bourdieu - provação escolar e consagração social

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19 Provação escolar e consagração social. As classes preparatórias para as grandes escolas 1 Pierre Bourdieu Resumo Provação escolar e consagração social. A ação pedagógica não produz somente efeitos técnicos (saberes e saber- -fazer inculcados); ela também tem uma eficácia propriamente mágica de iniciação e de consagração que pode ser particularmente percebida no caso das “escolas de elite”, ou seja, no caso das instituições encarregadas de conferir uma formação aos que são chamados a entrar na classe dominante. A partir de uma enquete realizada nas classes preparatórias para as grandes escolas (Khâgnes, taupes) e nas grandes escolas (em particular Escola Normal Superior e Escola Politécnica), foram analisados os efeitos técnicos exercidos pela organização escolar desses estabelecimentos, sobretudo as incitações, as obrigações e os controles permanentes postos em prática nessas instituições para reduzir a existência dos alunos a uma sucessão ininterrupta de atividades escolares, as quais estão no princípio da aquisição do que se pode chamar de “cultura de urgência”, capacidade de “mobilizar rapidamente as ideias” e de “tratar honrosamente qualquer questão”. Mas todas essas operações técnicas dos processos educativos são sobredeterminadas simbolicamente e preenchem, também, uma função de consagração. Assim, pode-se descrevê-las como momentos de um ritual de consagração que tende a produzir uma nobreza separada, socialmente distinta, sagrada. 1 Este artigo foi publicado pela Revue Actes de la recherche en sciences sociales. Ano de 1981, volume 39, número 1, p. 3-70, com o título “Épreuves scolaires et consécration sociale: les classes préparatoires aux grandes écoles”. O texto original, em francês, está disponível no sítio: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335- 5322_1981_num_39_1_2124. A tradução para o português foi realizada por Tiago Ribeiro Santos e Silvana Rodrigues de Souza Sato e a revisão técnica por Ione Ribeiro Valle. Informamos que a pedido da Revue Actes de la recherche en sciences sociales não adequamos a formatação do texto ao projeto gráfico de nossa revista, garantindo a formatação mais próxima possível da original. Justificamos também a ausência das palavras-chaves na publicação da versão em Língua Portuguesa, visto que o original não as possui.

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Provação escolar e consagração social. A ação pedagógica não produz somente efeitos técnicos (saberes e saber- -fazer inculcados); ela também tem uma eficácia propriamente mágica de iniciação e de consagração que pode ser particularmente percebida no caso das “escolas de elite”, ou seja, no caso das instituições encarregadas de conferir uma formação aos que são chamados a entrar na classe dominante.

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  • 19

    Provao escolar e consagrao social.As classes preparatrias para as grandes escolas1

    Pierre Bourdieu

    Resumo

    Provao escolar e consagrao social. A ao pedaggica no produz somente efeitos tcnicos (saberes e saber--fazer inculcados); ela tambm tem uma eficcia propriamente mgica de iniciao e de consagrao que pode ser particularmente percebida no caso das escolas de elite, ou seja, no caso das instituies encarregadas de conferir uma formao aos que so chamados a entrar na classe dominante. A partir de uma enquete realizada nas classes preparatrias para as grandes escolas (Khgnes, taupes) e nas grandes escolas (em particular Escola Normal Superior e Escola Politcnica), foram analisados os efeitos tcnicos exercidos pela organizao escolar desses estabelecimentos, sobretudo as incitaes, as obrigaes e os controles permanentes postos em prtica nessas instituies para reduzir a existncia dos alunos a uma sucesso ininterrupta de atividades escolares, as quais esto no princpio da aquisio do que se pode chamar de cultura de urgncia, capacidade de mobilizar rapidamente as ideias e de tratar honrosamente qualquer questo. Mas todas essas operaes tcnicas dos processos educativos so sobredeterminadas simbolicamente e preenchem, tambm, uma funo de consagrao. Assim, pode-se descrev-las como momentos de um ritual de consagrao que tende a produzir uma nobreza separada, socialmente distinta, sagrada.

    1 Este artigo foi publicado pela Revue Actes de la recherche en sciences sociales. Ano de 1981, volume 39, nmero 1, p. 3-70, com o ttulo preuves scolaires et conscration sociale: les classes prparatoires aux grandes coles. O texto original, em francs, est disponvel no stio: http://www.persee.fr/web/revues/home/prescript/article/arss_0335-5322_1981_num_39_1_2124. A traduo para o portugus foi realizada por Tiago Ribeiro Santos e Silvana Rodrigues de Souza Sato e a reviso tcnica por Ione Ribeiro Valle. Informamos que a pedido da Revue Actes de la recherche en sciences sociales no adequamos a formatao do texto ao projeto grfico de nossa revista, garantindo a formatao mais prxima possvel da original. Justificamos tambm a ausncia das palavras-chaves na publicao da verso em Lngua Portuguesa, visto que o original no as possui.

  • 20

    Epreuve scolaire et conscration sociale [Les classes prparatoires aux grandes coles]

    Rsum

    Epreuve scolaire et conscration sociale. Laction pdagogique ne produit pas seulement des effets techniques (savoirs et savoir-faire inculqus); elle a aussi une efficacit proprement magique dinitiation et de conscra-tion qui se laisse plus particulirement apercevoir dans le cas des coles dlite, cest--dire dans le cas des institutions charges de confrer une formation ceux qui sont appels entrer dans la classe dominante. A partir dune enqute mene dans les classes prparatoires aux grandes coles (khgnes, taupes) et dans les grandes coles (en particulier cole normale suprieure et Ecole polytechnique), on a analys les effets tech-niques exercs par lorganisation scolaire de ces tablissements, notamment les incitations, les contraintes et les contrles permanents qui sont mis en uvre dans ces institutions pour rduire lexistence des lves une succession ininterrompue dactivits scolaires et qui sont au principe de lacquisition de ce quon peut appeler une culture durgence, capacit mobiliser rapidement les ides et traiter honorablement nimporte quelle question. Mais toutes ces oprations techniques des processus ducatifs sont surdtermines symboliquement et remplissent, par surcrot, une fonction de conscration. Aussi, peut-on les dcrire comme autant de moments dun rituel de conscration qui tend produire une noblesse spare, socialement distingue, sacre.

    Prueba escolar y consagracin social - Las aulas preparatorias para las grandes escuelas

    Resumen

    Prueba escolar y consagracin social. La accin pedaggica no slo produce efectos tcnicos (saberes y saber-hacer inculcados); ella tambin tiene una eficacia propiamente mgica de iniciacin y de consagracin que se puede percibir sobre todo en el caso de las escuelas de lite, es decir, en el caso de las instituciones encargadas de una formacin que permite a los que son llamados a entrar en la clase dominante. A partir de una encuesta realizada en las clases preparatorias para las grandes escuelas (Khgnes, taupes) y en las grandes escuelas (particularmente Escuela Normal Superior y Escuela Politcnica), fueron analisados los efectos tcnicos ejercidos por la organizacin escolar de estos establecimientos, en especial los incentivos, las obligaciones y los controles permanentes establecidos en esas instituciones para reducir la existencia de los estudiantes a una sucesin ininterrumpida de actividades escolares, las cuales estn en el principio de la adquisicin de lo que se puede llamar cultura de urgencia, capacidad de movilizar rpidamente las ideas y de tratar honorablemen-te cualquier tema. Pero todas estas operaciones tcnicas de los procesos educativos son sobre determinadas simblicamente y llenan, tambin, una funcin de consagracin. As, se puede describir como momentos de un ritual de consagracin que tiende a producir una nobleza separada, socialmente distinta, sagrada.

  • Pierre Bourdieu 21

    Provao escolar e consagrao social.As classes preparatrias para as grandes escolas

    Este ou aquele, por exemplo, considera o trabalho, os negcios como sua vocao. Ei-los portanto

    transformados em trabalho sagrado, em negcios sagra-dos, em sagrado.

    (Marx, A ideologia alem)

    A ao de educao exerce um efeito real e, se nesse o caso, como ela o produz? O efeito da

    ao educativa pura e simplesmente tcnica o que autorizaria a aplicar a essa instncia de produo

    dos produtores a lgica econmica do clculo dos custos e dos benefcios? Ou ela de outra ordem,

    como sugerem os que, em nome dos valores sagrados da cultura, no aceitam que se possa reduzir a

    educao preparao para o mtier ou, prosaicamente, a uma funo tcnica tecnicamente definida

    no aparelho de produo? Mas, os mesmos que admitem que a funo da educao seja comunicar

    no somente os saberes e o saber-fazer tecnicamente exigidos para o exerccio de uma funo, mas

    tambm as disposies constitutivas do ideal humano realizado que define a excelncia a um dado

    momento do tempo, estariam prontos para reconhecer que a ao pedaggica que produz essa maneira

    permanente de ser e de fazer exerce uma eficcia estritamente mgica de consagrao? O ensino mais

    eficaz pode fazer outra coisa alm de ensinar o peixe a nadar? Ou seja, o que no pouca coisa,

    consagrar, em todos os sentidos da palavra, sua aptido para nadar? Mas necessrio escolher entre a

    hiptese tecnicista ou tecnocrtica que s quer conhecer a eficcia propriamente tcnica de formao,

    medida em saberes e em saber-fazer acumulados, e a que evoca a eficcia propriamente mgica de

    iniciao e de consagrao? No h condies e efeitos tcnicos da ao simblica?

    Para responder a essas questes2, foi preciso escolher um objeto que as colocasse e as resolvesse

    pela sua prpria existncia: um objeto situado e datado, prprio portanto para ser observado e analisado

    empiricamente, as classes preparatrias s grandes escolas3, mas tratado como caso particular do universo das formas possveis que se muniu, em tempos e lugares diversos, a escola de elite, instituio

    encarregada de conferir uma formao e uma consagrao aos que so chamados a entrar na classe

    dominante da qual, em sua maioria, vieram (eis o paradoxo). Pode-se assim submergir na particularidade

    de uma instituio particular para apreender, da maneira mais completa e mais concreta possvel, o que

    h de invariante e varivel na sua funo e nos mecanismos atravs dos quais ela preenche sua funo

    tanto na sua dimenso tcnica quanto na sua dimenso mgica. E propor uma anlise que, escapando

    2 As pesquisas sobre as quais se apoia esta anlise foram realizadas em colaborao com Yvette Delsaut e Monique de Saint Martin, junto ao Centre de sociologie europenne (CSE).3 As grandes escolas formam os futuros dirigentes principalmente nas reas tecnolgicas e administrativas, propondo-lhes um ensino mltiplo ou especfico (com a durao de no mnimo cinco anos aps o liceu) reconhecido pelo Estado e assegurando-lhes as melhores oportunidades de acesso aos cargos pblicos e empresariais de maior prestgio. (N.T.)

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL22

    da alternativa da descrio fechada e da generalizao vazia, encontra no caso particular apreendido

    como variante histrica os elementos de um modelo transistrico, capaz de dar conta tanto das variaes

    quanto das invariantes.

    Tomando como exemplo, nesse caso, a lgica da provao inicitica, que implica a recluso e a ascese e que se apoia sobre qualquer atividade, lnguas mortas, crquete, futebol ou artes marciais, para produzir a distino, poder-se-ia interrogar sistematicamente as variaes que a forma e a natureza das provaes impostas podem apresentar segundo as tradies nacionais e tentar ligar, por exemplo, o culto do esporte de equipe das public schools da era vitoriana, no somente ao anti-intelectualismo que outro efeito das mesmas causas e que se observa nas outras aristocracias (por exemplo no Japo), mas, diretamente, s disposies de uma elite imperial, fundada nos valores militares de loyalty e de submisso aos interesses do grupo. Mais precisamente, se todas as classes dominantes pedem s instituies escolares as quais elas confiam seus herdeiros para preencher uma funo de sociodicia, essa funo no varia, na sua definio, segundo os fundamentos do poder e do estilo de vida da classe que se trata de reproduzir ou da frao de classe que, no momento considerado, domina no centro da classe dominante?

    Para apreender em toda sua complexidade os mecanismos especficos pelos quais o

    sistema escolar produz seus efeitos tcnicos e, sobretudo, seus efeitos propriamente simblicos, foi necessrio analisar em detalhe a relao objetiva que est no princpio dessa dupla eficcia:

    ou seja, a relao entre as caractersticas objetivas da organizao escolar e as disposies

    socialmente constitudas dos agentes. O milagre da eficcia simblica desaparece quando se

    observa que essa espcie de ao mgica triunfa somente quando aquele que a experimenta

    contribui para sua eficcia, na medida em que est predisposto por um trabalho pedaggico

    prvio a reconhec-la e a suport-la. por isso que a anlise deve apreender as estruturas

    objetivas, que se dedicam observao imediata, na organizao do tempo e do espao, nas

    disciplinas, nas tcnicas de trabalho, e tambm s disposies e representaes, que contribuem

    para a eficcia das estruturas objetivas e que somente podem ser compreendidas e explicadas,

    principalmente nas suas variaes, se se oferece os meios para lig-las s suas condies

    sociais de produo. por isso que a enquete que funda as anlises aqui propostas precisou reunir um conjunto de

    mtodos que as fronteiras entre as disciplinas (entre a sociologia e a etnologia, a sociologia e a histria,

    a sociologia e a psicologia social, etc.) mantm separadas na rotina ordinria da cincia social. Essa

    integrao imposta pelo fato de que nem todos os mtodos permitem apreender no mesmo grau todos

    os fatos. Assim por exemplo preciso repetir sem cessar , o questionrio fechado, instrumento de

    predileo do socilogo, uma soluo, um substituto econmico, principalmente quando administrado

    por escrito, de formas mais caras, mas tambm mais fecundas, quando so socialmente (e sobretudo

    juridicamente) possveis, como a entrevista aprofundada ou a observao direta. Nunca se acabaria de

    enumerar todas as coisas que ele no pode apreender, porque so fortemente censuradas e profundamente

  • Pierre Bourdieu 23

    rejeitadas, portanto, acessveis somente a um longo e lento deciframento de indcios indiretos, seja

    porque mantidas secretas por permitirem contradizer a imagem que a pesquisa (ou o grupo ao qual ele

    o porta-voz) pretende dar de si mesma, ou simplesmente pessoais ou privadas e reservadas s

    confidncias, que no podem se dirigir ao primeiro que aparece, seja porque so simplesmente deixadas

    no estado prtico e somente podem ser apreendidas de fora e por um terceiro, por meio de uma longa

    observao, atravs dos detalhes frequentemente mais nfimos das prticas ou dos discursos4. Mas o

    essencial est menos nos limites dos diferentes instrumentos do que na ignorncia desses limites que

    leva a fazer com que tudo o que eles no apreendem no exista ou, pior, com que tudo o que eles fazem

    existir apesar de tudo exista. A resistncia das enquetes s tcnicas de objetivao mais brutais ou

    ao uso mais brutal e mais mecnico dessas tcnicas nem sempre se inspira numa nica preocupao:

    defender a verdade contra o desvelamento; ela tambm pode ser uma defesa contra a simplificao

    reducionista, insensvel s nuances, aos detalhes, s diferenas, e incapaz de dar razo experincia

    encantada ou mistificada, mas como tal, completamente real, que fazem do universo objetivado os que

    tm uma experincia subjetiva, ou, se se quer, indgena.

    Esse retorno reflexivo sobre os instrumentos e os trmites da pesquisa se impe ainda mais

    quando se trata de analisar, num caso particular e particularmente familiar, um processo de consagrao

    bem feito, como todo fenmeno de crena, visando colocar o pesquisador diante da alternativa de

    exterioridade brutalmente redutora e da participao encantada, dois olhares sobre o objeto mais ou

    menos favorecidos pelas diferentes tcnicas disponveis, questionrio fechado, anlise estatstica,

    entrevista livre, interrogao de informantes, observao etnogrfica, anlise de documentos de

    arquivos, de textos literrios, e, last but not least, autoanlise. O que torna particularmente difcil a

    objetivao completa dos jogos intelectuais , paradoxalmente, o fato de que os intelectuais, que se

    definem objetivamente pela pretenso ao monoplio de sua prpria objetivao, multiplicam as quase

    objetivaes de suas prprias determinaes. Assim, as brincadeiras de instituio sobre a instituio, as que florescem por exemplo durante os rituais do trote, neutralizam e desmontam a parte de

    verdade que comportam: a pretenso lucidez e distncia irnica que se exprime apenas uma

    maneira especialmente dissimulada de aceitar os pressupostos de uma instituio que espera que seus

    membros mantenham distncia em relao instituio5. Assim, entre outras coisas, a necessidade de interrogar, mais do que nunca, o estatuto epistemolgico implicitamente conferido s citaes

    4 Um indcio dos limites que as cincias sociais se impem ou aceitam sem saber pode ser visto no fato de que os especialistas quase nunca evocam sem dvida porque no esto expostos a encontr-los os obstculos jurdicos para a obteno e publicao da informao que fazem com que setores inteiros do universo social estejam fora das apreciaes da cincia. O segredo, que uma forma de propriedade privada, juridicamente protegida como tal, e tambm uma das espcies do sagrado, defendido contra o desvelamento sacrlego, indissocivel do poder, fazendo com que o pesquisador, quer queira ou no, quer saiba ou no, esteja sempre engajado numa relao de foras com seu objeto, frequentemente, sem outra escolha que no enganar ou ser enganado.5 Eis um exemplo entre mil dessa relao de falsa liberdade: A escola normal tem como primeira virtude no existir, o que, convenha-se, muito raro (R. Brasillach. Notre avant-guerre. Paris: Plon, pp. 55-57, citado em A. Peyrefitte (d). Rue dUlm, Chroniques de la vie normalienne. Paris: Flammarion, 2 d., 1963, p. 163).

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL24

    de trechos de entrevistas, de textos, de documentos, que o uso distrado da rotina profissional leva

    a tratar indiferentemente como prova emprica das teses avanadas (o que pe a questo do nmero

    e da representatividade) ou como confirmao terica das anlises propostas (o que atribui ao autor

    dos propsitos citados uma lucidez cientfica milagrosa), quando eles no esto l, simplesmente,

    como datum brutum, abandonado ao leitor por um pesquisador demissionrio. O que significaria

    por exemplo o fato de citar um texto em que Zola diz muito bem, e sem dvida porque ele est

    particularmente bem situado para v-los, e diz-los, alguns dos melhores aspectos escondidos da

    Escola Normal Superior (ENS) e dos normalistas: Algum que tenha se banhado no ar da Escola

    Normal estar impregnado dele pelo resto da vida. O crebro guarda um odor montono e mofado

    de professorado, que lembra sempre das atitudes speras, das necessidades de palmatria, de surdos

    desejos impotentes de velhos rapazes que fracassaram com mulheres. Quando esses galhardos

    so espirituosos e ousados, quando tm novas ideias, o que acontece s vezes, eles as cortam em

    pedacinhos ou as deformam pelo tom pedaggico de seu esprito, tornando-os inaceitveis. Eles no

    so, no podem ser originais, porque so produto de um adubo particular. Se voc semear professores,

    jamais colher criadores6? Estratgia sutil de distanciamento, como na Rua dUlm onde se observa

    um liberalismo de aristocratas, ou instrumento de persuaso, voltado destruio da crena que

    ope a autoridade autoridade? E, de modo mais sutil, que valor de verdade se poderia atribuir

    citao um ou outro testemunho de khgneux7 ao revelar a verdade sobre a preparao na khgne

    ao bacharelado8: A qualidade dos professores decepciona muito, salvo excees. Eles nos foram

    a rotina. Eles no nos permitem muita independncia na organizao do trabalho. Esse ensino da

    khgne se volta unicamente aprovao no concurso de final de ano. Utilizam-se apenas esquemas,

    truques. No se modifica nada. Esse ensino no um ensino de cultura, no instigante. Ele no

    nos traz grande coisa fora do interesse imediato pelo concurso. Casos excepcionais de lucidez, que

    se precisaria explicar e desmentir, das anlises sobre o efeito de imposio da crena ou expresses

    tpicas da conscincia dupla que define a f como m f?

    Essa outra forma de no realizao, mais perniciosa ainda, que produz o uso distrado e

    mundano de conceitos emprestados da etnografia ou da histria, como rito de passagem, man-darinato, casta ou nobreza: quando no se pede simplesmente para duplicar num frisson de

    exotismo a evocao narcsica de um folclore exclusivo, esses conceitos de senso comum semieru-dito, que aparentemente favorecem a objetivao pelo efeito de distanciamento, permitem, de fato,

    como com frequncia o caso nas cincias humanas, contentar-se com a meia-compreenso que

    possibilita a familiaridade e economizar uma verdadeira anlise, discernindo a instituio vaga de

    6 Zola. Une campagne. Paris: G. Charpentier, 1882, pp. 247-250, citado em A. Peyrefitte, op. cit., pp. 348-349.7 As classes preparatrias (Khgnes) preparam para o ingresso na Escola Normal Superior. Seus alunos so chamados de khgneux. (N.T.)8 Exames nacionais realizados no final dos estudos do liceu (ou do ensino mdio) visando conferir o grau de bacharel. (N.T.)

  • Pierre Bourdieu 25

    uma instituio indgena, uma instituio confusa de uma instituio estrangeira, enfim, obscu-rum per obscurius9. Enfim, mesmo que suponha uma recusa metdica de toda inteno apologtica ou polmica, a prpria objetivao cientfica deve se imaginar situada no espao das relaes da instituio

    analisada, observadas na realidade das prticas sociais: ou seja, entre a cumplicidade, ingnua

    ou sutilmente irnica, que sociologicamente atribuda aos que tm direito e aos acionistas, e a

    distncia arrogante ou sarcstica do desprezo ou do ressentimento. Mesmo que o trabalho necessrio

    realizao da objetivao, e que trata tanto da relao com o objeto quanto do objeto, permita

    escapar da alternativa da complacncia e do escrnio; e se desafie a reduzir a relao com o objeto

    que se manifesta no produto do trabalho de objetivao relao de pertencimento ou de excluso

    que une objetivamente ao seu objeto o sujeito da objetivao, normalista ou no normalista estudando

    os normalistas, mas tambm judeus ou no judeus analisando a questo judaica, etc.

    A enquete por questionrio junto a alunos das classes preparatrias realizada em maro de 1968 nas classes de primeiro ano superior (khgnes) dos liceus Condorcet, Fnelon, Louis-le-Grand, Molire em Paris, Krichen em Brest, Blaise Pascal em Clermont-Ferrand, Faidherbe em Lille, do Parc em Lyon, Pierre de Fermat em Toulouse (n=330) e em classes de matemticas especiais

    (taupes10) do tipo A, A e B dos liceus Honor de Balzac, Condorcet, Louis-le-Grand, Saint-Louis em Paris, Pasteur em Neuilly-sur-Seine, Blaise Pascal em Clermont-Ferrand, Faidherbe em Lille, do Parc em Lyon, Pierre de Fermat em Toulouse e a escola Sainte-Genevive em Versailles (n= 881). Tendo em vista que o objeto da enquete era estudar a khgne e a taupe como classes preparatrias para as grandes escolas, ou seja, como instituies dominadas pela lgica do concurso, escolheu-se construir a amostra de maneira que seja representativa da populao dos estudantes integrveis: o que significa dar s diferentes classes preparatrias no o peso da populao de seus alunos no conjunto de alunos inscritos, mas o peso de seus admitidos nos concursos no conjunto de alunos admitidos nas maiores grandes escolas. Assim os khgneux parisienses, que forneceram 60,5% dos admitidos nos concursos dUlm-letras e Svres-letras em 1967, representam 58,5% dos alunos da amostra (enquanto eles representam apenas 52% dos inscritos em khgne em 1967-1968); e os grandes liceus parisienses, Louis-le-Grand, Henri IV e Fnelon, que forneceram 49,5% dos admitidos em Ulm e Svres (sees literrias) em 1967, representam 48% da amostra (enquanto eles constituem somente 31% da populao dos alunos inscritos em khgne). Segundo a mesma lgica, os taupins de Louis-le-Grand, Saint-Louis e da escola Sainte-Genevive em Versailles, que, em 1967, forneceram 43% dos admitidos nas sees cientficas da Escola Normal Superior da Rua dUlm, 39% dos admitidos na Politcnica e 36% das admitidos na Escola Central, representam 37% dos alunos interrogados (mas somente 20%

    9 Ilustrao exemplar desta anlise, a introduo de Georges Pompidou na Rua dUlm (que comea por um desafio lanado ao socilogo: O socilogo pode portanto com toda certeza perceber a existncia de um politcnico. Mas o normalista, onde encontr-lo?). Se normalista como se prncipe de sangue. Nada de externo o define. Mas isso se sabe, isso se v, ainda que seja educado e mesmo humano no mostrar-se aos outros (...). Essa qualidade consubstan-cial. No se torna, nasce-se normalista, como se nasce cavaleiro. O concurso to somente fidalguia. A cerimnia tem seus ritos, a viglia de armas se desenrola nos lugares de descanso dispostos como convm sob a proteo de nossos reis: Saint-Louis, Henri IV, Louis-le-Grand. Os guardies do Santo-Graal, cuja assembleia toma na ocasio o nome do jri, reconhecem seus jovens pares e os chamam para junto de si (G. Pompidou, in A. Peyrefitte, op. cit., pp. 14-15).10 Classes de matemticas especiais que preparam para o ingresso nas grandes escolas e na Escola Politcnica; seus alunos so chamados de taupins. (N.T.)

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL26

    dos alunos inscritos de 1967-1968 em matemticas especiais). Igualmente, as grandes escolas provincianas, particularmente o Liceu do Parc em Lyon, receberam na amostra um peso superior ao peso da populao de seus alunos no conjunto de alunos das classes preparatrias.

    Para viabilizar a comparao, tambm foram utilizados os resultados de duas enquetes anteriores, uma junto a uma amostra de 6.000 estudantes de cincias e outra junto a uma amostra de 2.300 estudantes de letras. Realizou-se entre fevereiro e maro de 1968 uma srie de entrevistas (n=40) com alunos das classes preparatrias e estudantes das faculdades e uma enquete por meio de entrevistas aprofundadas (n=160) junto a uma populao de 40 professores de khgne, 40 professores de taupe de Paris e da provncia, 40 professores de matemtica e de fsica, 40 professores de francs, latim e grego das faculdades de cincias e de letras de Paris e da provncia. Enfim, recorreu-se a diversos informantes (diretores de grandes liceus, ex-professores e ex-alunos de khgne e de taupe, etc.) e a diferentes fontes escritas (boletins internos, revistas, trabalhos comemorativos, romances, etc.), relacionados ao aspecto mais ritualizado da vida nas classes preparatrias (grias, ritos de passagem, etc.), ao mesmo tempo em que se procurou recensear todas as expresses da experincia ntima (ou secreta) dos efeitos produzidos pelo processo de consagrao e de produo da crena.

    Todo o longo, lento, e difcil trabalho que foi rapidamente evocado aqui, condio para uma

    verdadeira ruptura com as evidncias: a compreenso pela metade que possibilita a familiaridade

    deixa na verdade escapar todos os efeitos que se dissimulam sob o mais visvel dentre eles, o mais

    rapidamente evocado e revocado como seleo e que precisa ser completamente analisado se se

    quer dar verdadeiramente conta da transformao profunda, durvel e, quando se analisa melhor,

    misteriosa que opera a mgica social da consagrao.

    Os efeitos tcnicos da organizao dualista

    Os khgneux se sentem pertencentes a uma elite, enquanto os estudantes sabem que a faculdade acolhe todo mundo. Parece o que a assistncia pblica faz em relao s clnicas. Numa clnica, o doente mais bem assistido, provido, tratado tambm; ainda que o mdico no pertena classe dos professores do hospital, ele cuida com ateno de seus doentes que o veem com frequncia: isso a khgne, enquanto no hospital, mesmo com a presena de grandes professores, as pessoas so menos bem cuidadas (Professor de khgne, latim). Um professor no precisa descobrir a filosofia. Ela foi encontrada antes dele. Seu trabalho um trabalho de pedagogia: uma iniciao, fazer compreender textos filosficos que no se pode abordar diretamente. Todo meu tempo de trabalho est voltado preparao da aula. Meu ideal seria conhecer de cor todos os grandes textos filosficos para t-los disposio durante as aulas (Professor de khgne, filosofia).

    O que distingue as classes preparatrias de todas as outras instituies de ensino superior

    (inclusive as que garantem a indistino do local de trabalho e da residncia, como o campus, ou a

  • Pierre Bourdieu 27

    vida comunitria dos condiscpulos, como a cidade universitria) o sistema dos meios institucionais,

    incitaes, obrigaes e controles, que posto em prtica para reduzir a existncia daqueles que

    ainda se chamam, aqui, de alunos (em oposio a estudantes) a uma sucesso ininterrupta de

    atividades escolares intensivas, rigorosamente regradas e controladas, tanto no seu momento quanto

    no seu ritmo. O importante, do ponto de vista do efeito pedaggico, menos o que ensinado do que

    o que ensinado atravs das condies nas quais se efetua o ensino: o essencial do que transmitido

    situa-se no no contedo aparente, programas, cursos, etc., mas na prpria organizao da ao

    pedaggica. Se as disciplinas da vida comunitria e a recluso que o internado produz representam

    o aspecto mais visvel de uma pedagogia que tende a concentrar toda a existncia em torno de

    preocupaes exclusivamente escolares, preciso evitar atribuir ao internato o que deriva de fato de

    uma organizao rigorosa do trabalho.

    Muitos autores atribuem ao confinamento os efeitos exercidos pelas escolas de elite, mesmo que se esteja longe de confirmar que essa caracterstica visvel seja a condio sine qua non do funcionamento dessas instituies como instituies totais. No caso das khgnes e das taupes, o internato no parece ser o princpio de diferenas sistemticas nas prticas. Nota-se unicamente que, entre os khgneux, os internos, seja qual for sua origem social, esto mais inclinados a praticar um esporte e sobretudo um esporte coletivo (futebol, rgbi, basquete); que apenas os filhos de professores se distinguem dos externos de mesma origem porque, com frequncia, militam no agrupamento poltico, num sindicato de estudantes, numa associao cultural, citam com mais frequncia o marxismo entre as escolas de pensamento, se colocam com mais frequncia nos extremos na escala poltica. Pode-se comprovar que o efeito propriamente organizacional muito mais poderoso que o efeito do internato e da clausura no fato de que a diferena entre os internos e os externos , sendo tudo igual, menos acentuada, especialmente no que concerne quantidade de trabalho escolar ou ao uso do tempo livre, do que a diferena entre os alunos das classes preparatrias tomados no seu conjunto e os estudantes. Assim, os externos que fazem os deveres tanto quanto os internos trabalham com mais frequncia que eles no domingo e vo com menos frequncia no cinema. No se observa diferena significativa nos outros usos do tempo livre, quer se trate da leitura de jornais (seno que os externos leem com mais regularidade um jornal dirio, enquanto os internos leem mais regularmente um semanrio) ou das prticas culturais (seno que os externos das taupes frequentam mais o teatro enquanto os internos vo com mais frequncia ao concerto)11.

    11 De fato, toca-se sem dvida nos limites do que a enquete por questionrio e a anlise estatstica podem apreender. Primeiramente, porque sem dvida era ingnuo esperar apreender, mesmo para as questes indiretas mais sutilmente concebidas, o que define na sua verdade prtica, muitas vezes ignorada pelos prprios agentes, as maneiras de conceder, de organizar e de realizar o trabalho, a representao da cultura e da prtica intelectual a engajada, etc. (isso se v pelo embarao que suscitaram as questes sobre a maneira de preparar e redigir a ltima dissertao). Em seguida, porque, para levar completamente em conta diferenas constatadas, seria necessrio considerar toda uma constelao de variveis, geralmente ligadas entre si, como a profisso do pai do aluno e tambm a trajetria da famlia de origem, o estabelecimento escolar, o tempo na classe (quadrado, bica, 3/2, 5/2), o sexo, o estatuto do interno ou do externo. Alm da fragilidade dos efetivos assim isolados, a anlise se confronta com o fato de que todas as variveis fundamentais idade, sexo, origem social, esto estreitamente ligadas ao grau de seleo (ou seja, hierarquia dos estabelecimentos).

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL28

    A recluso

    Quando se pergunta aos taupins da Escola Sainte-Genevive de que escola de pensamento (no plano religioso, filosfico, poltico, econmico) eles se sentem mais prximos, eles apenas reconhecem sua ignorncia de tudo o que

    no do domnio do ensino da taupe e a impossibilidade de se interessarem por outra coisa: Nenhuma; tenho mais

    coisa para fazer do que me interessar por isso; No se tem tempo para pensar em problemas to importantes; Eu

    no tenho tempo para pensar em outra coisa alm dos concursos; Se ainda se pudesse pensar em outra coisa alm

    da matemtica ou da fsica?.

    que na verdade a vida do taupin tal como eles a evocam no permite nenhuma escapada: Regime de trabalho

    absolutamente desmedido, suscetvel de traumatizar um esprito em via de formao; excluso de toda participao

    na vida exterior pois impede de se manter ao par ou, sobretudo, de se interessar por alguma coisa; O ensino no

    nico. um embrutecimento total com o nico objetivo de obter um diploma. Eu s espero no ter perdido totalmente

    a minha juventude assim, nem o gosto de viver....

    Nesse universo perfeitamente fechado, a maioria dos alunos, com exceo da matemtica e da instruo religiosa,

    tem como outra atividade intelectual apenas a leitura de Spirou ou de Tintin, como testemunham, alm das declaraes

    dos alunos interrogados, este trecho de um debate sobre a importncia do francs nos concursos:

    M. Sentilhes Se se estuda estatstica, aqui em casa, percebem-se, por razes materiais, claro, que eles no tm

    muito tempo. E, os poucos minutos que tm livres, eles querem consagrar ao descanso. Ento, que descanso esse?

    Eles tm livros disposio. Que livros vo lhes permitir descansar? Vocs podem imaginar. Eles vo primeiramente

    comear por Spirou, que evidentemente no demanda nenhum esforo; universo da psicologia elementar. Depois, os

    Spirou, Tintin ilustrados no demandam nenhum esforo de imaginao, nenhum esforo de criao, mesmo que para

    ler seja preciso criar o texto lido, refaz-lo de certa forma, fazer a metade do caminho. Eles escolhem portanto obras

    como essas ilustradas: Tintin, Spirou, etc... que no demandam esse esforo de criao. Outro tipo de livro que eles leem

    de bom grado, e isso muito mais grave, pois tem um prejuzo imediato e tenaz, o romance policial; para relaxamento

    eles tambm leem revistas cientficas. Pois esse um universo convencional, bastante abstrato e no fundo isso no difere

    muito dos exerccios habituais aos quais esto acostumados. O que faz com que se atirem sobre romances policiais, e a

    eles vo se afogar. E, de fato, o que isso lhes trar, o que lhes restar: preciso reconhecer, absolutamente nada. Eles

    esquecero tudo algumas horas depois.

    M. Domin Eu quero trazer um testemunho sobre essa questo do romance policial: outro dia na sala de aula, no

    sei por que, eu falei de romances policiais, de leitura de romances policiais e disse: h taupins que leram 50 romances

    policiais durante sua taupe e avanaram bastante e ento ouvi um grande redemoinho na sala e me disseram cum

    grano salis 50 por ms.

    Servir, Bulletin des anciens lves de Lcole Sainte-Genevive, 58, avril 1963, pp. 59-60.

  • Pierre Bourdieu 29

    Essa pedagogia deve sua fora extrema ao fato de que, como todo ensino tradicional, ela silencia

    o essencial, imposto como evidente, sem exame, e dedicado a fugir da discusso e da crtica conscientes12. Os Mohave, relata Devereux, tm o costume de recitar os textos tradicionais, conhecidos de memria e

    geralmente frmulas em curtas frases, com uma dico entrecortada, fortemente acentuada e rpida; esse

    modo de recitao ainda mais indissocivel do texto recitado quando os informantes mais dispostos

    tm dificuldades de diminuir seu ritmo para permitir o registro do texto13. Esse um efeito produzido pela pedagogia implcita e total das classes preparatrias na medida

    em que os contedos transmitidos tendem a permanecer indissociveis do conjunto de teses no

    tticas e de peties de princpio inconscientes, objetivamente inscritas na situao de aprendizagem

    e que a literatura edificante atribui ao esprito inimitvel da taupe ou da khgne, da Escola Normal ou da Politcnica. Toda definio da cultura e da relao com a cultura, do trabalho intelectual e

    da funo dos intelectuais na diviso do trabalho leva subordinao da atividade intelectual aos

    imperativos da urgncia.

    Um trabalho louco

    Minha vida diria se tornou uma corrida contra o relgio. Eu me levantava de manh s sete horas e meia, me lavava

    e me vestia s pressas; para ganhar tempo, eu me barbeava somente duas ou trs vezes por semana, de maneira que

    s vezes eu parecia mais um mendigo do que um estudante; eu andava to mal penteado quanto barbeado; quanto

    a minha gravata, prefiro no dizer nada. Eu engolia em p uma tigela de caf com leite, depois desabava escada a

    baixo e pegava o metr; para ganhar tempo, eu trabalhava no metr enquanto a afluncia no era muito grande, lia

    minha gramtica latina ou ento traduzia meus textos latinos e gregos do programa de graduao de uma das obras

    da coleo Guillaume Bud. Eu utilizava minha prpria traduo desse livro, colocava-a diante do texto original,

    evitando ter que recorrer ao dicionrio; coisa que era rigorosamente impossvel no metr. O que mais me incomodava

    era a dificuldade de escrever: minha mo tremia e precisava esperar as paradas para grifar algumas palavras s

    pressas. Eu chegava enfim estao Jussieu onde descia. Eu geralmente estava atrasado. Eu comecei indo ao liceu

    de bicicleta, mas percebi que no chegava mais rpido, ao contrrio, e que a subida da montanha Sainte-Genevive

    era mais sufocante do que parecia; alm disso, perdia o tempo que utilizava bem ou mal no metr decifrando Homero

    ou Plato. (...)Eu raramente voltava para casa para o almoo: era perder muito tempo. Eu tambm no queria comer no liceu, no

    que l se comesse mal, mas porque precisava passar mais horas estudando, e a tagalerice de l era para mim uma

    tentao muito forte. Ento eu ficava na Biblioteca Sainte-Genevive, prxima, at na hora do almoo. (...)

    Por volta do meio-dia, eu atravessava a Praa do Panthon e ia almoar num pequeno restaurante na Rue des Fosss-

    Saint-Jacques. Eu comia rpido, muito rpido mesmo, em detrimento do meu estmago, sacrificado sistematicamente

    pelo meu crebro; ele no demoraria a se vingar de meu desdm. De estmago cheio, eu voltava a Sainte-Ginette.

    O trabalho no incio da tarde me era particularmente penoso; eu deveria parar um pouco, mas a vontade de aprender

    12 Eu dei aos alunos um plano corrigido com cada dever tratado. O resto se ensina antes por exemplo; eles veem como eu preparo minha aula. Isso divertia meus ex-alunos e eles chamavam de minha arte das transies (Professor da khgne, histria).13 G. Devereux. Mohave Voice and Speech Mannerisms. Word, V, 8, dc. 1949, pp. 268-272.

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL30

    quase sempre dominava a preocupao com minha sade, e eu me deixava levar rapidamente pela corrente de escravo.

    s duas horas e meia, eu voltava ao liceu e ficava at s quatro horas e meia: a maior parte do tempo eu pegava o

    metr para trabalhar na minha casa at o jantar. Eu frequentava pouco a biblioteca da Sorbonne; l se encontrava

    muitas moas, cuja presena fazia lembrar que eu talvez fosse apenas um imbecil por querer pensar ao invs de viver;

    e menos ainda em Luxemburgo, pelas mesmas razes.

    Eu continuava trabalhando aps o jantar, at s onze horas da noite; mas eu jamais conseguia adormecer antes da

    meia-noite, pois j estava ameaado pela insnia: essa era uma das formas de protesto do meu estmago brutalizado.

    Assim, minha maior alegria era a generosa manh de domingo, e o momento mais penoso da jornada era o despertador.

    Frequentemente eu lia durante as refeies. Eu no perdia um minuto do meu tempo, e no era fcil trabalhar das oito

    horas da manh s onze horas da noite. (...)

    Eu exagerava no meu esforo, trabalhava domingos e feriados como nos outros dias; eu quase nunca ia ao teatro e

    menos ainda ao cinema. Eu no frequentava o estdio que de longe, ainda mais que o esforo fsico, acrescentava-se

    brutalmente ao esforo intelectual, tendo como efeito habitual prolongar minhas insnias. (...)

    Eu no era o nico a trabalhar to duramente; Caulin, para citar apenas ele, trabalhava ao menos o mesmo tanto que

    eu, e outros tambm, que intil nomear; a mesma ambio atazanava todos levando-nos a querer ultrapassar uns

    aos outros.

    A. Sernin. Lapprenti philosophe. Roman dun khagneux, suivi de Rveries-passions. Paris: d. France-Empire, 1981, pp. 26-30.

    A urgncia escolar

    As tcnicas de trabalho, os mtodos de pensamento e a definio correlativa da cultura e

    da relao com a cultura so impostos atravs da prpria organizao do trabalho. Como se a ao

    da instituio e dos professores que agem em seu nome consistisse antes de tudo em criar a

    situao de urgncia, e mesmo de pnico, na qual os recm-chegados devem encontrar, a exemplo

    dos condiscpulos mais antigos ou dos mestres, os meios e os recursos necessrios para sobreviver14. Como nos colgios jesutas em que se passava duas vezes mais tempo a exercitar os alunos do que a

    dar aulas15, a ao primordial da instituio consiste, neste caso, em criar as condies de uso intenso do tempo, em fazer trabalhar com esforo, rapidez, precipitao; eis a condio de sobrevivncia e

    adaptao s exigncias da instituio16. Ainda que se possa sem abstrao relacionar a um padro comum as produes dos

    estudantes das faculdades de letras e cincias e as dos estudantes das classes preparatrias literrias

    14 Eu me baseio () na ideia de que os que esto l escolheram estar l porque eram dignos; se eles no funcionam, pior para eles, isso se recuperar uma outra vez, eu confio Eu no sinto ter os mesmos deveres daqueles que tenho diante de uma classe do segundo ano, onde no se pode deixar chafurdar os que chafurdam. Enquanto l, apesar de tudo, preciso fazer com que paguem um preo alto pelo que pedem, eu me censuro menos (Professor de khgne, letras).15 F. Charmot. La pdagogie des Jsuites. Paris: SPES, 1943, p. 221.16 A administrao organiza a vida do liceu em funo do concurso: sem direito a sair depois da refeio, por exemplo, se se semi-interno; no se pode perder tempo. Se um professor falta, a supervisora anuncia e distribui o trabalho aos alunos, dizendo no final: Bom, e bem, vocs tm duas horas para trabalhar, nada de perder tempo (Aluno de khgne, Fnelon, 20 anos).

  • Pierre Bourdieu 31

    e cientficas, uma vez que diferem no seu contedo, sua forma e seu esprito, conclui-se a partir de

    uma estimativa fundada nas declaraes dos alunos e dos mestres dos dois tipos de instituies que

    a produtividade incomparavelmente mais elevada nas classes preparatrias do que nas faculdades.

    Assim, os alunos de taupe fazem a cada ano duas a trs vezes mais deveres de matemtica e de fsica (cerca de 20 a 25 em cada disciplina) que os estudantes de matemtica e de fsica da

    faculdade de cincias, sem contar os deveres de francs e de lnguas; alm disso, enquanto em

    taupe quase todos os alunos entregam quase todos os deveres que so propostos (num ritmo que no mais elevado do que nas faculdades), a maioria dos estudantes produz somente um ou dois

    deveres dos trs durante um perodo muito mais curto, seja de novembro a abril17. O efeito mais

    especfico do enquadramento total das classes preparatrias consiste no fato de que elas conseguem

    obter da quase totalidade dos alunos a produtividade mxima: por isso que trs quartos (73%) dos

    alunos de taupe se impem regularmente exerccios suplementares (na base de 5 horas ao menos por semana para um quinto deles), disciplina desconhecida dos estudantes de cincias (somente

    6% deles declaram fazer com frequncia e 43,5% ocasionalmente trabalhos que no so propostos

    pelos professores). A mesma diferena separa as classes preparatrias literrias das faculdades de

    letras. A homogeneidade extrema das prticas dos khgneux que, no Liceu Louis-le-Grand, por exemplo, redigem durante um ano escolar de dez a doze dissertaes, fazem 30 a 35 verses e

    temas, sem contar os trabalhos do mesmo tipo produzidos na ocasio dos concursos brancos, se

    ope grande disperso das prticas escolares dos estudantes de letras que se aproximam somente

    como exceo da produtividade dos khgneux: se os mais zelosos dos estudantes de letras clssicas chegam a fazer, ao menos aps a instaurao do controle contnuo, um dever por semana de

    latim, grego ou francs durante quatro a seis meses por ano, na poca da enquete, os estudantes

    de filosofia de Paris no produziam mais do que uma dissertao por ano (entre as duas ou trs que

    lhes foram propostas), ou seja, o mnimo indispensvel para se tornar conhecido de um assistente

    ou de um professor, ao passo que boa parte dos inscritos, ouvintes ocasionais dos ensinamentos,

    produz somente os trabalhos obrigatrios ao exame.

    A produtividade elevada das classes preparatrias supe um conjunto de condies institucionais, tais como a imposio explcita de disciplinas e de controles escolares e a colocao

    em prtica de um sistema de incitaes destinadas a encorajar a competio no interior do grupo dos

    condiscpulos. Assim, a presena nas aulas obrigatria e os professores preenchem sem evasiva

    suas funes disciplinares de controle das faltas. Salvo algumas raras excees, alis imediatamente

    denunciadas pelos prprios alunos, os professores impem muitos trabalhos e exerccios, dos quais

    eles exigem entrega pontual e corrigem de acordo com normas escolares da tradio escolar.

    17 A distncia em relao s classes preparatrias seria sem dvida ainda maior se, ao invs de limitar a comparao s disciplinas diretamente comparveis, letras clssicas, matemtica e fsica, se se analisasse disciplinas menos cannicas, como a sociologia, a psicologia e as lnguas.

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL32

    Todos entregam os deveres. fcil no entreg-los! Mas, eles no ousariam! Se precisar estar ausente no dever vigiado, previnam-me, vocs fazem em casa e me entregam na segunda-feira (Professor de khgne, latim-grego). Do-se orientaes materiais aos alunos para os deveres? Sim (sorriso), eu quero que a margem seja na direita e que seja dupla. Eu tambm quero que haja uma interlinha entre os pargrafos. Eu quero que eles forneam um plano completo do dever com suas cpias. Eu dou um zero no quinto erro de ortografia; ou seja, eu nem mesmo o corrijo; quando chego ao quinto, nem continuo a ler, eu dou zero e largo a caneta (Professor de khgne, letras-latim). preciso fazer ao menos dois rascunhos. A margem muito importante, sempre peo uma margem larga para as correes, infelizmente muito abundantes. Eu exijo a maior legibilidade para o tema. Toda letra mal formada contada como uma falha, como no concurso (Professor de khgne, latim-grego).

    Aos deveres acrescentam-se os concursos brancos e as preparaes ou os problemas. Na khgne, a tradio transmitida pelos antigos e as incitaes expressas dos professores impem a meia-hora cotidiana de traduo improvisada de textos gregos e latinos. A maioria dos exerccios

    d lugar atribuio de notas, frequentemente proclamadas solenemente: quase metade dos

    professores de taupe interrogados lia diante da turma as notas de deveres, a maior parte do tempo na ordem da classificao; dentre os que renunciaram a essas prticas, alguns continuam fixando a

    classificao trimestral, outros se contentam em mencionar em cada trabalho ao lado da nota a nota

    mdia do conjunto de alunos. Se os professores das classes preparatrias parecem utilizar cada vez menos as tcnicas mais vistosas de estimulao para emulao (como a proclamao comentada dos concursos brancos, a leitura das notas na ordem inversa da classificao, etc.), raro que se

    privem completamente da eficcia dessas tcnicas tradicionais de incitao ao trabalho, como a

    evocao implcita ou explcita ao concurso.

    Eu fao referncia constante ao concurso. Eu tento mostrar-lhes que isso no brincadeira. Eu lhes digo se esto altura de se inscrever. Tecnicamente, eu lhe digo como isso acontece (Professor de khgne, histria). Frequentemente eu lhes digo, sim, infelizmente, uma referncia: no concurso vocs no alcanaro a mdia, ateno mais do que trs meses. Um frisson desliza pela sua coluna. Eles no ficam afobados, no, mas h um defeito essencial nessas classes alis admirveis: a obsesso do concurso,

    sobretudo pelos bicas18. Ele vive um pouco com isso como uma obsesso permanente (Professor de khgne, francs-latim).

    Visando o rendimento mximo, impe-se toda uma relao com o trabalho intelectual, relao

    instrumental, pragmtica. Basta submeter a aprendizagem presso da urgncia para inculcar tambm disposies altamente valorizadas que escapam conscincia e ao questionamento porque jamais

    conseguem se afirmar como valores. por isso por exemplo que a urgncia da khgne no tende somente a relegar ao segundo ranking todas as atividades que, como a leitura dos autores, no so

    18 Diferentes termos, utilizados para caracterizar alunos e ex-alunos das khgnes e das taupes, distribudos ao longo do artigo no foram traduzidos porque, por fazerem parte da linguagem falada, no encontram um termo similar na lngua portuguesa e, se o encontram, no apresentam o mesmo sentido. (N.T.)

  • Pierre Bourdieu 33

    nem facilmente aceitas num dado momento nem diretamente controlveis em benefcio dos trabalhos

    expressamente prescritos e controlados, tais como verses ou temas; ela chega mesmo a impor uma

    leitura rpida, quer se trate da leitura dos textos antigos, sempre realizada contra o relgio (na base

    por exemplo de trinta versos latinos ou gregos por meia-hora, como a prova oral do concurso) ou

    dos textos filosficos e literrios: para uma estranha inverso de sinal, ela tende a condenar como

    dilantetismo pouco funcional (ou, na lngua indgena, pouco pago) a meditao numa pgina ou a

    reflexo aprofundada sobre um tema.

    Eu geralmente trabalho entre 50 e 60 horas por semana a mais que as aulas. Eu calculei para ver quanto eu trabalhava e cheguei a 85 horas por semana, incluindo as aulas. Eu passo mais da metade desse tempo nos trabalhos controlados e isso em detrimento do resto. As leituras vm em seguida, as aulas no final (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos). Os alunos no tm tempo de respirar, eles j tm muito trabalho, o programa muito pesado. Tudo centrado numa tarefa precisa: o concurso. Quando se trata dos programas, no h lugar para as atividades anexas (Professor de taupe, matemtica). Raros so os alunos de taupe que encontram tempo para ler obras desprovidas de rentabilidade escolar: a metade dos alunos de Sainte-Genevive e do Liceu Blaise Pascal em Clermont-Ferrand, mais de um quarto (28%) dos taupins de Louis-le-Grand no abriram um livro sem relao com o trabalho escolar ao longo de um trimestre contra somente 18% dos estudantes do segundo ano de matemtica e fsica inscritos na faculdade de cincias de Paris. Mais significativo ainda o fato de que os taupins tm leituras menos numerosas e clssicas, os autores mais citados sendo Malraux, Servan-Schreiber (Le dfi amricain), Camus, Sartre (de Sainte-Genevive), Camus, Dostoevsky, Proust e Anouilh (de Louis-le-Grand), Saint-Exupry e Steinbeck (de Clermont-Ferrand) , que os estudantes das faculdades que se mostram mais abertos aos debates literrios, filosficos ou polticos da atualidade (citando frequentemente autores como Joyce, Brecht, Lnin ou Vian)19.

    Essa preocupao constante com o uso mais econmico do tempo produz uma disposio aparentemente desenvolta e desinteressada e na realidade estritamente calculista. A necessidade de responder a toda questo possvel evitando recorrer a pesquisas aprofundadas impe o recurso

    s receitas e s artimanhas da arte de dissertar, que permitem enganar20 ao infinito, mascarando

    as lacunas e dando ares de originalidade aos tpicos mais usados e mais imperativamente

    19 A concentrao de todas as atividades em torno dos concursos se impe com um rigor cada vez mais forte medida que se desce na hierarquia das origens sociais (o que faz com que as injrias escolares, polar, pohu, chiadeur, forte em tema, estigmatizem de forma negada os hbitos de classe): assim os taupins vindos das classes populares encontram menos tempo para ler regularmente um cotidiano ou um semanrio, para participar de um agrupamento cultural, sindical ou mesmo poltico. Menos chances tambm de tocar um instrumento de msica, de frequentar as salas de concerto, os teatros, a amplitude da distncia tendendo a aumentar quando se observa as atividades que, como as prticas culturais mais nobres, exigem, apesar da disponibilidade, as disposies produzidas pela primeira educao. Nada de surpreendente se os alunos vindos das classes populares esto menos inclinados a desejar que se introduzam novas matrias no ensino da taupe.20 Do original, pcufier. (N.T.)

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL34

    esperados21; ou ainda o uso dos trechos escolhidos ou dos manuais, desses produtos da rotina escolar predispostos a fornecer os meios para responder a baixo custo s urgncias escolares, e,

    geralmente, s tcnicas de trabalho, que esto mais prximas dos fios do prtico do que dos

    mtodos e das tcnicas do pesquisador22.

    Ei-nos no nosso momento crucial. Aps quase quinze dias, retomamos todos os autores da graduao, os repassamos rapidamente, nos preparamos para todas as questes que podem ser feitas. No se trata somente de ter lido e de conhecer a fundo as obras do programa, essa a parte mais importante, mas no a nica. preciso saber as edies, a data dessas edies; preciso estar pronto para fazer aproximaes, comparaes, apreciaes rpidas, etc. isso que, na linguagem vulgar da Escola, se chama de fios. O conhecimento desses fios a grande superioridade da Escola Normal no exame oral da graduao. Os estrangeiros ficam bastante surpresos ao nos verem dar com certeza, detalhes histricos, bibliogrficos de cada autor, ao contar anedotas e o resto. Eles no veem o que est por baixo das cartas, esses fios (F. Sarcey. Journal de jeunesse, in A. Peyrefitte, op. cit., p. 203).

    Mas o mais importante que a situao de urgncia impe uma submisso total disciplina e

    s instrues dos mestres e dos ex, espontaneamente investidos da autoridade indiscutida que oferece

    a experincia. Forados a desistir, para sobreviver, da ambio de aprofundar seus conhecimentos ou

    de estend-los a domnios no diretamente reconhecidos pela tradio escolar, khgneux e taupins tendem a se satisfazer com um ensino rotineiro e rotinizante. Sem dvida porque, num sistema dominado pelo imperativo da eficcia, difcil conceber formas de transmisso mais rentveis do que

    aquelas impostas por uma tradio nascida da subordinao incondicional a esse imperativo.

    Preencher as cabeas. Os caracteres especficos das classes preparatrias exigem conceder uma prioridade real a esse objetivo. Na verdade, exceto para os alunos mais dotados, o sucesso nos concursos condicionado por um trabalho rigoroso e estrito, uma espcie de preparativo intenso para o degrau superior. Assim, o aluno levado a se preocupar com a utilidade imediata de seu trabalho em relao aos concursos, mais do que com o interesse intrnseco da matria estudada. Por sua vez, o professor dever respeitar a regra do jogo, pois os alunos esto l para ser admitidos numa Grande Escola. A aquisio dos conhecimentos do programa e das pequenas tcnicas anexas portanto primordial, sendo a formao dos espritos secundria. (P. Carrara, Professor de fsica, Servir, 76, dc., 1967, p. 72). Quando se pergunta se o ensino das classes preparatrias deveria tratar de matrias no ligadas diretamente ao concurso, 66% dos khgneux (68,5% e 76,5% dos

    21 O pcu (ou PQ) uma unidade elementar de discurso, frequentemente emprestada de um curso ou de um manual, por vezes convencionada ad hoc pelo prprio utilizador, que pode ser posto em conjuntos discursivos mais diversos ao preo das adaptaes e dos retoques necessrios. O bom PQ (ou topo) se define pelo fato de que capaz de resservir em diferentes ocasies e mesmo em diferentes dissertaes (de filosofia, de francs e de histria) de um mesmo concurso. Ao contrrio, o PQ inutilizvel o que, por sua complexidade ou seu rigor excessivo, no serve s utilizaes mltiplas. A capacidade de pcufier [enganar] que o khgneux reivindica, consiste no domnio da ars combinatoria que permite engendrar infinitamente discursos confundindo os pcus.22 Interrogados sobre os instrumentos de trabalho que utilizaram para preparer sua ltima dissertao, os khgneux de Louis-le-Grand citam com muito mais frequncia os Lagarde e Michard, Chassang e Senninger, Castex e Surer, trechos escolhidos de Bordas, os pequenos clssicos Larousse, do que obras crticas ou edies originais.

  • Pierre Bourdieu 35

    alunos vindos das classes populares e das classes mdias contra 62% dos originrios da classe dominante) e 62% dos taupins respondem negativamente ou se abstm: essa adeso massiva definio da cultura implicada no programa e na organizao do trabalho se exprime tambm no fato de que os taupins, que frequentemente afirmam (em 85% dos casos) no poder manter-se informados sobre as pesquisas matemticas e fsicas contemporneas, julgam todavia, numa importante proporo (56,5% dos casos), que o ensino das taupes superior ao das faculdades no que concerne ao contedo do ensino.

    Sem dvida tambm porque a organizao do trabalho que no deixa nem liberdade nem

    distncia em relao s exigncias da rotina escolar contribui com o efeito de fechamento que faz com que os alunos das classes preparatrias, mais inclinados a apresentar um julgamento pessimista sobre

    os mestres e sobre seu ensino, no vo alm de uma espcie de resignao ao inevitvel.

    As exigncias de um uso sobrecarregado do tempo impedem na verdade os khgneux e os taupins de acompanhar as aulas ou os trabalhos prticos da faculdade, as quais frequentemente so apresentadas em seus aspectos mais desfavorveis, sobretudo no perodo recente (desordem, nvel medocre dos estudantes, etc.): 29% dos taupins e 37,5% dos khgneux dizem ter sonhado com o momento de entrar na faculdade: 1% e 10% somente (de Paris) frequentam a um ensino23. A ruptura de fato engendrada naturalmente pela recusa do desconhecido ou, ao menos, pela resignao satisfeita com a unidade social elementar: A taupe uma clula. H fronteiras que raramente so atravessadas. muito raro um taupin ir para outra taupe para fazer um exerccio. Certo ou errado, um taupin estima que seu curso seja o melhor (Professor de taupe, matemtica). Convidados a propor mudanas no concurso de ingresso na Escola Normal, a maioria dos khgneux se contenta em sugerir modificaes menores, como a supresso da prova de histria antiga ou do tema latim (reservado alis, pelo decreto de 24 de junho 1968, aos que escolheram a opo letras clssicas), a reduo do programa de histria ou a introduo de novas provas, muito prximas do programa atual (histria da arte, tema grego, lngua viva, histria da Idade-Mdia, histria contempornea e, muito raramente 2,5% , cincias humanas), quando no aproveitam a ocasio para defender o esprito do concurso: Sobretudo no no sentido da especializao que se ope bastante ao esprito da khgne. Um pouco de cada coisa e nadica de nada, francesa Montaigne (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos). Critrios de personalidade, de independncia e de no conformidade com o ideal sorbnico cf. Rabelais (Khgneux, Condorcet, 19 anos). Quanto aos taupins, eles se limitam a sugerir a supresso das provas da educao fsica, de desenho industrial ou de desenho da arte, dos problemas de qumica, ou o espaamento das provas escritas.

    Se se acrescenta que essa ao intensiva de inculcao se exerce sobre adolescentes que foram

    selecionados e se selecionaram em funo de sua disposio em relao Escola, ou seja, de sua

    docilidade, ao menos em funo de suas atitudes escolares, e que, encerrados durante trs ou quatro

    anos num universo protegido e livres de toda preocupao material, sabem do mundo pouco mais do

    23 Esse efeito de fechamento tambm se exerce sobre os professores, pois quando se pergunta se gostavam ou gostaram de ensinar no ensino superior respondem em maioria negativamente: Eu detesto os costumes e as mistificaes do ensino superior. As carreiras no esto abertas ao mrito, mas a cooptao (Professor de taupe, matemtica). Eu prefiro os alunos mais enquadrados e que, parece-me, escolheram uma opo como meus alunos das classes preparatrias (Professor de taupe, matemtica). Na faculdade no se conhece os estudantes. Esse no um trabalho de ensino. (Professor da taupe, fsica). No porque gosto do ensino que no gosto da especializao (Professor da khgne, letras).

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL36

    que aprenderam nos livros , ou seja, nos trechos escolhidos dos autores gregos e latinos, dos escritores

    franceses do sculo XVII, e na filosofia perene das questes de classe e dos concursos , reconhece-

    se que sua natureza produzir inteligncias foradas (no sentido da horticultura) que, quase como escreve Sartre evocando algumas leituras de seus vinte anos, compreendem tudo luminosamente e no compreendem absolutamente nada24. o que diz muito bem Durkheim ao descrever o ensino dos Jesutas: A cultura que eles (os Jesutas) davam era extraordinariamente intensiva e forada.

    Sente-se (...) como um esforo imenso para levar quase violentamente os espritos a uma espcie de

    precocidade artificial e aparente. Da, essa multido de deveres escritos, essa obrigao para o aluno

    de estender sem cessar os resultados de sua atividade, de produzir prematuramente e de maneira inconsiderada. Havia no aspecto geral do ensino universitrio algo menos precoce, menos premente,

    menos vertiginoso25.Na verdade, no h aspecto em que a oposio entre as classes preparatrias e as faculdades

    seja mais brutalmente evidente: enquanto 62% dos taupins caracterizam o bom aluno de taupe pela sua atitude de trabalhar rpido e somente 15% por sua atitude de trabalhar em profundidade, 69,5%

    dos estudantes do segundo de matemtica e fsica mantm a atitude de trabalho aprofundado graas

    qualidade dominante do bom estudante (contra 18% para a rapidez no trabalho); do mesmo modo,

    23,5% dos estudantes de MP2 contra somente 11% dos taupins atribuem o bom estudante de faculdade atitude de inveno (mais que atitude de utilizao de um saber adquirido). Essas observaes tm

    como efeito lembrar que quando os produtos de um sistema de formao supem como realizao

    absoluta da excelncia humana as atitudes intelectuais e as disposies ticas que lhes foram impostas

    pelas condies de aprendizagem, eles se contentam em fazer da necessidade virtude, esquecendo

    que suas virtudes tm como contrapartida a renncia de todas as possibilidades anuladas pelas

    condies particulares que as tornaram possveis.

    Um corpo de treinadores

    Toda lgica de um sistema dominado pelo concurso, com suas dissertaes em tempos

    limitados sobre temas com limites indecisos que exigem mais o domnio da retrica e das tcnicas

    de exposio do que a reflexo e a pesquisa, com seus problemas de matemtica que priorizam

    o clculo mecnico ao invs do esprito de inveno, faz do professor das classes preparatrias

    24 J.P. Sartre. Critique de la raison dialectique. Paris: NRF (Nouvelle Revue Franaise], 1960, p. 23.25 . Durkheim. Lvolution pdagogique en France. Paris: Alcan, 1938, t. II, pp. 107-108.

  • Pierre Bourdieu 37

    uma espcie de treinador26: contribuindo para criar as condies favorveis a um treinamento intensivo, mais do que a um ensino direto e explcito, que ele inculca, alm de certo tipo de cultura

    e de relao com a cultura, o domnio prtico de certo nmero de tcnicas que permitem responder

    urgncia escolar.

    Tambm uma categoria muito respeitvel e muito eficaz da inteligncia: fazer algo solicitado em tal tempo, em tais condies; isso no escravido, um sinal de plasticidade de esprito (Professor de khgne, francs). Damos mtodos de trabalho. Eles se sentem obrigados a aprender a trabalhar, a no se dispersar (Professor de khgne, alemo). Eu creio que lhes ensinamos a trabalhar rpido, a percorrer domnios em um tempo restrito (Professor de khgne, francs). A importncia do professor reside no fato de nos dar um quadro de trabalho. Ele nos mais til pelo que nos ensina do que pelo que aprendemos (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos).

    Recrutados entre a elite dos professores do ensino secundrio, frequentemente chamados a

    participar das bancas dos grandes concursos de admisso dos professores do ensino secundrio

    (agregao27, CAPES28, etc.), quase sempre levados a terminar sua carreira de professores exemplares como inspetores gerais do ensino secundrio, os professores de classes preparatrias assumem

    totalmente um papel total. Completamente dedicados funo professoral, diferentemente dos professores das faculdades que se dividem (em graus diversos) entre o ensino e a pesquisa, entre

    o campo universitrio e o campo intelectual (ou cientfico), eles praticamente no tm atividade de

    pesquisa (chegando a consagrar o tempo roubado de seus alunos a outras atividades) e, se no

    publicaram, ao menos com muita frequncia vislumbram publicar manuais.

    Esses mestres no podem esperar outras gratificaes que as que possibilitam o exerccio de sua

    profisso, ou seja, essencialmente o prestgio que lhes assegura uma alta taxa de sucesso no concurso

    e o respeito, que pode chegar dependncia pessoal de seus alunos. Sua ao pedaggica a de

    repetidores que priorizam a organizao do exerccio e o enquadramento do trabalho de aprendizagem transmisso do saber: as aulas que eles do visam antes de tudo fornecer conhecimentos diretamente

    teis ao concurso. E, sobretudo, eles passam os temas de exerccios, corrigem os trabalhos, fornecem

    as correes, controlam os progressos da aprendizagem por meio de interrogaes escritas ou orais,

    26 Pode-se ver nas classes preparatrias uma antecipao das instituies de treinamento intensivo que so organizadas hoje para os atletas: Toda equipe, quatro ou cinco por dia, em duas sesses, adicione os quilmetros. Sete primeiros meses, oito, depois dez (). Para conservar a moral intacta, Daland (o treinador) organiza sesses variadas, todas voltadas competio. Nada de nadar com um brao s na semissonolncia. Quer se trate do movimento dos ps, dos braos, ou do nado fundo, o essencial , parece, tentar vencer seu colega de clube, que hoje o adversrio. Da talvez venha esse gosto pronunciado pelas competies que os jovens americanos tem revelado, que s vezes surpreende, mas que apenas a consequncia do hbito. As distncias a percorrer, cada dia, nesse esprito de luta, variam tanto quanto os estilos: das sries de 200 metros em nado borboleta, dos sprints curtos, longos, das sries de 400 metros e mesmo de 3000 metros que terminam no sprint (Le Monde, 3 janvier 1970). 27 Do original agrgation, concurso para atuar como professor de liceu ou de faculdade e que confere aos aprovados o ttulo de professor agregado (agrg). (N.T.)28 Certificat dAptitude au Professorat de lEnseignement du Second Degr (Certificado de Aptido ao Magistrio do Ensino de Segundo Grau). (N.T.)

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL38

    dispondo assim, ao trmino de um ano escolar, de 30 a 50 notas, geralmente estritamente registradas,

    para cada aluno29. Pessoalmente interessados no xito de cada um de seus alunos e em todo caso dos melhores , eles cumprem todas as tarefas implicadas na definio completa do papel professoral

    (diferentemente dos professores das faculdades e, em particular, dos professores titulares), eles tendem, como os dirigentes ou os inspetores dos colgios jesutas, a manter com seus alunos uma

    relao total de carter patrimonial que por vezes se estende a todas as dimenses da existncia30.

    O sucesso escolar das diferentes categorias docentes do ensino secundrio

    % m

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    prep

    arat

    ria

    s

    ao menos uma meno AB no(s) bacharelado(s) 32,0 58,0 77,0 78,0

    Que se apresentaram no Concurso geral 5,5 12,5 34,0 48,5

    ao menos um ano em classe preparatria 20,0 34,0 61,5 86,0candidatos a uma ENS 4,0 16,5 43,5 66,5agregados aprovados antes dos 24 anos - - 20,0 30,5aprovados para a ENS Saint-Cloud ou Fontenay - 2,0 9,0 19,5aprovados para a ENS Ulm ou Svres - 0,5 10,5 25,5

    Fonte: Enquete do Centre de sociologie europenne (CSE) junto aos professores do ensino secundrio (n=3.500).

    Os nmeros designam a porcentagem dos membros de cada categoria de professores que

    possuem cada uma das caractersticas. Estes foram estabelecidos a partir de uma enquete realizada pelo CSE junto a 3.500 professores do ensino secundrio. Considerando que eles representam somente

    cerca de 3% dos professores da amostra, os professores das classes preparatrias constituem um grupo

    relativamente restrito, no qual os professores das classes preparatrias mais importantes esto pouco

    representados. Pode-se portanto raciocinar a fortiori, pois tudo parece indicar que as diferenas que separam os professores das classes preparatrias dos outros professores do secundrio seriam ainda

    maiores se a amostra fosse mais representativa no que concerne aos professores das classes preparatrias.

    29 Para as notas dos deveres, eu sublinhei em azul para os cubes, em vermelho para os bicas. Evidentemente, eu tenho as notas de concurso de todo mundo, escrito e oral, de cada ano e relaciono essas notas noutra pgina para os admitidos. Temos tambm as folhas de probatrios para passer da hipokhgne a khgne e a classificao geral da turma, com os coeficientes do concurso de cada trimestre, por matria. Ver em vermelho as mdias nas dissertaes e em azul nas lnguas; eu tenho o que equivale a um histograma, o total e a classificao (Professor de khgne, filosofia).30 Eles podem assim encontrar as prticas mais tpicas dos jesutas, como esse professor de matemticas especiais que pede para que cada um dos seus alunos se torne o supervisor dos outros: Entenda-se que cada aluno deve me dizer o nome de seu camarada do lado ausente. L, eu passo a confiar e eles no conseguem me enganar por muito tempo (Professor de taupe, matemtica).

  • Pierre Bourdieu 39

    Todos os indicadores concorrem para mostrar que os professores das classes preparatrias

    so recrutados em meio elite dos professores do ensino secundrio; eles acumulam, na verdade,

    todas as caractersticas que definem o produto perfeito do sistema escolar. Como ex-bons alunos, eles

    obtiveram mais cedo os signos de consagrao, os mais procurados e tambm os mais raros. Tendo

    em maioria (78%) obtido ao menos uma meno no bacharelado (assim como 77% dos professores

    agregados contra 58% dos certificados e 32% dos mestres auxiliares), esses professores, com muito

    mais frequncia que outros, se apresentaram ao Concurso geral (seja 48% contra 34% dos agregados,

    12,5% dos certificados, 5,5% dos mestres auxiliares); quase todos eles passaram ao menos um ano

    numa classe preparatria (seja 86% contra 61,5%, 34% e 20%); 66,5% deles se apresentaram no incio

    do ano letivo uma Escola Normal Superior (contra 43,5%, 16,5% e 4% dos outros) e obtiveram a

    agregao mais cedo que os outros professores agregados (seja, antes dos 24 anos, 30,5% deles

    contra 20% dos outros agregados); 25,5% passaram por Ulm e Svres contra 10,5% dos agregados

    do secundrio, 0,5 dos certificados; 19,5% passaram por Fontenay ou Saint-Cloud (contra 9% dos

    agregados, 2% dos certificados)

    Mais selecionadas que os homens, as mulheres que ensinam numa classe preparatria acumulam

    nos ndices mais altos todas essas caractersticas. Tendo obtido com mais frequncia uma meno no

    bacharelado (88% contra 73,5%), elas se apresentaram mais ao Concurso geral (52% contra 47%),

    passaram com mais frequncia por uma classe preparatria (89% contra 85%) e foram aprovadas na

    agregao mais jovens (33% antes dos 24 anos contra 29%).

    Escolarmente mais selecionados que os outros professores do ensino secundrio, os professores

    das classes preparatrias tambm so mais selecionados socialmente. Frequentemente provenientes

    da classe dominante (28,5% tendo um av paterno, 49,5% um pai pertencendo a essa classe contra

    19% e 34% dos agregados, 16,5% e 36,5% do conjunto de professores do ensino secundrio), eles vm

    de famlias culturalmente mais ricas do que os outros professores do secundrio (39,5% tm pai com

    um diploma superior no bacharelado contra 34,5% dos professores agregados e 26,5% do conjunto

    de professores do ensino secundrio; 16,5% tm uma me com um diploma superior de bacharelado

    contra 13% dos agregados, 8% do conjunto). No h nada se surpreendente se as mulheres professoras

    nas classes preparatrias vm de meios social e culturalmente mais privilegiados. Se os professores das classes preparatrias pertencem a meios mais favorecidos tanto em relao ao status social quanto ao capital cultural do que os outros professores do secundrio, eles

    talvez se distingam ainda mais claramente dos professores do superior: com menos frequncia vindos

    da classe dominante, eles provm com mais frequncia das classes mdias e das fraes dominadas

    da classe dominante. Prova de que os professores das classes preparatrias assumem totalmente seu papel de

    professor: 84% declaram no ter nenhuma atividade de pesquisa. Voltados ao ensino, preparao do

    ensino, eles com frequncia (em 39,5% dos casos) vislumbram, num momento ou noutro, preparar

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL40

    algum manual escolar; 44% fizeram parte de bancas de concursos (agregao, CAPES, entrada nas

    grandes escolas). Eles vislumbram apenas excepcionalmente passar ao ensino superior; quando se

    pergunta qual atividade exercero em dez anos, quase a totalidade deles responde (85%) que continuar

    ensinando numa classe preparatria (apenas 10,5% pensam no ensino superior contra 18,5% dos

    professores agregados). Em relao s atitudes sindicais, polticas, religiosas, os professores das

    classes preparatrias no parecem se distinguir do conjunto de professores.

    As relaes entre os mestres e os alunos s vezes so mais intensas, mais indiferenciadas e mais totais do que nas faculdades, como testemunham, entre outras coisas, os termos que empregam os alunos de algumas khgnes: Acontece que os bicas vm me encontrar e me dizem: Mestre, ser que eu posso gazear sua aula?, e eu concordo facilmente. Sim (sorriso), chama-se de mestre todos os professores de khgne e eles exclusivamente, ao menos no Henri IV. Isso remonta ao menos a Alain. O que no quer dizer que gostaramos de nos alinhar aos sbios, mas esse um termo que se ope ao professor do secundrio. Voc compreende, ns temos certa familiaridade com nossos alunos, eles permanecem conosco durante trs anos consecutivos; esse um meio muito selecionado, j uma elite, no h problema de disciplina. Esse verdadeiramente o ltimo pilar do ensino grego! (rir). Eu tambm ensino na Sorbonne, em histria antiga: os alunos desaparecem, jamais os conhecemos (Professor de khgne, histria). Quando eles se ausentam (os alunos), eles se desculpam chamando voc de mestre (). Os alunos chamam voc de mestre sobretudo quando tm algo a ser perdoado (Professor da khgne, latim). Os professores gostam de representar seu papel, sobretudo quando ensinam as disciplinas maiores, e particularmente a filosofia, como o de um mestre de sabedoria, ou mesmo de um pai espiritual, autorizado a intervir em todas as questes que tocam direta ou indiretamente a conduta da vida de trabalho, leituras, preparao dos deveres, organizao das revises e, at mesmo, horas de sono, regime alimentar, festas, etc. Nossos alunos, h quatro ou cinco anos, estimulados pelos alunos da faculdade, queriam a supresso das taupes. Eu disse-lhes: isso infantilidade; vocs so privilegiados. Vocs se deixam levar por pessoas que no querem o bem de vocs. Por hoje terminou. Eles no pedem mais a supresso das taupes. Eles veem a baguna na faculdade. Eles sabem que no h injustia, que s se quer o seu bem. Eles se sentem seguros, conduzidos, eles tm um pai espiritual, pais espirituais (Professor de taupe, matemtica). M.L. durante anos os recebeu em sua casa (alunos), muitos, muito intimamente, com uma generosidade, um dom de si e de seu tempo, talvez menos nos ltimos anos, agora ele est beira da aposentadoria, mas enfim ele teve uma influncia moral pessoal muito profunda (Professor de khgne, letras, falando de um professor de filosofia). Cada ano alguns alunos vm me procurar para emprestar livros, ou isso ao aquilo, e discutem menos, alis, sobre o que foi feito na aula, sobre o curso ou sobre o que est sendo dado, do que sobre os problemas que lhes interessam, sobre os problemas que com que trabalham e sobre os quais discutem com muita firmeza, e frequentemente com muito vigor, sobre sua, digamos, concepo filosfica, suas perspectivas de vida, enfim sua maneira pessoal de ver os problemas; e portanto, no com os alunos, com um aluno (Professor de khgne, filosofia). H a poltica que os irrita um pouco, eles tm posies extremas: neste momento, voc sabe, o comunismo pr-chins. Infelizmente, h quem sacrifique a sua carreira de khgneux. Eu vi excelentes alunos carem nisso. Eu tento proteg-los. Eu disse-lhes: vocs se do conta, preciso que vocs sejam bem sucedidos, depois vocs fazem o que quiser. Em geral, mantenho relaes com meus ex-alunos, eles vm me ver, eu tenho grande prazer em v-los, e eles tambm (Professor de khgne, histria). Todos falam da satisfao que lhes d o sentimento de exercer uma ao total e durvel com seus alunos e tambm as manifestaes de gratido que testemunham graas ao sucesso dessa ao: Tem-se a impresso de que as crianas que se tm entre as suas mos te reconhecem (). Sim, eles

  • Pierre Bourdieu 41

    demonstram uma grande confiana. Um pai de famlia te confia seus filhos para que ele entre na classe X, a gente responsvel diante dele. Ele confia em voc (Professor da taupe, matemtica). Eu sempre me satisfao num ambiente pequeno onde possvel criar uma atmosfera e modelar um pouco a coisa imagem do que se quer (Professor de taupe, matemtica). Voc sabe, eu sou o professor mais severo de Paris. Eu mantenho contatos com meus ex-alunos, sempre fica alguma coisa. Eu causo medo neles. A gente pode se tornar bons amigos, at eles se impressionam, eles no acreditavam nisso de minha parte, mas sempre fica alguma coisa (). s vezes alguns ex-alunos enviam sua tese e me dizem: por favor, no venha nesse dia! (Professor de khgne, francs).

    Colocados no centro dos mecanismos de reproduo do sistema do qual eles so os produtos

    mais bem acabados, os professores de classes preparatrias no precisam buscar explicitamente o ajustamento de seu ensino s exigncias de um concurso no qual sempre foram aprovados. A

    continuidade to absoluta entre o aluno de khgne ou de taupe que tinham sido e o professor que se tornaram que basta ser completamente o que so para apresentar alunos perfeitamente preparados

    diante das bancas que, sendo o produto das mesmas condies de produo, tm apenas que ser o que

    so para estar no esprito do concurso. Eu sou membro da banca de agregao em histria ().

    Corrigindo meus alunos, eu creio estar no esprito do concurso; os corretores so alis camaradas da

    Escola, suas questes poderiam ser as minhas (Professor de khgne, histria).

    O eterno retorno

    E, verdade, j falei muito nesta velha e cara casa. Agradeo ao Senhor Diretor por ter certamente pensado em

    me rejuvenescer. Eu falo desde 1911, como aluno, como professor, como inspetor, em intervalos bastante regulares,

    de quinze em quinze anos, para que eu no pense que no h velhice, mas somente um eterno retorno. ()

    Mas eu falava em janeiro 1911 com uma segurana bem maior do que a de hoje. Eu era jovem. () Eu

    era, aps muitas batalhas, aluno da khgne de Louis-le-Grand. Todos os meus desejos estavam enfim satisfeitos.

    Eu tinha ouvido falar que era aqui que melhor se ensinava na Frana a prtica desse famoso lgos, desse meio de

    mentira e de verdade, dessa arte de convencer que faz bem tanto aos sofistas quanto aos sbios, e portanto, no final

    de uma longa vida, eu pensei cada vez mais que ele era um poder assustador e que talvez fosse o princpio de toda

    ordem mas tambm de todas as desordens do mundo. ramos aqui uns cinquenta jovens rapazes que, por esse poder,

    trabalhvamos para nos tornar mestres. Eu no saberia dizer o que devo a esses camaradas. Pois uma classe de khgne

    primeiramente os alunos. () Tnhamos os melhores mestres, Lafont, Darcy, Belot, e o que eu gostaria de nomear

    com uma grande gratido, Henri Durand, porque ele explicava maravilhosamente bem La Fontaine, e porque ao ouvi-

    lo, eu senti pela primeira vez tudo o que poderia ser um professor de francs, que bruxo evocador das sombras, que

    artista, que mediador de todos os artistas e o que mantm e transmite em sua grandeza e sua beleza o pensamento e

    a lngua de seu pas.

    Trinta anos mais tarde, na mesma sala, na mesma disciplina, era minha vez de explicar La Fontaine e tantos

    outros escritores, e eu procuraria fazer to bem como meu mestre Henri Durand. Eu estava em khgne ainda. Eu

    teria sido um khgneux toda minha vida. Vejo que eu jamais seria capaz de falar do que foi meu mtier com a

    conveniente frieza polida de uma cerimnia como esta. Queiram me desculpar. Imagino que h muitos professores

    aqui. Estou certo de que eles me compreendem e principalmente se eu conseguir apresentar bem o que foi minha

    especialidade, o ensino do francs, valorizando-o. Todos ns acreditamos muito no que fazemos. Ensinar a crianas

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL42

    sua lngua ensinar-lhes a prtica do que ser para elas uma espcie de chave universal, e essa certamente a coisa

    mais importante. Mas ter a chance de ensin-la na khgne para jovens pessoas que a amam e que foram reunidas

    precisamente para reconhecer seus segredos, suas astcias, suas potncias, e isso a partir de fatos, de textos os mais

    admirveis, procurando perseguir juntos a verdade e a beleza, enchendo-se de uma ideia, desembaraando o jogo

    das foras do pensamento e das formas de linguagem, no, eu no posso expressar quo imenso pode ser o prazer de

    exercer esse mtier, quo maravilhosa so as trocas numa classe.

    J. Guhenno. Allocution, in quatrime centenaire du Lyce Louis-le-Grand, 1563-1963, tudes, souvenirs, documents. Paris: [Lyce Louis-le-Grand, 1963], pp. 8-9.

    muito difcil fazer a distino entre o que devo khgne, onde eu estava, e em suma rapidamente, eu tinha 27 anos para onde fui nomeado como professor; isso, uma espcie de meio-dramalho. O que h de certo que para algum como eu, isso bem simples, eu no me vejo, absolutamente, ocupando outro posto, tolo dizer, outro posto alm desse para mim (Professor de khgne, letras)31. Os khgneux tm, na verdade, um estatuto especial; voc sabe como , so seus futuros colegas, se que posso falar assim, e no Liceu de Lyon h uma grande proporo deles, eles so bastante numerosos, uns dez professores so ex-khgneux de Lyon (). Os professores so portanto, de certo modo, meio ex-camaradas. Entre os alunos, se se pode cham-los assim, e os professores, no h nenhum tipo de distncia, se posso dizer isso; enfim a discusso se faz de igual para igual (Professor da khgne, filosofia).

    As aulas, particularmente de francs e filosofia, se apresentam como correes antecipadas de

    deveres possveis, eles mesmos inspirados nas provas efetivamente propostas nos concursos. Tendo

    de preparar seus alunos para responder a problemas da Escola, os professores de khgne so levados a organizar, antecipadamente, suas aulas de acordo com a dificuldade que seus alunos devero encontrar

    para responder a esses problemas, o limite disso estando representado pelos manuais de dissertao nos quais se encontram discursos elaborados em funo de temas de dissertao passadas ou possveis.32. A maioria dos professores de taupe utiliza temas de exerccio de coletneas que renem os problemas e as questes apresentadas em concursos anteriores, eles deveriam, para fugir da rotina, modific-los

    um pouco. Seu papel no desconcentrar, mas preparar montagens, ou seja, programar os espritos

    conforme o programa33. Ocorre que os temas legados pela tradio escolar tendem a se tornar, mais

    31 Reconhece-se a uma expresso exemplar de lamor fati como o encontro entre a instituio objetivada e a instituio incorporada.32 Essas aprendizagens autorizam e favorecem uma forma de pensamento e de palavra quase automtica, frequentemente reconhecida como a forma suprema de improvisao brilhante, que somente o produto da colocao em prtica de uma sequncia de esquemas escolares. Assim, considerando as improvisaes que um clebre professor de khgne propunha num crculo de intelectuais, seus ex-alunos apresentavam na passagem os ares conhecidos, justia e caridade, explicar e compreender, razo e desrazo, etc.33 Ainda que frequentemente evitem sucumbir pura repetio, tanto nas suas aulas quanto nos temas de exerccio, os professores apenas se ajustam s exigncias da situao que os alunos, apesar de seus protestos, so os primeiros a lhes lembrar. Assim, se pode ver, em 1970, os alunos de uma classe preparatria de Paris fazerem greve por melhores condies de trabalho, segundo o ttulo do cotidiano (Le Monde, fvrier 1970) que trazia a notcia.

  • Pierre Bourdieu 43

    que tpicos que servem de pretexto s variaes de uma tradio letrada, verdadeiras categorias de pensamento, delimitando o universo do pensvel e impondo o conjunto claramente circunscrito de questes suscetveis de serem postas realidade que, quando se impem ao conjunto de um universo

    social, mestres e alunos, juzes e partcipes, produzem a iluso de um mundo finito, fechado, perfeito.

    Na taupe como na khgne, a aula frequentemente se apresenta como uma espcie de manual oral, oferecendo, de um modo cmodo e condensado, conhecimentos pr-elaborados para os usos escolares (tais como as questes de aula), e comum que ela seja ditada e repetida ao longo dos anos, sofrendo apenas pequenas modificaes: Eu me esforo para fabricar uma aula dirigida ao mximo, o mximo de exerccios igualmente bem digeridos, declara um professor da taupe, enquanto um professor de histria confessa dispensar os bicas de sua aula quando a assistiram, apenas de uma forma diferente, dois anos antes.A busca pela maximizao da quantidade de informao transmitida implica um modo de inculcao dogmtica no qual somente a pr-digesto professoral pode substituir a falta de trabalho de

    assimilao (que exige tempo) permitida por mtodos menos brutalmente diretivos34. Eu fao aulas de 2 horas, muito magistrais; eles (os alunos) s vezes interrompem minhas aulas, mas sabem que h um mnimo para ser assimilado. Eles se do conta que ganham tempo escutando; eles tm muitas coisas para fazer: no se vem para khgne como diletante, para se cultivar livremente. A aula magistral, ela se impe, como no direito se voc quiser. Essas realmente so aulas, com todas as imperfeies do sistema (Professor de khgne, histria). A participao dos alunos de Sainte-Genevive no ensino de qualquer modo meramente aparente (). Os alunos permanecem muito ligados ao professor e forma de esprito ou ao modo de expor do professor (). Eles preferem muito, ainda que seja difcil, escutar e ter uma aula praticamente ditada (Professor de taupe, matemtica).

    Visando, antes de tudo, transmitir no menor tempo possvel a maior quantidade possvel

    de conhecimentos teis, a aula frequentemente obedece s regras mais tradicionais da exposio

    escolar, com seu plano claro, pois, falando como Toms de Aquino, mestre do discurso em trs

    pontos, ela deve manifestar o prprio professor no discurso, por meio de sinais de subdiviso hierarquizados (I, II, III, 1, 2, 3, a, b, c), com suas introdues, suas transies e suas concluses

    segundo os cnones da retrica. Essa pedagogia autoritria e dogmtica, cujo arbitrrio aparece

    para os alunos apenas excepcionalmente, porque est funcionalmente ligada ao concurso e a suas

    exigncias mais especficas, se atribui explicitamente como funo assegurar uma economia de leituras e de pesquisas pessoais, mais do que provoc-las.

    34 Os professores podem contar com a cumplicidade consentida dos alunos que querem evitar toda perda de tempo para interromper a aula com questes ou objees. Somente 9,5% dos taupins e 12% dos khgneux afirmam haver tomado a palavra na sala, o que poderia surpreender considerando-se que nos trabalhos prticos da faculdade, onde as condies so semelhantes, as tomadas da palavra so muito mais frequentes, seja 38% em MP2. Na verdade, reprovao coletiva suscitada pelas interrupes, acrescenta-se a autocensura (particularmente forte nas khgnes e, correlativamente, na Escola Normal) inspirada pelo medo de ridicularizar-se diante dos condiscpulos: Eu no gosto de trabalhar na biblioteca, a gente se sente espionado. No porque eu queira conservar minhas ideias, mas porque no quero que os outros conheam minhas besteiras. Basta que os professores saibam, mas eles so pagos para isso e um pouco como a confisso: fala-se de seus erros para que os corrijam. Tambm por isso que durante as aulas eu sento na primeira fila, e sempre no fundo quando estou estudando (Khgneux, Louis-le-Grand, 20 anos).

  • PROVAO ESCOLAR E CONSAGRAO SOCIAL44

    Eu nunca dou bibliografia, isso no serviria para nada. Eles devem falar sobre qualque