passava a exercer a soberania no Ocidente, movidos pelopressentimento de que as criações artísticas estavam destinadas a sobreviver aosfeitos políticos e marciais316.

É bem verdade que essa força do espírito não se afirmou por completo

posteriormente, abrindo caminho para uma onda de pessimismo que atravessou todo o

mundo ocidental no século XIX. No entanto, no contexto do século XVI, a novidade não

é o cessar das perseguições – elas até se tornaram mais intensas – mas sim, a impotência

316 ZWEIG. (1936), p.84.

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do perseguidor já que a partir da invenção da imprensa, múltiplos foram os caminhos

propostos e afirmados pelo homem para si mesmo. Os cães farejadores são impiedosos

com uma única lebre solta no campo, mas o que eles podem quando muitas lebres correm

para as mais diversas direções? Atônitos e contrariados, eles parecem contemplar a rápida

cópula e disseminação daquelas. E assim, os livros se disseminaram – neles os

pensamentos – livres, feito lebres, por todos os cantos. Portanto, o alcance da reforma

protestante foi motivado, não só pelas propostas ou contrapropostas de Lutero, mas seu

sucesso deveu-se também a algo que não tinha sido previsto pelos mais bem informados

cardeais da cúria: a imprensa. Teríamos assim algo instigante: Gutemberg – o grande

reformador317. Compreende-se melhor o porquê de Lutero ter optado por escritos

concisos, por vezes polêmicos, por vezes profundos. Somado a isso, a sua escolha pela

língua vulgar tornava ainda mais rápida e extensa a disseminação de seus pensamentos:

De fato, Lutero tornou-se o primeiro autor de grande vendagem conhecido comotal (...) Onde Lutero foi o primeiro, outros rapidamente se seguiram, dando inícioà colossal propaganda religiosa que avassalou a Europa toda no correr do séculoseguinte. Nessa gigantesca “luta para conquistar o pensamento dos homens”, oprotestantismo sempre esteve basicamente na ofensiva, precisamente porquesabia como utilizar o crescente mercado da imprensa em língua vulgar que ocapitalismo criava, enquanto que a contra-reforma defendia a cidadela dolatim’318.

Também os livros de Erasmo de Roterdã obtiveram uma significativa repercussão,

no entanto, sua pouca abertura às línguas vernáculas limitou o alcance de sua obra à

camada mais culta da sociedade de então, já que para muitos humanistas de seu tempo

seria ‘humilhante escrever um livro ou uma carta no idioma pátrio’319. Contudo, Erasmo,

317 Entretanto, segundo COLLINSON, a imprensa por si só não poderia definir os movimentos de Reforma.(2006), p.57.318 ANDERSON. Op.cit., p.49.319 ZWEIG. op. cit., p.97.

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quando não estava produzindo algum texto próprio ou alguma tradução, podia ser

encontrado seguramente em alguma tipografia. Assim,

em matéria de piedade, o livro favorecia o individualismo. A obra impressatornava menos necessário o sacerdote e permitia uma meditação pessoal. Quandoesse livro era a Bíblia, todo mundo podia entender a Deus, falar-lhe e por-se ainterpretar a sua maneira a mensagem divina. Já antes de Lutero a difusão doslivros religiosos estava em vias de transtornar as crenças320.

Portanto, percebemos o quanto uma técnica, neste caso a imprensa, contribuiu

para que debates até então adscritos aos concílios e às Dietas – no que se refere aos

debates teológico-pastorais ou políticos - como também às contendas filosóficas que se

limitaram por séculos aos mosteiros e posteriormente às universidades atingissem um

número maior de pessoas e, o mais relevante, provocasse um abalo irreversível no poder

constituído.

2.6. LUIS DE LEÓN E A CONTRA-REFORMA

Tendo Lutero e Erasmo como referências, frei Luís está muito mais próximo do

segundo. Síntese do renascimento espanhol321 que teve contornos próprios já que na

Espanha o humanismo tomou em geral uma posição benévola322, onde esta pode ser

compreendida da seguinte forma: o acolhimento dos clássicos sem a atitude negativa em

relação à escolástica. Essa é, segundo Helmut Hatzfeld, uma das três qualidades

fundamentais para que a mística espanhola tenha se tornado a mística clássica, já que

seguindo o modelo estrito da teologia tomista com sua terminologia matizada, tornava este

misticismo compreensível intelectualmente323. Nesse sentido, frei Luis de León distancia-se

320 DELUMEAU. (1973), p.21.321 Cf. LUIS DE LEÓN. (1951), p.16. 322 GRABMANN. op.cit., p.39.323 HATZFELD. (1968), p.20.

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sobremaneira da atitude de Erasmo: a questão que nesse momento se coloca é a da

relação entre forma e conteúdo e, é partir a dessa problemática relevante – que está

inserida numa espinhosa discussão a respeito da verdade e sua representação - que esses

autores discrepam. É o grau de importância que cada um deles dá aos clássicos que

institui a diferença, e esta só pode ser percebida no acento que cada um deles realiza

quanto à forma e quanto ao conteúdo. Erasmo enfatizou este acreditando que de alguma

maneira aqueles autores carregavam consigo algum germe de cristianismo, onde para ele,

na pior das hipóteses, prenunciavam de um modo ou de outro a mensagem cristã. Mesmo

que reiteradas vezes afirmasse estar de acordo com a Verdade da Sagrada Escritura,

assentia com tanta paixão as ‘verdades profanas’ que, por vezes, corria o risco de

relativizar o Absoluto: parecia estar entre dois amores, anestesiado, inativo, onde o sim e

o não são pronunciados ‘concomitantemente’324. E como asseverava Agostinho – que

tanto o incomodava – ‘quem nada afirma, não age’325 (quanto a esse aspecto não

podemos esquecer a força da decisão ou cisão luterana). Diferentemente de Erasmo, a

ênfase em relação à produção literária dos clássicos de frei Luis de León incidia

324 ‘É um homem que não quer compromissos, neutro, independente, se segue sua própria senda, não com aestandarte altivez do gênio que marcha em direção a um ideal, senão com a timidez egoísta de quem nãodeseja vincular-se a ninguém nem ajuramentar-se a nada; não tolera enrolar-se nas fileiras de nenhumafacção ou partido; não quer militar em nenhum campo, com menoscabo de sua liberdade e independênciaindividual. Por isso o sim e o não saem quase juntos de seus lábios, neutralizando-se e desconcertando aoleitor. Jamais uma afirmação decisiva, jamais uma negação rotunda e para sempre’. Cf. GARCIA-VILLOSLADA. Op. cit., pp. 285-286.325 AGOSTINHO. (1947), p.129. No entanto, é necessário esclarecer que essa afirmação agostiniana refere-se a sua contenda com os acadêmicos que na sua época eram os representantes maiores do ceticismo.Quanto a Erasmo, ele não se compreendia como um cético, mas um crítico de todo e qualquer fanatismo.Numa resposta a Lutero – que tinha lhe chamado de ‘maior inimigo de Deus -, ele assim se posiciona: ‘Nãosou tão pueril que, depois de suportar os piores ultrajes, me deixe abrandar com gracejos e lisonjas... A quepropósito vinham as observações sarcásticas, as mentiras abjetas de que sou um ateu, um cético em matériade fé, um blasfemador e não sei que mais?... O que ocorreu entre nós carece de importância, sobretudo paramim que me vou aproximando da sepultura; mas o que me revolta, como a todo homem de bem, é ver que atua atitude arrogante, ousada e subversiva sublevou o mundo... e que, por tua causa, esse movimento nãochegará ao fim excelente pelo qual lutei. A nossa controvérsia é um caso privado; o que me pesa é o mal-estar geral, a confusão irremediável, e esses não os devemos senão ao teu caráter indômito que recusadeixar-se guiar pelos bons conselhos. Desejo-te um estado de espírito muito diferente do que tanto teextasia. Por tua vez, me podes almejar tudo o que te aprouver, exceto a tua mentalidade, a não ser que Deusa modifique’. Cf. ZWEIG. op.cit., pp.166-167.

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estritamente sobre a forma. Era a beleza da expressão e do estilo clássicos que lhe

fascinava e como Petrarca quis colocar toda essa beleza a serviço da fé cristã326. Por

conseguinte seguia a risca o preceito de são Jerônimo, de apreender a forma para, através

dela, propagar a verdade:

é que havia aprendido do herói Davi arrebatar a espada das mãos dos inimigos ea cortar a cabeça do altaneiro Golias com sua própria espada. Tinha lido noDeuteronômio que a voz do Senhor manda aparar a cabeça e as sobrancelhas damulher cativa, e cortar-lhe todo o pelo do corpo e as unhas, e que somente assimse podia tomá-la em matrimônio. O que existe de estranho, pois, se também euquero converter a sabedoria secular de escrava e cativa em israelita, dada a graçade seu falar e a beleza de seus membros; se corto e aparo o que nela existe demorto, de idolatria, de luxúria, de erro e paixão, e unido a seu corpo purificado,engendro dela servidores do Deus Sabbah? Meu trabalho traria proveitos àfamília de Cristo; meu adultério com a estrangeira faria crescer o número demeus companheiros de serviço. Oséias toma por mulher à filha de Debelaim, quesignifica ‘das doçuras’, e da meretriz nasce um filho, Jezrael, que quer dizer‘semente de Deus’; Isaías, com afiada navalha, apara a barba e as pernas dospecadores; Ezequiel, figurativamente, num prostíbulo de Jerusalém corta suacabeleira, para quitar o que nela havia sem sentido nem vida327.

Portanto, a forma para são Jerônimo – como também para frei Luis de León - é

ponto e contraponto, mas não é centro, já que:

a comida dos demônios são os poemas dos poetas, a sabedoria profana, aexuberância verbal dos retóricos. Estas coisas deleitam a todos com suasuavidade e, como cativam os ouvidos com o ritmo de versos cadenciosos,penetram também a alma e dominam o interior do coração. Porém, quando játenha lido e relido com toda a atenção e esforço, não deixam a seus leitores maisque sonoridade vã e estrépito de palavras; neles não se encontra fartura deverdade nem satisfação nenhuma de justiça. Os estudiosos delas seguem comfome de verdade e em penúria de virtudes328.

326 HUIZINGA. (1960), p.241.327 JERÓNIMO. (1993), p.732.328 IDEM, p.183.

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Portanto, aquele exercício de assimilação e recriação permanentemente realizado pelo

cristianismo – que foi se tornando cada vez mais evidente no campo filosófico – é

realizado por frei Luis de León, genuinamente, no literário329.

Estando correta aquela afirmação supracitada de que frei Luis de León foi o

renascimento espanhol só faz aumentar o grau de importância de sua obra no aspecto

político, já que a Espanha foi o berço da contra-reforma. Como afirma Croce numa das

cartas endereçadas a Karl Vossler:

No que diz respeito à Espanha (...) não pretendo negar a parte que teve nahistória política: seja com a colonização do Novo Mundo, seja com a políticaeuropéia, na qual ela, ela quase sozinha, teve a força de impedir a dissolução daigreja católica, que a Reforma tão bem encaminhava. Não podemos estar muitoagradecidos por isso; porém é um fato histórico. A Igreja católica, ingratasempre, mimou a França, sua filha dileta, sua protetora, e devia, diferentemente,erigir um monumento a Carlos V, a Felipe II, a Felipe III, aos jesuítas etc., seusverdadeiros salvadores’330. [Karl Vossler, por sua vez, quando se põe acompreender as forças religiosas que impulsionaram frei Luis de León afirma]:‘em suas idéias e escritos realiza-se silenciosamente a união entre dois grandessantos, tão distantes entre si, como santo Agostinho e santo Inácio de Loyola (...)a confiança contemplativa de um e o ativismo empreendedor e incansável dooutro331.

A segunda pista que Max Weber nos sugere é a seguinte: o luteranismo por si

mesmo não seria suficiente para afirmar a Reforma Protestante332 já que não tinha um

projeto consistente que instituísse um contra-poder em relação à Cúria Romana. Assim,

sem o auxílio do calvinismo, a Reforma Protestante iniciada por Lutero, segundo Max

329 Nele ‘encontramos já expressa uma vontade de estilo (...) [onde] as palavras são para ele coisa sagrada,porque são o veículo da intimidade afetiva e ideal’ e por conseqüência, ‘com ele surge uma belíssima teoriaestética, que depois não foi bem realizada pelos manipuladores impressionistas do estilo, que pretendemcriar formas novas de estilo, sem o princípio animador da alma das palavras’. LUIS DE LEÓN. op. cit.,p.15.330 CROCE & VOSSLER. (1956), p.275.331 VOSSLER. (1946), p.78.332 Tese que é refutada por Lucien Febvre no seu ‘Combates pela História’ quando trata da ReformaProtestante.

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Weber, não teria duração; por conseqüência, o calvinismo apresentava-se de fato como o

‘inimigo’ a ser combatido pelo catolicismo333. O calvinismo leva às últimas

conseqüências aquele retorno à origem proposta pelo luteranismo, pois que, enquanto este

recorre, inicialmente, ao Novo Testamento, aquele fundamenta seu ascetismo no

legalismo veterotestamentário. No entanto, não são todos os livros do Antigo Testamento

que se prestariam aos objetivos calvinistas e, dentre eles, um não foi propositadamente

revisitado: o Cântico dos Cânticos334. Temos assim que também por esse motivo frei Luis

de León surge como um tradutor contra-reformista, pois que para ele o ‘cantar dos

cantares’ era o livro veterotestamentário que possibilitava o envolvimento entre os

preceitos religiosos e o Humanismo. Somado a isso, sua tradução do livro de Jó

contrabalançava a interpretação calvinista do Livro de Jó que exacerbava a impotência do

homem335 diante de Deus e do mundo (naquele contexto histórico, uma série de

descobertas, o sério risco de exacerbar o esfacelamento político-cultural). Segundo Karl

Vossler,

o que mais atraiu a frei Luis de León e o que mais estudou, pleno de zeloreligioso e devoção crítica, são as grandes perspectivas históricas e proféticas dahumanidade. O que aspira é estabelecer a relação constante que existe entre averdade reveladora e a transmitida336.

Assim, ao comentar o Cantar dos Cantares não se limita a compreender a relação do

esposo e esposa como sendo a da alma com Deus, ou de um homem com uma mulher, ou

de Deus com a Igreja, mas a partir delas - interpretações da tradição – enunciava um novo

333 WEBER. op. cit., p.70.334 IDEM, p.104. Cf. COLLINSON. op.cit., p.114.335 GOLDMANN. (1986), p.271.336 VOSSLER. op. cit., p.65.

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par: a cultura do amor em meio às culturas de modo que a predileção não se confunda

com exclusividade, pois:

não está a prova e a firmeza do amor em amar a uma pessoa a sós e semcompanhia de outras; antes o maior e mais verdadeiro ponto dele está quando,estendendo-se e abraçando a muitos, entre todos assinala, diferencia e avantajaparticularmente a um; o qual bem declara o Esposo nestas palavras, nas quais nãonega ter afeição e bem querer a outras mulheres, porém confessa amar a suaEsposa mais que a todas, com um amor assim particular e diferente de todos osdemais, que os demais quando comparados a ele quase não merecem o nome deamor; e mesmo querendo a muitas, porém a sua Esposa é por ele querida de ummodo único e singular337.

Por fim, das edições parciais da Sagrada Escritura que circulavam no início do

século XVI as mais comuns eram do livro do Apocalipse, dos Salmos e do Livro de Jó338.

No caso específico do Livro de Jó o que ele propiciava era o contraefeito, ou seja: tendo a

dor de Jó como referência, a dor do leitor, por contraste, seria aliviada. Neste sentido, o

livro de Jó é um livro de renascimento339 para todos que estão num leito (que é a

abreviação e a evidência da vida como leito de rio). O que geme é gema e saber esperar -

propriamente a paciência - nem sempre ocorre na ausência de dor:

o que denominamos esperar, tem a significação de esperança, não num sentidoqualquer, senão a que se tem com dificuldade em casos de muito perigo e dor.Porque [thecholel] quer dizer, numa primeira significação, parir ou o sentir asdores do parto. De tal modo que o que se esforça em esperar nos negócios queparecem perdidos e desesperados, vai como que se despedaçando e parindo, porisso esta palavra passa algumas vezes a significar um sofrer e um esperardoloroso e cheio de agonia340.

3. EXPOSIÇÃO DE JÓ337 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.158.338 MARTIN & FEBVRE. (1962), p.267.339 HUIZINGA. (1960), p.242.340 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.571.

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3.1. SEM PELE NEM RAMOS

Rico proprietário noutro tempo, e pai ainda mais rico, de repente se viu semfilhos e sem bens. E porque em meio do que lhe ocorreu não pecou ante o Senhornem pronunciou nenhuma insensatez, Deus, exultante pela vitória de seu servo econsiderando como triunfo próprio a paciência daquele, disse ao diabo: Te hasfijado en mi siervo Job? No hay nadie como él en la tierra: es un hombre cabal,recto, que teme a Dios y se aparta del mal. Aún persevera en su entereza341.Belamente acrescentou: Aún persevera en su entereza, pois é difícil que ainocência, acossada de males, não se doa e que não peligre a fé ao ver que temde suportar injustamente o sofrimento. Ao qual responde o diabo dizendo aoSenhor: Piel por piel! Todo lo que el hombre posee lo da por su vida. Peroextiende tu mano y toca sus huesos y su carne: verás si no te maldice a lacara!342. O mui astuto inimigo, encanecido em dias de maldade, sabe que umacoisa é o extrínseco à pessoa, isso que os filósofos do mundo chamam coisasindiferentes e cuja perda ou desprezo não demonstra virtude consumada, e outrao interior, o que alguém dá de si mesmo e implica necessariamente dor em quema perde. Por isso se opõe com arrogância ao elogio de Deus e lhe disse que nãodeve elogiar a quem não perdeu nada de si mesmo, senão do que lhe éextrínseco; a quem em vez de sua pele ofereceu a de seus filhos; a quem perdeu abolsa, mas desfruta de boa saúde corporal. Com tua discrição entenderás quetuas provas pararam nesse limite, que destes pele por pele, couro por couro, eestáis disposto a dar tudo o que tens por tua alma. Mas ainda não caiu sobre timesmo a mão de Deus, nem foi tocada tua carne, nem quebrados teus ossos, cujador é difícil não gemer e não bendizer a Deus em sua cara, ou o que é o mesmo,não maldizer-lhe343.

Passou pelo sofrimento. Ou, quando o sofrimento traspassou, buscou referências

num livro. Ouviu dizer que dentre os livros havia um que aliviaria a sua dor, não porque a

explicaria e, tampouco a justificaria, mas sim porque se depararia com a experiência de

um servo que clamou um encontro com seu Deus – que quis enfrentá-Lo: o face a face

com Deus enquanto foi alvo da dor e por ela calvo se tornou. Nas mãos, cabelos

umedecidos pelas lágrimas. Jó clama pelo encontro. Quer saber o motivo do abandono

divino. Séculos depois do livro de Jó, Jesus pronunciará na cruz: “por que me

abandonaste?”344. 341 Jó 2,3.342 Jó 2, 4-5.343 JERÔNIMO. (1995), pp.371-372.344 Interrogação que consta nos Evangelhos de Mateus (27,45-46) e Marcos (15,34) referência ao versículo2 do Salmo 22 que trata do “Sofrimento e esperança do justo”. Diferentemente, Lucas sugere que Jesustenha pronunciado o versículo 6 do Salmo 31 – “Oração na prova”. No Salmo 22 o justo interroga por que

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Cristo, exemplo de perfeita paciência, ainda que nos males que padeceu calousempre, no último deles ao fim se queixa, e com voz dolorosa e grande,voltando-se para seu Pai, lhe disse: “Deus meu, Deus meu! Por que medesamparaste?” Através do qual mostrou que não era impaciência o queixar-se, eque era de homens, como Ele verdadeiramente o era, o sentir a dor e o querelar-se cada um do que lhe dói. Porque o sofrimento não está em não sentir, que issoé dos que não têm sensibilidade, nem em não mostrar o que dói e se sente, senão,ainda que doa e por mais que doa, em não sair da lei nem da obediência deDeus345.

O abandono de Jó foi sentido em meio a sua vida, o de Cristo como mistério final

de sua missão: ao fim, mesmo Jesus, sentiu-se como Jó, ou melhor, aquele que salva

interrogou (se): onde está o pai? Toda a paixão de Cristo ocorreu em meio ao silêncio.

Um Deus sobre o qual pesava a cruz do imperial pecado do mundo; um Deus submetido,

um Deus humilhado. Dos sacrifícios a Deus, a Deus sacrificado, crucificado – tornado

santo na cruz. O peso de Jesus é fruto de sua congregação; do seu sentir-se responsável

pelo estrangeiro, pelo samaritano. Pelo que sofre e pelo que faz sofrer; quer ser um

curador, um cura. Diferentemente o pesar de Jó é o de ter sido desagregado346 das

responsabilidades que até então possuía. Enquanto Jesus sofria por ter sido presenteado,

Jó sofria por lhe ter sido retirado. A presença de Deus era tão intensa em Jesus que se

confundiu com sua carne, seu limite era ser Deus. Jó clamava ao alto – o silêncio não foi

suficientemente consolador. Por que Jesus não necessitava gritar como Jó o abandono de

Deus? Deus estava próximo o suficiente – não havia mais disparidade entre a boca e o

ouvido, não tinha outra instância a qual recorrer, pois que ele mesmo tinha se constituído

foi abandonado por Deus e no Salmo 31 afirma-se: “abandono minha vida em suas mãos”. Desse modo,além de Lucas diferir dos outros dois evangelistas sinópticos, adapta o versículo do Salmo 31 já que assimestá escrito em seu Evangelho 23,46: “Pai, em tuas mãos abandono meu espírito”. Para João (19,30), Jesusteria pronunciado o “Tudo está cumprido”. De qualquer maneira, estando certa observação de LUIS DELEÓN de que a pergunta por que equivale a uma partícula proibitiva como se pode ver no Salmo 87,15onde o por que te apartaste?, pode ser substituído pelo ‘não te apartes’, então teríamos que o ‘por que meabandonastes’ seria um ‘não me abandones’. (1991ª), p.197.345 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.66.346 “Cierto, agora afligióme, y asolaste toda mi congregación”. IDEM, p.287.

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na estância de Deus347. Ao mirar o céu não viu Deus, o céu se quedou vazio348, seu olhar

tinha se tornado divino. Possuidor da visão de Deus experimentou a solidão de ser Deus.

Jó, ao revés, se desconstituía na ‘distância’ de Deus.

Contudo, Deus não abandonou Jó – o leitor do livro sabe disso, mas Jó não. Jó

está sendo provado, o leitor sabe disso, mas Jó não. Mas, o leitor não sabe de onde Jó

retira tanto da fraqueza? Para se suportar um sobrepeso de matéria necessita-se de força

física; em contrapartida, o espírito é forçado ao pesar das perdas. De Jó foram comidas as

posses, os amores e a saúde em vorazes bocados: não ao modo de alguém que dá

colheradas nas praias da sopa quente, nem como o faminto que come lentamente por falta

de vivacidade; mas como o devasso que na sanha de tudo morder com tudo morde, feito

uma cobra que engole um boi inteiro passando por cima do gosto:

Extendió sobre mi sus bocas con afrenta, hirieron en maxila mia, y justamentecontra mí se hartaron. Bem disse extender y sus bocas, para mostrar que seu malnão é um bocado somente, nem um bocado pequeno; antes tão grandes bocados etantos, que parecia ter sido necessário muitas bocas e muito abertas (...) e porcausa de tais bocados disse que juntamente contra ele se hartaron, isto é, quemorderam em tudo o que possuíam aquelas bocas abertas, e que não morderamlevando parte e deixando parte, senão levando e comendo tudo349.

Con ira ardiendo apechugó conmigo;regañó contra mí sus fieros dientes,los ojos me enclavó como enemigo. Abrió para tragarme diferentesbocas; hirió mi cara y con mi vidahartó la cruda hambre de mil gentes350.

347 ESPINOSA. (2003), p.74.348 Essa experiência de Jesus será corroborada por muitos cristãos que poderão dizer como Kemps naImitação de Cristo: ‘Prefiro ser com Vós um peregrino na terra, que sem Vós possuir o céu. [pois] Ondevos encontramos, aí está o céu...” cf. JAMES. (2002), p.78.349 LUIS DE LEÓN. (1991b),p.289.350 IDEM, p.296.

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Teve seus ramos351 devorados como denominaria Luis de Leon explicitando a

relação existente entre a enfermidade de pele de Jó com suas perdas. Jó não sabe mais do

que sua vida está revestida, não reconhece sua condição, já não se reconhece. Todos

podiam testemunhar seu sofrimento, pois sua dor estampava-se, faceava, passeava nele,

não passava; um leve toque em seu corpo e um gemido prorrompia: estava à flor da pele.

Ele sente na pele a fragilidade da flor. Ele se sente na fragilidade da flor. Sente-se como

uma flor. Ele está (é) tão sensível que se tocar ou lhe tocarem com uma frágil flor todo o

corpo lhe dói, a frágil flor lhe corrói. O toque de uma flor suave é suficiente para privá-lo

e prová-lo, mas, o mais relevante é tocar-se (dar-se conta), descobrir através da pele

(descoberto de pele) a humana fragilidade em flor:

Como flor salió y cortóse. É comum na Sagrada Escritura comparar a flor aohomem, como nos Salmos [102,15] e em Isaías [28,4;40,6] se vê. E em verdadecai bem a comparação, porque a flor tem muito de parecer e muito pouco de ser,e o homem igualmente; que se lhe observar pelo que possui em força deentendimento como em agudeza de sentidos e capacidade de memória, e emhabilidade para fazer o que quer, cheia de indústria e esperteza, ele lhes pareceráum deus imortal; e a bem da verdade uma aranha e um sopro de ar lhe põe fim. Ese lhe miramos pelo que ele quer ser por costume, as aparências são excelentes:belas palavras, largas promessas, demonstrações de zelo, de gravidade, dejustiça, e, finalmente, de honestidade e bondade; mas, de fato, é flor cortada emurcha, nem fruto nem esperança de fruto352.

El hombre es nada,muy hijo de mujer, muy corto en vida,muy lleno de miseria amontonada. Es flor que apenas nace, y ya es cogida,es sombra que camina y se apresuraen manera ninguna detenida353.

351 IBIDEM, p.313.352 IBIDEM, p.252. Relação entre flor e felicidade – cf.p.109.353 IBIDEM, p.262. Resquícios da interpretação espiritual feita por GREGÓRIO DE NISA a respeito dasaída do Egito que para ele “dá a entender claramente que estamos de passagem nesta vida aqui na terra.Apenas entramos pelo nascimento e a lei da vida nos empurra a sair”. (1993), p.89. Interessante notar comoa imagem de sombra recobra aqui um sentido bem diferente que comumente assumia no livro do Êxodo jáque os hebreus caminhavam e se detinham em função da sombra da nuvem propiciada por Deus para atravessia do deserto.

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Incapaz de receber um toque de uma flor como poderia receber um toque de

amigos? Jó não pode ser mais tocado e assim não pode deixar de crer que foi retocado por

Deus354, pois que só Ele teria poder suficiente para interferir dessa maneira na rota de sua

vida: só Deus poderia derrotá-lo.

También hoy en amargura mi habla; mi mano se engraveció sobre mi gemido.(...) pode parecer-lhes que exagero minha pena e que excedo os limites da razãoe da paciência queixando-me, e posso ofender-los ao parecer cego e blasfemo.Contudo, estejam certos de que hoje, quando é minha querela mais amarga quenunca, que agora quando publico o que sinto com mais sentimento, minha mão,isto é, minha praga, esta mão que Deus põe sobre mim de castigo excede semmedida o meu gemido, isto é, o que torno público e me queixo. Mas como nãovês minha dor e somente ouves minhas palavras, como não conheceis a verdadede minhas obras e não vês o rigor de meus castigos e penas, enganam-se aoinjuriar-me355.

3.2. DERRAMADO, SEM ESPERANÇA

Assim, ‘intocável’, entoca-se, cinge-se de terra querendo adiantar através de um

gesto a chegada da morte - a terra, segunda pele que simboliza o quão distante ele

gostaria de estar da luz do sol, pois ela amplia sua dor ao assombrá-lo e, além disso, a

escuridão não gera sombra. Esta é para ele a duplicação de suas sobras, já que a sombra

dobra a sua dor, pois ao ver uma sombra que nunca se detém enquanto é sombra lhe

assombra que sua dor também não cesse, bem como, enquanto vive doendo, imaginando

uma vida diversa, sente que a vida não deixa de se consumir356: Senhor, conforme tuas leis,

esta vida sensível que agora se vive é uma só, e passada não torna, e acabada não renasce outra

vez, que é como o sopro que passado não volta, senão caminha sempre adiante357. Assim, anseia

a noite pensando que a sombra se dissiparia na ausência de luz porque a escuridão é o

354 IBIDEM, p.324.355 IBIDEM, p.384. grifo nosso.356 IDEM, IBIDEM.357 IBIDEM, p.156.

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contrário do dia, e em comparação do ser é como o não-ser358 e, Jó queria que sua dor já não

fosse. Mas, sorrateiramente a sombra invade a noite através de um fio de luz que adentrou

seu corpo cansado: a imagem, como a sombra, alimenta-se de luz e assim, imagens

assombrosas penetraram como Penúria no festim de Afrodite e incomodaram o sono do

justo que não pôde à noite encontrar descanso. Sonhou em vão que a noite permitiria que

ele se desdobrasse para recobrar um pouco da paz perdida. Contudo, em meio às

perdições outra se somou: perdido o sono, perde o interesse pela noite e agora sem saber

direito o que esperar, quer qualquer outra coisa que não seja o que lhe sobra.

Noche por dia pusieron, y luz cercana ante faz de tinieblas, quer dizer, que depuro desvanecido e fraco perdeu o sono completamente (...) as faces das trevas,isto é, o fundo da noite e o mais alto dela, quando todos dormem e sossegam, elealvorece, e assim tudo vela e desperta; e desse modo durante o dia, com aesperança de repousar, deseja a noite e que, vinda, como não repousa, torna adesejar que amanheça359.

Mas qué contiendas nuevas pido y quiero?Ni tengo fuerzas ya, ni ser ni vida;aún de pensar me priva el dolor fiero.Y del contino llanto enflaquecidala fuerza, en las tinieblas hondas velo,y es para mí la noche luz nacida360.

A única coisa que não lhe sobra é esperança, ela soçobra em Jó. E se houver alguma não é

esperança de raiz, nem de tronco seco ao ser regado:

Que es al árbol esperanza, si fuere cortado, que aún reverdecerá y su tallo nofaltará. Si envejeciere en tierra raiz suya, y en el polvo muriere su tronco. Alolor del água tallecerá, y hará mies como planta. (...) Su tallo no faltará, isto é,depois de cortado faz-se de novo.Si envejeciere en tierra raíz suya; algumas árvores se renovam quando cortadas,e outras que parecem estar secas e mortas por falta de água, quando tornam a serregadas, tornam e reverdecem, e destas se diz agora. E por isso disse si muriese

358 IBIDEM, p.69.359 IBIDEM, p.304.360 IBIDEM,p.305.

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en el polvo su tronco, isto é, se por estar feito pó sobre a terra com secura,parecendo estar seca. Al olor de agua tallecerá; como se dissesse, tocando-lha aágua reflorescerá, e hará mies, isto é, brotará por mil partes e se rodeará deramos e folhas. E assim, disse, que cortada e seca, se renove e reviva361.

Mas de tronco que tão logo caia ferido será conduzido para longe da raiz, da terra e da

água e livre do que lhe aprisionava, enfim poderá mover-se, em queda-livre para a morte:

Derrocóme en derredor, y perecí; y fizo mover como árbol mi esperanza. [Jó foi] como tronco

cortado ao solo, onde secou sua esperança362. Tão diversa a experiência e a esperança de

tronco cortado de Jó da vara de Aarão que mesmo seca, lisa e sem raiz se umedecia de

repente e alcançava o que as plantas produzem através de sua seiva e raízes363.

Numa tradição em que viver é caminhar, onde um mar não foi suficiente para

impedir o passo, em que o deserto ameaçador foi tornado lugar de passagem (não

interessando que as pegadas sejam apagadas a posteriori seja pelas águas seja pelo vento,

pois: qual a relevância de vestígios de trilhas em lugares abertos?). É nessa tradição em

que o caminho tornou-se meta para lançar-se fora, metáfora da vida, que Jó está adscrito.

A varón a quien su camino le fue encubierto, y le cerco Dios con tinieblas.Como dizendo: e para dizê-lo numa palavra, para que se dá vida ao homem, queé como eu desgraçado e miserável? E declara a gravidade de sua calamidade emiséria através deste cerco que encobriu seu caminho; que aprofunda seu maltanto quanto possível. Porque caminho na Sagrada Escritura é o que alguém faz,diz, pretende, alvo no qual se atira, estilo de vida, a que se inclina e gostopróprio. E por assim dizer Jó a quem o caminho foi encoberto, disse que não lhedeixaram qualquer coisa boa, pois o que faz não ocorre, o que diz não seaproveita, seus pensamentos lhe atormentam, seus intentos fogem dele, seusdesígnios se desfazem, em nada encontra gosto, por onde quer que se volte, e emtodas as coisas que ou pensa ou diz ou faz não encontra por onde caminhar. Ecomo o que caminha com pressa, chegando a bifurcações de caminhos não sabemais o caminho, padece agonia, suspenso, que nem pode ir adiante nem suapressa lhe consente quedar-se, quanto mais se revolve tanto menos se resolve,assim, disse Jó, estou a ponto que não sei o que fazer de mim, que nem possosustentar esta vida nem me é permitido tomar a morte com minhas mãos. A

361 IBIDEM,pp.255-256.362 IBIDEM, p.323.363 GREGÓRIO DE NISA. (1993),p.64.

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nenhuma parte que dirija meus olhos posso dar passo. Deus me espanta se lhemiro; meus criados me desconhecem se os chamo; meus filhos levou-os a morte;minha própria mulher é minha inimiga, meu mais cruel verdugo são asimaginações de que minha alma está cheia. Em nenhuma parte descubro nem umpequeno resquício de esperança e de luz364.

Não podendo ver por onde seguir, ou se caminha vagarosamente, já que ao faltar luz,

naturalmente se segue a passos curtos365; ou trôpego como um bêbado:

Quem mais desatinado que o que anda de noite sem luz e sem notícia do lugaronde anda, estende uma mão e outra em cada direção, e pensando agarrar o quebusca, abraça o ar, e acreditando que vai direito, vai ao revés, e volta atrás,quando pensa que vai adiante366.

A las cabezas altas de la tierralas ciega, y por los yermos sin caminolas lleva sin saber a do el pie yerra.Como el que en noche escura pierde el tino,y abraza, por valerse, ela aire en vano,ansí van; y cual el que manda el vino,que rompe aqui ya el pie, ya allí la mano367.

Mas não saber por onde se vai ou para onde se vai não se compara com a desgraça maior

que é ter impedido o passo quando se sabe aonde se quer ir. Por isso Jó afirma que Deus

lhe tomou todos os caminhos e o que lhe sobrou foi rodeado de valas para lhe impedir o

passo. Não podia seguir adiante e estava sem auxílio já que Deus lhe deixou de lado. O

assombro de Jó não é ter se perdido de Deus já que Jó está no caminho e sempre se

encaminhou para Deus, mas desconfiar ao pronunciar a apaixonada pergunta esclarecedora

que brota do sofrimento, uma pergunta que pede esclarecimentos a Deus, uma pergunta plena de

tensa expectativa368 de que a Luz que permite uma melhor visualização de seus contornos,

364 LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.78-79.365 IDEM,p.311.366 IBIDEM,p.233.367 IBIDEM,p.237.368 METZ. (1996), p.25.

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resplandece limites e que assim fica disposto que esclarecer não é resolver. Noutras

palavras: o Deus que esclarece o sofrimento poderá responder ao homem o porquê do

mesmo? Qual a necessidade de um Deus que cura quando ele mesmo foi quem feriu?

Para que feriu? Para poder mostrar que tem o poder da cura? A experiência de Jó se

repete em todos aqueles em que a dor, seja física seja psicológica, refreia a esperança. O

terror é sentir refreada a esperança por Aquele que a infundiu. Um dos paradoxos de Jó:

perder a esperança sem perder a fé. Uma luta na proposta: acreditar na promessa – que

por se tratar de uma promessa pressupõe o futuro, mas como continuar acreditando numa

promessa sem futuro? Se a esperança é descobrir-se ligado, encadeado a algo que se

almeja no futuro desde o presente, o desespero é a evidência da ruptura, uma corrente

desfeita, transtornada à condição de elos. Assim, o sentimento de Jó é de que Deus

ilumina um caminho rompido, um corpo roto cheio de pontos, uma vida desencadeada,

acabada369:

Por que se dará al desastrado luz, y vidas a amargos de corazón? (...) a dor sema vida não seria, e a vida com a dor é só para que a dor viva. Pois, para que,disse, vive nesta luz o que é desastrado, já que não retira nada mais do viver senão o sentir do desastre?E vidas, disse (assim a língua hebraica chama o viver no plural), ou porque nossavida é uma coisa remendada e como feita de diferentes pedaços, que hoje se vivede uma maneira e amanhã de outra, e cada dia da sua, agora alegre e logo triste, edepois enfermo, e já moço, já homem, já grisalho, já velho, e não existe nenhumtão constante em seu ser, que de uma hora para outra se pareça a si mesmo370.

3.3. ANTES DE RAMIFICAR

369 Esperança (…) para a Escritura é não acabar-se alguém totalmente, quando se acaba, senão deixar raízesde si, ou em seus sucessores ou em suas memórias e feitos ou em seu próprio ser, para depois florescer.LUIS DE LEÓN. (1991b), p.255.370 IDEM, p.78.

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Jó estava ligado a Deus – libertador de cativeiros – seu Senhor. Um Deus que

disse e Jó obedeceu371. Um Deus que ditou uma lei e Jó cumpriu, um Deus que prometeu

e Jó acreditou. Ele não foi perseguido desde fora por alguém que não o compreendia, mas

açoitado por Aquele que vivia em seu coração e que agora desde o seu coração, lhe batia;

que infundiu sentido a sua existência e que agora lhe fundia372. O mesmo Deus que lhe

pôs, dispôs não o caminho, mas no caminho o indispôs ao deixá-lo de lado, contudo, sem

permissão para escapar. Segundo Sofar, Jó tem um lugar para ficar, mas não para se

proteger373 - está como presa numa teia de aranha:

Aquilo em que se apóia é fraco, quebradiço e enganoso, e não recebe reparo,como é a casa da aranha, que nem a que a tece pode com todo seu artifício fazercom que dure, nem os outros que dela serão presas, encontrarão coisa que ossustentem, senão que os enlacem e enredem374.

Assim, Jó emaranhado numa promessa sem futuro maldiz o dia de seu nascimento e a

noite de sua concepção, já que com esta o homem adentra na órbita da esperança375.

Portanto, insuflada a vida camuflada a esperança. Ali ela está posta antes mesmo que o

rebento veja a luz, antes que em seu corpo se forme a órbita onde seus olhos descansarão.

Assim, se no momento da concepção acoplou-se a esperança e se esta foi se perdendo de

Jó no transcorrer de sua vida e, como o tempo não torna ao se entornar:

Clamó Job, y dijo: Perezca el día en que yo naciera, y la noche que dijo:Concebido varón! (...) Diz-se aqui pereça, e nos versos que se seguem, seja,busque, resplandeça, enturve, more e assombre que são palavras de tempo

371 “Obediência – ob e audio: executar imediatamente a ordem que escutou. Em árabe a expressão quedesigna obediência é um giro de duas palavras que significam ‘ouvido e feito’, correspondente ao nosso“dito e feito”. ORTEGA Y GASSET. (1935),p.213.372 Quanto a isso nada tão surpreendente, pois como nos recorda CAMUS: “Existe um fato evidente queparece inteiramente moral: um homem é sempre presa de suas verdades”. (1983),p.49.373 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.222.374 IDEM,p.174.375 AGOSTINHO. (1992), p.16.

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presente, e no original são de futuro, temos que entender que fala de coisapassada, como se dissera, perecera, fora, buscara, resplandecera, enturvara,morara, assombrara, porque o sentido do que afirma lhe pede, e é próprio dalíngua original deste livro com as palavras de futuro significar, ou o presente ouo passado, o que é mais conforme ao propósito; pois para o dia que já passou enão há de ser mais, e para o que não quisera ter vindo à vida, mais correto édesejar que perecera, isto é, que não viesse esse dia antes que fosse, do quedesejar que pereça o que já teve fim e não tornará a ser outra vez376.

A dor vai rompendo Jó de tal maneira que ele já não consegue imaginar que ela

cesse com a chegada da morte. Como a dor dele tem um toque de Deus, enquanto houver

Deus persistirá a sua dor. Contudo, se morrer doendo, doeu até a morte, doeu para

sempre, viveu para doer. Mas, mesmo que sua vida persista num outro plano após a sua

morte, quem terá criado esse plano377? De um modo ou de outro que possa conceber sua

vida acredita que está e continuará sendo visto (perseguido) por Deus. Com a morte pode

ser dado um salto fora do tempo, mas não necessariamente para um ponto de fuga

distante da dor.

Y adónde agora mi esperanza? Y mi esperanza quién la verá? Parecendo dizer:que esperança me queda ou aonde colocarei minha esperança? Se não é no quelogo acrescenta.A rincones de fuesa; si habrá sobre polvo folganza? Quer dizer, que a põe nafossa e nos rincões da sepultura; e ainda duvida se repousará ali, tendo setornado pó378.

Que puedo ya esperar, pues ya la telade mi vivir y bien está cortada,y en mi daño lo malo y duro vela?La sepultura espero arrinconada,su lóbrego secreto tenebroso;y aún dudo si mi suerte allí cerrada,y, vuelta en polvo, alcanzará reposo379.

376 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.68.377 La mención del otro mundo infernal, del sheol, palabra específicamente hebrea, es frecuente en elAntiguo Testamento. LE GOFF. (1989), p.40.378 LUIS DE LEON. (1991b),p.304.379 IDEM,p.306.

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Então, como não estar no rastro da dor? Escapar da fulminante mirada de Deus. Mas,

como fugir da visão de um Deus onividente? Jó projeta retroativamente: não poderia ter

recebido o primeiro toque, não poderia ter sido moldado. Pensa - as razões dos angustiados

são sempre cortadas380 - que a única maneira de não doer era não ter sido criado, não ter

recebido figura para ser visto desde sempre pelo Artífice. Por isso, Jó clama pela

anterioridade de sua criação supondo que se tivesse escapado do molde - e por

conseguinte do olhar de Deus - não teria adentrado na órbita da espera. Mas a única coisa

que consegue desejando não ter nascido é renegar seu pai e sua mãe (provocando ainda

mais a ira de seus amigos, respeitosos que eram à linhagem), pois que os “olhos de Deus

são dez mil vezes mais brilhantes que o sol, que observam todos os caminhos dos homens e

penetram os rincões mais ocultos. Antes de serem criadas, o Senhor conhecia todas as coisas, e,

depois de acabadas, ainda as conhece”381. Somado a isso, só uma dor extrema para permitir

que irrompa um desejo tão retroativo quanto irrealizável, pois ao ser humano lhe é dado

vida e morte, mas não a possibilidade de não-nascer depois de ter nascido382. A dor de Jó

o fazia querer esquecer aquilo que Dante formularia da seguinte maneira: Eu tinha os pés

naquela parte da vida, mais além da qual é impossível ir com intenção de retornar383. E aqui não

se trata de compreender como parte ou fração de uma vida, mas o de tomado parte da

vida. Assim, Jó não tem ponto de fuga, pois que em qualquer ponto Deus aponta para ele

380 IBIDEM,p.301.381 Eclo 23,19-20.382 Este tema também foi desenvolvido no livro do Eclesiastes. Na tradução deste livro feita por sãoJerônimo podemos ver o seguinte comentário do Ecl 4, 2-3: Eu glorifiquei aos mortos que já morrerammais que aos vivos que ainda vivem. E melhor que ambos o que ainda não nasceu e que não viu a obramá que feita baixo o sol. (...) Melhor que estes dois, quer dizer o vivo e o defunto, é o que ainda nãonasceu. Em efeito, um sofre o mal, o outro escapou desnudo como de um naufrágio. Além disso, o queainda não nasceu é mais feliz por isto, porque ainda não experimentou o mal do mundo. Melhor dito: nãoque o que ainda não nasceu exista antes de nascer e nisto seja mais feliz, porque ainda não foi gravado como corpo, senão que é melhor não ser em absoluto e não ter o sentimento da substância, que ser ou viverdesgraçadamente. (2004), p.427.383 Cf.VON BALTHASAR. (2000), p.45.

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já que Deus está em todos os lugares (modernamente sugere-se que é o pio que O põe em

todos os lugares).

A negação do dia do nascimento é desenvolvida por todo capítulo 3 do Livro de

Jó a qual Frei Luis de León faz a seguinte recriação poética:

Al fin, creciendo en Job el dolor fiero,gimió del hondo pecho y, convertidoal cielo, lagrimoso habló el primero. Y dijo maldiciendo: “Ay!, destruídoel día en que nací y la noche fuera,en que mezquino yo fui concedido. Tornárase aquel día triste en fieratiniebla, y no le viera alegre el cielo,ni resplandor de luz en él luciera; Tuviérale por suyo en negro velola muerte rodeada, para asientode nubes, de amargor, de horror, recelo. Y aquella triste noche no entre en cuentocon meses ni con años, condenadaa tempestad escura y fiero viento. Fue noche solitária y desastrada,ni canto sono en ella ni alegria,ni música de amor dulce, acordada. Maldíganla los que su amargo díalamentando maldicen, los que hallaronal fin de su pescar la red vacía. En su alba los luceros se añublaron,el sol no amaneció, ni con la auroralas nubes retocadas variaron; Pues de mi ser primero en la triste horano puso eterna llave a mi aposento;y me quito el sentir el mal de agora. Por qué no pereci luego, al momentoque vine a aquesta luz? Por qué, salidodel vientre, recogí el común aliento? Por qué de la partera recibidoen el regazo fui? Por qué a los pechosmaternos fui con leche mantenido? Que si muriera entonces, mil provechostuviera; ya durmiendo descansara,pagara ya a la muerte sus derechos. Con muchos altos reyes reposara,con muchos poderosos, que ocuparonlos campos con palácios de obra rara; Y con mil ricos hombres que alcanzarondel oro grandes sumas, hasta el techo

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en sus casas la plata amontonaron. Oh, si antes de nacer fuera deshecho,y cual los abortados niños fueraque del vientre a la huesa van derecho! A do, repuesta ya la vista fiera,el violento yace, y los cansadosbrazos gozan de holganza verdadera; A do, de las prisiones libertadosestán los que ya presos estuvieron,sin ser del acreedor más aquejados. Los que pequeños y los que altos fueron,mezclados allí son confusamente;no tienen amo allí los que sirvieron. Que para qué ha de ser el sol luciente un miserable? Y para qué es la vidaal que vive en dolor continamente; Al que desea ansioso la venidade la muerte que huye, y la persiguemás que la rica vena es perseguida: Al que se goza alegre, si consigueel fenecer muriendo, y si le es dadohallo la sepultura, aqueso sigue; Al que es, como yo, triste, a quien cortadole tienen el camino, y uno a unolos pasos con tinieblas le han cerrado? Mi hambre con sospiros desayuno;y como sigue al trueno, a mis gemidosasí sigue uma lluvia de importuno. Lloro, que me consume. Ay! Cuán cumplidosveo ya mis temores!; cuán ligeros,cuán juntos en mi dano y cuán unidos! En qué mereci yo males tan fieros?Por dicha no traté templadamentecon el vecino y con los extranjeros?Y soy ferido ansí severamente!”384

3.4. O SILÊNCIO E O LIVRO

Desesperado com o silêncio divino, aferrado num debate com seus amigos – que

logo veremos o motivo – Jó suplica:

Quién me diese agora, y fuesen escriptas mis palabras; quién diese en libro, yfuesen esculpidas!Con péndola de fierro y plomo para siempre en pena fuesen tajadas!Yo conozco que mi Redentor vive, y que a la postre sobre polvo me levantaré.

384 LUIS DE LEÓN. (1991b),pp.83-85.

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(...) Al cual yo veré por mi, y mis ojos le verán, y no extraño esta esperanzareposa en mi seno385.

Esta passagem seria suficiente para negar a nossa afirmação anterior de que Jó

teria perdido a esperança sem perder a fé. Frei Luis de León sugere em seu comentário

que Jó recorria ou anunciava Cristo ao referir-se ao Redentor386. Leitura compreensível

para o século XVI ainda suficientemente influenciado pela interpretação tipológica da

Sagrada Escritura. Contudo, Jó nesse momento não afirma “Eu sei que meu Redentor

vive... e esta esperança em meu seio repousa”, mas sim que gostaria de escrever isso em

livro. Reescrito o livro, outra seria sua crença, esculpidas outras palavras, outra lei

surgiria. Em pedra ou pergaminho387 contaria uma outra história sobre a relação da

criatura com Deus. Compor a esperança num livro, sugerir uma outra manifestação de

Deus através da letra. Através da composição daria razões a sua esperança, mas por

conseqüência ‘duplicaria’ Deus no momento mesmo que o pusesse como Redentor já que

a este se cotejaria o Deus que lhe espantava. Se por um lado pôr no livro certifica, por

outro sugere que as coisas não estejam tão certas fora dele, como ocorre com os contratos

que avalizam justamente porque as partes desconfiam uma da outra. Em função disso Jó

diz que “gostaria de”, pois sente o que representaria (e) ditar Deus. Contemporaneamente,

385 IDEM,p.319.386 LUIS DE LEÓN esclarece que redentor no original é goel que significa ‘o que por gratidão livra o outroou de dívidas, ou os bens dele pagando o preço necessário’. (1991ª), pp.327-329. Como JERÔNIMOacredita que aqui se encontra uma profecia a respeito da ressurreição dos corpos. (1993), pp.495-496.387 “Os caracteres escritos eram chamados em grego grammata, e em latim litterae. A palavra grammaexpressa melhor o caractere gravado, esculpido em pedra com cinzel, enquanto que littera parece ser apintada. E existe muita diferença do caractere gravado, cinzelado, para o pintado. Com o cinzel, em efeito,é mais fácil fazer ângulos que curvas, e de aí que os caracteres gravados em pedra sejam retilíneos.Pintando, pelo contrário, é mais fácil a curva do que o ângulo. Nossa A maiúscula é um caractere retilíneo,gravado, escavado em pedra, e a minúscula a é o mesmo caractere curvilíneo, pintado. (...) [De igualmaneira] não existe também entre os homens alguns que possuem caráter maiúsculo, retilíneo, gravado, eoutros um caráter minúsculo, curvilíneo, pintado? O que não quer dizer, claro, que aquele tenha maiorduração. Existem papiros que têm durado muito mais que inscrições em pedra; tem papel ou pergaminhoem que a tinta resiste mais que incisões em granito”. UNAMUNO. (1998),p.86.

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vemos uma ressonância dessa experiência – de pôr no livro - numa nota de Jean Paul no

título de um de seus escritos ‘Discurso de Cristo morto, no qual, sobre o edifício do

mundo, proclama que Deus não existe’:

Se um dia meu coração fosse infeliz e estivesse apagado, até o ponto de que todosentimento que afirma a existência de Deus estivesse destruído, então, graças aeste escrito meu, me recobrarei, e ele voltará a me curar e me restituirá essessentimentos388.

3.5. A DOR INJUSTIFICÁVEL

Até aqui demos algumas pistas a respeito da fragilidade, da dor, da esperança, do

abandono que Jó se depara. Pusemos como catalisador dessas enunciações o capítulo 3 da

obra onde Jó renega o dia de seu nascimento. Contudo, ao prorromper aquele grito após

sete dias e noites de silêncio – que aqui se refere às palavras e não aos sons já que ele

gemia de dor – enfim, fala: a palavra urgia, surgia, insurgia já que palavra que se forma na

boca é imagem do que o ânimo esconde389. Mas, neste falar inicial Jó não se refere a Deus,

não pede satisfações, só diz que dói e que, fundamentalmente, para viver daquela

maneira, melhor que não tivesse sido concebido. São seus amigos que relacionam o doer

de Jó com alguma falta que ele pudesse ter cometido. A dor expôs Jó. O primeiro de seus

amigos, Elifaz, ao tentar encontrar uma justificativa para a mesma, atiçou-a; já que

geralmente o que dói não aceita que sua dor seja justificada, pois para ele a dor é injusta

por si mesma e assim injustificável, já que ela não ajusta. A dor é desajustada, é

desajuste. Em contrapartida, qualquer sofrimento é aceitável na claridade390. Aqui o primeiro

nó: como esclarecer a dor sem justificá-la ao doente? É possível esclarecer a dor para

388 JEAN PAUL. (2005),p.45.389 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.773.390 WEIL. (1998),p.15.

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aquele que dói? Ou esclarecê-la é (ger) miná-la e aquecê-la? Portanto, encontrar uma

motivação para a dor é aquiescer. E o que dói não quer explicações a respeito da dor que

padece, ele chama e clama a cura ou o abandono, procurar é estar a meio caminho e não é

garantia de encontro. O doente já está muito cansado, combalido para fazer e desfazer

caminhos, ele não pode com as mediações, elas sobrepesam. Inicialmente, o que Jó

expressa não é um discurso sobre a dor mas um grito surdo, pois que qualquer outro som,

voz ou fala assume para o que dói a mesma condição que a dele: ruído. O inusitado: o

doente grita e não escuta e, grita por não poder escutar. Em contrapartida, Elifaz não pode

silenciar e interroga:

Por ventura si tentáremos hablarte, cansarás, y detener palabras quién podrá?No original diz-se: si acaso tiento palabra a ti, cansarás; quer dizer que está emdúvida e que teme que qualquer palavra que toque o ouvido de Jó, e qualquercoisa que se lhe seja dita, lhe cause nojo; mas que não lhe é possível calar. (...) eo tentar palabras é nisah, que é propriamente tirar prova das razões que sedizem e examiná-las argüindo a respeito delas391.

O doente terminal: aquele em que a dor mora e vai exterminando pouco a pouco todos os

vícios e virtudes que namoravam nele antes da chegada daquela. A dor põe fim a todos os

vícios e virtudes filhas da cultura, naturalizando o homem e descerrando a amoralidade da

vida. A dor fulmina o que ocorria, expulsa antigos moradores, mora, demora e, por fim,

implode a morada e a mirada. O que nos motiva essa pequena digressão é a intuição de

que o que os amigos oferecem a Jó é justamente uma referência com a qual ele possa

lutar, para que surdo não descambe em absurdo e atinja um plano inalcançável que é,

enfim, uma “situação” sem referências. Jó não suporta a dor que corrói seus ossos, que

perfura suas entranhas e que mareja seus olhos afogados em lágrimas:

391 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.88.

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En noche de dolores es horadado mi hueso, y los que me comen no duermen. Opensamento me aflige e a dor, diz, nem de noite descansa. E diz dolores, porquenão padecia uma dor somente; e afirma que lhe horadan los huesos, para dizerque são penetrativos e não se limita a sua carne.E los que me comen no duermen; que são, ou essas mesmas dores que lheconsomem, porque nada desgasta nem consome mais que a dor; ouverdadeiramente são os vermes que, combalido, criava, os quais, diz, que semparar lhe comiam a carne e velavam comendo-lhe enquanto todos dormiam392.

Em contrapartida seus amigos não suportam ouvir Jó proferir blasfêmias. Assim temos,

dói ainda mais em Jó a tentativa de seus amigos em justificar a dor dele; e dói nos amigos

de Jó a dor injustificável tornar-se justificativa para se afirmar qualquer coisa:

Veis? Avisabas a muchos y manos flojas afirmabas. (...) Veis, disse. Esta palavra Veis, na Sagrada Escritura, por vezes é significação de algo admirável e é sinalde novidade e de espanto; outras, de desprezo e mofa, como neste lugar. Porqueofendido Elifaz pelas palavras de Jó, de certo modo lhe despreza, e com umrisinho falso e como torcendo os olhos a seus amigos e meneando para Jó acabeça. Vês, disse, o que se tornou a santidade deste homem? Quão diferente é ofazer do dizer! Que grande aconselhador e que ruim sofredor! Que grandemédico para outros e quão pouco sábio para ti mesmo!393

“Que grande aconselhador e que ruim sofredor!”, Jó dirá algo similar ao responder Elifaz,

contudo, sem considerá-lo um grande aconselhador. Em comum, neste momento, eles

têm somente o não saberem sofrer: em verdade, os dois lados da contenda ignoram os

motivos. Nenhum deles sabe o que deflagrou aqueles movimentos. A interpretação mais

comum no meio cristão desta obra sapiencial é a que lia e lê o livro de Jó referindo todo o

sofrimento de Jó a uma prova solicitada por Deus. O leitor da obra tem ciência da

“prova”, mas Jó e seus amigos não. Ser provado já impõe um sentido qualquer aos

acontecimentos, pois se supõe que à prova se sucederá o alimento. A prova para o leitor

392 IDEM, p.468.393 IBIDEM, p.89.

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é provação para Jó e reprovação de seus amigos (Todos estão sendo provados por Deus:

mas onde desembocará esta prova? Outrora, a travessia do deserto foi motivada do

começo ao fim: caminhar sem olhar para trás e para os lados para não se deixar seduzir.

Seguir o rastro do vento que vem detrás para frente parecendo empurrar e animar aquele

que caminha – desfazendo a lógica do olfato faminto que costuma dirigir-se contra o

vento para encontrar o sustento. Vento que conduz nuvem que nubla o céu, retirando o

sol, estirando a caminhada até o lugar onde ela quebrará e lançará sobre a terra sementes

líquidas que ao se misturarem ao suor dos caminhantes fará romper do solo, no final da

rota e das provas, o alimento). Não existe esta sintonia em Jó. Com Jó o absurdo através

da dor, a nuvem descambou em neblina, a dor não encaminha nem travessa nem lança,

pois que o atravessa como lança. A circunstância de Jó nos remete a uma formulação de

Kafka: o que chamamos caminho é vacilação394.

A fala de Jó – fruto de sua dor inconclusa – é percebida pelos amigos como uma

retórica da dor395, típica de alguém que não quer expiar uma culpa. Por conseguinte, as

proposições deles, ao pressupor a culpa, vêm carregadas de condenação396. Jó afirma que

tem a consciência tranqüila e isso só faz aumentar o estupor diante de sua situação.

Por no violencia de mis manos, y oración mia limpia. (...) E Jó disse assim: tudoa que me referi padeço, e se tivesse pecado ou se merecesse um castigosemelhante, seria medicina necessária, e passaria; mas não me acusa aconsciência, nem de fato nem em meu peito397.

394 KAFKA. (2005), p.49.395 Entendendo a retórica no sentido apresentado no Protágoras de Platão, qual seja, ‘torna forte o que édébil’, o termo não tomaria um contorno pejorativo já que aqui se trata exatamente disso: saber-se fraco ealentar-se com a fala mais forte possível. Cf. KOYRÉ. (1966), p.51.396 Talvez seja melhor compreendido se estiver certa a seguinte formulação de LEOPARDI: “A vingança docéu, as injustiças dos homens, os danos, as calamidades, as enfermidades, os reveses da fortuna, eram malesque se atribuíam ao que os padecia (de fato, diferente do que se pensa agora, a mescla da superstição comos sentimentos e opiniões naturalistas fazia [os antigos] ver ao desgraçado como um ser perverso e odiadopelos deuses, e pelo que sentiam mais ódio que compaixão). (2000), p.58.397 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.292. grifo nosso.

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Y no porque mis manos con despojosajenos ensucié; que al cielo purasde agravios las alcé siempre, y de enojos398.

3.6. O DESLIGADO E A JUSTIÇA

Os amigos afeitos e afetados pela tradição da Lei não estavam em condições de

aceitar que a consciência de Jó fosse critério de sua lisura já que a consciência denega

acesso ao outro, por conseguinte, põe em risco a lei que a princípio liga ou deveria ligá-

los.

Endemás, por ventura aborreciente juicio ligará? (...) A palavra ligará, nooriginal é iachabós, e quer dizer em sua primeira significação ligar ou vendar. Edaí algumas vezes é tomada por reinar e mandar, por quanto o que manda egoverna ata e liga de certa maneira com sua lei aos súditos; e a lei, em latim,afirma exatamente isto, coisa que liga, como ensinam os mestres daquela língua.Outras vezes, que é o mais comum, significa curar feridas na maneira que ocirurgião as cura com ligaduras e vendas399.

De um lado os que sugerem que a lei foi subtraída, de outro o que se sente

executado através da lei e que só tem a consciência como ‘testemunha’, pois todas as

outras testemunhas possíveis foram retiradas de sua presença. Já que a consciência de Jó

não é suficiente segundo a lei para testemunhar justiça e tampouco a lei tem meios para

implorar consciência, torna-se necessário que a testemunha seja alguém que tudo vê e

ouve que esteja por todos e por ninguém: um juiz supremo. Assim posto, Jó não tem

quem o defenda e a esse respeito dirá Elifaz:

Llama, disse, si hay quién te responda; y a quién de los sanctos te volverás?Como dissessem: se não basta o que foi dito, volte os olhos ao redor; ou sequeres, alça a voz e llama para ver se acaso encontrarás alguém que te responda,isto é, que consinta contigo ou que em algo te favoreça ou sequer te desculpe

398 IDEM, p.296.399 IBIDEM, p.548.

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com ânimo. Quer dizer: se ninguém te defende, todos te culpam; e se todos teculpam, tu, sem dúvida, és culpado, porque não pode ser que todos errem. Dessemodo busca, e não somente busca, senão llama a voces, que é melhor paraencontrar o buscado, para ver se existe alguém que te dê razão. E se afirmas quenão hás pecado (...) mostre-me algum santo açoitado da maneira que agora tu és,alguma vida empregada em virtude e rematada em dor e miséria. Y a quién de lossanctos te volverás? Isto é, que homem santo apontarás que tendo-lhe ocorrido oque te ocorreu ou se acaso ocorresse com ele, tenha se justificado como tu tejustificas ou dado tanta liberdade a sua língua?400

Jó esclarece a posição dos amigos e vice-versa. Eles esperam que Jó lhes ofereça

uma testemunha judicial (ocular e auricular), em contrapartida, a liberdade dada a sua

língua enunciada acima por Luis de León em seu comentário demonstra que para Jó

testemunhar assume um sentido diverso que já não é delato de algum acontecimento, mas

dilato de uma verdade que torna pública uma palavra interior: por isso, o que dá testemunho

de uma verdade na ordem dos valores e do obrar humano está disposto a sacrificar a liberdade de

viver à liberdade de falar401. A dor ao corroer Jó rói a liga (da lei) sem invalidar a palavra,

pois o que está deposto do jogo são os decretos que pretendem iluminar os secretos

humanos; noutras palavras, não se nega a importância da lei, mas o equívoco de utilizá-la

para nortear sentimentos. Seguindo a referência de Luis de León a respeito da lei como

venda, teríamos que é ela que está posta sobre os olhos da justiça enunciando assim que

só resta àquele que quer ser justo desenvolver a sensibilidade para ouvir relatos, impedido

que está de ver.

Em Jó a dor arrebenta e arrebata, ela necessita ser dita, ser exposta e por se tratar

da expressão de uma fenda impossibilita-o de defender-se. Mas, ao tentar nomear o que

sente (ciertos dias, segundo René Char, no hay que tener miedo a nombrar las cosas que no

pueden ser descritas402) não se compreende como não é compreendido: traduzir é pleno,

400 IBIDEM, p.108.401 GEFFRÉ. (1984), p.111.402 cf. MARION. (1999), p.33.

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penoso. E por que, além disso, Jó não pode entender-se? A dor é denominada extrema

por transbordar, o paradoxo da dor extremada é que ao ultrapassar a borda torna esta

irrelevante, assim o que dói já não pode abordar-se e sem bordas já não é possível

discernir dentro e fora que neste caso específico diz respeito à consciência e à lei,

respectivamente. Na ‘dissolução’ da fronteira Jó dirá:

Yo mismo no estaré cierto y seguro de mi justicia misma; lo más claro de mi vida tendré por más oscuro403.

Contudo, acima nos referíamos a publicação de uma palavra interior. Como

conciliar essa imagem com a dor que dilui, ao transbordar, o limite entre o interior e o

exterior? Se esta estiver correta não é possível haver exteriorização já que negado o

contraste nega-se a passagem e onde não tem remédio, mediar é negócio perdido404. Isso faz

lembrar o título do livro de Thomas More escrito enquanto esteve encarcerado na Torre

de Londres denominado: Diálogo de la fortaleza contra la tribulación – escrito por un

húngaro en latín, y traducido del latín al francés, y del francés al inglés, já que aqui se

trata de tentar traduzir a dor sabendo que a cada tradução algo se perde, algo se trai.

Melhor dizendo, não é um algo, mas alguém, já que o maior risco não é o de errar a

palavra, mas acertando-a sobrepujar aquele que dói405 (esquecido já não aquecido,

acolhido): a dor bem retratada, não trata o doente – retrato sem tratamento. Em

contrapartida, quando não toma forma definida o que resta é o doente na sua crueza

dissoluta e incômoda, em lugar do retrato, o recorte: um gemido insistente sem nenhum

mistério, sem nação, sem noção, uma inanição que somente precisa e não pode dar, não

403 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.198.404 IDEM, p.195.405 Quanto a isso, afirmou UNAMUNO: “Não existem enfermidades, mas sim enfermos”. (1952), p.11.

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tem raça, não tem cor e não tem sabor. É em função disso que Elifaz relativiza a dor de Jó

já que ele pode contar a falta através da palavra - não é um desditado, pois dita alguma

coisa – enquanto a tantos outros a dor torna a palavra falta: o que não sabe o que lhe passa,

faz memória para salvar a interrupção de seu conto, pois não é inteiramente desditado o que pode

contar-se a si mesmo sua própria história406. Assim temos, neste contexto, quatro variações

na relação entre a palavra e a falta: uma dor tão intensa que a palavra falta (gemido), uma

palavra que expressa uma falta (perda), uma palavra que é uma falta (erro) por ser

imprudente e uma que é falta (pecado) por ser desobediente. Sobre o palavrear faltoso

Elifaz dirá:

De cierto tu temor, tu fortaleza, tu paciencia y perfección de tus carreras. Osentido aqui não está completo e pede que algo lhe seja acrescentado, econforme a isto será esta sentença. E o primeiro que convém advertir é que ondedizemos fortaleza, a palavra original ciselah, quer dizer, confiança demasiada, etambém imprudência; porque geralmente os néscios são demasiadamenteconfiados, e a imprudência não é outra coisa senão uma grande confiança de si,nascida de não conhecer-se a si. E nem mais nem menos onde se diz paciência,no original também quer dizer esperança, de quem nasce a paciência, que não éoutra coisa senão uma larga esperança. Isto pressuposto, se está dito: Tu temor,tu fortaleza, tu paciencia y perfección de tus carreras, temos que acrescentar,era burlería [burla] sin duda, como pode ser visto. Parecias bom, mas não eras.A experiência mostrou que nem temias a Deus de verdade, nem eras forte nemsofrido quanto parecias, e que não eram santidades, senão beatarias as tuas; quese hubieras sido bueno, fueras paciente agora407.

Enquanto Jó gemeu seus amigos velaram, mas a partir do momento que a palavra

irrompeu, ao pesar e apesar da dor, com certa coerência, seus amigos puseram-se a

rebater o que Jó novelava, já que não podiam crer que as palavras de Jó estivessem

regadas ou carregando revelação divina. Noutras palavras, a partir do momento que Jó

arrebenta o gemido e encerra-o através da palavra já não pode utilizá-lo para proteger-se

406 ZAMBRANO. (2005), p.24.407 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.90.

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das rebatidas de seus amigos. Enquanto a dor reduzia a resistência e induzia ao gemido e

o revolvia, impedindo o dito, os amigos ofertaram o silêncio, mas quando a redução foi

pouco a pouco se traduzindo e tomando forma, seus gemidos já não podiam ser

capitalizados a seu favor, pois se como afirmávamos acima os decretos não podem

iluminar os secretos humanos, em contrapartida, esses ‘segredos’ – mesmo que dolorosos

– tampouco iluminam o que é ou não justo. Assim teríamos que a dor não é

necessariamente fruto de uma injustiça408.

Faz-se necessário descobrir o que ou quem ocasionou a dor. Contudo, se estiver

certa a afirmação de Maimonides, comentando o livro de Jó, de que nenhum ser sensitivo

se mostra impassível diante da dor409 e, por sua vez Eliú – no livro de Jó - infere que se eleja

neste negócio ao juízo e não à paixão410, como encontrar um ponto médio em que se torne

possível ajuizar na presença da dor? Sofre-se com a dor como sofre-se uma injustiça, mas

quando se trata de justiça afirma-se que ela é ou foi feita: fazer justiça, sofrer uma

injustiça. Fazer, sofrer. Agir, sofrer: “o mais claro de minha vida terei por mais escuro”.

E qual o dia mais claro senão o dia do nascimento, o dia em que a luz dada, choca! Sofre-

se: o nascimento, com a dor, uma injustiça. Maneira de superar a injustiça (sempre

408 Para AMBRÓSIO existe um modo de discernir o justo do ímpio: “O justo nota a sua fragilidade maisque o ímpio e o prudente conhece suas fraquezas, enquanto o nécio não as reconhece. Daí que o sapientesofre com os próprios erros e o nécio nada retira deles; o justo acusa a si mesmo, o injusto se defende; ojusto deseja prevenir o acusador confessando o pecado, o injusto deseja ocultá-lo. Um ao iniciar o discursovai adiante para revelar o próprio erro, o outro com a superabundância de suas palavras ilude quem lheacusa para não ser descoberto”. (1980), pp.155-157. O interessante no livro de Jó é que a clareza dadefinição não esclarece a situação, pois o que os amigos alegam é que Jó, por tudo o que Ambrósio afirmoua respeito, está sendo injusto.409 MAIMONIDES. (1983), p.438. 410 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.538.

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sofrida?): agir411. Contudo, se a justiça é feita e Deus é o Fazedor, poderá o homem agir,

ou seja, fazer justiça?

Por ventura varón más que Dios se justificará? Si más que su Hacedor selimpiará varón? Disse-lhe não ser possível que o homem seja mais justo queDeus, o qual por donde quer que se olhe é verdade. Porque se pode entender deduas maneiras: ou comparando ao homem com Deus, ou sendo de Deus julgadoo homem. Na comparação é o homem como nada, e no juízo de luz tão puraqualquer falta sua forçadamente se vê412.

Na continuação desse comentário frei Luis de León afirma que Elifaz ‘colige disto [o

supracitado] que é verdade o que não é, e condena de culpa a Jó sem tê-la’. Mas, o curioso

nesta situação não é Elifaz ter acusado (culpa) Jó como também não teria sido mais justo

se afirmasse que Jó não tinha cometido erro algum. A incoerência não reside na correção

ou não da opinião de Elifaz a respeito de Jó, mas sim na pretensão de emiti-la como se

tivesse de antemão conhecimento, como Deus, das motivações. Quanto a esse ponto Jó se

diferencia de seus amigos já que a partir do que vivencia demonstra uma relação bem

diversa com Deus: onde Jó interroga para clarear413 os amigos respondem para certificar,

por conseguinte os rogos de Jó são compreendidos por eles como manifestação de

arrogância, bem como, seu modo “roto” de expressão evidencia sua falta de retidão e suas

lamúrias a fraqueza de sua fé. De uma daquelas perguntas esclarecedoras feitas por Jó,

frei Luis de León tecerá tantas outras:

411 “Filosoficamente falando, atuar é a resposta humana à condição da natalidade. Como chegamos aomundo em virtude do nascimento, enquanto recém-chegados e principiantes somos capazes de começar algonovo; sem o fato do nascimento nem sequer saberíamos o que é a novidade, toda “ação” seria bem merocomportamento. Nenhuma outra faculdade exceto a da linguagem, nem a razão nem a consciência, nosdistingue tão radicalmente de todas as demais espécies animais. Atuar e começar não são o mesmo, porémestão intimamente relacionados”. ARENDT. (2005), pp.111-112. Ou como escreve GREGÓRIO DE NISArecordando uma passagem de Aristóteles: “estar sujeito a câmbios é um nascimento contínuo”. (1993), p.67.412 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.98.413 METZ. (1996),p.18.

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Pequé: que faré a ti, Guardador de los hombres? Por qué me pusiste porencuentro a Ti, y fui sobre mi por carga? (...) Porque diz: se assim pequei (Vós,Senhor, sabeis o contrário); mas pressuponhamos que seja como aqueles medizem; pergunto: que pecado é o meu para que, o que não fizeste com pecador,me cerrasse ao que parece a porta do alívio e remédio? Que fiz eu, pecando, maisque outros que pecam, que merecesse um desamparo tamanho? Ou já que pequei,o que farei para amansar vossa ira, mais do que faço e tenho feito? Abraçaste-mea fazenda; bendito seja. De um golpe me levastes os filhos, que eram a luz deminha vida; bendisse tua bondade. Feriste-me dos pés a cabeça com chagas deenfermidade nunca ouvidas; recebi-os e sofri-os. Todos, mulher, criados, amigos,abominaram de mim; humilde, me abracei com o solo. Se a dor move a lástima,por isso, Senhor, me querelo; se o sofrimento merece perdão, tenho sofrido comouma bigorna; se a humildade vale algo, bem conheces a minha: costumas perdoarao quebrantado, ao afligido, ao açoitado, ao sofrido, ao abatido, ao perseguido,ao rendido diante de Ti e ao humilde; que é de tudo isso o que não encontras emmim? Pois que mais farei, oh Guardador de los hombres? Se me castigaras porculpa, já estarias satisfeito com a paciência e a pena. Bem se deixa entender quenão desembainhou tua espada meu pecado, pois minha humildade não a torna àbainha. É outro, sem dúvida, vosso intento: não o alcanço eu, e assim não atino avaler-me. Ensina-me tu, oh Guardador de los hombres!414

3.7. A QUEM CLAMAR?

Elifaz chama Deus de Fazedor (de justiça) e Jó O chama de Guardador

(Sentinela): não se trata aqui de conceitos de Deus - nesta tradição Ele concebeu sem ser

concebido e desse modo não pode ser conceituado415. Os nomes de Deus são como rastros

de perfume, sinais de presença sem contornos definitivos: meu rosto não poderá vê-lo,

porque ninguém pode ver-me e seguir com vida (Ex 33,20). Contudo, o interessante no

livro de Jó é que essas nomeações são explicitamente denominações, portanto, nomes e

minas já que ao nomear cada qual O encobre416 com tecido diferente, pois: 414 LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.163-164.415 Como posteriormente dirá PSEUDO-DIONISO AREOPAGITA: “Não tem razão, nem nome, nemconhecimento. Não é treva nem luz, nem erro nem verdade. Absolutamente nada se pode afirmar nem negardela”. (1990), p.379. E sob a influência deste dirá NICOLAU DE CUSA: “Me agrada o que disseste ecompreendo perfeitamente que na zona ou nível de todas as coisas criadas não se encontre a deus nem seunome, e que deus evite mais todo conceito do que seja afirmado como algo, supondo que ao nível dascriaturas não seja possível encontrar o que não possui a condição de criatura. E ao nível das coisascompostas não se encontre o não-composto. E todos os nomes com que se nomeia pertencem a coisascompostas. E o composto não procede de si, senão daquele que antecede a todo composto. E, ainda que onível das coisas compostas e todas as coisas compostas sejam o que são graças a ele, sem embargo, ao nãoser composto, é desconhecido ao nível dos seres compostos. Seja, pois, deus, escondido aos olhos de todosos sábios do mundo, bendito pelos séculos dos séculos”. (1977), pp.42-43. 416 “No cierto, atenderé a faces de varón, ni Dios a hombre nombraré”. (...) no texto original corresponde àpalavra nombraré, encubrir ou nomear com nome encoberto ou novo, e que dizemos mudar o nome.”LUIS

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não existe coisa mais próxima e mais distante, mais encoberta e mais descobertaque Deus. Somado a isso, tem vezes que se esconde aos seus com o fim deprová-los; e esconde-se tanto que lhes parece que deles já não se recorda, e Delenão encontram rastro por mais que Lhe busquem e assim padecem a ponto denão poder dizer417.

O texto divino faz-se véu do rosto de Deus. Levado às últimas conseqüências se Deus

fosse exatamente o que um afirma, este terminaria e, o outro por conseqüência seria

exterminado. Somado a isso, no livro de Jó não se trata de um combate entre Deus e um

Baal, mas entre modulações (ondulações) de Deus, portanto, o que aqui se apresenta não

é uma dúvida diante de caminhos que esclarecem seus fins, mas sim, um carecer que

exacerba a pergunta inicial: chama-se por aquele que se quer encontrar, pronuncia-se um

nome; mas ninguém confirma a presença do que está sendo buscado porque não o

reconhece da maneira como ele está sendo chamado418. Pouco a pouco vão se certificando

de que estão falando da mesma pessoa que é diversamente nomeado porque sua presença

é sentida de modo diverso. Mas, concomitantemente, a confirmação vai se convertendo

numa interrogação: todos estão falando de um mesmo Deus? Se a assunção de um dos

nomes de Deus é fruto da intimidade entre o crente e o crido, o que não será para aquele

que dói sentir arrefecer o nome que possibilitava a relação (quebrantada pela interferência

de nomes que não lhe são íntimos, que lhe exaustam porque afirmam o que ele está

impedido de sentir)? Desse modo, o abandono de Jó toma dupla forma: Deus parece não

DE LEÓN. (1991b), p.511.417 IDEM, p.387.418 Para Simone WEIL é este o momento mais relevante: “Basta esperar e chamar. Não chamar a alguém, jáque não se sabe se tem alguém. Gritar que se tem fome e que se quer pão. Se gritará por mais ou menostempo, porém finalmente se será saciado, e então já não acreditará, senão que se saberá que existeverdadeiramente o pão. Quando se comeu dele, que prova mais concludente poderia pedir-se? Contudo,enquanto não se comeu, não é necessário, nem sequer útil, crer no pão. O essencial é saber que se tem fome.Isso não é uma crença, é um conhecimento completamente certo que só pode ser obscurecido pela mentira.Todos aqueles que crêem que existe ou que haverá um dia alimento produzido aqui embaixo seequivocam”. (1995), p.35.

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ouvir seus clamores e ele já não sabe mais como chamá-Lo419, tanto uma coisa como

outra denotam para ele uma perda de intimidade com Deus, em função disso insiste para

que Deus se manifeste, contudo, sem espantá-lo:

Aparte de mí su vara y su miedo no me aturbe. Hablaré y no temblaré, que yoansí no conmigo. Assim afirma ele agora, que estando turbado e ferido tãogravemente por Deus, e vendo-lhe acima continuamente espantável e rigoroso,confunde-se e emudece, e se se põe a falar, diz uma coisa por outra.Aparte, disse, de mí su vara, isto é, seu açoite, que pare de fazer isso; su miedono me turbe, isto é, não se ponha terrível diante de mim (já que por um lado ador das chagas impede-lhe de meditar suficientemente em sua defesa e por outrolado o temor e o tremor tiram o juízo) pois se fizer isso, hablaré e no temeré;terei, afirma, ânimo para falar, e não será só tremores. Que yo ansí no conmigo,isto é, não estou em mim estando dessa maneira420.

Ponga su vara a parte, su crecidasaña no me estremezca; y yo me obligoa entrar con El en cuenta de mi vida;mas ansí como estoy, no estoy conmigo421.

3.8. UMA PRESENÇA QUE ESPANTA

Espanto422 referido por Elifaz e comentado da seguinte maneira por Luis de León:

Pavor me sobrevino y temblor, hizo espavorecer mucho mis huesos. O trato comos espíritos celestiais, em função das vantagens que nos têm e por sua demasiadadesigualdade, naturalmente é temeroso aos homens; porque assim como o igual esemelhante convida à amizade, o desigual e muito avantajado, quando se vê,provoca reverência e espanto; porque todas as coisas por natural movimento se

419 No seu opúsculo intitulado Da busca de Deus, NICOLAU DE CUSA afirma: “Se o homem entrou nestemundo para que busque a deus e, uma vez encontrado, se adira a ele e, aderindo-se a ele, descanse, esuposto que o homem não pode buscar-lhe nem alcançá-lo neste mundo sensível e corporal, já que deus éespírito e não corpo, como também não pode ser alcançado na abstração intelectual, já que não podeconceber nada semelhante a deus: de que maneira, pois, pode ser buscado de forma que seja encontrado?Certamente, se este mundo não servisse ao que o busca, em vão teria sido enviado o homem ao mundo como fim de buscar-lhe. É, pois, necessário que este mundo brinde ao que o busca algum ponto de apoio ouajuda, e é preciso que o que anda em busca dele saiba que nem no mundo nem em tudo aquilo que o homemconcebe existe nada semelhante. (1977),p.48.420 LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.196-197.421 IDEM, p.199.422 Elifaz também dirá a esse respeito: “Por tanto, lazos en derredor de ti, y de súbito te conturba elespanto”, compreendido assim por Luis de León, “e não é mal menor o que disse, quando afirma que desúbito le conturba el espanto, porque em cada palavra encarece que o súbito tira o bem da prevenção, e oconturbar retira a razão de seu lugar, que é o de nossa defesa; e o espanto é pena que não só dói, senão quetraga e que sorve o ser todo”. IBIDEM, pp.371-372.

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aproximam do que é como elas, e se apartam e se esquivam de quem sediferencia por sua excelência. E assim quando algum espírito se acerca dohomem para falar-lhe, mesmo antes de manifestar-se, naturalmente lhe espanta(...) porque é preciso entender que o espírito que aparece para despertar e disporao homem para seu trato, que é tratamento tão diverso do nosso, se dirigeprimeiro a nossos sentidos e humores, ordenando-os como é mister para ser pornós, ou visto ou ouvido; este toque, como é peregrino, agita o sangue no homeme faz temer naturalmente, que é o que disse Elifaz, e o que logo seguedeclarando.Sopló sobre mis faces; pasó y hizo erizar pelos mi carne. E logo:Estuvo y no conocí su vista, semejanza ante mis ojos, callada voz oí.Afirma que, ao fim destes espantos se pôs um vulto diante dele que não pode verdireito como era, mas que logo dirá. É necessário advertir que em sua revelaçãoElifaz põe tempo e circunstância por dois justos motivos: as circunstâncias doocorrido quando contadas tornam mais críveis o que se conta; somado a isso,estas particularidades pela qualidade que têm, não só tornam verossímil o que sediz, mas também lhe acrescentam autoridade e grande majestade. Porque quemouve o horror da noite e o arrepio do corpo, e o tremor do coração, e o soprosobre o rosto, e a figura diante dos olhos grande e escura e o som da voz delgadoe agudo, ele mesmo se estremece e se dá conta de que tudo isso se refere a algodivino423.

No te pregones justo. En mis oídossonó lo que diré, y a malas penascogieron parte dello mis sentidos. Cuando tintas del negro humor las venascarga la pesadilla al hombre, y cuandola noche ofrece formas de horror llenas; Adentro de los huesos penetrandoun súbito pavor me sobrevino,y sin saber de qué quede temblando. Y como soplo, un aire peregrinopasó sobre mi rostro, y cada pelose puso en mi más yerto que el espino. Y apareció ante mi, en oscuro velo,en pie, no supe quién; vi uma figura,oí como una voz que aguza el duelo424.

Luis de León faz referência nesse comentário às três principais características do

numinoso, segundo Rudolf Otto: o tremendo, a majestade e a energia ou cólera425. É um

423 IBIDEM, pp.97-98.424 IBIDEM, pp.104-105.425 OTTO. (2005), p.34. Ou ainda: “Algumas línguas possuem expressões adequadas que designamexclusiva ou preferentemente esse temor especial, que é algo mais que temor. Por exemplo, em hebraicohiq’disch = ‘santificar’. ‘Santificar uma coisa em seu coração’ significa distingui-la pelo sentimento de umpavor peculiaríssimo, que não se confunde com nenhuma outra classe de pavor; significa valorá-la atravésda categoria do numinoso. O Antigo Testamento abunda em expressões equivalentes. Notável é ematJahveh, o terror de Deus, o terror que Yahveh pode emitir ou enviar como um demônio, paralizando os

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espanto que tem uma intensidade comparável ao provocado pelos exércitos. A título de

exemplo, citamos uma passagem de Ésquilo – ‘Os persas’ – onde ele descreve o terror

provocado pelo movimento serpentino do exército de Xerxes, filho de Dario:

Todo o vigor da juventude nascida na Ásia partiu (...) Marcharam deixando paratrás Susa, Ecbatana e a antiga fortaleza de Cisa, uns a cavalo; outros em navios;e a pé, os soldados de infantaria, formando uma massa compacta de tropas deguerra. Tais foram Amistres, Artafrenes, Megabates e Astaspes, chefes persas,reis que são vassalos do Grande Rei, como capitães de um exército imenso, aomando daqueles que vencem disparando flechas, dos cavaleiros que infundempavor só ao ver-los e que são na luta terríveis pela fama gloriosa de suas almastenazes. Tal flor de varões da terra persa se pôs a caminho. Toda a terra asiáticaque outrora os criara geme por eles com intensa nostalgia: pais e esposas,contando os dias, tremem diante de um tempo que vai se dilatando. (...) Com amirada sombria de um sanguinário dragão em seus olhos, comandando milharesde braços e de barcos, corre apressado em seu carro de guerra da Síria, e leva,contra heróis, famosos por sua lança, um Ares que triunfa com o arco. Deninguém se pode esperar que se oponha a essa tremenda torrente de homens, quecontenha com sólidos diques o invencível ondular marinho, pois é invencível oexército persa e seu povo de valente coração426.

Seria o rezar baixinho uma variação desse sussurro temeroso original que demonstra a

impotência diante de algo que nos surpreende e inquieta por sua magnitude e que em

função disso degenera em perguntas? Contudo, não se trata aqui de comparar medos

diversos por contornos adversos, mas de enunciar uma verdade a partir de uma

experiência palpável, ou seja: da mesma maneira que o homem vê suspender todas as

suas certezas na expectativa da perda irreparável – sua própria vida – com a proximidade

dos exércitos, o Deus dos exércitos põe a vida do homem em risco: isso não quer dizer

que Deus riscará o homem do mapa, mas sim que na presença de Deus explicita-se

membros do homem, muito parecido com o deima panikon (o terror pânico) dos gregos. É este terror deíntimo espanto, que nada do que foi criado, nem o mais ameaçador e prepotente, pode inspirar. Palpita nelealgo do terror aos fantasmas. A língua grega o expressa com a palavra sebastós. Os primeiros cristãosperceberam claramente que o título de sebastós não convinha a nenhuma criatura, nem mesmo o imperador,porque era uma denominação para o númen; incorrendo-se, portanto, em idolatria quando se aplicava a umhomem a condição de númen ao chamar-lhe sebastós”. IDEM, p.23.426 ÉSQUILO. (2006), pp.5-8.

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espantosamente para ele o risco que é sua vida, é essa exposição do e ao risco que faz o

homem tremer. Como é na presença de Deus que o risco se evidencia, Deus e o risco

acabam por se confundir e o que teme já não sabe se Deus traz o risco ou se sua vida

corre risco com Deus427.

Esse temor - na evidência da fragilidade - é relembrado quando Deus cita no

momento em que discursa, a behemoth e leviathán (animais de grandes dimensões),

criados por e de Deus:

Ves agora a behemoth; yerba como buey come. Behemoth é uma palavrahebraica, que é como dizer bestias; é lugar comum para os doutores que se tratado elefante, chamado assim por sua desaforada grandeza, que sendo um animalvale por muitos.Ves; fortaleza suya en sus lomos, y poderio suyo en ombligo de su vientre.Expõe a força deste animal e começa pelo dorso e ventre (...) porque como sesabe, os asiáticos, que usavam elefantes na guerra, armavam em cima delesgrandes castelos de madeira, em que ia um grande número de homens armados.De modo que um elefante levava sobre si um castelo e muitos homens sobre ele,o que não seria possível se não tivesse no dorso uma grandiosa força parasustentar tanta carga, e na barriga muito vigor para suportar os nós apertados dascordas com que se ata e firma peso tão grande428.

Por ventura sacarás a leviathán con anzuelo, y con soga atarás lengua suya?Leviathán (...) chamam os hebreus aos dragões [monstros] marinhos, enotadamente às baleias, que entre todos são de inacreditável grandeza. (...)Destes animais fala agora Deus, como de suas obras maravilhosas; porque assima desmedida grandeza de seus corpos, como as figuras extraordinárias de seusmembros, são coisas para espantar e que fazem por mil motivos argumento claroe certíssimo, não só de que Deus sabe e pode muito, senão também do pouco queo homem vale, pois não chega a poder mirar sem temor o que Deus fez tãofacilmente.Disse: por ventura sacarás a leviathán con anzuelo? Através de um sorrisofingido, perguntando a Jó conseguirá pescar, declarando quão distante está de serpreso e pescado, e quão poucas são nossas forças para prender-lhe.Con anzuelo, disse, porque o anzol é para peixes pequenos; e assim, perguntaristo para um peso tão grande, é dizer a Jó que todo o seu poder e saber a respeitodisto é menos que anzol.Y con soga atarás lengua suya. Os pescadores costumam atravessar pelasbrânquias alguns peixes medianos, e é isto o aludido aqui. Em suma, pergunta sechegará seu saber a prender a baleia, ou con anzuelo, como a peixe pequeno, ou

427 É digno de nota que este modo de interpretar a presença de Deus é possível no livro de Jó, mas noutroslivros do Antigo Testamento a presença de Deus é considerada como causa de uma fatalidade.428 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.663.

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con soga, como a mediano; como dizendo que nem é pequeno nem mediano, masexcessivamente grande429.

3.9. DA FRAGILIDADE EM PRANTO

Ao renegar sua concepção Jó menciona leviatã, já que segundo Luis de León, ele

maldiz aquela noite com a mesma intensidade que os pescadores renegam o amanhecer

quando estão com os barcos vazios. Daí retirará uma imagem extremamente sugestiva

sobre a relação entre a dor, o corte e o vazio explicitado.

Maldíganla los que maldicen su día, dispuestos a despertar duelo. O quechamamos duelo, no original chama-se leviathán, que é palavra com diversossentidos; são Jerônimo preferiu reutilizá-la em sua tradução, sem maiscomentários. Porque leviathán, segundo sua significação, é ou baleia ou qualqueroutro peixe de enorme grandeza, que por metáfora às vezes refere-se aodemônio. Mas, leviathán é uma palavra composta por duas partes ambasquerendo dizer el lloro ou el duelo de ellos. E ainda, segundo outraconsideração, dizer leviathán é dizer ayuntamiento suyo. E ainda que aqui sepossa entender esta palavra de todas estas formas, a segunda é mais simples enatural, e bem me parece que todas elas se endereçam a um mesmo fim, porquepor todas pretende Jó mostrar o quanto lhe aborrece e quer mal aquela sua noite,porque deseja que lha maldigam e blasfemem os que, ou por ofício ou porocasião, costumam lamentar-se e maldizer mais o [dia pois] que lhes causammais desgosto. E assim, segundo o primeiro modo, disse que maldigam a esta sua noite os que,dispostos para a pesca ou de baleias ou de outros pescados, maldizem o dia.Porque se costuma dizer que os pescadores tendo trabalhado muito durante anoite, que é mais propícia para pescar no mar, e estando vazios ao apontar a luz,renegam desesperadamente a si e ao dia maldizendo sua chegada ligeira. E disselevantar a leviathán, com grande propriedade; porque na pesca das baleias (...) omais difícil ao pescá-las é retirar-las do fundo do mar (já que feridas ‘se deixamcair’) e colocar-las em terra. E mesmo que aqui leviathán seja figuradamente odemônio, o que Jó quer expressar é ainda mais enfatizado: porque los dispuestosa levantar el demonio são justamente os feiticeiros, e os que entram em rodapara evocá-lo; os quais não somente abominam a luz e a maldizem porque elavem para estorvar-lhes o ofício (que é ofício que ama a noite).Mas se leviathán é o mesmo que ayuntamiento e amistad, Jó refere-se a ele aquiporque a noite favorece encontros deleitosos e quando a luz chega aparta e afastadesgostosamente os que se encontravam e, por isso maldizem a luz doamanhecer.Porém o mais simples é o sentido dado pelo caldeu que segue outros homensdoutos e antigos, onde leviathán seja dor e lamento. Assim, o que Jó denomina

429 IDEM, pp.665-666.

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dispuestos para levantar duelo é o mesmo que o espanhol antigo chamavaendecheras [ou plañideras, ou repetentes], que eram alugadas para chorar aosque morriam, e os choravam como pessoas ensinadas para isto, com gritoslastimosos e com vozes dolorosas, e com todas as expressões que demonstramdor. Pois as que têm por ofício o plañir, e as que põem seu cuidado e engenhoem saber lamentar; são essas que quer Jó e deseja que se aflijam por seu dia, eque o abominem e chorem. É bem verdade que o autor caldeu vê um pouco maislonge e mira ao futuro, e por esses que hacen duelo não entende nem uma dorqualquer, nem quaisquer pessoas que ou de verdade ou por arte se doem, senãoentende e assinala aquela dor miserável e póstera que terão na ressurreição oscondenados, quando se virem levados ao inferno. Porque assim disse: Maldigamos que maldizem o dia da vingança, os que estão ordenados, para quandoressuscitarem, levantar lamentável alarido; em que assinala aos que estão noinferno, que maldizem, maldisseram antes de agora e continuarão maldizendoaquele dia em que se fez de seus pecados vingança (...) São estes que Jó querpara maldizer o dia dele; melhor dizendo, deseja ter ele palavras tão agras,profundas e com tal significação e dor como têm aqueles, porque mesmo que elenão tenha sido condenado ao nascer, a partir do que padece no presente e porDeus ter se distanciado dele, às vezes lhe parece que nasceu para ser infeliz430.

Estando vazios ao despontar a luz (quando o sol ‘pelo oriente amanhece, que é como abrir as

pestanas da manhã’431) renegam-na. É o despontar da luz que aponta o vazio – este é da luz

dependente. Assim, renega-se a luz para não ver o vazio, para não se ver vazio. Jó está

vazio, então ele foi iluminado. Jó está cortado, ele foi laminado. Jó está sofrendo, então

ele foi tocado. Jó não está sozinho, não foi abandonado. A espada rutilante cortou Jó,

como um raio que ao cortar a noite ilumina e assombra.

De qualquer modo, se leviatã resguardasse a sua relação com a dor, mas em vez

de baleia fosse traduzido como crocodilo432 as analogias seriam totalmente diferentes já

que segundo alguns exegetas seria uma alusão ao Egito e, por conseqüência, à libertação

daquele cativeiro.

Apesar de tudo e ao pesar do todo, Jó em sua fragilidade, sabedor do risco (e não

mais caminho) que corria, chamou-Lhe: assim, a uma só vez prescinde da mediação dos

430 IBIDEM, pp.71-73.431 IBIDEM, p.73.432 LEFÈVRE. (1975), p.21.

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amigos e explicita a dificuldade de nomear [a Deus] recorrendo ao Ele433. Contudo, como

sabia que o Deus que espanta é o Deus dos exércitos, e como havia afirmado que falaria

de qualquer maneira, sentencia agora que ‘ordenará juízo’:

Quién me diese, supiese yo, y le hallase; viniese hasta su asiento! Ordenaríaante El juicio, y mi boca henchiría de razonamientos. Ordenar aqui é palavra deguerra e que se diz propriamente no exército ou esquadrão, quando se põe ossoldados em ordenança (...) Assim, afirma, indo ao tribunal em que Deus reside,ordenaria minha defesa. Como se quisesse dizer, minha gente suspeitaria asrazões que trago em meu peito, e do peito as colocaria bem ordenadas na boca, eargumentaria minha causa434.

Mas como outrora, Jó insiste:

No con muchedumbre de fuerzas baraje conmigo, no cierto ponga El su brazosobre mi. Ponga derecheza de argumentos conmigo, y saldrá vencedor mi juicio. Mas,chegado aqui, evidencia-se para Jó a impossibilidade do que deseja, e vê que nãoestá em sua mão, nem ver a Deus, nem falar-lhe, nem chegar onde ele está435.

Mas, enfim, onde está Deus que não escuta os clamores de Jó?

Voceé, y no me respondiste; estoy y advertiste a mí; entende-se, y no advertiste amí, porque segundo o costume da língua primeira, repete-se no fim a negação doprincípio. Pois disse, entre tantas misérias a maior é que te chamo, e não merespondes, e me ponho diante de Ti e me apresento afligido, e não me permitesver. Porque, a bem da verdade, uma alma santa e que tem trato com Deus,quando está trabalhando, por mais sobrecarregada que esteja, tudo está bem selhe sente perto de si, se lha responde com a luz dele quando se apresenta; mas seEle se encobre, se também se obscurece, se desaparece adiante, logo tudo seconverte em dor verdadeira; então sente de verdade sua calamidade e sofrimento,ou para dizer a verdade, todo seu sofrimento é menor em comparação com oesconder-se de Deus. Porque além da solidão e desamparo que sente

433 Como nos recorda HUMBOLDT num texto intitulado O dual diferentemente do tu, o ele não sugere umaescolha em meio a tantos outros objetos. Desse modo, o ele é o inteiramente distinto. Quanto a Deus o elecumpre dupla função: se por um lado o distingue do homem, por outro, comporta a perda da intimidade aque nos referíamos acima. (1991), p.159.434 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.385.435 IBIDEM. Quanto ao vínculo entre ordenar e guerrear, ver também p.518.

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intensamente, a alma enfraquecida enche-se de imaginações aborrecíveis, quegeram nela um tormento inacreditável, algumas vezes desesperando de Deus eoutras temendo ter sido esquecida por Ele, e outras por não sentir a sua piedosaclemência436.

Se num dado momento Jó não suporta o açoite, num outro lhe parece ainda mais

insuportável ser esquecido por Deus, pois se Aquele que o criou e moldou esquece-se

dele, por quem ele será lembrado? Aqui vemos mais uma vez o porquê de Jó não temer

que Deus se manifeste com toda a sua cólera apesar de afirmar que é desnecessário que

Ele se apresentasse desse modo, pois que es el hombre para que le engrandezcas, y para

que pongas en él tu corazón?437 Por que Deus se ocupa do homem? O que é o homem

para que Deus se preocupe com ele? Qual o dano que um equívoco humano pode causar-

Lhe? O livro de Jó não nega em nenhum momento a criação, ao contrário, refere-se a ela

repetidas vezes, insistindo particularmente em dois pontos daquele relato: a grandiosidade

da obra e o retorno do homem à condição de pó onde o padecer é a lembrança insistente

dessa condição. Assim, se no Gênesis o homem surge como culminação da obra, esse

homem sofredor se dobra e se desdobra, se contorce e se revolve. No relato da criação

pode não se concordar com o motivo, mas ele estava claro: o primeiro homem ou,

primeiro o homem desobedeceu a Deus e provou o fruto da árvore do conhecimento do

bem e do mal, mas ao morder o fruto sentiu a mordida do tempo e a infelicidade

engendrada pelo antinatural conhecimento de nossa miséria438. A experiência de Jó explicita

uma questão ainda mais crucial já que ele se dá conta da miséria ao obedecer, ele não

provou de um fruto distraindo-se de Deus, mas se viu como fruto de Deus e por causa de

tantas bocadas, desbocou. Jó não desobedeceu a Deus: auxiliou o próximo, defendeu os

436 IBIDEM, p.469.437 IBIDEM, p.148.438 LEOPARDI. (2000), p.60.

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mais necessitados, emprestou sua voz aos que impedidos de pronunciar não podiam

sequer engolir saliva e que em função disso o admiravam com a mesma disposição que os

beduínos olham a chuva no deserto439. É esse homem que socorreu viúva que

posteriormente chorou a sua viuvez - e aqui se trata não da perda de sua esposa, mas de

ter visto morrer sua vida enquanto vivia. Viúvo de si mesmo, bendisse. Viúvo de si

mesmo clamou uma audiência. Não desobedeceu, continuou fazendo libações mesmo no

corroer da dor.

Tanta luz o fazia ver demais e minava-lhe a resistência. Tanta luz lhe induzia à

fala, o que fez um de seus amigos dizer ironicamente: Tu que és senhor da luz e vives

rodeado de luminosidade, poderás iluminar-nos. Em seguida o mesmo acrescentou:

Quién le contará lo que hablo? Aunque el hombre hablare, será tragado. Comodizendo (...) ainda que alguém, afirme atrevidamente hablare, isto é, presumaalcançar as causas das obras de Deus e dizê-las, será tragado pelo que busca, istoé, se perderá em meio ao abismo, e a fundura delas lhe absorverá440.

Assim, é necessário cegueira para se alcançar sabedoria e Jó já não sabia se era melhor

falar ou calar:

Si hablare, no se ataja mi dolor; se cesare, no se partirá de mi. Eu, disse, mecomportaria convosco na forma que digo [ou seja, ouvir e falar para fortalecer-se]; mas agora de mim e da maneira que me tratais, nem o falar me vale, nemouvi-los me remedia; porque o falar é responder a vossas impertinentes calúnias,que não abrevia, senão acrescenta o desgosto; e o calar é ouvi-los, que é outrodesgosto maior. De sorte que, a bem da verdade, estes amigos de Jó, em lugar deconsolar-lhe, não só causavam tormento, mas lhe privavam da oportunidade doconsolo; porque se calassem ou lhe deixassem sozinho, ele se confortaria dealguma maneira consigo mesmo, ou calando ou falando; buscaria razões que lhefortalecessem, e se ocuparia delas; falaria o que sua dor lhe pedia, e desafogariaa dor.Mas agora, ao revés, com sua inoportuna disputa não lhe deixavam nem pensarnem falar o que lhe seria de alívio: quando cala, os tem que ouvir, e quando fala,

439 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.458.440 IDEM, p.608.

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fala para respondê-los, e assim nem cala nem fala para seu descanso, comopoderia, senão para nova indignação e desgosto441.

Confundia Deus e o diabo442 (algo explicitado pelo autor do livro nos dois primeiros

capítulos e somente sugerido no decorrer do mesmo), questionava-se e questionava a

respeito do bem e do mal. Aquela luminosidade que advém de Deus, no homem devém e

em função disso ele é devedor de tudo o que vê: ele deve o que vê ao que não vê. Deve

porque lhe foi oferecido e não dado. Em contrapartida, quando o homem nasce é dado à

luz, logo, a luz nada deve. Assim para o judeu-cristianismo: em cada nascimento, um

sacrifício à luz, a Deus. Deus é o crido e o credor, Jó crente e devedor. Jó está vendo pelo

que está passando, Jó está devendo. A quem Jó deve a dor que padece já que a vê? Jó não

vê a Deus, logo ele não deve Deus a Deus. Ele deve tudo que vê a Deus. Mas Deus não

deu a dor a Jó, porque Deus não dá, oferece. A dor foi oferecida a Jó. O que se dá é

presente e não pode ser devolvido. Jó não ganhou a dor de presente, assim a dor que

revolve será devolvida. Em Jó, a dor é de Deus, uma lembrança. Jó não esqueceu um só

momento de Deus, foi a Ele que Jó insistentemente se referiu. Sua dor o fez enxergar

ainda melhor a dor alheia, ele devia algo, ser ainda mais misericordioso:

El que quita misericordia de su amigo, y el temor del Abastado menospreciará.Quer dizer, que não existe maldade maior do que o não se compadecer oudesamparar a seu amigo. Entende como amigo o afligido e necessitado e caído,porque os caídos são a quem se deve compaixão. E é assim que se atreverácontra Deus, quem desampara a seu amigo caído; porque como São João disseem sua epístola: Vanidad es decir que tiene con Dios amor y ley el que con su

441 IBIDEM, pp.286-287. Tão diferente a situação de Jó e a de Salomão quando este afirma: “Se calo,ficarão em expectativa; se falo, prestarão atenção; se me alongo no discurso, colocarão a mão sobre aboca”. Sb 8,12.442 Como nos recorda Harold BLOOM: “O nome Jó parece próximo do árabe awah, o que retorna a Deus,porém as interpretações viam o nome como antitético, pois significava ao mesmo tempo “justo” e o‘inimigo’ (de Deus)”. (2005), pp.22-23. E no Ocidente isto continuou confuso já que como sinalizaDODDS: “O Diabo penetrou no Ocidente através do judaísmo tardio, que transformou ao Satã emissário deDeus em adversário de Deus”. (1975), pp.37-38.

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prójimo no la tiene (1 Jo 4,20); quem não ajuda ao que conhece e trata econversa, como acudirá ao que nem vê nem conhece?El que quita, diz, misericordia a su amigo. Quando se afirma quita, épropriamente desata, porque a amizade é como nó que obriga, e quem falta àamizade na necessidade desata o nó, isto é, desfaz uma coisa bem feita, e apartao que a muito se deve e de que nenhuma maneira se podia apartar. E o originalainda dá margem para que se possa dizer: Al desatado y desecho misericórdia desu compañero, convém saber, se lhe deve: y el temor del Señor menospreciará,convém saber, o amigo que em semelhante ocasião não o é. Que, em verdade, sea aflição e desastre em qualquer pessoa que seja causa lástima e busca-seremédio, o trabalho poderosíssimo do amigo tem de ser o de engendrar no outro,que se diz ser, compaixão443.

3.10. QUAL SERÁ A CHAVE DA TRADUÇÃO?

A intimidade entre os dois seres – o divino e o humano – não se produziu. Longedisso, Jó estava ante seu Deus ainda mais estranho quando já era só umaentranha e só uma visão. Ele havia desenvolvido sua criação. Tudo estava cheio.Eles, os animais, cada qual um enigma. E entre todos, esse estranho, misteriosopássaro que abandona seus ovos em germinação abaixo do solo sem guardiãoalgum, enquanto de cima, impassível e distraído, não parece sequer destagerminação, que apenas alenta, dar-se conta alguma.Os tradutores do Livro de Jó, especialmente em tradições gregas e orientais, sedetiveram diante deste pássaro no esforço de identificar a espécie. Apareceu detal modo incerta a espécie, que foi dedicado estudos eruditos a este tema contidono capítulo 39, versículos 13 a 18444.

Luis de León afirma que para os tradutores latinos, diferentemente das tradições

aludidas acima, este animal não era tão misterioso. Desse modo, detinham-se entre o

avestruz e o pavão: Pluma de avestruz semejante a la del halcón y gavilán. (...) É verdade que o

original diz ao pé da letra: Pluma de pomposos, o regocijados alegre; e entendem alguns pelos

pomposos aos pavões, cuja pluma é formosa e pintada e por isso alegre à vista445. Optaram pelo

avestruz, essa ave confusa - se levarmos em conta que um pássaro é uma pequena ave -

esse pássaro-camelo. Mas, não é em função disso que os latinos sugeriram-no como ave

misteriosa, pois aqui não se trata de grifos ou esfinges, nem de seres híbridos ou quase

443 LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.138-139.444 ZAMBRANO. (2005), p.405.445 LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.648-649.

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híbridos. É necessário comunicar uma experiência do abandono sintetizado num animal.

Busca-se um nome para o animal abandono. No livro do Cântico a pomba surgiu diversas

vezes como metáfora da fidelidade entre o esposo e a esposa. O contraponto no livro de

Jó é o avestruz que:

Cuando deja en la tierra sus huevos y sobre el polvo, calentarlos has? Porque doavestruz e não do pavão, se lê que põe na areia seus ovos, e, esquecendo deles,os deixa. Assim, Deus pergunta a Jó se ele saberá esquentar-los, isto é, se sem ocalor da mãe e sem o abrigo e cuidado que os machos têm ou costumam ter,saberá ou poderá conduzi-los à luz, como Ele os saca e empolha446.

Esquecido, não sofre com os ovos espalhados e pisados pelo solo. Se neste momento

Deus está falando do poder que tem sobre as espécies, não é sem razão que cita o

avestruz: ao falar do abandono toca o sentimento de Jó em relação a Ele e,

concomitantemente, afirma que não age como aquela ave que abandona mesmo sem

motivo aparente:

Endurécese para sus hijos, no suyos; en vano trabajó sin forzarla temor. Comodizendo: todos os animais, ainda que sejam ferozes, são brandos e amorosos parasuas crias; mas este é tão duro e tão esquecido, como havíamos dito, para seusfilhos; se a verdade podem ser chamados filhos seus os que despreza, os queesquece, os que deixa sem causa nenhuma que a force, colocados em tãomanifesto perigo447.

El avestruz, que en ala y cuello erguido,en pluma galantíssima, o es ave,o puede bien por ave ser tenido, Cuando en la arena al sol, sin puerta ni llave,deja sus huevos, di, quién los abriga?Tú eres, o Yo soy el que lo sabe? La madre no los cubre, ni se obligaque el pie no los esparza ni patee,ni acuerdo tiene dellos ni fatiga. Endurécese cruda, y nunca veesus hijos, mas no suyos, pues lo deja,

446 IDEM, p.649.447 IBIDEM.

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sin que el temor la aparte ni la ojee. De ella el acuerdo y el saber se aleja,no le cupo mayor entendimiento;por su parte no cura ni se aqueja448.

Mas isso não quer dizer que abandone se houver motivação para tal. O abandono possui

aqui um tom muito especial: abandona-se para preservar. Uma curiosa forma de proteção

onde amar é não mirar, pois a mirada é uma pista para aqueles que estão em busca da

depredação. O esquecimento providencial, da Providência: uma forma de proteção.

Aquela mirada fulminante que Jó reclamava e denominava de perseguição, retira-se para

posteriormente retornar num momento mais propício, para o que sofre. E respondeu Jó ao

Senhor e disse:

Hablé livianamente; qué podre responder? Pondré mi mano sobre mi boca. Oucomo outra letra diz: Soy desprecio; qué podre responder? E sem dúvida que,falando-lhe Deus, havia de responder a Ele desta maneira; porque não existecoisa mais natural nem mais certa que, postos na luz, conhecer de si o que é cadaum; e é próprio da luz e das visões e falas de Deus criar profunda humildade nohomem, que se conhece então verdadeiramente sua grande pequenez, contrapostaa presença de tanta grandeza.E assim diz: Soy desprecio; sou vileza e pó, e vendo a Ti, o conheçoverdadeiramente em mim agora, que tuas palavras demonstradoras de teu saber epoder excessivo, não somente me mostraram isso, mas evidenciaram meu poucosaber e minha maledicência. Pois sendo eu tal e conhecendo de Ti e de mimquem somos, teu saber e minha grande ignorância, as entranhas de tua piedade eminha ousadia atrevida, não serei mais louco, nem acrescentarei palavra ao quejá disse; mudo sou e quero ser mudo449.

Así le hablara Dios la vez primera;y viéndole que nada respondia,tornóle a preguntar desta manera: “Pues tienes ya por seso y valentía,Conmigo pleitear? Ansí ha cesado,ansí calla quien tanto prometía?” “Soy polvo – dijo entonces – desechado;Pongo en la boca el dedo, y sólo digouna vez y dos veces, que no es dadoa mí ni a nadie barajar contigo.”450

448 IBIDEM, p.655.449 IBIDEM, p.653. 450 IBIDEM, p.655.

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4. EXPOSIÇÃO DO CANTAR DOS CANTARES

4.1. JÓ NUM CANTO

Agir ou sofrer: essas são as composturas do homem. O que age – o ágil – que se

move com tanta destreza que mais do que contemplar é contemplado ao mover-se, e

como mobilizador, imobiliza a quem o vê passar. Ou, outra possibilidade: o que age

inflige uma força qualquer que impõe movimento ao inerte, ou muda um segundo no

ângulo daquele que se divertia451. Assim, o que age con-, in-, re-, per-verte quem entra no

seu raio de ação que cresce na proporção em que agrega. Assim, falar da paciência do que

sofre é redundância, já que se o sofredor não age e, sofrido, recebe mais do que dá, por

conseguinte, é paciente e não agente. Deus é amor, ama. Amar é a ação de Deus, através

do amor ele coage. Hábil no amar move-se com tanta destreza que mais do que

contemplar é contemplado ao mover-se, e como mobilizador, imobiliza a quem o vê

passar. Ou, outra possibilidade: Deus inflige uma força qualquer que impõe movimento

ao inerte, ou muda um segundo no ângulo daquele que se divertia. O que ousa Aquele que

age é, justamente, con-, in-, re-, per- verter quem entra no seu raio de ação. Assim, falar

da paciência do que sofre o amor de Deus é redundância, já que se o sofredor não age e,

sofrido, recebe mais do que dá, por conseguinte é paciente e não agente. Sofrer o amor,

pois nestas circunstâncias não é possível sofrer ao amar, já que ao amar faz o outro sofrer.

A criatura paciente sofre os colapsos do amar Criador e, como instrumento do amor

divino sofre e possibilita o sofrimento daquele que esteja mais próximo dele.

Com isso não objetivamos tornar ternas as dores de Jó, mas tentar compreender a

relação possível entre aquele que sofre e o encontro amoroso que quer ser cantado mais

451 ‘O que se diverte se aparta’. LUIS DE LEÓN. (1991b), p.539.

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do que qualquer outro canto, o mais alto possível, fazendo romper assim ao espaço, o

paço sagrado do santo dos santos. Portanto, não se trata de libertar-se do sofrimento, já

que qualquer que seja a escolha estará envolvida por uma submissão452. Como é

necessário descobrir para escolher já que o escolhido não foi criado pelo homem, daí se

infere que o descoberto, coberto ou encoberto já estava. Por conseguinte, o que

escolhemos nos antecede: a pergunta é a que ou a quem nos submetemos. Cativado por

Deus, dele se tornará presa. Mas de que Deus se trata? Do que se impõe através do amar.

É um amar que abriga mais do que obriga. Sua ação não se impõe em função de sua

majestade, mas só é ação porque e quando se impõe, ou seja, é preciso que se ponha

dentro, para que desde dentro floresça, uma semente no meio da terra. Imposto, reagirá na

alma e pouco a pouco ela sentirá a purgação do amor. Os influxos e os refluxos de amor:

o homem não sofre dos mais diversos males, o homem sofre. Contudo, o amor arrefece os

outros motivos de sofrimento, o amor envenena o doente, ocupando as veias, as vias, a

vida do que sofre fazendo-o sofrer melhor, fazendo-o melhor ao sofrer, refazendo-o ao

sofrer. Neste sentido o amor imposto é resposta a todos os outros sofreres: ele não

justifica nem consola, ele intensifica e assola todos os outros motivos de padecer. Não

existe falta que o amor não suporte, não existe falta que o amor não possa amparar já que

o fardo é leve453 quando se ama. O Inimigo: é não amar.

Segundo o profeta Ezequiel454, se Deus se propusesse exterminar homens e

animais, a alma de Jó (como também a de Noé e Danel) seria salva em função de sua vida

452 Como as palavras também chocam – no sentido que emprestamos à cerveja, por exemplo - mais oumenos no transcurso do tempo, com o conceito de autonomia desenvolvido no período da Ilustração apalavra submissão foi quase extirpada e, posteriormente, tida como politicamente abjeta pelo materialismohistórico. Uma filosofia mais liberal como a de Ortega y Gasset prefere utilizar o conceito de atenção “diga-me o que atendes que eu te direi quem és” que com esta paráfrase enuncia, inclusive, a perda de força daimagem do caminho pressuposto na imagem do andar.453 Mt 11,30.454 Ez 14,14-20.

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justa. Mas, por que essa referência a Jó quando iniciamos o comentário sobre o cântico

dos cânticos? Jó foi compreendido, por diversos padres da Igreja, como o modelo de

esposo santo455 e o Cântico dos Cânticos é um hino nupcial. Assim, tanto num livro

quanto no outro, o encontro. Delumeau tem razão em denominar o livro de Jó de

sombrio, mas se equivoca ao acreditar que o comentário de Luis de León intensifica

aquela característica456, justamente por não levar em conta a relação existente entre o livro

de Jó e o Cantar dos Cantares.

4.2. A SOMBRA DO ENCONTRO

Em Luis de León é o canto de amor que embala o que sofre e, por conseguinte, o

sombrio toma novos contornos já que retira a conotação de duplicação ou de obstáculo

para a luz e assume a característica de proteção: um pouco de sombra para se pousar,

sombra para se repousar. Dobrado pelo cansaço torna-se premente um reparo: um pouco

de sombra para o que está sobrando, um pouco de sombra para o que está faltando. No

amor, a sombra ilumina: amparo ao desditado.

Como el manzano entre los árboles silvestres, así el mi Amado entre los hijos:en su sombra deseé, sentéme, y su fruta dulce a mi garganta. (...) En su sombradeseé, convém saber, repousar. Sentéme, isto é, consegui o fim de meu desejo. Esu fruta dulce a mi garganta, em que se declara uma possessão inteira eperfeita457.

Ou, durante o dia quando a sombra cresce é sinal de que a noite se aproxima,

prenunciando o retorno do amado (o sol quando lhe vemos caminha sozinho, porque

455 GREGÓRIO MAGNO. (1998), p.100.456 DELUMEAU. (2003), p.40.457 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.100.

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obscurece com sua luz o que lhe poderia ser companhia; mas a lua vai acompanhada de exércitos

de luzes claríssimas, e ela como senhora entre elas e como imperatriz ambiciosa e pomposa458):

El amado mío es mío, y yo soy suya, que apacienta entre las azucenas. Hastaque sople el día, y las sombras huyan. Alguns entendem por isto o período damanhã, e outros o meio-dia; ambos estão enganados, porque a verdade daspalavras como aquilo a que se propõem declaram o período da tarde; porquesempre, ao cair do sol, se levanta um ar brando, e as sombras que ao meio-diaestavam sem mover-se, ao declinar do sol crescem com tão sensível movimento,que parecem que fogem. De modo que os Setenta Intérpretes disseram bem nestelugar: Hasta que se muevan las sombras. E contribui para isto a ordem e opropósito da sentença e a intenção da Esposa, que é pedir terna e insistentementea seu Esposo, já que este se vai ao campo e a deixa sozinha, que se contente deestar nele até a tarde, que até então é o período de apascentar o gado, e que,chegada a noite, volte para casa para acompanhá-la e quitar dela o temor e asolidão que a escuridão traz consigo, porque não poderá passar sem ele, e quenisto não haja dilação nem tardança alguma459.

Como afirma são Jerônimo: as palavras que somente soam se desprezam as sombras460, pois é

necessário o calor do outro para que a vida seja461.

Assim o profeta poderá dizer, ainda estarás falando e te direi: aqui estou462. A fala,

este artifício da não presença, essa evocação do que supostamente não está, essa ponte

sobre um limite. Ainda estarás falando e te direi, aqui estou: uma fala, com o encontro uma

falha na fala, e enfim, o incomum silêncio da compreensão - que me beije com os beijos de

sua boca463. Orígenes afirma que o sentido deste versículo é o seguinte: até quando meu

Esposo me enviará beijos por meio de Moisés, ou enviará beijos através dos profetas? Já desejo

458 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.490.459 LUIS DE LEÓN. (1991ª), pp.112-113. E como diz Ausonio: “A graça que se tarda é desgraçada, porquea que os passos acelera, é muito mais agradável e mais amada”. Cf. LUIS DE LEÓN. (1991b), p.486.460 JERÔNIMO. (2004), p.511.461 2 Re 4,32-36. Ou, “como assinalou Orígenes, a palavra psyché, ‘alma’, derivava de psychros, ‘frio’.Comparado ao espírito flamejante que se elevava num lampejo, sempre se esforçando por reentrar no fogoprimevo de Deus, o eu consciente era uma coisa embotada, entorpecida pela fria ausência do amor”.BROWN. (1990), p.143.462 Is 65,24.463 Ct 1,1.

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tocar sua própria boca: que venha ele pessoalmente464. Para Gregório de Nisa, se trata da boca

de Cristo que é um manancial de vida: o que faz manar vida para todos e quer que todo o

mundo se salve não quer privar desse beijo aos que salva. Seu beijo é purificação de toda

mancha465. São Bernardo de Claraval sugere uma luta entre o beijo e a boca já que para ele

o primeiro é sinal de paz e a segunda de agitação. Em função disso afirma que a tradução

mais correta seria ‘com o beijo de sua boca’ e não ‘que me beije com sua boca’, já que na

primeira se enfatiza o beijo e na segunda a boca466.

O Cântico dos Cânticos para são Jerônimo é o último de uma trilogia que teria

sido escrita pelo rei Salomão juntamente com os Provérbios e o Eclesiastes467. Bernardo

como Jerônimo468 afirma que o Cântico não é para pacificar, mas sim para ser fruído

pelos que já foram pacificados469. Distanciando-se da interpretação tipológica470 Luis de

León comentará esse versículo da seguinte maneira:

Béseme de besos de su boca (...) quer dizer, me sustentei até agora, vivendo deesperança; muitas foram as promessas de sua vinda, e muitas mensagens recebi;mas o ânimo já começa a desfalecer e o desejo vence; somente sua presença e adádiva de seus doces beijos é o que pode me curar. Minha alma está com ele e euestou sem ela, até que a recobre de sua boca graciosa, onde está recolhida471.

464 ORÍGENES. (2000), p.50.465 GREGÓRIO DE NISA. (1993), p.24-25.466 BERNARDO DE CLARAVAL. (1987), p.107.467 [O primeiro] deles serviria para as crianças pequenas para que elas fossem instruídas sobre os deveres, osegundo auxilia o homem de idade madura para que pense que nada é perpétuo nas coisas do mundo, senãoque tudo é caduco e breve. Finalmente, ao homem já completo e preparado, que já percorreu o mundo, uneo Cântico dos Cânticos com os abraços do esposo. Em efeito, se não deixamos primeiro os vícios e,renunciando à pompa do século, nos preparamos, livres de bagagem, para a chegada de Cristo, nãopoderemos dizer: me beijará com o beijo de sua boca. JERÔNIMO. (2004), p.371-373.468 Este chega a propor no projeto de educação que elabora para a pequena Paula que o Cântico dosCânticos deve ser a última leitura da Sagrada Escritura. Cf. MERTON. (1972), p.133. O motivo para talproposição é que tendo lido anteriormente toda escritura sacra Paula terá certeza de que o Cântico éespiritual. JERÔNIMO. (1995), p.211.469 BERNARDO DE CLARAVAL. (1987), p.83.470 Já que considera assim o Cântico dos Cânticos: ‘em sua primeira origem se escreveu em metro e é umaégloga pastoril, que com palavras e linguagem de pastores, falam Salomão e sua Esposa, e algumas vezesseus companheiros, como se todos fossem gente de aldeia’. LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.63.471 IDEM, p.79.

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Não nos parece inexato afirmar que tanto no livro de Jó quanto no Cântico dos Cânticos é

a instância e a distância472 de Deus, é o temor da perda, o zelo, o combate e a explicitação,

o desaforo e o desafogo, o desatino e o desatado, enfim, trata-se do nó e de nós no amor.

Para os primeiros intérpretes cristãos o que o Cântico dos Cânticos proporciona é, dentre

outras coisas, a possibilidade de expressar o aguçamento dos sentidos na relação com

aquele que transcende a corporeidade. Um pai amante: uma paternidade prenhe de

responsabilidade e de beleza; um pai enamorado. No contexto patrístico o Cântico

prenuncia o câmbio da ‘máscara’ de Deus que desinvestido ou desinvestindo-se da

condição de pai faz-se noivo para tornar-se irmão.

4.3. TENDER PARA O ENCONTRO

O Cântico teve sua canonicidade questionada por parte de algumas correntes do

judaísmo que afirmavam que ele não ‘manchava as mãos’, ou seja, não devia ser

manipulado nas sinagogas473. No meio cristão, antes que a Cristandade estabelecesse seu

cânon definitivo no século IV474 o Cântico foi interpretado alegoricamente (para Dodds

este método é a arte de violentar um texto475), como tantos outros livros da Sagrada

Escritura. Contudo, o interessante da permanência do Cântico no cânon cristão é que a

violência não danificou a letra. Assim, a violência não reside na interpretação, mas na

imposição de uma em detrimento de outras. Na relação entre o espírito e a letra, o espírito

danoso será sempre aquele que adultera a letra para centralizar poder.

472 Quando JERÔNIMO se propõe a comentar a parábola do filho pródigo ao papa Dámaso, sentencia: “SeDeus tem o céu em sua palma e a tierra em seu punho (Is 40,12), e Jeremias diz: Deus é um Deus de pertoe não de longe (23,23), se também Davi afirma que não existe lugar algum fora Dele, como é que e o filhovai embora e se distancia de seu pai? Convém, pois, saber que estamos com Deus ou nos apartamos Delenão pela distância entre os lugares, mas pelo afeto”. (1993), p.179.

473 BARRERA. (1999), pp.196-197.474 IDEM, p.273.475 DODDS. (1975), p.170.

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Imagens de aproximação, como costumam ser as imagens de amor: o Cântico dos

Cânticos por possuir a tessitura das tendas476 de Cedar477 não foi um texto de fronteira,

mas de intercessão. A prova da horizontalidade de sua influência pode ser atestada pela

capacidade que tinha de animar pios e gentis. Orígenes478 ao tentar discernir o que

condizia a Eros e a Ágape no seu comentário ao Cântico não fez mais que afirmar a

presença dessas modulações de amor e por mais que tentasse arrefecer o componente

erótico, ao denominá-lo de mundano, só tornou esse elemento mais evidente.

Compreensível para uma interpretação em que o discernimento se confundia com

refutação e que não conseguia perceber que o ir contra é uma variação do encontro e a

negação uma forma de reconhecimento. O Cântico silenciado no Novo Testamento

porque realizado por Jesus, foi sendo insistentemente revisitado. De qualquer maneira,

contribuiu para a conversão e permanência de eruditos e humanistas no seio da

Cristandade. E não foi em função somente de sua temática, mas também de sua forma, de

sua composição: a poesia, aliada para a conversão já que esta não pode ser fruto de

argumento porque é anterior a ele. Se o argumento é posterior à conversão o que poderia

ser raiz da mesma? Um toque, despretensioso. Um toque que sabe pouco de si, como

476 “As ‘tendas’, assinalou Orígenes, eram invariavelmente mencionadas de maneira favorável no VelhoTestamento. Representavam os horizontes ilimitados de cada espírito criado, sempre prontas a serdesarmadas e novamente erigidas, indefinidamente. As ‘casas’, ao contrário, eram símbolos da terrívelsociedade, ‘enraizadas, firmadas e definidas por limites fixos”. BROWN. (1990), p.144. A cristandade foipuindo aos poucos o tecido das tendas e punindo a mobilidade criativa. Das tendas a Pedro, à pedra,fundamental. Contudo, fixar o divino, e quanto a isso a cruz é exemplar em nossa cultura, é matá-lo.Atualmente, a História Comparada, segundo Marcel DETIENNE possibilita questionar tantos paradigmasda história ocidental, como o de fundação seja a partir da cultura japonesa ou dos Vedas na Índia, onde aidéia de lugar fixo os revulsa. (2004), p.51. Vimos, com Orígenes, que também é possível recuperar atendência em nossa própria cultura.477 “Cedar é denominação para os alábares, que os antigos chamavam númidas, porque são descendentes deCedar [Adar], filho de Ismael. (...) Estes alábares é gente movediça e não vivem em cidades, mas no campo,mudando-se cada ano para onde melhor lhes parece; e por este motivo vivem sempre em tendas, feitas decouro ou pano, que se podem transportar rapidamente. (...) por fora estão sujas já que expostas ao ar e aosol; mas dentro delas encerram todas as peças e jóias de seus donos, que, como se pressupõe, são muitas ebem ricas”. LUIS DE LEÓN. (1991ª), pp.84-85.478 ORIGENE. (1991), p.41.

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aquele dado por quem faz o bem: que não esquece de fazê-lo, mas sempre esquece que o

fez. Qual seria dentre os modos de dizer aquele que toca e retoca sem saber

suficientemente de sua ocorrência, que toca quase que por imposição de mãos (ou de

palavras?) de modo que o converter é já um comover, contudo, sem dizer que converte e

que comove? A raiz da conversão é poesia. A poesia é criação da fragilidade, uma

agilidade transposta: o fenecimento do corpo evidencia a fraqueza, assim, antes que o

corpo se corrompa no estreitar do tempo, a palavra do corpo rompe. É

concomitantemente palavra animada por ser sopro e palavra encarnada por tomar corpo.

A palavra encarna o sopro que é a vida do homem e assim religião e poesia poderão se

encontrar já que tratam do converso e do verso no mistério da palavra. A fragilidade

reclamada é agora agradecida já que é ela que torna possível a ternura - mudança de

feição, alimento, refeição:

Cuando estaba el rey en su recostamiento, el mi nardo dió su olor. (...) Apalavra hebraica, que é mesab, quer dizer recostamiento ou en derredor, que,segundo os doutores hebreus, este lugar é o mesmo do convite [banquete],porque, conforme o uso antigo, que perdura até hoje entre os mouros, comiamrecostados e postos ao redor porque era assim o formato das mesas479.

Mas, se a alma é por onde se pode escapar do fenecimento o que fazer quando a

alma é roubada? Através do toque dos lábios empreende-se o recolhimento da alma, ou

seja, para encontrar a própria alma é necessário ir ao encontro ou ser encontrado pelo

outro. Desse modo, o Cântico dos Cânticos preenche três funções extremamente

relevantes: primeiro, envolve os letrados através da palavra criativa que dispõe beleza na

fé num Deus que nasceu entre os simples; afirma a importância dos sentidos para a

persecução do sentido ;e, por fim, para uma religião que quer ser do amor, interroga onde479 IDEM, p.93.

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está a alma quando se ama. Assim teríamos que se a dor evidencia a fragilidade do corpo,

o amor ‘demonstra’ a fragilidade da alma (a impotência diante daquele ou daquilo que se

ama):

Rodeadme de vasos de vino, cercadme de manzanas, que enferma estoy de amor.A fraqueza do coração humano não tem força para sofrer nenhum extremo, nemde alegria nem de dor. Assim, tanto com o excessivo gozo que recebeu dosfavores de seu Esposo quanto a dor aguda que agora sente ao recordar-se deles eao ver-se deles despojada, desfaleceu a Esposa. Mas não disse que desfaleceuassim com essas palavras; não obstante disse as palavras com que pediu remédioa seu desfalecimento; em que declara seu mal com uma graciosidade maior doque se por claras palavras se explicasse, como as seguintes: “Venceu o gozo aodesejo e ao coração, e assim faltou-me, e, desmaiada, comecei a dizer:Esforzadme con vasos de vidrio.” Assim traduzem a palavra hebraica asisoth osdoutores naquela língua, ainda que o texto vulgar translade flores.Tudo se dispõe para a distração de quem está enfermo; ainda que estejasubentendido que os vasos de vidro estão cheios de vinho, para que com seucheiro e sabor trouxesse a si seu coração desmaiado. E pela mesma causa pedeque a rodeiem de maçãs. Ao dizer esforzadme, se dá a entender que com odesfalecimento de sua força, ela iria cair. E dizendo tended debajo de mimanzanas, se colige que ela já estava caída e deitada. O que diz, estoy enfermade amor, não se refere à enfermidade própria do corpo, senão uma grave afliçãoda alma, que à imaginação de alguma coisa segue o desfalecer do corpo480.

No momento que o (a) amado (a) se distancia (e se aproxima) que ela pode se dar

conta do quanto está entregue. Esperar o que se ama e ao operar o beijo recuperar a alma:

E assim a própria medicina para esta aflição, e o que mais se pretende e se desejaatravés dela é recuperar cada um que ama a sua alma, que sente ter sido roubada;a qual parece ter lugar no alento que se colhe pela boca, daí que é tamanho odesejar e o deleitar-se dos que se amam ao juntar as bocas e mesclar os hálitos,como guiados por esta imaginação e desejo de restituir-se no que lhes falta emseu coração, ou acabar de entregá-lo totalmente481.

4.4. SOPRAR O PÓ

480 IBIDEM, pp.102-103.481 IBIDEM, p.78.

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Toda a esperança posterior é fruto de um roubo inicial, um arroubo. Não se sabe

exatamente como se dá esta ocorrência, mas o que se experimenta é paradoxal já que pela

primeira vez é tirado o que não se sabia suster. Noutras palavras, o roubo é uma

exposição: o que não sabia portar alma, agora a tem despertada, apartada, apertada; ao ser

amado, descobre-se.

Robaste mi corazón, hermana mía, Esposa, robaste mi corazón con uno de lostus ojos, con un sartal de tu cuello. (...) Aqui o Esposo já não consegue encobrirseu sofrimento, e começa ternamente a mostrar as feridas feitas em seu coraçãopelo amor cruel, dizendo: “Oh, Esposa minha, oh formosa minha, roubaste meucoração, feriste meu coração; ferido e despedaçado somente com um olho teu, ecom o colar de teu pescoço!”, como se dissesse, com uma só vista, no momentoque me mirastes, e no momento que eu te vi adornada e galante. Dando aentender quão de súbito se apoderou o amor, e argumentando ocultamente emsuas palavras, como se estivesse dizendo: Se somente uma olhada tua, e um colardos que tu costumas colocar quando te arrumas, bastou para render-me a teuamor, quanto mais envolventes não serão todos os teus olhares, tuas falas, teusrisos e tua beleza toda junta? (...) “Eu sou teu mais que meu e não é justo quedesdenhes de minha companhia; mas se o campo, e suas recreações, a qual teconvido, não basta para que queiras vir comigo, saibas que eu não possodistanciar-me de ti nem um pouco mais do que de minha própria alma; a qualtens em teu poder, porque com os olhos me roubaste o coração, e com a menorcorrente das que adornas o teu pescoço, me tens preso”482.

É o amor que lustra a alma que dormitava empoeirada e que sopra o pó lançando para

longe o temor. O pó que envolvia foi lançado adiante com o sopro. Neste contexto, se por

um lado o ‘do pó vieste para o pó retornarás’ enuncia a fugacidade da vida, por outro

certifica a presença do sopro. Assim, a alma ao ser saqueada (pelo amor) regozija-se por

ter sido sacada, já que se viu ao ser vista. Tocado pelo amor o amado logo aprende a amar

já que o amor como o vinho, nos torna mais ousados, seguros, altivos, despreocupados em

482 IBIDEM, pp.135-136.

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olhar para muitos pontos e assuntos483. Assim, já não se ocupa mais com ninharias de criança

nem honras, nem espera mais ser convidado primeiro, antes se convida e se oferece484.

O que ama imagina que já possui o que deseja485 e assim, faz do futuro incerto um

passado, um passo, acertado; possuído, se crê possuidor; junta coisas diferentes e de

diversos tempos como se tudo fosse um mesmo negócio486. O amor sensibiliza emprestando

sentido: ama-se na presença e na ausência, quando o amado se aproxima o olhar não se

detém noutra coisa, mas se o olhar não o alcança imediatamente, persegue-o através dos

rastros e assim, de sinal em sinal, vai acolhendo tudo o que vê motivado pelo que não vê:

o sino badala para recordar, aqui o sino é símbolo, acorde, pôr-se de acordo, pôr todo o

coração no que se vê motivado pelo que não se vê. Uma bandeira487, referência diuturna

que um bando segue ou conduz:

Metíome en la cámara del vino, y la bandera suya en mí amor. (...) E digamos, eé o melhor, que a Esposa tenha dito assim: colocou-me em sua bodega o meuAmado, e eu lhe segui; da mesma maneira que os soldados seguem sua bandeira,assim a bandeira que me conduz atrás dela e a quem eu sigo é o seu amor.Porque certo é que qualquer um que não tenha perdido o bom senso, que ame aquem lhe ama, e amando-lhe, que se fie dele, e fiando-se, que se deixe levar semsuspeita e sem receio por onde o outro quiser; porque o amor sempre é porto deconfiança, e o que é amado entende bem que quem lhe ama não leva senão ondeseja para seu proveito488.

Ir atrás ou ser capaz de ver por trás de um obstáculo qualquer, assentir e pressentir a

presença, só é possível porque se ama. O que ama mira, isto é, penetra com vista clara os

483 IBIDEM, p.80.484 IBIDEM, pp.86-87.485 IBIDEM, p.82.486 IBIDEM, p.106.487 Numa guerra sempre haverá, ao fim, ao menos uma bandeira. Se o porta-estandarte for atingido peloexército inimigo, ele é prontamente substituído. Diferentemente, o porta-estandarte do exército que vai seavantajando na batalha está longe da linha de frente, protegido, esperando o chamado do comandante paraque se ponha novamente diante do exército. A bandeira não sucumbe. A bandeira é símbolo permanente dovencedor. No contexto do Cântico, o amor não sucumbe já que vencer permanentemente é amar. 488 IBIDEM, p.101.

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segredos da alma489. Esse remeter-se é permitido (Metióme el rey en sus retretes490), querido,

consentido pelo que está sendo admirado. Quem ama vê o muro e quem está por detrás

dele e, não é fora de propósito pontuar que o muro era o limite de muitos povoados.

Teme-se passar do limite: ser presa do que não havia visto antes. O segredo neste

contexto é o desconhecimento do outro. O amar: a ilusão de que seja possível perdoar

(algo para doar) segredos que ao serem partilhados – em par, trilhados – agregam, no

instante mesmo em que se dissolvem. Nem um monte, nem um muro, nem uma parede

pode ser impedimento para se amar, porque quem ama não pede e, se não pede não pode

ser impedido.

Voz de mi Amado se oye. Helo, viene atravancando por los collados, saltandopor los montes.Helo ; ya está tras nuestra pared, acechando por las ventanas, mirando por lascelosías. É tão grande o cuidado do amor e está tão alerta no que deseja que,como dizem, a mil passos sente, dormindo escuta e por trás dos muros vê.Finalmente, é de tal natureza o amor que opera, em quem reina, diversas obrasque vão além da percepção comum dos homens; e por isto os que não sentem talefeito em si não as dão crédito, ou lhes parecem milagres ou, melhor dizendo,loucura, ver e ouvir tais coisas nos enamorados491.

O que amamos se mostra492 e em função disso não pode ser compreendido

definitivamente. O que segue bandeira não sabe para onde vai e, isto está posto, os que

489 LUIS DE LEÓN. (1991b), p.662.490 “Isto é, em todos os seus segredos, dando parte deles e de todas as suas coisas, que é a prova mais certado amor”. LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.82. E, ao contrário: “Si se endulzare en su boca maldad, cubijarlaha debajo su lengua. (...) isto é, se lhes chegar às mãos algum trato, troca ou despojo injusto que lhespareça proveitoso e gostoso, ponha-o na boca e cubra-o com a língua, ou seja, retenha-o em segredo semdar parte a ninguém”. LUIS DE LEÓN. (1991b), p.340.491 LUIS DE LEÓN. (1991ª), pp.104-105.492 Helo, ya está tras la pared, acechando por las ventanas, descubriéndose por las rejas. (...) Mostrándosepor las ventanas. Nesta língua se encontra nestas palavras uma nobre comparação que não se percebe nanossa. Onde dizemos mostrándose, a palavra hebraica é metzitz, que vem de tzitz, que é propriamente omostrar-se da flor quando brota, ou de qualquer outra maneira que se descubra. Pois como costuma assomaros craveiros pelos pequenos buracos das caniçadas que os cercam ou das vagens que rompem quandobrotam, e como as rosas que quando saem não se descobrem todas, mas somente um pouco, assim imaginae disse que seu Esposo, mais que o craveiro e que a rosa bela se descobre, de um modo ou de outro,mostrando às vezes os olhos e não mais, e outras vezes somente os cabelos. IDEM, p.107.

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seguem nunca sabem direito o caminho ou se estão seguindo o caminho direito. Assim, é

preciso estar sempre atento: a noite, aliada quando o amado está ao lado da amada,

obstaculiza quando ele é perdido de vista. É preciso estar alerta aos câmbios de sinal, a

bandeira não é facilmente encontrada ao cair da noite. Aqui, não se trata de nunca perder

o amado de vista (perdê-lo de vista não é necessariamente perdê-lo totalmente até porque

ele nunca se mostra inteiro), mas sim a demonstração de que quando se ama qualquer

variação é prontamente percebida: observar lágrima que escorre dividindo face e o olho

de onde ela vaza que umedecido reluz melhor a firmeza daquele que chora - outrora se

molhava os olhos das pombas tripolinas para através deles ler a disposição delas493.

Observar para melhor servir: observância e não somente observação, porque o amor não

encontra falta no que ama494 já que ele chega preenchendo:

Sus ojos como los de la paloma junto a los arroyos de las aguas, bañadas enleche, junto a la llenura. (...) O sentido correto é que a palavra hebraica [mileothque significa llenura e henchimiento] que havíamos dito, significa tudo aquiloque, possuindo algum assento ou lugar vazio ou destinado para seu assento,preenche bem um lugar que convém ao seu tamanho, como um diamante quecombina com seu engaste e uma pomba que enche o buraco ou o poial onde faz oninho495.

4.5. A CIDADE: A PAZ E O ESPANTO

O amor causa espanto: como as grandes cidades e exércitos496. Já fizemos

referência aos exércitos quando tratávamos do livro de Jó. Interessante notar que num

493 IBIDEM, p.156.494 Prov 10,12. cf. LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.149.495 IDEM, p.157.496 Diz mais: Espantable como ejército, sus banderas tendidas. Um bem extremo não espanta menos queum mal extremo; e assim diz para a Esposa que ela lhe provoca tanto espanto, como espantável é umexército. Sus banderas tendidas, isto é, postos seus esquadrões em ordem, prontos para o ataque. Quetambém quer dizer que, da mesma maneira que um exército ordenado a tudo vence e submete, sem que nadase interponha que não se renda e sujeite, nem mais nem menos, não tinha poder, nem resistência algumacontra a força da extrema beleza da Esposa. IBIDEM, pp.165-166.

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texto com cenário pastoral permeado de analogias entre o amor e a natureza, seja cotejado

espanto e cidades. É possível avistar os exércitos sem sair do campo497, para que as

cidades sejam vistas é preciso que se caminhe. Geralmente construídas em lugares altos

para estarem mais bem protegidas acabavam por exercer uma atração ainda maior a ponto

de desviar, inclusive, o passo daqueles que não as tinham como objetivo.

Hermosa eres, Amiga mia, como Tirsá; bella como Jerusalém, terrible como losescuadrones, sus banderas tendidas. (...) Pois a estas duas cidades disse oEsposo que é semelhante a beleza e formosura, cheia de majestade e degrandeza, da Esposa, dizendo: “Tão grande maravilha é ver quão bela és em tudoe por tudo, como é ver estas duas cidades reais, pois a fortaleza de seus lugares, amagnificência de suas construções e a grandeza e excelência de suas riquezas, avariedade de suas artes e ofícios, impõe grande espanto e admiração ao que ovê”. Ainda que pareça um pouco desigual a comparação, em verdade é muito apropósito para declarar o espanto excessivo que provocava no Esposo a vista desua Esposa, e quão grande e incomparável e fora de toda medida lhe parecia suabeleza; pois para declarar o que sentia, não lhe vinham à boca coisas menoresque cidades, e cidades tão importantes e populosas, isto é, coisas cuja formosuraconsiste em ser de muita variedade e grandeza498.

Afirmar a cidade é firmar um poder humano: os encantos da natureza não receberam

modelação humana – a não ser a denominação de encantos – diferentemente, as cidades

evidenciam uma obra que pode ser concebida como genuinamente humana. Disso, só é

possível escapar de dois modos: ou considerando, como no livro da criação, o homem

como obra divina e, por conseguinte, toda obra humana seria em verdade um

desdobramento da obra de Deus; ou uma formulação mais recente que a primeira, que

contrapõe a cidade de Deus e a dos homens. Existe uma desconfiança em relação às

cidades onde a variedade de elementos, linhas e formas quando vistas de longe denotam

497 Como nos recorda ROUGEMONT: “a Guerra nasceu nos campos - inclusive seu nome chegou aténossos dias. Porém desde 1914 assistimos a sua urbanização. Para boa parte das massas campesinas, aPrimeira Guerra Mundial foi um primeiro contato com a civilização técnica. Uma espécie de visita comguia à exposição universal das indústrias e artes aplicadas da morte, com demonstrações cotidianas aovivo”. (1993), p.270.498 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.165.

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uma harmonia provocativa, mas quando já se está nelas depara-se com uma confusão que

provoca temor inclusive nos amantes que nela entraram juntos499 mas que dela logo

querem sair500. À distância a cidade parecia uma, única; mas com a aproximação, a

multiplicação das ‘ruas’ dificultam a percepção da ‘ruah’. A cidade que fascina o olhar

impõe todas as suas nuances, ao conter muitos modos de vida enche de esperança o que a

circunda solitário e que está na busca de iguais. A terra foi prometida, mas as cidades têm

um histórico de perseguição da ira divina e além de tantos outros motivos, por um em

particular: elas resistem ao monoteísmo que só se exacerbava em tempo de guerra, ou

melhor, quando se guerreava as diferenças eram suspensas em nome da sobrevivência de

todos. Desse modo, a monotonia ocorria na cidade, o sofrimento e o medo da morte

dilapidavam as diferenças. A monotonia e o monoteísmo imperavam naquele grupo, o

erro estava com o grupo opositor e o paradoxal é que por essa lógica havia uma luta de

puros contra puros. A diferença é da paz e é só na paz que ela subsiste501, já que na guerra

o outro não é diferente, mas adversário (portador da adversidade), justamente, porque

almeja uma coisa, a mesma que o primeiro, sem a possibilidade da partilha. Na paz

(comportadora da diversidade) os indivíduos não desejam as mesmas coisas: cada um

pode buscar o que mais lhe apetece. O chamamento das cidades se afina às mais diversas

sensibilidades e interesses. Essa contradição é geratriz de tantos mal entendidos entre o

monoteísmo e as cidades. Babel e Sodoma – como tantas outras – causando temores pela

multiplicidade de línguas e amores502. E assim, o Esposo dirá receoso:

499 IDEM, p.198.500 “[a Esposa convida o Amado] para que saia com ela a viver e morar no campo, fugindo do estorvo einquietude das cidades”. IDEM, p.190.501 No tema da ‘Noite Serena’, recorrente na obra de LUIS DE LEÓN, podemos encontrar uma descriçãointeressante da multiplicidade de estrelas na noite como metáfora da paz: (1991ª), p.614.502 Interessante assinalar o quanto para o cristianismo a cidade se tornou desafiadora e não é demaisrecordar a ênfase para a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, a ‘cidade da paz’.

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Ponme como sello en tu corazón, como sello sobre tu brazo (...) duros como elinfierno los celos, las sus brasas son brasas del fuego de Dios. (...) E não sódesejo que me tragas em meu coração e pensamentos, mas também não queroque mires fora, nem ouça outra coisa senão a mim, teu Esposo (...) Desejotambém, Esposa, que ame somente a mim, sem amar outro; porque meu amor omerece, por causa do tormento advindo do ciúme dos que amam como eu503.

Vemos aqui uma consonância entre o sentimento de um povo e de um indivíduo:

as intervenções enciumadas de Deus no Antigo Testamento em prol da fidelidade de seu

povo e a persistência do zelo entre indivíduos que se amam. Assim, um amor alimenta o

outro que ao fim e ao cabo é a manifestação de um narcisismo que necessita encontrar

novas formas de expressão504. E se compreende melhor porque o Cântico dos Cânticos

não foi recusado no cânon (já que além da referência a Salomão, suavizava a fidelidade

dando-a uma forma mais idílica); como também, o porquê deste livro ter caído nas graças

do mundo medieval que refloresceu e floreou as dores do amor, muitas vezes para

contrabalançar os horrores de guerras insistentes505.

Mas também percebemos a grandeza do comentário de Luis de León que sabedor

da inadequação desses zelos com a proposta do amor cristão não critica essas

manifestações. Em outros textos, particularmente nos ‘Nomes de Cristo’, fará uso de todo

seu conhecimento para defender o seu lugar. Mas, ao comentar o Cântico, informado da

psicologia cortesã e das minúcias do texto hebraico e da religião judaica ilumina um com

auxílio do outro sinalizando o parentesco de fundo que os envolve. Como também,

influenciado por Erasmo, não estava desatento aos riscos dessa concepção amorosa que503 IBIDEM, pp.201-202. Como afirma André CAPELÃO: “Uma vez correspondido o amor, as angústiasque surgem não são menores; porque cada um dos dois amantes teme perder, pela ação de um terceiro,aquilo que conquistou com tanto esforço; situação bem mais penosa para todo homem é ver seus esforçosbaldados, contrariando-lhe as esperanças: suportamos bem menos a perda de coisas que acreditávamosobter do que a privação de um ganho que apenas esperávamos”. (2000), pp.7-8.504 Vemos persistir até hoje de um modo mais secularizado e propagandista este amor a alguém justificandotodo tipo de atrocidade, seja esse alguém um indivíduo ou a personificação de algo como a pátria. Nahistória ocidental inclusive Cristo foi utilizado para tais motivos.505 ROUGEMONT. (1993), p.251.

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denomina natural (no sentido de irrefreável) os zelos de amor que quase sempre

descambam em violência506.

Contudo, o pano de fundo de todas essas variações é tentar descobrir até que

ponto a caridade consegue minar o corrente amor fati. Mais uma vez o insistente

problema das mediações. A caridade também tem uma gramática que necessita se traduzir

para o que será alvo da conversão, em tese, a dor simplifica essa gramatologia já que

diante dela o doente ou busca a vingança ou a resignação (no sentido de resignificação de

sua vida) e é aqui que a caridade encontra seu terreno mais propício. E que uma confusão

seja dirimida: busca-se o doente e não a dor como flagelação507. A caridade, mais do que

auxiliadora para a compreensão do que a vida significa, é calço para os que sentem que a

vida perdeu o significado, inclusive, no intento de compreendê-la. Não é um dedo em

riste, mas uma mão que insiste em querer acolher e não manipular. Contudo, se existe um

motivo para a perda de significado nem sempre ele se esclarece. Mas, mesmo que não se

esclareça (confusão entre princípio e fim) resta o relato que é como um desfiar da

memória. Contudo, mais do que fios da meada, para o doente eles tomam o sentido de

fios afiados. Assim, a caridade surge para desafiar, ou seja, chega para cegar a lâmina que

corta fácil. É preciso conhecer o motivo da dor através do relato do doente. Se a dor tiver

sido motivada pelo amor é preciso saber desse amor para desatar o nó. O que tudo isso

tem a ver com a gramática da caridade? A caridade se conforma à dor do outro, mas para

506 Erasmo em ‘O Protesto da Paz’ (Querela Pacis) diz que se considerarmos as preces de Jesus ao Pai naÚltima Ceia, quando a morte era eminente. Alguém poderia supor que Ele pediria algo extraordinário, vistoque Ele sabia que o que quer que Ele pedisse, Ele seria ouvido. Ele disse, “Ó Santo Pai, poupe-os em Meunome para que eles possam se tornar um como Nós somos um.” Veja que nobre união Cristo deseja. Elenão disse que eles poderiam ser um único pensamento, mas que eles poderiam ser um, e não de qualquerforma, mas “como Nós somos um”. DOLAN. (2004), p.172.507 Contudo, como sinaliza William JAMES foi somente a partir do século XIX que ocorreu umatransformação significativa na relação do Ocidente com a dor: ‘já não se espera que um homem devasuportá-la’ e o flagelar-se deixou de ser demonstração de disciplina para constituir-se numa extravagância.(2002), pp.400-401.

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isso ela se informa como um médico diante de um doente. No amor cortês, a dor que

insiste é a da perda ou do receio da perda de quem se ama. É preciso compreender essa

relação, se imaginar cortês, perceber suas nuances, assumir sua gramática, ouvir o relato

do amante que perdeu de vista seu amado.

Yo abrí al mi Amado, y el mi Amado se había ido y se había pasado. (...) Issoquer dizer, não o encontrei quando abri a porta, porque já tinha ido e passadolonge. Bem se entende a tristeza com que a Esposa disse estas palavras, comoaquela que está envergonhada e triste com seu descuido [não responder aoEsposo fingindo que não estava em casa com a intenção de aumentar aintensidade do encontro]; e a repetição de sua fala que se había ido y se habíapasado deixa transparecer que estivesse assombrada e meio fora de si.Mi ánima se me salió en el su hablar. Isto é, a alma se derreteu em amor e pena,em ouvi-lo e vê-lo ir embora; mas irei e lhe buscarei e lhe darei satisfações;encherei o ar com o som de seu nome para que me responda e venha a mim. Mas,ai de mim, que procuro e não o encontro e chamando-o não me responde. Eassim com grande angústia logo acrescenta: Busquéle, y no le hallé; llaméle, yno me respondió. De onde se entende a ânsia com que andaria. E contajuntamente as desgraças que ocorreram depois disso, buscando a seu Esposo508.

Assim, a caridade assume a forma das formas que quer compreender. Contudo, o risco

para a caridade é justamente o de tomar uma forma definida e definitiva, passando a ser

uma forma dentre outras e ao marcar posição criar o confronto mais do que o encontro.

Mas também não é menor o risco contrário: adequar-se de tal maneira à gramática de seu

tempo, no intuito de miná-la desde dentro, e misturar-se com tanta destreza sem poder ser

mais percebida509. Mas, tanto numa opção quanto na outra um equívoco comum: esquecer

do trânsito, assim nem se definir, nem se dissolver, mas estar sempre pronto para o

amparo de onde quer que venha o pedido, pois na dor os homens se igualam510. São508 LUIS DE LEÓN. (1991ª), pp.151-152.509 Esta foi uma das reclamações de KIERKEGAARD quanto ao acolhimento de sua obra. Ele afirma queofereceu ao mundo uma alternativa. Com a mão esquerda, uma estética e com a mão direita dois discursosedificantes (ética): “porém todos, ou quase todos, pegaram com a mão direita o que eu sustinha com aesquerda”. (1988), p.25.510 Como afirmou CHATEAUBRIAND: “o homem que sofre divaga assim com seus pensamentos pordiferentes imagens, ao passo que o essencial de suas tristezas é sempre o mesmo. (...) Onde quer que hajavariedade há distração, onde há distração, não existe tristeza: tão necessária é a unidade do sentimento! Tão

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Boaventura afirmava, no seu Itinerário da mente para Deus que de pouco vale a ciência

sem caridade e a inteligência sem a humildade511, já que todo o conhecimento recobra seu

sentido ao oferecer sentido. Assim não se trata de um amor para se suster, mas para

sustentar. A caridade é proposta, mais do que resposta, para aqueles que sentem que os

signos falham.

4.6. “EU DURMO E MEU CORAÇÃO VELA”

Quem ama vela mesmo enquanto dorme. Luis de León faz um quarteto

interpretativo para o versículo abaixo, o primeiro deles de corte filosófico:

Yo duermo, y mi corazón vela. Afirma-se do que ama que não vive com ele maisque metade, pois a outra metade, que é a melhor parte dele, vive na coisa amada.Porque como nossa alma possui dois ofícios: o de criar e conservar o corpo e ode pensar e imaginar exercitando-se no conhecimento e contemplação das coisas,que é o principal; quando alguém ama, o ofício de pensar e imaginar, nuncaemprega para si, mas para a coisa amada, contemplando-a e tratando sempredela; somente dá a si e ao seu corpo um pouco de sua presença e cuidado, onecessário para viver e sustentá-lo512.

À antiga dicotomia de corpo e alma advinda do oriente antigo Luis de León sugere

uma pequena, mas curiosa variação. Já não se trata nem da disputa implacável entre corpo

e alma do neoplatonismo, nem a agonia na alma sugerida por Agostinho. É necessário

acalmar o corpo para que ele não macule o amor que quer alcançar o outro. Silenciar o

corpo não é denegri-lo ou renegá-lo já que aqui, em verdade, corpo denomina o que é

para si. Assim compreendido poderíamos dizer que tem algo que a alma incorpora e algo

para qual ela se lança desinteressando-se de si. Para tornar o exemplo ainda mais claro

Luis de León recorda que quando alguém se alimenta está se ocupando de si;fraco é o homem naquela mesma parte onde se acumula a sua força, na dor, queremos dizer”. (1928), p.10.511 BOAVENTURA. (1999), p.293.512 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.147.

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diferentemente, o pensar e o imaginar são inclusivos já que o exercício dessas faculdades

necessita de contrastes. Assim o que ele quer demonstrar com esse comentário é que

alguém pode, ao se alimentar, esquecer do outro (e isto é o mais comum), mas ao pensar e

imaginar mesmo que não esqueça de si, certamente, lembrará do outro. Tentar reduzir ao

máximo o momento do para si na alimentação era um traço comum a muitos grupos

religiosos desde a Antigüidade, uns por estarem preocupados com o bem estar do corpo

mais do que com sua satisfação; outros motivados por questões éticas impunham uma

seriedade neste trato simplificando ao máximo o gestual deste fazer, ou seja, torna-se

necessário evitar todo e qualquer desperdício que impeça o alimento para outros (e isto é

recorrente, o excesso de poucos é o limite ao acesso para tantos)513; também existiram

aqueles que ao limitarem excessivamente a alimentação provocaram o efeito contrário, ou

seja, não conseguiram esquecer do corpo (de si) um só momento. De qualquer maneira, o

que aqui se evidencia é o incômodo, para muitos religiosos, das necessidades imperiosas

do corpo que gerará casuísticas muito interessantes: como os que confundirão aquelas

necessidades com as tentações insistentes do diabo; ou como outros que entendendo as

necessidades de modo positivo se interrogarão se a fome é tão renitente quando Deus é o

alimento.

A segunda interpretação realizada por Luis de León do versículo supracitado tem

um corte psicológico já que o autor sugere que o Yo duermo, y mi corazón vela poderia

ser compreendido da seguinte maneira: quando dorme o coração vela quem ele ama

através dos sonhos. O sonho, como a lua e as estrelas, um resquício de dia no meio da

513 A título de exemplo citemos uma passagem de FILÓN DE ALEXANDRIA sobre ‘Os terapeutas’judaicos do primeiro século de nossa Era: [O banquete deles] “não são servidos por escravos, já quepensam que a possessão de serventes é totalmente contrária à natureza. Por esta engendrou a todos livres,porém a injustiça e a avareza de alguns, partidários da desigualdade, que é a origem do mal, subjugou aforça que tinham os debilitados, para colocá-la a disposição dos poderosos”. (2005), p.97.

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noite. É uma lembrança, uma persistência, um vínculo. O sonho revela o que não deixa de

ser levado. Graduações de presença, nunca ruptura; o sonho é vala e não intervalo.

Contudo, nem todo sonho é vinculante já que como sentenciava Ben Sirac: pegar sombras

e perseguir vento, assim é quem atende a sonhos. Espelho e sonhos são coisas semelhantes;

diante de um rosto aparece a sua imagem. Os sonhos extraviaram a muitos, os que neles

esperavam caíram514. Como acomodar essas situações distintas a respeito do sonho? A

diferença reside no seguinte: o sonho da amada não é projeção do que se quer, mas

confirmação da experiência que se vivencia, por conseguinte, o sonho só teria teor

negativo se o amor fosse ilusório. Iludida de amor o sonho seria manifestação de uma

ilusão. Contudo a cultura ocidental iria formular algo ainda mais suspeito: os sonhos

ganharam importância para compreensão do indivíduo, prorromperam da noite para

iluminar melhor o dia. Agora uma nova sentença, uma nova predicação: o amor foi se

tornando uma das variantes dos sonhos. Do sonho dos reis, ao sonho do amado para

descambar no que vem a ser o rei e o amado no sonho – a tipologia tão criticada na

interpretação dos textos antigos passa a ser deliberadamente utilizada para a compreensão

da psique humana para o encantamento das mentes mais liberais no ocidente moderno. O

amor - como o pensamento - um dos sonhos, uma nostalgia. Contudo, essa discussão

pode ser invertida da seguinte maneira: a partir do momento que a vida foi se

constituindo, para muitos, em sonho, tornou-se imperativo se encontrar alguma

substância nos sonhos com o intuito de se compreender a vida. Noutras palavras, se a

vida é sonho torna-se premente saber o que é o sonho para se tatear a vida.

O terceiro viés para Yo duermo y mi corazón vela é influência dos tratos de amor

cortês, assim enquanto a amada dorme, o amado vela o sono dela. Esse elemento de

514 Eclo 34, 2-3.7.

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proteção do amor servirá de ponte para Luis de León referir-se ao viés teológico que diz

respeito às miradas apaixonadas de Deus: cujo sumo e ardente amor pelos homens vai se

declarando através destas figuras; que muitas vezes, quando os seus estão mais esquecidos Dele,

então com seu grande amor os vela e rodeia com maior cuidado515.

O amor é forte como a morte. Se eles fossem contrapostos o resultado seria a

inércia. Mas, Luis de León não os contrapõe como também não sugere que o amor seja

um consolo à morte, já que dela não é possível se defender. A morte impõe-se aos

homens, não os permite escolher, por conseguinte, não os permite fugir: sentença de

morte. O amor rouba a vontade dos homens, na liberdade já não existe escolha, e como o

amor é livre, pode ir a qualquer momento. E isto seria o comum entre os dois: a

impotência do homem para defender-se da chegada da morte e da partida do amor, não

pode represar o que lhe funda, nem pode se desviar do que lhe finda516.

4.7. ALGO ESCONDIDO, VULGAR, NA VULGATA

Por volta do ano de 385 são Jerônimo escreveu uma carta a Marcela porque ela

estava interessada na cópia de um comentário feito por Reticio, bispo de Autun, sobre o

Cântico dos Cânticos517. Contudo, Jerônimo persuadiu-a de que a leitura desse comentário

não seria tão valorosa, pois Reticio teria incorrido em muitos equívocos ao traduzir o

texto supracitado. A partir disso, Jerônimo emite a seguinte opinião sobre a exegese:

São inumeráveis as coisas que me pareceram verdadeiros borrões noscomentários deste autor. A linguagem é indubitavelmente elegante e flui comgálico coturno; porém, que tem isso a ver com o exegeta, cujo ofício não é fazer-se passar por homem eloqüente, senão ajudar a que quem o leia entenda omesmo que entendeu o que escreve? Eu pergunto: ele não teria os dez volumes

515 LUIS DE LEÓN. (1991a), p.148.516 “No dia da morte não somos poderosos”. JERÔNIMO. (2004), p.479.517 JERÔNIMO. (1993), p.330.

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de Orígenes, não teria outros intérpretes ou, ao menos, alguns amigos hebreuspara ler ou perguntar que significava o que ele ignorava? Ou será que pensou tãomal dos vindouros que imaginou que ninguém seria capaz de criticar seuserros?518

Acima, Jerônimo se referia a signos aparentemente indubitáveis como Tarso e Tharsis519.

Mas, somado a isso o que ele quer certificar é que o comentário propriamente dito é

aproximação, mais do que exposição, de uma outra mentalidade. Numa carta a

Panmaquio afirma:

Para quem segue linhas alheias é difícil não sair delas em algum ponto, e é duraa tarefa conseguir que o que está bem dito em outra língua conserve a mesmabeleza na tradução. Às vezes toda uma idéia está expressa numa palavra precisa,e eu não disponho de algo semelhante para expressar o mesmo, e enquanto tentodar o sentido da frase, depois de largo rodeio apenas cobri a distância de umbreve caminho. A isto tenho que acrescentar as reviravoltas do hipérbato, adiferença dos casos, a variedade das figuras e, por fim, o peculiar e, por assimdizer, o gênio de toda língua vernácula. Traduzindo ao pé da letra, soaráabsurdo; se por necessidade cambio algo na ordem do discurso, parecerá quesaio da minha tarefa de intérprete. (...) Se alguém pensa que com a tradução agraça da língua não sofre, que traduza Homero literalmente ao latim, direi aindamais, que o passe a prosa em sua mesma língua, e verá que o estilo se tornaridículo e que o mais eloqüente dos poetas apenas sabe falar520.

Jerônimo tem consciência do quão difícil é apropriar-se de um texto. Percebe que

um texto sagrado é o retrato não de uma cultura, mas de um culto. Assim, está longe de

conceber a tradução como recriação já que acredita no texto. E é nesse sentido que

podemos falar de fidelidade ao texto. Mas o texto está escrito numa língua que não é a

sua. Se a linha (língua) é alheia é porque ela é o traço de outro: traduzir é reconstituir,

porém, a reconstituição de um crime não conta nunca com a presença de uma das partes.

Entendemos que essa analogia não é fora de propósito, pois que aqui também se trata de

518 IDEM, p.332.519 IBIDEM, p.331.520 JERÔNIMO. (1993), p.549.

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discernir, discriminar. Mas, o discernimento ocorre no campo limitado do que pode ser

reconhecido, e assim não se trata de identificar o outro, mas de identificar-se com o outro;

por isso, Jerônimo fala acima das linhas alheias. Com todas as limitações que tal

aproximação envolve o que sobra é o que pôde ser reconhecido. Entretanto, se por um

lado sabem que os frutos que colhem são de uma árvore que tem suas raízes no céu521, por

outro, receiam se aproximar de Naid, a terra que Caim se dirigiu e que quer dizer

‘flutuação’522 (Interessante e ‘aparente’ dicotomia: evita um lugar que flutua para provar

do fruto de uma árvore que levita ao revés).

Jerônimo alega que o tradutor deve ser capaz de descobrir o pensamento que as

palavras velam e é isto que, segundo ele, poderá ser traduzido. Aqui reside uma

duplicidade no procedimento: sugere-se um trabalho de garimpagem na certeza de que

existe uma veia de ouro (uma via, um caminho, um sentido) sob a palavra úmida, e assim

a palavra não seria a expressão, mas uma casca do pensamento; contudo, se ao contrário,

o pensamento não estiver sob a palavra, mas for imposto a ela, o que estará posto é que o

tradutor é quem impõe o sentido. Jerônimo estava atento a essa possibilidade e ao

comentar Eclesiastes 12,12 (Y para acabar, cuídate, hijo mio. Nunca se acaba de componer

muchos libros; y la mucha meditación es trabajo de la carne.) afirmará a tradição para que o

tradutor não se extravie: segue os passos de seus antepassados e não discrepes de sua

autoridade. De outro modo: Se buscas muito, te vem à mente um número infinito de livros que te

arrasta ao erro e faz trabalhar em vão o leitor. Nada mais distante do livre pensamento

moderno, essa liberdade seria para aqueles autores uma manifesta ilusão, pois se discutes

sobre diferenças e discrepâncias e com uma curiosidade excessiva levas o ânimo aqui e ali. O

que se quer compreender é o que ocorreu para se ter chegado até aqui e o ali é521 Carta de JERÔNIMO a Paulino de Nola. op.cit., p.503.522 IBIDEM, p.179.

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insistentemente refutado523. O relevante era encontrar um vínculo com o passado e quanto

mais remoto mais referendado. Inseridos num mesmo grupo em que a individualização

era praticamente inexistente, a identidade do grupo se fortalecia com o reconhecimento de

sua história comum, pois mesmo que sua Escritura estivesse composta por muitos livros

ela está limitada a um breve círculo e tanto mais se dilata em sentenças quanto se estreita no

discurso524. Assim, existe um curso que advém do passado como um rio de sua fonte e

para se chegar nela não é aconselhável afastar-se do leito, senão já não será nem pio nem

leitor. Insistamos, aqui não se trata de um olhar lateral, mas retroativo - lateralmente o

‘outro’ não podia ser compreendido, não havia meios (o ‘outro’ margeava o curso, uma

paisagem opaca). Um rio só é uma mediação quando se sai dele, pois se não é uma

hidrovia certeira da fonte ao mar, exato em suas curvas. Em função disso, recorre-se à

autoridade dos antepassados como apoios (arroios) para se chegar à fonte525.

Mas, como coadunar o princípio de autoridade que para se impor não pode se

multiplicar (autoridade da fonte, uma fonte autorizada, singular) com o caráter adaptativo

do cristianismo que para espalhar-se necessitou desde sempre ser traduzido? A

disparidade sempre será problema entre pares: é preciso traduzir, contudo, sem produzir a

multiplicação da fonte. É um pouco em função disso que Agostinho escreverá para

Jerônimo sugerindo que este evitasse verter a Sagrada Escritura para o latim, mas se

sentisse impelido a fazê-lo que cotejasse a versão dos Setenta ao realizar a tradução,

523 Contenda esta que secularizada esbarra atualmente na difícil relação entre o olhar do historiador e a doantropólogo, nos termos que Marcel DETIENNE utiliza para essa ‘disputa’ na qual sugere que enquantopara o saber antropológico a atividade comparativa lhe é consubstancial; na ‘ciência histórica’, ela é sempreinsólita. (2004), p.10. 524 JERÔNIMO. (2004), p.546.525 No século XIII Raimundo LULIO tinha sugerido um problema no que diz respeito à fonte monoteísta noseu ‘O livro do gentio e dos três sábios’: desta fonte surgiram três rios caudalosos que representam cadatradição - judaica, cristã e islâmica. Assim, mesmo que o gentio tendo bebido da fonte tenha recobrado umpouco de sua força, começou a se dar conta que ir à fonte não é deparar-se com a univocidade. O comumneste caso não é o que se recolhe da fonte, mas o se recorrer à fonte. (2001), p.48ss.

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como outrora Jerônimo teria feito com o livro de Jó. Em verdade, o temor de Agostinho é

que a Letra diversamente traduzida introduzisse a desunião526. O que Agostinho quer

evitar não é o comentário do texto sacro, mas que o texto tenha a letra (novamente)

modificada527. O que ele almejava é que o debate ocorresse sobre as interpretações de um

texto comum. Contudo, se o texto mesmo se move, se um versículo ao ser novamente

traduzido disser algo muito diferente do que dizia anteriormente, a nova tradução minará

a crença que se amparava no texto528. O que ele queria evitar com isso era aquela

flutuação (uma lembrança: ao flutuar não se chega à fonte) a que Jerônimo se referiu e

que Pascal, tecnicamente, avaliou: as palavras diversamente ordenadas constituem diversos

sentidos, e os sentidos diversamente ordenados produzem diferentes efeitos529. Mas esses

sentidos diversos num momento que o esfacelamento imperial já era suficiente para

agigantar a incerteza, longe de confortar, intensificavam o temor530. Numa das cartas

enviadas a Jerônimo, Agostinho disse:

526 Em 402, Agostinho escreveu o seguinte para JERÔNIMO: “A verdade é que eu preferiria que traduzissesas Escrituras canônicas gregas que circulam sob o nome dos Setenta Intérpretes. Seria verdadeiramentelamentável que, se tua versão comece a ser lida com freqüência em muitas igrejas, surgisse o desacordoentre as igrejas latinas e gregas, sobretudo levando em conta o fácil que é assinalar com o dedo aodissidente abrindo os códices gregos, quer dizer, numa língua conhecidíssima. Ao contrário, se, na traduçãodo hebraico, a alguém lhe causa estranheza uma passagem insólita, e pretende ver nele um delito defalsificação, talvez nunca ou quase nunca seja possível remontar-se ao texto hebraico, com o que poderiaser resolvida a objeção”. (1995), p.142.527 Mais correto seria afirmar: modificada novamente, já que a tradução dos Setenta que Agostinho aduz játinha um objetivo doutrinário, ou seja, adaptado às necessidades teológicas correspondente ao tempo dostradutores. SIMONETTI. (1985), p.16.528 “Certo bispo, nosso irmão, havia disposto que na igreja que ele governa seria lida tua tradução. Umapassagem do profeta Jonas, traduzido por ti de forma muito distinta de como se havia gravado nos sentidose na memória de todos, e de como se havia cantado durante larga sucessão de gerações, produziuperplexidade. (...) Assim, podes ver a conseqüências que traz consigo o apoiar-se em códices que nãopodem ser emendados por cotejo de textos em línguas conhecidas”. JERÔNIMO. (1995), p.143. Contudo,são Jerônimo responde a Agostinho: “te calas sobre o que é que eu traduzi mal, tirando-me assim apossibilidade de defender-me e aclarar com minha resposta o que tu tinhas alegado” (1995), p.311.529 PASCAL. (2004), p.22.530 DODDS ao descrever como teria sido o período do Império entre Marco Aurélio e Constantino afirmou:“ao referir-me a este período como uma ‘época de angústia’, penso na insegurança, material e espiritual quea caracterizou”. (1975), p.21.

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Nunca poderei expressar suficientemente minha estranheza de que nos originaishebraicos se encontre algo que tenha podido escapar a tantos tradutores e tãoperitos nesta língua. Deixo aparte aos Setenta. Se sua harmonia, maior do que setratara de um só autor, se deve à reflexão ou à inspiração, eu não me atreveriadar uma opinião firme; porém penso que, sem reserva nenhuma, tem queconceder-lhes uma autoridade preeminente neste cometido. O que mais meimpressiona é que os tradutores posteriores, apesar de aterem-se raivosamente,como se diz, ao sistema e às normas do léxico e a sintaxes hebreus, não só nãocoincidem entre si, senão que deixaram muitas coisas que a posteridade havia dedescobrir e expor. Em resumo, se as coisas são obscuras em si mesmas, pareceque também tu podes equivocar-te; se são claras, não parece que eles tenhampodido equivocar-se. Assim, pois, uma vez exposto meu ponto de vista, tepediria por caridade que me dês uma resposta satisfatória531.

Toda essa discussão tem um outro viés: o de tentar encontrar um suposto

equilíbrio entre a verticalidade ética (com todas as suas hierarquias) e a horizontalidade

estética (com todas as suas nuances) - é literalmente o x da questão (graficamente, linhas

que se cruzam sem o simbolismo da cruz, como também, enunciação de um centro sem

círculo). Contudo, o verdadeiro pano de fundo de tudo isso é a ausência da dimensão

estética no seio da Mensagem. Mencionar e dimensionar o estético vinculava-se

diretamente ao helenismo, ou seja, falar de estética era pronunciar mundo, as formas do

mundo que se queria rechaçar. Os grandes poetas eram pagãos e naquele contexto era

ainda inimaginável falar de poetas cristãos que pudessem causar alguma admiração por

sua estilística. A quase ausência do dogma e da ortodoxia no politeísmo citadino permitiu

que os poetas dançassem com as palavras: o flatus vocis criticado pelos que buscam a

verdade é a própria verdade na boca do poeta. Quando a virtude cristã surge como critério

a beleza da poesia gentil torna-se perigosa. Contudo, quando se é virtuoso a beleza (o

estilo) é uma aliada (para a conversão). Pois, segundo ele, ser fiel a um texto não obriga

incorrer no mau gosto. A rusticidade defendida posteriormente por Gregório Magno ao

comentar o livro de Jó teria sido rechaçada por Jerônimo. Para ele, a santidade é a

531 JERÔNIMO. (1993), pp.536-537.

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verdadeira simplicidade. Uma vida sem santidade é muito menos e, sem beleza, é menos

ainda. Uma vida com muita beleza é pouco quando comparada com o mais da santidade.

Nesta perspectiva erudir sempre será menos relevante do que santificar. A Panmaquio

escreveu Jerônimo:

Pois sempre venerei não a rusticidade falante, senão a santa simplicidade. Equem afirma que imita aos apóstolos na maneira de falar, que os imite primeiroem sua vida. A simplicidade daqueles no falar era compensada com a grandezade sua santidade532.

E certificou Paulino de Nola de que a ‘vulgaridade da linguagem’ das Sagradas Escrituras

longe de ser um problema tornava-as acessível a um auditório popular.

Eu te pergunto, irmão amantíssimo, viver entre estas coisas, meditá-las, nãosaber nem buscar nada mais, não te parece que é ter já aqui na terra uma moradado reino celeste? Não quisera que nas Sagradas Escrituras te ofendesse asimplicidade e quase vulgaridade da linguagem. Assim se apresenta, ou pelainaptidão dos tradutores, ou de propósito, para que sirvam de instrução a umauditório popular, de forma que numa mesma sentença o sábio ouça uma coisa eignorante outra533.

Jerônimo, como vimos, atribuiu à tradução de Reticio uma série de equívocos.

Coloquemos Jerônimo no lugar de Reticio, façamos dele o ‘equivocado’. Jerônimo

domina o hebraico, é profundo conhecedor do grego e, cultor e colhedor da língua latina.

No capítulo 4 do Cântico dos Cânticos, ele se depara com a expressão hebraica

tsamatech. Luis de León afirma que não compreende porque são Jerônimo trasladou-a

como hermosura encubierta534, já que noutras oportunidades como no capítulo 47 de

Isaías ele teria traduzido a mesma palavra hebraica por torpeza e fealdad535. Vejamos o

versículo que Luis de León justifica diante de seus opositores que não desdenhou da532 IDEM, p.562.533 IBIDEM, p.503.534 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.211.535 IDEM, p.212.

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tradução realizada por Jerônimo, apesar de deixar claro que a expressão utilizada por este,

no momento de traduzir essa passagem do Cântico, foi que provocou tantos mal

entendidos: Ay qué hermosa te eres, Amiga mia, oh cuán hermosa! Tus ojos de paloma

entre tus cabellos; tu cabello como un rebaño de cabras que miran del monte Galaad536.

Onde são Jerônimo escreveu ‘hermosura encubierta’, Luis de León traduziu como ‘tus

ojos de paloma entre tus cabellos’. Transcreveremos a passagem que Luis de León

explica o motivo de toda confusão:

Perdoem-me o que agora irão ouvir, que nem saberia dizer nem se poderia dizerde outra maneira: pois digo que são Jerônimo entendeu que a palavra hebraicatsamatech, que havíamos dito, era o nome próprio com que naquela língua senomeiam as vergonhas da mulher, como em castelhano tem o seu nome, e emlatim o seu; e porque não se atreveu a trasladar-lo em latim por seu vocábulo,para não ofender os ouvidos, usou de rodeio e como vimos, disse: Demás de loque está allá escondido. E seguiu a Símaco, que entendeu o mesmo e seaproveitou também para trasladar-lo do mesmo artifício de significar, por muitaspalavras encobertas honestamente, o que dito pela sua própria era desonesta. Eassim trasladou: Hermosos son los ojos, demás de lo que se calla. Este parecerde São Jerônimo sobre este lugar e palavra, eu confesso que nem me agradouquando escrevia aquele livro [Exposición del Cantar de los Cantares deSalomón] nem me satisfaz agora537.

Além de demás de lo que se calla Jerônimo e Símaco também propuseram, para substituir

a tradução do que eles entendiam como sendo ‘as partes desonestas da mulher’, demás

del silencio; e demás de lo que está escondido.

A partir disso Luis de León fará algumas observações: a primeira delas refere-se a

dimensão espiritual do texto que em função disso não faria referência àquelas regiões do

corpo. Quanto a isso Luis de León não se distancia muito dos autores antigos citados por

ele, pois o incômodo de Jerônimo era motivado pela compreensão de que sendo um texto

espiritual porque estaria presente uma parte do corpo que a própria natureza se incumbiu536 IBIDEM, p.125.537 IBIDEM, pp.212-213.

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de esconder. Estando escondida no corpo, por que a palavra descobriria?538 De qualquer

maneira tanto um quanto outro estava impregnado de uma moral que devia justificar e

fortalecer a abstinência que zelavam. A diferença enuncia-se na segunda observação de

Luis de León, pois este objetará Jerônimo afirmando o seguinte:

E se a Jerônimo e a Símaco lhes parecia coisa indecente (...) era menosdesonesto, ou menos perigoso, ou menos indecente dizer em hebraico aoshebreus, que em latim aos latinos e em grego aos gregos? Ou quis o EspíritoSanto que tivesse mais respeito às orelhas de Roma que ele teve aos ouvidos dopovo hebreu, donde lhe liam todos os santos e servos de Deus, hebreus?539

Somado a isso, em se tratando de um texto bem estruturado seria fora de propósito citar

aquela ‘parte encoberta’ no momento que o esposo loava as feições da esposa iniciando

pela cabeça e chegando aos olhos. Será que já não podendo mais conter-se (deixando

tantas coisas belas para trás como são nariz, boca, lábios, pescoço, seios e mãos), deu um

salto tão perigoso? Luis de León alega que nem no capítulo 7 do Cântico quando

Salomão descreve os pés, as pernas, ventre e seios da esposa, fará referência, o que seria

mais lógico, à... da esposa. Nem Ovídio, tido como poeta lascivo, fez jamais referência

direta540... E por fim Luis de León opina: aquilo que até no segredo da cama mal se diz,

ninguém pode dizer em público e por escrito, sem grande torpeza e desordem541.

Mas isto tudo estaria condicionado ao acerto de Jerônimo na tradução de

tsamatech como as partes acima referidas, ou melhor, sugeridas. Mas, Luis de León

afirmará categoricamente:

538 IBIDEM, p.215.539 IBIDEM, p.214.540 IBIDEM, p.215.541 IBIDEM, p.216.

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A isto digo que não sei se a palavra hebraica tem tal significação; mas, supostoque tivesse, possui também outra muito diferente, porque significa os cabellosou aladares, como havíamos dito, e como nos ensinam os doutos naquela língua.E assim, tendo esta palavra ambas significações, e vindo uma com o propósitoque ali se trata tão a pelo, e a outra tão a contrapelo, não creio que haveránenhum censor, por injusto que seja, que condene meu parecer; ou não confesseque, em coisa de tão pouca importância como esta, algumas palavrinhas das queSão Jerônimo pôs em sua tradução, admitem melhoria542.

Se por um lado Luis de León referenda a interpretação tradicional de que a mulher (a

amada) do Cantar dos Cantares é a Igreja543, por outro, mais próximo da heterodoxia (que

começava a ler a Bíblia ou partes dela não mais como livro de culto, mas de cultura), sabe

que o mesmo livro pode ser lido como uma canção puramente enamorada544. Por fim, ele

alega que:

Não podem dizer que desfaço a Vulgata, como dizem, senão que aclaro com oque está simples no original, a metáfora e figura de que a Vulgata utilizou. Nemmenos fazem justiça em chamarem-me nisto atrevido, pois que obro comohomem estudioso e diligente545.

4.8. A DOBRA DENTRO DA DOBRA

Toda a erudição a serviço do amor, toda erudição por amor. Outrora, no Antigo

Testamento se cantou a vitória sobre outro povo e, em função disso, Deus foi, ‘Deus seja

louvado’, afirmavam esses cantos. Assim, cantou Débora, Davi e tantos outros como

pode ser atestado num pequeno catálogo de tais cantos feito por Orígenes546. Mas, todos542 IBIDEM.543 IBIDEM, p.214. Segundo Henri de LUBAC, “no comentário do Cântico por santa Teresa, não haverámais traço algum do sentido eclesial, ainda tão acentuado em são Bernardo (...) e mesmo em Luis de León”.(1970), p.58.544 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.215.545 IDEM, p.217. Não é demais lembrar que na Nova Vulgata (revisão moderna da tradução de sãoJerônimo) foram acolhidas muitas das sugestões de Luis de León, inclusive esta de que nos ocupamosacima.546 É necessário que tu saias do Egito e que, tendo saído da terra egípcia, atravesses o Mar Vermelho, paraque possas entoar o primeiro cantar, dizendo: Cantemos ao Senhor, posto que foi honrado gloriosamente(Ex 15,1). Porém apesar de ter pronunciado o primeiro canto, estás ainda distante do Cantar dos cantares.Recorre espiritualmente a terra do deserto, até que chegues ao poço que cavaram os reis, para que ali cantes

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esses cantos, são menores quando comparados ao Canto dentre todos, ao Canto em todos

os cantos já que este Canto é de proteção e para proteger-se. Aqui os sinos dobram:

É característica da língua hebraica dobrar a mesma palavra, quando quervalorizar alguma coisa, ou para o bem ou para o mal. Assim, dizer Cantar deCantares [sir asirim547] é o mesmo que se costuma dizer em castelhano Cantarentre Cantares, como homem entre homens; isto é, destacado e eminente entretodos, e mais excelente que muitos outros548.

De igual maneira vemos essa dobra no início do Livro do Eclesiastes que descreve

a vaidade de todas as coisas, um sentimento tão próximo da experiência de Jó: Em

hebraico por vaidade de vaidades está escrito abal abalim, que, salvo os Setenta, todos

traduziram do mesmo modo: (...) nós podemos chamar ‘fumaça’ e ‘brisa tênue’ que se dissolve

rapidamente. Assim, com esta palavra se mostra a caducidade e inconsistência de tudo549. A

dobra dentro da dobra. No prólogo de seu comentário ao Cantar de los Cantares escreveu

Luis de León:

Nenhuma coisa é mais própria de Deus que o amor, nem ao amor tem coisa maisnatural que retornar ao que ama nas mesmas condições e engenho do que éamado. De um e de outro temos clara experiência. Certo é que Deus ama, e cadaum que não esteja muito cego pode reconhecer em si os assinalados benefíciosque de sua mão continuamente recebe: o ser, a vida, o governo dela e o amparode seu favor, que em nenhum tempo nem lugar nos desampara. Que Deus tenhamais apreço disto que de outra coisa, e que lhe seja próprio o amor entre todas assuas virtudes, se pode ver em suas obras, ordenadas para este fim, que é repartir

o segundo cântico (Nm 21,17-18). Depois deste, veja nas proximidades da terra santa, de modo que, de pé,as margens do Jordão, cantes o cântico de Moisés dizendo: ouça o céu, que vou falar, e escute a terra aspalavras de minha boca (Dt 32,1). De novo, é necessário que sirvas sob as ordens de Josué, que possuis aterra santa por herança, que a abelha profetize para ti e que abelha seja teu juiz – posto que Débora significaabelha -, para que possas proclamar também aquele cantar que se encontra no livro dos Juízes (Jz 5,2-32).A seguir, depois de haver ascendido até o livro dos reis, chega até o cantar que entoou Davi quandoescapou da mão de todos seus inimigos e da mão de Saul e disse: Senhor, meu apoio, minha fortaleza, meurefúgio e meu libertador (2Sm 22,2). Deves chegar até Isaías para que digas junto com ele: Cantarei aoamado o cantar de minha vinha (Is 5,1). E quando tenha superado tudo, eleva-te até as realidades maisaltas, para que possas, oh alma formosa, cantar com o Esposo, inclusive este Cantar dos cantares.ORÍGENES. (2000), pp.46-47.547 JERÔNIMO. (1993), p.332.548 LUIS DE LEÓN. (1991), p.76.549 JERÔNIMO. (2004), p.375.

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e por em possessão de seus grandes bens às criaturas, fazendo com que asemelhança dele resplandeça em todas, e medindo-se a si à medida de cada umadelas para ser gozado delas, que, como afirmamos, é própria obra do amor550.

Aqui a palavra é amor, mas quem conhece a solução da palavra?551

5. CONCLUSÃO

Luis de León só traduziu inteiramente dois livros bíblicos: o Livro de Jó e o

Cantar dos Cantares. A primeira pergunta que nos fizemos foi: por quê? Tínhamos

algumas intuições: a primeira delas, interessando-se pelo Antigo Testamento abria a

possibilidade de diálogo inter-religioso. Os humanistas de qualquer das três religiões

monoteístas eram os que possibilitavam o diálogo já que se por um lado eram formados

numa dada tradição, por outro, o interesse lato pelo humano os tornavam aptos para

outros relatos mesmo que estivessem impedidos constitutivamente de assumi-los como

revelação. Em contrapartida, esse conhecimento aparentemente desinteressado de uma

550 LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.70.551 Cf. JERÔNIMO. (2004), p.473.

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outra tradição religiosa, tinha também um objetivo político de explicitar para os seus o

que se estava pensando do outro lado da trincheira. No contexto da Reforma os eruditos

de uma dada tradição acabavam se tornando, mesmo contra a vontade, secretários ou

consultores (os novos magos) de qualquer autoridade constituída no campo religioso ou

mesmo no secular. Num contexto onde a religião tinha uma relação intrínseca com a

cultura, qualquer decisão relevante passava por uma sondagem do que poderia ser dito

por alguém que súdito ou cidadão era reconhecido como homem sábio nas questões

político-religiosas. A partir da segunda metade do século XVII é que se começou a

descosturar o fio que ligava Estado e Igreja de modo que, pouco a pouco, os eruditos (ou

intelectuais) puderam, paulatinamente, se posicionar contra o Estado protegidos pela

Igreja e vice-versa. Após a Revolução Francesa com a urgência do Estado laico as guerras

por motivos religiosos vão dando lugar àquelas que tinham como pano de fundo os

interesses econômicos. Do soberano à soberania nacional: mudado o contexto o

intelectual pôde, inclusive, criticar o Estado mesmo quando era financiado por ele. Esta

possibilidade nunca esteve aberta ao erudito católico na estrutura eclesial mesmo nos dias

de hoje, quanto mais no século XVI como é o caso de Luis de León.

Uma segunda intuição trata do estilo daqueles escritos: o livro de Jó é

deliberadamente ‘ficcional’ e passou a fazer parte do cânon mesmo recaindo sobre ele a

desconfiança de que não fosse genuinamente judaico. Espinosa ventila inclusive a

possibilidade de que o Livro de Jó não tenha sido escrito em hebraico e recorre a um

comentário de Aben Esdras onde este teria afirmado que tal livro foi traduzido de uma outra

língua para o hebraico residindo aí as razões de sua obscuridade552. Muito antes de Espinosa,

Maimônides afirmou que a história de Jó, tão maravilhosa e surpreendente, (...) se trata de uma

552 ESPINOSA. (2003), p.130.

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parábola cujo objetivo é ilustrar as opiniões dos homens acerca da Providência: (...) Já sabes a

afirmação categórica de alguns, de que Jó não existiu, e é somente uma parábola. Os que pensam

que ele existiu realmente e de que se trata de uma história autêntica, ignoram sua época e

lugar553. No que diz respeito ao Cântico, um canto nupcial que consagra o amor humano e,

por conseguinte redime a desconfiança original do relato da criação – se neste a mácula

gera certa barreira (certa parreira) entre homem e mulher, no Cântico uma descrição

detalhada das formas do corpo nu. No Cântico a referência a Deus ocorre somente uma

vez para exprimir uma coisa no grau superlativo554, assim não se trata de um

agradecimento ou do reconhecimento da participação Dele naquele encontro amoroso.

Deus é convenientemente deslocado e no momento que se relata a intensidade do amor

que une os que amam, diz-se brasas de Deus. Um amor fumegante une os amantes de

modo que:

Muchas aguas no pueden matar el amor, ni los rios lo pueden anegar. Si diereel hombre todos los haberes de su casa por el amor, despreciando losdespreciará. (...) as brasas deste fogo amoroso, que arde em meu coração, sonbrasas de llamas de Dios; quer dizer, são chamas de vivíssima e forte chama. Talfogo é maior e mais ardente que o que se usa, porque este fogo, ao jogar umpouco d’água, se mata, mas o fogo do amor vence a todas as águas; jogando-lheágua, arde mais e se embevece, ainda que se derramassem sobre ele rios inteiros.Assim que tão forte é o amor, que não basta todo o poder da terra para vencê-loatravés da força. Nem tampouco se deixa vencer por dádivas e subornos, porquenão se abate com nada disso o amor, por sua grande majestade; antes, disse,afirmo que, se o homem quisesse se resgatar do amor que lhe cativa e lhe dessepara seu resgate todas as riquezas e haveres que tivesse em sua casa, ainda quefosse muito rico, não se curaria do amor, e este desprezaria o que as oferece e lhefaria servir a força. De maneira que o amor é um senhor muito forte eimplacável, quando possui o coração de alguém. Assim, sendo tal meu amor porti, justo é que tu me respondas amando-me com igual firmeza555.

553 MAIMONIDES. (1984), p.437.554 ESPINOSA. op.cit., p.25.555 LUIS DE LEÓN. (1991), pp.201 e 203.

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No Livro de Jó tanto ‘o que sofre’ quanto o próprio Deus são personagens e não

personalidades. Alguém escreveu a partir da experiência de um sofredor, mas

necessariamente não sofreu as mesmas tribulações daquele que ele se propôs descrever.

De igual maneira, um outro escrevente ou escritor que longe de expiar pecados, espiou a

alegria envolvente daqueles que se amam. Tanto num caso quanto noutro um traço

comum: relato da dor e do amor que não foram escritos para convencer e assim

sobrevoam todo e qualquer sectarismo (traço que incluiria também o livro do Eclesiastes

neste contexto). A provação de Jó não quer provar nada para os que lêem o texto, nem

sim, nem não, nem contra nem a favor. Sumido em quaisquer dos personagens556 algo

estará dito, a ‘verdade’ transita daqui para ali. Mesmo o discurso de Deus é posto ao lado

e não sobreposto aos outros discursos e, de certa forma, os momentos fortes do texto

residem nos revolveres de Jó e não no consolo divino. Àquela relação pessoal com Deus

relatada por tantos profetas bíblicos, soma-se uma forma inesperada, sob certos aspectos,

bastante ‘não-bíblica’557: o Deus pessoal surge de um personagem. O livro de Jó é único

quanto a isso: Jó não é real no sentido histórico ou fático; Jó é um personagem. Jó é uma

obra criativa, ele não existiu. Antes Jó tivesse existido, antes fosse coisa do passado. De

fato, o sofredor não existiu, ele nunca existiu: ele existe. No ‘final’ da cadeia é o leitor

que sofre com os sofrimentos de Jó e ao descobrir-se sofredor interroga-se com Jó: por556 A partir da interpretação dos nomes hebraicos feita por Jerônimo surgiria uma sugestiva situação: Jó,como já foi dito, ‘o que sofre’; Sofar, ‘destruição da observação ou o que destrói ao que observa’; Elifaz,‘desprezo de deus’; Bildad, ‘velhice solitária’ e; Eliú, ‘meu deus é este ou deus senhor’. Desconsiderandoque cada um deles demarque um lugar determinado e inserindo a discussão a respeito do sofrimento de Jóno contexto dos nomes hebraicos descritos acima, teríamos: aquele sofre projeta um futuro melhor,desengana-se, e se depara ou teme se deparar com uma velhice solitária e não necessariamente com asabedoria (que em tantos outros textos bíblicos ligava-se aos anciãos). O desprezo de deus: por deusdesprezado ou desprezando deus. Quanto ao deus senhor já não se sabe mais se se trata de uma afirmação(Ele é o Senhor.) ou uma interrogação (Ele é o Senhor?), por conseguinte: Como um deus senhor poderiaser desprezado? Ou, como um deus senhor desprezaria? A dor, insistente ou não, destrói tudo o queobserva, ou melhor, destrói o modo como se observava: ela faz ruir o edifício, a dor modificainstantaneamente a percepção que o sujeito (agora sujeitado) tinha da realidade. Cf. JERÔNIMO. (2004),pp.211 e 213.557 GABEL. (1991), p.107.

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que tanto sofrimento?558 Através da pena do autor, a pena de Jó e neste livro (como é

comum entre os sapienciais) não se diz: ‘Deus disse’ já que aqui, deliberadamente, é o

autor que põe voz no Artífice. A ficção já não concorre com o histórico como se esse

fosse um reencontro com o passado certo, mas sutilmente faz do histórico aquilo que

insiste em comichar no presente. Assim, a história já não é a recuperação do passado, mas

sim o que ainda não se recuperou no presente, o que ainda dói. E, é mais fácil curar um

coração que sente dor que outro que por força de não senti-lo se tornou inumano559. Se a

indiferença é o que se fixou, é o que aderiu, a ficção impressiona e envolve, tentando

mover (comover) o que insiste em fixar-se. Fixada indiferença como montanha, como

atalaia560, a ficção contribui para removê-la, refazendo, inclusive, o que se entende por

lugar seguro já que a montanha pode ser removida. O alto, refúgio seguro é convertido na

última ilusão.

A ficção, no Livro de Jó, alerta para o sofrimento alheio; a ficção, o livro de Jó,

sinaliza que tanto o ortodoxo quanto o heterodoxo são incapazes de compreender o

sofredor, neste sentido inclusive já se sugeriu que o Livro de Jó seria uma resposta aos

diálogos de Platão561, não só por ter sido escrito por um poeta (e como afirmava Kafka ao

comentar a exclusão dos poetas do Estado por Platão: “Os poetas [...] são elementos perigosos

para o Estado, já que eles querem transformá-lo. Ora o Estado e seus devotos não aspiram, da

558 “O desditado pergunta ingenuamente aos homens, às coisas, a Deus ou, se não crê, a não importa o quê.[mas] Se lhe explicam as causas da situação em que se encontra, o que por outra parte não costuma serpossível, por causa da complexidade dos mecanismos que intervém, isso não suporá para ele uma resposta.Pois sua pergunta “por quê?” não significa “por que causa?” senão “com que fim?” E naturalmente não sepode indicar fins. A menos que se elaborem uns fictícios, porém essa elaboração não é positiva”. WEIL.(1995), p.87.559 AGOSTINHO. (1983), p.694.560 “[Atalaia] quer dizer, casa ou coisa posta num lugar alto e forte, e que serve para avistar os inimigos, sevêm, e mostrar o caminho aos que passam; e por sua utilidade e pelo lugar que ocupa, tem que ser uma casaforte”. LUIS DE LEÓN. (1991ª), p.132.561 BORGES. (1999), p.556.

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parte deles, senão a sobreviver.”562), mas por ser uma das obras bíblicas mais prenhes de

paradoxos. Falávamos acima da atalaia, citemos Pascal:

Eis aqui nosso verdadeiro estado: sermos incapazes de saber certamente e deignorar absolutamente. Vagamos num lugar amplo, inseguros e flutuantes,empurrados de um lado para o outro. Se existe algum ponto no que acreditamospoder afirmar-nos e unir-nos a ele, cambaleia e nos abandona, e se lhe seguimos,escapa, desliza e foge numa eterna fuga. Para nós nada se detém. Este é o estadoque nos é natural e sem embargo o mais contrário à nossa inclinação: ardemos nodesejo de encontrar uma ocasião e um lugar firme para edificar sobre ele umatorre que se eleve até o infinito, porém nosso fundamento se funde e a terra seabre até os abismos563.

A respeito do autor de Jó, dirá Jean Bottéro:

Devemos considerá-lo não apenas como um poeta extraordinário, mas como umpensador religioso de primeira grandeza. (...) Um século antes de Platão, e porpura intuição religiosa, chegou assim a estabelecer, na verdade, uma ordemdivina e absolutamente diferente da humana, e a atingir essa expressão última detoda a metafísica e de toda a teologia: “Não tenho nenhuma necessidade de umDeus que eu compreenda!”564

A não compreensão não decreta uma falência na relação com Deus, mas põe em retirada a

pretensão de se ter um lugar privilegiado na relação com Ele. Não saber suficientemente a

respeito do transcendente de alguma maneira iguala-nos - a douta ignorância referida por

Nicolau de Cusa.

Mas por se tratar de uma religião da redenção acredita-se que ao fim o sofrimento

cessará. Acredita-se com todas as forças. Mas, enquanto a redenção não vem e o

sofrimento e a dor insistem em assolar, haverá algum consolo? Não, porque já não existe

lugar para se prometer, por conseguinte, cessou o tempo das promessas. A caridade não é

562 Cf. LÖWY. (1989), p.67.563 Cf. GOLDMANN. (1986), p.274. Ou: PASCAL. (1988), p.32.564 BOTTÉRO. (1993), pp.136-137.

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promessa, mas sim efetivação. Logo, a caridade é resposta para tempos de promessa e

tempos de desespero. A caridade é suporte para o que dói e já não espera, como também

transporte para aquele que em meio à esperança ainda crê na transformação do mundo. É

esse paradoxo que o Livro de Jó, esse drama imaginário em meio a uma coleção de livros

tão proselitista565, dispõe. Essa ‘duplicidade’ do livro gera inclusive desconforto naqueles

que querem relacioná-lo diretamente com a tragédia, quando se considera ‘original’

somente a parte central do livro em que Jó descobre seus lamentos e é repreendido por

seus amigos; ou com a comédia, quando se leva em conta o final ‘surpreendente’ em que

Jó tem seus bens dobrados por Deus depois de ter se dobrado por causa da dor (a dispensa

seguida de recompensa). Harold Bloom é um dos adeptos da primeira corrente já que,

segundo ele, o torpe epílogo é um absurdo escrito [posteriormente] por qualquer néscio

devoto566. Northrop Frye assevera que o relato em U (próspero – desespero – próspero) em

que cada mudança ocorre de modo extraordinário reporta à (divina) comédia567. Com isso

queremos ratificar que Luis de León teve uma outra intuição: a de que o livro de Jó

deveria ser relacionado ao Cantar dos Cantares e assim, a dor e o sofrimento seriam

redimidos não mais por uma promessa, mas por uma ação de amor, que em verdade como

vimos, é uma modulação do sofrer. É por isso que se afirma que o amor tudo suporta:

Deus é amor e assim tudo se torna suportável, pois é propriamente Ele quem suporta. No

final das contas o homem se deu conta de que é preciso um deus para se suportar a vida:

pode ser uma de suas faculdades, um de seus sentimentos ou uma de suas técnicas. Algo

etéreo ou material. Maquiavel afirmou que os homens mudam de senhor de bom grado com a

esperança de melhorar568 e Rousseau que longe de abandonar-me ao desânimo e às lágrimas,

565 FRYE. (1988), p.65.566 BLOOM. (2005), p.24.567 FRYE. op.cit., pp.183 e 198.568 MAQUIAVEL. (2005), p.39.

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não fiz mais que cambiar de esperanças569.

Não é casualidade que a caridade seja considerada a mais relevante das virtudes

teologais, justo porque ela será necessária mesmo quando se puder abster da fé (religiosa)

e da esperança. Poderíamos afirmar pretensiosamente, contanto, não se trata de nenhuma

profecia: a promessa não se realizou, mas algumas de suas circunstâncias sim.

Exageremos: perdeu-se a fé e a esperança, como outrora teria ocorrido com o povo

hebreu, tão logo deixou de ser cativo do Egito570. Já não se sai do inferno com um galho

de oliveira571 nas mãos, como outrora relatou Dante. Como no livro de Jó o ‘inimigo’

sopra com mais habilidade que Deus, já que ao soprar palavras sedutoras no ouvido

daquele que tudo sabe, fez com que Deus colocasse à prova um dos seus. Ele também foi

seduzido, provocado a mostrar todo seu poder ‘brincando’ com a impotência humana572.

Deus teve seu momento de Eva e de certa forma ela foi redimida. Portanto, todas as raízes

foram cortadas, a árvore secou. Se o niilismo é a confirmação de que o fundamento já não

funda e que o homem já não tem mais onde se agarrar; se Deus é uma projeção humana;

se já não existem profetas nem patriarcas; já que negada a promessa de hoje para adiante,

conseqüentemente, já não se ouvirão as profecias daqueles que no ‘passado’ quiseram

alcançar o hoje (que era o futuro para eles); que se coloque a esperança de volta na caixa

de pandora e que a fé assuma a sua condição helênica de ‘crença ou convicção cega’573.

Tudo isso estando certo a caridade não será invalidada, ao contrário, confirmará sua

569 ROUSSEAU. (1980), p.82.570 GREGORIO DE NISA. (1993), p.63.571 “As almas, percebendo claramente,/ ao ver-me respirar, que eu era vivo,/ ficaram a entreolhar-se, à nossafrente./ E tal à roda do que acena o olivo/ as gentes se comprimem, pressurosas,/ para ouvi-lo, e ninguém semostra esquivo.” DANTE. (1979), p.25. E como nos recorda Marcel DETIENNE: “Única entre todas asárvores frutíferas, a oliveira jamais perde suas folhas, (...) nunca murcha. (...) Um aspecto surpreendente daoliveira: o tronco pode morrer, a cepa guarda toda a sua vida”. (1991), p.56. E como nos recorda JUNG aoliveira, dentre outras árvores, é considerada “desde tempo imemoriais como símbolo da deusa-mãe e dadeusa do amor”. (1986), p.30.572 JUNG. (1990), p.32.573 KOYRÉ. (1966), p.39.

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importância sem que necessariamente seja compreendida como fundamento ou como

promessa574. Contudo, para aquele que ainda crê, no sentido que desenvolvemos no

decorrer de nosso trabalho, a espera é amorosa. Segundo Ernest Bloch:

O afeto da espera sai de si mesmo, ampliando as pessoas, em vez de estreitá-las:ele nem consegue saber o bastante sobre o que interiormente as faz dirigirem-separa um alvo, ou sobre o que exteriormente pode ser aliado a elas. A ação desseafeto requer pessoas que se lancem ativamente naquilo que vai se tornando e doqual elas próprias fazem parte575.

Assim, saber esperar é amar. A esperança sem caridade é fanatismo e, segundo

Lessing, o fanático obtém por vezes justas visões do futuro, porém é incapaz de esperar esse

futuro576 e isso ocorre porque ele desliga violentamente o aonde se quer chegar do ponto

em que ele se encontra e, posteriormente, ainda violentamente, força a aproximação

desses dois pontos. Em contrapartida, se não consegue aproximar o que projetou, lança-se

para trás, pára, corre adiante e, se num salto mágico e desesperado para frente não

consegue alcançar o que objetivava, acaba vencido pelo cansaço: excesso de ímpeto ou

apatia. Sobre isso escreveu são Jerônimo: o esforço limitado pode ser mais intenso; o esforço

sem termo deverá ser mais moderado. Naquele se tem momentos para respirar; nestes temos de

caminhar constantemente577. Por não saber esperar, destempero com a vida.

Orígenes no seu comentário ao Cantar dos Cantares afirmou, parafraseando são

Paulo:

574 Eliú disse para Jó: Contemplará sobre hombres, y dirá: Pequé, y derecheza perverti, y no igualdad a mí.(...) no igualdad a mí, isto é, que foi sua pena [a de Jó] menor que sua culpa (porque a palavra [sava]significa não só igualdade, mas também promessa ou prazer) toma-se em dois outros sentidos. Uma, y nopromesa a mi, quer dizer, servi à maldade e o mundo não me pagou nem correspondeu as minhasexpectativas, como prometeu inicialmente; pois também é verdade, que os vícios debaixo de grandespromessas dão maus resultados. Outra, que se aproxima muito desta no placer a mi; porque nenhuma coisatira menos o pecador do pecado que deleite e contentamento, cuja esperança lhe move; mas,contrariamente, seu verdadeiro fruto é desgosto e tormento. LUIS DE LEÓN. (1991b), pp.530-531. 575 BLOCH. (2005), p.13.576 LESSING. (1990), p.643.577 JERÔNIMO. (1995), p.210.

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O amor suporta tudo, crê tudo, espera tudo, tolera tudo. O amor não é mais nemmenos. Portanto não existe nada que não suporte aquele que ama de maneiraperfeita. Ao revés nós não suportamos mais, certamente porque não estamos noamor, que suporta tudo. E se não suportamos pacientemente qualquer coisa, istoocorre porque falta o amor que suporta tudo. (...) De tal amor é que fala o nossotexto578.

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