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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL FRANÇOIS DE OLIVEIRA FERREIRA UMA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS: PARA UMA INTERPRETAÇÃO JURIDICAMENTE CORRETA, CONSTITUCIONALMENTE ORIENTADA E DISCURSIVAMENTE LEGÍTIMA NATAL/RN 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO MESTRADO EM DIREITO CONSTITUCIONAL

FRANÇOIS DE OLIVEIRA FERREIRA

UMA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS: PARA UMA INTERPRETAÇÃO JURIDICAMENTE CORRETA,

CONSTITUCIONALMENTE ORIENTADA E DISCURSIVAMENTE LEGÍTIMA

NATAL/RN 2017

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FRANÇOIS DE OLIVEIRA FERREIRA

UMA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS: PARA UMA INTERPRETAÇÃO JURIDICAMENTE CORRETA,

CONSTITUCIONALMENTE ORIENTADA E DISCURSIVAMENTE LEGÍTIMA

Dissertação presentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPGD/UFRN) como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Direito Constitucional.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Tinoco de Góis

NATAL/RN

2017

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Catalogação da Publicação na Fonte.

UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA

Ferreira, François de Oliveira.

Uma análise do julgamento do recurso especial n 1.418.593 MS: para uma

interpretação juridicamente correta, constitucionalmente orientada e

discursivamente legítima / François de Oliveira Ferreira. - Natal, 2016.

119f.: il.

Orientador: Prof. Dr. Ricardo Tinoco de Góis.

Dissertação (Mestrado em Direito) - Universidade Federal do Rio Grande do

Norte. Centro de Ciências Sociais Aplicadas. Programa de Pós-graduação em

Direito.

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FRANÇOIS DE OLIVEIRA FERREIRA

UMA ANÁLISE DO JULGAMENTO DO RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS: PARA UMA INTERPRETAÇÃO JURIDICAMENTE CORRETA,

CONSTITUCIONALMENTE ORIENTADA E DISCURSIVAMENTE LEGÍTIMA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Direito Constitucional.

Aprovada em: ____/____/____

BANCA EXAMINADORA

Prof. Doutor. Nome do Examinador UFRN

Prof. Doutor. Nome do Examinador Vinculação

Prof. Doutor. Nome do Examinador Vinculação

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TERMO DE AUTORIZAÇÃO

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Ao rosário de mistérios dolorosos e

gozosos Do silêncio que se compartilha pelas

cordas do peito, Vai dedicada, com zelo e carinho,

Esta dulcíssima dissertação.

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Ao amabilíssimo conjunto de profissionais da Biblioteca Central Zila Mamede da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (BCZM/UFRN), que vive o poético desafio de fazer do último refúgio, entre todos os restantes na cidade, seu lugar de trabalho, meu singelo (e quase anônimo) muito obrigado.

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“Aprender a ver: habituar os olhos à calma, à paciência, ao deixar que

as coisas se aproximem de nós; aprender a adiar o juízo, a rodear o

caso por todos os lados.”

Friedrich Nietzsche, sobre algo que falta à nossa praxe forense.

“Ousados começam; determinados

terminam.”

George Bernard Shaw, sobre qual é o espírito para encarar uma pesquisa

acadêmica a respeito de algo que falta à nossa praxe forense.

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RESUMO

Este trabalho pretende analisar a decisão do Recurso Especial n 1.418.593 MS a fim de propor

uma nova interpretação para o problema do julgado, que se baseou em premissas frágeis, do

ponto de vista argumentativo, para estipular uma leitura específica para a expressão legal

“integralidade da dívida pendente” e ignorou, ao final, uma discussão constitucional sobre o

devido processo legal que era fundamental para o enfrentamento da causa (visto que o recurso

também envolvia o debate sobre a possibilidade de se alienar o bem dado em garantia antes de

proferida decisão final na instância de processamento). Depois de apresentar, em maiores

detalhes, a lei de regência da matéria e o recurso que julgou a controvérsia, a pesquisa teórica

da dissertação mostra a gênese filosófica dos Direitos Fundamentais a partir do pensamento

de Immanuel Kant, persegue a construção desse conceito no devenir histórico europeu,

pontuando a importância dessa jornada para a própria identidade do Ocidente Moderno, e

recupera como se deu a incorporação desse conceito ao ideário jurídico, fazendo com que o

súdito se emancipasse e o sujeito de direito gozasse de uma dupla autonomia – a pública e a

privada, isto é, a de cidadão e a de indivíduo. Ao final, faz-se a crítica da decisão adotada pelo

colegiado superior tanto da perspectiva habermasiana, relativa à legitimidade da decisão, que

não tentou formar um mínimo consenso sobre a matéria a partir do agir comunicativo, quanto

da perspectiva do Direito positivo do país, mais especificamente no que diz respeito à

correção técnica do julgado, em especial diante do tratamento constitucional que deveria ter

sido dispensado ao tema.

Palavras-chave: Direito Civil e Processual Civil; Direitos Fundamentais; Legitimidade e Agir

Comunicativo.

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ABSTRACT

This work intends to analyze the decision of Recurso Especial n. 1.418.593 MS in order to

propose a new interpretation for the problem of the judgment, which was based on fragile

assumptions, from the argumentative point of view, to stipulate a specific reading for the legal

expression "completeness of the outstanding debt" and ultimately ignored a constitutional

discussion on due process of law that was fundamental to the cause (since the appeal also

involved the debate on the possibility of disposing of the asset given as security before it was

rendered final decision in the processing instance). After presenting, in greater detail, the law

of regency of matter and the resource that judged the controversy, the theoretical research of

the dissertation shows the philosophical genesis of Fundamental Rights from the thought of

Immanuel Kant, pursues the construction of this concept in the european historical evolution,

emphasizing the importance of this journey to the very identity of the Modern West, and

recovers how the concept was incorporated into legal ideals, making the subject emancipated

and the subject of law enjoy a dual autonomy - public and private, that is, that of citizen and

that of individual. In the end, the criticism is made of the decision taken by the superior

collegiate both from the habermasian perspective, regarding the legitimacy of the decision,

which did not attempt to form a minimum consensus on the matter based on communicative

action, and the perspective of positive law in the country, more specifically with regard to the

technical correction of the judgment, especially in view of the constitutional treatment that

should have been dispensed to it.

Palavras-chave: Direito Civil e Processual Civil; Direitos Fundamentais; Legitimidade e Agir

Comunicativo.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 11

2 A LEI DE BUSCA E APREENSÃO E O RECURSO ESPECIAL N1.418.593 MS.. . 15

2.1 De uma questão terminológica – e do que já se entrevê por trás dela ...................... 15

2.2 Para conhecer a Lei de Busca e Apreensão ................................................................. 20

2.3 Para conhecer o Recurso Especial n 1.418.593 MS .................................................... 25

2.4 Do que se pôde apreender (até agora) da Lei de Busca e Apreensão e do

Recurso Especial n 1.418.593 MS – e das perguntas que daí surgem ........................ 29

3 DA GÊNESE FILOSÓFICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – A

UNIVERSALIZAÇÃO DE UM CONCEITO DE ACORDO COM A

FILOSOFIA DE IMMANUEL KANT ........................................................................... 33

4 O CONTEXTO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO DA CATEGORIA

FILOSÓFICA “DIREITOS” – E DE COMO ESSA CONCEPÇÃO

SE TORNOU JURÍDICA ................................................................................................ 46

4.1 Do contexto histórico que levou a categoria “direitos” a ser uma pauta da

Modernidade .................................................................................................................. 46

4.2 De como a categoria “direitos” se firmou dentro da tradição jurídica a partir

do fim da Idade Média – e de como um acerto entre cavalheiros inspirou o

contrato social a que chamamos Constituição ............................................................ 62

5 DE UMA CRÍTICA HABERMASIANA AO PROCEDER JUDICIAL: PARA

QUE SE TENHA LEGITIMIDADE NA LEGALIDADE ............................................ 80

6 UMA REFLEXÃO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO SOBRE A

DECISÃO DO RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS ............................................. 98

7 CONCLUSÕES ................................................................................................................. 110

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 115

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1 INTRODUÇÃO

“A lei pode ser injusta?” – já perguntava Alcibíades a Péricles, milênios atrás, segundo

Xenofonte. Essa é uma pergunta que traduz várias preocupações (ainda muito) relevantes na

contemporaneidade, todas mais ou menos imbrincadas desde sua origem: o que é a lei e a que

ela se presta? O Direito se esgota nela? Caso se esgote, de que adianta todo o caudaloso corpo

de conhecimentos que temos se estamos presos, fatalmente, ao que a lei (esse monolito mudo)

resume? Ir além do que ela diz representa risco à paz da sociedade? Aliás, como identificar, se

isso é tão importante, o que diz a lei – sua leitura é sempre compassada como um concerto de

camerata? Quando se fala de lei, a propósito, fala-se de quê? Regras? Princípios? Prestam-se

os princípios a orientar as regras? Devem se prestar? As regras, por sua vez, concretizam os

princípios – ou pelo menos devem fazê-lo? Aliás: o que seriam mesmo princípios e regras? E,

por fim, mas de maneira alguma por último em escala de importância, já que esse é exata e

precisamente o principal objetivo da ciência social aplicada chamada Direito: como ter (e

manter) segurança jurídica, eficiência e isonomia no exercício prático da legalidade sem, ao

mesmo tempo, perder o (tão famoso quanto polêmico) ideal de justiça?

O Recurso Especial n 1.418.593 MS, relatado pelo Excelentíssimo Senhor Ministro

Luís Felipe Salomão e julgado, à unanimidade, em 14 de maio de 2014, pela Segunda Seção

do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – que reúne a terceira e a quarta turmas desse tribunal –

tangenciou algumas das questões suscitadas acima. Assim o fez ao tratar do processamento

das ações de busca e apreensão, mais propriamente ao tratar das ações de busca e apreensão

decorrentes do inadimplemento de contrato de mútuo com pacto adjeto de alienação fiduciária

em garantia. 02 (dois) pontos merecem especial atenção no julgamento do recurso referido

acima: primeiro, a supostamente imperiosa necessidade de quitar o contrato de financiamento

integralmente para se reaver o bem (se e quando ele já foi apreendido por ordem liminar nas

ações de busca e apreensão); e, segundo, o não ter se decidido a respeito da discussão sobre a

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(im)possibilidade de o credor fiduciante alienar o bem dado em garantia antes de ser a causa

sentenciada.

Ao afirmar a necessidade de se pagar vencido e vincendo, isto é, o débito integral para

se reaver o bem dado em garantia, a corte fundamentou sua decisão tomando basicamente 02

(duas) premissas como válidas: primeiro, a de que, sob pena de periclitar a Divisão de Poderes

que fundamenta a República, não cabe ao julgador divisar se não divisou o legislador – que,

por sua vez, teria sido explícito em exigir, na lei alteradora, pagamento integral para ocorrer a

devolução do bem de garantia; e, segundo, a premissa de que o limite da interpretação legal é

o texto da lei, não havendo espaço, portanto, para interpretações conforme elementos alheios

ao texto. Quanto à tal (im)possibilidade de alienação antecipada do veículo, a discussão não

foi efetivada e a omissão de pronunciamento sequer foi justificada no voto de base ao acórdão

– apesar da querela constitucional envolvida, pois o réu da ação já se valera precisamente do

devido processo legal (com seus sempre presentes consectários lógicos, próximos e derivados,

ampla defesa e contraditório) como fundamento para evitar a alienação antecipada do bem sub

judice antes de julgada a lide.

Claro que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem a atribuição constitucional de dizer

o direito na matéria de sua competência, e claro que pode escolher uma postura mais legalista

ao decidir; mas precisamente por ter, fora a prerrogativa de resolver o que lhe é submetido, o

dever de fundamentar as decisões que adota, tanto para as partes envolvidas quanto para o

público em geral, o mínimo a esperar do exercício desse ofício institucional é que demonstre

se sustentar a fundamentação escolhida – e que ela prevalece face a argumentos que lhe são

contrários. Ainda merece destaque, claro, que um órgão jurisdicional não se pronunciar sobre

essa ou aquela relação fática (desde que não suscitada) é possível, e mesmo esperado, de

acordo com o princípio da demanda; mas não abordar argumentos e fundamentos de direito

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relacionados à relação fática controvertida é, sem maiores arrodeios frasais, se contentar com

pouco – ou simplesmente julgar mal.

Além disso, analisando o objeto de estudo desta pesquisa para além da decisão em si,

isto é, para além da decisão em seus fundamentos, vale observar que a elaboração do julgado

não teve qualquer participação dos agentes sociais por ele afetados, como os consumidores de

produtos e serviços bancários; isso prejudicou, independentemente do aspecto técnico (isto é,

do ponto de vista puramente jurídico), a legitimidade (político-institucional) da resolução que

terminou sendo adotada. Apesar de os órgãos jurisdicionais não serem, de acordo com o feitio

do Estado de Direito que hoje predomina no Ocidente, órgãos de participação popular, não

podem se omitir ou deixar de interagir com o meio comunitário que os cerca, pelo menos não

na atual fase da jurisdição constitucional, na qual a legitimidade decisória também conta para

a eficácia pretendida com a normatização proferida – sob pena de predominarem imperativos

sistêmicos francamente deletérios, haver desintegração social e, por fim, haver anomia, isto é,

uma perda de identidade entre cidadão e Estado que termina vitimando, por fim, o próprio

espírito republicano.

Daí a motivação de escrever esta dissertação: no que diz respeito ao julgamento do

recurso repetitivo referido no início, tanto falta ainda analisar se os fundamentos utilizados no

acórdão (“não cabe divisar onde o legislador não divisou” e “o limite da interpretação é a lei”)

não podem ser abalados por outros, quanto resta apreciar a matéria constitucional e processual

não abordada no conteúdo do debate. Pesquisar sobre esse julgado se torna até esperado:

afinal, se a função primordial do julgador é colocar em perspectiva aquilo que os contendores

deduziram um contra o outro, e se sua missão é decidir conforme a consistência e a coerência

que deve ter o ordenamento jurídico, é papel (dentre outros) do estudo acadêmico colocar em

perspectiva a produção jurisprudencial para analisar a (às vezes presumida) correção técnica

das decisões proferidas. Não apenas, é claro, para o exercício gratuito da virtuose crítica, de

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natureza filosófica ou técnica, mas também para efetivamente contribuir com a formação do

pensamento forense sobre os temas julgados – e, quem sabe, reformar posicionamentos que

terminam se mostrando inconsistentes, especialmente face ao uso público da razão.

Entendendo, então, como posto acima, propõe-se, com este trabalho, primeiramente

estudar a Lei de Busca e Apreensão para dá-la a conhecer da melhor forma, fazendo o mesmo

com o Recurso Especial que decidiu sobre a matéria correlata; depois, estudar a gênese

filosófica dos Direitos Fundamentais de acordo com a filosofia kantiana; em seguida,

recuperar a paulatina construção histórica desses mesmos Direitos no ocidente moderno,

acompanhando ainda como se deu seu ingresso no universo jurídico, que passaram a ser

coercitivamente exigíveis dentro do que chamamos de Estado de Direito; após, sob inspiração

habermasiana, avaliar que, apesar de importante, a mera legalidade estrita não é suficiente

para a legitimidade decisória, e que, face a isso, a interpretação do colegiado superior limitou

a participação na construção ativa de uma solução jurídica diversa, menos solipsista; em

seguida, avaliar a decisão tomada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) de acordo com o

ordenamento jurídico posto e em vigor no país, cotejando-a ainda com institutos jurídicos

aplicáveis potencialmente ao caso; e, por fim, na conclusão, as sugestões para uma (nova)

interpretação juridicamente correta, constitucionalmente orientada e discursivamente

legitimada da problemática suscitada são traçadas sobre um fundo técnico-jurídico,

hermenêutico e filosófico relativo à decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) no

julgamento do Recurso Especial n 1.418.593 MS.

Ao início, pois.

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2 A LEI DE BUSCA E APREENSÃO E O RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS

2.1 De uma questão terminológica – e do que já se entrevê por trás dela

Antes de tudo, um esclarecimento terminológico: pelo menos caso se esteja de acordo

com o padrão largamente aceito no Ocidente de hoje em dia, “lei” é o ato normativo estatal

que, sendo originário, abstrato e genérico, comina, proíbe ou autoriza comportamentos1. Essa

é uma definição descritiva, não normativa2, que segue postulados kelsenianos: só é lei (para

os fins coercitivos oficiais) a lei estatal, só a lei é originária (porque nenhuma outra espécie

normativa inova o ordenamento jurídico), e a lei é parte de um todo maior, que, encabeçado

pela Constituição, chama-se de ordenamento jurídico3. Pensadores outros caracterizaram a lei

a partir de outros critérios conceituais (Autoridade ou Soberania), mas Kelsen foi o pioneiro

na inversão de perspectivas entre Estado e Direito (ou entre Política e Justiça), sendo ainda o

pioneiro em fundamentar o Direito no Direito: a norma hipotético-fundamental ocupa o lugar

do Estado e, embora se reconheça que o Estado integra o Direito, pois o oficial é, obviamente,

parte indissociável do jurídico, submete-se o oficial ao jurídico porque defender o oposto é

não instituir o regime da legalidade, mas o Estado como plenipotenciário face ao cidadão. A

única forma de evitar esse despautério é referenciar o Direito por ele mesmo, ajustando ainda

o Estado às fronteiras da licitude constitucional, isto é, do Direito4, 5.

1 A atual visão majoritária é de que não existe Direito (válido) fora do Estado, nem Estado (legítimo) fora do Direito. Assim, podemos (e devemos) definir o Estado pelo Direito (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 317). 2 Uma definição descritiva difere de uma normativa porque a primeira resume o que é, a segunda, o que deve ser – ambas são aceitas, a primeira na Sociologia Jurídica, a segunda na Teoria Geral do Direito (REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 13-22). 3 Embora essas características não sejam exclusivas da sua Filosofia do Direito, entenda-se. Outro autor é H. Hart que comunga da mesma visão positivista, alicerçada na autoridade como fundamento a dar validade ao comando jurídico, ainda que com suas diferenças conceituais (HART, H. L. A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2009. p. 129-160). Fora do espectro positivista, tem-se Léon Duguit, mas com a mesma percepção teórica (DUGUIT, Léon. Fundamentos do direito. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009. p. 77-78). 4 Sendo detalhista, é preciso destacar que as modalidades deônticas, porém, não esgotam toda a categorização da produção legislativa porque, a lei, além de ordenar, proibir ou autorizar, “confere poder ou competência”, isto é,

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Muito bem.

Levando em consideração o que foi dito acima, e aplicando o que ficou dito ao caso do

contrato de mútuo com pacto de alienação fiduciária, percebe-se que o ato normativo que trata

da matéria no país é um decreto-lei, não uma lei. De onde se pode legitimamente perguntar:

como lei, então, esse ato normativo pode ser tratado? Sim, ela pode e deve ser tratada como

lei, e é como se referirá neste estudo o ato, inclusive: a Lei de Busca e Apreensão – mas isso

precisa, claro, de uma explicação satisfatória. Afinal, não é a troco de nada que se subverte o

conceito fundamental do Direito, que, além de ser imprescindível para a compreensão dessa

área do saber por ser o seu típico e (quase) exclusivo objeto de estudo, é a figura elementar de

qualquer questionamento jurídico, inclusive aquele que abre este trabalho – “A lei pode ser

injusta?”. Ora, se assim é, esse ponto (que parece, à primeira vista, de menor importância), se

reveste de alguma magnitude, ainda mais se lembrarmos que a importância do conceito de lei

não se esgota nos problemas que ela mesmo, lei, cria – mas se espraia para outros conceitos

jurídicos ou, mais precisamente, da Filosofia Política; afinal, como definir o Estado de Direito

senão como o Estado em que se respeita a lei ou então como aquele em que prima o Governo

das Leis em vez da prevalecer o Governo dos Homens?6

Pois bem.

também tem sua função de organização do poder estatal (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 81). 5 Na conceituação da lei, mais semelhanças que diferenças surgem dentre as definições filosóficas e jurídicas do tema: uma outra semelhança bastante encontradiça, senão unânime, entre os teóricos da área, é que a lei nunca é pensada ad hominem ou modum exceptionis, isto é, para uma pessoa específica, ou exclusivamente para um caso. É outra forma, na verdade, de dizer que ela é abstrata e genérica. 6 Como lembra Norberto Bobbio, essa questão remonta a Platão e Aristóteles, pois Platão, distinguindo o bom governo do mau governo, diz que “onde a lei é súdita dos governantes e privada de autoridade, vejo pronta a ruína da cidade; e onde, ao contrário, a lei é senhora dos governantes e os governantes, seus escravos, vejo a salvação da cidade e a acumulação nela de todos os bens que os deuses costumam dar às cidades [...]. Aristóteles, iniciando o discurso sobre as diversas constituições monárquicas, põe-se o problema de saber se é “mais conveniente ser governado pelo melhor dos homens ou pelas leis melhores” [...]. A favor da segunda extremidade, enuncia uma máxima destinada a ter larga aceitação: “A lei não tem paixões, que, ao contrário, se encontram necessariamente em toda alma humana” ...] esse contraste entre as paixões dos homens e a frieza das leis conduzirá ao topos não menos clássico da lei identificada com a voz da razão” (BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: para uma teoria geral da política. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 96).

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Apesar de conceitual e terminologicamente ser um contra-senso querer simular, em

um decreto, uma lei, essa praxe foi aclimatada na História Jurídica do país através da adoção

de um instituto doutrinário (isto é, da literatura jurídica), a recepção, um fenômeno de Direito

Constitucional intertemporal permite a uma nova Constituição reter, por assim dizer, “partes”

do ordenamento jurídico anterior se compatíveis com a sua própria proposta de restruturação

desse ordenamento. Além de reter tais “partes”, permite-se, através da recepção, rearranjá-las

para status diferenciados do que tinham até então: o Código Tributário Nacional, para citar

um conhecido exemplo, havia sido instituído por lei ordinária no ordenamento de 1946, mas

foi recepcionado como lei complementar no atual ordenamento; o decreto-lei da busca, da

mesma forma, foi recepcionado como lei ordinária, embora, originalmente, seja ato do Poder

Executivo7, 8.

Ficou consignado acima ser um contra-senso conceitual e terminológico querer fazer

de um decreto uma lei.

Expliquemos por quê.

A resposta a sobre se é possível ou não tomar um decreto-lei por lei se resumiu a, por

meio do instituto da recepção, solucionar a questão através de uma ferramenta específica do

Direito Constitucional; nada contra isso, muito pelo contrário – tecnicamente falando, foi essa

a solução jurídica encontrada para esse problema prático, e a solução, além de satisfatória do

ponto de vista técnico, é viável do ponto de vista operacional. Mas é hora de voltar à Teoria

7 Quanto ao decreto e a sua pretensão de disciplinar a matéria, convém esclarecer que o decreto assim procede, mas sem a pretensão de esgotá-la; a preocupação maior é disciplinar rito procedimental célere para a retomada do bem alienado, mas, no caminho, inevitavelmente, direitos materiais surgem da letra do texto – como o direito (do devedor fiduciário, ou seja, do réu) de purgar a mora quando já pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do preço financiado (de acordo com a redação original do texto) ou o (aparente) direito (do credor fiduciante, ou seja, do autor) de alienar o veículo antes mesmo de proferida a sentença de mérito (no caso da redação atual). A evidência empírica tem mostrado que nenhum diploma normativo elaborado consegue ser puramente material ou processual, na verdade – e o da busca e apreensão é só mais um exemplo. 8 A recepção é um fenômeno necessário porque, na prática, é impossível recriar o ordenamento jurídico do zero após a edição de um novo texto constitucional. No caso do Brasil, então, que, em 193 (cento e noventa e três) anos de independência, conseguiu a proeza de (já) estar na sétima carta fundamental (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988), isto é, em média, cada Constituição vigora por aproximadamente 27 (vinte e sete) anos e 06 (seis) meses, essa tarefa parece, além de hercúlea, um desperdício de energia (BULOS, Uadi Lâmmego. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 366-369).

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Geral do Direito para ir além da solução jurídica para um problema prático. Em que reside,

pois, a falta de sentido de chamar a um decreto de lei, de acordo com os ditames, não mais do

Direito Constitucional, mas da Teoria Geral do Direito, e até mesmo da Filosofia Política? A

recepção pode mudar, de fato, um decreto-lei em lei, dando-lhe o que falta para ser mais do

que é? Não. E isso apenas alardeia a incompatibilidade entre os conceitos de lei e de decreto,

incompatibilidade que irradia efeitos para além do mero purismo acadêmico. Ora, o conceito

de lei dado acima destacou precisamente a condição de ser uma ferramenta originária, isto é,

inovadora no ordenamento jurídico. Somente ela, mais nenhuma outra, determina, proíbe e/ou

autoriza. Ao contrário, o decreto, não: por definição, ele vem completar a lei especificando o

que lhe faltou, não podendo, por conseguinte, contrariá-la nem ir além do que já foi definido;

ele é fruto do poder regulamentador, e uma necessidade técnica da prudência quando assuntos

específicos são legislados. Precisamente por isso, o tipo decreto tem natureza secundária (não

primária) dentro da pirâmide normativa9, 10.

Por isso que o decreto é ato do Poder Executivo, e a lei, do Poder Legislativo: levando

em consideração que, dentro da nossa concepção iluminista e humanista de Estado de Direito,

que se baseia, dentre outros valores, no princípio da soberania popular, somente aquele que

foi eleito pelo povo para fazer as leis que governam a República pode vincular esse mesmo

9 A lei não esgota assuntos técnicos ou científicos porque uma autoridade no assunto é chamada a completar o espectro legal a partir de seu conhecimento específico, como é o caso das agências reguladoras e da vigilância sanitária, para citar apenas 02 (dois) exemplos. A sociedade de especialização burocrática e multifacetada que vivemos assim recomenda (WEBER, Max. A Instituição estatal racional e os modernos partidos políticos e parlamentos. In: WEBER, Max (Org.). Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1982, seção 8, cap. 9, p. 229-282). Esse já é um ponto consensual dentro do Direito Administrativo: a regulamentação completa a lei em aspectos técnicos que esta não alcança e, em algumas situações mais especiais ainda, regula a matéria no lugar da lei propriamente dita (BINENBOJM, Gustavo. Poder de polícia, ordenação, regulação: transformações político-jurídicas, econômicas e institucionais do direito administrativo ordenador. Belo Horizonte: Fórum, 2016. p. 243-324). 10 O ordenamento se organiza como uma pirâmide invertida, segundo Kelsen, porque todo ato normativo retira validade de um outro, anterior e mais graduado, sobre o qual ele, ato normativo subsequente, se sustenta; como base geral dos degraus normativos que se sucedem e, logo, como fundamento de todos eles, está a Constituição, que fica sendo, assim, a pedra angular do sistema porque representa, na verdade, o pináculo da pirâmide. Daí a ideia de “pirâmide invertida” em que o topo serve de sustentação para toda a estrutura, inclusive a base. Essa imagem geométrica permite ainda visualizar que os atos normativos subsequentes, mesmo que menos graduados, podem retirar sua validade diretamente da Constituição, ao contrário do que incorretamente muito se veicula a respeito (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 246-308).

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povo a obrigações jurídicas, isto é, pode criar para os demais cidadãos ônus que até então eles

não tinham. Verifica-se, portanto, que, sob a égide iluminista e humanista referida, o modo

correto de vincular ou obrigar é através da lei, o instrumento adequado, a lei11, 12. Pretender

inovar o ordenamento através de um outro instrumento normativo específico que não a lei é,

para fins de análise pela Teoria Geral do Direito e pela Filosofia Política, anti-democrático – e

não é de surpreender, portanto, que o decreto-lei da busca e apreensão seja exatamente de um

período de exceção, o da Ditadura Militar (1964-1985)13. Uma particularidade desse decreto a

que se reporta esta pesquisa, inclusive, é exatamente seu extremo déficit democrático, mesmo

em se tratando de período excepcional: ao contrário de outros éditos desse mesmo interregno

histórico, ele não partiu de um Chefe do Poder Executivo, direta ou indiretamente eleito, mas

de um “triunvirato” militar que governou o país, por 60 (sessenta) dias, entre a saída de Costa

e Silva e a posse de Emílio Garrastazu Médici14. Apesar desses referenciais, porém, creia-se

que o pior do decreto não foi a sua gênese nem a disciplina que inicialmente impôs, mas, e

isso é de pasmar, como foi repensado em pleno período democrático (mais precisamente, no

11 Para aprofundamento na percepção de que, para além de ser uma ferramenta do Estado, a legalidade é uma garantia cidadã (FAGUNDES, Miguel Seabra. O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010. p. 115-132 e FRANÇA, Vladimir da Rocha. Invalidação judicial da discricionariedade administrativa no regime jurídico-administrativo brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p 115-171). 12 A lei, como todo e qualquer artefato cultural, isto é, como toda e qualquer criação humana, pode ser uma ferramenta para o bem e para o mal. No entanto, justamente por ter essa ambivalência e pensando precisa e especificamente em evitar que se preste a lei a algo torpe, vem a necessidade de legitimá-la como fruto de algo superior ao interesse do mais forte. O deboche de Trasímaco sobre a visão socrática de justiça é pontuada exatamente pela concepção de lei como ferramenta do mais forte (PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 25). 13 Os historiadores dividem o tempo da experiência humana em Pré-História e História usando como critério o surgimento da escrita, o registro gráfico baseado na relação entre significante e significado. A História, por sua vez, é habitualmente subdividida em “Idades” de acordo com critérios políticos, econômicos, sociais e culturais. As “Idades” são a Antiga, Média, Moderna e Contemporânea. Claro que há dissensos, mas a larga maioria segue essa esquematização, à qual, por conseguinte, não posso me furtar (COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 11-18). O déficit de legitimidade democrática do período ensejou, inclusive, a insurgência de diversos setores sociais (REIS, Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editora, 2005. p. 45-71). 14 Costa e Silva esteve de licença médica (devido a derrame cerebral) a partir da data de 31 de agosto de 1969; a posse de Emílio Garrastazu Médici só se deu em 30 de outubro do mesmo ano; como o decreto-lei data de 1º de outubro de 1969, vê-se que foi editado entre uma e outra data, sendo oriundo de uma junta militar formada pelos ministros da Marinha, Exército e Aeronáutica – nessa mesma ordem, Augusto Hamann Rademaker Grünewald, Aurélio de Lyra Tavares e Márcio de Souza e Mello. Assinam também o documento Luís Antônio da Gama e Silva e Antônio Delfim Netto, então Ministros da Justiça e da Fazenda, respectivamente.

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ano de 200415) para ignorar direitos fundamentais como o de propriedade e o devido processo

legal.

Assim, trataremos o decreto-lei como lei de busca e apreensão – e é hora de conhecê-

la mais aprofundadamente.

2.2 Para conhecer a Lei de Busca e Apreensão

O Decreto-Lei de Busca e Apreensão, ou, como será chamado de agora em diante, a

Lei de Busca e Apreensão, é o Decreto-Lei n 911, de 1º de outubro de 1969. Com redação

original bastante curta, de 09 (nove) artigos no total, dos quais o primeiro se limitou a alterar a

Lei de Mercado de Capitais16 e o último, a especificar a disciplina intertemporal de regência

(isto é, a entrada em vigor das determinações expedidas)17, pode ser logicamente dividido em

03 (três) seções distintas: a primeira (artigos 2º e 3º) define a ação de busca e apreensão como

uma saída possível à disposição do credor fiduciante contra o devedor fiduciário em caso de

inadimplemento; a segunda (artigos 4º e 5º) faculta ao credor, em caso de insucesso, fazer uso

de outras medidas processuais (que são a conversão em ação de depósito ou ajuizamento de

15 Houve alterações anteriores e posteriores a 2014 na Lei de Busca e Apreensão – mas o foco do estudo é a que foi promovida por ocasião da Lei n 10.931, de 02 de agosto de 2004 (BRASIL. Lei n 10.931, de 02 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei n 911, de 1o de outubro de 1969, as Leis n 4.591, de 16 de dezembro de 1964, n 4.728, de 14 de julho de 1965, e n 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Diário Oficial, Brasília, 03 ago. 2004). 16 BRASIL. Lei n 4.728, de 14 de julho de 1965. Disciplina o mercado de capitais e estabelece medidas para o seu desenvolvimento. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L4728.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017. 17 A propósito, vale salientar uma curiosidade sociológica sobre o Regime Militar, o último período de exceção do país (pelo menos até a conclusão do presente trabalho): no período de 13 (treze) anos entre dezembro de 1964 (o momento de estabilização do regime) e dezembro de 1976 (quando a distensão gradual até a redemocratização virou uma perspectiva), diversas matérias relativas à circulação de riqueza financeira e ao empreendedorismo de grande capital sofreram regulamentação. Pela ordem cronológica, a Lei de Condomínio em Edificações e de Incorporações Imobiliárias (Lei n 4.591/64), a Lei de Política Monetária e Instituições Bancárias (Lei n 4.595/64), a Lei de Mercado de Capitais (Lei n 4.728/65), a Lei de Busca e Apreensão (Decreto-Lei n 911/69), a Lei de Arrendamento Mercantil (Lei n 6.099/74) e a Lei de Sociedades Anônimas (Lei n 6.404/76) foram publicadas. Chama a atenção que tenham sido quase todas editadas entre dezembro de 1964 e julho de 1965 e, depois, entre setembro de 1974 e dezembro de 1976, momentos em que a violência ideológica e a radicalização política foram menores em comparação com o intermezzo que vai de julho de 1965 a setembro de 1974.

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ação de execução); e a terceira (artigos 6º a 8º), de caráter complementar, assegura a garantia

do avalista, fiador ou terceiro interessado que pagar o débito, garantia essa de se sub-rogar na

titularidade do crédito, garantindo-se ainda que a busca não será prejudicada por falência do

devedor alienante (firmando-se ainda que o Conselho Nacional de Trânsito regulamentará o

necessário ao êxito dos procedimentos burocráticos)18.

Na primeira parte (artigos 2ºe 3º), que foi objeto de discussão no Recurso Especial n

1.418.593 MS, vê-se que a redação originária autorizava o credor fiduciário a retomar o bem

(para aliená-lo a terceiros) através da ação de busca e apreensão em caso de inadimplemento,

tentando, com a posse direta e subsequente alienação, ver-se pago (de pelo menos parte) da

dívida. Ainda de acordo com o texto, a mora do devedor fiduciário estaria comprovada por

notificação extrajudicial de cartório, e o pedido poderia ter natureza liminar. O devedor seria

citado para contestar em 03 (três) dias e, caso já houvesse pago pelo menos o equivalente a

40% (quarenta por cento) do preço financiado, poderia também purgar a mora. Contestado ou

não contestado o pedido, e não purgada a mora, o juiz se obrigaria a sentenciar o feito em 05

(cinco) dias, e, como o recurso a interpor contra a decisão não impediria a venda extrajudicial

do bem, porque não seria permitido se beneficiar de efeito suspensivo, poder-se-ia proceder à

alienação veicular depois de proferido o decisum final (ou seja, depois de esgotado o ofício da

instância). Abatido o valor da venda, o saldo devedor remanescente em desfavor do devedor

seria executado nos próprios autos para satisfação do débito em aberto.

Note-se que, na data de edição do decreto-lei, vigia o antigo Código Civil, datado de

1º de janeiro de 1916, que não dava a mesma atenção que o atual aos princípios jurídicos e à

sua normatividade; que não havia, ainda, Código de Defesa do Consumidor, que só viria a ser

editado quase 21 (vinte e um) anos depois; e que, apesar de a propriedade (o direito de usar,

18 BRASIL. Decreto-Lei n 911, de 1º de outubro de 1969. Altera a redação do art. 66, da Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965, estabelece normas de processo sobre alienação fiduciária e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1965-1988/Del0911.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017.

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fruir, reivindicar e alienar) já então se apresentar indiscutível e solidamente como um direito

subjetivo naquele momento histórico, a regência legal terminou considerando que só existe

propriedade para o credor fiduciante, não para o devedor fiduciário – embora a propriedade

resolúvel seja, para todos os fins, propriedade, isto é, um direito real, devendo ter sido tratada

como tal pelo decreto-lei editado.

Mas, ora, como dito acima, o pior não foi o soneto, mas a emenda – se é que a emenda

tinha alguma intenção de ser melhor que o soneto.

Explica-se.

Quando a Lei n 10.931, datada de 02 de agosto de 2004, foi aprovada19, a primeira

parte da lei (artigos 2º e 3º) foi alterada, mais especificamente o artigo 3º, caput e parágrafos:

o devedor, apesar da ampliação do prazo para contestar o feito, que passou para 15 (quinze)

dias, continuou obrigado a pagar o débito pendente em prazo exíguo, embora pouco maior, de

05 (cinco) dias. Isso o manteve em desvantagem frente ao credor fiduciante e, o que é pior, o

débito em aberto, antes confundido com o vencido (ou inadimplido), passou a compreender

vencido e vincendo (inadimplido e ainda a adimplir), o que criou uma sobrecarga financeira

que, obviamente, antes não existia. Usando as mesmas palavras da lei, passou-se a exigir o

pagamento da “integralidade da dívida pendente” para que ocorresse a devolução do bem, sob

pena de, não havendo pagamento em 05 (cinco) dias, consolidar-se a posse e a propriedade do

bem na pessoa do credor fiduciário, que poderia, a partir daí e desde logo, isto é, sem esperar

o encerramento do ofício da instância, vendê-lo.

Destaque-se que não existe uma exigência de se prestar caução para o caso de reversão

da liminar depois de alienado antecipadamente o bem da garantia, o que causa estranheza: a

saída caucionatória é muito utilizada no universo empresarial, em que a circulação de riqueza

urge, e as instituições financeiras, bancárias e creditícias, que são aquelas autorizadas por lei a 19 Ou seja, na primeira metade do quarto mandato presidencial democraticamente disputado na atual República, mais de 15 (quinze) anos depois de instituído o Estado Democrático de Direito pela Constituição da República Federativa, promulgada na data de 05 de outubro de 1988.

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trabalhar com crédito e capitais como objeto social de desempenho, podem muito bem fazer

uso de tal expediente acautelatório – afinal, quem mais do que elas com lastro econômico para

manter seguro o juízo em caso de eventual reversão de liminar em sede de sentença? Não ter

pensado em uma solução simples para um problema comum indicia a intenção de deliberada e

impensadamente ignorar a verticalidade fática existente entre as partes, isto é, a propensão a

não querer equilibrar essa diferença por uma compensação jurídica entre elas20.

Claro que esse não é o único indício a respeito do propósito legislativo: outro ponto

que merece destaque é que, se, por um lado, a caução não é exigida do credor fiduciante para

a alienação do bem que estava servindo de garantia ao débito do devedor fiduciário, por outro

lado, basta uma notificação extrajudicial para firmar a mora desse mesmo devedor perante

aquele mesmo credor. Claro que, stricto sensu, tratando-se de obrigação de dar dinheiro de

maneira parcelada (o devedor paga uma mensalidade ao credor em retorno de um empréstimo

que recebeu integralmente em uma determinada data), sequer alguma notificação da parte

seria necessária para colocar a outra em mora: trata-se de mora ex re, que independe de ato de

interpelação. Mas se observarmos que a disposição quanto à notificação foi editada em 1969,

e se atentarmos para o fato de que, nessa época, a tutela antecipatória ainda não era universal,

mas pensada caso a caso de acordo com a lei de regência sob o título de “liminar”, facilmente

perceberemos que a estipulação da notificação para a consecução da tutela antecipada nada

20 Manda a lógica (de um ordenamento jurídico que acredita na igualdade, pelo menos) que, pela lei, a isonomia calibre a realidade, isto é, uma igualdade de condições seja construída a partir da norma jurídica se e quando a diferença fática entre as partes for deletéria à república (ou ao Estado Democrático de Direito, caso assim se prefira). Por isso que, no campo do Direito Público, o Estado, com as prerrogativas de praxe, tem de respeitar os direitos fundamentais do indivíduo contra quem se coloca, e, no Direito Privado, o consumidor recebe atenção especial diante do fornecedor (para citar apenas o sub-ramo obrigacional consumerista). A verticalidade designa exatamente essa diferença fática entre os pólos da relação jurídica, que, no caso do consumerismo, se intitula vulnerabilidade (BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Manual de direito do consumidor à luz da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Salvador: Editora Juspodivm, 2012. p 35-41). Sobre o direito de igual respeito e consideração, Dworkin é enfático: sobre ele repousa a ideia de Estado de Direito. Segundo ele, “as pessoas só podem se dizer verdadeiros membros de uma comunidade política genuína quando são governados por princípios comuns, e não apenas por regras avulsas sacadas à força de um compromisso político”. (DWORKIN, Ronald. O Império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 211).

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mais foi que uma forma inteligente de possibilitar a obtenção da decisão interlocutória liminar

para a retomada do bem mediante a adoção de um simples ato administrativo.

Fora isso, purgar a mora se pagos pelo menos 40% (quarenta por cento) do preço total

ficou revogado, como dito acima – e deliberadamente21.

Justiça seja feita, porém: nem tudo foram espinhos.

O ponto positivo da redação dada pela nova lei foi a eliminação da possibilidade que havia

até então no artigo 4º do texto original, de transformar a ação de busca e apreensão em ação de

depósito por pedido nos autos deferido pelo juiz; por trás dessa artimanha residia a idéia de mandar

prender o devedor como suposto depositário infiel quando, na verdade, ele nunca assentira em

assumir a condição de depositário22. Agora, mal-sucedida a busca efetuada para apreensão do bem,

a única possibilidade restante é ajuizar a ação de execução pertinente contra o devedor23.

Superada a discussão constitucional relativa à validade do artigo 4º, porém, restaram

os espinhos do artigo 3º. Esse artigo da Lei de Busca e Apreensão virou foco, portanto, dos 02

(dois) agudos problemas mencionados acima: ter-se de pagar a integralidade pendente para 21 Havia expressa sugestão de se revogar deliberadamente qualquer possibilidade de se purgar a mora, inclusive da parte do então Ministro da Fazenda, Antônio Palocci Filho – veja-se o trecho da Exposição de Motivos da Lei n 10.931, de 02 de agosto de 2004, transcrito pelo Relator do Recurso Especial n 1.418.593 MS, Ministro Luís Felipe Salomão, no voto que serviu de base ao acórdão (p. 12). (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.418.593 MS. Recorrente: Bradesco Financiamentos S/A. Recorrido: Gerson Fernandes Rodrigues Relator: Ministro Luís Felipe Salomão. DJe, 27 maio 2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON/ jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28purga%E7%E3o+adj2+mora+e+integralidade+adj2+d%EDvida%29+e+REPETITIVOS.NOTA.&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true>. Acesso em: 11 jan. 2016). 22 Inclusive porque sequer assinara contrato de depósito; o negócio jurídico entre as partes invariavelmente é o de mútuo a juros (ou mútuo feneratício), servindo a alienação fiduciária como pacto adjeto de garantia (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. Contratos: teoria geral e contratos em espécie. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2012. v. 4, p. 251-400). 23 De fato, nisso se saiu muito bem a alteração legislativa, visto que em nada se atenta contra o ordenamento jurídico vigente com tal disposição, ao contrário daquilo que acontecia com a prisão, a qual, além de nitidamente inconstitucional, era, inclusive, contrária à Convenção Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. Tanto assim ficou claro que o declarou o Supremo Tribunal Federal (STF), primeiramente em situação isolada (Recurso Extraordinário n 466.343 SP) (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n 466.343 SP. Recorrente: Banco Bradesco S/A. Recorrido: Luciano Cardoso Santos. Relator: Ministro Cezar Peluso. 03 dez. 2008. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28RE%24%2ESCLA%2E+E+466343%2ENUME%2E%29+OU+%28RE%2EACMS%2E+ADJ2+466343%2EACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/ax2k326>. Acesso em: 25 nov. 2016) e, em seguida, de maneira erga omnes e vinculante (Súmula Vinculante n 25) (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Sumula Vinculante n 25. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito. 16 dez. 2009. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/jurisprudenciaSumulaVinculante/anexo/SUV_25__PSV_31.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2016). A inconstitucionalidade e a explícita contrariedade aos termos da convenção foram reconhecidas, diga-se de passagem, por unanimidade.

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reaver o bem apreendido e a possibilidade de ele ser alienado antes de proferida a sentença do

juízo originário (isto é, antes de esgotado o ofício da instância). O tema veio a julgamento,

como seria de se esperar face à potencial controvérsia, sendo, posteriormente, abordado pelo

Recurso Especial n 1.418.593 MS.

Visitemo-lo agora, portanto, para saber de seus termos.

2.3 Para conhecer o Recurso Especial n 1.418.593 MS

O Recurso Especial n 1.418.593 MS foi interposto para o Superior Tribunal de Justiça

(STJ) contra acórdão proferido em sede resolutória de agravo regimental, que, por sua vez,

fora interposto contra acórdão de agravo de instrumento, tendo sido ambos os recursos em

questão, o regimental e o instrumental, julgados pelo Tribunal de Justiça do Estado do Mato

Grosso do Sul (TJMS). A decisão original, a partir de cuja sede se deu a discussão, lavrada

pela 20ª Vara Cível da Comarca de Campo Grande, capital do Estado, determinara que o bem

alienado (um veículo automotor) ficasse na comarca em que se processava a lide até que a

mora fosse purgada – e fosse purgada mediante o pagamento do montante vencido, isto é, do

equivalente ao valor do inadimplemento. A corte estadual manteve o entendimento originário

recorrido, em julgamento cuja ementa vale a pena transcrever:

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA. PURGAÇÃO DA MORA. PARCELAS VENCIDAS. VENDA ANTECIPADA OU REMOÇÃO DO BEM. NECESSIDADE DE PRÉVIA AUTORIZAÇÃO JUDICIAL. 01. Para a purgação da mora em ações de busca e apreensão fundadas em pacto adjeto de alienação fiduciária, é suficiente o depósito das parcelas vencidas acrescidas dos encargos moratórios até a data do depósito. 02. A remoção da comarca ou a venda antecipada do veículo apreendido depende de prévia autorização judicial, em atenção aos princípios da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal. 03. Agravo regimental conhecido e não provido24.

24

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.418.593 MS. Recorrente: Bradesco Financiamentos S/A. Recorrido: Gerson Fernandes Rodrigues. Relator: Ministro Luís Felipe Salomão. SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14 maio 2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON

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Como se pode observar, discutia-se, no litígio, a necessidade de autorização do juízo

para remoção do bem da comarca onde se encontrava (uma outra maneira, indireta, de se

discutir se o veículo poderia ou não ser alienado a terceiro antes de encerrada a ação de busca)

e o que compreenderia o conceito de purgação da mora (se a purgação compreenderia apenas

o já vencido ou se compreenderia, inclusive, o montante vincendo).

Havia 02 (dois) pontos de discussão interligados, pois, e a corte estadual responsável

firmou, com base assumidamente principiológica e constitucional (ampla defesa, contraditório

e devido processo legal), que não se poderia fazer a alienação durante o curso da ação, e que o

bem seria restituído contanto que o vencido fosse depositado, com os acréscimos moratórios.

Note-se que a casa decisória não se limitou a fazer uma leitura estrita e segregada da letra da

lei, mas a viu como atravessada por princípios que a moldam em seu conteúdo, assim como a

viu como parte de um ordenamento com o qual ela, necessariamente, tem de interagir, e da

maneira mais harmônica possível, isto é, respeitando o funcionamento do todo e (inclusive) a

normatividade dos estratos legiferados superiores – como a Constituição, obviamente.

O recurso especial interposto foi admitido pela corte nacional como representativo de

controvérsia, isto é, foi recebido em regime especial que permitia que as decisões proferidas

se tornassem de observância obrigatória para causas similares nas instâncias inferiores. Essa

era uma ferramenta legal de uniformização de entendimento do antigo Código de Processo

para quando a discussão apresentava caráter multitudinário, garantindo agilidade na decisão e

isonomia a todos os interessados (visto que a situação conflituosa se repetia fora dos autos

com outras partes). In verbis:

Art. 543-C. Quando houver multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica questão de direito, o recurso especial será processado nos termos deste artigo. § 1o Caberá ao presidente do tribunal de origem admitir um ou mais recursos representativos da controvérsia, os quais serão encaminhados ao Superior Tribunal de Justiça, ficando suspensos os demais recursos especiais até o pronunciamento definitivo do Superior Tribunal de Justiça.

/jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28purga%E7%E3o+adj2+mora+e+integralidade+adj2+d%EDvida%29+e+REPETITIVOS.NOTA.&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true>. Acesso em: 11 jan. 2016.

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§ 2o Não adotada a providência descrita no § 1o deste artigo, o relator no Superior Tribunal de Justiça, ao identificar que sobre a controvérsia já existe jurisprudência dominante ou que a matéria já está afeta ao colegiado, poderá determinar a suspensão, nos tribunais de segunda instância, dos recursos nos quais a controvérsia esteja estabelecida. [...] § 7o Publicado o acórdão do Superior Tribunal de Justiça, os recursos especiais sobrestados na origem: I - terão seguimento denegado na hipótese de o acórdão recorrido coincidir com a orientação do Superior Tribunal de Justiça; ou II - serão novamente examinados pelo tribunal de origem na hipótese de o acórdão recorrido divergir da orientação do Superior Tribunal de Justiça. § 8o Na hipótese prevista no inciso II do § 7o deste artigo, mantida a decisão divergente pelo tribunal de origem, far-se-á o exame de admissibilidade do recurso especial

25.

Logo, vê-se que o caso foi admitido para uma ampla discussão, porque sua decisão se

tornaria um núcleo irradiador de efeitos para situações similares em todo o país.

Pois bem.

O recurso especial terminou decidido posteriormente nos termos do seguinte acórdão:

ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DE CONTROVÉRSIA. ART. 543-C DO CPC. AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. DECRETO-LEI N. 911/1969. ALTERAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 10.931/2004. PURGAÇÃO DA MORA. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE PAGAMENTO DA INTEGRALIDADE DA DÍVIDA NO PRAZO DE 5 DIAS APÓS A EXECUÇÃO DA LIMINAR. 1. Para fins do art. 543-C do Código de Processo Civil: "Nos contratos firmados na vigência da Lei n. 10.931/2004, compete ao devedor, no prazo de 5 (cinco) dias após a execução da liminar na ação de busca e apreensão, pagar a integralidade da dívida - entendida esta como os valores apresentados e comprovados pelo credor na inicial -, sob pena de consolidação da propriedade do bem móvel objeto de alienação fiduciária". 2. Recurso especial provido26.

A decisão superior seguiu caminho diverso e manifestamente contrário ao que ficara

assentado na decisão do colegiado estadual.

25 BRASIL. Lei n. 11.672, de 08 de maio de 2008. Acresce o art. 543-C à Lei no 5.869, de 11 de janeiro de 1973 - Código de Processo Civil, estabelecendo o procedimento para o julgamento de recursos repetitivos no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Disponivel em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11672.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017. Atualmente, o Código de Processo Civil é a Lei n 13.105, de 16 de março de 2015, que trata da matéria nos seus artigos 1.036 a 1.041. 26

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n. 1.418.593 MS. Recorrente: Bradesco Financiamentos S/A. Recorrido: Gerson Fernandes Rodrigues. Relator: Ministro Luís Felipe Salomão. SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14 maio 2014. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/SCON /jurisprudencia/toc.jsp?livre=%28purga%E7%E3o+adj2+mora+e+integralidade+adj2+d%EDvida%29+e+REPETITIVOS.NOTA.&&b=ACOR&thesaurus=JURIDICO&p=true>. Acesso em: 11 jan. 2016.

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Foi tomada unanimemente pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ),

composta pelas Terceira e Quarta Turmas (turmas de Direito Privado), e votaram os Ministros

Luís Felipe Salomão (relator do recurso), Paulo de Tarso Sanseverino, Maria Isabel Galotti,

Antônio Carlos Ferreira, Ricardo Villas Bôas, Marco Buzzi, João Noronha e Sidnei Beneti. A

Ministra Nancy Andrighi, justificadamente ausente, não participou, e o Ministro Marco Buzzi

consignou razões para sua inicial discordância em voto apartado, mas terminou por subscrever

o acórdão em conjunto com seus pares em respeito, segundo suas próprias palavras, à “função

uniformizadora” do Superior Tribunal de Justiça (STJ)27.

O Ministro Relator reformou o decisum recorrido sem discutir a matéria constitucional

que lhe servia de fundamentação: contraditório, ampla defesa e devido processo legal não se

fizeram presentes na pauta de discussão, que enveredou pela divisão de poderes e pela justeza

da atuação jurisdicional, isto é, pela limitação funcional (self-restraint) que deve ter o Poder

Judiciário ao sindicar o que disse o Poder Legislativo. Carlos Maximiliano foi citado no fito

de lembrar que o limite da interpretação é o texto interpretado, Claus Canaris foi revisitado

(por tratar das “soluções diferenciadas” do Direito Privado) e, após esse percurso teórico, o

Ministro relator concluiu que não se pode ignorar o fato de que o legislador quis, de maneira

deliberada, eliminar a purgação do rol de faculdades do réu devedor e que, por isso, a despeito

da definição legal do instituto “purgação de mora” e da função social do contrato e da boa-fé

objetiva serem a regra entre os contratantes no civilismo brasileiro (artigos 401, 421 e 422 do

Código Civil)28, quando se trata de busca e apreensão de bem, só (e somente só) se deve

aceitar a devolução se e quando o valor total (vencido e vincendo) for pago. Essa seria,

27 Que, aliás, já decidira reiteradamente nesse sentido, conforme faz constar o ministro. 28 Código Civil, instituído pela lei n 10.406, de 10 de janeiro de 2002. In verbis: Art. 401. Purga-se a mora: I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta; II - por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data. [...] Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé. Código de Defesa do Consumidor instituído pela lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990 (BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017).

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portanto, a correta interpretação da expressão “integralidade da dívida pendente” e, face a

isso, purgar a mora (entendido aí como pagar, após vencido, o inadimplido) deixou de ser

uma opção legal, mesmo que se saiba estar o Código de Defesa do Consumidor a proteger o

cliente de cláusulas exageradas ou abusivas (conforme artigo 51, caput, inciso IV, §1º e

incisos I a III)29, e mesmo que se saiba que essa proteção resguarda (também) a propriedade

(só que do consumidor), um direito tão fundamental quanto qualquer outro30.

2.4 Do que se pôde apreender (até agora) da Lei de Busca e Apreensão e do Recurso

Especial n 1.418.593 MS – e das perguntas que daí surgem

Apesar de a ação de busca e apreensão de bem (em alienação fiduciária em garantia)

ter sido disciplinada por decreto expedido por junta militar provisória – ou seja, sem qualquer

participação do Legislativo e sem mesmo a lavra de presidente eleito direta ou indiretamente

– a sua redação original foi alterada (já dentro do período democrático atual) para ser (ainda)

mais rigorosa: se antes a purgação da mora era permitida através do pagamento do vencido e

se, antes, o bem aguardava a prolação da sentença para ser alienado a terceiro, com a mudança

legal, na expressão “integralidade da dívida pendente” passou-se a contemplar tanto vencido

quanto vincendo e, como visto, a venda do bem restou possível a qualquer tempo, mesmo

29 Código de Defesa do Consumidor. In verbis: Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: [...] IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; [...] § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso (BRASIL. Lei n 8.078 de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017). 30 A propósito, e por uma questão de precisão, convém relatar que o Ministro Marco Buzzi, ao se reportar ao código consumerista, refere os artigos 52 (contrato de concessão de crédito) e 54 (contrato de adesão) da lei – mas é o artigo 51, caput e incisos, transcritos na nota anterior, que disciplina as cláusulas nulas de pleno direito, independentemente de se tratar ou não de contrato de concessão de crédito e/ou de contrato de adesão – daí porque minha opção por trazer esse referencial normativo.

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antes da sentença, desde que após pelo menos 05 (cinco) dias de apreendido, de acordo com a

redação final (e atual) do §1º do artigo 3º da Lei de Busca e Apreensão.

Por ter sido votado à unanimidade por um colegiado de renome nacional – dado que a

Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é a instância máxima de discussão do

Direito Privado no Brasil31 – a discussão do Recurso Especial n 1.418.593 MS tomou grande

relevo. Primeiro, porque foi processada em sede de recurso repetitivo e, por conseguinte, suas

conclusões se tornaram precedente aplicável a todos os casos similares, em curso ou a propor,

do país. Segundo, porque, ainda que não fosse vinculante o entendimento, as razões servem

de norte para todo o Poder Judiciário e, consequentemente, se tornaram fundamento decisório

para toda e qualquer discussão parecida: se não cabe ao intérprete vir divisar onde não divisou

o legislador em função da separação de poderes, e se não cabe a um terceiro, ainda que se

trate do Estado-Juiz, se imiscuir na vida contratual de particulares em razão das soluções

“diferenciadas” do Direito Privado para seus conflitos patrimoniais, esse é um raciocínio que

se aplica, ou pode se aplicar, a outros temas da seara privada do ordenamento, trate-se ou não

de contrato de mútuo feneratício com pacto adjeto de alienação fiduciária em garantia.

Também merece destaque que, em tendo sido adotada a decisão estampada no acórdão

publicado, a clara orientação axiológica dos princípios civis (preservação dos contratos, boa-

fé e função social) e consumeristas (proteção do consumidor contra cláusulas e prerrogativas

abusivas, iníquas e/ou exageradas) foi anulada, e o direito fundamental de propriedade foi

abordado apenas pelo viés do credor fiduciante, mas não pelo lado do devedor fiduciário. Isso

depõe, por conseguinte, contra esses princípios e contra esse direito de propriedade, apesar da

normatividade indiscutível dos primeiros e da importância constitucional deste último, ainda

31 O Superior Tribunal de Justiça (STJ) se compõe de 06 (seis) turmas, que se agrupam 02 (duas) a 02 (duas) em 03 (três) seções: a primeira seção, composta pelas 02 (duas) primeiras turmas, trata de Direito Público; a segunda, composta pelas 02 (duas) turmas subsequentes, trata de Direito Privado; e a última seção, composta pelas 02 (duas) últimas turmas, trata de Direito Penal. Todas essas informações, e ainda outras complementares, no sítio (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Institucional. Composição. Disponível em: <http://www.stj.jus.br/sites/STJ/default/pt_BR/Institucional/Composi%C3%A7%C3%A3o>. Acesso em: 11 jan. 2016).

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restando omissa qualquer discussão, por mínima que seja, sobre os princípios constitucionais

processuais pertinentes à questão (contraditório, à ampla defesa e ao devido processo legal).

Logo, conhecer a disciplina legal da matéria, e as razões de decisão acerca dela, gera

algumas inquietações.

02 (duas) dessas inquietações merecem destaque.

Primeira: se a mora obrigacional é uma pena civil, legal, de concepção lógico-jurídica,

purgá-la é inegável direito subjetivo do devedor, útil inclusive para se evitar uma prematura e

contornável resolução do contrato. Isso parece claro e, em parecendo claro, evitar a resolução

da relação contratual, especialmente ao se negar vigência a uma cláusula abusiva, é favorecer

a preservação do negócio jurídico, que se pressupõe (aliás) benfazeja para ambas as partes – e

para o meio social, aliás, como um todo. Eliminar, então, a possibilidade de purgar a mora não

é desrespeitar, de maneira não razoável, o direito de propriedade do devedor inadimplente –

um titular de propriedade resolúvel? É nefasto exigir necessariamente quitação ou resolução

do acerto se a mora é relativa32: equivale a dizer que a parte mais fraca da relação (leia-se o

consumidor), não pode escolher manter o vínculo de que participa por ter dado causa à mora,

o que, por sua vez, implica dizer que incidir em mora faz com que a contraparte obrigacional

tenha plenos poderes sobre o vínculo firmado entre as partes – o que é absurdo, inclusive por

considerar que a propriedade fiduciária continua tão somente à mercê do fiduciante.

Em segundo lugar, uma outra inquietação: se ajuizar a demanda é um ato da parte, ela,

parte, não tem de esperar o terceiro desinteressado e imparcial a quem se atribui legalmente a

autoridade de dizer o Direito decidir, em definitivo (ou pelo menos provisoriamente, mas, em

contrapartida, caucionando), para, somente então, dispor daquele objeto litigioso? Ou, pelo

32 Porque, se o pagamento do débito atrasado continua economicamente interessante, ou pelo menos viável sem que haja prejuízo ao titular do crédito, então, a mora é necessariamente relativa. A diferenciação entre mora relativa e mora absoluta reside em a prestação inadimplida ainda ser (ou não ser) interessante ao credor. Se ainda interessa ao credor o recebimento da prestação, a mora se diz relativa; se não interessa mais, ela é absoluta, resolvendo-se a obrigação inadimplida em perdas e danos (GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito das obrigações. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. v. 2, p. 303-321).

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simples fato de ter ela ajuizado a demanda, pode agir à revelia da jurisdição? Somente se ela

puder agir à revelia da autoridade que facultar o se desfazer do objeto antes do resultado final

faz sentido. Não soa minimamente razoável que o benefício prático envolvido se esvazie antes

do julgamento final, especialmente se esse julgamento for desfavorável a quem apresentou a

ação – porque o fato de constar no pólo passivo do pleito não implica dizer que a pessoa então

acionada está, automaticamente, errada.

Essas são questões pertinentes, a aprofundar adiante.

Antes, porém, para fins de contextualização, é preciso recuperar a gênese filosófica do

que chamamos Direitos Fundamentais, entendendo ainda o contexto sócio-histórico em que a

teorização sobre esse tema se deu33.

33 Não por acaso menciono indiretamente o princípio (ou postulado) da razoabilidade nos questionamentos formulados, tanto relativamente ao direito de propriedade quanto relativamente ao direito do devido processo legal. Conforme se verá mais adiante, neste trabalho se parte da premissa de que retirar a possibilidade que tem o devedor fiduciário de purgar a mora e, ao mesmo tempo, conceder ao credor fiduciante a possibilidade de alienar o veículo a terceiros antes do fim da ação, são medidas fora do razoável que atentam de forma injustificada (e, logo, inconstitucional) contra esses dois direitos fundamentais (propriedade e devido processo legal) do cidadão.

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3 DA GÊNESE FILOSÓFICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS – A

UNIVERSALIZAÇÃO DE UM CONCEITO DE ACORDO COM A FILOSOFIA DE

IMMANUEL KANT

A introdução deste trabalho se inicia pela famosa pergunta de Alcibíades a Péricles –

“A lei pode ser injusta?”

Essa pergunta encerra pressuposições interessantes nas entrelinhas e uma delas, em

especial, merece atenção.

Se não admito que a lei possa ser injusta, embora (ou justamente porque) muitas vezes

venha a efetivamente sê-lo, admito também, forçosamente, que as dimensões da legalidade e

da justiça, apesar de serem dimensões diferentes, precisam entrar em compasso sob pena de se

anularem ou, pelo menos, se questionarem uma à outra agonicamente34. Em outras palavras,

resumidamente, elas são dimensões autônomas, mas não devem, por um mandamento lógico,

ser dimensões independentes – e, se uma fala especificamente do mundo dos fatos jurídicos (a

dimensão da lei positiva, que enuncia o que é ou o que não é lei), o qual não necessariamente

está conforme a outra (a dimensão da justiça abstrata, que prescreve o que deveria ou que não

deveria ser lei), por conseqüência há de se admitir que é preciso estabelecer pelo menos um

“critério de fidelidade” entre essas dimensões, isto é, um critério de controle para que se possa

submeter a realidade jurídica da lei efetivamente posta a um certo crivo ideal daquilo que

deveria ter sido posto – ou seja, contrapor posto e pressuposto35. Em outras palavras: aferir em

34 Agônico no sentido de ser esse conflito entre legalidade e justiça insuperável e indissociável do existir, isto é, legalidade e justiça convivem sem se harmonizar, mas a tentativa de compatibilização nunca cessa porque a contradição entre essas duas grandezas é intolerável. Nesse sentido, inclusive, apesar de o termo agônico remeter às tragédias gregas, o cunho vernacular da palavra remete a estertor e aflição; mais próxima, por conseguinte, é a expressão semântica anotada pela filosofia para “angústia”. Nesse sentido, vale a comparação entre Antônio Houaiss, lembrando o uso da palavra no registro culto do idioma, e Abbagnano, recuperando Kierkegaard e Heidegger (HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009. p. 69 e ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 63-64). 35 GRAU, Eros. O Direito posto e o direito pressuposto. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.

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abstrato a justiça da lei em concreto é parte fundamental do Direito, sob pena de se consumir

a legitimidade desse Direito em sua própria e insuperável contradição filosófica36.

Logo, ao se perguntar se a lei pode ou não pode ser injusta, pergunta-se também, ainda

que indiretamente ou em um segundo plano: pois então, o que é justiça?

Afinal, se preciso submeter algo a um crivo ideal, preciso saber em que consiste esse

crivo.

Mas essa é uma das muitas perguntas sem resposta (ou pelo menos sem resposta

previamente “definida”, definida no sentido de ser uma resposta última, universal, imutável)

que assolam a humanidade. E isso porque todas as perguntas filosóficas fundamentais restarão

em aberto enquanto o ser humano for o ser humano37. Mas, de toda sorte, respostas, ainda que

não necessariamente as “corretas”, no sentido exclusivista e definitivo mencionado acima38,

são respostas, e algumas delas bastante interessantes. É o caso da filosofia kantiana, ou, mais

especificamente, da filosofia moral de Immanuel Kant. Quando se fala de “Justiça”, assim,

com a letra “J” em maiúsculo, está-se a falar de Ética – a disciplina que estuda a ação humana

diante do que é certo e errado39. E, de acordo com Kant, a Ética é a filosofia do motivo, isto é,

o que diferencia a conduta ética da anti-ética, ou a moral da imoral, é o motivo que levou o

36 Tanto que o conteúdo das leis é estudado pela Hermenêutica Jurídica, a sua eficácia é estudada pela Sociologia e o que é ou não justo é estudado pela Filosofia do Direito. 37 É provavelmente nisso que reside a vitalidade milenar da Filosofia: racionalizar o que não se resolve é o seu exercício. “A racionalidade de opiniões e ações é um tema cuja elaboração se deve originalmente à filosofia. Pode-se dizer até mesmo que o pensamento filosófico tem sua origem no fato de a razão corporificada no conhecer, no falar e no agir tornar-se reflexiva. O tema fundamental da filosofia é a razão. A filosofia empenha-se desde o começo por explicar o mundo como um todo, mediante princípios encontráveis na razão, bem como a unidade na diversidade dos fenômenos. E não o faz em comunicação com uma divindade além do mundo, nem pela retrogradação ao fundamento de um cosmo que abranja a natureza e a sociedade. O pensamento grego não visa a uma teologia nem a uma cosmologia ética no sentido das grandes religiões mundiais. Ele visa, isso sim, à ontologia” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. v. 1, p. 19). 38 Sentido esse tão cultuado pelas ciências (ditas ou auto-proclamadas) exatas... 39 Kant não diferencia Ética de Moral como conceitos e prefere usar o termo Moral para designar a área de conhecimento a que se dedica. Escolheu-se, entretanto, neste trabalho, o vocábulo Ética porque o termo “Moral” passou, com o tempo, a se identificar com o conjunto de valores morais de um grupo comunitário qualquer (o que Kant chamava de “Antropologia”). O termo “Ética” que passou a referir a pesquisa sobre o certo e o errado do ponto de vista da Filosofia a partir do motivo de cada conduta.

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protagonista a adotar ou deixar de adotar aquela conduta – o motivo, então, é o que realmente

conta, e esse motivo, ou máxima, será legítimo sempre que puder ser universalizado40.

Até aí, nada há de novidade: definir o que é “certo” ou “errado” a priori é preocupação

comum a diversos estudos de Ética, como os de Agostinho de Hipona, que solidificaram uma

forma de pensar medieval que nada tem de obscurantista, ou mesmo a exemplo de Maquiavel,

que criticou o “purismo” na política (uma crítica ética, à sua maneira). Mas Kant não parou na

altura do lugar-comum. O filósofo de Königsberg cunhou um procedimento, o racional, para

identificar quais são os imperativos categóricos que devem orientar a conduta ética, e pôs em

perspectiva tudo que até então se elaborava na metafísica, sugerindo a crítica da Razão (com

“R” maiúsculo mesmo41) sobre o (desde então assim chamado) “sono dogmático”: imaginava-

se correntemente, até a época de formulação kantiana, que a Razão seria metafísica, isto é, ela

levaria ao conhecimento pleno e total de um repertório de soluções previamente tachadas de

“certas” ou “erradas” no plano moral (levaria, então, a conhecer a “tábua de valores” que rege

o universo e a moral dos homens); mas, na verdade, segundo as considerações de Kant, à

Razão não caberia esse papel de encontrar, já prévia e solidamente construídas, essas soluções

a serem descobertas – essa não seria a questão.

A questão seria: estar apto a examinar as soluções éticas filosoficamente, por meio do

procedimento racional.

Dizendo por outras palavras: “bem” e “mal” não estariam metafisicamente separados,

pré-definidos, mas cada opção teria de ser racionalmente checada quanto a seus motivos para

40 A concepção kantiana diferencia ambas, doutrina da virtude e doutrina do direito, pelo fato de a primeira ser de natureza interna e a segunda ser de natureza externa, visando uma a modular o arbítrio humano e a outra a regular de forma racional e pacífica a vida em sociedade. No entanto, ambas partem da mesma base, uma única Razão humana (KANT, Immanuel. Metafísica dos costumes. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 25). 41 Grafo o vocábulo com maiúscula para lembrar que se trata de um conceito filosófico: afinal, se “todo nosso conhecimento começa pelos sentidos e passa pelo entendimento, ele termina na Razão, faculdade suprema que procura, para um condicionado, a totalidade das condições, ou seja, o incondicionado. No seu uso lógico, a Razão é a faculdade de chegar a conclusões através de silogismos; [...] no seu uso puro, é a faculdade de, dado o condicionado, encontrar o incondicionado por um nexo sintético. [...] Ao sistematizar os atos do entendimento, a Razão ultrapassa os limites da experiência. [...] Conhecendo o que é e o que deve ser, formula as leis do agir [...] e evita que o empiricamente condicionado possa pretender ser o determinante da vontade” (VAYSSE, Jean-Marie. Vocabulário de Immanuel Kant. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 60-61).

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só então ser classificada como certa ou errada, ética ou anti-ética, moral ou imoral. Acordava-

se do “sono dogmático”, portanto, por entender que o único dogma a seguir seria exatamente

o do procedimento: a investigação no tribunal da Razão é que poderia levar ao conhecimento

da conduta ética ao avaliar os motivos de cada ação – e, a partir daí, poder dizer da correção

ética da conduta e permitir, por fim, um critério de aferição: se o motivo da conduta pode ser

universalizado, ou ainda, se ajo ou deixo de agir por motivo que posso querer de atendimento

universal, significa dizer que a conduta foi aprovada pelo procedimento racional, e que posso

elevar esse motivo, ou máxima, à condição de imperativo categórico – daí o nome, inclusive,

escolhido pelo filósofo alemão: o que é categórico é imperativo, imutável, intransitivo e não

se altera face a eventuais condicionantes históricas e/ou pessoais. Os outros imperativos,

pessoais ou circunstanciais, condicionados a meras contingências que lhes instigam, derivados

da inconstância da vida e das múltiplas cambiáveis que a permeiam, que não serviriam, por

conseqüência, como norte decisório para a Ética: eles estariam presos somente àquilo que é

transitório, especialmente ao que é de interesse (material ou moral) do protagonista da ação

moral naquele momento42.

Na célebre definição do próprio autor alemão, o

imperativo categórico é: aja conforme uma máxima que possa valer ao mesmo tempo como lei universal. Se o princípio que é móbil da ação for objetivamente válido, submetido que for à razão para a prova, a máxima poderá ser imperativo porque derivada de um legislador universal que a qualifica como legislação universal43.

Se a Ética de Kant, portanto, para existir como a proposta filosófica que é, parte do

pressuposto lógico-conceitual necessário de que o ser humano é um ser racional, autônomo e

consciente (de sua própria racionalidade e autonomia, inclusive), que pode escolher entre o

“certo” e o “errado”; e se a metodologia de Kant, para problematizar a escolha moral, analisa 42 Por uma questão de lógica, sem princípios a priori, não existe legislação universal – e a lei só pode ser lei se

for universal, isto é, aplicável como hipótese a qualquer caso concreto que lhe venha a ser apresentado (KANT, op. cit., p. 23).

43 Id., op. cit., p. 29-31.

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essa condição humana (de racionalidade, autonomia e consciência) e avalia como ela se vê

premida entre seus próprios interesses e desejos (ou “apetites”) e aquilo que é simplesmente

“certo” (o que ela não apenas pode, mas deve, fazer), conclui-se (de modo muito natural, até)

que a solução ética encontrada por essa metodologia construída a partir da proposta filosófica

apresentada pretende que seja considerada moral aquela ação eticamente orientada por um

motivo, ou máxima, que se possa universalizar – assim o ser humano não estaria fazendo uso

da sua racionalidade e autonomia para privilegiar apenas a si, a seus “apetites”, mas a todos,

isto é, a um “bem comum”, a um “estado ético das coisas”, em que só haveria a ganhar agindo

assim, independentemente dos dogmas socialmente aceitos ou historicamente construídos44.

O homem que conseguir agir por “dever”, isto é, que tiver por motivo de sua ação uma

máxima universalizável, conseguirá, então, a partir da autonomia e através da racionalidade,

alcançar a “liberdade”, a condição de não estar mais sob a regência irracional dos “apetites”,

se pautando pelos imperativos categóricos e, assim, sendo verdadeiramente livre, pois, guiado

pelos ditames da racionalidade, não apenas agirá a favor de si, mas de todos, vivendo de

maneira a não mais prejudicar a quem quer que seja (isto é, a si mesmo ou ao próximo). Daí a

importância, para Kant, do exercício da razão e da autonomia do sujeito se guiar pela razão –

alcançar o prêmio máximo, isto é, viver a liberdade pela assunção do dever como motivo, ou

máxima. Para ele, o conceito de dever

exige na ação, objetivamente, conformidade para com a lei, mas na sua máxima, subjetivamente, respeito por ela como o único modo de determinação da vontade. E disso depende a consciência de ter agido consoante o dever e a de ter agido por dever, isto é, por respeito à lei, cuja primeira forma de consciência (a legalidade) é possível sem que as inclinações para o fundamento determinante da vontade tenham sido morais, ao passo que a segunda forma de consciência (a moralidade), o valor moral, que se põe unicamente como móbil da ação, faz da lei a causa de se seguir a lei, dando-se o cumprimento por dever45.

44 Segundo Kant, uma “metafísica dos costumes” (isto é, a Moral e o Direito, que, em conjunto, formam essa dita “metafísica”) pode (e, na verdade, deve) se aplicar a uma antropologia (um dado conjunto de valores socialmente aceitos na comunidade a ser gerida), mas não pode (nem deve) ser “fundada” nela, isto é, servir exclusivamente a uma determinada manifestação humana ou se prestar a simplesmente validá-la (KANT, op. cit., p. 23). 45 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Editora Folha de São Paulo, 2015. p. 114.

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Mas poder-se-ia objetar que pensar a Ética é pensar o dever, isto é, o como agir e o por

que agir – e não a pensar direitos, a tal matéria que este capítulo do trabalho quer investigar.

Em um primeiro plano, talvez sim.

Embora, na verdade, nem tanto.

A filosofia moral kantiana pressupõe como imperativo categórico nunca utilizar um

ser racional como mero objeto – e sim como um fim per si, isto é, em si mesmo, ou, em outras

palavras, como algo intrinsecamente digno de respeito. Violar as faculdades de alguém ou

utilizá-las como meio para a satisfação de desejos é anti-ético, pois não se deve universalizar

uma conduta que não respeita o próximo ou o subordina aos apetites de outrem, sob pena de

destruição de toda consideração ao integrantes da espécie humana ou, mais apropriadamente,

a qualquer ser racional consciente – de sua autonomia e de sua existência. Em outras palavras,

instrumentalizar o ser racional consciente e autônomo seria arriscar um valor fundamental, ou

o valor fundamental, para a própria concepção deontológica do agir – o valor da dignidade da

pessoa humana, ou do respeito pela pessoa em si. Esse agir seria anti-ético, então, porque o

ser racional, autônomo e consciente de sua existência deve ter a oportunidade de alcançar,

através do exercício de sua autonomia e da sua racionalidade, a liberdade, assumindo o dever

como motivo ou máxima de sua conduta moral. Afinal, se a dignidade inerente ao indivíduo

em sua existência não merece respeito, em que outro valor último poderia se fundar uma

filosofia categórica do agir, ou uma Ética com “E” maiúsculo, então? Se proteger a existência

da vida e da consciência dessa mesma vida não justifica a ação ética, o que assim conseguiria

fazer, em seu lugar?

Essa visão do relacionamento interpessoal montou uma ponte entre a Deontologia e a

Teoria Geral do Direito (mais especialmente o Direito Constitucional) por estabelecer como

uma obrigação universal, isto é, por colocar no status de imperativo categórico, o respeito a

todo e qualquer ser humano pura e simplesmente por ser ele um ser humano, isto é, graças à

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sua inequívoca condição de ser racional, autônomo e consciente, sendo titular, enfim e assim,

de um determinado núcleo de liberdades puras invioláveis46. Na verdade, indo mais além no

diagnóstico, percebe-se que Kant irradiou para a Teoria Geral do Direito a conclusão da sua

Deontologia porque, em última análise, chegou a um ponto fundamental do raciocínio ético:

qual é o fundamento que nos leva, enfim, do reino do ser para o reino do dever-ser? Em outras

palavras: o que justifica dizer que algo não simplesmente é, mas que deve ser?47 Para

Immanuel Kant, a resposta é o respeito ao ser consciente, racional e autônomo; a partir daí

que as coisas “devem ser”, isto é, a partir daí que se deve fundamentar toda e qualquer Ética.

Ou isso, ou nada: afinal, se as coisas são como são, sem precisar “dever ser” de alguma forma,

estaremos de volta ao estado selvagem no campo da especulação moral48.

Ora, se assim é, vê-se que a base filosófica estabelecida por Kant ampara a idéia que o

Direito, como área do saber científico, atualmente advoga, especialmente quando se fala de

Direito Internacional, Constitucional ou de Direitos Humanos – a de que há direitos subjetivos

inatos, inalienáveis, imutáveis e indisponíveis que permitem a cada integrante da comunidade

jurídica ser titular de suas faculdades, exercendo-as livremente desde que não vá, com isso,

violar faculdades pertencentes a outros sujeitos. Essa concepção permite defender que há uma

série de liberdades a serem necessariamente protegidas pela lei, e que essa série de liberdades

deve ser protegida dentro de um espírito de igualdade, pois, não importando quem seja vítima

46 Kant, por causa disso, tanto se preocupou com o Direito Internacional quanto com o ser humano como cidadão universal, isto é, digno de proteção e respeito onde quer que esteja no globo, e seja ele da nacionalidade que for (KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2013). Rousseau já seguira essa trilha, criticando decisão judicial a respeito da escravatura e, especialmente, da situação dos filhos de escravo: “os jurisconsultos que pronunciaram gravemente que o filho de um escravo nasce escravo disseram, em outras palavras, que o filho de um homem não nasce homem” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 103). 47 David Hume se depara com esse mesmo problema e o resume de uma forma notável: “Em todos os sistemas éticos que encontrei até agora, comprovei sempre que o autor desenvolve suas idéias de uma maneira serena até certo ponto [...] mas, depois, em lugar das frases com ‘é’ ou ‘não é’, frases com ‘deve ser’ e ‘não deve ser’ aparecem. Essa mudança é sutil, mas, sem embargo, de grande importância, pois expressa uma nova relação – e deve, então, ser notada e explicada necessariamente, visto que faz de uma coisa outra totalmente diferente” (HUME, David. Tratado sobre a natureza humana. São Paulo: UNESP, 2001. p. 469). 48 Tanto que esse movimento de respeito extravasou, com o tempo, o âmbito da Humanidade e alcançou, por exemplo, a defesa dos direitos animais (que, mesmo sem o que se chama de consciência, possuem sensibilidade) e da Natureza (que, mesmo sem consciência nem sensibilidade, é um bioma).

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ou algoz, qualquer intromissão injustificada na pessoalidade do indivíduo será categorizada

como violação (ilícito)49. Não significa dizer que qualquer intromissão na pessoalidade alheia

é ilícita, mas significa dizer que, enquanto a intromissão racionalmente justificada é lícita, a

injustificada não o é, e isso claramente traz a um novo patamar a necessidade de usar a razão

pública, tanto na definição da extensão de direitos (e deveres) quanto na definição de limites

entre direitos colidentes50.

Claro que Immanuel Kant não é um mirabilis philosophus, o último de sua espécie e o

que há de, a exemplo de Ahasverus51, encerrar em apoteose a tarefa hercúlea de pensar a Ética

e a Deontologia; mas não se pode negar que ele alcança novos patamares metodológicos ao

negar um substantivismo dado previamente (isto é, uma metafísica dogmática não sujeita à

crítica racional) e ao conferir à inata faculdade de julgar (isto é, à Razão) o papel emancipador

que lhe compete de instância investigativa (por excelência) do universo do transcendental. A

investida teórica a favor da faculdade de pensar termina por formular o que hoje se conhece

como procedimentalismo, um procedimento investigativo da ação ética que finda por inserir

Kant definitivamente na História da Filosofia: a salvação ética é tomar a resposta como certa

49 Essa idéia base do respeito mútuo (limitação da liberdade de um diante da liberdade dos demais) é da literatura contratualista dos filósofos políticos da modernidade, que diferenciam estado de natureza de sociedade política exatamente pela possibilidade de exigir limites uns dos outros: “Portanto, sempre que qualquer número de homens estiver unido em uma sociedade de modo que cada um renuncie ao poder executivo da lei da natureza e o coloque nas mãos do público, então, e somente então, haverá uma sociedade política ou civil” (LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 460). 50 A Teoria Liberal dos Direitos Fundamentais, com sua doutrina do ônus argumentativo a pesar sobre o Estado quando este precisa se justificar se resolve, de alguma forma, avançar sobre as liberdades do cidadão, é herdeira dessa percepção filosófica (MARTINS, Leonardo; DIMOULIS, Dimitri. Teoria geral dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 129-175). A disciplina expressa da Gründnorm alemã sobre o que se convencionou chamar de “limites dos limites” (isto é, a regulamentação legislativa não pode inviabilizar o direito fundamental assegurado pela constituição) tem o mesmo sentido (MARTINS, Leonardo. Liberdade e estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. p. 138). 51 Reza a tradição popular que Ahasverus é o judeu que empurrou Cristo no caminho para o Gólgota, mandando que não parasse de caminhar até o fim do calvário; teria recebido por maldição, então, nunca mais parar de caminhar pelo mundo até o fim dos tempos. Por isso, é geralmente apontado como aquele que sobreviverá até ser o último humano na face da Terra.

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se ela puder ser defendida universalmente e exigida em outras situações similares a partir do

seu motivo52, 53.

Não é à toa que a menção acima foi a de que Immanuel Kant trouxe a discussão ética a

novos patamares em termos metodológicos: o último filósofo a ter tão vigorosamente posto

em destaque a metafísica havia sido precisamente Descartes, que, com a dúvida metodológica

fundamental sobre a existência, presumiu a exuberante demiurgia do “eu”54: (eu) penso, logo

(eu) existo, e nada existe (fora do “eu”, isto é, fora do pensamento). A partir de Kant, porém,

a consciência deixa de ser essa circunscrição de certeza, fora da qual nada seguramente existe,

para ser o espaço do exercício da crítica, um tribunal fictício da dúvida recorrente quanto ao

dogma, dúvida essa que se vale da faculdade de julgar com coerência para defender que um

comportamento só pode ser ético na medida em que não for contraditório, isto é, na medida

em que não tiver por moto próprio o benefício egoísta, mas o agir que se queira universal. A

comparação com o francês interessa também na medida em que é (muito injustamente, por

sinal) Kant, e não Descartes, o pensador geralmente associado à crítica da razão instrumental,

isto é, à crítica de Adorno e Horkheimer sobre o racionalismo exacerbado, instrumentalizado

52 O verbete “Crítica”, do Vocabulário Immanuel Kant, de autoria de Jean-Marie Vaysse, é consulta obrigatória pela síntese feita de tudo (e muito mais) do que ficou dito acima (VAYSSE, Jean-Marie. Vocabulário Immanuel Kant. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 21-22). Além disso, vale a consulta à discussão sobre o trajeto teórico empreendido entre o despertar filosófico do “sono dogmático” kantiano e a “poliarquia moral” contemporânea em Serge-Christophe Kolm, especialmente em suas conclusões (KOLM Serge-Christophe. Teorias modernas da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 585-588). Merece destaque, ainda, que o tribunal da Razão kantiano é um tribunal argumentativo, e a manutenção da coerência é o principal objetivo: a universalização do motivo é um exercício sobre sua validade fora do contexto comunicativo inicial em que foi primeiramente colocado, e a argumentação nesse sentido não pode apelar ao que é retórico, isto é, extra-racional (BRETON, Phillipe. A argumentação na comunicação. Bauru: Edusc, 1999. p 55-58). 53 Como tudo nas ciências e na filosofia, o verbete “procedimentalismo” pode ter mais de um significado, mas o que se associa a Kant é exatamente esse: o procedimento da crítica da razão. Procede-se a verificação da verdade do postulado através da razão; não se admite a verdade dogmaticamente. O procedimentalismo é o exercício da crítica, portanto, e Nicola Abbagnano resume que a crítica racional procede “sobre os conhecimentos de que o homem efetivamente dispõe”, visando, então, “determinar as condições [inclusive] de sua [própria] validade”. (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. p. 260). 54 Com René Descartes, segundo Nicola Abbagnano, a Razão volta a ser “o guia fundamental do homem” (ABBAGNANO, ibid., p. 825).

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com o passar do tempo, que deságua no delírio cientificista de tratar o humano como apenas

um número – uma característica nefasta do Século XX e do nazi-fascismo55.

Mas, apesar desse mérito da filosofia kantiana – qual seja, a colocação da razão como

instância da aferição ética da conduta moral (ou, ao contrário, talvez justamente por causa

dele) – encontram-se limitações ao projeto inicial de isenção dogmática.

Passamos a perceber essas limitações de maneira mais palpável quando se verifica que

o filósofo alemão incide em um erro semelhante ao erro cartesiano, o de subjugar (e resumir)

o mundo à instância da consciência: ainda que seja o espaço por excelência da crítica racional,

não se pode dizer que ela esgota os problemas do ético – a intersubjetividade, inclusive, fonte

de boa parte da problemática moral, é necessariamente exterior à consciência, e nem sempre a

ela totalmente redutível, ainda que por especulação. Fora isso, partindo precisamente desse

primeiro problema, chegamos a um segundo: se a metafísica dogmática peca ao assumir como

absoluta uma verdade que pode muito bem não o ser, e se, por via de conseqüência, a solução

apresentada para escapar da armadilha é tomar a Razão como fiscal para exercer a aferição –

pois é precisamente a Razão que permite aferir a consistência entre máxima e imperativo –

55 Alain Supiot discute o cientificismo como um dos 03 (três) credos do fundamentalismo ocidental (os outros seriam o messianismo e o comunitarismo), lembrando muito a divisão weberiana dos tais tipos de dominação (burocrática, carismática e tradicional) (SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 241-255). Mas os principais autores da guinada sobre a percepção filosófica do papel da razão, e sobre a sua desafortunada e inequívoca instrumentalização, inclusive para fins políticos, foi a dupla Theodor Adorno e Max Horkheimer (ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. p. 17-46). Definindo razão instrumental, Jürgen Habermas observa que o “universo conceitual da razão instrumental foi criado para possibilitar a um sujeito que ele disponha da natureza e não para dizer a uma natureza objetivada o que de mal se faz a ela. A razão instrumental é uma razão ‘subjetiva’ também no sentido de que ela dá expressão às relações entre sujeito e objeto sob a perspectiva do sujeito que conhece e age, e não do objeto que foi percebido e manipulado. Por isso, ela não coloca à disposição instrumentos explicativos que possam esclarecer o que significa, afinal, a instrumentalização das relações sociais e intrapsíquicas sob a perspectiva de contextos vitais violados e deformados; era esse aspecto que Lukács pretendia extrair da racionalização social ao utilizar o conceito de reificação. Logo, a evocação da solidariedade social apenas indica que a instrumentalização da sociedade e seus integrantes destrói algo, mas não aponta em que consiste essa destruição” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. v. 1, p. 670-671).

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sem quase perceber, mas também sem que se deixe de sentir, a Razão passa ao lugar central

do dogma que fora afastado pelo despertar procedimentalista56.

E passa ao lugar de dogma por quê?

Porque a razão não é um caminho de tijolos amarelos que leva, pelos mesmos prados,

ao mesmo destino. Pressupor que o exercício dessa tal faculdade humana desaguará sempre

na mesma resposta depois de seguir o mesmo caminho é pressupor que o exercício de uma

outra faculdade humana (a de imaginar, por exemplo) terá como resultado os mesmos sonhos

após o mesmo estímulo – o que não é verdade pelo simples fato de que o julgamento como

faculdade pressupõe valores e caminhos que não se distribuem homogeneamente, pelo menos

não no nível que Kant pressupôs. Resumindo, embora todo julgamento moral pressuponha

valor, não quer dizer que esse valor será o mesmo para todo ser humano que se depare com a

necessidade de realizar o julgamento, embora o ser humano seja racional e a Razão sirva para

a crítica da dogmática. Daí não se infere, pelo menos não necessariamente, que esses valores

sejam os mesmos entre um sujeito moral e outro, nem que as mesmas conclusões derivem das

mesmas premissas quando se trata de valores.

Em outras palavras, se o procedimentalismo racional, baseado na lógica estrita, pode

(e costuma ser) rigoroso, a axiologia associada nem sempre é tão pacífica ou uniforme, nem

muito menos leva a uma deontologia que seja igualmente previsível. Valores iguais podem ser

pesados diferentemente e, ao mesmo tempo, e justamente por causa disso, levar a atitudes

diferentes. Não se pode evitar que isso aconteça, por mais racional que se queira ser: nem toda

máxima necessariamente leva ao mesmo imperativo. Daí a crítica, inicialmente, de Michel

Foucault (a famosa crítica à “antropologia” de Kant) e, posteriormente, de Habermas (baseada

na impossibilidade prática e na inconveniência teórica de se chegar a uma resposta pronta sem

56 O dogma é o que é dado e aceito de maneira indiscutível, geralmente por profissão de fé (ABBAGNANO,

Nicola. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012, p. 292-293).

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que haja sua construção concreta mediante o exercício do agir comunicativo)57, 58: ao não

considerar a possibilidade de valores distintos entre si regerem a decisão moral, ou ao não

admitir que esses valores levem, ou possam levar, a conclusões distintas, ignorou o autor

alemão que outras “antropologias” fossem possíveis. Afinal, não quer dizer que, porque todos

defendem a vida humana, e porque somos todos seres humanos, necessariamente seremos

todos contra a pena de morte ou todos contra o aborto, nem muito menos que sejamos todos

favoráveis a um ou a outro nas mesmas situações59. Também não quer dizer que possamos ou

consigamos respostas satisfatórias apenas no nível solipsista da consciência – a questão ética

pode passar pela legitimidade política, em dimensão social.

As soluções pré-kantianas tomaram, por assim dizer, partido específico de um ou outro

valor nas suas indagações éticas; Kant apostou na Razão como árbitro entre esses valores, mas

acreditou que a disputa poderia ser resolvida sempre com a mesma certeza e invariabilidade

quanto à justiça do resultado. Essa aposta traduz uma problemática insolúvel, porém: a de que

a Deontologia pode servir à crítica das mais variadas correntes dogmáticas sem prescindir de

57 Segundo Foucault, em nome daquilo “que é, isto é, do que deve ser, segundo sua essência, a antropologia no todo do campo filosófico, é preciso recusar todas essas ‘antropologias filosóficas’ que se oferecem como acesso natural ao fundamental; e todas essas filosofias cujo ponto de partida e cujo horizonte concreto são definidos por uma certa reflexão antropológica sobre o homem [...] E nisso está o paradoxo: desembaraçando-se de uma crítica prévia do conhecimento e de uma questão primeira sobre a relação com o objeto, a filosofia não se liberou da subjetividade como tese fundamental e ponto de partida de sua reflexão. Ao contrário, fechou-se nela” (FOUCAULT, Michel. Gênese e estrutura da antropologia de Kant; e a ordem do discurso. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015. p. 78-79). 58 Como é impossível definir de maneira puramente racional e especulativa o que é certo e o que é errado dentro da sociedade civil, percebe-se que as verdades são social e historicamente construídas pela eticidade do agir dos interlocutores envolvidos, que, se agirem com inteligibilidade, verdade, veracidade e correção uns com os outros (isto é, de acordo com os pressupostos de validade do agir comunicativo), formarão consensos discursivamente válidos em vez de dirigidos por imperativos sistêmicos (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. v. 1. p. 475-58). 59 O que nos leva, aliás, ao centro do impasse ético, que desde Édipo se insinua: valores distintos motivam ações distintas, e essas ações podem parecer igualmente legítimas. Apesar de ser uma peça, isto é, de ter pretensões aparente e supostamente apenas literárias, Édipo-Rei, de Sófocles, tem sido recuperado de maneira acentuada dentro das pesquisas científicas (da psicanálise à filosofia, passando pelo Direito) face à sua riqueza simbólica. Na trama, Édipo, rei de Tebas, mata o próprio pai e se relaciona sexualmente com a mãe mesmo sem saber disso. Ao descobrir o que fizera e acontecera, vê-se como mais um joguete do destino, apesar de toda a sua eticidade – o que serve a uma série de questionamentos sobre a vida, de maneira geral, e o livre-arbítrio do Homem, em sentido mais particular (SÓFOCLES. Édipo-Rei. 5. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2009). Da mesma forma, e do mesmo autor, em relação à peça Antígona, que resolve sepultar seu irmão a despeito da proibição imposta por Creonte, Rei de Tebas, que assim havia ordenado por vingança, contrariando a lei dos deuses (SÓFOCLES. Antígona. 2. ed. Rio de Janeiro: Difel, 2006).

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uma Axiologia própria que lhe dê amparo, isto é, sem um valor prévio que seja simplesmente

dado – e não questionado. Isso, porém, não é possível: o respeito intrínseco ao ser humano

que Immanuel Kant defende assim demonstra. Justifica-se o respeito devido ao ser humano,

ou a qualquer ser consciente, por ser ele dotado de autonomia, razão e consciência – e pronto,

nada mais, para arrepio dos céticos. Dogmatiza-se o ser humano porque não existe uma ponte

lógica entre o ser e o dever-ser que explique, enfim, suficientemente, por que o fato biológico

ou psíquico da consciência deve obrigatoriamente exigir uma proteção moral à sua existência

material. Independentemente das críticas que se possa fazer ao autor, porém, ele elaborou com

o rigor conceitual e analítico que lhe era característico o que nunca antes havia elaborado o

ser humano para o próprio ser humano: um sistema filosófico completo, abrangente e coerente

que possibilita afirmar e justificar a existência de direitos fundamentais, inatos, invioláveis,

inalienáveis e vitalícios que merecem proteção em si mesmos, pelo simples fato de serem o

que são60, 61.

60 Não é à toa que, no opúsculo O que é Esclarecimento?, Kant retoma a divisa latina “Sapere audem!”, ou, em tradução livre, “Ouse saber!”. Para ele, a menoridade filosófica seria marcada exatamente pela permanência do sujeito sob a influência pensante de terceiro – a maturidade moral só surgiria com a assunção do protagonismo moral da própria vida, isto é, com o exercício da responsabilidade pelas próprias escolhas livres. Somente por meio da coragem de saber entender, indagar e repensar o mundo, então, que o sujeito moral poderia começar a se posicionar moralmente face a ele (KANT, Immanuel. O que é esclarecimento? Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/b47.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2015). 61 Ora, a razão passa a ser, assim, senão para o próprio Kant, para adeptos sinceros e (principalmente) para seus (supostos) seguidores, a Razão com “R” maiúsculo que será, depois, chamada de “instrumental” e refutada por, entre outras coisas, “solipsista”, encerrada em si mesma, ignorante da alteridade e, por mais insólito que pareça, despreparada para lidar com respostas igualmente válidas e racionais que eventualmente possam emergir de uma mesma questão ética.

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4 O CONTEXTO HISTÓRICO DE FORMAÇÃO DA CATEGORIA FILOSÓFICA

“DIREITOS” – E DE COMO ESSA CONCEPÇÃO SE TORNOU JURÍDICA

4.1 Do contexto histórico que levou a categoria “direitos” a ser uma pauta da

Modernidade

Como toda criação histórica, a concepção ética kantiana não surgiu do nada e, apesar

da crítica de Michel Foucault à “antropologia” de Kant, que um tanto quanto ingenuamente

pressupõe todos os homens em um exercício uniforme da faculdade racional, sensíveis aos

mesmos valores morais e, logo, chegando às mesmas conclusões éticas a respeito das escolhas

individuais, o fato é que ela é criativa e ampla o bastante para coroar uma turbulenta história

européia de luta pelos direitos do indivíduo – história essa que, na verdade, se confunde com

uma outra, a da construção do Ocidente moderno (ou contemporâneo, para ser mais preciso)

como um lugar onde a tolerância, o respeito e a liberdade permitem aos mais diversos sujeitos

a experiência do desenvolvimento de sua personalidade sem que nem o Estado nem os demais

concidadãos possam tolher a autonomia de ser quem se é62. Essa história turbulenta, assim

como quase tudo que diz respeito à contemporaneidade, começou com o fim da Idade Média e

com a necessidade de justificar, racional e moralmente, o novo poder que surgia – o poder do

Estado63.

Se a lógica feudal de justificação da autoridade, fundada em laços pessoais, familiares

ou de tradição64, era de proximidade, a lógica estatal (do Estado-Nação Absolutista que

62 Essa visão é muito cara especialmente à cultura cívica dos Estados Unidos da América (JEFFERSON, Thomas. Writings. New York: The Library of America, 1984). 63 Thomas Hobbes é o autor da tentativa pioneira de justificar a liberdade pela obediência e, em muitos pontos, essa empreitada foi bem-sucedida (HOBBES, Thomas. Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003). 64 Para Habermas, a tradição, até a Modernidade, serviu de principal esteio à eticidade das sociedades: se essa eticidade é uma interpretação da realidade que legitima “a ordem social existente, estabelecendo-a não apenas como a desejável, mas também como a única possível”, a eticidade única compartilhada “por todos os membros da comunidade determinava também o pertencimento a um mesmo corpo político” – e a fonte, por excelência, dos “princípios que estruturavam essa eticidade única era a tradição [...] Vê-se já que, em uma sociedade

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marcou a Idade Moderna) de justificação da autoridade veio a se estabelecer em função da

origem divina dos reis, ou do seu direito natural de governar. Lançou-se para fora da história

humana o fundamento da autoridade a fim de poder argumentar que, independentemente de

não se ter qualquer ligação pessoal, familiar ou tradicional com o rei, ser-se-ia obrigado a

obedecê-lo, sob pena de se estar infringindo ora a lei divina, ora a lei natural. Se mandar era

um direito real, exercido sob inspiração superior e inquestionável, obedecer era um dever

natural dentro da concepção de mundo que marcou o fim do medievo. Na Idade Moderna, a

sociedade civil seguiria as mesmas regras da natureza e a cultura se pautaria pela analogia

com a lei natural: o que explicava o mundo, explicava a sociedade, e essa filosofia política

procurou justificar a legitimidade desse novo poder, o do Estado Absolutista, isto é, o poder

político, mas real – a plenipotenciária e sobre-humana vocação de uns poucos eleitos entre os

muitos que ocupavam (sem, entretanto, a mesma sorte) a face da Terra65.

A grande crise econômica e intelectual da organização social absolutista, estamental,

fisiocrata e metalista que marcou a passagem da Idade Moderna para a Idade Contemporânea

vitimou também o discurso de justificação da autoridade; ela não pôde voltar a ser como era

antes, no período feudal, de tutela com base em relações familiares e, ao mesmo tempo, não

conseguiu se manter firme na gênese divina ou natural do poder político. E isso porque o

desenvolvimento das manufaturas, das trocas comerciais e dos investimentos de capital – no

sentido arcaico de investimento de moeda a troco de juros ou lucro sobre essa mesma moeda

– evidenciou a total inépcia produtiva (e de gerenciamento econômico) tanto da aristocracia

européia quanto de seu “núcleo duro”, as famílias reais. Como podiam entender a aristocracia

e a realeza daquilo que não faziam, isto é, como podiam definir e determinar sobre trabalho,

tradicional, o dissenso, a discordância” resulta na exclusão do sujeito em relação à comunidade (NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 15-35, p. 16). 65 Não se fala ainda em poder estatal porque não se concebe, nesse momento, o Estado como uma ficção jurídica apartada da figura do Chefe de Estado ou de Governo. É dessa época, e a resume muito bem no campo político, a célebre frase de Luís XIV, o Rei Sol: “L’Etát est moi”, isto é, “O Estado sou eu”.

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economia e dinheiro se sequer sabiam como funcionavam as dinâmicas comerciais de compra

e venda – por que pura e simplesmente não eram “obrigados”, por “direito de nascimento”, a

participar delas? 66, 67.

Tocqueville é mais conhecido pelo seu estudo sobre a Democracia nos Estados Unidos

da América, mas se debruçou sobre a realidade francesa do Antigo Regime e foi pioneiro na

observação dessa emancipação (inclusive) econômica do sujeito (dito) comum. A corvéia e os

direitos de senhor feudal ainda imperavam no que mais tarde seria a Alemanha, mas, já no

século XVIII, na França,

havia muito tempo que não existia nada semelhante. O camponês ia, vinha, comprava, vendia, tratava, trabalhava à vontade. Os últimos vestígios da servidão eram vistos apenas em uma ou duas províncias do leste, províncias conquistadas; em todas as outras partes, desaparecera totalmente [a série de restrições econômicas do período feudal] e mesmo sua abolição remontava a uma época tão distante que a data já estava esquecida. Pesquisas eruditas feitas em nossos dias provaram que já no século XIII não se encontrava servidão na Normandia68.

Curiosamente, de maneira inclusive antecipatória em relação aos desdobramentos que

teria a Teoria Política da Modernidade, Nicolau Maquiavel já apresentara sua visão dos fatos

e da História de maneira a contribuir para a elucidação do debate sobre a autoridade do Estado

– e não é à toa que é apresentado como o primeiro “moderno” da política, isto é, o primeiro a

pensá-la fora dos conhecidos padrões idealistas da Antiguidade, eminentemente platônicos, e

66 Apesar de concordarem Sieyès, Rousseau e muitos outros de maneira cabal quanto a esse aspecto, o mais contundente testemunho sobre a inapetência real de tratar o que quer que seja, em especial a matéria pública, vem de Thomas Jefferson, em carta a John Langdon, datada de 05 de março de 1810. Os reis são comparados a animais criados em cativeiro, alheios ao mundo e entregues à satisfação mundana de suas próprias veleidades. E espanta o realismo (com o perdão do aparente trocadilho) do retrato (JEFFERSON, Thomas. Writings. New York: The Library of America, 1984. p. 1.221). 67 A percepção de que as cortes deveriam justificar sua existência (e os altos gastos que impunham à população) já era corrente na Idade Moderna, pelo menos entre seus mais afinados pensadores. Em Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio, Maquiavel narra um exemplo antigo que, além de divertido, seria edificante, em especial para os governantes: “Alexandre, o Grande, queria construir uma cidade que fosse monumento à sua glória. O arquiteto Dinocrato mostrou-lhe que era possível construí-la facilmente sobre o monte Atos. Além da força natural do lugar, dizia, poder-se-ia esculpir a montanha com forma humana – um projeto maravilhoso, digno do seu poder. Alexandre perguntou, então, de que viveriam os habitantes da cidade; o arquiteto respondeu que não havia pensado nisso. Alexandre riu e, deixando de lado o monte Atos, mandou lançar os alicerces de Alexandria, em um local onde os homens se fixariam prazerosamente, seduzidos pela fecundidade do solo e pela dupla vantagem de terem ali, ao alcance, o Nilo e o Mediterrâneo” (MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 21). 68 TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015. p. 36.

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fora dos padrões medievais, basicamente interessados no poder espiritual e não temporal69.

Ao contrário do que facilmente se diz e mais facilmente ainda se aceita, Maquiavel, apesar de

uma indiscutível inclinação pelo pragmatismo (o que não é, convenham todos, nem de longe

um defeito), ou justamente por causa disso, nunca foi de desprezar o meritório “exemplo dos

antigos”. Afinal, quem estudar

a história contemporânea e da antiguidade, verá que os mesmos desejos e as mesmas paixões reinaram e reinam ainda em todos os governos, em todos os povos. Por isso, é fácil, para quem estuda com profundidade os acontecimentos do passado, prever o que o futuro reserva a cada Estado, propondo, então, os remédios utilizados pelos antigos ou, caso não seja possível, imaginando novos remédios a partir das semelhanças entre os acontecimentos. Porém, como essa praxe de comparar passado e presente é negligenciada, ou aqueles que estudam o passado não sabem manifestá-la, daí resulta que as mesmas desordens assolam as diferentes épocas70.

Nem muito menos ignorou ou menosprezou o espírito cívico que fez Roma ser Roma,

isto é, a República que inspirou as demais congêneres da História71:

Um povo que tem o poder, sob o império de uma boa constituição, será tão estável, prudente e grato quanto um bom príncipe. Poderá sê-lo mais ainda do que o príncipe, inclusive, ainda que este seja reputado pela sua sabedoria. Por outro lado, um príncipe livre do jugo do das leis será ingrato, inconstante e imprudente, muito mais que o povo [insatisfeito ou rebelado]. A diferença que se pode observar na conduta de um e outro não vem do caráter, semelhante em todos os homens (...); provém do respeito às leis sob as quais vivem, que pode ser mais ou menos profundo. Ao estudar a história do povo romano, vemos que, durante quatrocentos anos, ele foi inimigo da realeza, mas [ao mesmo tempo] apaixonado pela glória e prosperidade da pátria72.

Só e tão somente um condottieri de espírito público, isto é, que ponha como prioridade

o bem comum, pode ser bem sucedido na sua empreitada como governante. E por quê?

69 Maquiavel curiosamente não desdenha da prática religiosa, mas a vê como um meio de exercício coletivo de uma identidade que deve tanto realizar o cidadão quanto unir a sociedade civil em prol de um determinado ideal compartilhado. A crítica sobre a moral religiosa cristã da sua época é de que ela não prepara o cidadão para o embate público nem edifica o indivíduo na sua dimensão privada (MAQUIAVEL, op. cit., p. 57-68). 70 Id., op. cit., p. 129. 71 “Os romanos foram os que, com menos freqüência, transgrediram suas leis, e, por isso, foram os únicos a tê-las tão belas”. Assim Rousseau caracteriza o espírito cívico romano, que era republicano tanto no sentido de chamar à responsabilidade (pela manutenção da sociedade civil) os legisladores, quanto de chamar também a uma outra responsabilidade, a de respeitar a lei, a totalidade dos cidadãos (e nem por isso essa segunda era, de alguma forma, menos importante que a primeira para a manutenção da sociedade civil) (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 16). 72 MAQUIAVEL, op. cit., p. 180-181.

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Porque somente com essa preocupação direcionada a todos indistintamente se pode ter

a idéia de ordem, cooperação e progresso que passaria a pautar uma nação respeitável, que se

enxergasse como unidade congregada e se posicionasse de maneira ousada e independente em

relação à inconstante “Fortuna”, fazendo, assim, com que a virtú fosse expandida e vivida no

meio social, em vez de ser (somente ou supostamente) um “privilégio” de casta de nascimento

daqueles que se arrojam perante o destino. Não se quer dizer, porém, que Maquiavel fosse um

“liberal” ou “democrata”, pelo menos não no sentido ideologicamente carregado que viriam a

ter esses termos, mas quer-se dizer que, assim como O Príncipe se dedica a analisar jogos de

poder, o Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio quer descobrir, enfim, o que fez dos

“antigos” os “clássicos”, isto é, a preocupação é descobrir como imitar os inimitáveis; é nessa

pesquisa que Maquiavel percebe que a grandeza da Antiguidade esteve em dimensionar quão

importante era o “espaço do público”, isto é, o espaço para tratar do que concerne a todos sem

tocar especificamente a alguém73, 74.

Em resumo, a grandeza foi conceber um espaço (e um espírito) republicano75.

73 O que é coletivo se torna universal quando se impessoaliza e, assim, o “espaço do público” só existe quando o indivíduo se confunde com o homem em geral, passando a ser singular e coletivo simultaneamente – um cidadão do mundo, segundo Jürgen Habermas (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2013. v. 1, p. 17). 74 O Príncipe é a análise prática de como a virtú deve ser cultivada para que o governante (ou o príncipe) possa resistir à “Fortuna”. A virtú é um misto de qualidades (especialmente objetividade, realismo e pragmatismo), e a “Fortuna”, o imponderável da vida, em especial, da vida política – que, na época de Maquiavel, não levava, em caso de insucesso, à perda de mandato ou da liberdade, mas do patrimônio, da honra e da vida. Ao contrário do que costumeiramente se diz sobre Maquiavel, inclusive, ele ainda assoma como um ilustre civilizado dentro de seu contexto histórico: afinal, se é verdade que ele recomenda que, entre ser amado e ser temido, é preferível ser temido, também é verdade que só assim o recomenda por uma questão de eficiência e inevitabilidade; caso seja possível, é preferível ser merecedor tanto de estima quanto de respeito. Raymond Aron, comentarista da edição consultada para este trabalho, concorda – e vai além: para ele, Maquiavel passou para a posteridade como cínico quando deveria tê-lo feito como estrategista; mas curiosamente (e paralelamente) aqueles que realmente não têm escrúpulos têm sido lembrados pelos historiadores como mártires ou visionários, especialmente se professaram uma determinada inclinação ideológica (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 131-156). A respeito também de um Maquiavel mais republicano que despótico, vale a consulta ao sintético, mas elucidativo, e, por que não dizer, encantador, Maquiavel, de Newton Bignotto, especialmente as p. 28-38 (BIGNOTTO, Newton. Maquiavel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2003). 75 Ordem, cooperação e progresso: a liberdade é um luxo que só podem ter os que já habitam repúblicas sadias e duradouras: “De todas as instituições romanas, a ditadura é sem dúvida uma das que mais merece atenção; é difícil que um Estado, sem uma ordenação [institucional de exceção] se defenda de perigos extraordinários. Ordinariamente, o ritmo de um governo republicano é muito lento e, como nenhum conselho ou magistrado pode assumir plenamente autoridade para atuar, há sempre a necessidade de consultas; e, como é preciso reunir todas as vontades em um determinado momento necessário, a ação do governo é perigosamente lenta quando surge um

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A contribuição de Maquiavel, então, ao debate do início da Modernidade é essa: se

não existe uma razão familiar ou tradicional que justifique o exercício de poder por uns e não

por outros, só se pode legitimar um Estado pela persecução do interesse público, entendido aí

não como a vontade da maioria (uma idéia ainda estranha aos ouvidos da época) nem como a

vontade de cada um (que podem pensar no interesse particular e não no público em conjunto).

Se o Estado persegue esse interesse que não beneficia este ou aquele, mas pretende uma nação

forte e próspera para benefícios de todos, tem-se uma verdadeira república, isto é, um espaço

do público que justifica a existência do Estado por lhe dar fim específico – cuidar do que diz

respeito a todos, sem pensar especificamente neste ou naquele para decidir acerca disso. Daí

se falar, por exemplo, em um Maquiavel republicano avant la lettre, ou em um Maquiavel

pedagogo, que pense em como a virtú é uma faculdade humana a ser vivida e experimentada –

a importância que ele atribui ao exemplo dos antigos revela uma inegável crença no poder de

aprender pelo estudo e, consequentemente, de ser possível formar cidadãos ativos, conscientes

e altruístas por meio da educação.

Claro, porém, que essa idéia de República que Maquiavel traz dos antigos é totalmente

estranha àquele momento europeu, marcado pelas monarquias portuguesa, espanhola, inglesa

e francesa; mas era muito familiar ao território do que hoje se chama Itália, visto que, naquele

momento, vivia-se ali uma organização geopolítica diferente: cidades e regiões gozavam de

autonomia política. No caso específico da cidade de Veneza, que, além de se apresentar como

uma república aristocrática, era muito bem-sucedida economicamente e relativamente estável

do ponto de vista político, chegou-se a apelidá-la de “sereníssima república”. Essa inferência

maquiaveliana demonstra a argúcia de seu estudo do passado e sua capacidade de antever o

mal inesperado, que precisa ser abordado sem demora”. Mesmo assim, efetivamente perigoso para Maquiavel não seria a perda temporária e justificada de liberdade na república, mas a preferência de um, ou uns, frente a todos: quando não se chega “a um acordo para estabelecer uma lei que proteja a liberdade, e se favorece um cidadão [em detrimento dos demais], o monstro da tirania ergue sua cabeça” (MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 114, 133).

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que, no fundo, faria de uma nação uma experiência venturosa ou não – inferência essa que só

seria retomada séculos depois, em um posterior momento de radicais mudanças sociais na

Europa, por Jean-Jacques Rousseau, não por acaso um outro pensador a se debruçar sobre o

passado para entender o presente, a pensar em um espaço do público, a falar de República e a

ser, ou tentar ser, pedagogo.

A definição de Jean-Jacques Rousseau a respeito do contrato social se tornou célebre

por causa disso, isto é, por causa da responsabilidade que imputa aos membros da sociedade

civil pela vividez e permanência da República, que não pode ser mais ativa do que os seus

cidadãos; afinal, cada um,

dando-se a todos, não se dá a ninguém, e, como não existe um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente de tudo o que se perde e mais força para se conservar o que se tem. [...] O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural e um direito ilimitado a tudo quanto deseja e pode alcançar; o que ele ganha é a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possui76.

Mas cada coisa a seu tempo: voltemos à Modernidade e à percepção, enfim, de que os

sujeitos eram donos de sua vida, de sua força de trabalho, do fruto dessa força e, por fim, mas

não menos importante, de direitos, isto é, da capacidade e possibilidade de reivindicar para si

a proteção das faculdades naturais que desempenhavam – falar, crer, trabalhar e ir e vir, entre

outras. Essa percepção sobre o mundo social levou os sujeitos a elaborar uma nova concepção

de natureza humana, de que ela foi agraciada com essas faculdades por uma instância superior

à nossa, isto é, por uma instância que age independentemente de nossa vontade, chame-se ela

Natureza, Acaso ou Deus e, por via de conseqüência, que essas faculdades, que essa, digamos,

“graça” que elas representam não podem ser sindicadas pelo juízo humano – afinal, se somos

todos, pelo simples, imutável e inegável fato de sermos humanos, congenitamente dotados de

direitos naturais, próprios e inalienáveis, decorrentes do imponderável, como autorizar a quem

76 ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social: princípios do direito político. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 21-26.

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quer que seja que aja arbitrariamente sobre isso, isto é, que se sinta (por mais autoridade real

que tenha) na prerrogativa de invadir o que me é próprio?

Se não tem o indivíduo por que ter tolhidas as suas faculdades naturais – dentre as

quais a de trabalhar e a de possuir – a não ser que isso seja realmente necessário, por clara via

de conseqüência, uma autoridade que não respeite limites derivados da natureza humana, e

que não seja também derivada da manifesta vontade do titular da liberdade em questão, é uma

autoridade arbitrária – e que não merece o respeito do indivíduo77. A justificação política da

autoridade, então, passa a se pautar por uma concepção filosófica ligada claramente à ética de

valorização da pessoa humana – e passa a residir no consentimento. Seja o consentimento de

quem abriu mão, ainda que parcialmente, de sua liberdade plena e absoluta para viver em

sociedade, seja do consentimento manifestado através do exercício do sufrágio. Daí brotaram

as Revoluções Burguesas, refulgentes de Iluminismo, e daí brotam, ainda hoje, as idéias que

povoam nossa visão de indivíduo, liberdade e vida em sociedade78. Essa visão de ser humano

a consentir com o poder e a formá-lo a partir de seu consentimento, assumindo a soberania do

governado que vem a marcar a limitação do governante passou para o registro histórico como

uma questão tanto de dignidade quanto de identidade. Somente a liberdade protege o sujeito

do abuso, e o abuso, isto é, a intromissão indesejada e injustificada calha de ser a insígnia do

Estado para muitos autores desse tempo:

A sociedade é, em qualquer estado, uma benção, mas o governo, mesmo em seu melhor estado, é apenas um mal necessário. No seu pior estado, é um mal intolerável, pois quando sofremos ou ficamos expostos, por causa de um governo, às mesmas desgraças que poderíamos esperar em um país sem governo, nossa

77 A idéia de razão pública, e de que o espaço público deve ser dominado pelo discurso do racional e do razoável, ganha terreno, então, e se firma definitivamente. Nomes da época assim defenderam e tanto registraram quanto difundiram essa idéia. Cito, como exemplo, John Locke, que entendia a razão como fundamento e regulação da liberdade (LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p. 438-439). A posteriori, sendo ainda mais didático quanto à importância do uso da razão pública e da razão privada, (KANT, Immanuel. O que é esclarecimento? Disponível em: <http://coral.ufsm.br/gpforma/2senafe/PDF/b47.pdf>. Acesso em: 25 nov. 2015). 78 A importância desse novo patamar de compreensão do mundo e do ser humano, paulatinamente alcançado e especialmente concretizado a partir das Revoluções Burguesas ou Iluministas, é tamanha que os historiadores demarcam-nas como o início da História Contemporânea, como já referido anteriormente (COTRIM, Gilberto. História global: Brasil e geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 11-18).

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calamidade pesa ainda mais ao consideramos que somos nós que fornecemos os meios pelos quais sofremos. O governo, como uma vestimenta, é o emblema da inocência perdida; os palácios dos reis são construídos sobre as ruínas das moradas do paraíso79.

Que, por sua vez, recuperavam a idéia antiga de associar a virtude ao exercício de uma

vida consciente e livre, inclusive no plano público80. É muito sintomática a retomada de

Cícero que faz Emmanuel Joseph Sieyès, o Abade de Sieyès, para quem, consoante Aurélio

Wander Bastos, comentarista de O que é o Terceiro Estado?, não só o homem sem voz nem

voto, mas também o aristocrata privilegiado, termina corrompido em uma sociedade de

privilégios políticos: o privilégio “calcifica a natureza livre do homem”, fá-lo “subserviente e

falso” e, por conseguinte, o acostuma a se curvar frente às “falsas promessas de seus próprios

inimigos ávidos de poder”81. Essa visão também terá, décadas mais tarde, sobre fenômeno

semelhante, embora claramente muito mais torpe (a escravidão), Abraham Lincoln: a

liberdade integra a dignidade do sujeito e permite que ele tenha identidade (como pessoa

livre). Se este ou aquele regime nega o primeiro de todos os direitos, a liberdade, não existe

espaço para a dignidade; a consequência fatal dessa combinação termina sendo,

invariavelmente, a corrupção da própria identidade. O famoso Discurso de Gettysburg é

exatamente sobre isso, ser ou não ser um país livre a partir de ser ou não ser um povo livre, e

não apenas de esse povo ter ou não ter estratos livres:

79 PAINE, Thomas. Senso comum. Porto Alegre: L&PM, 2011. p. 11. 80 Nem todos concordarão nesse ponto, pois habitualmente se divide o pensamento político antigo e o moderno exatamente quanto a sua preocupação principal: fomentar a virtude? Ou assegurar a liberdade? Nas palavras de Michael Sandel, em “um sentido importante, essa idéia está correta. Aristóteles ensina que a justiça significa dar às pessoas o que elas merecem. E, para determinar quem merece o quê, devemos estabelecer quais virtudes são dignas de honra e recompensa. Aristóteles sustenta que não podemos imaginar o que é uma Constituição justa sem antes refletir sobre a forma de vida mais desejável. Para ele, a lei não pode ser neutra no que tange à qualidade de vida. Em contrapartida, filósofos políticos modernos – de Immanuel Kant, no século XVIII, a John Rawls, no século XX – afirmam que os princípios de justiça que definem nossos direitos não devem se basear em nenhuma concepção particular de virtude ou da melhor forma de vida. Ao contrário, uma sociedade justa respeita a liberdade de cada indivíduo para escolher a própria concepção do que seja uma vida boa. Pode-se, então, dizer, que as teorias de justiça antiga partem da virtude, enquanto as modernas começam pela liberdade” (SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. 17. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015. p. 17-18). 81 BASTOS, Aurélio Wander. Prefácio. In: SIEYÈS, Emmanuel Jospeh. A Constituinte burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État?. 4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. p. 36.

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Há 87 (oitenta e sete) anos, neste continente, os nossos antepassados doaram ao mundo uma nação concebida na liberdade e baseada no princípio de que todos foram criados iguais. Estamos hoje envolvidos em uma grande guerra civil que provará se esta nação, ou qualquer outra desse modo concebida, pode perdurar. Encontramo-nos, neste momento, em um dos grandes campos de batalha desta luta e queremos consagrar uma parte dele à última morada dos que aqui sacrificaram a própria vida pela existência do país. É justo que assim o façamos, porém, em um sentido mais profundo, não nos compete abençoar ou consagrar este solo. Os heróis, vivos ou mortos, que nele pelejaram, já o santificaram a tal ponto que nossas fracas forças nada lhe podem acrescentar nem tirar. Mais tarde, o mundo esquecerá do que foi dito hoje: todavia, não esquecerá os feitos de que este campo foi teatro. Cabe a nós, os vivos, dedicar-nos à continuação da obra que os combatentes aqui iniciaram. Compete-nos realizar a sublime tarefa que esses grandes mortos nos legaram, e, com crescente espírito de sacrifício, levar à vitória a causa que os fez exalar o derradeiro alento. Cumpre-nos fazer que esses homens não tenham tombado em vão e que, com o auxílio de Deus, a nação assista ao renascimento da liberdade e que o governo do povo, pelo povo e para o povo não desapareça da face da Terra82.

Para o próprio Sêneca, a idéia não soaria estranha – um escravo pode ser livre e um

senhor pode ser escravizado sem que nem o primeiro nem o segundo deixem de ser escravo e

senhor; se forem livres (embora aqui em um sentido mais profundo e existencial), terão a sua

dignidade porque encontrarão identidade na subjetividade83. E essa é uma reflexão filosófica

que implica uma mudança prática no comportamento político do cidadão, já que não se impõe

ao sábio que participe do governo da república se o governo da república não é digno dele; se o sábio age para as coisas divinas e humanas, quão pequena não parecerá a ele a cadeira da cúria ou o assento no tribunal! [...] Se a influência no fórum, os feitos militares e a clientela superam, de um ponto de vista material, o apreço que tem o sábio, a vitória sobre a posteridade fará pequenas todas essas miúdas derrotas84.

82 Embora o discurso conste de várias fontes on line, foi tomado no original, com tradução livre, do Abraham Lincoln Online.org (ABRAHAM LINCOLN ONLINE. The Gettysburg Address. Disponível em: <https://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/gettysburg.htm>. Acesso em: 02 jan. 2017). 83 “É um escravo – mas talvez seja livre. Ora, escravos! Mostra-me quem não o seja! Há os escravos da luxúria, da avidez, da ambição: somos todos escravos da esperança e do medo. Tenho condições de te mostrar um cônsul servo de uma criada, um rico senhor submisso a uma escrava, jovens nobres sujeitos a dançarinas de pantomima – nenhuma escravidão é mais vergonhosa do que a voluntária”. Ou, com a mesma eloquência de tribuno: “Trinta tiranos rodearam Sócrates, mas não puderam quebrantar seu espírito. Que importa quantos são os senhores se a servidão é uma só? Despreze-a, e será livre” (SÊNECA. Aprendendo a viver. Porto Alegre: L&PM, 2008. p. 42 e p. 31). 84 SÊNECA, ibid., p. 59-61. Ao contrário do que costumeiramente se imagina, a virtude e o vício interessam, para antigos e modernos não apenas para a arte do bem viver, mas para o correto desempenho das responsabilidades públicas. A idéia é que o sujeito torpe não poderá entender a gravidade do que é do Estado, e fará desse Estado mero repasto para seus interesses pessoais. Maquiavel também alerta para tal perigo (MAQUIAVEL, Nicolau. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 136-138).

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Se liberdade e dignidade conformavam o espaço de uma identidade que podia, a partir

de então, se afirmar, agora sim é a vez de retomarmos Rousseau: esse pensador é o último dos

humanistas iluministas; não por ter sido o derradeiro, cronologicamente falando, mas por ter

sido o responsável pelo retoque final que foi a construção da relação do humano com o poder

quando em sociedade. Se a Modernidade pode ser vista como a construção do Estado de

Direito a partir do absolutismo, e como o primeiro momento histórico de aposta na (tal como

a conhecemos hoje) livre iniciativa como motor econômico através do investimento de capital

e da liberdade de trabalho, também pode ser vista como o lapso temporal em que, ainda que

paulatina e gradualmente, se resgatou a idéia republicana que marcaria a contemporaneidade:

Maquiavel a visitara ao raiar da Idade Moderna; Rousseau anuncia a Idade Contemporânea

quando volta à questão.

E volta a ela por quê, especificamente?

Porque, na sua especulação, conclui que, se o homem saiu do estado de natureza para

trocar liberdade ilimitada por segurança, isto é, a total autonomia que tinha por previsibilidade

fática mais segurança jurídica, procurava por uma vida em que direitos mínimos estivessem,

enfim, assegurados, não usurpados, ameaçados ou violados85.

Essa transição é complicada e multidimensional: a passagem para a sociedade civil é

uma mudança positiva porque a Natureza cede lugar à Cultura e o homem, assim, amplia suas

possibilidades de desenvolvimento; mas se torna uma experiência deletéria quando esse novo

universo cultural contraria a simplicidade do natural para impor ao homem comportamentos e

relacionamentos artificiais; essa transição, assim, não pode ser vista candidamente, pois nem

pode ser resumida a salvar-se do estado de natureza nem pode ser vista como o perder-se na

selva de aparências da nova sociedade civil. De toda sorte, entre perdas e ganhos, aponta o

85 “É incontestável a máxima do Direito Político de que os povos se deram chefes para defender sua liberdade, e não para escravizá-los; bem dizia Plínio a Trajano que, se há um príncipe, é para que não haja um senhor” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 99).

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autor que o maior ganho foi a criação de uma dimensão que, até então, não existia para o ser

humano, a dimensão do público. Ao passar a conviver regradamente, os homens precisam se

posicionar acerca de temas que respeitam a todos, de acordo com um raciocínio que não seja

mais o do universo privado: logo, em complemento à revolução conceitual que foi a de que os

humanos titularizam direitos inatos, inalienáveis e vitalícios, uma outra apareceu – a de que a

dimensão do público é parte integrante da experiência humana em conjunto, isto é, a de que a

sociedade civil é integrada (também) por ela86, 87, 88.

O desenvolvimento que Rousseau dá ao tema é mais filosófico do que habitualmente

se difunde: para ele, a propriedade privada representa o estopim da desigualdade social entre

os homens que vivem gregariamente, mas não porque ela, em si, seja um mal – e sim porque

ela deriva, basicamente, de um egoísmo competitivo que tende, mais cedo ou mais tarde, a ser

predatório. Se o gérmen anímico primitivo da vida em sociedade é a competição, isto é, se o

que me leva a interagir com os demais é ser ou ter mais do que os outros, ou do que eu mesmo

86 “A primeira e mais importante conseqüência dos princípios acima estabelecidos é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado em conformidade com o objetivo de sua instituição, que é o bem comum: pois, se a oposição dos interesses particulares tornou necessário o estabelecimento das sociedades, foi o acordo desses mesmos interesses que o tornou possível” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 33). Esse Rousseau, mais otimista, não apenas vê os interesses particulares como conciliáveis; vê também os cidadãos como conciliadores. Desses 02 (dois) pressupostos nasce a concepção do espaço próprio do público, isto é, nasce a concepção de república: sem privilegiar o meu nem atacar o do próximo, mas, ao revés, não mais diferenciando entre um e outro, legislar para todos. 87 Um Rousseau mais sombrio, porém, observa que os próprios “vícios que tornaram necessárias as instituições sociais são os mesmos que tornam inevitável que se abuse, mais cedo ou mais tarde, em maior ou menor grau, delas; e como as leis são fortes, mas menos fortes que as paixões, podem refreá-las, mas não eliminá-las nem alterá-las; por conseguinte, é fácil prever que um governo que seguisse exatamente a sua finalidade de instituição sem se corromper nem se alterar, no fim das contas se mostraria um país sem necessidade de magistrados nem de leis”, isto é, um país sem necessidade de sociedade civil porque pacífica e completa em sua natureza. Sem que os interesses sejam conciliáveis e sem que os homens sejam conciliadores, em resumo, a sociedade civil está fadada à ruína (ROUSSEAU, op. cit., p. 107). 88 “Essa elaboração da filosofia política moderna – a passagem do estado de natureza ao estado de sociedade – constitui-se em uma solução extremamente sofisticada para o problema da instauração de uma ordem social legítima que não pode contar um uma eticidade única, com uma visão de mundo única partilhada por todos os membros da sociedade. De uma parte, o recuo a um estado de natureza permite considerar os indivíduos antes das divisões que irão separá-los irremediavelmente no estado de sociedade, antes das divisões de línguas, de crenças religiosas, de concepções morais e políticas. Nesse sentido, os homens que fundam a sociedade civil não são protestantes ou católicos, ingleses ou brasileiros, mas indivíduos em busca de uma ordem social que, por um lado, busque o bem comum, e, por outro, garanta a convivência mais pacífica possível – ainda que conflitiva – entre eticidades divergentes. [...] [Dessa forma, através da formulação do contrato social como justificativa ou hipótese explicativa] a sociedade moderna encontra em seu próprio funcionamento o fundamento de legitimação da nova ordem social instaurada”. (NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 15-35, p. 18).

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já tenho (em um linguajar mais teológico, se é a inveja ou a ganância, respectivamente, que

me move), toda a vida em sociedade vai estar pautada em divisão e não em congregação: se a

cooperação cede lugar à competição como ânimo original da vida em comum, a própria idéia

de convivência gregária tende a ser vitimada89. Logo, caso isso aconteça e antes que a aposta

da sociedade civil desmorone, o espaço para reavaliar essa postura, tanto para fins de combate

do gérmen anímico primitivo no plano privado quanto para a contenção de sua expansão,

antes que contamine o plano supra-individual, é o espaço do público, da definição daquilo que

a todos nós nos diz respeito.

E isso porque cada indivíduo pode se organizar, na dimensão privada, nos assuntos

que são só seus, conforme lhe apraz, mas o cidadão, isto é, esse mesmo indivíduo, mas como

integrante de uma ordem cívica da qual comunga com outros, não pode se pautar de maneira

similar, buscando apenas seu interesse: se assim proceder, desafortunadamente, por mais que

tenha pleitos legítimos (por representarem reflexos ou extensões de seus direitos), verá que a

procura por essa satisfação gratuita, isto é, o exercício dessa satisfação pela mera emulação,

para ser ou ter a mais do que se era ou se tinha, ou mais do que os outros são ou têm, tende a

levar, no fim, a uma implosão da própria sociedade civil em que se insere e na qual ingressou

para a proteção de seu patrimônio jurídico privado – o que, então, nos leva à fatal conclusão

de que, caso se deseje um Estado de Direito (em outras palavras, uma garantia histórica do

indivíduo criada na dimensão do Direito), esse Estado de Direito não prescinde de ser uma

República (em outras palavras, de outra garantia histórica, mas garantia do cidadão, e na

dimensão da Política), a fim de se evitar o colapso de ambos.

89 “A ambição devoradora, a vontade de elevar sua fortuna relativa, menos por uma verdadeira necessidade do que para se colocar acima dos outros, inspira a todos os homens uma sombria tendência a se prejudicarem mutuamente, um ciúme secreto que é tanto mais perigoso quanto, para desferir seu golpe com segurança, assume a máscara da benevolência. Em suma: por um lado, concorrência e rivalidade; por outro, oposição de interesse e sempre o desejo oculto de tirar proveito à custa de outrem. Tais males são o primeiro efeito da propriedade e o cortejo inseparável da desigualdade nascente” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 93).

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Colapso institucional que, negando à dimensão pública a sua importância e apostando

suas fichas na vida exclusivamente privada do sujeito, que passaria, por sua vez, a interagir

com seus congêneres simplesmente por relações econômicas de troca comercial, Tocqueville

resumiu assim: em uma tal sociedade, em que

nada é fixo, cada qual se sente incessantemente aguilhoado pelo medo de descer e pelo afã de subir; e como nela o dinheiro, ao mesmo tempo em que se tornou a principal marca que classifica e diferencia os homens, adquiriu também uma mobilidade singular, passando continuamente de mão em mão, transformando a condição dos indivíduos, elevando ou rebaixando as famílias, praticamente não há quem não seja obrigado a fazer um esforço desesperado e contínuo para conservá-lo ou adquiri-lo. Assim, o desejo de enriquecer a qualquer custo, o gosto pelos negócios, o amor ao lucro, a busca do bem-estar e dos prazeres materiais serão sempre as paixões mais comuns90.

Essas paixões chegariam a todas as classes, mesmo às mais “alheias” ao dinheiro, e

terminariam por “desfibrar e degradar” a nação inteira – o que teria acontecido com a própria

França revolucionária, que lutou pela liberdade para consumar a maior tirania cesarista desde

a Roma Antiga; conquistou, mas suprimiu para novamente prometer, diversas liberdades; deu

a todos o sufrágio para em seguida tolher as reuniões e a capacidade de escolha dos eleitores;

e, por fim, revogou até a mais sagrada das conquistas humanas do processo revolucionário: as

liberdades de “pensar, falar e escrever”. Assim, segundo Tocqueville, as sociedades, tal como

a francesa de então, ditas “democráticas”, podem até ser ricas e refinadas, mas só terão em si

as qualidades “privadas” – “bons pais de família, comerciantes honestos e proprietários muito

estimáveis” – mas nunca “grandes cidadãos”, nem muito menos um “grande povo”91: afinal,

se o homem se apaga da vida pública, é sinal de que ele renunciou ao governo de si mesmo, e

é sinal de que, direta ou indiretamente, ele é títere de alguém. Afinal, qual é o homem

que, por natureza, teria a alma bastante baixa para preferir depender dos caprichos de um de seus semelhantes a seguir as leis que ele próprio contribuiu para estabelecer, se a nação lhe parece ter as virtudes necessárias ao bom uso da liberdade? Penso que não existe nenhum. Os próprios déspotas não negam que a

90 TOCQUEVILLE, Alexis de. O Antigo regime e a revolução. São Paulo: Folha de São Paulo, 2015. p. 10. 91 Id., loc. cit.

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liberdade seja excelente; mas a querem apenas para si mesmos e sustentam que todos os outros são totalmente indignos dela

92.

Arremata essa visão catastrófica um desenvolvimento final ainda mais perverso, o fato

de o público servir corriqueiramente não apenas a tiranos, mas a qualquer um que se proponha

a usar do público para o privado, desvirtuando o primeiro para favorecer o segundo de modo

impune; se o cidadão, inicialmente, recorre aos amigos bem situados procurando “proteção”

ou “favores”, termina alcançando sem obstáculos

uma posição de importância que passa a ser temida pelos demais cidadãos e mesmo pelas próprias autoridades. A partir de então, o mal já está de tal forma enraizado que, não tendo havido oposição a que até tão longe se chegasse, é perigoso extirpá-lo – ou se corre o risco da ruína [isto é, de uma revolta política, um levante contra o Estado ou uma guerra civil] ou se curva o povo ao jugo de uma inevitável servidão. [...] Se o cidadão comum ou a autoridade treme diante de um de seus pares, receando ofendê-lo, ou ofender a um de seus amigos, não está distante o momento em que a justiça será distribuída ao sabor dos caprichos93.

Por isso que se fala em cidadania civil e em cidadania política: se, em paralelo à vida

privada e à vida pública, uma dualidade típica da sociedade civil (que, ao mesmo tempo, é a

dimensão da individualidade e da convivência gregária), existem o indivíduo e o cidadão na

mesma figura do sujeito, que, assim, é privado e público ao mesmo tempo, é porque tanto a

cidadania civil quanto a política são cidadania: se a individualidade está ameaçada, discute-se

sobre os limites da atuação do indivíduo que a viola ou do próprio Estado que age contra ela;

se, ao contrário, a legitimidade das decisões coletivas está em xeque, isto é, quer-se saber se a

atitude estatal tem amparo na vontade dos cidadãos, temos uma discussão acerca da cidadania

política. Elas não se excluem, mas se articulam para ser uma unidade – e daí a dificuldade,

muitas vezes, de definir cidadania em compêndios de Direito e Filosofia do Estado.

O sujeito social, ou em sociedade, pode ser, é ou termina sendo, portanto, indivíduo e

cidadão, seja simultânea, alternativamente ou sucessivamente, a depender, claro, do que é

92 Id., ibid.. p. 11. 93 MAQUIAVEL. Comentários sobre a primeira década de Tito Lívio. 5. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2008. p. 147-148.

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suscitado e da necessidade que a vida em sociedade apresente. Não é à toa que essas 02 (duas)

dimensões do sujeito são contempladas pelos assim chamados direitos de primeira geração:

tanto os direitos negativos quanto os direitos políticos fazem parte de uma compreensão que

permeia todo o Iluminismo.

Não surpreende, então, embora também não deixe de interessar, que o Iluminismo não

só precede, mas molda, o Constitucionalismo: partindo dos pressupostos metodológicos da

livre pesquisa e da racionalidade, os filósofos e teóricos da transição da Idade Moderna para a

Idade Contemporânea conseguiram notar que a sociedade civil precisava de uma justificação

(ainda que metafórica, isto é, o contrato social) para existir, que essa justificação terminava

por legitimar o poder político estabelecido (já que terminava definindo também limites e

funções da autoridade) e que, por causa disso, precisava ser elaborada e revisitada, sob pena

de, no descaso com esse tema, abrirem-se portas para a arbitrariedade e se violar, assim, o

direito do indivíduo, que estará sujeito a tiranias, e o direito do cidadão, que não terá mais voz

nem vez nas deliberações de interesse público. E, no fim, apesar de toda a literatura sobre a

área muitas vezes não deixar transparecer isso à primeira vista, o Constitucionalismo é uma

resposta prática a tais considerações filosóficas: um movimento que defendeu a necessidade

de se limitar e se legitimar o poder estatal – por escrito.

Passemos, então, à análise de como esse tema foi absorvido pelo Direito.

4.2 De como a categoria “direitos” se firmou dentro da tradição jurídica a partir do fim

da Idade Média – e de como um acerto entre cavalheiros inspirou o contrato social a

que chamamos Constituição

Se Roma foi o primeiro esplendor civilizatório do Direito entre as civilizações de que

se tem notícia, pouco do que nela havia sobreviveu para vigorar durante a Idade Média – e

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menos ainda sobreviveu até a Modernidade. A descentralização geográfica, a galvanização da

religião e a explicação puramente transcendental dos eventos ordinários e extraordinários da

vida social, típicas do feudalismo, tornaram prescindível haver um sistema jurídico unificado,

laico e autônomo – pelo menos para o homem medieval. Entretanto, como tudo na vida são

circunstâncias (e como nada mais mutável que elas), a necessidade de se conseguir o mínimo

de segurança jurídica, face às corriqueiras desavenças entre os barões feudais e/ou entre estes

e a realeza, ressuscitou uma vetusta instituição romana: o contrato. Afinal, quando João-Sem-

Terra e os nobres bretões resolveram acertar entre si o que se chamou, com a opulência que a

ocasião ensejava, de Magna Carta, fizeram-no através de contrato – e não de uma declaração

ou um estatuto, por exemplo94.

As regras medievais para a composição oficial de conflitos sociais relevantes eram, de

fato, e para dizer o mínimo, precárias. Deixavam a desejar no quesito segurança jurídica, por

serem de uma singeleza quase angelical: enquanto as ordálias ou juízos divinos resolviam as

causas criminais mais complicadas e o habitual apelo ao misticismo conduzia as várias outras

questões públicas, a racionalidade, quando eventualmente convocada para aplicação prática,

não era de maneira alguma garantista ou humanitária. A Santa Inquisição, para ficar só em um

exemplo (o melhor de todos eles, na verdade), era uma investigação privada, sigilosa e feita

por uma autoridade inquestionável – e de pouco adiantavam os argumentos da razoabilidade a

respeito das conclusões a que chegavam os ministros da fé. Da mesma forma em relação ao

94 Vê-se que, na experiência histórica da humanidade, o contrato muitas vezes serviu a uma finalidade protetiva, enquanto serviu a lei a interesses privados. Além disso, do ponto de vista lógico-jurídico, formatar o documento como contrato não impede, a priori, que ele trate de natureza pública, isto é, de direitos de natureza indisponível. De toda sorte, precisamente por conta da curiosa resistência a se pensar Direito Público e Direito Privado com a proximidade que têm entre si, vale a pena a comparação entre a Declaração de Independência e a Constituição americanas, já imbuídas de um formato e de um espírito públicos, e a Magna Carta – um típico contrato inter partes. A semelhança de propósitos e efeitos, apesar da diferença de gênero textual, impressiona. Sobre o rico contexto histórico que levou as colônias norte-americanas a publicizar o constitucionalismo (DRIVER, Stephanie Schwartz. A Declaração de Independência dos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006). É curioso notar que o raiar do Direito Constitucional, o ramo de Direito Público por excelência, sobre o qual todos os demais ramos publicistas se fundam, terminou contando com uma fonte romana e privatista para começar a criar suas próprias bases – o contrato; e que, ainda por cima, foi a preocupação primordial com a segurança jurídica e os direitos individuais que guiaram a formação da Magna Carta e das demais constituições que também surgiriam por todo o Ocidente com o passar do tempo.

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poder temporal: exercido através de iniciativas voluntaristas, circunstanciais e eventualmente

caprichosas, a autoridade real estava longe do que consideramos hoje como equidade, justiça

e eficiência em políticas públicas de qualidade.

Ora, essa organização do exercício do poder em sociedade não favorecia a segurança

jurídica nem os direitos individuais; basear-se na honra ou fiar-se na palavra dada, apesar de

terem sido práticas corriqueiras, não eram, por isso, mais eficientes; e, consequentemente, a

necessidade de se obter outro tipo de garantia, mais concreta, exigível e, portanto, confiável,

das obrigações firmadas marcou o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna. Surgia,

portanto, para o Ocidente, uma nova configuração do Direito, em parte associada ao universo

da Antiguidade, mas, de toda forma, de molde inédito, dando início a uma nova fase histórica

para o raciocínio jurídico – que iria progressivamente caminhar para a fixação de regras claras

e universalmente aplicáveis (o império da lei), e, ainda, para a percepção de que a convivência

social dependia de um estabelecimento de regras mínimas pelas quais tanto o sujeito pudesse

ser respeitado como individualidade, quanto ouvido como participante daquela comunidade –

isto é, dependia do estabelecimento oficial de um “contrato social”.

A Magna Carta surgiu, então, como um acerto de cavalheiros, mas com o poder de

fazer a palavra dada algo exigível, isto é, sendo um instrumento coercitivo que fazia daquela

promessa formulada uma dívida no sentido mais pleno – criando a obrigação de cumprir o que

fora acertado, sob pena de ou se usar a força para tanto se conseguir, ou utilizá-la para resistir

legitimamente diante da “injustiça” da cobrança. Ora, o contrato sempre fez lei entre as partes

desde os romanos, mas, dessa vez, mais ainda, pois o resultado do acerto foi o rule of law (a

regra da lei), que ampliava o mero alcance do pacta sunt servanda; afinal, se, antes, o contrato

romano era eminentemente patrimonial mesmo quando não tratava direta e especificamente

de patrimônio (“bens”), isto é, quando disciplinava, por exemplo, sobre a perda de liberdade

do devedor inadimplente como mais uma modalidade de multa pelo inadimplemento, após

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assinada a Carta Magna entre os milordes, as cláusulas ganharam dimensões mais gerais, de

feição quase (ou totalmente) principiológica: valia o assinado, claro, mas, a partir de então,

dados os termos do que fora assinado e do alcance do que ficara consignado, ninguém mais

poderia ser genericamente despojado da vida, liberdade e/ou propriedade, nem submetido a

arbitrariedade, a não ser de acordo com a law of the land (regra da terra).

Também merece destaque a paulatina, mas inexoravelmente progressiva generalização

dos termos do acerto: com o tempo e, claro, o uso de outras ferramentas jurídicas cabíveis, o

Parlamento, na qualidade de representante investido pela Nação, terminaria por protagonizar a

soberania da Bretanha, equilibrando forças e repartindo responsabilidades com o rei – o que

implica dizer que, além de tratar de cláusulas não necessariamente patrimoniais, e além de dar

uma nova dimensão ao pacta sunt servanda, gerando o law of the land, o trato firmado entre

os nobres ingleses naquele ano de 1215 inspirou mais; inspirou superar a vinculação exclusiva

do contratante aos termos do contrato, permitindo que, dali em diante, a pretensão fosse de ter

“contratos” vinculativos de toda a comunidade social, inclusive do poder estatal. Procurava-

se, assim, ainda que de maneira incipiente, os caminhos da Constituição.

Sim, da Constituição.

Mas como? E por quê?

Ora, como o acordo firmado entre rei e nobreza séculos atrás inspirou mudanças para

além das fronteiras bretãs com o passar do tempo, permitindo que conceitos tais como rule of

law, law of the land e due process of law se tornassem universais (para a literatura do Direito)

e (ao mesmo tempo) princípios basilares de uma nova organização do poder (face ao Direito

Positivo) ao redor do mundo, vinculando, sistemática e claramente, a autoridade e os cidadãos

ao respeito aos direitos individuais e a um procedimento prévio de aplicação, sempre com

base em um instrumento escrito específico para isso, esse instrumento terminou por se refinar

para abandonar a couraça privatista original e se tornar fonte legitimadora do ordenamento

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jurídico nas civilizações ocidentais posteriores; em uma palavra, de uma espécie de contrato

ressurgida da herança romana, configurou-se o que chamamos “Constituição”, um “contrato

social" firmado na oficialidade constitutiva do poder culturalmente reconhecido, isto é, na

base organizacional legítima da sociedade civil, que traduz uma expressão comunitária do

agrupamento gregário socialmente indiviso e politicamente organizado95, 96.

Assim como o Constitucionalismo não surgiu do nada, mas derivou do Iluminismo na

qualidade de braço político-jurídico desse movimento, o documento Constituição também não

apareceu de maneira gratuita no devenir histórico, assomando como uma ferramenta jurídica

amadurecida a partir da recuperação conceitual da figura antiga do contrato e da concomitante

especulação filosófica sobre a formação da sociedade civil; ela veio designada para cumprir o

propósito específico e inadiável, típico da efervescência da contemporaneidade que sucedeu o

Antigo Regime, de instituir o conteúdo mínimo do Direito em um formato oficial privilegiado

– substituindo, assim, a tradição como fonte de legitimidade dentro do ordenamento social, e

95 Essa mesma garantia processual, com o passar do tempo, seria paulatina e progressivamente maturada na Inglaterra a ponto de se tornar a referência para todo o ordenamento principiológico relativo aos procedimentos legais, e ainda seria “exportada” para os Estados Unidos da América, onde a concepção seria batizada de due process of law (devido processo legal). A rule of law é uma matriz comum que remete ao governo das leis e não ao governo dos homens, para utilizar a célebre distinção conceitual de Aristóteles. Da mesma forma que o rei inglês se comprometia, mediante a assunção dessa cláusula, a respeitar o direito de seus súditos, os governantes do outro lado do Atlântico encontrariam no “império da lei” o freio moral e legal mais do que necessário a limitar o desempenho do poder estatal. O law of the land sempre foi muito mais das tradições hereditárias do universo bretão, o que não se verificou no continente americano, que, inclusive, só se emancipou quando essas mesmas tradições já eram antigas no mundo europeu. Por conseguinte, o due process of law que tomou seu lugar e delineou o cabível e o não cabível (ou o razoável e o abusivo) nas cortes estadunidenses, e sempre a partir não de tradições ancestrais, mas de conflitos de interesses submetido a apreciação. A definição dos institutos e sua diferenciação através da História pode ser encontrada nos verbetes due process of law e rule of law do Dicionário da cultura jurídica (ZOLLER, Élisabeth. Due process of law. In: ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane (Org.). Dicionário da cultura jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 632-634 e ZOLLER, Élisabeth. Rule of law. In: ALLAND, Denis; RIALS, Stéphane (Org.). Dicionário da cultura jurídica. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 1610-1613). A importância da principiologia e da jurisprudência na dinâmica cotidiana da common law também se sobressai na exposição que faz o Introdução ao sistema jurídico anglo-americano, de Toni Fine (FINE, Toni. Introdução ao sistema jurídico anglo-americano. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011). 96 Não é à toa que Jürgen Habermas, no século XX, formulará o Direito como uma área em que o patológico e o emancipatório se encontram, isto é, o Direito é essa “instância mediadora entre sistema e mundo da vida”, que ocupa uma posição de “dobradiça” entre os dois e, de um lado, se torna “a voz da administração e do sistema, em que norma e sanção são inseparáveis uma da outra, ou seja, em que o Direito aparece como coerção, ainda que coerção legítima. De outro lado, o Direito é expressão, simultaneamente, de um processo de formação coletiva da opinião e da vontade, sem o qual seria apenas um estabilizador de expectativas de comportamento e não a expressão da autocompreensão e da autodeterminação de uma comunidade de pessoas de direito que ele também é” (NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo. Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 15-35, p. 27).

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se colocando ainda na posição de fonte primária do Direito naquelas sociedades iluministas

que passaram pela revolução, isto é, pela superação do Absolutismo (os exemplos da América

do Norte e França são o destaque de sempre). Daí se falar em uma primazia inclusive histórica

do Direito Constitucional sobre as demais disciplinas ministradas na graduação do bacharel

em Direito; ele, ao estudar a Constituição e a tradição a respeito dela, estuda a única dentre as

matérias que trata exclusivamente de uma criação contemporânea, que não apenas representou

a superação do obsoleto, mas a instauração do novo97.

E isso porque essa espécie de concretização histórica do pacto abstrato e hipotético

conhecido como contrato social é de inspiração diferente, (re)fundadora do Direito Público: se

antes o que era público era estatal, sem distinção entre um termo e outro, como em Roma, ou

se antes o que era público se confundia com os caprichos de um monarca que personificava e

exauria a dimensão do Estado, sendo ele mesmo a França, e a França, ele mesmo, a partir das

revoluções iluministas, o que começara na Inglaterra como um acerto entre cavalheiros, mas

com força vinculante, transformou oficialmente o conceito de “ser público”: passou a ser tudo

que atinge, ou pode atingir, a sociedade civil, ou seja, passou a ser público tudo aquilo que

atinge a vigência, extensão ou conteúdo do contrato social, dizendo respeito à massa indistinta

de cidadãos que convivem na comunidade sob aquele alcance. Consequentemente, conceber

que efetivamente existe uma dimensão coletiva (formada por unidades individuais, mas que,

ao mesmo tempo, é mais e diferente do que a simples soma aritmética delas) e designar essa

dimensão como a dimensão do público abre novos espaços dentro do Direito e, de um modo

97 Jean-Jacques Rousseau, poeticamente, chega a descrever que não desejaria mais que “nascer num país onde o soberano e o povo não pudessem ter senão um único e mesmo interesse, a fim de que todos os movimentos da máquina [do Estado] jamais tendessem senão à felicidade comum; como isso não pode ocorrer, a menos que povo e soberano sejam a mesma pessoa, segue-se que eu desejaria nascer sob um governo democrático, sabiamente equilibrado. Desejaria viver e morrer livre, isto é, submetido de tal maneira às leis que nem eu, nem ninguém, pudesse sacudir esse honroso jugo, jugo salutar e suave que as cabeças mais altivas suportam com docilidade quando não foram feitas para suportar nenhum outro” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2014. p. 22).

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mais amplo, na Teoria Política ou na Teoria do Estado como um todo – pois tanto o conceito

de Democracia quanto o de República serão, a partir daí, recuperados98.

Em resumo, nem que seja para se pensar um Estado mínimo desde então, a partir das

revoluções iluministas, passa-se a pensar de maneira diversa tanto a sociedade quanto (claro)

o Estado, que passa a ser visto como o resultado de um acerto que inaugurou a vida gregária,

a sociedade civil, que vai também paulatinamente se estabelecendo como mais do que a mera

soma dos cidadãos que a compõem99. O regime de Direito Privado não dá conta dessa nova

forma de pensar a realidade, devendo, a partir de então, encarar-se de nova forma não apenas

a sociedade civil e o Estado, mas a pessoa e o Direito – pela simples razão de que, da mesma

forma como repensar a sociedade civil é (fatalmente) repensar o Estado, repensar a pessoa é

(também) repensar (necessariamente) o Direito. Afinal, se uma sociedade civil regida por um

pacto constitutivo precisa de um Estado que assegure e respeite esse pacto, da mesma forma

um Direito que seja elaborado e ordenado por pessoas donas de seus próprios destinos clara e

indiscutivelmente muda de feição; deixa de ser um mero acerto patrimonial ou um capricho

real para ser mais do que vinha sendo até então.

Essa é uma das grandes conquistas do Constitucionalismo, embora geralmente seja um

tanto quanto ignorada: a pessoa até então era tratada como propriedade ou súdito, isto é, não

era representada tal como a conhecemos hoje, não sendo, então, um misto de “indivíduo” e

98 Para Thomas Jefferson, o comportamento do sujeito como cidadão que fazia da comunidade política uma república – a partir daí, inclusive, seu respeito pelo que se chama de free marketplace of ideas, isto é, não apenas a autorização para que cada um exponha seu ponto de vista publicamente, mas mesmo a recomendação de que não deixe de fazê-lo, sob pena de se tornar um sujeito sem voz nem vez na arena comum de debates (JEFFERSON, Thomas. Writings. New York: Library of America, 1984. p. 493). Essa visão de mundo parece ter contribuído em muito para que os Estados Unidos da América se tornassem uma nação economicamente bem-sucedida e politicamente madura; a liberdade de pensamento e expressão parece ter criado uma identidade comum voltada para o futuro. Segundo Eduardo Giannetti, ao contrário “dos países do Velho Mundo e dos povos hispano-americanos com robustas e milenares culturas pré-colombianas, os Estados Unidos foram um credo e um projeto, formalizados tanto pela Declaração de Independência de1776 quanto pela Constituição de 1789, antes de serem uma nação. A então nascente república estadunidense não se definia por um passado comum ou por raízes compartilhadas, mas pela visão prospectiva de uma sociedade ideal – em resumo, pelo que aspiravam a ser” (GIANNETTI, Eduardo. Trópicos utópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. p. 142). 99 “[...] há muita diferença entre a vontade de todos e a vontade geral; esta se refere só ao interesse comum, enquanto a outra diz respeito ao interesse privado, nada mais sendo que uma soma das vontades particulares. Quando, porém, se retiram dessas vontades os mais e os menos que se destroem mutuamente, resta [...] a vontade geral” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato social: princípios do direito político. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 37).

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“cidadão”, isto é, de unicidade a ser respeitada e de voz ativa a ser escutada. Isso, obviamente,

ficou para trás com os processos revolucionários iluministas da América do Norte e da França

e a pessoa passou a ser respeitada e ouvida. Em outras palavras, algo antes sem importância

nem significado virou simbólico (do ponto de vista cultural e filosófico) para terminar se

tornando oficial no campo jurídico, isto é, exigível pelo viés do Direito. Daí porque, inclusive,

encontra-se no estatuto do Estado de Direito o espectro da República, pois são a cidadania

civil e a cidadania política que garantem à individualidade uma personalidade jurídica – e por

aí se observa, em meio ao universo simbólico da cultura, a força revolucionária das idéias100.

Falar em força revolucionária das idéias no processo histórico e em universo simbólico

da cultura é dar ensejo, também, a especificar por que se deve trabalhar a Constituição (na

verdade, o Direito Constitucional, de maneira geral) em outra esfera de profundidade, mais

profunda em relação à demais áreas do Direito (como Civil ou Penal, por exemplo). Afinal, se

a ciência lato senso recupera seus modelos técnicos da Biologia e da Física, se esse modelo é

usado para organizar o estudo dos demais ramos do Direito, e se essa ciência técnica, apesar

de ter conseguido dominar a Natureza e esquematizar os processos mentais de cognição por

assimilação, não conseguiu, entretanto, explicar a Cultura, pois a Cultura é exatamente o reino

do simbólico, reino no qual orbita a Constituição, ela, Constituição, precisa ser abordada em

outra profundidade para ser entendida como um conceito técnico que dá base e ordem ao

ordenamento jurídico, mas também como significado que permeia a sociedade civil a que se

100 O ser humano é metafísico no sentido de ser mais do que biológico, ou seja, ele é simbólico, um ser que só vive se atribui sentido à vida através da experiência entre os seus iguais mediada pela razão; a representação que temos e fazemos do mundo é um dado antropológico fundamental; somente por ela que nos diferenciamos das demais espécies animais, que exercem todas as demais funções fisiológicas humanas, inclusive a de ligar causa e conseqüência – o que chamamos racionalidade parece ser mais um critério quantitativo que qualitativo de diferenciação entre as espécies (LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 1986. p. 09-63).

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dirige – isto é, ela precisa ser estudada técnica, mas eticamente, jurídica, mas historicamente,

e pragmática, mas filosoficamente101, 102.

E isso porque levar tudo ao status científico é importante do ponto de vista pragmático

para a ciência moderna, que costumeiramente se pretende (e, em certa medida, deve mesmo se

pretender) utilitária; mas não se pode querer que essa mesma ciência moderna tenha o sublime

poder demiúrgico de resolver tudo. Não é possível dizer qual é o sentido da vida, a escolha

ética a se adotar, ou o que é justo ou injusto com base exclusivamente em dados, abrindo mão

de uma discussão sobre valores, isto é, sobre o universo simbólico ou o universo da Cultura.

A ciência, ao revés, é ela mesma a forma mais radical de

renúncia à pretensão de atribuir ao mundo um sentido. Pois seu objeto é o universo dos sentidos, e não o do sentido. O verdadeiro procedimento científico é o que deixa de lado o porquê das coisas para tentar compreender o como. Ele se veda explicar as coisas que estuda por uma finalidade suposta, por um “espírito” que teria sido depositado nelas, para as explicar somente pelo jogo das leis que governam a matéria. Ele permanece nessa postura mesmo quando se pronuncia sobre a origem primordial das coisas. A hipótese do big bang pode até explicar como, mas nunca por quê, adveio o universo, e se distingue assim radicalmente das narrativas de origem que, em toda religião, dão sentido à condição humana103.

Ao contrário, o estudo da Filosofia do Direito, da Teoria Geral do Direito e do Direito

Constitucional, precisa, necessariamente, de um sentido; essas disciplinas, seja por si mesmas, seja

pela sua conexão com a Ética e a Metafísica, não permitem uma experiência anômica do sujeito

com o mundo, nem delas, disciplinas, com o sujeito. E se, depois das experiências do Iluminismo e

da superação do Antigo Regime, um novo continente intelectual se descortinava – o da sociedade

civil em que o público é de relevância coletiva e o sujeito é simultaneamente indivíduo e cidadão –

101 Terreno em que só pode levar à anomia ou à dominação. Se ontem, as leis da História ou da Raça alienavam à esquerda e à direita, atualmente, as da economia e/ou as da genética podem levar ao mesmo disparate (SUPIOT, Alain. Homo juridicus: ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007). 102 De certa forma, – o que, de certa forma, se repete quando se fala em estudos constitucionais (que precisam de uma abordagem quanto ao que significam a Constituição e as questões constitucionais para os integrantes da sociedade civil), o que não acontece quando se fala em outras áreas do Direito (ressalvadas as exceções que confirmam a regra, obviamente, especialmente no caso do Direito Penal). Por aí se pode dimensionar a importância do estudo das Ciências Humanas (visto que são, grosso modo, o estudo do simbólico) no quadro da pesquisa científica, e também (pela mesma razão) do Direito Constitucional dentro das ciências jurídicas. 103 SUPIOT, ibid., p. 7.

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essa nova formação tectônica de envergadura filosófica exigia, como exige até hoje, um sentido para

a vida, individual e em comum. Se, no plano comum, viver a experiência republicana e democrática

investe de sentido a coletividade, que passa a decidir o que pretende para a comunidade (daí a

importância simbólica de que até hoje se reveste o dia das eleições), no plano individual, insurgir-se

contra o Absolutismo tinha, claro, um sentido – que, por sua vez, é muito bem traduzido pela

criação de uma nova categoria conceitual dentro da seara jurídica: os “direitos”104.

Do ponto de vista científico, isto é, buscando um conceito lógico-formal que permita a

distinção entre o objeto de estudo intitulado “direito” e o restante do universo conhecido para

fins de estudos jurídicos, pode-se dizer, pelo menos para essa área de estudos, que direito é a

prerrogativa de exigir uma situação jurídica ou uma prestação material de outrem, inclusive

de maneira coercitiva e oficial, se for o caso. Em outras palavras, o direito se define, claro,

por seu conteúdo, mas se distingue por uma efetiva capacidade de exigir, lícita e se for o caso,

forçosamente, o seu conteúdo. O que não pode ser exigido não pode ser considerado direito,

pelo menos não para a área de estudos jurídicos. Por via de conseqüência, o dever se define a

partir da obrigatoriedade de contrapartida em relação ao direito, isto é, o dever faz do devedor

da questão alguém que pode ser sujeitado à força a admitir a situação jurídica pleiteada ou a

cumprir a prestação material reclamada. E, em assim sendo, percebe-se que direito e dever, na

forma de ver que o Iluminismo disseminou após a consumação das revoluções que inspirou,

se desprenderam da figura do seu sujeito titular para existir, tomando existência autônoma –

em outras palavras, há direitos e deveres independentemente de se tratar de um monarca, de

um nobre, de um burguês ou de um plebeu105.

104 O que permite concluir que o Direito (uma manifestação antropológica) e o sujeito (uma construção sócio-histórica) surgiram antes do Estado centralizado tal como o conhecemos (que não passa de um arranjo político); assim, problematizar, construir e legitimar o poder, de maneira inescapável, será sempre uma dinâmica social. É a visão, dentre outros teóricos, de Jürgen Habermas (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2, p. 57-190). 105 Essa é uma apropriação concreta do sentido simbólico da individualidade, pois, caso se negue a um sujeito de direito a pretensão que lhe cabe quanto ao direito que titulariza, percebe-se que o resultado final dessa falta de sentido serão conflito, a violência e a morte, isto é, não posso admitir o indivíduo como unidade autônoma e, ao mesmo tempo, não preservar sua individualidade, sob pena de cair em uma contradição insanável.

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Esses direitos, ainda que não todos fundamentais, isto é, nem todos reconhecidos no corpo

constitucional de maneira propriamente dita, passaram a ser de observância obrigatória dentro do

ordenamento jurídico, regulamentados solenemente por uma ferramenta formal (a lei) e, claro, a

lei passou a ser vista como um elemento oficial (também) de proteção, isto é, como garantia do

cidadão. Ora, não é difícil recuperar que o sentido garantista da legalidade foi só o primeiro passo,

ou o passo inaugural, para a superação da arbitrariedade no fazer-histórico do poder, e que a esse

passo se seguiria um outro, o do ordenamento jurídico como um todo harmônico, coerente e

íntegro de normas jurídicas que dialogam entre si para formar uma rede de amparo completa para

a vida em sociedade106. Esse raciocínio é de uma lógica inegável e está relacionado a se conceber

uma sociedade civil regulada por consentimento dos governados; afinal, as normas passam a ser

definidas como enunciados condicionais que vinculam certas circunstâncias factuais (‘casos’ou ‘fatispécies’) a determinadas consequências jurídicas (soluções). Além disso, as normas são entendidas como expressões linguísticas, portanto, como enunciados significantes, isto é, dotados de um significado definido e constante. Consequentemente, a sistematização do direito consiste na solução dos casos genéricos mediante a derivação das consequências lógicas do conjunto de normas jurídicas. Cada eventual reformulação do sistema jurídico segue sempre a identificação e a delimitação dos enunciados de base axiomática. Ademais, a noção de sistema como conjunto de normas que mantêm certas relações entre si permite redefinir de modo rigoroso os conceitos de ‘completude’ e ‘coerência’, a partir dos quais é possível obter as noções adequadas de lacuna e incoerência (antinomia) do sistema107.

Formava-se, assim, a consciência jurídica que temos hoje: seja na Constituição, seja

em atos infraconstitucionais, estipular direitos a serem respeitados, ainda que por intermédio

da ultima ratio, isto é, através da via coercitiva do monopólio da força, é aceitável, normal e

esperado em uma sociedade civil que reconhece, ao mesmo tempo, o espaço do público como

106 Essa idéia não prescindirá, no entanto, de uma visão ética do Direito, ou de um Direito que seja conforme a Justiça; ela apenas complementará a anterior, apesar de todas as discussões sobre a cientificidade da Justiça e a sua necessária indefinição para o caso concreto. Sobre o tema, vale sempre a leitura da “metáfora da moldura”, de Kelsen, para se ver que mesmo os teóricos supostamente mais alheios à “intromissão do valor” vêem essa interferência como indispensável. “Com efeito, a necessidade de uma interpretação resulta justamente do fato de a norma ou o sistema de normas deixar várias possibilidades de aplicação em aberto, ou seja, não conterem nem uma (a norma) nem o outro (o sistema) a decisão sobre a questão de saber qual dos interesses em jogo no caso é o de maior valor, mas deixarem antes essa decisão, a determinação da posição relativa dos interesses, a um ato de produção normativa que ainda será posto – a sentença judicial, por exemplo” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 392). 107 FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 58.

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o espaço do que diz respeito a todos e, ao mesmo tempo, reconhece o sujeito como indivíduo

e cidadão; passa a ser teratológico o oposto, isto é, viver em um agrupamento que não formula

as próprias leis autonomamente, isto é, não há cidadania exercida pelo sujeito envolvido; que

não tem direitos básicos a proteger (inclusive da força das leis, se arbitrárias), porque o sujeito

não é reconhecido como indivíduo; que não reconhece aplicabilidade ou autoridade às leis e

que não tem a quem recorrer quando a ilicitude acontece, seja porque o Judiciário não existe,

seja porque existe, mas não funciona – isto é, uma sociedade que não vê no espaço público

uma área de comum interesse que a todos diz respeito, valendo leis para uns e não para outros

e não havendo, quando isso acontece, a quem recorrer para tentar desfazer esse malfeito.

A teratologia pode até ter sido uma infeliz realidade para boa parte das comunidades

nacionais ao redor do globo através da História, como no caso dos totalitarismos europeus do

Século XX, mas continuou uma teratologia, uma universal e indesculpável teratologia, como

lembrava Hannah Arendt, que relata essa perda de referencial quanto ao simbólico, ao cultural

e ao sentido que se deve emprestar à humanidade reportando o que se soube da reunião da

cúpula nazista para a definição da “Solução Final” dos judeus:

A discussão voltou-se primeiro para as ‘complicadas questões legais’, como o tratamento a ser dispensado àqueles que eram meio ou um quarto judeus: eles deveriam ser mortos ou apenas esterilizados? Em seguida, houve uma discussão franca sobre os ‘vários tipos de solução possível para o problema’, o que queria dizer os vários métodos de matar, e aqui também houve mais que ‘alegre concordância entre os participantes’; a Solução Final foi recebida com ‘extraordinário entusiasmo’ por todos os presentes e o ponto principal, como Eichmann corretamente observou, era que os membros dos diversos ramos do serviço público não se limitaram a expressar opiniões, mas fizeram propostas concretas. A reunião não durou mais que uma hora, uma hora e meia, depois do que foram servidos drinques e todo mundo almoçou [...] Para Eichmann, conforme seu próprio relato, aquela foi uma ocasião importante, pois nunca antes havia tido contato próximo com tantos ‘altos personagens’ disputando e brigando entre si pela honra de assumir a liderança dessa questão ‘sangrenta’. ‘Naquele momento’, ele recordou, ‘eu tive uma espécie de sensação de Pôncio Pilatos quem seria eu para ter idéias próprias sobre o assunto?’ [...] Bem, ele não seria o primeiro nem o último a ser corrompido pela modéstia108.

108 ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 129-130.

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Ora, como já dito acima, se a ruptura iluminista implementou, ou pelo menos tentou,

uma nova forma de sociedade civil, pautada por um espaço público guiado pelo que interessa

a todos e por uma concepção de sujeito que pode e deve se mostrar como indivíduo e cidadão

ao mesmo tempo, e se essa nova pauta filosófica de pensamento se fundava na prevalência da

racionalidade contra a tradição, deixando para trás a arbitrariedade e o capricho em prol de

um novo rumo, simbólico, cultural, à procura da construção de sentido para cada ser humano,

a experiência nazi-fascista e nacional-socialista do século XX talvez tenha sido a maior das

ameaças que enfrentou essa tendência histórica; mas, de toda sorte, superado ou meramente

adormecido esse fantasma, incorporou-se ao significado de Direito algo que talvez nunca

devesse ter sido secundarizado – a sua vinculação com o conceito de Justiça, isto é, de uma

correção material do âmbito da legalidade por um critério ético.

Essa foi outra conseqüência inescapável da incorporação dos “direitos” ao repertório

de conceitos da área jurídica: ora, se o Estado reflete a sociedade civil que o alberga e o poder

que se exerce na oficialidade indica o olhar que se tem sobre os sujeitos na vida em sociedade,

e se o conceito de “direitos” veio justamente de uma evolução filosófica a respeito do que se

pode ou não legitimamente exigir do “homem comum”, seria absolutamente necessário, mais

cedo ou mais tarde, (re)vincular Direito e Justiça. Em uma comunidade de iguais por direito

que têm cada qual sua plêiade de garantias, e em uma experiência social em que todos podem,

pelo menos em tese, interagir com todos, gerando os conflitos que compõem a matéria-prima

do Direito, seria inescapável que, mais cedo ou mais tarde, a estipulação de leis em abstrato a

fim de reger esses mesmos conflitos fossem, por sua vez, elas mesmas problematizadas – e,

por via de conseqüência, alvo da consideração formulada anteriormente neste trabalho: a lei,

enfim, pode ser injusta?

Tanto que Alexy, mais conhecido pelos seus trabalhos sobre argumentação jurídica e

direitos fundamentais, visita exatamente o tema em um livro de título sugestivo, “Conceito e

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Validade do Direito”109, no qual, ao apresentar o problema de se conceituar o Direito, divide

em 02 (duas) as chaves teóricas que permitem uma resposta: aquelas que admitem e aquelas

que não admitem vinculação entre Direito e Moral. Ao classificar as respostas possíveis tendo

por base o critério da vinculação, o autor classifica as respostas que não admitem vinculação

entre Direito e Moral de “positivistas”, classificando as demais de “não positivistas”. Após se

deter em investigar os fundamentos conceituais de uma classe e de outra (e de averiguar que a

mera autoridade ou eficácia social é um critério absolutamente insuficiente para dizer o que é

e o que não é Direito), Alexy conclui que, atualmente, a tradição jurídica (pelo menos a que se

faz ouvir no Ocidente) unicamente admite como conceito de Direito a resposta não positivista

que, a despeito de exigir, para reconhecimento técnico de uma determinada ordem jurídica, a

eficácia global de um conjunto de leis expedidas por autoridade regularmente havida como

oficialmente competente (requisitos positivistas), exige, para a completude do conceito de

Direito, uma pretensão de correção que (pelo menos) não valide aquilo que é “extremamente

injusto”.

In verbis, a definição do autor é a de que o Direito

é um sistema normativo que formula uma pretensão à correção, consiste na totalidade das normas que integram uma constituição socialmente eficaz em termos globais e que não são extremamente injustas, bem como na totalidade das normas estabelecidas em conformidade com essa constituição e que apresentam mínima eficácia social ou possibilidade dessa eficácia sem ser extremamente injustas, e ao qual pertencem os princípios e outros argumentos normativos, nos quais se apoia o procedimento de aplicação do direito para satisfazer a pretensão à correção110.

Essa concepção vem enraizada na História Européia de maneira geral, mas em

especial (e por razões relativamente conhecidas de todos), na História recente alemã; tanto

que o autor, alemão, enfrenta a questão de frente e refere o Tribunal Constitucional Alemão

em 02 (duas) ocasiões; primeiro, no julgamento sobre a validade ou nulidade de ato jurídico

expedido com base em Lei de Cidadania do Terceiro Reich; depois, no julgamento de pedido 109 ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2011. 110 Id., ibid., p. 149.

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de indenização que supostamente teria contrariado regra expressa do ordenamento posto

alemão, apesar de ter se dado a violação de um Direito Fundamental. Sobre a lei do Reich,

disse a corte máxima que o Direito e a Justiça “não estão à disposição do legislador”, e que a

simples idéia de poder se ter um “legislador constitucional” que tudo pode ordenar “ao seu

bel-prazer significaria um retrocesso à mentalidade de um positivismo legal desprovido de

valoração, há muito superado na ciência e na prática jurídicas”. Se os atos jurídicos, apesar de

expressamente tomados com base em lei vigente aprovada pela autoridade constituída, atacam

os “princípios fundamentais de justiça de maneira tão evidente” que o juiz neles reconheça “a

injustiça, e não o Direito”, deve o magistrado declarar-lhes a nulidade111. Da mesma forma,

quando a lei não prevê a real reparação de uma lesão sofrida, especialmente quando se trata de

direitos da personalidade, ou de direitos fundamentais – o título que se dá a tal categoria de

direitos fica, inclusive, em um segundo plano – ela deve ser complementada pelo Direito

(entendido aí, ainda que de maneira indireta ou subliminar, como mais do que o conjunto total

das leis existentes). Relata o autor, transcrevendo o excerto jurisprudencial:

A vinculação tradicional do juiz à lei, um elemento sustentador do princípio da separação dos poderes e, por conseguinte, do Estado de Direito, foi modificada na Lei Fundamental, ao menos em sua formulação, no sentido de que a jurisprudência está vinculada, agora, ‘à lei e ao Direito’ (artigo 20, §3). Com isso, segundo o entendimento geral, rejeita-se um positivismo legal estrito. A fórmula mantém a consciência de que, embora, em geral, lei e direito coincidam faticamente, isso não acontece de maneira constante nem necessária. O direito não é idêntico à totalidade das leis escritas112.

E não apenas esse Direito não está necessariamente resumido nas leis como precisa ser

descoberto ou constituído, o que, claro, é tarefa do Poder Judiciário, em sua missão técnica e

ética de não apenas assegurar a garantia da legalidade e do respeito aos direitos fundamentais,

mas de impregnar-lhes de um sentido que é herdado e reelaborado a cada momento histórico e

social vivido. Ou, como termina o excerto jurisprudencial, quanto

111 Id., ibid., p. 06-12. 112 Id., ibid., 2011. p. 07.

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às disposições positivas do poder estatal, pode existir, sob certas circunstâncias, uma excedência do Direito, que tem sua fonte no ordenamento jurídico constitucional como um conjunto de sentido e é capaz de operar como um corretivo em relação à lei escrita; encontrar essa excedência de Direito e concretizá-la em decisões é tarefa da jurisprudência113.

Logo, se, como visto anteriormente, o Estado espelha a sociedade civil que o alberga e

o poder reflete o sujeito sobre o qual exerce sua dominação, e se a caracterização de direitos

como fruto de uma evolução filosófica através da História foi um grande avanço qualitativo,

desencadeando a necessidade de vincular Direito e Justiça em algum nível, se vinculados

ambos, e após essa vinculação, a “excedência” do Direito seria, também, uma conseqüência

esperada de todo o processo de desenvolvimento do universo jurídico tal como o conhecemos

agora. Afinal, a Justiça, em sua totalidade valorativa, é, de fato, inapreensível, mas, em sua

força moralmente legitimadora, simultaneamente impossível de ser ignorada no âmbito oficial

do Direito, razão pela qual verificamos, a partir daí, que esse mesmo Direito, no presente

momento, necessariamente precisa dessa “excedência” a que aludiu o Tribunal Constitucional

Alemão. Em outras palavras, ele precisa ser entendido e admitido como um sistema, sim, de

regulação social, que, como tal, tem sua segurança e firmeza na regra da lei, ou no império da

lei, isto é, na previsibilidade que oferece ao operador científico – de modo que ele possa

prever resultados através do mesmo método, a partir de novos dados; mas, ao mesmo tempo, e

para evitar o burocratismo estatista à la nazi-fascismo, esse em que valem regras e números,

mas não princípios ou pessoas, essa previsibilidade sistemática há de ser confrontada com o

inesperado, isto é, com a Justiça que deve permear o Direito. E isso em nome do singelo dado

antropológico trazido mais acima ao texto – o de que o ser humano precisa de sentido para ter

113 ALEXY, ibid., p. 10. A preocupação com a “excedência” de direito de que fala o tribunal alemão inspira uma ampla pesquisa para identificação, depuração e sistematização dessa excedência. Um compatriota dos ministros é muito bem-sucedido na tarefa: Friedrich Müller. Ao decompor a norma jurídica em texto, âmbito normativo e programa normativo (em outras palavras, e resumindo um tanto quanto a grosso modo, literalidade, contexto e objetivo programático da norma), Müller conclui que a norma jurídica regula, mas projeta, e condiciona, mas é condicionada; logo, não pode ser tomada como o alfa e o ômega, mas como um elemento a mais na estruturação do Direito. Daí porque seria necessária uma “teoria estruturante do Direito”, como ele muito apropriadamente intitula sua formulação acadêmica (MÜLLER, Friedrich. Teoria estruturante do direito. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008).

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uma vida ordenada em sociedade (e, por que não dizer, para si mesmo). A partir do momento

em que o caráter simbólico do Direito é ignorado ou secundarizado, o sentido cultural de estar

ou pertencer a uma ordem jurídica se fragmenta – e daí a conclusão de Alexy pender para uma

definição de Direito que não ignora a vinculação entre Direito e Moral.

Claro que essa vinculação é complicada em muitos aspectos, inclusive hermenêuticos,

e que a “excedência” referida pelo excerto jurisprudencial nem sempre é fruto de consenso,

seja em relação à sua existência e extensão, seja em relação ao seu conteúdo; de toda forma,

ainda é mais saudável que assim seja, e que o debate enriqueça a práxis jurídica para se saber

até onde o Direito está pronto a agir – e a partir de quando se vedam as condutas do Estado

diante do cidadão, ou de um cidadão contra o outro. Afinal, como já escreveu Dworkin, se e

enquanto “o Direito der a impressão de transformar atos de dissidência em crime, um homem

de consciência correrá perigo”. E se pode ser discutido se uma lei encerra ou não um direito

ou dever moral, quando a matéria afetar direitos políticos ou individuais fundamentais, se for

possível argumentar que o legislador, ou alguém por ele, cometeu um erro, um “indivíduo não

extrapolará os limites de seus direitos ao se recusar a aceitar a decisão como definitiva”.114

Em outras palavras, mesmo um jurista mais conservador reconhece o direito à desobediência

civil, embora não por adotar uma concepção revolucionária da ação humana, mas sim por

uma aquiescência, ainda que tácita, de que Direito e Moral estão, sim, vinculados (por mais

sutil que seja essa vinculação) e que esse vínculo entre ambos é não apenas necessário, mas

mais ainda – é imprescindível.

O próprio Kelsen, que considerava o Direito um instrumento a ser medido e avaliado

pela sua eficiência, e que ele definia como “a técnica social específica de uma ordenação

coercitiva”, sendo, pois, “organização da força”, não negou que haja valor e subjetividade na

construção e aplicação do Direito, nem que o valor venha precisamente compatibilizar a letra

114 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 315-341. A discussão em questão é o nódulo central do capítulo 08 (oito) do livro, intitulado “Desobediência Civil”.

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fria da lei com o âmbito axiológico presente em cada caso legal, isto é, em cada discussão

sobre Justiça115. Não é à toa, ainda, que Konrad Hesse tenha reconhecido o meio social como

condicionante da Constituição, mas, ao mesmo tempo, tenha discorrido sobre o efeito reverso,

isto é, sobre a Constituição como uma “força normativa”, condicionante da realidade – ou,

para usar outras palavras, como um elemento cultural e, logo, por ser cultural, dotado do

condão de ensinar sobre sentido e valor. Quando se abre mão de um Direito que vá além do

mero aspecto literal da lei e de um ordenamento que supere o conjunto legislativo editado,

corre-se o risco de não apenas pender de volta ao totalitarismo e ao abuso, mas também de

perder, no caminho, primeiro, a conquista histórica de que o Direito preside, em colaboração

com outros elementos culturais, o ministrar do sentido na vida em sociedade, e, segundo, que

essa mesma vida em sociedade se os valores que se acreditam válidos forem, à sua maneira e

de forma categórica, respeitados e efetivos116.

Assim se formaram, então, os “direitos”, vigentes em uma sociedade de cidadãos, que,

desde então, têm titularizado direitos e deveres e aprendido a conviver dessa forma, sob os

auspícios de um contrato social oficial, a Constituição, e de acordo com sua regulamentação

formal, as leis, nunca desprovidas de valor, mas nunca, também, entregues ao casuísmo e/ou à

atecnia na aplicação de seus comandos.

E o homem viu que isso era bom.

115 A preocupação de Hans Kelsen em justificar o Direito como instrumento a partir da eficiência é um mérito teórico da abordagem conceitual que ele desenvolve, segundo Nicola Abbagnano, que indiscutivelmente aceita como imprescindível a vinculação entre Direito e Justiça como algo incontornável, mas que enaltece o espírito científico kelseniano porque “o que se espera de uma técnica, qualquer que seja ela, é que seja eficiente. [...] É claro que a condição fundamental para que uma técnica conserve sua eficiência e a aumente é a retificabilidade da própria técnica. De fato, quando uma técnica qualquer pode ser oportunamente modificada e adaptada às circunstâncias, sem mudar substancialmente, conclui-se que é capaz de conservar e incrementar sua eficiência” (ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. p. 287-288). 116 Essa legítima preocupação se sobressai especialmente na literatura jurídica alemã (por razões óbvias) e, de todos os exemplos, o mais marcante é, sem dúvida, a palestra sobre a força normativa da Constituição – Konrad Hesse elegeu essa ferramenta oficial para viabilizar sua defesa de um Direito mais humano (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. In: MENDES, Gilmar Ferreira et al. (Org.). Temas fundamentais de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 123-146).

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5 DE UMA CRÍTICA HABERMASIANA AO PROCEDER JUDICIAL: PARA QUE

SE TENHA LEGITIMIDADE NA LEGALIDADE

Além das questões intrínsecas à decisão tomada no Recurso Especial n 1.418.593 MS,

isto é, além das questões atinentes à fundamentação adotada e à omissão detectada, é preciso

avaliar a metodologia de trabalho da corte superior como instância decisória; é fora de dúvida

que tem competência para a resolução da matéria, tanto nos termos do ordenamento jurídico-

constitucional (isto é, competência no sentido de titularidade sobre aquela específica matéria

dentro do panorama da jurisdição) quanto também no sentido de ter competência técnico-

conceitual (isto é, habilidade intelectual para solucionar a causa satisfatória e adequadamente

– o currículo acadêmico de ministros certamente atesta nesse sentido). Mas a metodologia de

um órgão de jurisdição se resume a isso, ter atribuição de competência e diplomação técnica?

Aparentemente, não, porque o Direito, e (por conseqüência) o exercício forense dele derivado,

parece ir além do “cientificismo”, no sentido asséptico (ou melhor, irreal) que habitualmente

se empresta a esse termo (de consistir em uma análise mecânica de uma realidade objetivada)

– e porque toda construção de saber é, em maior ou menor grau, fruto não de um mecanismo

físico de causa e efeito, mas um resultado de interação social117.

Explica-se.

Costuma-se pensar que a prática do jurista é uma prática de investigação e ausculta: ao

utilizar as ferramentas adequadas e ter o olho clínico necessário, ele conseguirá descobrir um

Direito pré-formatado, dado e pronto, à disposição para aqueles que, estudiosos, inteligentes e

117 Segundo pensadores abalizados da antropologia social, o cientificismo é, inclusive, incapaz de apreender o que se chama de fenômeno humano, já que ele transige com a falta de sentido, isto é, com a assimilação dos dados coletados desconsiderando o contexto em que foram produzidos, ou o sentido que se pretende emprestar, de uma maneira ampla, à ação do homem sobre a natureza: nesse sentido, Claude Lévi-Strauss, que chegou a afirmar que entre o cientificismo e o pensamento mágico (entendido aí como o pensamento que não se funda em relações de causa e efeito explicadas pelos diversos ramos da Física Clássica), é o pensamento mágico que evita ser “apenas o prisioneiro de fatos e de experiências que incansavelmente põe e dispõe para lhes descobrir sentido; ele é, ao revés, libertador, por protestar contra a falta de sentido com a qual a ciência, a princípio, se permite transigir” (LÉVI-STRAUSS, Claude. O pensamento mágico. 6. ed. Campinas: Papirus, 1989. p. 37-38).

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empenhados o bastante, tiverem a habilidade necessária para entendê-lo no suave sussurro que

seletivamente endereça aos iluminados. Mas pode ser que ele, Direito, não seja só a oitiva de

uma voz milenar que transparece em um ordenamento, nem muito menos pode ser que esse

ordenamento seja a coalização integrada de normas jurídicas harmônicas que não precisam de

qualquer atitude humana para serem o que são. Em outras palavras, pode ser que o Direito não

seja apenas algo a ser descoberto pelo exercício de uma prática jurídica de decodificação, mas

seja também fruto dessa prática, isto é, seja construído por ela, que só efetivamente se realiza

quando agrega a uma dada tradição estabelecida novos conhecimentos válidos sobre o objeto

de estudo – no caso, a norma e o ordenamento jurídico118, 119.

Assim é, na verdade, com toda experiência social, como lembra Pierre Bourdieu sobre

os “sistemas simbólicos” (arte, religião, língua); ao comentar a iniciativa intelectual de Émile

Durkheim a respeito do problema do conhecimento, ele afirma que dar uma resposta efetiva,

honesta e verdadeira ao objeto de estudo é fugir do “apriorismo”, deixando, assim, de querer

formas de classificação “universais (transcendentais)” para compreender que os fenômenos

são “sociais”, isto é, “simbólicos” – eles são o que dizem ser, mas também a construção sócio-

histórica que desconhecem fazer parte de si. A observação superficial e apressada que abraça

118 Apesar da evidência empírica nesse sentido, ainda é forte na tradição do pensamento ocidental a visão do tipo transcendental, que joga para o supra-humano a perfeição das formas sociais, de onde tudo derivaria; para citar o fundador dessa tradição, e a quem essa tradição sempre se reporta, lembre-se Platão que, na República, a respeito de regimes políticos, formulou um discurso que se tornou paradigma ao compará-los com a “natureza filosófica” e julgá-los todos, sempre, indignos dele: “Nenhum regime político é adequado à filosofia, e é precisamente disso que me queixo; sem natureza filosófica, o regime se altera e se deforma. Como sói acontecer com uma semente exótica que, plantada em solo estranho, se deixa vencer por este e degenera, adaptando-se à variedade da terra, também o caráter filosófico do regime político se perde e se transforma em algo diferente nas condições atuais” (PLATÃO. A República. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. p. 251). 119 Norma jurídica e ordenamento jurídico são objetos distintos porque a primeira é a unidade da qual a segunda é o todo, e ambos compõem o recorte de estudo do jurista, que, na verdade, com isso estuda mais do que o mero fruto oficial da atividade legislativa do Estado, a lei – afinal, se a lei é a matéria-prima da norma jurídica, esta é a sua versão acabada, assim como o ordenamento jurídico é o contexto normativo em que essa lei será incorporada e trabalhada (logo, ao qual ela terá se compatibilizar, assim como a norma jurídica a esse mesmo contexto terá de se coadunar, sob pena de correção por instância superior até se chegar à coerência substancial e procedimental necessária – ou à exclusão do item de dentro do sistema) (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998). Destacando norma e ordenamento como 02 (dois) objetos de estudo do jurista, Norberto Bobbio (BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 2. ed. São Paulo: Edipro, 2014 e BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 2006).

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o que se diz ser, e ignora o que efetivamente se é, presta desserviço tanto à ciência quanto à

emancipação filosófica do sujeito, que estará a conhecer a realidade pela metade120.

Ora, paralelamente, a ciência (ou o fazer ciência), pelo menos tal como o conhecemos

hoje, pode não ser só o trato com aparelhagem apropriada para resultados de laboratório, mas

algo mais: pode ser que nosso saber seja também uma construção social no sentido de que ele

se dá, acontece e se consolida a partir da interação de agentes sociais, isto é, do influxo sócio-

cultural e econômico que constitui a realidade. A ciência, então, se perfaz dos resultados de

laboratório que encontramos, claro, mas também dos motivos, meios e objetivos que levaram

os cientistas ao laboratório, das razões com que esses laboratórios foram construídos, e do

impacto que essa atividade tem no meio social em que é inserida. Da mesma forma, o que

chamamos de conhecimento jurídico é também, como o saber científico, um conjunto mutável

de dados que não se esgota na descoberta de algo objetivo, pré-existente, dado na natureza

como um fato alheio a qualquer vontade e/ou ação – pode ser que toda essa volumosa gama

de conhecimentos parta de dados objetivos, ou deles também se componha, mas não termine

neles, não se encerre neles. E essa forma de enxergar tanto a construção das decisões judiciais

quanto a construção dos saberes sociais (inclusive o científico) nos leva a colocar a decisão

adotada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no Recurso Especial n 1.418.583 MS sob o

prisma não mais do conteúdo constitutivo do acórdão redigido, mas de como se chegou ao

que nele consta.

Afinal, não se pode querer que a sociedade seja como a natureza para o observador ou

cientista; o cientista social, “antes mesmo de principiar sua atividade teórica, é socializado”

conforme as regras dessa mesma sociedade de que participa, e nem mesmo a ela teria acesso

se não dominasse determinadas regras, como, por exemplo, as da linguagem, fundamentais

120 BOURDIEU, Pierre. O Poder simbólico. 9. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 07-17. Ao contrário do que se pode imaginar, essa epistemologia da desconfiança em relação ao método, que cada vez mais se mostra superável, e cada vez mais rápido, também tem voz nas ciências exatas (POPPER, Karl. A Lógica da pesquisa científica. 14. ed. São Paulo: Cultrix, 2009 e FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004).

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para interagir, seja como participante, seja como observador, com seu objeto de estudo. Além

disso, a performance do sujeito (como observador ou como participante) é, ela também, um

ato social (ou uma ação), que assim deve ser compreendida – nunca se trata de abarcar só uma

objetividade física, mas um significado dentro de um contexto. Fazer o Direito, assim como

fazer ciência, é condicionado pelo possível e pelo desejado, e aquilo que significa esse Direito

(ou essa ciência) é algo relativo, e, às vezes, questionável, em especial nas ciências

humanas121.

Para superar essas dificuldades e desconfianças, então, é preciso perceber que sistemas

não resumem o mundo da vida – ou, em outras palavras, que nenhum fragmento é maior que o

todo, ou que nenhum segmento social, ou nicho da cultura, pode responder pela totalidade da

comunidade ou do saber. Essa totalidade é pano de fundo para a discussão de recortes que se

constituem em objetos de estudo, e esse objeto de estudo precisa ser visto como derivativo,

então, de uma interação social que dá mais ou menos legitimidade ao que foi alcançado;

assim, no que diz respeito ao saber científico, cultural, e, em especial no que diz respeito aos

acertos intersubjetivos, mormente políticos (e, por extensão, jurídicos, visto que o fruto oficial

da atividade política é a lei, e a lei, por sua vez, é a matéria-prima da atividade do jurista), a

legitimidade participativa, ou democrática, a ser conseguida por uma interação comunicativa,

é primordial. A correção técnica é fundamental, e isso é lógico; mas não é suficiente.

Em uma frase: a eventual correção técnica de uma determinada decisão judicial pode

suprir o déficit de legitimidade que ela apresenta?

Ou, antes disso: ela precisa de legitimidade democrática para ser uma decisão judicial?

Muito bem.

A resposta automática tende a ser um sonoro “não”. Mas é melhor não se precipitar. O

ato de poder não basta a si mesmo como ato social, ainda que seja uma objetividade dotada de

121 REPA, Luiz Sérgio. Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 55-71, p. 58-60.

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sentido. Isto é: a lei pode enunciar com base na autoridade, e a sentença pode se basear na lei,

mas isso, ou só isso, não basta – e por uma razão muito simples, que Denílson Werle e Mauro

Soares explicam muito bem:

Uma vez que se reduz o Direito à manifestação de relações de poder, a validade do Direito à presença de uma força capaz de fazê-la valer, apresenta-se a velha e sempre recorrente questão: como distinguir entre uma comunidade político-jurídica, como o moderno Estado de Direito, e uma gangue de traficantes ou um bando de ladrões? ‘Uma vez reduzido o direito a produto de um poder capaz de impor regras de conduta coercitivamente, como é possível evitar a redução do Direito a poder puro e simples, uma ordem jurídica fundada exclusivamente no direito do mais forte?’ (BOBBIO, 2000: 233). Santo Agostinho expõe o problema de forma clara: ‘Que são os bandos de ladrões senão pequenos reinos? Um bando de ladrões também é, de fato, uma associação de homens na qual há um líder que comanda, na qual é reconhecido um pacto social, e a divisão da rapinagem é regulada segundo convenções previamente acordadas. Se cresce até o ponto de ocupar um país e nele estabelece a própria sede, essa associação de malfeitores submete povos e cidades e arroga-se abertamente o título de reino, título que lhe é assegurado não pela renúncia à cobiça, mas à conquista da impunidade’ (Santo Agostinho apud Bobbio, 2000: 233-234)122.

E completam, ainda, os autores:

Esse é o nó a ser desatado pelos pensadores modernos: quais os critérios de legitimação de um poder que se organiza juridicamente na forma de Estado de Direito, cujas normas, que organizam as práticas e as instituições político-jurídicas, podem ser modificadas a qualquer momento pelo legislador político? O que tem de ser demonstrado são as bases racionais desse poder, e das leis e políticas criadas por ele123.

Para citar diretamente Habermas, se, na Modernidade, as

normas do Direito se reduzissem apenas a ordens do legislador político, o Direito dissolver-se-ia em política. Isso, porém, implicaria a dissolução do próprio conceito do político. De toda sorte, sob essa premissa, o poder político não poderia mais ser entendido como poder legitimado pelo Direito; pois um Direito posto inteiramente à disposição da política perderia sua força legitimadora – afinal, no momento em que a legitimação é apresentada como uma realização própria da política, nós abandonamos nossos conceitos de Direito e de política. A mesma conclusão se impõe quando analisamos uma outra posição, segundo a qual o direito positivo poderia manter sua normatividade por conta própria, isto é, através das realizações dogmáticas de uma justiça fiel à lei – porém, independente da política e da moral. A partir do momento em que a validade do Direito se desliga dos aspectos da justiça,

122 WERLE, Denílson; SOARES, Mauro. Política e direito: a questão da legitimidade do poder político no estado democrático de direito. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117-145, p. 120. 123 Id., loc. cit.

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justiça essa que ultrapassa os atos do legislador, a identidade do Direito se torna extremamente difusa

124.

Levado em consideração, portanto, que a legalidade não basta, e que a legitimidade de

uma decisão política, jurídica e, mais especificamente tratando do caso deste estudo, judicial,

é um ponto importante a discutir, cabe indagar (para partirmos do início) – e o que é, enfim,

uma decisão judicial, afinal?

É fora de questão que a decisão judicial é ato normativo que transfere ao particular o

que, antes dela, era geral – a lei passa a ser sentença quando voltada a um caso específico. E,

se assim é, a decisão judicial é parte do rol de atos normativos que o Direito comporta para se

manifestar. Existe uma milenar discussão sobre qual seria a natureza da decisão judicial, se

ela seria declaratória ou constitutiva, e, apesar do tradicionalismo “romântico” apontando para

a natureza declaratória como a “verdadeira” natureza da decisão judicial, hoje em dia todas as

correntes abalizadas e consolidadas da Filosofia Jurídica e da Teoria Geral do Direito colocam

a decisão como um ato de natureza constitutiva – para citar um exemplo famoso (até porque,

para muitos, é o mais surpreendente), o positivismo kelseniano dá ao ato legislativo prévio a

condição de “moldura”. O magistrado, “emoldurado” pelo texto constitucional e pelas demais

disposições legislativas integrantes do ordenamento jurídico, completaria a “pintura” iniciada

na moldura a partir de seus vetores valorativos125.

Ronald Dworkin, um liberal igualitário, seguirá pela mesma senda sobre a natureza da

decisão judicial: como tanto constituintes quanto legisladores não são oniscientes nem (muito

menos) clarividentes a respeito das situações de fato que, depois, terão de ser tratadas pelo

jurista quando da aplicação da Constituição e das leis, o Direito precisa, na teoria e na prática,

ser visto como um “romance em cadeia”, em que a sua integridade depende tanto de se olhar

pelo “pára-brisas” quanto pelo “retrovisor”. Logo, o Direito é parte uma permanência e parte 124 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2, p. 237. 125 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 387-397.

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uma cambiante, e sua fisionomia dependerá tanto dos precedentes quanto da nova realidade,

que chega às cortes. Encontrar um fio da meada que leve a tradição a conseguir contemplar e

organizar o presente visando o futuro é tarefa da jurisprudência, segundo Ronald Dworkin: o

exercício profissional, científico e intelectual do jurista é descobrir não como os constituintes

e legisladores do passado tratariam o tempo presente se esse tempo presente se lhes tivesse

apresentado quando constituíram e legislaram; mas como esses agentes se comportariam se,

vivendo o tempo de hoje face à tradição que criaram, tivessem de lidar com os problemas com

os quais lidamos, vivendo o nosso tempo e sendo crias dele126.

Também Robert Alexy envereda pelo posicionamento teórico de que a decisão judicial

é um ato constitutivo: ora, se a argumentação é parte fundamental para a descoberta de qual é

o valor preponderante a prevalecer em cada decisão difícil, como afirmar que o exercício da

retórica forense na construção do sentido exposto pela decisão judicial sucede, e não precede,

a conclusão dessa mesma decisão encontrada? A conclusão só existe porque vem a ser fruto

de uma argumentação que até então não havia sido construída – e, logo, até o raciocínio

subsuntivo, um raciocínio considerado puramente mecânico (premissa maior mais premissa

menor levam à conclusão) pode passar a ser criador. Afinal, encaixar a premissa menor (caso

judicial) sob a regência da premissa maior (Constituição ou lei) para viabilizar a conclusão

(resultado decisório) já é, em si, um exercício argumentativo que pode levar ou não o caso

àquela regência (o vínculo entre as premissas) e, por conseqüência, permitir (ou não permitir)

a conclusão procurada. A preocupação de Alexy com o que ele mesmo chama de “princípio

da proporcionalidade” é derivada exatamente de um viés discursivo; adequação, necessidade e

proporcionalidade em sentido estrito (subcomponentes desse princípio) são elementos teóricos

que exigem argumentação para a correta aplicação conceitual de sua formulação127.

126 DWORKIN, Ronald. O Império do direito. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 211-221. 127 ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 520-574.

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Destaca-se entre todos, porém, a respeito não apenas do caráter constitutivo da decisão

judicial, mas do caráter constitutivo de qualquer ato normativo, e de como esse ato normativo

é próprio do Direito, mas oriundo de uma gênese social, Jürgen Habermas, filósofo alemão. A

sua condição de primus inter pares vem do rigor conceitual e da profundidade filosófica que

imprimiu aos seus estudos, começando com uma investigação sociológica e terminando com

uma análise de Filosofia Jurídica sobre o papel do agir comunicativo e sua interferência sobre

o exercício democrático e a realização do Direito. De uma formação marxiana, filiou-se a uma

corrente de pensamento conhecida como Teoria Crítica – uma denominação genérica para os

que, de alguma forma, não compartilham do ideário liberal, apontado como o hegemônico no

Ocidente contemporâneo. Essa filiação implicou revisitar alguns conceitos de Teoria Política

estabelecidos em sua época (mas até hoje importantes), como, por exemplo, o da autoridade.

Enquanto, por exemplo, o poder ou a autoridade legitimavam, por si sós, uma ou outra

visão de Estado, conforme a orientação teórica preferida de cada corrente de pensamento, e

enquanto a sociedade civil era explicada com base (quase) exclusiva na coerção necessária a

uma vida gregária (para evitar a “guerra de todos contra todos”), Habermas preferiu ir mais a

fundo e pensar o Estado como um locus de poder, sim, e de poder administrativo, mas de um

poder que usualmente é conseguido com base em estratégias fundadas no convencimento dos

atores e agentes políticos. Em outras palavras, a percepção de poder político passa, de acordo

com Habermas, necessariamente, pela questão da legitimidade, e não apenas da autoridade: o

poder de mando que não se faz aceitar, do ponto de vista discursivo, não consegue durar

sustentado só e tão somente pela coerção: daí deriva a importância estratégica de uma opinião

pública favorável, por exemplo, para haver o mínimo de governabilidade administrativa128.

128 E isso porque a política é uma área do saber e da práxis social que precisa de uma justificação moral, pelo menos no plano discursivo, para acontecer; não se admite, como corolário da doutrina kantiana, argumento que não passe pelo teste da coerência no tribunal da razão: “O discurso teórico é o medium em que as experiências negativas são elaboradas de modo produtivo e, por conseguinte, a forma de argumentação na qual pretensões de verdade controversas podem ser transformadas em tema. Algo semelhante acontece na esfera prático-moral. Consideramos racional a pessoa capaz de justificar suas ações perante contextos normativos existentes. E isso

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Ora, se assim se mostra o cenário político, é porque assim também se mostra a sociedade

civil: ela se constrói argumentativamente, por consensos ampla e efetivamente constituídos –

isto é, pela comunicação entre os seus integrantes129.

O mundo da vida, então, que tenta traduzir a idéia de totalidade da herança marxiana, e

que nada mais é que o conjunto de as ações antrópicas, derivadas do homem, contra as quais

se recorta a problematização na vida social, forma-se de interações comunicativas, visto que a

cultura é uma linguagem, e, por conseguinte, pela linguagem, ou pelo agir comunicativo (mais

apropriadamente falando), pode ser (re)ordenado ou (re)organizado130. Claro que, contra isso,

estão sistemas já estabelecidos, como o Estado e o Mercado, refratários a qualquer mudança

profunda na sociedade civil porque geridos por outros imperativos (no caso, respectivamente,

poder administrativo e dinheiro), distintos daquele da plena emancipação do sujeito através do

uso da razão pública131. Mas, de toda forma, se assim é, a compreensão dessa dinâmica entre

vale especialmente para quem age de forma razoável no caso de conflitos normativos em contextos de ação, isto é, para quem se esforça não somente em avaliar o conflito de maneira imparcial, sob pontos de vista morais, mas também em superá-lo de modo consensual, não seguindo simplesmente seus afetos ou interesses imediatos. O discurso prático, ou melhor, a forma de argumentação que permite examinar hipoteticamente se determinada norma de ação, reconhecida faticamente ou não, pode ser justificada de modo imparcial” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. v. 1, p. 50). 129 “Em contraste com a concepção tradicional segundo a qual o conhecimento resulta da interação de um sujeito e um objeto, mediada por condições não necessariamente psicológicas, mas certamente subjetivas, [...] [o] modelo teórico [adotado por Jürgen Habermas] dispensa o recurso a tais condições, pois o conhecimento passa a ser pensado como o resultado de uma prática intersubjetiva de argumentação: ‘a subjetividade é assumida pela prática do entendimento mútuo, que permite sequências indefinidas de signos e interpretações’ (Habermas, 2001:17). A elaboração racional que conduz ao conhecimento não é trabalho de um sujeito solitário, mas o trabalho cooperativo de uma comunidade de pesquisa científica” (SEGATTO, Antônio Ianni. A tensão entre facticidade e validade. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 37-53, p. 42). 130 “Nesse ponto, posso introduzir o conceito de mundo da vida [...]. Sujeitos que agem comunicativamente buscam sempre o entendimento no horizonte de um mundo da vida. O mundo da vida deles se constitui de convicções subjacentes mais ou menos difusas e sempre isentas de problemas. Esse pano de fundo ligado ao mundo da vida serve como fonte de definições situacionais que podem ser pressupostas pelos partícipes como se fossem isentas de problemas. Em suas realizações interpretativas, os envolvidos em uma comunidade de comunicação estabelecem limites entre o mundo objetivo único e seu mundo social intersubjetivamente partilhado, de um lado, e os mundos subjetivos de indivíduos e de (outras) coletividades. As concepções de mundo e as pretensões de validade correspondentes constituem o arcabouço formal com que os que estão agindo comunicativamente ordenam os respectivos contextos situacionais problemáticos (isto é, carentes de acordo), dispondo-os em seu mundo da vida pressuposto de maneira não problemática” (HABERMAS, op. cit., p. 138-139). 131 “O processo de formação dos subsistemas controlados pelos meios dinheiro e poder, ou o sistema econômico capitalista e o Estado Moderno, significou o que Habermas chama de ‘desacoplamento entre sistema e mundo da vida’, isto é, aqueles subsistemas formam contextos de ação que se autonomizam em relação ao mundo da vida, o qual eles encaram simplesmente como um ambiente, um mundo circundante. Para ocorrer o desacoplamento, foi necessário um processo de racionalização do mundo da vida, mediante o qual se dissolveu o poder totalizador

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mundo da vida e sistemas facilita a introjeção do papel que tem a interação entre os agentes

sociais para a formação não apenas da vontade do Estado, mas da formação da vontade da

sociedade civil como um todo. Essa formação da vontade não precisa passar pelo filtro só do

crivo constitucional ou legal, mas pelo crivo da legitimidade, ou seja, pela aceitação, ou auto-

aceitação dos destinatários dessa vontade. Destarte, tanto o republicanismo rousseauniano é

recuperado como inspirador do uso público da razão quanto a concepção kantiana sobre

liberdade fundamenta a realização cívica dos cidadãos que porventura sejam participantes do

destino político da nação:

Na medida em que os direitos de comunicação e de participação política são constitutivos para um processo de legislação eficiente do ponto de vista da legitimação, esses direitos subjetivos não podem ser tidos como os de sujeitos jurídicos privados e isolados: eles têm que ser apreendidos no enfoque de participantes orientados pelo entendimento. Por isso que o conceito de direito moderno – que intensifica e, ao mesmo tempo, operacionaliza a tensão entre facticidade e validade na área do comportamento – absorve o pensamento democrático, desenvolvido por Kant e Rousseau, segundo o qual a pretensão de legitimidade de uma ordem jurídica construída com direitos subjetivos só pode ser resgatada através da força socialmente integradora da ‘vontade unida e coincidente de todos’ os cidadãos livres e iguais132.

das imagens religiosas e metafísicas do mundo, que emaranhava uns nos outros os mecanismos de reprodução material e simbólica dos mundos da vida tradicionais. A racionalização do mundo da vida permitiu, por exemplo, emergirem formas jurídicas próprias, no âmbito do direito privado e do direito público, para institucionalizar os sistemas funcionais de ação (como o mercado e o poder estatal), ou seja, formas jurídicas desligadas de qualquer ethos tradicional. [...] O desacoplamento entre sistema e mundo da vida dá lugar a um processo de colonização do mundo da vida por parte do sistema, ou seja, um processo de monetarização e burocratização das relações sociais em geral, de modo que a lógica da racionalidade com respeito a fins, ou a racionalidade cognitivo-instrumental, se impõe à racionalidade comunicativa como um todo, e isso justamente nos núcleos de reprodução simbólica” (REPA, Luiz Sérgio. Direito e teoria da ação comunicativa. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 55-71, p. 67). 132 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1, p. 53. Para o autor, o “paradoxo das regras de ação, que exigem apenas comportamento objetivamente conforme as regras, sem levar em conta o reconhecimento moral dessas mesmas regras, se resolve com o auxílio do conceito kantiano da legalidade”: normas do direito podem ser, ao mesmo tempo e sob aspectos diferentes, “leis de coerção e leis de liberdade”. E isso porque como o processo legislativo, no plano jurídico, é o lugar da “integração social”, a legitimidade das regras de direito positivadas se medirá pela “resgatabilidade discursiva de sua pretensão de validade normativa; e o que contará, em última instância, é o fato de elas terem surgido de um processo legislativo racional – ou seja, o fato de que se justificaram argumentativamente sob o ponto de vista pragmático e moral” (HABERMAS, ibid., p. 49-52).

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Como o agir comunicativo intenta ser veículo emancipatório do ser humano133, então,

e como, para isso, não deve se vincular a imperativos sistêmicos, pautando-se antes, conforme

Habermas, pelas pretensões de inteligibilidade, verdade, veracidade e correção (os famosos

pressupostos de legitimidade) a fim de não apenas convencer na modalidade “tudo-ou-nada”

(vence um em detrimento do outro), mas persuadir (no sentido de construir conjuntamente

entre diferentes agentes que, por sua vez, procuram a melhor saída)134. Nas palavras do

próprio autor, os atos comunicativos podem ser ilocucionários ou perlocucionários;

diferenciam-se as categorias entre si porque os êxitos ilocucionários

são alcançados no plano das relações interpessoais, em que os participantes da comunicação se entendem uns com os outros sobre alguma coisa que está no mundo; nesse sentido, êxitos ilocucionários não são algo de intramundano, mas de extramundano. Em todo caso, se dão no interior do mundo da vida que abriga os participantes da comunicação e constitui, para eles, o pano de fundo do processo de entendimento135.

No mesmo passo, mas ao revés, os atos perlocucionários são aqueles guiados pelo agir

de forma estratégica, que não pretendem formar um consenso dentro do conhecimento que se

133 Veículo emancipatório que possibilita um procedimento para formação de consenso, mas que não determina, de fora para dentro, o que fazer. “A racionalidade comunicativa se manifesta em um contexto descentrado de condições que impregnam e formam estruturas, transcendentalmente possibilitadoras; porém, ela própria não pode ser vista como uma capacidade subjetiva, capaz de dizer aos atores o que devem fazer” (HABERMAS, ibid., p. 20). Nas palavras de Marcos Nobre, por sua vez, o procedimento é “simultaneamente a base e a garantia das condições necessárias para que os cidadãos exerçam as liberdades comunicativas e cheguem a entendimento no Estado Democrático de Direito [...] Com o aprofundamento da modernidade e os crescentes conflitos entre eticidades diversas, é preciso garantir que o direito e a política, que as instituições democráticas, não restrinjam as possibilidades de discussão ao favorecer determinadas formas de vida em detrimento de outras. Isso significa que os processos de formação da opinião e da vontade dos cidadãos têm de ser institucionalizados, de forma a que, cada vez, a maior participação possível seja garantida” (NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 15-35, p. 34-35). O importante é que a racionalidade comunicativa amplia, “no interior de uma comunidade”, o espaço de ação que visa à “coordenação não coativa de ações e a superação consensual de conflitos de ação, desde que remontem a dissonâncias cognitivas” (HABERMAS, Jürgen. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. v. 1, p. 43). 134 Segundo Habermas, pode-se demonstrar que vale para todas as ações de fala orientadas pelo entendimento que, em ambientes de “agir comunicativo, as ações de fala sempre podem ser refutadas sob cada um dos três aspectos: sob o aspecto da correção, que o falante reivindica em favor de sua ação mediante referência a um contexto normativo (ou então, de forma mediata, em favor dessas próprias normas); sob o aspecto da veracidade, que o falante reivindica em favor da externação de vivências subjetivas a que ele tem acesso privilegiado; e, por fim, sob o aspecto da verdade, que o falante reivindica com sua externação em favor de um enunciado (ou em favor das suposições de existência do teor de um enunciado nominalizado)”. Vale lembrar que a pretensão de inteligibilidade diz respeito ao potencial de decodificação da mensagem, se resumindo sua problemática ao entendimento gramatical dos enunciados (HABERMAS, ibid., p. 531). 135 Id., ibid., p. 508.

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tem da realidade, e sim manipular ou a mensagem, o referente ou o destinatário do conteúdo a

fim de se atingir determinado objetivo. Como diz o autor, quem

faz uma aposta, nomeia um oficial como comandante em chefe, emite um comando, profere uma admoestação ou uma advertência, faz uma predição, confissão ou revelação, profere uma narração, etc, age de maneira comunicativa e não pode, no mesmo plano de interação, provocar efeitos do tipo perlocucionário. O falante só almeja objetivos perlocucionários quando engana seu parceiro e age de forma estratégica, como, por exemplo, quando dá uma ordem para que a tropa caia em uma cilada, ou aumenta a aposta para intimidar o adversário, ou, tarde da noite, conta mais uma história para evitar que o convidado vá embora136.

Quando esse agir persuade, e quando os destinatários da vontade se sentem também

seus emitentes, por terem adequadamente participado da construção daquela norma, há uma

mediação social exercida de modo competente tanto pela política quanto pelo Direito, dando-

se a realização da democracia e do Estado de Direito quando a vontade política se transforma

em ato normativo, isto é, legal. Logo, toda e qualquer vontade estatal pode derivar de maneira

interativa da dinâmica com a sociedade civil, fazendo-se mais fácil de ser seguida (de maneira

deliberadamente voluntária, conforme a concepção kantiana de liberdade), sendo, ainda, fruto

de uma construção que terá legitimidade para ser aplicada coercitivamente, em caso de ilícito,

pelo Poder Judiciário. Ou, como prefere resumir Habermas, quando fala sobre significado e

validade da norma alcançada pelo êxito interativo, se o agir comunicativo vem se diferenciar

“de interações estratégicas, isso se deve a que todos os seus participantes, sem restrições, vêm

a perseguir fins ilocucionários para alcançar um comum acordo que seja fundamento a uma

coordenação consensual dos planos de ação a serem alcançados por cada indivíduo”137.

Com essa construção, tem-se, então, uma complementaridade entre autonomia pública

e privada, e cidadão e indivíduo se encontram no mesmo sujeito, que aí sim pode passar a ter,

efetivamente, cidadania política e civil, pois não está alijado do processo legislativo, por meio

do qual as normas são estabelecidas, nem vitimado por ele, visto que, diante dos consensos

136 HABERMAS, ibid., p. 509-510. 137 Id., ibid., p. 512.

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argumentativos, presume-se que sempre seus Direitos Fundamentais ficam resguardados. E, a

fim de completar o círculo do raciocínio, se a ação comunicativa permite formar consensos e

lhes dar a legitimidade que é necessária à legalidade, a ação instrumental ou estratégica não

irá conseguir uma coisa nem outra, isto é, nem credibilidade na legitimidade nem a segurança

da legalidade. Se isolamos a autonomia pública da autonomia privada, um reducionismo que

oscila entre extremos é aceito. Habermas caracteriza cada extremo como sendo ou da forma

de pensar liberal ou da forma de pensar republicana. Segundo Felipe Silva, para Habermas, se

a compreensão liberal sobrepõe a dimensão privada da autonomia jurídica à dimensão pública, e a compreensão republicana [sobrepõe] a dimensão pública à privada. Nesse ponto, importa para ele denunciar que essas distintas hierarquizações entre público e privado sempre podam uma das formas de autonomia em benefício da outra, ou melhor, que no interior de qualquer um dos partidos dessa disputa, uma das formas de autonomia jurídica sempre resta prejudicada. Segundo o autor, esse jogo de forças entre público e privado, o qual impede a proteção plena e simultânea dos dois momentos da autonomia jurídica, produz diferentes formas de autoritarismo, denominadas ‘paternalismo da leis’ e ‘ditadura da maioria’

138, 139

.

Assim, como o agir comunicativo tenta assimilar a tensão entre facticidade e validade,

e, ainda, atribui “às forças ilocucionárias da linguagem orientada ao entendimento a função

importante de coordenação da ação”, no plano oficial estatal, é o Direito que ocupa o papel de

medium entre essas forças, em especial “na figura moderna do direito positivo”. E isso porque

as normas positivadas possibilitam haver “comunidades extremamente artificiais”, entendidas

como “associações de membros livres e iguais” cuja coesão gregária resulta “simultaneamente

138 SILVA, Felipe Gonçalves. A solidariedade entre público e privado. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 91-115, p. 98. 139 Quando se falou acima que o Estado de Direito, como experiência social, em maior ou menor grau, precisa da República como práxis política para subsistir, isto é, quando se falou a respeito de como a República favorece o espírito público que alimenta o Estado de Direito, se disse pela metade uma constatação óbvia: a recíproca é verdadeira. Sem um Estado de Direito implementado com solidez, dificilmente uma República poderá subsistir através do tempo em sua essência, isto é, sem se desnaturar. Sem regras previamente definidas para o espaço ora do público, ora do privado, a discussão sobre cada uma dessas dimensões e sobre como proceder a respeito de cada uma delas tende a descambar, mais cedo ou mais tarde, para a violência e a sabotagem. Logo, as aparências sugerem que não, mas o suposto antagonismo radical entre constitucionalismo liberal e democracia deliberativa é, na verdade, uma simbiose irreversível porque essas 02 (duas) formas de pensar a experiência pública não se refutam – na verdade, se complementam. Um Estado liberal sem participação popular deliberativa leva ao tal “paternalismo das leis”; um estado deliberativo sem o império do Direito leva à “ditadura da maioria”.

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da ameaça de sanções externas e da suposição de um acordo racionalmente motivado”140, 141.

O Direito ocupa uma posição proeminente na teoria habermasiana porque é preciso saber

como “transformar poder comunicativo em administrativo”, isto é, como construir consensos

dentro da “esfera pública institucionalizada” sem ignorar as “redes periféricas da esfera

pública”; e, para Habermas, como dinheiro e poder são surdos ao uso ilocucionário da

linguagem, tendo os seus próprios códigos especializados e funcionais, para que seja

“possível dirigi-los em um sentido determinado, é preciso que o Direito traduza as pretensões

comunicativas cotidianas nos termos especializados de cada um desses media sistêmicos”. O

Direito representa, então, uma espécie de dobradiça, ou “charneira” entre o “mundo da vida e

sistema, em razão de sua constituição interna como medium de dupla face”142. Segundo

Marcos Nobre, o papel

de transformador atribuído por Habermas ao Direito está em que este tem dupla face, tem pés fincados tanto no mundo da vida quanto no sistema, serve tanto ao poder comunicativo quanto ao poder administrativo. De um lado, ele é a voz da administração e do sistema, em que norma e sanção são inseparáveis uma da outra, ou seja, em que o Direito aparece como coerção, ainda que seja coerção legítima. De outro lado, o Direito é expressão, simultaneamente, de um processo de formação coletiva da opinião e da vontade, sem o qual seria apenas estabilizador de expectativas de comportamento – e não a expressão da autocompreensão e da autodeterminação de uma comunidade de pessoas de direito (que ele também é)143.

Segundo Orlando Villas Bôas Filho, essa conjugação de uma análise

voltada ao direito com outra voltada à política tem por objeto fundamental o Estado Democrático de Direito, no qual haveria a possibilidade de transformação de pautas programáticas originadas no âmbito da ação e da racionalidade voltadas ao mútuo entendimento para o plano da burocracia administrativa do Estado, em princípio indiferente a tais demandas. Trata-se da questão relativa à transformação do poder comunicativo, fundado no mútuo entendimento e oriundo das estruturas de

140 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. 2. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. v. 1, p. 25. 141 “A teoria do discurso conta com a intersubjetividade de processos de entendimento, situada em nível superior, os quais se realizam através de procedimentos democráticos ou na rede comunicacional de esferas públicas políticas. Essas comunicações destituídas de sujeito, que acontecem dentro e fora do complexo parlamentar e de suas corporações, formam arenas nas quais pode acontecer uma formação mais ou menos racional da opinião e da vontade acerca de matérias relevantes para a sociedade, necessitadas de regulamentação” (HABERMAS, ibid., v. 2, p. 22). 142 NOBRE, Marcos. Introdução. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e Democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 15-35, p. 27. 143 Id., loc. cit.

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intersubjetividade intacta de comunicação não deformada (Habermas, DD I:187), em poder administrativo, comandado pelo código do poder e, portanto, carente de autolegitimação144.

O que nos leva de volta aos questionamentos que iniciaram esta discussão: sim, não só

o ato legislativo, mas a decisão judicial tem natureza constitutiva, e, por conseguinte, por mais

correta que seja aquele ou esta, isto é, o ato legislativo ou a decisão, sua correção técnica será

sempre carente de validade, senão oficialmente, discursivamente falando, porque o Direito é,

ou pelo menos também precisa ser, uma fonte de expressão, autocompreensão e autodisciplina

da comunidade à qual se aplica, não devendo, por conseguinte, ser aplicado de uma maneira

solipsista – a própria condição de “moldura” da lei assim aponta: como ela é matéria-prima, e

não produto acabado, o jurista, ao completar a “pintura” dentro da moldura recebida, deve

também se preocupar com a legitimidade do que decide, e de como decide, sob pena de se ter,

ou de se permitir, ou mesmo de se naturalizar (como, aparentemente, já se naturalizou em boa

parte), a lei injusta – aquela mesma da pergunta de Alcibíades a Péricles que inaugura o texto

da introdução deste trabalho.

Ou seja, a lei também pode ser injusta por não ser legítima, visto que a construção da

decisão é um processo intersubjetivo de argumentação orientada pelo agir comunicativo.

Porém, dito isso, vale destacar: apesar de o Direito ser um notável objeto de estudo de

Habermas, o Poder Judiciário não é o foco da sua preocupação: ele se volta especialmente ao

teatro político (do qual se origina a lei e, por conseguinte, o conjunto chamado ordenamento

jurídico) e à sociedade civil (zona em qu as demandas se formam, circulam, se acumulam e

extravasam da periferia para o centro, isto é, para a burocracia administrativa), os 02 (dois)

mais representativos campos de deliberação social (a assim chamada “esfera pública”145), isto

144 BÔAS FILHO, Orlando Villas. Legalidade e legitimidade no pensamento de Jürgen Habermas. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 147-172, p. 148. 145 O regime de “eclusas” explica esse trânsito de poder comunicativo até a burocracia administrativa; à medida em que as demandas transbordam da “periferia” para o “centro”, a política se revela como o “campo conflituoso” entre a sociedade civil e o Estado (NOBRE, op. cit, p. 25), e a mediação discursiva pela deliberação fará com

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é, de deliberação sobre os destinos compartilhados da comunidade146; mas nada impede (pelo

contrário, sugere) que a jurisdição também procure (e tenha, lógico) sua legitimidade ao

proceder com seus ritos decisórios. Afinal, apesar de ser técnico, eminentemente preocupado

com a correção científica de seus pronunciamentos, o Poder Judiciário é um poder indissociável

do espectro político, visto que trata de aplicar coercitivamente o fruto por excelência do

trabalho legislativo. E, se assim é, deve se preocupar em saber até que ponto, ao emitir suas

decisões, está atingindo a sociedade civil interessada no exercício da função jurisdicional. Com

as demandas coletivas, entendidas aí tanto as ações que versam sobre direitos coletivos e/ou

difusos, quanto as sobre direitos individuais homogêneos (quando processadas como repetitivas,

isto é, como integradas), cada vez mais frequentemente o Poder Judiciário passa a atingir

espectros progressivamente mais amplos da população com suas decisões, e, conseqüentemente,

a se assemelhar, cada vez mais (e pelo menos quanto a isso), a um órgão político147.

Não se quer dizer, com o que fica dito acima, que o Poder Judiciário tem de seguir a

“vontade da maioria”, mas quer-se dizer que não pode ficar alheio, quando decide, à realidade

que o cerca, e às diferentes vozes que permeiam a sociedade civil; como dito desde o início do

capítulo, a verdade, especialmente a verdade normativa, isto é, aquela que refere o “certo” e o

“errado” dentro de uma comunidade, é uma construção simbólica, socialmente conseguida a

partir da intersubjetividade argumentativa, ainda mais quando a tradição, seja ela religiosa ou

que a argumentação entre em campo; afinal, a normatividade só pode ser conseguida através da legitimidade, dando, então, ao centro, ou ao Estado, a necessidade de ouvir a periferia, ou a sociedade civil, sob pena de desagregação comunitária e subseqüente anomia (WERLE, Denílson L; SOARES, Mauro V. Política e direito: a questão da legitimidade do poder político no estado democrático de direito. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 117-145, p. 138). 146 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1998. v. 2, p. 57-121. 147 Afinal, ele também é guiado pelo uso ético-político da razão prática, e precisa levar em conta o alcance que têm as decisões que toma, expondo ainda as razões do que faz para crítica e submissão ao tribunal da Razão (HABERMAS, ibid., v. 1, p. 194); somente assim a legitimidade transcenderá a positividade a partir da ação de integração comunicativa; se, em um plano interno, facticidade e validade coexistem com a transcendência “a partir de dentro”, em um plano externo, Direito e política deliberativa estarão prontas para servir à legitimação da vontade coletiva nas sociedades pluralistas pós-metafísicas (BÔAS FILHO, Orlando Villas. Legalidade e legitimidade no pensamento de Jürgen Habermas. In: NOBRE, Marcos; TERRA, Ricardo (Org.). Direito e democracia: um guia de leitura de Habermas. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 147-172, p. 167).

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metafísica, deixou de lastrear a eticidade; o pluralismo só subsiste se for comunicativo e o que

interessa ao procedimentalismo é precisamente evitar que as decisões do Poder Judiciário se

pautem por tecnicismos, preconceitos subjetivos ou solipsismos148.

Afinal, embora oficialmente caiba ao Poder Judiciário cumprir a missão institucional

de realizar a tal estabilização de expectativas comportamentais a que o Direito se presta, ainda

que fundado em uma visão restrita, de seletividade, nem por isso ele deve se comprazer

com métodos ortodoxos de validação e efetivação de decisões judiciais que desconsiderem o compromisso do Estado com a opção democrática, consignada nos textos constitucionais. Uma teoria da decisão judicial, para cumprir tal desiderato, deve reservar espaços de institucionalização discursiva que absorvam essa gama de situações conflitivas [...] A complexidade está a exigir, por conseguinte, um novo pacto social, fora dos ditames consolidados pelas teorias contratualistas. Não é mais um pacto da sociedade com o Estado, mas um pacto da sociedade com os cidadãos, que, nesse sentido, passam a assumir como seu um projeto de emancipação democrática para si e seus iguais, assumindo correlatamente o risco dessas suas opções. Essa é a marca da sociedade de horizontes incertos

149.

Ora, em conclusão disso, o órgão judicante a que se apresenta a causa de repercussão

tem de se comportar de maneira minimamente permeável, deliberativa e participativa a fim de

viabilizar a construção compartilhada da decisão a ser adotada – coisa que, pelo menos na

decisão consubstanciada no Recurso Especial n 1.418.593 MS, o Superior Tribunal de Justiça

(STJ) não conseguiu – ou sequer tentou. Ao não solicitar a participação de entidades de defesa

do consumidor, por exemplo, omitiu-se quanto à oitiva de atores importantes da sociedade

civil na defesa dos interesses individuais homogêneos, e ao aceitar, por outro lado, de maneira

assimétrica, a manifestação da Federação Brasileira de Bancos (FEBRABAN), ouviu a parte

mais forte na relação de consumo posta em questão sem, ao mesmo tempo, colocar em xeque

os argumentos que ela trouxe para a discussão. A exposição de motivos do, à época, Ministro

da Fazenda ao enviar o projeto de lei alterador do artigo 3º, caput e §§1º e 2º, do Decreto-Lei

n 911/69, por sua vez, mostrou a falta de elementos materiais que justificassem aquela tão

148 GÓES, Ricardo Tinoco de. Democracia deliberativa e jurisdição: legitimidade da decisão judicial a partir e para além da teoria de Jürgen Habermas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 231. 149 Id., ibid., p. 170- 71.

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drástica mudança legislativa, inclusive de natureza estatística: não se sabia, então, o índice de

inadimplência em contratos bancários de mútuo com alienação fiduciária em garantia, como,

até hoje, não se sabe – e conseqüentemente, até disso, de uma opinião fundada em números,

os interessados ficaram privados, já que, agora, um percentual oficial de sucesso da iniciativa

alteradora não poderá ser objetivamente conseguido (por não haver parâmetro de comparação

prévio).

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6 UMA REFLEXÃO A PARTIR DO DIREITO POSITIVO SOBRE A DECISÃO DO

RECURSO ESPECIAL N 1.418.593 MS

Se, como visto até agora, decidir sobre os direitos do sujeito (indivíduo e cidadão) é

decidir sobre uma construção teórica de profunda gênese filosófica que, através da História,

amadureceu como experiência social e terminou por se incorporar ao universo jurídico, dando

forma ao que chamamos de Estado de Direito através da participação política de um povo

investido de autodeterminação, havendo a necessidade de uma legitimação discursiva para

que a decisão, enfim, seja justa, decidir sobre os direitos do sujeito quando se fala do Direito

brasileiro é também se pronunciar sobre o ordenamento que rege o país, isto é, é emitir um

parecer que deixa transparecer a própria visão sobre o Direito em vigor no Brasil. No caso

concreto em análise, é importante trabalhar a decisão recursal sob análise também pelo prisma

da positividade dada no ordenamento – afinal, trata-se de parecer emitido por ninguém mais,

ninguém menos, que o Superior Tribunal de Justiça (STJ), última instância do Direito Civil da

estrutura judiciária – e vale a consideração sobre o que esse colegiado afirmou sobre nosso

Direito Positivo150.

Pois bem.

150 Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) possa reivindicar a última das decisões se houver matéria constitucional envolvida. Segundo os próprios termos da Constituição da República, promulgada em 05 de outubro de 1988, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem direito à última palavra, mediante provocação por Recurso Especial, quando se trata de decisão judicial contraria tratado ou lei federal, ou lhes nega vigência; de decisão judicial que julga válido ato de governo local contestado em face de lei federal ou ainda de decisão que dá a lei federal interpretação divergente da que lhe atribuiu outro tribunal. Logo, quando se trata de manter e uniformizar uma interpretação sobre a lei federal no país (caso do Código Civil e/ou do Código de Processo Civil, para citar apenas os exemplos que interessam ao caso em debate), a mais alta corte é o Superior Tribunal de Justiça (STJ) – a não ser que, na decisão adotada se contrarie dispositivo da própria Constituição, se declare inconstitucional tratado ou lei federal, se julgue válido ato (ou lei) de governo local contestado em face da Constituição, ou, por fim, se julgue válida lei local contestada em face de lei federal (ou seja, que haja conflito federativo). Apenas em tais situações, será do Supremo Tribunal Federal (STF) o último pronunciamento (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 1º fev. 2017). .

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No Recurso Especial n 1.418.593 MS, a decisão final tomada enfrentou a questão da

“integralidade da dívida pendente” e se omitiu quanto à discussão a respeito da alienação do

bem antes de encerrada a ação na instância de processamento. No primeiro caso, isto é, no

enfrentamento da leitura da expressão “integralidade da dívida pendente”, a corte utilizou 02

(dois) fundamentos, o de que não cabe ao juiz divisar onde não divisou o legislador (ou seja,

um tópico de natureza hermenêutica) e o de que, caso se proceda assim permitindo, estar-se-á

a comprometer o equilíbrio entre os poderes (um tópico de natureza constitucional). No caso

da omissão a respeito da discussão constitucional a respeito do devido processo legal, óbvia e

evidentemente, não se utilizou fundamento algum para justificar qualquer tomada de posição.

Ora, apesar de todo o conhecimento técnico e apuro jurídico que certamente norteia os

posicionamentos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), não parece que, no caso, tenha agido

bem ao escolher os fundamentos que escolheu para a decisão que tomou. E isso porque não se

enfrentou o que parece ser o mínimo necessário em qualquer discussão técnica – os elementos

jurídicos positivados no nosso ordenamento que diziam respeito ao thema decidendum. Se um

fundamento que escolho se mostra interessante para embasar minha decisão, nem por isso me

dou, ou posso me dar, o direito de ignorar os demais itens normativos da completude vigente

no ordenamento; enfrentar, conjugando prós e contras, as demais disposições legislativas para

enfim saber se a posição adotada é a mais correta, normativamente falando, é obrigatório, sob

pena de arbitrariedade no exercício do múnus público e disfuncionalidade na aplicação prática

da hermenêutica jurídica151.

Claro que a separação dos poderes é uma disposição vinculativa constitucional (artigo

2º da Constituição da República) e claro que manter esse respeito entre Executivo, Legislativo

e Judiciário é fundamental para a saúde da República Federativa do Brasil enquanto ela quiser

151 BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no direito brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 385-410.

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se manter como Estado de Direito152; no entanto, não quer se dizer, com isso, que a decisão

que o Superior Tribunal adotou está correta. Muito pelo contrário: a expressão aprovada no

corpo da lei é “integralidade da dívida pendente” e ela é, no mínimo, dúbia: pode, sim, se

referir a tudo, mas pode se referir apenas ao inadimplido. Logo, uma interpretação que

permite purgar a mora para reaver o veículo é possível. Mesmo que a exposição de motivos

oriunda do Poder Executivo seja explícita em dizer do interesse de se exigir o pagamento de

vencido e vincendo e mesmo que o Legislativo tenha aprovado o projeto sem fazer qualquer

reparo quanto a essa manifestação de preferência, fica o Poder Judiciário tolhido na sua

interpretação da lei – e do seu contexto – se simplesmente admitir a expressão “integralidade

da dívida pendente” como unívoca.

Afinal, sim, caso hipoteticamente o Direito se resumisse a uma lei, ou a um punhado

delas, as quais não se coligassem entre si, cada uma dessas disposições deveria, ou poderia,

como se prefira, ser aplicada de acordo com o que o órgão político quis de cada uma delas. A

verdade, porém, é outra, pois, em se tratando de um ordenamento jurídico, isto é, de um

conjunto hierarquizado, harmônico e lógico de normas sistemáticas que dialogam entre si, e

que precisam fazer sentido ao serem aplicadas, sob pena de se meter todo o conjunto no caso

do casuísmo, do capricho e da imprevisibilidade, entender cada lei como parte de um todo é,

no mínimo, fundamental – e isso o Poder Legislativo, ou o Executivo, não pode fazer. E isso

porque eles não são os órgãos técnicos para isso, isto é, não são eles os órgãos constituídos no

fito de harmonizar as leis entre si e todas com a Constituição – essa é uma tarefa para o Poder

Judiciário153, 154.

152 Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário (BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Promulgada em 05 de outubro de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 1º fev. 2017). 153 A própria Constituição da República assim o diz, ou pelo menos nitidamente sugere, na medida em que divide a competência jurisdicional por matéria sem deixar conteúdos faltando, isto é, sob responsabilidade do Poder Legislativo ou Executivo, atribuindo, inclusive, ao Supremo Tribunal Federal (STF), precipuamente, a guarda da Constituição (artigo 102, caput). (BRASIL, ibid.). 154 A concepção de que há um ordenamento jurídico com identidade e unidade, em que as disposições legislativas compõem um todo hierarquizado, harmônico e lógico, é uma idéia kelseniana – e, logo, filosófica –

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Logo, em assim sendo, por mais que o Executivo tenha manifestado clara preferência

ao encaminhar o projeto de lei para aprovação, e por mais que o Legislativo tenha silenciado,

ao aprovar o projeto, a respeito de qual deveria ser o propósito e o sentido da lei, o fato de o

texto legal permitir mais de uma interpretação quanto ao alcance de seu resultado é suficiente

para autorizar ao Poder Judiciário emitir parecer sobre como o texto legislativo se tornará uma

norma jurídica, isto é, como a matéria-prima entregue pelo legislador ao juiz deve ser tomada

e trabalhada para, mais do que ser coercitiva, ser coercitiva dentro de um sentido lógico que

não desminta o ordenamento ao qual ela, lei, se incorporou. E isso por uma razão muito óbvia,

por sinal: se cada lei passa a ser regida sem uma harmonização com as demais, e se a falta de

sentido é tolerada para se perder a coerência argumentativa em favor da pura coerção estatal,

fica difícil, senão impossível, manter a credibilidade do sistema perante a sociedade155.

Ora, no caso em debate, é fora de dúvida que o Código Civil disciplinou a propriedade

resolúvel como um direito real, e a mora como um fenômeno obrigacional sanável quando ela

é relativa. Assim, quando falo de alienação fiduciária em contrato de mútuo bancário, falo de

uma propriedade que se subdivide entre devedor fiduciário e credor fiduciante, e quando falo

de inadimplemento desse devedor, falo de mora, mas, provavelmente, de mora relativa, dado

mas nem por isso menos operacional; nela, por exemplo, que foi beber a Teoria do Diálogo das Fontes (encampada, no Brasil, por Cláudia Lima Marques), e nela que repousa a coerência como necessidade interpretativa das instâncias judiciais (MARQUES, Cláudia Lima; BENJAMIN, Antônio Herman; MIRAGEM, Bruno. Comentários ao código de defesa do consumidor. 3. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. p. 30-43). 155 Nesse sentido, de que as normas precisam antes cooptar a cooperação do destinatário em vez de simples e puramente obrigá-lo, um protesto enfático que geralmente não é lembrado como a bela defesa que é o de Konrad Hesse, em A força normativa da Constituição. A Constituição, ou qualquer outra norma jurídica, para o autor, é um ato de vinculação e de imposição, mas deve ser também algo experimentado e desejado, sem o que nunca será total e efetivamente vivido (HESSE, Konrad. A força normativa da Constituição. In: MENDES, Gilmar Ferreira et al. (Org.). Temas fundamentais de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 123-146). Jürgen Habermas, porém, é a grande referência na área quando se trata de legitimidade na legalidade. Afinal, segundo ele, é preciso se ter um “paradigma procedimentalista do direito, pois a combinação universal e a mediação recíproca entre a soberania do povo institucionalizada juridicamente e a não institucionalizada são a chave para se entender a gênese democrática do direito. o substrato social, necessário para a realização do sistema dos direitos, não é formado pelas forças de uma sociedade de mercado operante espontaneamente, nem pelas medidas de um Estado do bem-estar que age intencionalmente, mas pelos fluxos comunicacionais e pelas influências públicas que procedem da sociedade civil e da esfera pública política, os quais são transformados em poder comunicativo pelos processos democráticos” (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. v. 2, p. 186).

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que ela só seria absoluta caso o recebimento do prometido, isto é, a continuidade do contrato,

não fosse mais interessante ao credor fiduciário – o que não é o caso. Tanto não é o caso que a

mora de prestações em dinheiro verificada em contratos de prestação continuada – situação do

debate em tela – serve de ensejo à aplicação de penalidades moratórias pesadas, mostrando o

interesse do credor no recebimento da prestação, mesmo em atraso, visto que não suporta, por

isso, prejuízo156, 157.

Assim, em sendo a propriedade um instituto de definição legal, um direito de proteção

constitucional, e sendo a modalidade de propriedade resolúvel mais uma entre suas variações

conceituais, não se pode tratar devedor fiduciário e credor fiduciante como se o primeiro nada

tivesse e o segundo tudo pudesse; são, nos termos da técnica jurídica, condôminos de um bem

que se divide entre eles senão em função do espaço, mas em função do tempo tomado para as

obrigações do contrato serem cumpridas. Da mesma forma, se a mora é de definição legal e é

um instituto que pretende, em última análise, preservar o contrato firmado entre as partes ao

cominar o atraso de encargos, é porque existe para fazer da prestação uma possibilidade para

o devedor e um interesse para o credor. Ora, se se empresta à expressão “totalidade da dívida

pendente” a interpretação que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotou ao julgar o Recurso

156 A propriedade fiduciária é a propriedade resolúvel de coisa móvel fungível, sendo, portanto, indissociável da modalidade resolúvel. Cito o Código Civil: Art. 1.361. Considera-se fiduciária a propriedade resolúvel de coisa móvel infungível que o devedor, com escopo de garantia, transfere ao credor. § 1o Constitui-se a propriedade fiduciária com o registro do contrato, celebrado por instrumento público ou particular, que lhe serve de título, no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor, ou, em se tratando de veículos, na repartição competente para o licenciamento, fazendo-se a anotação no certificado de registro. § 2o Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa. § 3o A propriedade superveniente, adquirida pelo devedor, torna eficaz, desde o arquivamento, a transferência da propriedade fiduciária (BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 1º fev. 2017). 157 Sobre mora, o Código Civil também é categórico: a relativa se resolve pelos encargos, a absoluta, em perdas e danos. Cito o texto: Art. 401. Purga-se a mora: I - por parte do devedor, oferecendo este a prestação mais a importância dos prejuízos decorrentes do dia da oferta; II - por parte do credor, oferecendo-se este a receber o pagamento e sujeitando-se aos efeitos da mora até a mesma data. Art. 402. Salvo as exceções expressamente previstas em lei, as perdas e danos devidas ao credor abrangem, além do que ele efetivamente perdeu, o que razoavelmente deixou de lucrar (BRASIL, ibid.).

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Especial n 1.418.593 MS, tanto a concepção de propriedade resolúvel quanto de mora relativa

são ignoradas – apesar de explicitadas no nosso ordenamento positivo158.

Além disso, ainda que não houvesse uma concepção formal positivada sobre esses 02

(dois) institutos, há uma principiologia civilista em vigor sobre conservação dos contratos, sua

função social e a interpretação de boa-fé que se deve dar às suas cláusulas: justamente para se

deixar no passado o formalismo e o patrimonialismo que marcaram o Código Civil anterior, o

atual se pautou pela eticidade e pela operabilidade das suas disposições, isto é, pelo prêmio ao

comportamento leal que corresponde às expectativas de comportamento da boa-fé objetiva e

pelo estímulo ao funcionamento sadio dos institutos jurídicos – dentre eles, o contrato. Cito o

Código Civil em vigor para ilustrar:

Art. 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato. Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé

159.

Logo, vê-se que a principiologia positivada no ordenamento vai ao encontro do que foi

dito acima, isto é, que a melhor leitura de “integralidade da dívida pendente”, a que favorece a

eticidade das relações e a operabilidade dos institutos, é a que mantém o respeito pela forma

resolúvel de propriedade, visto que se trata de modalidade de direito real que não pode ser, de

maneira tão leviana, desconsiderada; e a que favorece, igualmente, a utilização do instituto da

mora relativa, isto é, que não ignora que purgar a mora é um direito do contratante que restou

inadimplente e que, desde que pague os encargos moratórios relativos à prestação atrasada (a

mais de pagar a própria prestação atrasada, é claro), não deve ser privado de sua prerrogativa

de parte contratual. Vale acrescentar que essa principiologia é coercitiva e vinculante, pois os

158 Levando em consideração que a tradição do Superior Tribunal de Justiça (STJ) é se apegar aos elementos de fato postos no ordenamento jurídico, essa escolha chamou a atenção; mais comum é evitar o ativismo e se deter nos comandos positivados. 159 BRASIL. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406compilada.htm>. Acesso em: 1º fev. 2017.

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princípios também são normas jurídicas, embora de natureza diferente das regras. Essa, aliás,

é uma discussão ultrapassada na atualidade160.

A principiologia civilista referida é aplicável para orientar a interpretação a construir –

e, da mesma forma, o é a disciplina legal consumerista. O Código de Defesa do Consumidor é

um código editado sob inspiração da era dos micro-sistemas, podendo complementar o, ou ser

complementado pelo, Código Civil; afinal, se o Código de Defesa trata de 01 (um) dentre os

03 (três) modos obrigacionais de vínculo entre os sujeitos de direito (qual seja, o consumerista

– os outros dois são o empresarial e o civil tradicional, nem consumerista, nem empresarial),

nem por isso afasta as regras dos demais, regendo-se subsidiariamente pelas normas vigentes

de Direito Civil naquilo em que não as derrogar pela sua especificidade. Essa subsidiariedade,

obviamente, não denota conflito, mas reforço entre as searas civil e consumerista; se a função

social do contrato é promover o bom funcionamento dos institutos jurídicos e auxiliar a franca

e honesta circulação de riqueza, a vedação da cláusula unilateral na lei de consumo caminha

precisamente nesse sentido, cominando de nulidade o item contratual que deforma a pretensão

de realização comum para servir a um dos lados em detrimento do outro:

Art. 51. São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: I - impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos. Nas relações de consumo entre o fornecedor e o consumidor pessoa jurídica, a indenização poderá ser limitada, em situações justificáveis; [...] IV - estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a eqüidade; [...] § 1º Presume-se exagerada, entre outros casos, a vantagem que: I - ofende os princípios fundamentais do sistema jurídico a que pertence; II - restringe direitos ou obrigações fundamentais inerentes à natureza do contrato, de tal modo a ameaçar seu objeto ou equilíbrio contratual; III - se mostra excessivamente onerosa para o consumidor, considerando-se a natureza e conteúdo do contrato, o interesse das partes e outras circunstâncias peculiares ao caso

161.

160 ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 78; 121-124; 138-163. 161 BRASIL. Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8078compilado.htm>. Acesso em: 1º fev. 2017.

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No caso da interpretação dada à expressão “integralidade da dívida pendente”, a corte

superior terminou por acolher uma leitura que desprezou a determinação codificada de vedar

sempre a cláusula potestativa, admitindo, ainda que por intermédio de lei, que uma parte tenha

(ao contrário da outra) a possibilidade de declarar a resolução contratual pelo inadimplemento

mínimo da contrapartida contratual; ainda que fosse facultada igual prerrogativa ao devedor

fiduciário, isto é, ao consumidor, o exercício da resolução por parte do credor fiduciante face

a qualquer mora deixa a contratação por um fio a cada novo mês, o que é exagerado – e, logo,

para fins legais de consumerismo positivado, abusivo.

Colocar a responsabilidade, portanto, nos ombros do legislador e utilizar o brocardo de

que não se deve divisar onde não divisou a lei é tergiversar para evitar a discussão principal,

já que a expressão empregada na nova redação é polissêmica e não pode, nem deve, ser fruto

de uma interpretação alheia aos institutos jurídicos do Direito positivo brasileiro. Além disso,

é sintomático que a República tenha entrado de fiadora na decisão tomada pelo colegiado no

recurso em questão, pois, ao se ameaçar um desequilíbrio entre poderes (ou funções) estatais

em caso de decisão distinta daquela que foi adotada, colocou-se qualquer dissidência sob uma

suspeita velada – o que não procede, como visto acima. Afinal, se interpretar a lei para aplicá-

la corretamente é a função do Poder Judiciário, e se o objeto do estudo jurídico é, além da lei

e da norma jurídica, o ordenamento jurídico, sabendo-se, ainda, que essa lei, essa norma e

esse ordenamento não são uma linha unívoca de comandos, mas um todo polissêmico, definir

o alcance fático e os limites de aplicação da expressão “integralidade da dívida pendente” não

é usurpar função alheia, mas, ao contrário, exercer a própria.

Sobre a omissão decisória, isto é, sobre a ausência de discussão a respeito de se poder

ou não se poder alienar o bem antes de proferida sentença na instância, pode-se dizer que esse

é um tópico que deixa o terreno da hermenêutica para entrar na área do Direito Constitucional

– temos aí uma discussão, no fundo, sobre devido processo legal, um princípio estruturador de

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todas as modalidades de processo, seja ele administrativo ou judicial e, neste último caso, seja

ele cível ou penal. Ora, se é exatamente por isso que é difícil definir em que consiste o devido

processo legal, é precisamente pela mesma razão que é tão difícil ignorá-lo, isto é, dizer que

não foi ele violado quando acontece alguma violação. Sua composição é tanto procedimental

quanto substancial: no primeiro aspecto, assegura que os trâmites judiciais (especialmente os

judiciais) sejam obedecidos de acordo com a disciplina elencada pela lei, vedando-se, assim, o

arbítrio processual. No segundo aspecto, o substancial, serve a razoabilidade como um critério

para o aspecto procedimental, visto que, quando a lei não disciplina o rito do procedimento de

maneira razoável, pode-se utilizar o bom senso para evitar que, por uma iniciativa legislativa

irresponsável, viole-se a garantia de um processo justo, isto é, de um julgamento pautado pela

isenção de juízo, verdade objetiva e prova crível e fidedigna.

É em termos semelhantes que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem dimensionado o

devido processo legal na jurisprudência do país. Cito, por todos, o que se segue:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. SANÇÃO POLÍTICA. NÃO-PAGAMENTO DE TRIBUTO. INDÚSTRIA DO CIGARRO. REGISTRO ESPECIAL DE FUNCIONAMENTO. CASSAÇÃO. DECRETO-LEI 1.593/1977, ART. 2º, II. 1. Recurso extraordinário interposto de acórdão prolatado pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região, que reputou constitucional a exigência de rigorosa regularidade fiscal para manutenção do registro especial para fabricação e comercialização de cigarros (DL 1.593/1977, art. 2º, II). 2. Alegada contrariedade à proibição de sanções políticas em matéria tributária, entendidas como qualquer restrição ao direito fundamental de exercício de atividade econômica ou profissional lícita. Violação do art. 170 da Constituição, bem como dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. 3. A orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal rechaça a aplicação de sanção política em matéria tributária. Contudo, para se caracterizar como sanção política, a norma extraída da interpretação do art. 2º, II, do Decreto-lei 1.593/1977 deve atentar contra os seguintes parâmetros: (1) relevância do valor dos créditos tributários em aberto, cujo não pagamento implica a restrição ao funcionamento da empresa; (2) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle do ato de aplicação da penalidade; e (3) manutenção proporcional e razoável do devido processo legal de controle da validade dos créditos tributários cujo não-pagamento implica a cassação do registro especial. 4. Circunstâncias que não foram demonstradas no caso em exame. 5. Recurso extraordinário conhecido, mas ao qual se nega provimento. (RE 550.769, Relator(a): Min. JOAQUIM BARBOSA, Tribunal Pleno, julgado em 22/05/2013, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-066 DIVULG 02-04-2014 PUBLIC 03-04-2014)162.

162 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário 550.769 RJ. Recorrente: American Virginia Indústria Comércio. Recorrido: União. Relator: Ministro Joaquim Barbosa. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/visualizarEmenta.asp?s1=000230735&base=baseAcordaos. Acesso em: 1º fev. 2017.

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E é ainda unânime na literatura que suas dimensões se completam:

A cláusula due process of law não indica somente a tutela processual, como à primeira vista pode parecer ao intérprete menos avisado. Tem sentido genérico, e sua caracterização se dá de forma bipartida, pois há o substantive due process e o procedural due process, para indicar a incidência do princípio também em seu aspecto substancial, vale dizer, atuando no que respeita ao direito material e, de outro lado, a tutela daqueles direitos por meio do processo judicial ou administrativo [...] O conceito de ‘devido processo’ foi se alargando com o passar do tempo, sendo que doutrina e jurisprudência aumentaram o âmbito de abrangência da cláusula de sorte a permitir interpretá-la de maneira elástica, o mais amplamente possível, em nome dos direitos fundamentais do cidadão

163.

O papel macro-estrutural desse princípio no ordenamento jurídico não impede, claro, a

consolidação valorativa de outros preceitos que lhe são ligados e, subsequentemente separada

e individualmente nominados, à medida em que amadurecem – caso do juiz natural, da ampla

defesa e do contraditório, princípio que, em si, já possuem existência própria e ontologia, por

assim dizer, específica e independente164. Mas todos se reportam ao devido processo legal por

uma razão singular, a de que ele representou, como representa ainda, a síntese de uma guinada

– a guinada que passou a ver o processo como um ato imprescindível à cidadania. Se, antes, à

época de el-rey, era dispensável justificar o exercício do poder do Estado, fosse esse poder

exercido genérica ou individualmente, a partir da evolução do pensamento iluminista e da sua

gradual incorporação ao Direito, esse exercício passou a depender de justificação suficiente

não apenas a respeito do que se pretende fazer, mas de como; o cidadão passou a ter a garantia

de que seus bens, vida e propriedade não estariam sujeitos ao capricho ou ao arbítrio, mas à

lei e à razão, isto é, ao que havia sido fruto da vontade política e da lógica jurídica.

Logo, quando se fala em devido processo legal não se fala de um princípio que encerra

em si um mandamento de otimização, ou, pelo menos, não se fala em um princípio que traz só

163 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do processo civil na Constituição Federal. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 65. 164 Regras infraconstitucionais como a da vedação da decisão surpresa e da necessária fundamentação com base inclusive no precedente também são corolário do princípio constitucional do devido processo legal – essas regras mencionadas são encontradiças, respectivamente, nos artigos 9º e 489, caput, §1º e inciso VI, do atual Código de Processo Civil (BRASIL. Lei n 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Código. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 1o fev. 2017).

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e tão somente isso; fala-se de um princípio que propõe uma reflexão sobre os demais itens de

natureza processual, sejam princípios ou regras, e sobre um princípio que sugere uma reflexão

a respeito do próprio significado de processo, visto que o processo é um direito fundamental

cronologicamente recente na História do Direito; considerando que o processo era dispensável

no Absolutismo e que os últimos regimes absolutistas europeus datam de, aproximadamente,

200 (duzentos) a 300 (trezentos) anos atrás, constata-se muito facilmente que a razão de ser

do processo como criação jurídica é recentíssima.

Ora, se assim é, evidentemente não poderia ter sido ignorado, como o foi, pela corte de

decisão. Primeiramente, porque nenhum órgão jurisdicional se escusa de decidir alegando que

a matéria é constitucional: todo e qualquer magistrado não só pode, como deve, exercer juízo

difuso de constitucionalidade sobre os atos que lhe são apresentados165. Em segundo lugar,

por mais que a proteção da Constituição seja tarefa precípua do Supremo, ela não é exclusiva

dele e, tendo de dar a última palavra sobre a interpretação de lei federal, é inevitável ao

Superior Tribunal de Justiça (STJ), senão costumeira, pelo menos eventualmente se

pronunciar sobre a inconstitucionalidade de leis ou atos normativos166. No caso do Recurso

Especial n 1.418.593 MS, perdeu-se uma excelente oportunidade de fazer exata e

165 Embora, por incrível que pareça, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já tenha utilizado o argumento de que é ao Supremo Tribunal Federal (STF) que compete conhecer de matéria constitucional para negar conhecimento a recurso interposto para si, como no caso do Recurso Especial n 1.353.628 RN, assim ementado: RECURSO ESPECIAL. CONCURSO PÚBLICO. AUXILIAR TÉCNICO DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE. PATOLOGIA CARDÍACA CRÔNICA. USO DE MARCAPASSO. VAGAS DESTINADAS A DEFICIENTES FÍSICOS. DECRETO Nº 3.298/1999. FUNDAMENTAÇÃO CONSTITUCIONAL. SÚMULAS 126/STJ E 283/STF. 1. Incidência da Súmula 126/STJ, tendo em vista que o recorrente não interpôs recurso extraordinário para impugnar fundamentação constitucional autônoma e independente contida no acórdão recorrido, segundo a qual o recorrente, portador de deficiência cardíaca e fazendo uso de marcapasso, não poderia concorrer nas vagas e com os demais deficientes porque estaria em grande vantagem no concurso em relação a eles, violando o princípio da isonomia. 2. Aplicação, ainda, da orientação da Súmula 283/STF, pois não impugnado no recurso especial o mesmo fundamento relativo à impossibilidade de o recorrente concorrer com os demais concorrentes portadores de necessidades especiais (v.g.: cegos, surdos, paraplégicos etc). 3. Recurso especial não conhecido (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial n 1.353.628 RN. Recorrente: Nelson Figueredo Pinheiro de Lima. Recorrido: Estado do Rio Grande do Norte. Relator: Ministro Castro Meira. SEGUNDA TURMA. 08 nov. 2012. Disponível em: <https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?num_registro=201202399782&aplicacao=processos.ea>. Acesso em: 1o fev. 2017). 166 Uma coisa é indissociável da outra: exatamente por isso que o Supremo Tribunal Federal (STF) criou, na sua praxe jurisprudencial, a categoria “ofensa indireta” ou “ofensa reflexa”.

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precisamente isso: ora, se a lei autoriza a consolidação da propriedade do bem de garantia, e a

sua subsequente alienação a terceiro, antes de proferida sentença na instância, fica muito claro

que se está a desrespeitar a cláusula do devido processo legal.

Por quê, precisamente?

Porque, primeiro, a lei não exige qualquer medida de cautela como condição prévia a

fim de assegurar o resultado prático equivalente se e quando, depois de alienado o bem, vier a

sentença a ser desfavorável – o que torna desproporcional, e até mesmo digno de nota, que se

possa alienar o bem sub judice. Além disso, em segundo lugar, é total e absolutamente fora de

dúvida que colocar este ou aquele bem em discussão judicial não é, por conseguinte, através

da mera propositura da petição inicial, ter imediatamente poder sobre aquele bem, mas deixa-

lo à disposição da justiça, até que esse mesmo órgão de justiça “diga o Direito”, isto é, até que

ele tome um pronunciamento favorável à pretensão deduzida. Tanto assim é que, ao traçar um

paralelo entre o que a Lei de Busca e Apreensão define e a natureza das medidas cautelares e

das medidas antecipatórias, vê-se de forma muito nítida que a antecipação dos efeitos da

tutela é uma exceção – a regra é que toda e qualquer prestação de juízo seja exarada depois de

havido o contraditório e depois que seja exercida a ampla defesa167. Por fim, merece destaque

que não existe previsão de que, nos autos, haja o ressarcimento integral da parte lesada pela

alienação antecipada, constando tão somente a previsão de uma penalidade intitulada multa

para aplicação em casos tais como esse.

Ora, se assim é, tanto naquilo que se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça (STJ)

– a expressão “integralidade da dívida pendente” – quanto naquilo que silenciou (a discussão

de ordem constitucional sobre o devido processo legal) não parece ter adotado a melhor das

soluções jurídicas possíveis, ou pelo menos não de acordo com o ordenamento jurídico posto

e vigente no país.

167 Mesmo assim, na disciplina legal da antecipação, o perigo in rem verso é uma possibilidade considerada pelo legislador, que coloca ao critério do juízo a opção de exigir a caução, se assim for julgado interessante.

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7 CONCLUSÕES

Como se pôde observar do julgamento do Recurso Especial n 1.418.593 MS sob

análise, e do trajeto teórico percorrido neste trabalho, é possível e desejável fazer uma outra

interpretação a respeito da matéria tratada no recurso; não é porque o texto limita o que se

interpreta que a interpretação precisa, por sua vez, se limitar a repetir o que diz o texto – nem

é porque o legislador não divisou ao legislar que, em decorrência, nunca o julgador poderá

divisar sobre o mesmo ponto, ainda mais omitindo discussão de ordem constitucional. Como

se colocou na Introdução deste trabalho, a lei, não podendo ser injusta, não pode aceitar que o

Direito a ela se resuma; da mesma forma, pelas mesmas razões, não pode o órgão julgador ser

cooptado por uma visão estreita de Jurisdição ao exercer a sua competência constitucional

sobre as matérias de sua alçada.

É fora de dúvida que a Lei de Busca e Apreensão é de período de exceção, e que só

continua a vigorar por força de recepção constitucional; também é fora de dúvida que

pretende regular a faculdade do credor fiduciante de resolver o contrato firmado com o

devedor, e que o credor precisa de suas prerrogativas para fazer valer sua vontade contra o

inadimplemento do devedor; mas admitir que mudanças legislativas oriundas de um período

democrático desequilibrem ainda mais a relação entre essas figuras contratuais (e que, ainda,

através de recurso excepcional, o recurso especial, em sede de julgamento de regência

repetitiva, o próprio Judiciário afiance que a alteração procedida é, além de constitucional,

legítima, jurídica e coerente), é um verdadeiro assombro. Escolher entre as opções possíveis

dadas pelo Direito Positivo é uma prerrogativa do órgão julgador, mas exige a contrapartida

de justificar, argumentativamente, as posições tomadas – é no uso público da razão que se

checa a validade da afirmação, comparando-se, ainda, se foi tomada conforme preceitos

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éticos-comunicativos, hoje em dia obrigatórios para quando se quer falar de Democracia e

Estado de Direito.

Se a gênese dos Direitos Fundamentais precisou de uma elaboração filosófica de

envergadura sem precedentes para se consumar, o legado kantiano mostrou que apenas se

colocamos o ser humano, ou qualquer ser autônomo, racional e consciente, como um valor-

em-si, podemos falar de uma Ética que chegue a ser deontológica, isto é, de uma Ética que

permita prescrever condutas para proteger valores, e de uma Ética que faz, ou dá sentido, em

relação ao Direito – pois somente reconhecendo as liberdades individuais do sujeito como

dignas de proteção (até argumento em contrário), faz sentido discutir até onde pode ir o

Estado, ou um particular, diante daquelas liberdades. Destaca-se que, no caso específico do

recurso especial interposto, em todos os momentos de discussão da matéria se quedou

perceptível que apenas o credor fiduciante foi tratado como titular de direitos, a ponto de se

omitir a discussão constitucional a respeito do devido processo legal, do contraditório e da

ampla defesa, suscitada na instância monocrática e, depois, no tribunal estadual que

confirmara a decisão de primeiro grau.

Além disso, se a gênese filosófica não partiu do nada, mas derivou, mais do que um

trajeto, de uma jornada, que construiu seu sentido a cada passo da caminhada, e se a

articulação social que emancipou politicamente o homem na Modernidade veio de uma

postura de sujeitos que se tornaram economicamente independentes, e que queriam, por

tabela, ser politicamente ativos, ou ativamente participantes, fica claro que a decisão do

Superior Tribunal de Justiça (STJ) no recurso especial em debate desconsiderou esse papel de

protagonista do sujeito comum, que restou tutelado sem ser consultado. Isso é contrário,

inclusive, a como se incorporou a pauta emancipatória da Idade Moderna ao Direito: por essa

tradição, o que era privado se tornou público, e o que era contratual se fez estatutário, isto é, o

que era um acordo de cavalheiros virou um pacto social, e o que era mero contrato virou uma

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Constituição. Por essa tônica, percebe-se que o movimento de incorporação de sentido ao

Direito e de produção de normas jurídicas dentro de uma República, é sempre centrípeto, e

não centrífugo, isto é, nunca irradiando de um centro autocrático, mas sempre emergindo da

sociedade civil para ser oficializado – o que fez, inclusive, o sujeito de direito, nesse processo,

ser tanto cidadão quanto indivíduo, e, por assim dizer, gozar de uma dupla cidadania, ou

autonomia – a pública e a privada. Não é saudável pensar em um Poder Judiciário que não

atenta para essas 02 (duas) dimensões simultânea e equivalentemente quando trata do sujeito

de direito.

O que, inclusive, nos reporta a Habermas: ora, se o agir comunicativo tenta exata e

precisamente coordenar ações para formar uma consensualidade argumentativa, não é

razoável imaginar que uma lei pode ser votada, uma forma de Direito pode ser praticada e

uma decisão superior de instância excepcional pode ser tomada sem que haja mínima e

suficientemente uma permeabilidade com o meio social circundante, tanto para que se saiba,

em um primeiro plano, do que se acontece, quanto para que, em segundo plano, e bem mais

importante, se possa participar do acontecimento. Quando a medida é adotada sem essa

pluralidade participativa, a legitimidade fica comprometida, quando não o fica a própria

integridade argumentativa da decisão escolhida, visto que a exposição a outros pontos de vista

colaboraria inclusive para se fortalecer a solução técnica que viesse a ser encontrada e

assumida. Não foi o caso: e, em não tendo sido, a sensação é de que falta à saída técnica

figurada na decisão do recurso tanto o acabamento intelectual que exige o rigor jurídico

quanto o senso de justiça que precisa incidir sobre a solução constituída – especialmente

considerando que esse senso depende, como visto na trajetória teórica do trabalho, de uma

percepção a respeito de valores, mas também de uma participação para a construção de uma

decisão não solipsista.

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Assim, comparando a decisão adotada com os institutos jurídicos positivados no nosso

ordenamento jurídico, conclui-se que entender “integralidade da dívida pendente” como o

total do débito contratual é ignorar a funcionalidade da mora relativa e penalizar o

inadimplemento, ainda que primário, acidental e ocasional, com a extinção formal do

contrato, ainda que em dissonância de sua função social como instrumento de circulação de

riquezas, e contra a eticidade e a operabilidade que regem o Código Civil em vigor; além

disso, autoriza-se, com essa interpretação, que uma lei faça o que o contrato não pode fazer –

instituir uma cláusula abusiva, e, logo, nula, nos termos do consumerismo positivado – e o

que uma lei, inclusive, jamais poderia ter feito – que é ignorar o direito de propriedade do

devedor fiduciário, ele também titular de um bem, embora, claro, em comunhão com o credor

fiduciante. Como o direito à propriedade é constitucionalmente assegurado, sendo

considerado largamente como um direito fundamental, vê-se que a lei foi longe demais ao

alterar a disciplina das ações de busca e apreensão – e que a decisão colegiada que resolveu a

pendência em regime repetitivo de sede especial foi mais longe ainda ao não abordar uma

outra consideração de ordem constitucional: nada mais, nada menos, que uma discussão sobre

o devido processo legal, isto é sobre a licitude de se alienar ou não o bem antes da sentença,

isto é, da decisão final da instância.

Logo, é mais do que pertinente sugerir uma outra interpretação para a questão em tela,

uma interpretação que seja juridicamente correta, constitucionalmente orientada e

discursivamente legítima, por meio da qual não se traduza a expressão “integralidade da

dívida pendente” como equivalente ao total somado do débito contratual (vencido mais

vincendo), mas apenas como o vencido, pois, de tal forma, nem se passará ao largo da

funcionalidade prática da mora relativa, nem se ignorará a função social do contrato,

evitando-se, ainda, uma nulidade por abusividade da medida, nos termos do Código de Defesa

do Consumidor; não se fará tábula rasa da indiscutível fundamentalidade dos direitos de

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propriedade e do devido processo legal; e não se autorizará uma prática e uma interpretação

autocráticas do Direito, que alienam a lei (e, por extensão, a decisão judicial) de uma relação

com os imperativos éticos da Justiça, e que pretende diminuir a importância do agir

comunicativo orientado para a construção de consensos – como se ao Direito bastasse o

recurso à pura e simples coercitividade.

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