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E O AVESSO O REAL & OUTROS TEMAS O MAR EM CAMÕES E PESSOA Francisco Ferreira de Lima Volume 2

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E O AVESSOO REAL

& OUTROS TEMASO MAR EM CAMÕES E PESSOA

Francisco Ferreira de Lima

Volume 2

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No estudo de Francisco Ferreirade Lima é de notar, logo às primei-ras linhas, o brilho do estilo e dopensamento. Aquele, como se sabe,é da própria natureza do ensaio, doqual se espera, acima de tudo, queseja bem escrito, não no sentidoelementar de seguir à risca as nor-mas cultas da gramática. Mas no deconter elegância, unidade na varie-dade, além de manifestar domíniosuperior no idioma. Em suma, bemescrito, a ponto de correr o riscode chamar mais atenção sobre si doque sobre o pensamento que vei-cula ou as coisas que descreve. Eeste risco o ensaio de FranciscoFerreira de Lima corre permanen-temente, dando-nos um sinalinquestionável de sua maturidadede ofício. Dir-se-ia até que a forçado seu estilo guarda um ficcionistaou mesmo um poeta ciosamenteaninhado nas dobras do ensaísta.(Massaud Moisés, sobre O outrolivro das maravilhas)

Os oito ensaios aqui reunidos têmem comum, além do tema, o cuida-do com a forma de expor e argu-mentar, assegurando-lhes o méritode serem construído numa lingua-gem clara, elegante e sobretudocriativa. Raros livros resultantes daconstante produção intelectual daUniversidade conseguem desper-tar interesse tanto pelo que é ditoquanto pelo dizer, este último cons-tituindo objeto de proveito e pra-zer do leitor culto.(Cid Seixas, sobre O Brasil deGabriel Soares de Sousa)

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O REAL E O AVESSOVolume 2

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Composto em OriginalGaramond corpo 12Formato 13 x 21 cm.

180 páginasPublicado em dezembro de 2017

Endereços digitais deste livro:https:\\issuu.com/e-book.br/docs/real-avesso

www.e-book.uefs.brwww.linguagens.ufba.br

Os livros eletrônicos da e-book.brsão concebidos para comportar tiragens impressas.

Edição, design e execução:Cid Seixas

Ilustração da capa:Lélia Parreira

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e-book.brEDITORA UNIVERSITÁRIA

DO L IV RO DIGITAL

Francisco Ferreira de Lima

E O AVESSOO MAR EM CAMÕES E PESSOA

& OUTROS TEMAS

O REAL

Volume 2

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FICHA CATALOGRÁFICA

CONSELHO EDITORIAL:

Alana El Fahl (UEFS)Cid Seixas (UFBA | UEFS)

José Rodrigues de Paiva (UFPE)V icente Cruz Cerqueira (UFAC)

Vitor Hugo Martins (UNEB)

L698r Lima, Francisco Ferreira de

ISBN 978-85-7395-277-3

1. Literatura portuguesa. 2. Literatura brasileira. I. Título.

CDU: 869.0

O real e o avesso: o mar em Camões e Pessoa& outros temas. Volume 2 – Salvador: Rio doEngenho; Feira de Santana: UEFS, E-Book.Br,2017.

180 p.

EDIÇÕES RIO DO ENGENHO

Editor:Cid Seixas

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SU M Á R IO

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Palmeirim de Inglaterra: para educare divertir o príncipe (e o leitor)

Porque me ufano do meu país:Ambrósio Fernandes Brandãoe as grandezas do Brasil

Literatura de viagense a “atualização” do imaginário

De romarias, peregrinaçõese outras viagens

A permanência rasurada:a poesia dialógica de Castro Mendes

A Canção em Camilo Pessanha

O real e o avesso:o mar português em Camões e Pessoa

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Apresentação

Aldeia Nova e a diluiçãodas fronteiras narrativas

No Alentejo de Fernando Namora:modos de ler a (mesma) paisagem

Paisagens em Miguel Torgae Manuel da Fonseca

De mediações e subalternidades: o lugarde Miguel Torga e Manuel da Fonseca

De Trás-os-Montes aos pampas uruguaios: oshomens e seus indissociáveis arredores

Da vida como ela é à vida que deveria ser:utopias proletárias em Jorge Amado

e Alves Redol

Quincas Berro D’água:aquém da vida, além da morte

Angústia começa em Caetés

LEIA NO VOLUME I

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O REAL E O AVESSO

PALMEIRIM DE INGLATERRA:PARA EDUCAR E DIVERTIRO PRÍNCIPE (E O LEITOR)

O fato é descrito por quase todos os cronistasportugueses que se ocuparam das coisas do Orien-te: a malograda tentativa de se tomar Calicut, naÍndia, em 1510, pelo “Marechal” D. FernandoCoutinho, auxiliado, parece que a contra gosto, peloseu tio, o grande Afonso de Albuquerque.

Apesar de Calicut estar em paz com os portu-gueses há já algum tempo, não havendo, portanto,razão política para que se justificasse empresa tãoarriscada, a invasão é decidida – e realizada. O fias-co é completo. O Marechal é morto em combate,assim como uma boa parte dos fidalgos que o acom-panhavam; os sobreviventes, dentre eles o Gover-nador, são forçados a cometer humilhante deban-dada, em que salvam apenas seus atemorizados po-bres corpos.

Se não havia razão política – há de se perguntar oleitor apressado – o que levaria os portugueses, se-

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nhores da “conquista, navegação e comércio” demeio mundo, a gesto tão desatinado? Razão políti-ca efetivamente não havia; mas havia outra, muitomais forte que uma modesta e pragmática questãopolítica.

Resuma-se a história, porém. Sabia-se em Portu-gal que o Samorim de Calicut possuía um palácioguardado por portas lavradas em ouro, ricamenteornadas com imagens de pássaros e animais. Alémde proteger os tesouros do interior do palácio, eramelas próprias um tesouro ornamental.

Depois de muito insistir junto ao rei – com quemprivava, segundo os cronistas –, D. Fernando Cou-tinho conseguiu sua autorização para montar umaarmada e trazer-lhe de presente as famosas portas.

Vencidas as resistências do tio, que inicialmentese opôs ao projeto, D. Fernando traçou o plano dainvasão, não sem antes obrigar todos os participan-tes a jurar que não tocariam nas portas antes dele.Sucede, porém, que, havendo problema de ventosno desembarque, D. Fernando só chegou ao localcombinado muito tempo depois. Para seu desespe-ro, o ato já fora consumado pelo Governador que,instado pelos seus subordinados, decidira “ganhar ahonra” de acometer o palácio.

Ao receber o comunicado de que as portas já esta-vam embarcadas, prontas para ser entregues ao rei, D.Fernando sentiu-se traído. Ordenou que fossem jo-gadas ao mar, pois que não havia qualquer “honra” emtê-las assim. Ato contínuo, partiu para o palácio como fito de conquistá-lo de seu próprio, firmemente con-vencido de que “honra” se ganha só e exclusivamentede arma (branca, de preferência) em punho.

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Refeitos da surpresa, os da terra puderam fazerfrente ao ataque, dizimando quase que completa-mente as hostes portuguesas. E o final foi como jáse disse: derrota e humilhação como saldo.

Havia, portanto, mais que uma questão política,uma questão de “honra”. E o leitor apressado maisuma vez foi vítima de seu açodamento. Não era dedesatino que se tratava, mas do cavaleiresco e sagra-do dever de “ganhar a honra”, seguramente o maisfundamental de todos os elementos a operar nouniverso simbólico da nobreza quinhentista penin-sular. Ainda que haja um aparato político-institucional a regular a ação governamental, o queem princípio faria crer em modos políticos de rela-cionamentos entre povos e estados diferentes, é a“honra” que legitima a ação. Fora disso, a desonra.Tanto é assim que, dizem ainda os cronistas, muitosfidalgos portugueses desistiram de lutar, à medidaque a espada ia sendo substituída por armas de fogo,que arrefeciam o combate e, por isso, o desonra-vam.

Ainda que um pouco longa, a historinha apre-sentada é eloquente em si mesma: os esquemas men-tais que enformavam as viagens ultramarinas, o em-preendimento mais audacioso que a humanidade atéentão cometera, eram praticamente ainda os mes-mos que compunham o assim chamado “idealcavaleiresco”, coisa que, na Itália e na Flandres bur-guesas do século XVI, era já secular lembrança deum passado definitivamente morto. Ora, se assimse dava com o Portugal de além-mar que abrira no-vos tempos e novos mundos ao mundo velho, tor-nando evidente o descompassado entre o que se fa-

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zia - ou que se deveria fazer – e o que se pensava, oque dizer do Portugal continental, sempre a fanta-siar “justas” para “honra” de seus guerreiros?

Com efeito, os ares novos produzidos peloHumanismo, os mesmos ares que, na prática, im-pulsionam as caravelas para o desconhecido, soprammuito fracamente por sobre a nobreza do Portugalde quinhentos. Quanto mais não fosse, bastaria umexemplo quantitativo para demonstração. Tome-seo caso de João de Barros. Humanista de influênciaerasmiana, Barros é divulgador dos novos princípi-os, que deveriam colocar Portugal no ritmo dos tem-pos moderno. Todas as instituições são submetidasao crivo do pensador, a ponto de Batallion, citadopor Coelho (1973, 94), afirmar que a Rópica Pnefmaé “o mais original texto de prosa filosófica impressoem Portugal no século XVI”. Ao lado dessa discus-são propriamente político-filosófica, Barros é incan-sável estudioso dos aspectos linguísticos, buscandoestabelecer as relações entre língua e nacionalidade,aspecto tão caro aos humanistas.

Mas é, simultaneamente, o autor que inaugura anovela de cavalaria propriamente portuguesa, se sequiser conceder que antes da Crônica do ImperadorClarimundo, que é de 1520, havia apenas o Amadis...,de 1508, cuja problemática de autoria e nacionali-dade é em si mesmo uma novela. Clarimundo..., naprofecia de Fanimor, antecipa o viés épico que vaimarcar todo o quinhentos português, até explodirem Os Lusíadas. Mas é no historiador, que não via-jou além do norte da África, que a dimensãohumanista se atrofia, subjugada por uma concep-ção apoteótica da história, em que não há pejo de se

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eliminar aquilo que possa comprometer sua“heroica” e grandiosa unidade, pois que a história éuma sucessão de grandes feitos realizados por gran-des homens.

Se, como acertadamente quer Saraiva (1955, 55),o século XVI é um tempo de “anarquia ideológicana Europa”, em que valores ruem e outros se afir-mam, sem que no, entanto, seja caracterizado umquadro de hegemonia, o mesmo não se poderá di-zer de Portugal quinhentista. Ali, malgrado os con-tratempos trazidos pelo Humanismo, impera umaideologia cavaleiresca que tem na guerra de presa,no saque e na escravatura, os móveis da existênciada classe senhorial, porquanto são os móveis gera-dores da “honra”, fora dos quais não se concebe oato de viver.

É bem verdade que Lisboa, com seus cem milhabitantes no século XVI era um centro cosmopo-lita, superado apenas por Paris e por mais duas outrês cidades italianas. Comerciantes, sábios, diplo-matas e aventureiros de toda ordem a visitavam emuitos por lá se instalavam, tornando cada vez maispúblicos – e legítimos – padrões culturais diversos.Por conta disso, é natural que a “pureza” do idealcavaleiresco fosse maculada por um certopragmatismo burguês, que em tudo via a oportuni-dade de criar riqueza.

Isto não quer dizer, todavia, que o ideal cavaleires-co tenha se pragmatizado. Muito ao contrário. Aconvivência forçada com tais valores, que são geral-mente vistos como algo a ser execrado, ao invés delouvado, como que o redimensiona, dando-lhe “ver-dadeira” imagem de sua grandeza. Assim, enquanto

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o comerciante burguês vai à guerra pelo “proveito”,isto é, por aquilo que ela pode proporcionar comoenriquecimento material imediato, o nobre vai àguerra em busca de “honra”, como já atrás se mos-trou. Embora transitem e confluam em certas cir-cunstâncias, os dois conceitos não se misturam,marcando, ambos, posição de “classe” frente aomundo. Muitas vezes, o nobre não passa de um co-merciante, tal e qual o mais simplório burguês. Mas,além de não querer ser visto assim, ele – o que é maisimportante – não se vê a si mesmo como tal. Osdespojos de guerra não dão alegria pela riqueza queproporcionam, como acontece com o burguês; a ale-gria resulta da vitória da audácia, da coragem de seter posto à prova. E o cavaleiro, mais uma vez, está“honrado”.

Isto posto, não é difícil compreender o papelexercido pela novela da cavalaria em Portugal, noséculo XVI. Não há nada que se espantar com o fatode, superada em outras partes da Europa, ali fazer-se tão veementemente presente.

A novela da cavalaria cumpre, pelo menos, duasgrandes funções no quinhentismo português. A pri-meira é a de manter, tão intacto quanto possível,um conjunto de valores que os tempos modernostendiam inapelavelmente a esfacelar, como já acon-tecera nos demais países europeus. A segunda é dese contrapor, no campo propriamente estético, apadrões artísticos, como a verossimilhança, porexemplo, que passara a impor diques ao desregradoimaginário cavaleiresco medieval.

Nenhuma sociedade, por mais “aberta” ou de-mocrática que seja, permite ver-se inteiramente a si

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mesma. É que, como já se sabe há muito tempo, ateoria, na prática, é outra: aquilo que determinadasociedade pensa de si mesma não corresponde exa-tamente àquilo que ela é. Estabelecido – imposto,determinado ou votado – o modo de ser da socieda-de, ela não admitirá a convivência, de igual para igual,com outras possibilidades que rivalizem com aquelee possam eventualmente substituí-lo. Definido omodo de ser, ele se pretenderá sempre único.

Isto não quer dizer que as coisas se passem efeti-vamente assim. Ao lado e contra esse pretensamenteúnico muitos outros modos virtuais esperam o mo-mento de erupção. Enquanto isso não acontece – éo caso das transformações radicais – eles vão forne-cendo pequenos elementos àquele oficial, que os vaiadaptando segundo suas necessidades e conveniên-cias.

Ora, é exatamente o que se dá no simbólico qui-nhentista português. A concepção cavaleiresca, queradica na fundação do estado, encontra-se visivel-mente ameaçada pelas novas relações entre os ho-mens e, consequentemente, pelos novos esquemasmentais produzidos por elas. Mas suficientementefirme para fazer frente a tais ameaças, uma vez que,segundo seu modo de ver, nada há a justificar mu-dança, quando muito, uma simples adaptação, poistudo, apesar de diferente, continuava exatamente omesmo.

Eis o porquê da importância da novela de cavala-ria. Por um lado, ela realimenta o imaginário senho-rial: o cavaleiro que antes lutava pelo Graal, ou sim-plesmente porque, para ele, lutar era igual a viver,agora luta contra o Mouro “ inimigo da Fé e do

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Império; o ascético cavaleiro medieval dá lugar aoque tudo faz para obter a posse física da mulher, e,quanto mais, melhor, como é o caso de Floriano emPalmeirim de Inglaterra, se bem que o casamentovem pôr fim a esse “desregramento”; o tempo e oespaço mantidos elementos secundários da açãocontribuem para situar o cavaleiro — e seu nobreleitor — num tempo e espaço próprios, fora da his-tória. Por outro, ao assim proceder, a novela comoque faz-se uma ponte entre o ficcional e o real, en-curtando distâncias e fornecendo provisões, para quese possa atuar na vida prática. E essa distância pare-ce ir-se estreitando cada vez mais. Na segunda me-tade do século, como aponta Moisés (1957), JorgeFerreira de Vasconcelos não precisará inventar umtorneio cavaleiresco para compor o seu Memorial.Simplesmente, retira-o do real, como se estivesse ademonstrar que não havia diferença de nível: se ocavaleiresco era real, o real era, por sua vez, plena-mente cavaleiresco.

No plano propriamente estético, a novela de ca-valaria, no dizer de Finazzi-Agró(1978), “pode servista como um movimento de indisciplina, contrá-rio à concepção humanista de verossimilhança emarte”. Com efeito, a novela de cavalaria, com suasfadas e mágicos que tudo resolvem em um passe,com seus heroicos guerreiros que vencem exércitoscompletos e saem sãos e salvos das inumeráveis re-fregas, parecia algo ultrapassado ante um tempo quepreconizava o “saber de experiência feito”. Aindasegundo Finazzi-Agró (1978, p. 56), a novela de ca-valaria, apesar do prestígio que desfrutava, sempreencontrou resistência por parte de setores clericais

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e humanistas, que nela viam um desserviço à educa-ção “moderna” dos príncipes e da fidalguia.

Não é de estranhar que assim fosse. Num tempoem que começa a se afirmar a ideia de verificação, aideia mesma de que o homem é a “medida das coi-sas”, a explicação do mundo pelo “maravilhoso” oupelo fantástico já não satisfaz a inquieta mente dosábio. Agora, como queria Giordano Bruno, trata-se de ir ao âmago das coisas, para daí retirar-lhes oprincípio que as anima, pois que o humanista estácada vez mais convencido de que tal princípio é in-trínseco às coisas e não o contrário, como de hámuito se pensava. O indeterminado, que se bastavaa si mesmo, põe-se assim e somente como lugar deindagação.

É, pois, contra esse (novo) modo de ver o mun-do que se insurge a novela de cavalaria. São, antesde tudo, modos de indagar o real que estão em dis-puta. Ao exigir da arte um comportamento pareci-do com aquele que se tem na vida real, a verossimi-lhança atingiu o essencial da novela de cavalaria, tor-nando ilegítimo aquilo que ela faz sua profissão defé: a indeterminação. Ela supõe que forças superio-res agem a favor do cavaleiro escolhido, sejam elasde fundo cristão ou pagão, seja a associação das duas,o que é mais comum. O fato fundamental que anovela põe é de que o homem não se basta a si mes-mo. Ao contrário, ele depende dessas forças para osucesso ou insucesso de suas ações. E não é necessá-rio que se comprove ou verifique. Como virtualida-des que são, basta a manifestação concreta para ca-racterizar sua evidência. Não é exatamente assim quese comporta D. Sebastião, quando, com seu peque-

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no exército, espera o momento de manifestaçãodessas forças superiores, para, com elas, vencer ashostes inimigas? Ainda que veja seus soldados caí-rem um a um, o Rei-cavaleiro está plenamente con-vencido de que algo vai acontecer a favor dos quelutam por Santiago!

O exemplo de D. Sebastião vem a calhar. Se sepensar que tanto o Memorial, de Jorge Ferreira deVasconcelos, como o Palmeirim de Inglaterra, deMorais, são dados a público cerca de dez anos antesda tragédia de Alcácer-Quibir, e cinco anos apenasantes de Os Lusíadas, pode-se facilmente concluirque o ideal da verossimilhança – e tudo aquilo queele implica – continuava a ser algo alheio à novela.Esta, apesar de serem outros os tempos, continuavaa cumprir o seu papel de sempre: fazer crer ao ho-mem que, amparado pelas forças misteriosas queregem o mundo e que estão para além de si, serácapaz de transpor todo e qualquer obstáculo queimpeça a grandeza da Fé e da Pátria – afinal, desdeJoão de Barros, a novela se nacionalizara. Como sevê com D. Sebastião, havia ainda muita gente a acre-ditar nisso. Será preciso o rito de passagem de Alcá-cer-Quibir, para provar que as coisas do mundo nãosão exatamente como aquelas que se passam nasnovelas – embora nos dias que correm a televisãofaça muita gente duvidar de que assim seja.

O ciclo inaugurado com o Amadis e continuadocom o dos Palmeirins põe um problema autoral. Nãose trata mais de um autor diante do papel em bran-co, criando seres com vida própria, mas fazendo agirseres já existentes, com rosto familiar e personalida-de definida. Outros seres de lavra própria do autor

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naturalmente surgirão; esses seres praticarão açõesdistintas, todavia obedecerão linearidades previa-mente estabelecidas pela cadeia sucessória.

É truísmo dizer-se que, por essa época, o concei-to de originalidade era, se não desconhecido, poucolevado em conta. A originalidade reduzia-se – e jánão é pouco – à capacidade que o artista demons-trava na superação do modelo. Mas o modelo era abase sobre a qual o artista trabalhava. Repetindo-o,se pouco talentoso, recriando-o e, portanto, acres-centando-lhe novas camadas significativas, se ver-dadeiramente artista.

Não é, pois, novidade o sentimento de emulaçãono século XVI. No caso da novela, porém, pelomenos o daquela embutida nos ciclos, há um dispo-sitivo que a coloca um degrau além desse sentimen-to de imitação: o autor, mais que um imitador, é umcontinuador, tal e qual um atleta numa corrida derevezamento, cujo resultado final depende dele e doque se lhe antecedeu. Nesse caso, o compromissocom o modelo, no autor de novela, é bem maiorque o daquele autor seu contemporâneo que optoupor outras formas artísticas. Porque não é, a rigor,de um modelo que se trata; antes, é de um capítuloinicial, ou capítulos iniciais, de uma grande novelaque está a se desenvolver.

Pode-se concluir, por conseguinte, que será tan-to mais criativo o autor quanto mais for capaz de,simultaneamente, manter as coordenadas previamen-te estabelecidas, isto é, dar continuidade à figura-ção já esboçada, de modo que o leitor da GrandeNovela não venha confrontar-se com entropias, porum lado; e, por outro, naquilo que toca apenas ao

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autor, que é criar o particular sem se desviar do ge-ral, insuflar a novela de sua marca própria, amplian-do a nível máximo suas estruturas geradoras de sig-nificado.

Francisco de Morais pode ser perfeitamente en-quadrado nesse perfil. Discussão sobre se ele ouHurtado é o autor do Palmeirim de Inglaterra à par-te, a não ser que se queira fazer a novela da novela,tão a gosto de certo tipo de estudioso, o Palmeirimde Inglaterra é o que se pode chamar de obra-pri-ma. É compreensível que, ao longo de suas mil equinhentas páginas, o leitor se entedie ante tantas“justas”, todas tão semelhantes que acabam reduzi-das a uma única. Mas tal repetição parece ter umsentido. É como se a novela operasse tecnicamenteaquilo que se passou a chamar de mis en abyme: a“justa” é sempre outra e sempre a mesma.

Sua, por vezes, complexa estrutura linguística fazlembrar técnicas cinematográficas recentes, como nadescrição da batalha final, por exemplo, em que avisualidade da cena convida o leitor a ser uma espé-cie de testemunha. O tropel dos cavalos, o retinirdas armas, os gritos de dor e desespero são tão níti-dos que causam no leitor moderno a sensação deestar num set de filmagem. E a impressão é reforça-da pelos diversos planos escolhidos pelo narrador.Aqui é uma panorâmica em que se defrontam mi-lhares e milhares de soldados; ali, depois de um cor-te brusco, vê-se em minúsculo plano, assim comoem Os Lusíadas, restos do que foi uma luta encarni-çada. Pedaços de armas, restos de uma armadura,fragmentos de um corpo, tudo jaz mortalmentedesarticulado, a marcar a ferocidade da luta.

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A descrição da natureza é outro ponto alto danovela. Em seus melhores momentos – naqueles emque atua a mão do artista e não a obediência ao clichê,que, diga-se, não é de rara presença – pode-se ob-servar, por um lado, uma certa herança do lirismotrovadoresco, mormente aquele das cantigas deamigo, em que o rio, a árvore e o lago funcionamcomo interlocutores do anseio humano , por outroparece antecipar elementos da novela pastoril.

Típica novela do século XVI, o Palmeirim har-moniza a moralística medieval e o Humanismorenascentista, fundindo tradição e modernidade naeducação política do príncipe (e do leitor). Na mes-ma linha é também tratado o fantástico, que atra-vessa a novela do começo ao fim, e é visto ora mui-to a sério, ora sob sutil ironia. Ao dar ao mágicouma faceta de risível, a novela ganha um inusitadotoque humorístico, no qual “ciência” e comédia pa-recem ter fronteiras aproximadas. Ademais, o “hu-mano”, como no caso de Miraguarda e das damasfrancesas, invade o esquematismo na construção dapersonagem e avança para o esboço de retratos psi-cológicos, compromisso em geral alheio aos hori-zontes da novela.

Essas são seguramente algumas das razões por queo Cura e o Barbeiro, no Quixote, ao queimar as no-velas de cavalaria pertencentes ao Cavaleiro de Tris-te Figura, atitude em que viam o único meio de salvá-lo da completa demência, resolvem poupar de suapirotecnia apenas duas delas: O Amadis de Gaulaera uma; a outra, o Palmeirim de Inglaterra.

Eram ainda essas mesmas razões que faziam osucesso de Palmeirim junto ao leitor. Tanto sucesso

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que, às vezes, causava certos embaraços conjugais,como na história (recolhida por Thomas Henry ecitada por Ferreira (1973)) de um certo fidalgo que

casou enfim com tal senhora, por quem fizera tan-tos extremos, tantas finezas de amor; e na primeiranoite de suas bodas, assim que se recolherão, pedioa D. Simão uma vela e poz-se a ler por Palmeirim deInglaterra, no que gastou tanto tempo, que parecen-do despropósito à dama, lhe disse: Senhor, para issocasastes? Respondeo elle: E quem vos disse que ocasar era outra coisa?

A ação é o móvel primeiro da novela e seu princi-pal elemento de identidade. Como tem insistidoMoisés (1987), ela diferencia-se estruturalmente dasoutras formas em prosa por a) enfatizar a ação, tor-nando tudo mais secundário, mero instrumento doseu desenrolar-se; e b) por supor um ordenamentosucessivo para a realização das ações. Nesse senti-do, – a lição ainda é de Moisés – o sucesso da nove-la, em qualquer tempo, adviria de ela se pôr (ilusori-amente) perante o leitor como a vida parece ser oucomo este gostaria que fosse: uma sucessão de fatoslinearmente ordenados no tempo e no espaço, as-sim como a sucessão das horas do relógio ou dosdias e das noites.

Não é sem razão que a novela é criticada por sua“artificialidade” desde praticamente sua origem. Dohumanista do século XVI ao intelectual do final doséculo XX, há uma unanimidade de posições contraa novela, ainda que as razões não sejam exatamenteas mesmas. Apesar da crítica, a novela tem vigoro-

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samente resistido aos tempos, se bem que necessitevariar de veículo de tempos em tempos. Do folhe-tim foi ao rádio, daí ao cinema e, mais recentemen-te, à televisão, onde parece se dar muito bem. Em-bora não seja o lugar para se desenvolver esse tipode reflexão, é curioso observar-se tantas mudanças.Obcecada pela ideia de ser igual à vida – embora sejatão diferente – a novela não mede esforços paraatingir seu objetivo. Daí sua dependência àtecnologia. Mas não há como fugir: tanto mais “ver-dadeira” a novela, tanto mais novelesca ela o será.

É, preciso, porém, a bem da novela, esclarecer quenem sempre o descompasso entre ela e a vida foi tãoradical como se dá modernamente. A busca interiorlevada a cabo pelo romantismo, e desenvolvida noséculo XX pelos estudos de psique humana, mos-trou mundos até então inacessíveis. Ao sucessivopôde-se então opor o simultâneo e variegado; aolinear pôde-se opor o entrecruzado, maneiras pelasquais descobriu-se funcionar a complexa atividademental do homem. Por isso as tentativas de captar-se esse processo com o fluxo de consciência, no pla-no verbal e com o surrealismo – e muitos outrosismos – no pictural. A viagem ao interior do ho-mem, dessarte, atingiu limites impensáveis, abrindocaminhos completamente novos para a arte. O ro-mance moderno, por exemplo, tem muito que vercom essas descobertas.

Mudanças tão radicais não foram capazes de ba-lançar as estruturas da novela. É como se, para ela,nada, ou praticamente nada de fundamental hou-vesse ocorrido, uma vez que seu princípio ordenadorsupõe um homem resolvido, inteiro, pronto para

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agir. Não pode haver uma novela cujo herói comecepor colocar em xeque seus valores, que esteja dividi-do entre o “ser ou não ser”. Em suma, a “crise do eu”,ou qualquer outra similar “invenção” da modernidade,não encontra guarida na novela. O fora – e não o den-tro – é ao mesmo tempo seu ponto de partida e dechegada. Nesse sentido, a novela manteve-se sem-pre fiel aos seus princípios. A vida – a visão do ho-mem – é que se tornou complexa, ao incluir em seueterno indagar campos de interesse com os quais anovela não podia contar. Seguramente, se algo mu-dou – e mudou muito – não foi a novela.

Pelo que já se expôs, pode-se esboçar o perfil doherói novelesco. Preocupado que está em agir, emtranspor os obstáculos que se lhe põem à frente,como que o herói esquece-se de si mesmo, porquantosua configuração só se realiza na e pela ação. “Diz-me da ação que te direi do herói”, eis o que poderiaser um bom lema para a novela.

Não é que do herói novelesco seja feita tábularasa e ele aja como autômato, marionete, a saltarobstáculos e mais obstáculos, como se poderia pen-sar à primeira vista. É que o herói luta por um corpode crenças previamente estabelecido, do qual não sepode desviar. Os obstáculos com os quais se defrontarepresentam, na verdade, valores que ameaçam – oupodem vir a ameaçar – seu sistema de crenças. Daí aluta constante.

Como se pode observar nas novelas modernas,as coisas se passam mais ou menos assim, ressalva-das, claro, as circunstâncias: obrigada a “acompa-nhar a vida”, a novela moderna pretende-se tão com-plexa quanto a vida o é. Pelas razões já expostas,

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pode-se ver que tal complexidade não ultrapassa olimite da mera pretensão. Por essa mesma preten-são, neste caso mais bem-sucedida, é na novela decavalaria que tais características do herói melhor serevelam.

Neste sentido, Palmeirim de Inglaterra é novelaexemplar. Seu herói só para de lutar por duas ra-zões: ou está usufruindo as delícias do amor (porque tanto lutara), ou convalesce, curando-se da jus-ta travada. Para o herói de Palmeirim, viver é lutar.Mas é lutar para defender uma concepção de vida ede mundo, sobre a qual não há qualquer dúvida. Talqual um bloco monolítico, não há fissuras na estru-tura desse herói.

Como consequência, o problema da identidade,que tanto atormenta o homem moderno, não secoloca na novela de cavalaria. Ali, identidade sem-pre resolvida, o problema que se põe é o da origem.Para que se resolva esse problema, o cavaleiro preci-sa ter demonstrado bravura e audácia no campo deluta. “Resolver”, aliás, não é bom termo, porque nãose trata de um problema a ser solucionado; é, nomáximo, uma suspeita, que nunca deixa de se con-firmar positivamente. É que o desempenho do he-rói está intimamente associado a sua origem: quan-to mais “superior” a linhagem, tanto mais audaz e,ao mesmo tempo, virtuoso o cavaleiro.

A ação é, pois, o ponto de partida para a revela-ção – ainda que seja revelação para confirmar-seaquilo que já se suspeitava. Por isso o cavaleiro, con-forme a ação, pode trocar de nomes. É o que acon-tece com Palmeirim. É o que acontece de modo ain-da mais evidente com Floriano, seu irmão. Inicial-

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mente é FLORIANO DO DESERTO, depois é o CAVALEI-RO DO SALVAGEM, CAVALEIRO DO VALE, CAVALEIRO DA

DONZELA e, de novo, FLORIANO DO DESERTO, já queo conjunto de ações praticadas autoriza a revelaçãoda identidade. Embora o ato de revelação apenasconfirme a suspeita, ele é obrigatório:

Vossas obras não acabam de contentar a quem asvê, enquanto não sabem quem as faz. Quero que medigais quem sois, e pode ser que com mo dizer, meobrigareis a cuidar que em todo o al me dizeis ver-dade. (P. I.; Tomo III, 143)

Etapa fundamental, a revelação harmoniza o sim-bólico cavaleiresco, conjurando o perigo – a ascen-são de linhagem menos nobre, basicamente – quepoderia ameaçá-lo. Revelada a identidade, e comofelizmente se suspeitava, tudo está entre iguais.

Um bom exemplo a ilustrar essa conclusão é ocaso de Albaizar, se comparado a Palmeirim ouFloriano. Cavaleiro audacioso, Albaizar chega a serrapidamente confundido ora com um, ora com ou-tro dos irmãos, visto que sua destreza em armas écoisa de espantar. Pouco a pouco, no entanto, essahabilidade vai sendo manchada por uma excessivasoberba, o que logo desfaz a confusão inicial. Reve-lada a identidade do cavaleiro, percebe-se tratar,como aliás se suspeitava, de um cruel inimigo da cris-tandade. Embora iguais em linhagem, o que os faziguais em bravura, separa-os o conjunto de crenças,que os faz desiguais em virtudes e, portanto, os tor-na inimigos.

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Identificado o cavaleiro, ele torna-se presa de umacondenação: a condenação de vencer. Obrigado pelalinhagem, ele é alçado à condição de defensor pri-meiro do reino e do conjunto de crenças, até que avelhice ou a morte por meio natural, que é o únicomeio do cavaleiro eleito morrer, encerre sua glorio-sa jornada de lutas:

Com o imperador Primaleão se ajuntaram todosem um templo em Constantinopla, que foi causa dea engrandecer em grande extremo, qual nunca fôraem nenhum tempo, daqui sucederam tantos desas-tres e aventuras que Palmeirim de Inglaterra,Florendos e o do Salvage e todos os do seu tempotornaram a seguir as aventuras com tanto risco e suaspessoas como nos primeiros dias de mocidade. (P. I.Tomo III, 353)

Em segredo ou às claras, é a ação que revela a iden-tidade do herói. No primeiro caso, confirmam-se(previsíveis) suspeitas: tais ações (superiores) sópodem ser praticadas por seres de linhagem superi-or; no segundo, a ação funciona como uma espéciede comprovação do primeiro, reafirmando a legiti-midade do modo de pensar por aquilo que tão con-victamente se luta.

Como já se disse, o ciclo novelesco põe o proble-ma autoral em novas bases. Situado no interior deum contínuo, o autor há que obedecer a diretrizespreviamente estabelecidas, diretrizes que configu-ram o quadro geral em que as novas personagens,juntando-se às antigas, podem atuar.

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Esse problema, como era de esperar, cria proce-dimento correlato para a ação do narrador. Este, aoinvés de se apresentar como um fundador de suanarrativa, mostra-se, antes, como uma espécie decompilador: “Escreve-se na crônica geral da Ingla-terra, donde esta história se tirou” ... (P. I, Tomo III,349). Mais que isso, arrola, ao longo da história, umconjunto de nomes dos autores que teriam escritoas crônicas de onde a sua fora compilada:

Joanes d’ Esbrec, que compôs a crônica daquelestempos, Jaimes Biut e Anrico Frusto, autênticos es-critores, afirmam que Primaleão, D. Duardos e to-dos os outros se detiveram na Ilha até se dar sepul-tura aos mortos, no que houve alguma detença (P. I,Tomo III, 349).

Como se não bastasse, o narrador chega ao requin-te de cotejar essas fontes com outras, sempre em bus-ca da informação pretensamente mais “verdadeira”:

Joanes de Esbrec afirma que depois que Palmeirime Polinarda se saíram da ilha e tornaram para Ingla-terra, com seu pai, e sua mãe, houveram uma filha,que chamaram Flerida.

Jaímes de Biut e Anrico Frusto confessam que[foi] o segundo D. Duardos, que ficou na ilha: pare-ce que nisto Joanes de Esbrec seja o mais certo, por-que em tudo se lhe dá mais autoridade (P. I, TomoIII, 351).

A compilação pode ser vista sob duplo aspecto.Por um lado, ela legitima a narração. Ao dar prova

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de existência de algo anterior a ela, cria as condiçõesde “veracidade” exigidas pelo pacto estabelecido como leitor. A consequência imediata é que o narradorse exime da responsabilidade de fundar o completa-mente novo, que exigira um outro tipo de pacto como leitor. De outro lado, a compilação, ao estabeleceruma ponte entre o “real” e o narrado, propicia aonarrador-compilador a oportunidade de assegurara linearidade do vivido: porque sujeitos às mesmasoperações, a vida e a narrativa são extensão uma daoutra.

Descabeladamente fantasiosa, como o leitor mo-derno facilmente a identificaria, a novela quer-se,mais que verossímil, verdadeira. Ao apresentar-secomo um mero compilador que apenas organiza ojá contado, o narrador faz falar a voz do já cristali-zado no tempo. E quando a dúvida se impuser, ha-verá sempre mais de uma fonte para dirimi-la. É, pois,a verdade que interessa ao narrador.

A hipótese confirma-se de modo ainda mais pre-ciso se se observar um marcante aspecto da estrutu-ra textual: o aforismo. Com efeito, os capítulos dePalmeirim de Inglaterra fecham-se sempre com umaforismo “ sendo raro o caso em que não se dá oprocedimento.

E ele trata de tudo: da autoridade incontestáveldo príncipe e da obediência natural que se lhe é de-vida; do papel da mulher; da presença de Deus e dasmaneiras pelas quais se atinge a salvação; do amor eseus sucessos ou insucessos; enfim, sobre toda equalquer prática humana há sempre um aforismo aestatuir uma verdade de validade universal na suaforma concisa:

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[...] porque quem com os seus feitos não é claro,pouco lhe aproveita honrar-se dos alheios. (P. I.,Tomo I, 396)

Que a vida para má vida não pode deseja-la senãoaquele que com a morte não se atreve. (P. I., TomoI, 40)

Porque só nela [na morte] se acha o repouso detodo os males.

(P. I., Tomo I, 17)Porque quando entre as pessoas [o amor] é gran-

de, a distância do lugar não o tira. (P. I., Tomo I, 22).

Os aforismos são muitos, mas basta os exemploscitados para se justificar seu papel enquanto recur-so formal na estrutura da novela.

O aforismo, como se sabe, perde-se no desvãodo tempo. Provável elemento constituinte de umanarrativa comunitária maior, através da qual a co-munidade percebia-se a si e ao mundo, ele resistiu àchegada dos tempos da escrita. Para tanto, foi for-çado a acomodar a verdade analítica da narrativa daqual fazia parte em uma forma concisa, que funcio-na elipticamente. Como nota Costa Lima (1974, p.54), o aforismo “apresenta uma resposta que ocultasua pergunta”.

Não é difícil perceber que esse ocultamento dapergunta a que o aforismo responde é resultado deseu desmembramento daquela narração. Contem-porânea à pergunta, a narrativa comunitária respon-dia aos anseios e aspirações da comunidade, que,através desse jogo de pergunta e resposta, checavaos seus modos de viver e saber. Ultrapassada a fasepredominante da oralidade, a narrativa comunitária

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perde sua função – afinal, solitário em seu gabinetede leitura, o homem abandonou em definitivo acrença nessas práticas coletivas, passando a encará-las como atividades “primitivas”.

Desaparecida a narrativa, desapareceu a pergun-ta. E assim o aforismo, mero fragmento do que jáfoi uma totalidade, paira por sobre as eras e as cir-cunstâncias com sua verdade evidente em si mesma,respondendo a perguntas não formuladas, mas im-plicitamente postas. Mantendo a densidade poéticada narrativa oral, sua forma concisa e aparentemen-te simplória prescinde de explicação. Daí a eficáciado aforismo. Sem que precise ser interpretado –como se dá com os outros saberes, que precisam serdecodificados ou exigida a sua autoria –, ele preencheuma lacuna que as outras formas de conhecimento,deixam vazias.

Com efeito, o aforismo tem dupla propriedade.De um lado, por ter se deslocado no tempo da per-gunta a que inicialmente respondera, ele “eterniza”a verdade de sua resposta. De outro, por ter se des-locado das circunstâncias que o engendravam, suaverdade é portadora de um caráter universal. Oaforismo, assim como outras formas assemelhadas,dispensa os contextos que o geraram. É essa inde-pendência que o faz parecer eterno e universal.

Ora, é precisamente essa função que o aforismocumpre em Palmeirim de Inglaterra. Ao expor a “ver-dade universal” nele contida, verdade que atravessatempo e espaço, o narrador exime-se da responsa-bilidade de emitir opinião. E assim procedendo, seujulgamento do mundo e dos homens não corre orisco de ser inviabilizado pela contestação, já que

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ele se desenvolve através de dispositivos de validadeuniversal. O narrador se põe, no máximo, como umtransmissor dessa verdade, com a qual se identifica,sem que, no entanto, se responsabilize por sua ela-boração. O objetivo visado (e atingido) é conven-cer o leitor da irredutibilidade da lição transmitida.

Isso não quer dizer que o aforismo em Palmeirimfilie-se à tradição oral, como se desconhecesse aspráticas eruditas medievais. Sabe-se em demasia quea moralística medieval era toda ela – ou quase toda –vazada em forma aforismática, o que permite facil-mente situar Palmeirim, quanto a esse aspecto, numalonga tradição, que avança para além do tempo daprópria novela.

Todavia não é relevante, no limite desse estudo,saber-se a que tradição, vincula-se o aforismo emPalmeirim. A discussão que o estudo propõe é pré-via àquela. Trata-se de configurar o estatuto doaforismo. A questão não é, pois, qual o aforismo,mas por que o aforismo. Algumas pistas já foramdadas, não cabe retomá-las. Apenas acrescentar queo aforismo livresco e de autoria declarada, mais quemodismo, busca, como o outro oral e anônimo, le-gitimidade para sua pretensão de colocar-se comoverdade de validade universal. Assumir-se como lu-gar onde ressoa a voz coletiva da comunidade, eis odesejo último do aforismo, seja de que natureza for.E é assim que ele funciona em Palmeirim.

Seu efeito pedagógico em Palmeirim é realçadopor um requintado artifício literário. Após aventu-ras e desventuras do herói, ele encerra o capítulo, amodo de conclusão. A eficácia de tal procedimentoé notável: a ficção deságua na “verdade” de validade

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universal, promovendo-a. Assim, mais que simplesilustração para notificar-se a verdade do aforismo, aficção afirma-se como lugar de engendramento dessaverdade, que o aforismo vem validar, ao somar aoparticular da ficção seu caráter universalizante. Dessamaneira, Palmeirim cumpre perfeitamente o objeti-vo a que se destina (va) a novela: ao tempo em quediverte o leitor, reafirma a legitimidade do seu siste-ma de crenças através de sua estrutura aforismática.

Já se disse que a novela desempenha funçãodoutrinal de grande importância, sobremodo aque-la do século XVI ibérico. Não se vão repetir, porredundantes, argumentos já expostos. É suficienteaduzir que ela se somava à Historiografia e à Moralno esforço de educar politicamente o príncipe – porextensão a fidalguia, onde se encontrava o leitor dis-ponível – para os tempos novos que chegavam.

Embora operando pelo ficcional, no que diferiade todos os outros discursos, a novela não se redu-zia ao puramente lúdico. Muito ao contrário, comoaponta Moisés (1957, p. 38), “não se fazia cabível aobra literária que tivesse como exclusivo escopo oentretenimento da fidalguia”. Doutrinando pela di-versão, no caso da novela, ou divertindo pela dou-trinação, como faziam os livros de moral que ate-nuavam as lições com pequenas histórias, o que im-porta é a firmeza de princípios, estes firmementearraigados na tradição, transmitida ao príncipe “ àfidalguia a ele subordinada “ com que deve enfren-tar um mundo que se alarga vertiginosamente. Ajulgar pelo prestígio que desfrutava e pela concep-ção de mundo que imperou na corte portuguesanaqueles tempos, a novela cumpria à risca aquilo a

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que se devotara.No conjunto das grandes novelas de cavalaria

portuguesa do século XVI – conhecido, naturalmen-te –, em que se destacam Palmeirim de Inglaterra,Imperador Clarimundo e o Memorial das Proezas...,a primeira é seguramente a que melhor realizou oespírito da novela, porquanto conseguiu doutrinarsem desvirtuar a ficção, o que não se dá com as ou-tras duas, cujo tom excessivamente didático torna aficção artificializada. No caso de Palmeirim, comojá se viu com o aforismo, é no interior da ficção quea doutrina se desenvolve, evidenciando-se na açãodas personagens e na visão de mundo que as con-forma:

Nisto se pode enxergar quanto é de estimar umpríncipe virtuoso, amigo de seu povo, como foi oimperador Palmeirim, em cuja morte se mostrou tãogrão sentimento, o que não se fizera, se vivendo onão merecera por obras a seus vassalos, de que mui-tos devem tomar exemplo para saber-se governarnesta vida, de sorte que na morte se sinta falta desuas pessoas e não contentamento de as perderem(P. I., Tomo III, 310/11).

A morte da personagem dá lugar a longa refle-xão sobre o modo como o príncipe deve-se relacio-nar com seus súditos. Observe-se, contudo, que areflexão começa a desenvolver-se ainda no limite daficção: “o que não se fizera, se vivendo o não mere-cera por obras a seus vassalos”. O comentário temem mira naturalmente o Rei inventado. Não assim areflexão nele embutida. Esta já tem em mira um outro,

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mais real e de carne e osso. A doutrinação inicia-se,pois, ainda no nível do ficcional. Só a posteriori, ecumprida essa primeira etapa, é que ela se põe às cla-ras, tendo sempre o ficcional como referência: “deque muitos devem tomar exemplo...”. Aí, como sefora a repetição da lição já dada, agora tendo o rei/leitor como interlocutor, em tom professoral, onarrador ensina-o como manter-se no poder, sendoamado pelo povo, tal e qual o imperador Palmeirim.Virtude e amizade, na novela e fora dela, são os mei-os pelos quais o príncipe tem seu povo sob contro-le.

As lições são muitas, há muito que ensinar aopríncipe, mormente se o tempo é de “heresias”.Nesses tempos, rigor e autoridade são atributos deum grande rei, prova-o a ficção. Veja-se o que dizPalmeirim de Inglaterra, cavaleiro cuja ética não vêlimites, acerca da traição. Observa-se que, como nocaso anterior, a doutrinação mescla-se à ficção. Comuma diferença de grau, no entanto. Aqui, compon-do a fala da personagem, a doutrinação está sutil-mente entranhada no ficcional, dispensando o co-mentário posterior, o que elimina o tom didático,como ainda se pode notar no trecho anteriormentecitado. Leia-se, porém, a fala de Palmeirim:

[...] que quem é tredor a seu príncipe e em sua pró-pria pessoa comete crime, a mesma terra o não haviade sofrer, e quem tal favorece ou ajuda, fica dino decastigo: que assim como os príncipes são dados porDeus pera castigo e emenda dos outros homens, as-sim o castigo que merecem dos seus erros lhe nãopode ser dado senão por Deus, que contra el-Rei

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nenhuma pessoa humana com razão, nem sem elapode cometer o que Adraspe fêz contra o príncipeDoriel, seu senhor; que de tanta qualidade são ospecados cometidos contra el-Rei, que Nosso Senhorpermite, que não tão-somente o próprio autor delesseja punido e castigado, mas ainda sua geração o pur-gue com mortes de pessoas, destruição de fazendas,assolamento das casas, para que nem memória fiquede tal origem, e quando ficar, seja maior o exemplode castigo do que foi o delito. (P. I., Tomo III, 16)

Difícil encontrar na novela em questão – e segu-ramente em muitos outros textos da época – “li-ção” mais eloquente de como deve mandar o Rei.Como já se antecipou, o fato de ela resultar da falada principal personagem da novela, e não de umcomentário adicional do narrador, torna o efeitopersuasório muito mais amplo, uma vez que o leitoré “obrigado” a aderir àquelas formulações, seduzin-do que está pela grandeza moral com que agePalmeirim de Inglaterra, cavaleiro acima de qualquersuspeita.

Seguro da confiança que a ação pregressa dePalmeirim já promoveu junto ao leitor – não é à-toa que a “lição” mais veemente da novela apareçaapenas no tomo III do livro, decorridas mais de mile duzentas páginas – o narrador cede-lhe a palavra.Com todo o prestigio que desfruta na sua relaçãocom o leitor, Palmeirim pode desfiar um conjuntode regras, generalizando-as: o Rei, seja o da novela,seja o da vida real é ungido por Deus, por isso ele sesitua para além das leis humanas; aquele que se atre-

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ver a enfrenta-lo, estará afrontando Deus, daí a san-ção da Igreja para o castigo.

Ora, em tempos em que a audácia humanistaredimensionava o mundo, conceitual e geografica-mente, tais concepções poderiam parecer, além deanacrônicas, injustas e de extrema violência, como,aliás, já se dava, entre outros lugares, nas cidadesitalianas, por exemplo. Como já se disse, não era esseo caso de Portugal, que ainda vivia tempos cavalhei-rescos. No entanto, e por causa disso, era precisoestar vigilante na defesa daqueles ideais, conjuran-do ameaças internas e externas, estas últimas repre-sentadas pelas novidades que o ampliar do mundoproduzia.

A fala de Palmeirim, pois, tem a função de reafir-mar a legitimidade dessa concepção de poder, elimi-nando qualquer hesitação que possa resultar do con-fronto entre ela e outra (novas) concepções. Masnão se esgota nisso. Vindo de Palmeirim, que possuiabsoluta credibilidade junto ao leitor, a concepçãotem seu anacronismo, injustiça e extrema violêncianeutralizados, na medida em que o contexto(ficcional) em que atua o herói os justifica, permi-tindo, ou melhor, autorizando seu trânsito para avida real. Um cavaleiro da estirpe de Palmeirim – eisa função do contexto – jamais poderia aceitar agratuidade da violência ou da injustiça. Não é issoque ele tem demonstrado em sua incansável jornadade cavaleiro? Agradavelmente satisfeito com as pe-ripécias de Palmeirim, por um lado, e convencidode suas razões, por outro, o príncipe está apto aenfrentar (e vencer) a desobediência.

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Vão longe os tempos em que Galaaz prefere vera princesa suicidar-se a ter que atender a seus incle-mentes apelos carnais. O cavaleiro do século XVI,por mais austero que seja, tem na posse física damulher o estuário de seu “serviço” amoroso. É bemverdade que, no limiar do século, Amadis já modifi-cara o quadro, vencendo a culpa imposta à sensuali-dade. A novela posterior, todavia, tem na posse físi-ca da mulher a finalidade do “serviço” amoroso docavaleiro. Não que se trate de um arroubo ou deum aspecto residual, mas da motivação, mesmo por-que o cavaleiro serve, tornando-se assim a posse fí-sica da mulher o fundamento da ética amorosa. Énecessário acrescentar, entretanto, que essa éticasupõe o Amor – com maiúscula, para marcar seupoder de dominação como précondição para a pos-se física. Esse padrão ético é dominante, mas convi-ve com outro, mais pragmático, como se verá a seutempo.

Palmeirim é o melhor representante desse padrãoético “oficial”. “Servidor” da bela Polinarda, ele vaià luta, aguardando com ansiedade o momento doencontro com sua amada.

Palmeirim ainda que do receio que o mais ator-mentava estivesse descansado, nem com isso viviatão livre, que o estivesse de todo, que o amor, ondeé grande, enquanto não está satisfeito de todos osseus desejos, sempre tem do que se tema... (P. I,Tomo III, 171).

Enquanto isso não acontece, isto é, enquanto odesejo não se concretiza na posse física, o herói vive

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entre o temor e o cansaço, entre a insatisfação e aansiedade, que não conseguem ser aplacadas – comonoutros tempos o eram – pelo “serviço” cavaleiresco.

O casamento, que afinal se consuma, vem resol-ver o drama do herói. Diferentemente do que acon-tece no Memorial das Proezas, em que, de acordocom Moisés (1957), o casamento encerra a ativida-de guerreira do cavaleiro, Palmeirim, satisfeito afi-nal o desejo, volta a guerrear, “como nos primeirosdias da mocidade”, o que leva à conclusão de que,pelo menos em Palmeirim de Inglaterra, a posse físi-ca da mulher é um aspecto da vida do cavaleiro enão finalidade em si mesma. Vencida essa etapa, ocavaleiro volta-se para outra, agora mais importan-te: a defesa da Fé e do Império.

Antes disso, porém, há que tratar do outro modode amar encontrado na novela. Se Palmeirim é omelhor representante daquela forma “oficial” deamar, Floriano, seu irmão gêmeo, é o melhor dessaoutra. Sem levar em conta quaisquer princípios dacortesania amorosa, Floriano é movido pelos ape-los do corpo que, diga-se, nunca estão saciados. Es-pécie de D. Juan avant la letre, o Cavaleiro doSalvagem – nome que marca muito bem sua “fúria”amorosa vai destroçando corações, sem que a issodê importância, até atingir, pelo exagero, certo hu-mor:

O do Salvage, que até ali se viera afeiçoado à cordas roupas, enxergando a perfeição de quem as ves-tia, esqueceu-lhe o que praticava com Arlança: elasentiu bem que o propósito era mudado. Viu tantasdamas tão galantes e tão formosas, que começou

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desejar servir a todas, que com menos não se con-tentara. (P. I, Tomo III, 77).

Não havendo resposta imediata, o “sedutor” nãosofre qualquer abalo. E quando sofre, a reação é rá-pida. É o que se dá, por exemplo, no famoso casodas damas francesas, episódio que os estudiososgostam de destacar pelo que contém de autobio-gráfico. (Como não se trata, aqui, de cotejar ficçãoe realidade, mesmo porque quase sempre esse tipode procedimento acaba prejudicando ambas, esseepisódio é aqui entendido apenas e somente no seuaspecto ficcional). Apaixonado simultaneamentepor quatro senhoras francesas, Floriano trava jus-tas e mais justas para, demostrado o seu valor, ter arecompensa amorosa. Mas assim não acontece. Dis-simuladas, as senhoras, uma a uma, recusam o “ser-viço” amoroso do cavaleiro. Para espanto do leitor,que esperava forte comoção por parte de Floriano,o narrador limita-se a informar que, diante doinsucesso, Floriano, “se partiu menos contente doque cuidou, porém este desgosto se lhe passou pres-tes como soía”. (P. I., Tomo III, 158).

Ao dar o nome de Palmeirim de Inglaterra à no-vela, o autor cometeu uma injustiça. A rigor, eladeveria referir-se também a Floriano, pois que elefunciona, no aspecto amoroso, como contra facedo discurso oficial encarnado por Palmeirim. SePalmeirim é a tradição levemente retocada – o amoragora conduz à posse física, observados os esque-mas ritualísticos –, Floriano é o amador dos temposmodernos, para quem os rituais reprimem o livrecurso do desejo. Em seu modo de ver – e de agir –

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dar visão ao desejo é condição básica para garantir-se a “humanidade” do homem, através da qual estese reconhece e se vê a si como tal. É o homem aten-to aos sentidos, à cata de sua própria “medida”, e aquem explicações da ordem transcendente já nãoconvencem, por serem anacrônicas na sua argumen-tação.

Lembra-te que são tentações diabólicas, que armao diabo com laços aprazíveis, em que a fraqueza dacarne cada dia cai.

Padre, disse o do Salvagem, isto são obras da hu-manidade a que se não pode fugir, e o desejo é tãodelicado, que lança mão da coisa a que se o coraçãoafeiçoa. (P. I, Tomo II, 205).

Não é de modo nenhum gratuito o fato dePalmeirim e Floriano serem irmãos gêmeos. Simul-taneamente antípodas e complementares, eles dãoconta dos complexos modos de sentir no século XVIportuguês, mostrando que, embora dominante, aforca da tradição está contaminada pelo moderno.Mas não a ponto de ameaçá-la. Embora se possaperceber uma certa simpatia do narrador pelas prá-ticas amorosas de Floriano, as mais das vezes elassão tratadas com um certo humor, como se tudonão passasse de um arroubo, que deve ser generosa-mente compreendido, Sua “rebeldia” amorosa temprazo previsto para acabar. Ao participar da ceri-mônia coletiva, em que se casam, de uma vez, cente-nas de cavaleiros, Floriano é igualado aos outros,ainda que, como uma espécie de lamento final, onarrador informe que, de todos, o mais “animado”

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daquela noite tenha sido o próprio. Enquadrado noinstitucional, Floriano há que praticar sua “fúria”amorosa sob as benções da lei. A “humanidade” dosapelos do corpo será submetida aos rituais fixadospela tradição. E tudo isso, o que é importante, nãoparece incomodar muito o herói, disposto a enfren-tar, cavalheirescamente, sua nova fase de vida.

Por absoluta impossibilidade para desconhecê-la,a novela é como que “obrigada” a indicar essas mar-cas de contaminação do velho pelo novo. A funçãopedagógica desse expediente é precisa, porém. Aomostrar que o herói acaba por render-se ao velhomodo de ser, a novela desmonta a pretensão à legi-timidade aspirada pelo novo. Tal só se dará, à medi-da que, assimilado e adaptado, o novo se pareça como velho. Assim, não há propriamente “injustiça” nofato de a novela chamar-se Palmeirim de Inglaterra,como se propôs acima. É que, sendo dois, na verda-de os dois irmãos acabam por ser, ao final da novela,apenas um. E esse é Palmeirim.

Se se observar bem, o mesmo sucede às mulhe-res, com um agravante, a misoginia. Algumas mu-lheres se destacam na novela. A mais famosa de to-das é Miraguarda. Envolta em desdém eimpassibilidade, Miraguarda simplesmente observaos cavaleiros destroçarem-se em função de sua be-leza. Nada parece comovê-la. Esse modo impassívelnão quer dizer indiferença ou algo aproximado.Como seu nome indica, trata-se de uma (vigilante)postura frente ao “serviço” amoroso. É como se anovela pretendesse insinuar que não basta o desejodo cavaleiro para a rendição da mulher. É precisoque ela se disponha a render-se.

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O mesmo se passa com as quatro damas france-sas por quem Floriano se apaixona. Desdenhado poresse amor plural, elas o recusam, uma a uma, nãosem antes jogarem dissimuladamente os previsíveisJogos do “Serviço” amoroso, que, nesse caso, resul-tam em final imprevisto. Percebendo tratar-se desimulação, o cavaleiro reconhece a derrota, se bemque, como vimos, tal sentimento nele dure pouco.

Em outra perspectiva, mulheres fortes – huma-nas – são também Targiana, Leonarda e Polinarda,objetos de devoção amorosa dos três principais ca-valeiros da novela.

Embora ajam – umas mais, outras menos – emdesacordo com os códigos, a demonstrar a conta-minação de que se falava e da qual a novela não temcomo escapar, e com exceção das francesas que nãomais aparecem além do episódio citado, essas mu-lheres todas acabam por render-se aos esquemasritualísticos da tradição. Desaparece todo o desdémde Miraguarda ante o casamento, para o qual elanunca pareceu inteiramente disponível. Como nocaso de Floriano, vencem as forças da tradição. Enem poderia ser diferente. Lá como aqui, todavia,estão as forças da tradição. E nem poderia ser dife-rente. Lá como aqui, todavia, estão definitivamenteinscritas as marcas da contaminação, uma vez que oresultado final não pode eliminar o percurso reali-zado pelos personagens.

No caso das mulheres, percurso muito mais difí-cil. Porque se há mulheres como Miraguarda – ou asfrancesas –, há, por outro lado, uma espécie de con-tradiscurso do narrador que, eivado de misoginia,afirma e reafirma ao longo da novela a inferioridade

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da mulher. Escudado na eficácia retórica do aforismoou em generalizações que buscam imitar aquele, namedida em que se pretendem verdadeiras, o narradoraponta os “males” que comprovam ser a mulher ani-mal inferior.

[...] que isto têm as mulheres que em extremo sãoamadas de seus maridos, de que às vezes nasce sol-tura demasiada às que são, por onde alguns devemter mão na rédea, pois do amor sobejo nasce umainseção solta, que depois de acostumada não se curacom nenhum contrário. (P. I, Tomo III, 217)

O temor às mulheres – porque em última instân-cia é isso que a misoginia esconde – não é originalem Palmeirim de Inglaterra, ou algo próprio do sé-culo XVI. Ele remonta as primeiras origens do ho-mem. Segundo Delumeau (1990, p. 328), foi o modomais fácil que o homem encontrou para fazer faceao mistério representado pela mulher, principalmen-te quanto a sua vinculação com o mundo da natu-reza, manifestada na peculiaridade de reproduzir. OHumanismo, tão ambicioso na defesa da liberdadedo homem, não conseguiu superar essa milenar vi-são misógina da mulher. Muito ao contrário. Basea-do no seu saber livresco, adicionou elementos paraque tal concepção fosse reafirmada. Assim, entrecru-zam-se na novela modos antigos e novos de se ver amulher, todos eles tendo na inferioridade femininaseu traço comum.

Se comparada a Floriano, que detém simpatiasdo narrador, Miraguarda sugere uma personagemmuito mais forte, pois que é obrigada a lutar em duas

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frentes de “batalha”. De um lado, contra a seduçãofácil que sua beleza exerce no cavaleiro que, à custadisso, quer-se amado; de outro, contra o narrador,que ao generalizar sua visão de mulher, não poupanenhuma. Não é de surpreender que, ao final danovela, Miraguarda case-se com um cavaleiro, comooutra das muitas mulheres da novela. O casamentocoletivo tem aqui a mesma função já anteriormenteapontada: tornar iguais todas as mulheres, nivelan-do-as. O leve desapontamento que acomete Mira-guarda enquanto mulher casada parece negar queesse objetivo tenha sido plenamente atingido.

Já se apontou no começo que a novela no séculoXVI português está firmemente empenhada no pro-jeto ideológico – diga-se assim em falta de melhorexpressão – de engrandecimento da Pátria. Atravésda reelaboração do ideal cavaleiresco, ela, por umlado, exorciza a novidade e, por outro, estabelece-se a si própria como ponte entre presente e passa-do, eliminando barreiras temporais. O ciclo nove-lesco, como já se disse, cumpre exatamente essa fun-ção, como a demonstrar, ao inverso de Camões, quenem mudam os tempos nem as vontades, numalinearidade que não tem fim.

A novela do século XVI seguramente acrescentatempos e vontades novos. Agora, em um espaçogeográfico e politicamente definido – como já se verá– o cavaleiro luta contra os inimigos do Estado e daFé – não mais contra seus antigos e solitários anta-gonistas.

Não é senão por isso que surge a guerra na nove-la de cavalaria. Em outra circunstância, tal apariçãocausaria espécie. Nada mais paradoxal, à primeira

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vista, que a guerra em um espaço onde prevalece asoberania do individual. É o cavaleiro solitário,acompanhado apenas de seu escudeiro, a enfrentartodo tipo de obstáculo, que traduz a essência donovelesco. É preciso, pois, algo a justificar a presen-ça da guerra para que a novela permaneça como tal.É o conceito de Pátria que vai fornecer a justifica-ção. É pela Pátria, por sua grandeza, que o cavaleiropassa a lutar.

O advento do conceito de pátria na novela pro-move uma mudança – ou melhor, um acréscimo, paramanter-se o jogo – substancial. O espaço sofre umredimensionamento, buscando definir identidadegeográfica e política. Para que o estudo não se alon-gue em demasia, lembrem-se rapidamente os casosdo Imperador Clarimundo e do Memorial, aqui járeferidos, que tematizam o espaço português. Pal-meirim de Inglaterra, por razões propriamente no-velescas, não procede exatamente assim. Aí, Portu-gal é parte de uma geografia cavalheiresca, pari passucom as grandes cortes desse mundo, que vai deConstantinopla à Inglaterra, da Turquia – lugar doinimigo – à França. Portanto mais que centrar-se emsi mesmo, como se faz nas outras novelas, Portugal,em Palmeirim, define sua identidade cavalheirescana relação com os outros grandes do mundo. E senão bastasse, é em suas terras que habita a bela eimpassível Miraguarda, obscuro enigma a ser deci-frado por cavaleiros de todas as partes.

A guerra justifica-se ainda por outro elementotão forte quanto a pátria: a fé. Na verdade, ambosse misturam, a tal ponto que chegam a confundir-se. Para o cavaleiro, lutar pelo primeiro é lutar pelo

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segundo, e vice-versa. Pela pátria e pela fé, eis por-que luta, o cavaleiro guerreiro:

Esta se pode crer que foi a mais notável batalhado mundo, cheia de morte e desesperações, na qualassim uns como outros pelejaram com igual aborre-cimento das vidas, o que se nunca viu em algumaque alguma hora acontecesse. (...) A vitória da partedos cristãos custou tão caro, alcançou-se tão semgosto, que não houve quem para o despojo das ten-das, que era inumerável, tivesse algum alvoroço. (P.I., Tomo III, 334).

O inimigo contra quem se luta, claro, é o mourosoberbo, representante das forças do mal. O ódioque se lhe devota é tão grande que chega a fazercom que o narrador, associando-se ao espírito desuas personagens, comprometa a desenrolar de seu“conto”. Ao referir-se à cerimônia com que o corpodo príncipe turco é recebido, diz o narrador quedaquilo “se não dá larga contra, por serem obras deinimigos” (P. I., Tomo III, 338). Ora, essa traição,involuntária ou não, do narrador, aponta para umaspecto crucial da novela quinhentista, que o traba-lho se propôs desenvolver. Ela torna patente o prin-cípio de que não só o cavaleiro guerreava contra omouro. Ao seu lado, embora com outras armas, es-tava o narrador – e seguramente o autor, cujo modode ver as coisas não devia ser em nada diferente da-quele empregado pelo narrador, que funcionaria as-sim como uma espécie de porta-voz. Ao tomar par-tido tão claramente, o narrador põe-se diante doleitor também como um cavaleiro, no caso, um ca-

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valeiro da retórica, porquanto persuadi-lo da juste-za da guerra pela fé e pela pátria é o seu único inten-to. E assim se fecha o ciclo: se o cavaleiro luta paradilatação da fé e do império, pelas mesmas razõesnarra o narrador, e por elas também lê o leitor.

REFERÊNCIAS

COELHO, Jacinto do Prado (org). Dicionário de Literatura.Porto: Figueirinha, 1973.DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo:Companhia das Letras, 1990.DUBY, Georges. A sociedade cavaleiresca. São Paulo: MartinsFontes, 1989.FERREIRA, Jerusa Pires. O tapete preceptivo de Palmeirim daInglaterra. Bahia: UFBA, 1973. (Tese)FIGUEIREDO, Fidelino de. A épica portuguesa no século XVI.Lisboa: IN-CM, 1987.FINAZZI-AGRÓ, Etore. A novelística portuguesa no século XVI.Lisboa: ICP, 1978.LIMA, Luís Costa. “Mito e provérbio em Guimarães Rosa” Ametamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Imago, 1974.MOISÉS, Massaud. A novela de cavalaria no quinhentismoportuguês. São Paulo: USP, Boletim 218 “ FFCL, 1957.MOISÉS, Massaud. “A novela”. In: A criação literária “ prosa.13. ed., São Paulo: Cultrix, 1987.MORAIS, Francisco de. Crônica de Palmeirim de Inglaterra(Texto estabelecido, anotado e com um glossário organizadopor Geraldo Ulhoa Cintra). São Paulo: Anchieta, 1946. 3 vols.SARAIVA, A. José. História da cultura em Portugal. Lisboa:Jornal do Foro, 1962.3 v.SARAIVA e LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa.6. ed. Porto: Porto Editora, s.d.

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PORQUE ME UFANO DO MEU PAÍS:AMBRÓSIO FERNANDES BRANDÃO

E AS GRANDEZAS DO BRASIL

Os Diálogos das grandezas do Brasil são mais umdesses primores da cultura brasileira escondidos nosdesvãos das estantes e, agora, perdidos nas terrasdo sem fim do mundo virtual. Presumivelmente es-critos por Ambrósio Fernandes Brandão, provávelcristão-novo aqui aportado nos finais do séculoXVI, já estavam concluídos em 1618, como no ma-nuscrito se declara. Não obstante já razoavelmenteavançado o século XVII, é ainda um repositório doinesgotável elenco de maravilhas encontráveis noBrasil, como se se tratasse de uma visão inaugural— aquela realizada no calor da hora, fruto do en-contro entre um sujeito e o novo em estado puro,cujo resultado imediato é o pasmo, o assombro,numa palavra, o encanto do desencontro.

Nesse sentido, irmana-se aos textos fundamen-tais do que nos manuais de história da literatura seconvencionou chamar de literatura de informação,

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tais como a Carta do achamento do Brasil, de Cami-nha, A História da Província Santa Cruz a que vul-garmente chamamos Brasil , de Magalhães deGândavo e o Tratado descritivo do Brasil em 1587,de Gabriel Soares de Sousa, para ficarmos no cânonedo século XVI.

Se tal irmandade os aproxima, o modo de orga-nização do texto, contudo, em muito os separa.Enquanto naqueles a instância descritora é uma vozmuito próxima da do seu autor — o que,inclusivamente, obrigou a inventar-se um subgêneroliterário, a chamada “literatura de viagem” —, nes-te, o espaço entre as vozes do texto e sua autoria éampliado sobremaneira pelo estatuto ficcional, umavez que no lugar do narrador/autor tem-se duaspersonagens em confronto, uma a defender comentusiasmo as grandezas do Brasil, a outra a negá-las com o mesmo entusiasmo.

Por isso, se bem não participe da conspiração peloassassinato do autor, aquele modismo deflagrado porBarthes na agonia do Estruturalismo, não duvidoque, neste caso, a dimensão ficcional do texto, aoaumentar as taxas de produção de sentido, em mui-to diminui a sua presença, ainda que FernandesBrandão possa ali estar disfarçado em Brandônio, odefensor entusiasmado das coisas do Brasil. Mas,valha a pergunta, há palavra melhor que esta — dis-farce — para adentrar-se um mundo ficcional?

Brandônio, pois, pode até guardar proximidadecom Brandão, como se vê e como se ouve no nome,mas é como personagem que quer ser lido, uma vezque se constitui tão-somente uma entidade textual,com vontades e contra-vontades. Daí a importân-

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cia que dou ao “presumivelmente” do começo, poisnão é meu propósito aqui discutir autoria do texto,tarefa, ao meu ver, quase sempre envolta em nu-vens grossas de especulação, muitas delas dissipadastautologicamente com o próprio texto, como, aliás,ocorre aqui, com as teses, em direções opostas deFrancisco Adolfo de Varnhagen e Capistrano deAbreu, o primeiro supondo achar evidências no tex-to de que se trata de um autor já nascido no Brasil,ao passo que o segundo acredita ali encontrar, len-do o mesmo texto, evidências claras de que o autoré português.

O caráter propriamente literário do texto deBrandão é produzido por sua estrutura em diálogo,cujos efeitos retóricos desarrumam e rearrumam asconvicções estabelecidas de Alviano, o segundointerlocutor, mediante uma lógica barroquisante quenão se peja em trazer para a cena do texto, aindaque de ouvido, tanto a legitimidade da afirmaçãoautoral dos antigos, seja Aristóteles, Ptolomeu ouSacrobosco, quanto o mais deslavado abusão aindaem circulação no tempo, como, por exemplo, suporque a cor dos negros tivesse a ver com a incidênciados raios de sol associado à ausência de ventos oude ainda crer que os anuns são aves de qualidadeestranha, pois “além do seu canto semelhar a choro,não tem nenhum modo de sangue, nem nunca selhes achou” (Brandão, 1997, p.169), nessa misturaesquisita de um elemento humano com o maravi-lhoso em estado puro.

Naturalmente, o diálogo não é uma novidadeinventada por Brandão. Longe disso, o século XVI,na esteira dos antigos, usou e abusou da estrutura,

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muito provavelmente em função dos efeitosretóricos por ela produzidos, uma vez que, segun-do Pêcheux (apud Martins, 1990), o grande estudi-oso francês do discurso, “diálogo é uma relaçãoenunciativa no qual os interlocutores assumem ereciprocamente se atribuem identidades, num jogode imagens forjadas ideologicamente, a partir de in-formações sociais vigentes”.

E não por outro motivo escolheu Brandão essaforma no limiar do literário para o seu texto. O jogoidentitário presente nos Diálogos das grandezas doBrasil desenvolve-se através de duas personagens,nítidas e opostas: Brandônio é agora um “brasilei-ro” visceral, ainda pasmado com as maravilhas epotencialidades do Brasil, e Alviano, o reinol recém-chegado, completo descrente das coisas brasileiras,para quem o Brasil é o lugar “mais ruim do mundo,aonde seus habitadores passam a vida em continuamoléstia, sem terem quietação e, sobretudo, faltosde mantimentos regalados, que em outras partescostuma haver” (Brandão, 1997, p.11).

Não são, claro está, indivíduos singulares, compsicologia própria, mas tipos a encarnar dois mo-dos de ver o Brasil naqueles tempos, os partidáriosda colonização brasileira e seus opositores, que pu-nham ênfase no comércio com a Índia. Para simpli-ficar, poderíamos chamá-los de otimistas e pessimis-tas, ou, como prefiro, de céticos e ufanistas em rela-ção ao futuro da colônia — nesse caso específico aapenas seis anos da invasão holandesa na Bahia, quese dará em 1624, e a doze da de Pernambuco, ondeos holandeses, Maurício de Nassau à frente, ficari-am por longos 24 anos.

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Como dizia, o jogo identitário proposto nosDiálogos... requer, assim, identidades opostas, comopostas concepções acerca do Brasil para que,emparedada num verdadeiro cerco retórico, a segun-da, ou seja, Alviano, sucumba, gradativa e paulati-namente, à lógica exuberante de Brandônio que, nosmelhores momentos lembra a teia argumentativa doPadre Vieira. Serão necessários, nada mais, nadamenos, que seis longos diálogos para Brandônio le-var a cabo sua bem sucedida tarefa, qual seja, a detransformar o diálogo em consenso, divergência emconvergência, remodelando ideologicamente seuadversário, ao fazê-lo assumir outra identidade. Aofinal da longa discussão, Alviano é mais um entusi-asta das coisas do Brasil. E o diálogo provou-se aferramenta perfeita para a conversão.

Um dos elementos de grande teor persuasivoutilizado por Brandônio para submeter Alviano (eos leitores dos Diálogos..., claro) é a quantidade deconversas realizadas ao longo de seus encontros, seisao todo, o que remete, sem grande esforço, a umaespécie de reencenação da criação do mundo — as-pecto, aliás, que leituras mais dirigidas costumamutilizar para justificar o judaísmo do autor, ques-tão, pelo menos por agora, pouco relevante para ospropósitos deste texto.

Assim, como um Deus reencarnado, Brandôniotrabalha por seis dias seguidos, fazendo um inven-tário minucioso das maravilhas brasileiras, tão e emtudo semelhantes ao paraíso terreal que podem serdispostas num jardim de delícias, única maneira dedescrever as coisas da terra, pois são tantas as que selhe “representam ante os olhos” que, diz ele, “me

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arreceio de meter num grande labirinto” (Brandão,197, p.142). Para evitar o risco, é preciso realizar umacomposição, no sentido primeiro do termo, de cons-tituir um todo na integração perfeita de suas par-tes, pois a distância entre um e outro, entre a com-posição e o labirinto, vale dizer, entre o céu e o in-ferno, é uma questão de arranjo:

Já que tenho tomado à minha conta o haver dedizer as grandezas do Brasil, irei mostrando pri-meiramente a grande fertilidade de seus campos, edepois formarei uma fresca horta abundante da di-versidade de cousas, e logo irei ordenando um po-mar bastecido de diversas arvores, com excelentespomos, e da mesma maneira um jardim povoado deflores e boninas sem conto. (Brandão, 1997, p.142)

Isto feito, posto que já nada mais havia a fazer,no sétimo dia descansou. O Brasil, agora, é tambémo paradisíaco jardim das delícias de Alviano.

O outro efeito poderoso da estrutura em diálo-go do texto de Brandão é o “suspense” criado demodo proposital ao fim de cada um deles, de modoa manter a curiosidade e o desejo de saber de Alvianoem alta permanente. Como se os Diálogos das gran-dezas do Brasil fossem as Mil e uma noites diurnasdas maravilhas brasileiras, e Brandônio uma espéciede Sherazade a deixar o sultão — no caso, Alviano— louco de curiosidade e desejo, a narrativa é habil-mente modulada na medida exata da curiosidade deAlviano: quanto mais atiçada sua curiosidade, maisinterrupções são feitas, sempre sob o álibi de cansa-ço ou de pouco tempo para organizar a exposição

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do labirinto, ante a dificuldade das questões postaspor Alviano. Lembremo-nos que, afinal, não se tra-ta de mera narrativa, mas, como já vimos, da cons-trução em palavras de um bosque harmonioso.

Rápida ilustração do que se disse. Ao final doprimeiro diálogo, Alviano põe a questão dainabitabilidade da zona tórrida, questão que ocu-pou por longos séculos o imaginário europeu, noque é interrompido por Brandônio:

isto vai já sendo tarde, a dúvida que agora me moveisdificultosa de soltar, pelo que me parecia acertadoque reservássemos a sua prática para o dia de ama-nhã, que neste lugar vos esperarei para tratarmosdessa matéria, que não deve de ser pouco curiosa.(Brandão, 1997, p.44)

O mesmo ocorrerá no segundo diálogo, encerran-do a discussão do porquê não haver tremores de ter-ras no Brasil. Brandônio assim encerra a conversa:

isso é já tarde e a matéria comprida, pelo que meparece acertado reservarmo-la para amanhã, que nes-te lugar vos espero, [ao que retruca Alviano, cheiode reverência, temeroso de que tal encanto se que-bre] assim seja, por que não quero ir em nada contrao vosso gosto. (Brandão, 1997, p. 83)

A sedutora estratégia discursiva de Brandônioparece atingir em cheio o alvo, a julgar pelo que nosdiz o aflito e insone Alviano, ao iniciar-se o segun-do diálogo: “parece-me que um mesmo cuidado de-via de ser o que nos traz a ambos a este lugar num

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mesmo ponto; porque de mim vos confesso que menão deixou toda esta noite repousar a prática quedeixamos ontem imperfeita.” (Brandão, 1997, p.47).

Vencido o intervalo, Brandônio, prazerosamenteperverso, está pronto a oferecer mais uma dose ho-meopática de êxtase a Alviano, que, resignadamen-te, aceita receber em pequenas migalhas as grande-zas desse tropical jardim de delícias.

Entretanto, antes de percorrer suas aleias, é pre-ciso explicar o que Brandão, ou melhor, Brandônioentende por Brasil. Quando se fala da colônia nosDiálogos... deve-se entender por tal basicamente ascapitanias de Pernambuco, Tamaracá e Paraíba, ouseja, o Brasil de Brandônio é onde se produz açúcar,“o principal nervo e sustância da riqueza da terra”(Brandão, 1997, p.86), assim dito de modo peremp-tório em suas próprias palavras, o que deixa patenteque seu éden brasileiro, conforme se viu em sua des-crição, deve juntar maravilha e produtividade. Demais a mais, o descompasso em favor da primeira,graças à negligência dos “naturais e moradores daterra”, de que trataremos adiante, é fonte perma-nente de angústia para Brandônio.

Essas três capitanias, sob a l iderança dePernambuco, são o coração pulsante do jardim. Astrês juntas, diz Brandônio a um perplexo Alviano,produzem, só com o açúcar, mais riquezas que todoo comércio com a Índia, pois, só na primeira, há

infinitos engenhos de fazer açúcares, muitas lavou-ras de mantimento de toda a sorte, criações de gadovacum, cabras, ovelhas, porcos, muitas aves devolataria e outras domésticas, diversos gêneros de

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frutas, tudo em tanta cópia que causa maravilha aquem o contempla. (Brandão, 1997, p.32)

Não é de estranhar, então que Olinda, sua prin-cipal vila, com seus “inumeráveis mercadores comsuas lojas abertas, colmadas de mercadorias de mui-to preço, de toda a sorte, em tanta quantidade”(Brandão, 1997, p. 32), assemelhe-se a uma “Lisboapequena”.

Não será de estranhar também que, por isso, adescrição das outras capitanias — do Pará ou Riodas Amazonas até a de São Vicente — seja de cará-ter sumário e burocrático, apenas obrigação para darconta da extensão do território, procedimento, ali-ás, muito semelhante ao que faz Gabriel Soares deSousa em seu Tratado descritivo da Brasil, ao desta-car a Bahia como “cabeça e coração” da colônia. Daprimeira capitania, registrada a grandeza do rio, fi-camos sabendo que se trata, “por ser novamentepovoada” (Brandão, 1997, p.16), tão-somente deuma promessa; da última, embora abundante emcarnes e “frutas de nossa Espanha”, somos infor-mados de que ali se lavram “poucos açucares,” ca-bendo, por isso, em exíguas catorze linhas.

No que, então, respeita à Bahia, Brandônio nãoesconde sua má vontade, ao reconhecê-la como asegunda capitania por ser a “cabeça do estado doBrasil”. Apesar disso, e de produzir grande quanti-dade de açúcar, a Bahia é um poço sem fundo degastos para a Monarquia, por sua vontade, deBrandônio, bem entendido, de há muito já tapado.

Tudo isso por causa da “Relação da Bahia”, quetem em seus quadros

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muitos desembargadores, chanceler-mor, juiz dos fei-tos del-Rei e da fazenda, com seu provedor-mor eprovedor-mor dos defuntos (...). Todos estesdesembargadores e mais oficiais da casa são pagosde seus salários da fazenda de sua Majestade.(Brandão, 1997, p.36)

E segundo Brandônio, apesar de tanto gasto, tra-balham muito pouco porque

todos os moradores deste Estado, nas capitanias ondemoram, são liados uns aos outros por parentesco ouamizade, nunca levam seus pleitos tanto ao cabo quelhes seja necessário concorrerem por fim com a ape-lação deles à Relação da Bahia, porque antes disso semetem os amigos e parentes de permeio, que os com-põem e concertam, de maneira que põem fim as suascausas e daqui nascem irem poucas por apelação àBahia, e essas que vão lhes fora de mais utilidade atodos os moradores do Brasil seguirem-nas para oReino. Porque a mim me aconteceu já (não uma, se-não muitas vezes) mandar alguns papéis a despacharà Bahia e, no mesmo tempo que os mandava para lá,mandar outros semelhantes para o reino, e virem-me os do reino muito antecipados dos da Bahia.(Brandão, 1997, p.37)

A solução radical proposta por Brandônio é sim-plesmente fechar a casa de relação da Bahia, substi-tuindo-a por corregedores, dos quais um ficaria ins-talado, nada mais, nada menos do que na Paraíba!Ou seja, em sua própria casa, o que leva a pensarque talvez não valha muito a pena trocar o pecado

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da, digamos, lentidão baiana — como se vê, de am-pla memória — pelo da defesa de agilidade em rela-ção aos seus próprios interesses...

Delimitado geograficamente, pois, o Brasiledênico de Brandônio, podemos voltar aos Diálo-gos...

Como numa peça musical que pretende arreba-tar o espectador já nos primeiros acordes, ou comonum jogo de futebol em que um time impede o ou-tro de jogar, o mínimo que seja, nos momentos ini-ciais da partida, ocupando todos os espaços do cam-po, o texto de Brandão abre-se com uma joia retó-rica de alto impacto. Ainda que extensa, vale a penatranscrevê-la:

ALVIAN O — Que bisalho é esse, SenhorBrandônio, que estais revolvendo dentro nesse pa-pel? Porque segundo o considerais com atenção, te-nho para mim que deve ser de diamantes ou rubis.

BRANDÔNIO — Nenhuma cousas dessas é, senãouma lanugem que produz aquela árvore fronteira den-tro num fruto que dá do tamanho de um pêssego,que semelha propriamente a lã. E porque ma trouxeagora há pouco uma menina, que o achou caído nochão, considerava que se podia aplicar para muitascousas.

ALVIANO — Não de menos consideração me pa-rece o modo da árvore que o fruto dela; porque,segundo estou vendo, semelha haver-se produzidodo sobrado desta casa, aonde deve de ter as raízes,pois está conjunto a ela.

BRANDÔNIO — A umidade de que gozam todas asterras do Brasil a faz ser tão frutífera no produzir,

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que infinidade de estacas de diversos paus metidosna terra cobram raízes, e em breve tempo, chegam adar fruto; e esta árvore, que vos parece nascer dedentro desta casa foi um esteio que se meteu na ter-ra, sobre o qual, com outros mais, se sustenta esteedifício, que por prender veio a criar essa árvore,que demonstra estar unida com a parede.

ALVIANO — Aos que ignorarem esse segredo devede parecer o modo estranho. (Brandão, 1997, p. 3)

Como se pode observar, os diálogos começam “inmedia res” — se assim me for permitido dizer. Semnenhuma apresentação oficial, as personagens já es-tão em movimento, fazendo aquilo para o que fo-ram criadas: espantar e ser espantado, numa suces-são vertiginosa de segredos e estranhezas, como re-fere Alviano, perdido no baralhamento das frontei-ras entre o real e o fantasmagórico.

Observe-se, de início, a estudada circunspecçãode Brandônio, ao manusear a lanugem. É tanta con-centração que ativa o imaginário cobiçoso deAlviano, recém chegado em busca das evidências dasriquezas da terra, por isso disposto a ver diamantese rubis até mesmo em expressões faciais, sensação,recorde-se, já experimentada por Caminha, ao que-rer acreditar que os índios que dormiram na nave deCabral, quando perguntados por gestos, apontavampara o lugar de onde haviam retirado o ouro de seuscolares. Não sendo nenhuma coisa nem outra, nemdiamantes nem rubis, contudo, ainda assim a lanu-gem garante seu teor de estranheza, ao fundir rei-nos vegetal e animal, pois, semelhante à lã, nasce emum fruto como um pêssego. Tem razão de ser, por-

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tanto, a circunspecção do pragmático Brandônio.Nenhum problema que não sejam diamantes ou ru-bis, pois há sempre uma função para a coisa. É sóachá-la, pois, diz ele, “muitas cousa há, ainda, assimde frutos como de minerais, por descobrir, que oshomens não alcançaram sua propriedade e nature-za” (Brandão, 1997, p. 4).

Não há tempo, entretanto, para Alviano sentir-se frustrado, uma vez que, de enfiada, maior espan-to o espera. A árvore de onde veio a lanugem con-funde-se com a casa, criando mais uma imagem am-bígua, que funde natureza e cultura, cujo resultadoé uma fantasmagoria, só desconstruída na interven-ção de Brandônio, que a traz para o mundo real:não se trata de algo para além da natureza, ensina oseguro Brandônio a um espantado Alviano, senãodela, da natureza, em si mesma, no que tem de me-lhor: sua fertilidade, sua umidade, tão desmedida-mente grandes, que são capazes de fazer pensar noultrapasse de seu próprio limite. Mais maravilhosoainda, é de mundo real em si que se trata.

Apresentado assim de chofre ao Brasil, Alviano,ainda tateando entre o real e o irreal, viverá umasucessão de espantos que fará ruir uma por uma,todas as suas convicções que fazem do Brasil o lu-gar “mais ruim do mundo”.

Mais ruim do mundo por quê? Por falta de man-timentos? Nada mais fácil de mostrar o contrário,para o quê não é preciso argumento de grande oupequena complexidade, senão a evidência em si mes-ma. Basta referir o método de pescar à brasileira,como fazem os índios do Maranhão, “sem custo detrabalho”, como enfatiza Brandônio:

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Mandam duas ou três canoas, ou do que querem,de noite, que se vão atravessar no largo rio e emcerto tempo do ano, se põem inclinadas com a bor-da pendente contra aquela parte donde a maré vemenchendo, que basta, para o fazerem, assentarem-seos índios que vão nelas no bordo que pretendemque se incline; e em outros tempos as arrumam con-tra a vazante da mesma maneira, e estando assim in-clinadas por espaço de duas horas, sem mais outrobenefício, se enchem de peixe excelentíssimo, quepor si salta nelas (...). (Brandão, 1997, p. 21)

Se a quantidade de peixe impressiona Alviano,impressiona-o ainda mais o fato de ser “com muitopouco trabalho” que a tarefa se realiza, nesse quepoderíamos chamar de o verdadeiro milagre dospeixes. O trabalho como dor e sofrimento é matrizde amplo espectro no imaginário católico, em geral,e no português, em particular, especialmente naque-les tempos duros do século XVII, que misturavampobreza e ortodoxia religiosa. Ter a evidência docontrário, peixes que vem à procura do pescador,quando o normal é o contrário, é quase se reinserirnum mundo anterior à Queda, quando a vida se re-duzia ao ato mesmo de ser vivida per si, sem maio-res preocupações que colher o que se não plantou.

No que se refere a moléstias, então, outra dasconvicções de Alviano, que fazem do Brasil o lugar,“mais ruim do mundo”, não que o Brasil não as te-nha, informa Brandônio, mas em nada semelhantesàquelas que grassam mundo a fora, porque “são tãoleves e fáceis de curar que quase se não podem repu-tar por tais” (Brandão, 1997, p. 71). Nada parecido,

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por exemplo, com “esse mal tão pernicioso da pes-te, como o costuma haver por toda a Europa, Ásia eÁfrica” (Brandão, 1997, p. 71), da qual o Brasil estáisento, em virtude dos seus “ares delgados e dos seus‘céus benignos’”.

“Céus benignos”, aliás, é boa imagem para esta-belecer a extremidade de uma escala, cujo polo opos-to seria o da malignidade, a contaminar todo o res-to do mundo, o que o coloca no eixo do mal, Por-tugal no meio. Paraíso, paraíso, o Brasil não é, masnão seria uma espécie de sucedâneo, com toda essabenignidade a protegê-lo? Como explicar então acura de postemas e chagas, tão difíceis de curar emPortugal, tão facilmente curáveis no Brasil, coisa tãodifícil de fazer crer que chega a ser temerário ocontá-lo?

Pois neste Brasil se curam com a facilidade quetenho dito, e para isso vos direi o que vi por própri-os olhos, que não ousara afirmar aonde me faltassemas testemunhas, que aqui tenho. Um negro da Guiné,meu escravo, chamado Gonçalo, se lhe cerrou detodo as vias ordinárias que temos para fazer câmarase urinar, e se lhe abriu pelo umbigo um buraco, poronde muitos dias fez semelhante exercício, o qual selhe tornou também a cerrar de per si, com se lheabrir outro igual buraco na ilharga direita, pelo qualobrou também suas necessidades mais de seis me-ses, a cabo dos quais, sem nenhuma cura, nem me-dicamento, tornou a sarar, abrindo-se-lhe de novoas vias ordinárias, pelas quais foi purgando como dan-tes, com ter saúde e viver muitos dias. (Brandão,1997, p. 76)

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O processo de conversão de Alviano, portanto,não implica apenas a descoberta de um mundo novo,mas a passagem do eixo do mal para o do bem, domaligno para o benigno. Mudança, de mais a mais,que pode ocorrer com todo mundo, como demons-tra Brandônio, ao rebater a acusação de Alviano deque o Brasil não tem futuro por ter sido povoadopor “degredados e gente de mau viver”:

deveis de saber que esses povoadores, que primei-ramente vieram a povoar o Brasil, a poucos lanços,pela largueza da terra, deram em ser ricos, e com ariqueza foram logo largando de si a ruim natureza,de que as necessidades e pobrezas que padeciam noreino os fazia usar. E os filhos dos tais, já entroniza-dos com a mesma riqueza e governo da terra, despi-ram a pele velha, como cobra, usando em tudo dehonradíssimos termos. (Brandão, 1997, p. 107)

Observe-se, pois, que a fertilidade da terra, oumelhor, sua largueza, com diz Brandônio, não sócura males físicos ou produz infinidade de manti-mentos com pouco trabalho, o que já seria suficien-te para localizá-la a meio caminho entre as dores domundo e as maravilhas do paraíso. Para tal, é preci-so, todavia, um pouco mais. É preciso que ela sejacapaz, não só de fazer mudar a opinião sobre si, comoocorreu com Alviano, mas de transformar a nature-za humana, eliminando dela a maldade, pois nãocabe maldade no bosque harmonioso.

A julgar, contudo, pelas queixas de Brandônioacerca da “negligência e pouca indústria dos mora-dores do Estado do Brasil”, incapazes de plantar uma

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árvore frutífera em seu quintal, obcecados que es-tão em “fazerem mais quatro pães de açúcar” paralogo voltarem ao reino, o que muito poucos conse-guirão, queixas que atravessam todo o texto dosDiálogos das grandezas do Brasil, nem tudo foi divi-no e maravilhoso como ele quer fazer crer a Alvianoe a nós outros, seus leitores.

Mas nem tudo é perfeito na vida. Nem mesmono sucedâneo do paraíso de Brandônio.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Ambrósio Fernandes. Diálogo das grandezas doBrasil (Organização e introdução de José Antônio Gonsalvesde Mello). Recife: Fundação Joaquim Nabuco/EditoraMassangana, 1997.

LIMA, Francisco Ferreira. O outro livro das maravilhas. Rio deJaneiro/Salvador: Relume Dumará/FUNCEB, 1998.

LIMA, Francisco Ferreira. O Brasil de Gabriel Soares de Sousa& outras viagens. Rio de Janeiro/Feira de Santana: 7Letras/UEFSEditora, 2009.

MARTINS, Eleni. Enunciação e diálogo. Campinas: Edunicamp,1990.

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Mas era preciso ir ver ao vivo, em cores, e cadavez mais de perto. E foi o que a Europa renascentistadecidiu fazer, Portugal à frente da corrida, entre acoragem e o medo. Diz Le Goff (1993, p. 266), compropriedade, que o homem da Idade Média não pre-cisou olhar, porque lhe bastava ouvir e sobretudoacreditar.

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LITERATURA DE VIAGENS E A“ATUALIZAÇÃO” DO IMAGINÁRIO

Finda a antiguidade clássica, findou-se também asaborosa harmonia entre prática religiosa e pesquisacientífica, uma parceria que as autorizava, cada umaa seu modo, a ir em busca dos mistérios do mundo,sem que uma avançasse o domínio da outra. Com ofecho desses tempos, agora o dogma era o limite, e aEscolástica sua mais fiel servidora. O que coubessenesse baú da nova felicidade era ali guardado, sob omanto diáfano do Cristianismo vitorioso; o que nãocoubesse tinha como destino um desmedido, som-brio e bolorento arquivo morto.

As mudanças foram gigantescas em todo e qual-quer campo da atividade humana, mas a mais visívelde todas — quanto mais não seja por sua própriaespecificidade — talvez tenha ocorrido na cartogra-fia. Como se sabe, a pesquisa científica em geografiaera das mais avançadas naqueles tempos. A Geogra-fia de Ptolomeu, o último dos grandes sábios gre-

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gos, trazia um mapa-mundi que, além de aprimoraras redes de paralelos e meridianos já formuladas naGrécia, definia com rigor o contorno do mundoconhecido de então e avançava hipóteses atrevidassobre as terras austrais ainda desconhecidas.

Ao longo — e ponha-se “longo” nisso — de boaparte da Idade Média, o mapa-mundi de Ptolomeudeu lugar ao mapa chamado T-O (Orbis Terrarum),produzido na fase de decadência do Império Ro-mano, sobretudo por Pompônio Mela, e divulga-dos por toda a Idade Média por Isidoro de Sevilhaem suas Etimologias, a enciclopédia que melhor res-pondeu às inquietações daqueles tempos aflitos.

Nesses mapas, um grande oceano rodeava circu-larmente os três continentes conhecidos. Estes, porsua vez, eram divididos simetricamente por um T,formado na sua parte vertical pelo Mediterrâneo ena horizontal pelo encontro dos rios Nilo e Danú-bio. Na parte superior, por sobre a haste horizontalsituava-se a Ásia. Na parte inferior, à esquerda, era aEuropa e à direita, a África. Jerusalém era o centrodesse mundo assim representado.

A oriente, isto é, no cimo do mundo, onde atu-almente é o Norte, ficava o “paraíso terreal”, a quenenhum homem vivo podia ter acesso, tais eram osperigos que se interpunham em seu caminho, comobem pôde “comprovar” Jean de Mandeville, aqueleintrépido andarilho que fez boa parte de suas via-gens à roda de seu quarto, muito antes que Xavierde Maistre inventasse tão esquisita maneira de via-jar.

O mundo do mapa T-O era plenamente povoa-do, sobretudo a parte da Ásia onde se localizava a

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Índia. Pompônio Mela, Plínio, o Velho, e depoisSolino, e depois todos os que se lhes seguiram — aIdade Média utilizou plenamente o direito à recom-pilação — ali fizeram viver os mais espantosos serese as mais incríveis maravilhas, que durante séculosaplacaram a sede do diverso e do imprevisível de umaEuropa confinada religiosa e geograficamente, ga-rantido nessa alteridade radical sua unidade identi-tária. Conquanto sejam humanoides, estão sempremuito distantes do que se conhece por tipicamente— vale dizer, eurocentricamente — humano: sãohomens sem boca, os Astonei, frágeis, minúsculos edelicados seres que sobrevivem do cheiro de algu-mas plantas e têm vida curtíssima, não mais que vin-te e quatro horas. Em oposição a eles, há os longevoscomedores de cobras, que podem viver, por isso, atéquatrocentos anos. Dentre todos esses seres bizar-ros, um dos mais simpáticos é o ciopóde, um ho-menzinho de apenas um pé, mas que vale por dez,pois, além de ser capaz de correr com grande agili-dade, em saltos de espantosos trinta metros cada, outiliza como chapéu, para se proteger do sol escal-dante. Há ainda os homens com cara e rabo de cão,os cinocéfalos, que ladram ao invés de falar, tam-bém muito populares. Há os que nascem brancos etornam-se negros e vice-versa; os que só vivem oitoanos. Aos blêmios faltam-lhes o pescoço, pois têma cabeça localizada no peito. As orelhas imensas dospanotos, tal como no caso do ciópode, também ser-vem para protegê-los de intempéries. Além desses,há muitas e muitas outras espécies, tantas que po-deríamos gastar páginas e páginas a descrevê-las. Mas,só para mostrar como nossos fantasmas e fantasias

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não mudaram muito, vale a pena citar a descriçãode Mandeville de um desses seres, tão longe e tãoperto de nós, os andróginos:

E noutra ilha há pessoas que são homem e mu-lher juntos, e têm uma teta de um lado e nenhumado outro e tem os membros de geração do homem eda mulher e usam aquele que lhes apraz, uma vezum e outra vez o outro; e engendram crianças quan-do fazem obra de macho e quando fazem obra defêmea concebem crianças e emprenham.

Quanto à fartura e generosidade da terra, era tudoainda mais espantoso, alimentando os sonhos de umaEuropa pobre, castigada pelo rigor das estações, quesobrevivia com uma alimentação precária e monó-tona. A Índia é regida por apenas duas estações, in-verno e verão, mas é verde e florida o ano inteiro;ouro e pedras preciosas podem ser encontrados emsuas montanhas, a céu aberto, mas há perigos à es-preita, dentre eles grifos e dragões, pois a aventurasupõe excitação. Em Sumatra, não há propriedadecoletiva: da terra às mulheres, tudo é de todos. E seo paraíso terreal, que faz correr de modo subterrâ-neo as primeiras partes dos quatro grandes rios queali nascem, situa-se em algum lugar da Ásia, assimtambém se dá com o inferno, que se localiza em al-gum lugar daquela região. E é praticamente inter-minável a lista de maravilhas.

Tão prestigiado quanto o mapa T-O era o “planis-fério de zonas”, dado a conhecer mais amplamenteao mundo por John Hollywood, que atendia emPortugal pela simpática tradução de João Sacrobos-

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co, em seu Tratado da esfera, vindo a público no sé-culo XIII. Tão importante que, em pleno séculoXVII, ainda funcionava como uma espécie de ane-xo dos guias náuticos ibéricos, mesmo depois de tersido fragorosamente desmentido na prática no quediz respeito ao Equador.

Ali, expunha-se a ideia, que remonta aos gregos,de a terra ser composta por cinco zonas, duas frígi-das, nos círculos polares, duas temperadas e umatórrida – uma faixa de mar entre as duas zonas tem-peradas – que corresponderia vagamente à linha doEquador. Das cinco, só as temperadas podiam serhabitadas. Nas outras três, a vida seria impossível porexcesso de frio nas primeiras e de calor na segunda.

Nessa última, dizia-se, tudo é tão quente quenenhuma forma de vida conseguiria aí manter-seviva. O mar é uma caldeira em ebulição. Era, pois,impossível atravessar tal zona. A morte certa era ogalardão de quem se atrevesse a experimentar tãoterrível travessia. Não era outra coisa que, segundoZurara (1973, p. 49), revelavam os aterrorizadosmarinheiros portugueses, tentando a todo custojustificar a inutilidade da ultrapassagem do CaboBojador, suposta fronteira da zona tórrida:

–Como passaremos – deziam eles – os ter-mos que poseram nossos padres, ou que proveitopode trazer ao Infante a perdição de nossas almasjuntamente com os corpos, que conhecidamente se-remos homicidas de nós mesmos?

E essa inutilidade era ampliada pela certeza deque, mesmo que se conseguisse ultrapassar a zona

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tórrida pela primeira vez, corria-se o risco de en-contrar apenas a morte do outro lado, uma vez queaquela região devia ser povoada pelos mais estranhose bizarros tipos jamais vistos, de peixes voadores ainimagináveis monstros marinhos. Só não encontra-riam — disso estavam seguros — os seus iguais, postoser impossível haver humanos do lado de baixo doEquador. E se houvesse, assim acreditou a IdadeMédia, não seriam Adamitas, os descendentes deAdão, que não tinham como ter atravessado tãoquente fronteira. Os longos debates travados du-rante toda a Idade Média sobre se havia ou não ha-bitantes naquela zona, dos quais não escapou nemmesmo Santo Agostinho, não foram capazes de pro-duzir uma resposta taxativa.

Aliás, para que se tenha ideia de como é difícilchamar-se fantasia ao que ainda não o é, Colombo,que já viajava sob o horizonte conceitual da Geo-grafia de Ptolomeu, não hesitou em acreditar queestava diante do paraíso terreal ao defrontar-se como mundo de água doce que jorrava do Orenoco. Epara que se fique num exemplo português, DuartePacheco Pereira, aquele mesmo que inaugura ummodo criterioso de olhar, relaciona ainda os cinocé-falos no seu Esmeraldo de situ orbis.

Mas era preciso ir ver ao vivo, em cores, e cadavez mais de perto. E foi o que a Europa renascentistadecidiu fazer, Portugal à frente da corrida, entre acoragem e o medo. Diz Le Goff (1993, p. 266), compropriedade, que o homem da Idade Média não pre-cisou olhar, porque lhe bastava ouvir e sobretudoacreditar. Os portugueses, no limiar desses tempos,embora ouvindo, embora acreditando, que tinham

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muito de medievais, decidiram por conta própriaacrescentar o olhar ao serviço de Deus. Desde aí nemo homem, nem o mundo e nem Deus foram mais osmesmos.

Mas como ver o nunca antes visto? O novo emestado inaugural e, por isso, irredutível estranha-mento em si mesmo?

Ao defrontar uma paisagem nova, em caráterinaugural, ensina Francis Affergan (1987), o sujeitoé tomado, ainda que não o queira, por uma sensa-ção que o antropólogo francês chama de cintilaçãodo real.

Como se sabe, o olho é só um elemento de umprocesso complexo de apreensão do real. Parte sig-nificativa desse complexo é o acervo de conceitos eimagens através do qual decodificamos os feixes deluz captados pelo olhar. E tal decodificação operapor um mecanismo de enquadramento do real ob-servado, a que se impõe uma espécie de moldura,ou, como se diz hoje, um foco. Emoldurados, istoé, localizados, identificados e relativizados, aquelesfeixes de luz transformam-se em conhecidos e fa-miliares contornos do mundo. Tão automática é essaoperação na vida cotidiana que sequer nos damosconta de sua complexidade – e se nos déssemos, emnada nos ajudaria.

Se é assim com a vida cotidiana, muito diferenteo será na vida extraordinária, aquela vivida na au-sência da rotina, aquela que precisa construir, a cadacoisa vista, um referência, base sem o que perdemoso nosso fundamental sentido de orientação no mun-do, cuja consequência imediata é uma mistura dedeslumbramento, desespero e desamparo, não ne-cessariamente nessa ordem.

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Cintilação do real, como a quer Affergan, só podeser vivida na sua intensidade numa viagem primei-ra, inauguradora, aquela em que o sujeito se achafrente a frente com um mundo irredutível ao seuaparelho mental. Incapacitado por uma espécie dedesconexão entre o olhar e seu repertório de con-ceitos e imagens, agora coisas alheias uma à outra, osujeito já não consegue emoldurar o real observa-do. Este, agora, é só um excesso, uma desmedida.Desligado da tomada, o olhar transforma-se de pon-ta-de-lança em lança inteira, uma vez que não hárespostas ao envio de suas mensagens. Acostumadoa ser parte e agora sendo o todo, soberanamenteautônomo, o olhar deleita-se ante o que vê, pois tudoque vê transforma-se numa festa de luz e cores, daqual está excluído o significado. Sem significado,ou seja, sem conexão com o aparelho mental, omundo é luz, é cor, é brilho, é vertigem, é, numapalavra, cintilação.

Embora intensa e gostosamente vivida, é experi-ência curta, a da cintilação, que o poder onipresentedo conceito, como os escoteiros, está sempre alerta.E é curta porque, sob seu efeito, o sujeito não podejulgar, não pode comparar. Daí o deslumbramentotransformar-se em desamparo, e o desamparo emdesespero, porque sem julgar, sem comparar, o su-jeito perde seu principal traço de humanidade. Ali-ás, se quiséssemos uma dessas fórmulas que se pre-tendem sintéticas, tão ao gosto do senso comum,bem poderíamos dizer que viver é julgar.

E para julgar é preciso recortar, isto é, emolduraro mundo, para, a partir daí, relativizar, localizar eidentificar o nosso lugar nele, em oposição ao lugar

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do outro. Com o fim desse processo, que vai dodeslumbramento à construção do contorno, a es-tranheza radical estará domada, assimilada, emboraquase nunca compreendida. O sujeito está pronto,enfim, para, na bela e precisa formulação de HelderMacedo, “reconhecer o desconhecido”.

Apresento a seguir três rápidos exemplos desseprocesso que vai do que chamo excesso de real àcolocação de moldura, o que vale dizer, do deslum-bramento ante o estranho irredutível ao reconheci-mento do desconhecido.

O primeiro é um estranho bicho visto por FernãoMendes Pinto, em sua extraordinária Peregrinação.Trata-se de bicho muito esquisito, a começar pelonome:

Vimos aquy tambem hu’a muyto nova maneyra,& estranha feyção de bichos, a que os naturaes daterra chamaõ Caquesseitão, do tamanho de hu’a gran-de pata, muyto pretos, conchados pelas costas, comhu’a ordem de espinhos pelo fio do lombo do com-primento de hu’a penna de escrever, & com azas dafeição das do morcego, co pescoço de cobra, & hu’aunha a modo de esporaõ de gallo na testa, co rabomuyto comprido pintado de verde & preto, comosão os lagartos desta terra. Esses bichos de voo, amodo de salto, cação os bugios, & bichos por cima dasaruores, dos quais se mantem. (Pinto, 1983, p. 44)

Não é prática muito comum na Peregrinação odar nome aos estranhos bichos encontrados por seunarrador ao longo de suas muitas viagens. O caques-seitão é um dos poucos. Nesse caso, especialmente,

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a atribuição do nome põe, todavia, um grande pa-radoxo: embora seja o único animal a ter um nomeespecífico, é também o único a não ter especificidade.É que sua estranheza é tão radical que ele só podeser apreendido enquanto composição. Tem-se onome, mas não se tem a coisa, uma vez que esta nãopode ser apreendida em sua estranheza. É preciso,pois, construí-la, o que demanda um processo mi-nucioso de descrição. Não custa retomá-lo: o bichoé do tamanho de uma grande pata, muito preto,conchado pelas costas, com huã ordem de espinho pelofio do lombo; possui asas da feição das do morcego epescoço de cobra; exibe uma unha na testa como sefosse o esporão de um galo e tem um rabo muytocomprido pintado de verde & preto, como de um la-garto. Se bem possua nome, o bicho não se deixaver; ou melhor, só se deixa ver através de. O resulta-do final é, mais que um bicho, um bicho-monta-gem, como uma dessas “instalações” da arte con-temporânea ante as quais a gente não sabe por ondecomeçar a olhar. Tanto pormenor só pode ser resul-tado de um longo, curioso e devotado olhar queminuciosamente esquadrinha o objeto novo embusca de sua especificidade e se compraz ante a des-coberta de que o que o caracteriza é a ausência mes-ma dessa especificidade.

E o maravilhamento aí decorre da possibilidadede o real — o real visto, não aquele de ouvir dizerdaqueles distantes tempos medievais das viagensimóveis — poder juntar magicamente num todo oque antes só se poderia ver em separado. O real — éo que parece dizer seu afã descritivo — não é sóespantoso na sua capacidade de produzir o diverso

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em quantidades infinitas, mas o é também na suacapacidade de fazê-lo qualitativamente, como sehouvesse uma engenharia genética inerente ao seuprocessar-se, ainda que só seja possível acedê-lo poraproximação, por comparação.

O segundo exemplo é a descrição do tatu feitapor Pero de Magalhães de Gândavo em sua Histó-ria da província Santa Cruz a que vulgarmente cha-mamos Brasil.

Por sua estranheza, o tatu era um dos animaisprediletos no imaginário europeu, já conhecido atra-vés de muitas gravuras. Gândavo, realista confesso,feroz perseguidor da objetividade, não conseguedesvencilhar-se do excesso de real que a visão do tatuprovoca. Sua descrição, à maneira de Mendes Pin-to, com quem, diga-se, não tinha nada em comum,resulta num animal compósito, um pouco ao mododesses jogos de montar um pretenso ser humanoperfeito a partir de membros de várias pessoas, cujoresultado é sempre um desastre. Ante a ausênciacompleta de moldura, como se observa na introdu-ção do seu texto, a única possibilidade é a compara-ção, por partes, do bicho:

Outros há também nestas partes muito para no-tar, diferentes de todos os outros animais (a meujuízo) que quantos até agora se tem visto. Chamam-lhes tatus e são quase tamanho como leitões, têmum casco como de cágado, o qual é repartido emmuitas juntas, como lâminas, e arranjado de maneiraque parece totalmente um cavalo armado. Tem umrabo comprido todo coberto do mesmo casco; o fo-cinho é como de leitão, ainda que um tanto mais

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delgado, e não botam fora do casco mais que a cabe-ça. Tem as pernas curtas, e criam-se em covas comocoelhos. A carne desses animais é a melhor e a maisestimada que há nesta terra e tem o sabor quase comode galinha (Gandavo, 2003, p.95).

Observe-se que não há elementos mínimos poronde começar a descrição, como se declara nas trêsprimeiras linhas do trecho citado. Para construir,pois, a imagem do tatu foi necessário compará-lo acinco outros animais: o leitão (duas vezes), o cága-do, o cavalo armado, o coelho e, por fim, a galinha.É de perguntar: de síntese tão esquisita, que ima-gem pode efetivamente ser produzida? É difícil aresposta. Mas o objetivo é alcançado, uma vez queo teor de estranheza é cercado pela quantidade decomparações possíveis. O resultado, ainda que im-provável, é que, não sendo igual a nenhum daquelesanimais em particular, o tatu é fronteiriço, em cadauma de suas partes, a cada um deles, devendo serpensado como um mosaico, única maneira encon-trada pelo narrador para circunscrever uma realida-de deslumbradamente inapreensível.

E, por fim, a jiboia de Gabriel Soares de Sousa.Apresentador não só das grandezas do Brasil, comotambém de suas estranhezas, Soares de Sousa vaidedicar especial atenção ao mítico nativo, mais umdiferencial a impressionar a impressionável menteeuropeia, ávida de ouro, prodígios e maravilhas domundo real. As cobras — mais pelo que simbolizam— ocupam o primeiro lugar:

Comecemos logo a dizer das cobras a que os ín-dios chamam jibóia, das quais há muitas de cincoenta

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e sessenta palmos de comprido, e daqui para baixo.Estas andam nos rios e lagoas, onde tomam muitosporcos, veados e outra muita caça, o que engolemsem mastigar, nem espedaçar; e não há dúvida senãoque engolem uma anta inteira, e um índio; o que fa-zem porque não tem dentes, e entre os queixos lhesmoem os ossos para os poderem engolir. E para mataruma anta ou um índio, ou qualquer caça, cingem-secom ela muito bem, e como tem segura a presa, bus-cam-lhe o sesso com a ponta do rabo, por onde ometem até que matam o que tem abarcado; e comotem morta a caça, moem-na entre os queixos para apoder melhor engolir. E como têm a anta, ou outracoisa grande que não pode digerir, empanturram demaneira que não podem andar. E como se sentempesadas lançam-se ao sol como mortas, até que lhesapodrece a barriga, e o que tem nela; do que dá ofaro logo a uns pássaros que se chamam urubus, edão sobre elas comendo-lhes a barriga com o quetem dentro, e tudo o mais, por estar podre; e nãolhes deixam senão o espinhaço, que está pegado nacabeça e na ponta do rabo, e é muito duro; e comoisto fica limpo da carne toda, vão-se os pássaros; etorna-lhes a crescer a carne nova, até ficar a cobraem sua perfeição; e assim como lhes vai crescendo acarne, começam a bulir com o rabo, e tornam areviver, ficando como dantes; o que se tem por ver-dade, por ter tomado disto muitas informações dosíndios e dos línguas que andam por entre eles nosertão, os quais afirmam assim. (Sousa, 1987, p. 258)

Abstraída momentaneamente a autoria do tex-to, bem poderia concluir o leitor, outra vez, estardiante de uma página das mais atrevidas de Mendes

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Pinto, que provavelmente dava retoques finais a sualonga Peregrinação quando Soares de Sousa come-çava a tomar suas notas em terras da Bahia. Comefeito, a jiboia deste, em outros momentos rigoro-so observador do mundo real, está mais próxima debichos esquisitos como o caquesseitão ou opussichucão, que Mendes Pinto diz ter encontradoem terras do Oriente, do que de bichos reais, tal oteor de estranheza nela investido.

Síntese dos medos e fantasias que a alteridade radi-cal desse estranho mundo novo podia fazer supor, tudonela aterroriza, a começar pelo tamanho descomu-nal, ante o que, o homem, bicho da terra tão peque-no, frágil e indefeso, é pura impotência. Senhora daságuas e da terra, desfila soberana seu poder de ani-quilamento, a marcar na consciência do homem apresença do agente de sua perdição, reavivando, namaneira escolhida para matar suas vítimas, a neces-sidade imperiosa da interdição sexual.

E tal presença, sorrateira, a deslizar no fundo daságuas ou a esgueirar-se por entre as sombras da noi-te, durará enquanto durar a eternidade, visto suacapacidade de renascer a partir dos próprios ossos,exibição visível de seu caráter imortal, talvez o maisimportante elemento constitutivo desse arquétipo.Porque, em última instância, é disto que estar a tra-tar Soares de Sousa: de um arquétipo, mais que deuma cobra real, uma vez que desta, infelizmente,Soares de Sousa não poderia dizer muito, pois podeatingir no máximo 4 metros de comprimento. E,embora se alimente de animais, seu alvo prediletosão as aves e pequenos roedores. Como se vê, nadamais prosaico, sobretudo para aquele tempo de bi-chos grandes.

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Mas não era de prosaísmo que queria tratar Soa-res de Sousa. Nem Gândavo. Nem Mendes Pinto.O que os movia era um incansável desejo de apreen-der um real que, para seu júbilo e desespero, só lhesaparecia como irrealidade.

REFERÊNCIAS

AFFERGAN, Francis Exotisme et alterité. Paris: PUF, 1987.

HUE, Sheila & MENEGAZ, Ronaldo (Orgs.). A primeiraHistória do Brasil – História da província Santa Cruz a quevulgarmente chamamos Brasil, de Pero de Magalhães deGandavo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.

KAPPLER, Claude. Monstros, demônios e encantamentos no finalda Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

LE GOFF, Jacques. Para um novo conceito de Idade Média. Lisboa:Estampa. 1993.

LIMA, Francisco Ferreira de. O outro livro das maravilhas. Riode Janeiro/Salvador: Relume Dumará/ Fundação Cultural doEstado da Bahia, 1998.

LIMA, Francisco Ferreira de. Quando o olho não vê: GabrielSoares de Sousa e a permanência do fantasioso. In: DUARTE,Lélia Parreira (Org.) Encontros prodigiosos. Belo Horizonte:UFMG, 2001.

PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Lisboa: IN-CM, 1983.

SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado descritivo do Brasil em 1587.São Paulo: Companhia Editora Nacional, col. Brasiliana, vol.117, 1851/1987.

ZURARA, Gomes Eanes de. Crónica de Guiné. Barcelos:Civilização, 1973.

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Trilhar caminhos, agora, não é apenas caminhar.É, muito além disso, uma operação que implica fa-tores complexos e diferenciados, que envolvem cál-culos (mais ou menos) precisos, grande capacidadede observação e registro (mais ou menos) porme-norizado da coisa observada.

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DE ROMARIAS, PEREGRINAÇÕESE OUTRAS VIAGENS

Mais de um século antes do nascimento do In-fante D. Henrique, que só ocorrerá em 1394, a pala-vra viage já fizera sua aparição na língua portugue-sa, vinda do latim, via provençal, como ensina PedroMachado (1990). Mas não fez sucesso imediato. Oportuguês já contava nessa época com muitas pos-sibilidades para dar conta da ideia de deslocamentode um ponto a outro, tais como caminho, carreira,via ou jornada.

Além disso, ainda que sua origem remota fossevia, viage derivava de viaticum, que significava nãoo deslocamento em si, mas tão-somente aquilo queo viajante leva consigo como suporte para enfren-tar as agruras da distância, fossem provisões, fossedinheiro. Se os modos de caminhar eram os mes-mos; se no caminhar o que importa é o caminho enão o que o caminhante leva consigo, não haviaporque utilizar uma nova palavra para definir o que

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definido estava. Era o que parecia fazer crer o des-prezo que a nova palavra haveria de sofrer.

Com a prática efetiva das viagens transoceânicas,o vocábulo começou a granjear uma pequena mar-gem de sucesso. Todavia, ainda que seja possívelencontrá-lo de modo residual em uma ou outra nar-rativa, como na Crônica dos feitos de Guiné, deZurara, ou no Itinerário... de Mestre Afonso, seuuso é claramente localizado.

Já com o sentido que mantém hoje, a palavra pas-sou a ser utilizada em alguns poucos roteiros denavegação. É possível encontrá-la, como informaMagalhães Godinho (1990:529), nos “roteiros dacarreira da Índia” de Vicente Rodrigues e Aleixo daMota, por exemplo, nos quais já é normalmenteempregada.

Não é por acaso, entretanto, que sua difusão co-meça a se dar por um viés eminentemente técnico.Isto assim acontece porque uma nova maneira decaminhar foi inventada. E cada nova invenção de-pende de uma outra, simultânea, que se realiza nointerior da linguagem, na qual se inventa um nomepara aquela invenção, com que se pretende circuns-crever o novo significado dali surgido. Mudaram oscaminhos e mudaram as maneiras de percorrê-los;os nomes, com naturalidade, acompanham a mu-dança. É esse, desde que ela existe, o dever da lin-guagem.

Trilhar caminhos, agora, não é apenas caminhar.É, muito além disso, uma operação que implica fa-tores complexos e diferenciados, que envolvem cál-culos (mais ou menos) precisos, grande capacidadede observação e registro (mais ou menos) porme-

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norizado da coisa observada. Para realizar a viagem,pois, há que dominar certos saberes, os quais fixa-rão as coordenadas de tempo e espaço para seu de-senvolvimento. É essa a condição básica para que oempreendimento alcance o objetivo desejado. Por-que, nessa nova modalidade de deslocamento, o sa-ber garante não só a ida, mas a volta e a vida.

Entretanto, nem só de saber técnico foram feitasas descobertas. Embora viagem já começasse a se fir-mar nos roteiros de navegação, as outras modalida-des de escritura do século XVI passaram ao largodaquela novidade. Como se nada houvesse aconte-cido, mantiveram em uso aquelas antigas palavras.

E, mais que isso, popularizaram uma nova, tardi-amente introduzida no léxico, itinerário, que apa-receu em português nesse mesmo século XVI. Se setomarem apenas três dos mais importantes relatosde viagens daquele século, os de Antonio Tenreiro,Mestre Afonso e frei Pantaleão de Aveiro, há denotar-se que todos são denominados Itinerário. E,no caso dos dois primeiros, não se requer informa-ção adicional, pois ao nome Itinerário se segue ape-nas aquele do itinerante. Tratava-se na verdade deum nome novo para uma antiga maneira de viajar.

Com efeito, o que caracterizava basicamente oitinerário era o fato de a viagem ser feita quase sem-pre por terra, a não ser em casos excepcionais, quese reduziam geralmente a travessias conhecidas noMediterrâneo, Mar Vermelho e mais raramente noGolfo Pérsico, o que, já se vê, eliminava quase todoo aparato técnico que a viagem por mar exigia.

Guardadas as diferenças próprias dos tempos,esses itinerários eram, na prática e na teoria, paren-

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tes bastante próximos daqueles relatos feitos no sé-culo XIII por pioneiros, como os missionários PianCarpino ou Guilherme de Rubruck, que atravessa-ram a Ásia em demanda do Catay, com o objetivode descobrir a que categoria, se à dos homens, se àdos monstros, pertenciam os tártaros, um dos mui-tos terrores da Cristandade naqueles tempos. Issoquer dizer que o saber técnico que se ia acumulandonaquelas outras formas de viajar em nada – ou qua-se nada – modificava essas andanças por terra.

Mas, ainda que itinerário fosse bastante popularpara dar nome àquele tipo de relato – hábito queatravessou o século XVII –, uma outra palavra a ul-trapassava em prestígio e popularidade: peregrina-ção. De fato, no século XVI, essa era a palavra maispopular para designar uma longa viagem e suas im-plicações. Tão popular que relegou itinerário prati-camente ao título do relato.

E não é difícil entender o motivo do sucesso deperegrinação. O tempo, com suas novas vontades,passou a exigir uma palavra que revelasse com pre-cisão as muitas facetas daquelas novas viagens. Pere-grinação foi a palavra escolhida. Ela passou assim afuncionar como uma espécie de palavra-síntese, queultrapassava todas as suas vizinhas de significadosemelhante e acrescentava dois elementos funda-mentais: exprimia a ideia de imersão no estrangeiroabsoluto, por um lado, e enfatizava, por outro, umsignificado de fundo religioso, bem a gosto daqueleséculo tão temente a Deus. Tais aspectos, nenhumadaquelas outras palavras eram capazes de cobrir, nemmesmo aquela de apelo técnico, viagem, que come-çava a se firmar nos roteiros de navegação.

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Se se tomar, por exemplo, como modelo de com-paração a palavra romaria, sua assemelhada, pere-grinação surge relativamente tarde na língua portu-guesa. Aquela já está inscrita no léxico desde o sécu-lo XIII, enquanto pelegrinagee, a ancestral de pere-grinação, só vai ser registrada em 1440, de acordocom Pedro Machado (1990).

Havia uma clara razão de ser para que isso assimocorresse. Embora uma boa parte dos lexicógrafosse tenha habituado a tomá-las como equivalentes,todos marcam uma sutil diferença que elas guardamentre si, já deliciosamente percebida pelo autor ouautores de um vocabulário castelhano do século XV,ainda segundo o mesmo Pedro Machado (1990):

Romeros y romerias deçimos, por aquellos quevisitan los lugares sanctos. Y porque despues deHierusalem, el principal romeraje es Roma, sondichos romeros; que Hierusalem se dize peregrinose peregrinaje, por estrañeza de la tierra.

Romaria e peregrinação, por conseguinte, estãoseparadas pela estranheza da terra. A primeira é umasimples viagem a um lugar santo, sem nada que des-vie a atenção do viajante entre o ponto de partida eo de chegada. O caminho é tão-somente um peque-no obstáculo que separa o romeiro de seu desejo.Daí que o verbete a ela dedicado por Morais (1961)em seu dicionário, nas duas primeiras entradas, adefina como “peregrinação religiosa” e “jornada depessoas devotas a um lugar sagrado ou de carácterreligioso”.

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Ao contrário da primeira, a segunda tem comodefinitivo apenas o ponto de partida, porque entreeste e o de chegada há uma tão grande quantidadede desvios que por vezes ofuscam completamente oúltimo, como bem se pode ver no sentido que Mo-rais lhe atribui na definição de romaria. Se há umaperegrinação religiosa, é porque há uma outra quenão o é ou não precisa ser, embora o termo estejasempre carregado de religiosidade no senso comum.Em outras palavras, a romaria é sempre uma pere-grinação religiosa, mas nem toda peregrinação é ne-cessariamente uma romaria.

E é nessa ordem que o mesmo Morais interpretaperegrinação, no verbete com que a define. Na pri-meira entrada diz-se que esta é uma “viagem em pa-íses longínquos”. E só na segunda – e última – é quevai ser definido o seu cunho religioso: “viagem emromaria a lugares santos e de devoção”.

Como se pode ver, romaria e peregrinação po-dem até ser definidas uma pela outra, mas não sãoiguais. A sutileza que as separa faz esta incluir aque-la e todas as outras semelhantes, tenham fundo reli-gioso ou não, seja caminho, carreira, via, jornada eaté mesmo viagem, com todos os seus aspectos téc-nicos.

A peregrinação é a viagem mais complexa emultifacetada de todas elas, porque soma nela mes-ma, curiosidade, técnica, religiosidade, capacidadede observar, de analisar, de comparar e de registraro observado. Tudo isso envolvido num ardente de-sejo de confrontar prazerosamente o estranho. Porisso é que o século XVI precisou tanto dela, e tantoutilizou essa palavra.

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É que nunca houve viagens tão complexas, auda-ciosas, multifacetadas e agradáveis aos olhos comoaquelas daqueles tempos, como bem mostrou FernãoMendes Pinto, um dos mais deslumbrados peregri-nos de todos os tempos e responsável por uma dasmais deslumbrantes de todas as peregrinações já es-critas.

Não será seguramente mera coincidência o fatode ele ter chamado de Peregrinação ao mais comple-xo relato de viagem de todos os tempos da literatu-ra portuguesa (e um dos mais complexos de todasas literaturas). E nem apenas porque peregrinaçãoera o nome mais popular para designar uma longaviagem no século XVI. Muitas dessas longas viagensforam assim denominadas, mas com certeza nemtodas o mereceram, seja pela linearidade da viagem,seja pelo pouco interesse do viajante acerca da es-tranheza da terra, para repetir mais uma vez a belaformulação do castelhano do século XV.

Naturalmente, a Peregrinação de Fernão MendesPinto deve o seu nome ao seu tempo, mas deve-omuito mais à complexidade da narrativa que intitula,a qual organiza numa estrutura altamente sofistica-da o mais variado e intrigante conjunto de interes-ses jamais reunidos num só viajante, sofregamenteviajando no limite da vida com a morte por para-gens ainda mais intrigantes e variadas, em busca desuas estranhezas.

É que Mendes Pinto faz parte de um grupo sin-gular de homens, que se distingue do restante daHumanidade por (a palavra é apropriada) transitarem faixa própria de interesses. Como no caso domarinheiro Ismael, a personagem de Melville (1983,

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p.28), que testemunha e depois narra a viagem ob-cecada do Capitão Ahab em busca da baleia branca,Mendes Pinto bem poderia ter dito de si mesmo que“para outros homens talvez essas coisas não sejamatrações; mas, quanto a mim, atormenta-me pereneanseio das coisas distantes”. Estaria dizendo a ver-dade mais verdadeira. Porque, ao encontrar-se comelas, com essas coisas distantes porque tanto anseia,ele se espanta, se admira e se esforça por apreendê-las em seu conjunto – sem necessariamente buscarcompreendê-las. Pois tudo atrai seu olhar. Tudo ochama, seja bicho, coisa ou homem.

Só para efeito de ilustração, vejamos, nem tãorapidamente, dois exemplos:

Em todo este rio, que não era muyto largo, auiamuyta quantidade de lagartos, aos quais com maisproprio nome puderia chamar serpentes, por seremalguns do tamanho de huma boa almadia, cõchadospor cima do lombo, com as bocas de mais de douspalmos, & tão soltos & atreuidos no cometer, se-gundo aquy nos afirmaraõ os naturaes da terra, quemuytas vezes arremetiaõ a huma almadia quando nãoleuaua mais que tres quatro negros, & açoçobravaõco rabo, & hum & hum os comiaõ a todos, & sem osespedaçarem os enguliaõ inteyros. Vimos aquytambem huma muyto nova maneyra, & estranhafeyção de bichos, a que os naturaes da terra chamaõCaquesseitão, do tamanho de huma grande pata,muyto pretos, conchados pelas costas, com humaordem de espinhos pelo fio do lombo do compri-mento de huma penna de escrever, & com azas dafeição das do morcego, co pescoço de cobra, & huma

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unha a modo de esporaõ de gallo na testa, co rabomuyto comprido pintado de verde & preto, comosão os lagartos desta terra. Esses bichos de voo, amodo de salto, cação os bugios, & bichos por cimadas aruores, dos quais se mantem. Vimos tambémaquy grande soma de cobras de capello, da grossurada coxa de hum homem, & tão peçonhentas em tan-to estremo, que dizião os negros que se chegauãocom a baba da boca a qualquer cousa viua, logo emprouiso cahia morta em terra, sem auercontrapeçonha, nem remedio algum que lhe apro-veitasse. Vimos mais outras cobras que não são decapello, nem tão peçonhentas como estas, mas muytomais compridas & grossas, & com as cabeças do ta-manho de huma vitella, estas nos dizião elles, quecaçavão tãbem de rapina no chão, por esta maneyrasobense encima das aruores siluestres, de que toda aterra he assaz pouoada, & com orelha por escutapregada no chaõ, sentem com a calada da noite todaa cousa que bolle, & em prepassando o boy, o por-co, o veado, ou qualquer outro animal, o ferraõ coma boca, & como ja tem feito presa co rabo lá encimano ramo, em nenhua cousa pregaõ que a não tragão asi, de maneyra que cousa viua lhe não escapa. Vimosaquy tambem muyto grande quantidade de monospardos & pretos, do tamanho de grãdes rafeiros, dosquais os negros tem muyto mayor medo que de to-dos estoutros animaes, porque cometem com tantoatreuimento, que ninguem lhe pode resistir. (Pinto,1983, p. 44/5)

Trata-se de uma de suas primeiras viagens apóster chegado a Malaca, quando, como ele diz, “so color

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de Embaixador” (Pinto, 1983, p.44), viaja ao reinodos Batas a pedido de Pero de Faria, Capitão daFortaleza daquela cidade e seu grande protetor.

Um aspecto importante a ser destacado é que essavisão obtida pelo narrador travestido de Embaixa-dor se dá a partir da embarcação em que navega. Éem movimento que a visão se constrói em todos osseus detalhes, apesar das dificuldades que isso im-plica.

Tal aspecto, em outros casos, justificaria uma vi-são incompleta ou parcial das coisas, dado que elasnão se entremostram em todos os seus ângulos. Masisso se daria só em outros casos, e não com quemgosta de ver. Para esse, esteja onde e como estiver,toda e qualquer atividade se reduz a observar o es-petáculo do mundo em sua diversidade. Tanto maisdifícil a situação, tanto mais empenho no flagrar asnuanças do real e tanto mais prazer com o resulta-do. O que poderia ser um grande empecilho paraum homem comum, é só mais uma perspectiva parao que gosta de ver.

E o que é que se vê? Vê-se uma diversidade tãoradical que é necessário fazer verdadeiro malabaris-mo para torná-la verossímil para o leitor e, em graumenor, para ele próprio, pois essa diversidade domundo é tão excessiva que quanto mais se olha maisinapreensível ela se torna.

O texto é sempre aberto por um vimos, que sedesdobra em vimos também e vimos mais à medidaque o elenco de animais esquisitos vai sendo apre-sentado. Essa reiteração garante a presença donarrador ante o observado e, portanto, distingue oato de ver do mero depoimento da testemunha. Esta

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sabe, mas o narrador viu. É, de uma parte, o que asequência de vimos pretende marcar. De outra, aodecompor o real, ela faz com que o leitor veja porpartes aquilo que foi originariamente visto numtodo.

A sequência de vimos, entretanto, se organizaatravés do que se poderia chamar de uma curva devoluptuosidade ante o visto, cuja modulação é pro-porcional à esquisitice do animal observado. Come-ça a subir na descrição do lagarto, que merece ob-servações quanto ao conchado das costas. No quese refere ao rabo pintado de preto e verde, a infor-mação só virá a posteriori, por ocasião da descriçãodo caquesseitão, esse pássaro (?) que é uma espéciede síntese das extravagâncias zoológicas, superan-do talvez muitas das fantasias do europeu medie-val, que temeu bichos de toda ordem, mas raramen-te um que fosse, por assim dizer, tão compósito.

No caso do lagarto gigante, que não é mais umagrande novidade para o imaginário europeu, a des-crição é sumária. Mas o narrador não perde a opor-tunidade para enfatizar seu tamanho, o tamanho desua boca, de maneira que se amplie a extremos suagrandeza e ferocidade, as quais ganham estatuto deveracidade com o testemunho do nativo, e põe aque-le que gosta de ver ante riscos incalculáveis, pois,como sabe o leitor, é sempre incerta sua sorte.

A comparação com uma grande serpente, assimcomo a visão daqueles outros dois tipos de cobras, poroutro lado, ativa não só a capacidade visual do leitor,mas faz com que este revolva medos ancestrais, numprocesso de reatualização de imagens que o leva devolta às primeiras origens (bíblicas) do homem.

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Ante tanta grandeza e tanta ferocidade, o narradorse assombra, não necessariamente por estabelecer umacorrespondência entre seus medos e o real ora ob-servado, mas por este exceder em tamanho e estra-nheza qualquer configuração que antes lhe tenhasido atribuída. É certo que já se podia ter ideia doque seria o lagarto, mas não do seu porte, que só aespantosa visão face a face pode fornecer. E o en-canto desse espanto cobre o custo de qualquer ris-co, coisa a que nunca está disposto o leitor.

A ênfase sobre o conjunto de pormenores acercada capacidade destrutiva do bicho reafirma, pois, opreço que há que se pagar pelo prazer desse encon-tro e marca, por isso, a distância entre o ver e o ler.

Processo diferente acontecerá por ocasião dadescrição do pássaro estranho, ápice da curva devoluptuosidade ante esse real excessivo. Não é maisa ferocidade nem a grandeza do animal que fará oprazeroso espanto do narrador. De fato, de todosos animais descritos nesse bloco, o caquesseitão é oúnico que não ameaça o homem; que – pode-se con-cluir – não põe em risco a vida de quem gosta de ver.E é também o único a dispensar o testemunho donatural da terra, embora desempenhe papel impor-tante ao revelar o nome do bicho, o único a ter umnome específico dentre os animais vistos, aspecto,aliás, importante, como se verá mais à frente.

A atribuição do nome põe, todavia, um grandeparadoxo: embora seja o único animal a ter um nomeespecífico, é também o único a não ter especificidade.É que sua estranheza é tão radical que ele só podeser apreendido enquanto composição. Tem-se onome, mas não se tem a coisa, uma vez que esta não

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pode ser apreendida em sua estranheza. É preciso,pois, construí-la, o que demanda um processo mi-nucioso de descrição. Não custa retomá-lo: o bichoé do tamanho de uma “grande pata”, muito preto,“conchado pelas costas, com huma ordem de espi-nho pelo fio do lombo”; possui asas “da feição dasdo morcego” e “pescoço de cobra”; exibe uma unhana testa como se fosse o esporão de um galo e temum rabo “muyto comprido pintado de verde & pre-to”. Se bem que possua nome, o bicho não se deixaver; ou melhor, só se deixa ver através de. O resulta-do final é, mais que um bicho, um bicho-monta-gem.

Tanto pormenor só pode ser resultado de um lon-go, curioso e devotado olhar que minuciosamenteesquadrinha o objeto novo em busca de sua especifi-cidade e se compraz ante a descoberta de que o queo caracteriza é a ausência mesma dessa especificidade.

Não é mais o tamanho nem a ferocidade, aquelesatributos do lagarto que tanto o impressionaram,que fazem o espanto do narrador. Ele agora se ma-ravilha ante a possibilidade de o real – segundo avontade de Deus, é óbvio – poder juntar magica-mente num todo o que antes só se poderia ver emseparado. O real – é o que parece dizer seu afã des-critivo – não é só espantoso na sua capacidade deproduzir o diverso em quantidades infinitas, mas oé também na sua capacidade de fazê-lo qualitativa-mente, como se houvesse uma engenharia genéticainerente ao seu processar-se.

Não se poderia explicar de outro modo a coinci-dência de o caquesseitão, exatamente o bicho maisestranho dentre aqueles observados, ser tão deta-

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lhadamente descrito. É que não há nem mesmo co-incidência. A esse narrador interessa o estranho emtoda a sua radicalidade; e quanto mais radical tantomais fascinante, ainda que só seja possível acedê-lopor aproximação.

O outro exemplo que vou apresentar, dentremuitos possíveis, é o encontro de Mendes Pinto comos Gigauhos, os selvagens e gigantescos homens co-nhecidos do pirata Similau, a quem Antônio de Fa-ria “rogou que trabalhasse todo o possível por lhemostrar algum deles, porque lhe afirmava que o pre-zaria mais que se lhe desse todo o tisouro da China”(Pinto, 1983, p.207).

Como se pode notar, não é só Mendes Pinto otocado pela febre de ver. Também em Antônio deFaria, o ato se põe como um imperativo, que fazadiar outros, até mesmo o de pôr as mãos em ouro,que esse é o objetivo da viagem: saquear um cemité-rio de monges. Redirecione-se a rota e mude-se oobjetivo imediato da viagem, eis o que quer, eis oque ordena o desejo de ver. Que se localize, pois,esse tesouro para os olhos:

E indo nòs assi a vella & a remo ao lõgo da terra,vendo a espessura das aruores, a rudeza das serrani-as, & do mato, & a multidão de monas, bogios, adibes,lobos, veados, porcos, & de outra muyta quantidadede animaes siluestres, que correndo & saltãdo teciãohuns pelos outros & cõ hua grasnada tamanha queem muytas artes nos não ouuiamos com eles, comque tivemos um bom pedaço de passatempo, vimosvir por detras de huma ponta que a terra fazia, ummoço sem barba com seis ou sete vacas diante de sy,como que as pastaua, & acenandolhe o Similau cõ

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huma toalha, o moço parou até que chegamos bem àborda da agoa onde elle estaua, & mostrandolhe huapeça de tafetà verde, a que disse que eraõ muytoinclinados, lhe preguntou por acenos se a queriacomprar, a que elle chegandose bem a nós respondeocom huma falla muyto desentoada, quiteu paraõ faufau, porem não se soube o que queria dizer, porquenenhum de quantos hião nas embarcações sabia falarnem entender aquella lingoagem. E somente por ace-nos trataua o Similau a mercancia do que lhe mostraua.E mandandolhe Antonio de Faria dar obra de tresou quatro couados de tafetà da peça que lhe tinhaõmostrado, & seis porcellanas, ele tomou tudo commuyto alvoroço, & disse, pur pacam pochy pilacahunangue doreu, as quais palauras tambem se nãoentenderaõ, o moço se mostrou muyto contente coque lhe tinhaõ dado, & acenou com a mão para don-de tinha vindo, & deixando ahy as vaccas se foy cor-rendo para dentro do mato. Vinha este moço vesti-do de umas pelles de tigre com a felpa para fora, cosbraços nùs, descalço, & sem cousa nenhuma na ca-beça, & com hum pao tosco na mão. Era bem pro-porcionado nos membros, tinha o cabello muytocrespo, & ruyuo que lhe daua quasi pelos hombros,& seria de comprimento, segundo o que alguns dis-seram, de mais de dez palmos. Depois de passadopouco mais de hum quarto de hora, tornou a vir comhum veado viuo ás costas, & em sua companhia tre-ze pessoas, oito homens & cinco molheres, com tresvacas atadas por cordas, & bailando todos ao som dehum atabaque em que de quando em quando dauãocinco pancadas, & dando outras tantas palmadas comas mãos, dezião alto & muyto desentoado, cur curhinau falem. (...) Todas estas pessoas assi machoscomo femeas vinhaõ vestidas de huma mesma

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maneyra, sem auer differença no trajo, somente asmolheres traziaõ nos buchos dos braços humas gros-sas manilhas de estanho, & tinhaõ os cabelos muytomais comprido que os homes, & cheyos de humasflores como de espadana, a que nesta terra chamamlirios, & ao pescoço trazião huma grande trãbolhadade conchas vermelhas do tamanho de cascas de os-tras. E os homes trazião hun s paos grossos forradosatè o meio das mesmas pelles de que vinhaõ vesti-dos, eraõ todos de gestos grosseyros, & robustos,tinhaõ os beiços grossos, os narizes baixos e apar-rados, as ventãs grandes, & são algum tanto disfor-mes na grandeza do corpo, mas não tãto como cà secuyda deles, porque Antonio de Faria os mãdoumedir, & nemhum achou que passasse de dez pal-mos & meyo, senão sò hum velho que era de onzeescassos, & as molheres são de menos dez algumacousa; mas todauia entendo que he gente muytorustica & agreste & a mais fora de toda a razão quequantas ategora se tem descuberto, nem nas nossasconquistas, nem em outras nenhumas. Antonio deFaria lhes mãdou dar tres corjas de porcellanas, &huma peça de tafetà verde, & hum cesto de pimenta,& elles se arremessaraõ todos no chão, & cõ as mãosambas leuantadas, & os punhos cerrados disseraõ,vumguahileu oponguapau lapaõ lapaõ lapaõ, das quaispalauras se insirio que devião de ser de agradecimen-to, segundo os meneyos cõ que as disseraõ, porquetres vezes se arremessaraõ no chão. E dãdonos ellesas tres vacas & o veado, & huma grãde soma decelcas, tornaraõ a dizer todos juntos cõ voz alta &desentoada outras muytas palauras a seu modo, queme não lembraõ, mas que tambem se não entederaõ;& despois de estarmos fallãdo por acenos cõ ellesmais de tres horas, pasmados nòs de os vermos a

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elles, & elles de nos verem a nós, se tornaraõ a me-ter no mato dõde tinhaõ vindo, huiuando ao som dascinco pancadas do atabaque, & saltando de quãdoem quãdo como que hião cõtentes co que leuauaõ.(Pinto, 1983, p.207/8).

A certeza do narrador de ser esta gente “a maisfora de toda a razão que quantas ategora se temdescuberto” poderia bem conduzir para a ideia da-queles seres híbridos de homens e bichos tão co-nhecidos do imaginário europeu e tão ardentemen-te desejados pelos viajantes que deles não se tinhamainda libertado completamente.

Contudo, no caso de Mendes Pinto, o que o dei-xa pasmado é sua radical, estranha e verossímil hu-manidade, a qual, em nenhum momento, é posta emdúvida, por mínima que seja. É de homem humanoque se trata, e não de abusão, hibridismo ou encan-tamento, se bem, remotamente, gigauho possa lem-brar gigante.

Tais como os homens gigantescos encontradospor Fernão de Magalhães na Patagônia, os “selva-gens” vistos por Mendes Pinto também são especi-ais por sua altura. Mas não têm enfatizada sua con-dição de gigantes, espécie de super-homens, comoacontece na narrativa de Pigafetta (1990, p.33), o“gentil-homem vicentino” que acompanhou fiel-mente Magalhães em sua malfadada viagem e sobre-viveu para contar a história.

Após afirmar que o primeiro desses homens eratão alto que os espanhóis mal chegavam à sua cintu-ra, Pigafetta (1990, p.35) retoma o tema um poucoadiante para garantir que, dias depois de ter visto o

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primeiro gigante, descobriu um outro ainda maisalto. Tão alto que, ao dançar e saltar, o fazia “comtanta força que os pés se enterravam muitas polega-das na areia”.

Bem ao contrário de Pigafetta, Mendes Pinto fazquestão de se antecipar a futuros e presumíveis mal-entendidos. Assim é que depois de ter afirmado, apartir de depoimentos, que esse homem tinha maisde dez palmos de altura, volta ao assunto para dizerque, depois de vistos e medidos, nenhum deles ul-trapassa aquela medida, com exceção de um velho,que, mesmo assim, não vai além dos onze palmos. Amedida, portanto, os põe no terreno do propria-mente humano, terreno que, como se vê, não sofrequalquer ameaça de extrapolação.

Mas, se não extrapolam, eles representam um es-tágio anterior da humanidade, quando o humanoapenas levemente se distinguia do animalesco. Defato, embora saiba tratar-se de gente todo o tempo,o narrador por vezes parece anular tal distinção. Eisso se manifesta principalmente na relação com alinguagem, aspecto que chama sua atenção de modomuito mais intenso que a altura.

Usualmente sem problemas com as linguagensdos homens que encontra – e que não são poucas –, como se fosse o mais hábil de todos os poliglotas,o narrador se vê nesse caso diante de uma barreirapraticamente intransponível, como se estivesse di-ante de uma linguagem absolutamente nova. Oumelhor, para dizer de modo mais preciso, como seestivesse diante de uma pré-linguagem, que é issoque ele supõe ser.

Com efeito, segundo o narrador, a linguagemdesses homens sofre de uma limitação inerente a ela

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própria: é “desentoada”, aspecto que ele faz ques-tão de marcar pelo menos por três vezes, como sepode acompanhar ao longo da citação. E para umouvido privilegiado, como é o desse narrador, quecapta cadeias sonoras das línguas mais diversas comose fosse da sua própria, “desentoado” é palavra designificado importante, pois marca a distância entreaqueles falantes (?) e os outros de línguas entoadas,vale dizer, a distância entre homens completos ehomens por se completar.

Mas o julgamento linguístico levado a cabo pelonarrador não para aí. O desentoado assume outra di-mensão. Quando esses homens estranhos retornamaos matos de onde surgiram, já não falam, nem mes-mo desentoadamente, mas vão “huivando” ao ritmode “cinco pancadas do atabaque”, aos saltos, de ma-neira desengonçada.

A já tênue fronteira que separava aquele homensdo animalesco – a linguagem desentoada, mas en-fim linguagem – é rompida e sua feição de animalprevalece. Animal pré-linguístico, bem entendido,pois que, como se disse, em nenhum momento onarrador lhes retira a condição de humanidade. Oque os separa não é a ausência de humanidade emum e sua presença em outro, mas a distância na mes-ma escala de humanidade, no meio da qual se en-contra, a dividi-los, a linguagem entoada.

É, portanto, como seres humanos que esses ho-mens são vistos. Se não há hibridismo, encantamentoou abusão, o deslumbramento do narrador não émenor por causa da verossimilhança que os caracte-riza. Pode-se mesmo dizer que ele é maior exata-mente por causa disso, porque é como gente – e sócomo gente – que eles o interessam. Afinal, não cabe

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a todo mundo o privilégio de encontrar o (mais an-tigo de todos) espelho vivo de si mesmo e, ao olhar-se nele, reconhecer-se ao mesmo tempo próximo edistante daquilo que vê.

Não é por outra razão que a sensação de pasmo érecíproca. Ao se verem, esses homens completos eincompletos vêem outros e vêem-se a si mesmoscomo são, como foram e como serão. É como se oelo perdido tivesse de repente sido encontrado e umatotalidade voltasse a ser recomposta. Não poderiahaver melhor situação para se demonstrar a alteri-dade em funcionamento. O pasmo ocupa o lugardas faculdades interpretativas e, por um momento,põe-se ele mesmo como o sentido da descobertarecíproca.

É na busca do prazer dessa experiência única quedeve ser entendida a disposição de Antônio de Fa-ria e de seus comparsas de pirataria para encontraresses homens estranhos, tão estranhos que a elesnada nem ninguém pode ser comparado, pois comodiz o narrador, é a “gente mais fora de toda a razãoque quantas ategora se tem descuberto, nem nasnossas conquistas, nem em outras nenhumas”.

Portanto, a troca do ouro por tal visão vale bema pena, pois se está diante dum momento da huma-nidade que já se supunha perdido em definitivo, noqual a linguagem não havia ainda perdido a inocên-cia, o que acontecerá com os – mantenha-se a no-menclatura de Mendes Pinto – “tons” que ganharámais tarde.

É, pois, no mundo real – e na sua diversidade –que se encontra o fascínio que tanto seduz onarrador. E não fora dele. Aliás, são tantas as atra-ções que umas se superpõem às outras, fazendo com

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REFERÊNCIAS

GODINHO, Vitorino Magalhães. Mito e merca­doria, utopia eprática de navegar – séculos XIII/XVIII. Lisboa: Difel, 1990.

MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da LínguaPortuguesa. Lisboa: Livros Hori­zonte, 1990.

MELVILLE, Herman. Moby Dick. São Paulo: Abril Cultural,1983.

MORAIS SILVA, António de. Novo Dicionário compacto dalíngua portuguesa. Lisboa: Con­fluência, 1961.

PIGAFETTA, Antonio. “Navegação e descobrimento da ÍndiaSuperior feito por mim, gentil-homem vicentino e cavaleiro deRodes”. In: Neves Águas (org.). Fernão de Magalhães – a primeiraviagem à volta do mundo contada pelos que nelas participaram.Lisboa, Europa-América, 1990.

PINTO, Fernão Mendes. Peregrinação. Lisboa: ImprensaNacional-Casa da Moeda, 1983.

que o homem que gosta de ver não tenha sequertempo de pensar em encantamentos ou quejandos,pois que está sempre ocupado em deleitar-se com asinfinitas possibilidades do mundo real.

Dizia Proust, aquele viajante de viagens interio-res, que “a verdadeira viagem de descoberta não con-siste em procurar novas paisagens, mas em ter no-vos olhos”.

Assim era Mendes Pinto, o peregrino ávido deterras estranhas: só de novos olhares feito.

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Para quem tem Dante, Shakespeare, Cervantes eGoethe em sua literatura, não será necessário ir lon-ge para visualizar essa angústia da influência, comobem a designou Harold Bloom. Guardadas bem asproporções políticas e econômicas quanto ao papelda língua portuguesa no mundo, o mesmo pode-sedizer de Camões, Fernando Pessoa, Machado deAssis e Guimarães Rosa.

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A PERMANÊNCIA RASURADA:A POESIA DIALÓGICA DE CASTRO MENDES

Infeliz da literatura que precisa de gênios. Comobem se sabe, esses seres especiais, meio homens/meiodeuses, dão de raro em raro o ar de sua graça entreos humanos comuns, para deles nos ocuparmos vidaafora, pois deixam tarefa hercúlea a seus pósteros,qual seja, a de tentar trilhar as fronteiras por elesabertas, buscando juntar o que deixaram comofulgurações, como fragmentos dispersos de flashesa encandear olhos ávidos por mundos concertados.Trata-se, diga-se de passagem, de atividade um tan-to inútil, porquanto jamais seremos iguais a eles, porfaltar em nós aquilo que neles sobra, aquilo que asforças da natureza, sejam elas quais forem, distribu-em com mesquinha parcimônia ao resto da humani-dade. Passado o cometa com seu facho de luzincandescente, muito tempo depois continuamosprocurando, sôfrega e desesperadamente, resquíci-os de sua passagem, refazendo os seus feitos, apa-

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vorados ante a ideia de não sermos deles merecedo-res, acaso tentássemos outros caminhos, acaso ten-tássemos exercitar a nossa diferença.

Para quem tem Dante, Shakespeare, Cervantes eGoethe em sua literatura, não será necessário ir lon-ge para visualizar essa angústia da influência, comobem a designou Harold Bloom. Guardadas bem asproporções políticas e econômicas quanto ao papelda língua portuguesa no mundo, o mesmo pode-sedizer de Camões, Fernando Pessoa, Machado deAssis e Guimarães Rosa. Com efeito, déssemo-nosao trabalho de rastrear discípulos e epígonos dessesartistas, de modo a, no caso do Brasil, por exemplo,completar o pioneiro trabalho de Gilberto Mendon-ça Teles, que seguiu as pegadas da presença deCamões na poesia brasileira, certamente compreen-deríamos a fundo a, nesse sentido, feliz expressãodo crítico norte-americano.

E em Portugal sequer seria necessário empreen-der-se tal esforço, que a tradição fala por si mesma.Ecos há desses gênios em quase tudo que se fez de-pois deles, tanto para reverenciá-los quanto paradeles se desvencilhar – o que não deixa de ser apenasoutra maneira de afirmar sua pesada e nesse casopenosa presença.

O resultado dessa permanência sufocadora dogênio, as mais das vezes, é uma literatura manieta-da, aprisionada em tautologia e esterilidade, poisvoltada para (e devotada ao) culto religioso dosgrandes. Intocáveis, inalcançáveis e inabaláveis emseus panteões, estão sempre a ditar regras e mode-los a serem seguidos, como se de fato não houvessemais nada de novo a ser inventado sobre o sol.

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Mas felizmente há, que, apesar deles, diria Reis,“tudo passa quanto passa”. Veja-se o caso da poesiaportuguesa contemporânea. E nela, para evitarmospanoramas abrangentes e pouco produtivos, veja-se o caso da poesia de Luís Filipe Castro Mendes.Trata-se, a meu ver, de bom ponto de partida parademonstrar-se a tese de que a literatura portuguesacontemporânea, finalmente, vive a felicidade de pres-cindir de seus gênios, pelo menos como apresenta-dos acima.

Tendo estreado em 1985, o que o situa entre osnovos ou novíssimos da poesia contemporânea,Castro Mendes é bom exemplo de libertação dasagração da permanência. Nele, a homenagem e areverência parecem ter cedido lugar ao prazer de umafeliz e resolvida convivência, construída sobre umasaudável rasura, muito mais que mera reescritura, aqual afirma, de um lado, o tempo de cada poesia e,de outro, a poesia de cada tempo. Firmada a distin-ção, ambas podem ser compreendidas como partesde um contínuo, partes de um grande todo. Emoutros termos, sua poesia parece dizer: feliz da lite-ratura que possui gênios, mas, malgrado e bem-gra-do isso, a vida e a poesia continuam! É possível edesejável fazê-la andar por ela própria, consoante oestágio diferente da aventura humana. A influênciaobrigatória transforma-se, então, numa herança viva,mais que mero depósito de fórmulas feitas,

Nesse sentido, quanto a mim, a poesia de CastroMendes traz a marca mais significativa da literaturaportuguesa contemporânea: a estabilidade de suaprodução. De fato, assim na prosa como na poesia,a literatura contemporânea feita em Portugal é ca-

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racterizada por uma saudável regularidade – inde-pendentemente, é preciso ressaltar, dos nobéis comos quais este ou aquele autor tenha sido agraciado,pois tanto aquele quanto este outro bem poderiater sido o escolhido, que suas obras equivalem emqualidade.

Ao invés da obsessão de fazer surgir outro supraCamões, a literatura portuguesa parece bem maisinteressada em manter a continuidade de uma pro-dução artística qualitativa e quantitativamente es-tável, para a qual o passado pode até ser ponto departida, mas não de chegada. Ao invés de raros co-metas, cujo incêndio repentino deixa um mundo detrevas atrás de si, uma perene rede de pontos de luz,capaz de clarear o mundo o suficiente, de modo aimpedir alguns saltos no escuro.

É, creio, nessa dimensão que deve ser vista a po-esia de Castro Mendes. Ela é resultado evidentemen-te de um esforço pessoal do poeta, mas também, esobretudo, de um esforço coletivo por que passoua cultura portuguesa nas últimas décadas do séculopassado, visando a sua reinserção nas práticas cul-turais do mundo contemporâneo, após o fim dolongo período de fechamento para o mundo a quefoi forçada pelo regime de Salazar.

E essa é, ao meu ver, a marca primeira da poesiade Castro Mendes: a contemporaneidade – no sen-tido mais estreito que essa complexa palavra podeoferecer. Mas, ressalte-se de imediato, não se tomea ideia de reinserção nas práticas da cultura contem-porânea como algo equivalente a grandes arroubosexperimentais ou a pastiches e paródias insossas comousualmente se tem visto a título de arte contempo-

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rânea. Aliás, o feixe de inclusão de práticas artísticassob esse nome chegou a tal limite, ou melhor, a talausência de limite, que talvez já não funcione se-quer como conceito.

Nesses tempos ditos pós-modernos, em que semarcha para “relativismos absolutos”, Castro Men-des, através de elaboradas realizações formais, fazuma bem-vinda profissão de fé na força da poesiaenquanto discurso de interrogação aos mistérios domundo e do homem contemporâneo. Aquele papel,aliás, a que se impôs a poesia desde sempre: o dedesdobrar o real com vistas a iluminar pedaços, ain-da que minúsculos, de seus mundos de sombra. Tra-ta-se, portanto, de um lírico em estado puro, a per-guntar-se as perguntas de sempre - sempre tão anti-gas e, por isso mesmo, sempre tão novas, ou me-lhor, para manter a palavra, tão contemporâneas,uma vez que aí estão elas, em torno de nós a nosimpulsionar, ora como dor, ora como alegria de sere de não-ser.

E interrogação, aliás, é muito boa palavra, por-quanto se trata de uma poesia de organização bas-tante complexa, que pode ser lida em níveis diver-sos. Sem nunca abandonar o lirismo, que será per-cebido logo na primeira leitura, mesmo que aligeira-da, ela traz embutida uma sofisticada reflexão filo-sófica, só acessível em paciente e perseverante se-gundas e terceiras leituras.

Para o leitor apressado, portanto, as páginas dePoesia reunida apresentam um lírico a discorrer so-bre o amor, o tempo, a morte, a história, num vari-ado arsenal de imagens e formas poéticas de maisou menos fácil acesso; para o mais paciente, um líri-

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co para quem a poesia é antes de tudo lugar própriopara indagar-se o mundo e o estar nele – indagaçãoque confinará com o filosófico sem a este render-senem com ele confundir-se, pois é mesmo nesse lia-me que a lírica justifica sua condição e sua existênciacomo discurso.

É com poesia lírica, portanto, e de alta ressonân-cia, acrescente-se, que Castro Mendes discorre so-bre os temas citados. E assim é também quando per-gunta (e se pergunta) sobre as fantasias, utopias eironias da História, especialmente aquelas que pro-metiam reinstaurar paraísos terreais apenas para des-cobrir que eles estavam irremediavelmente perdidos.

Lírica, sim, e por isso contida na medida do ver-so, mesmo quando este for livre – de presença, aliás,não muito significativa no conjunto. Mas tambémpresente, pois a variedade formal na poesia de Cas-tro Mendes não quer dizer outra coisa senão o fatode que sem a forma adequada, o fluxo lírico não passade “matéria simples”, que se inicia e se finda em simesmo como experiência vivida, mas não transfi-gurada – ou fingida, se se preferir. Daí poder-se en-contrar em sua obra poesia vazada em sextinas,epigramas, madrigais, cantigas, envois, romances,dentre outras fôrmas poéticas, como gosta dechamá-las Massaud Moisés. E dentre elas – não po-deria ser diferente em poeta contemporâneo de fei-ção clássica – destaca-se o soneto, cuja quantidade,bem maior que as outras, poderia dizer-se a fôrmapredileta do poeta, provavelmente em virtude dacontida invenção nela perseguida, pois nunca há jor-ros nessa poesia, mesmo quando se trata do versolivre.

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Importante ressaltar, porém: tais formas poéti-cas, por antigas e especiosas que sejam, ganham emCastro Mendes um toque de contemporaneidade,porquanto não parece haver qualquer espécie denostalgia em seu uso, senão uma bem planejadarasura da permanência, com a qual se atualizammodos de ler, todos, antigos ou novos, utilizadospelo que oferecem em rigor, isto é, pela capacidadede fazer o transporte da poesia, de fazê-la fluir ade-quadamente.

E tal ocorre por uma razão simples: em CastroMendes a poesia é mais importante que seu tema.Isso, pode-se dizer, o faz transitar na contramão deuma certa banalidade atual, que tem optado pelomero dizer, se bem não domine os procedimentospara fazê-lo, como se fosse possível ao artesão, qual-quer artesão, trabalhar sem o conhecimento com-pleto de suas ferramentas, conhecimento que as fa-zem, para além de objetos, extensões de seu pró-prio corpo.

Não que o tema, evidentemente, não seja impor-tante, mas é a poesia que o faz. Quanto a mim, diriaser este o aspecto a singularizar a poesia de CastroMendes: uma poesia feita de poesia. Daí o prazerosogozo da convivência com seus pares, de onde, quasesempre, surgem tema e poesia. Numa verdadeirahomenagem à literatura, para trazer à cena Fiama H.P. Brandão, um de seus muitos interlocutores, Cas-tro Mendes se delicia em dialogar com poetas detodos os tempos, lugares e linguagens, inventando-se ao tempo em que os reinventa. Dentre eles, pode-se inclusive contar a presença de Caetano Veloso,num arrojado reconhecimento de que a poesia ul-

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trapassou as fronteiras do papel impresso e ganhounovos meios de expressão, crença que coloca o poe-ta entre os partidários da pura poesia, em oposiçãoàqueles da poesia pura, para quem qualquer ultra-passe do limite da página faz adentrar-se o plano daheresia. É a poesia pura, mas, entenda-se bem, comopura poesia, que interessa a Castro Mendes. E é nodiálogo com seus pares que ela melhor se constrói.

Não que tal prevalência da poesia impliquealheamento do mundo. Há mesmo um conjunto depoemas em Poesia reunida dedicado à derrocada dasutopias marxistas, de modo particular ao aborto dachamada revolução dos cravos e, de maneira geral,ao fim vertiginoso dos socialismos ditos reais, desa-parecidos no final do século passado.

Em “Idos de Marx”, poema que faz ecoar no tí-tulo o trágico idos de março romano, a lembraremblematicamente o dia do assassinato de César esuas consequências para o império, e tal qual umAntero do século XXI, o poeta enxerta poesia namaior fantasia política do século passado – a reden-ção marxista –, aquela que nos levaria de volta aoparaíso terreal. Exorta seus agora desolados segui-dores a perseverarem, pois se trata somente de der-rota passageira: “Ah! Camaradas, assim nós estivés-semos / Prontos para uma nova insurreição!”

Para tanto, porém, será necessário voltar ao co-meço de tudo, desembaraçar fios e reverter proje-tos que começaram pelo avesso. Para falar comCaeiro, será necessária uma “aprendizagem dodesaprender”, que possibilite achar ao invés de per-der, posto que há uma lacuna primeira, enorme, naprática política dessa utopia, a entravar todo e qual-

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quer avanço em direção à vida nova: “Falta-nos sócompreender o mundo / Que perdemos de tantotransformar.”

Em outro poema do mesmo ciclo, contudo, opoeta já não parece tão desolado ante o fim do so-nho. É o que se lê ao fim de Fin de siécle: “Se nosmorreu às mãos toda utopia / É que sobra em pala-vras a poesia.”

Não é difícil entender a, ousaria dizer, feliz resig-nação do poeta, base mesmo de seu projeto poéti-co. Para isso é preciso voltar àqueles versos que tra-tam da incompreensão do mundo: “Falta-nos sócompreender o mundo / Que perdemos de tantotransformar.” Não é possível transformar sem com-preender. E uma das possibilidades de compreensãodo mundo é a poesia, com sua sobra de palavras. Elaé a fonte inesgotável de perguntas ao mundo, comvistas a sua decifração. Como transformar antes dedecifrar a floresta de símbolos, que nos enreda emvasta e espessa teia de mistérios? Só através da poe-sia, a perdição volver-se-á compreensão e, quemsabe, revolução; e, quem sabe, redenção. Mas, até lá,a poesia é a utopia possível, passível de realizar-seaqui e agora.

E ela será melhor realizada na companhia daque-les que nela acreditam, na companhia daqueles quehá tempos e tempos se empenham na decifração domundo, mediante a sobra de palavras, como umaprofissão de fé, como uma devoção, alheios aos ape-los imediatos e doentios do mundo: “oculta asceseé a poesia pura/que preserva da histeria a literatu-ra”, dirá Castro Mendes atualizando Paul Valery.

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Muitos são os modos pelos quais a poesia de Cas-tro Mendes dialoga com a poesia. Tempo e espaço,evidentemente, não me permitem exame pormeno-rizado, pelo quê me contento com rápida descriçãode alguns poucos procedimentos.

O primeiro e mais evidente deles é o tematizar-sea própria poesia, buscando, entre concepções opos-tas, seu lugar especifico no universo dos discursos.A busca oscila entre a impotência – “não pode opoema quase nada” – e a certeza na capacidade dapoesia de atravessar camadas do real, posto que setrata de um “frio intermitente (...), persistência atra-vés da corrupção”, como se lê no poema “Do medo”:

Não pode o poemaquase nada. A alguns inspirauma discreta repugnância.Outra vezes inclinamo-nos, reverentes,ante os epitáfiosou demoramo-nos a escutar as grandes chuvassobre a terra.Quem reconhece a poesia, esse friointermitente, essapersistência através da corrupção?

Ou como no poema “História pessoal”:

A poesiaRecupera restos, tonalidadesDesapercebidas,A intensidade de uma paixão vazia.

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Ou ainda, como se diz no poema 5 de Viagemde Inverno:

O poema se diz de parte alguma,Insolência perfeita de uma falaQue não se conhece de ciência sumaMais que traças ou manhas para achá-la.

No que se refere ao diálogo propriamente dito,o procedimento mais utilizado é o uso exaustivo daepígrafe. Os livros que compõem o conjunto dePoesia reunida são obrigatoriamente abertos poruma delas, cuja função é a de antecipar o “tom” doconjunto de poemas a ser lido. Viagem de inverno,por exemplo, publicado em 1993, é um livro com-posto de seis partes e mais uma finda. É aberto poruma epígrafe, de caráter geral, sacada de Jorge LuísBorges: “consideré que estábamos, como siempre,en el fin de los tiempos.” Na página seguinte apare-ce a epígrafe relativa à parte primeira do livro. Asensação inicial é a de que se está diante de uma pe-quena antologia de pequenos fragmentos de poe-mas, ao invés de um livro autoral, Chega-se à se-gunda parte do livro através de mais uma epígrafe.E assim ocorrerá em todas as outras, incluída a fin-da, que se inicia com uma citação de Fernando Pes-soa. Não satisfeito, o poeta finda efetivamente seulivro com uma citação de Rimbaud, que se articulacom a primeira, a de Borges, e fecha, por assim dizerum círculo, no qual o sereno fim de mundo borgianoé contaminado pelo de Rimbaud com suas imagenssufocantes:

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Les sentiers sont âpres. Les monticulesse couvrent de genêt. L’air est immobile.Que los oiseux et les sources sont loin!Ce ne peut être que la fin du monde,en avançant.

Mas o processo não para. Pelo menos na ediçãobrasileira, a página seguinte à citação de Rimbaudtraz a epígrafe geral do próximo livro, O jogo de fa-zer versos, cujo título, como se vê, remete ao queacabo de demonstrar no parágrafo anterior.

Deixemos a poesia dos outros e vamos à de Cas-tro Mendes. Fiquemos apenas em Viagem de inver-no, que só aí já teremos material bastante. Corra-mos os títulos de alguns poemas: “Petrarca coroadono Capitólio”; “Carta do senhor Arthur Rimbaud,da Abissínia”; “Da pura poesia (a partir de PaulValery)”; “Camilo Pessanha regressa a Portugal”;“Ângelo de Lima”; “Fernando Pessoa”; “VitorinoNemésio”; “Os poetas Esquecidos”; “Os poetasMortos”; “Fala dos Poetas Mortos”; “O Adeus àpoesia (com um verso de Guido Cavalcanti)”;“Epígrafe com um verso de Jorge Luís Borges”... Ebasta. Mas poderíamos continuar por bom tempoainda, se espaço houvesse, uma vez que títulos as-sim é que não faltariam.

Vamos agora ao corpo dos poemas, de algunspoucos, evidentemente. Neles, o diálogo se proces-sa de duas maneiras mais claras. A primeira é a cita-ção direta, como no quarteto abaixo, cujo primeiroverso, à exceção do “é” inicial é de autoria de Jorgede Sena:

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É “Deus um só pudor da Natureza”cantado por tais vozes que, inspiradas, a ferocidade imitam da beleza em abismos de morte figurada.

O segundo procedimento é o da apropriação, emque se reinventa a fórmula consagrada, tomada aCamões que já tomara de Petrarca: “Transforma-sea memória em sensação/ e em pura dor se volve adespedida.”

Na convocação geral, como disse antes, compa-rece também Caetano Veloso, a fechar um poemacujo título diz quase tudo: “Dois modos de músi-ca”:

Não sei a tua prosaTudo em nós foi diverso.Mas isto eu já sabiaquando principiei:ouço na poesiao que nunca te dei.

E como se fora a estrofe última do poema – quenão o é por tipo, fonte e localização espacial distin-tos do corpo do poema, a citação de Veloso:

O quereres e o estares sempre afimdo que em mim é de mim tão desigualfaz-me querer-te bem, querer-te mal,bem a ti, mal ao quereres assiminfinitivamente pessoal.

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Por que e para que tanta epígrafe, tanto nome depoeta, tantos versos alheios tornados próprios?Poderia responder a tais questões com a ideia cor-rente de que, constatada a esterilidade dos temas, após-modernidade obrigou a literatura a voltar-sesobre si mesma. Não creio, contudo, que seja sim-ples assim. No caso de Castro Mendes, proponhoque se trata de uma radical utopia: a de que todos ospoetas, de todos os tempos e lugares, respeitadoslugares e tempos, compõem como que um livro úni-co, sendo suas obras particulares algo como capítu-los desta grande obra, o que os irmana a todos namesma devoção.

Dialogismo, pois, é a palavra-chave na poesia deCastro Mendes. Mas, como se viu, tais diálogos,outrora ditos, com a pompa apropriada aos estu-dos literários, intertextuais, não estão ali para reve-renciar grandes nomes ou os gênios do passado, nemtampouco para dessacralizá-los, senão para rir comeles, chorar com eles e com eles se resignar acerca dequão útil e quão inútil é perseverar nessa estranhatarefa de “recuperar restos, tonalidades desaperce-bidas, intensidades de uma paixão vazia”; senão paracelebrar a alegria de fazer parte de uma confrariaespecial: aquela que teima em buscar resposta ao quelhe não foi perguntado, mas que de modo obsedanteteima em não calar. E é bem que Castro Mendes as-sim o faça, pois, com sua poesia, tem assegurado,com justiça, o seu lugar nessa esquisita irmandade.

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REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cia dasLetras, 2004.

CASTRO MENDES, Luis Filipe. Poesia reunida. Rio deJaneiro: Topbooks, 2001.

MOISÉS, Massaud. A criação literária – poesia. São Paulo:Cultrix, 2001.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguillar,1972.

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A falta de correspondência, pois, entre o que vaino interior do poeta e o que vê é o que faz moversua poesia. Não, evidentemente, em direção ao com-passo de um com o outro, senão como recusa dessabusca, dadas as dimensões de tão gigantesco empre-endimento.

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A CANÇÃOEM CAMILO PESSANHA

Esclareça-se de pronto que não há radical dife-rença entre a canção e as outras formas praticadaspor Pessanha. Trata-se de uma ampliação de grau, seassim se pode dizer, mais que diferença de estatuto.Na canção – que, aliás, é de número reduzidíssimoem sua já pequena obra – como no soneto ou aindano poema de forma liberada estão lá os temas, se éque assim se pode chamá-los, principais de sua poe-sia, caracterizados nas imagens dispersas que fluemincessantemente, recusando-se a toda e qualquerforma de apreensão, que possam dar ideia, ainda quefugidia, de totalidade, de conjunto. Desesperado, opoeta vê escoar por entre os dedos, ou melhor, di-ante dos olhos, e sem que nada possa fazer, frag-mentos de um mundo que ele, quimericamente, so-nhou inteiro e permanente.

Diferença de grau, dizia-se, e não de estatuto.Com efeito, a canção de Pessanha, a par de manter

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as linhas mestras de sua poesia, amplia, no limite,como se mais nada restasse a fazer, o traço marcantede sua artesania poética, a musicalidade. Ainda queo soneto, já pelo seu próprio nome, já pela sua es-trutura, seja campo fértil para a prática musical, acanção, também pelas mesmas razões, parece confi-gurar-se fronteira entre as duas linguagens, palavrae música. Um pouco mais, é o que parece sonhar acanção, e a música transformaria as palavras em pu-ros sons, bastando-se então, a si mesma, e concreti-zando o sonho de Abel, citado em epigrafe acima, ede tantos outros que não se conformam com essaseparação.

Não é de estranhar, pois, que alguns dos poemasde Camilo Pessanha, que podem ser incluídos sob adesignação da canção, tratem exatamente de instru-mentos musicais, seja a flauta, a viola, o violoncelo eaté mesmo o tambor, como se fossem uma (poéti-ca) música da música. Nesses casos, é importantenotar, a canção cumpre papel único, pois que deslo-ca da visão, o sentido por excelência da estética dePessanha, para a audição os mecanismos captadoresda realidade, ou dos pedaços de realidade que com-põem sua visão do mundo.

Como se sabe (Lemos, 81), o processo de apre-ensão do mundo em Camilo Pessanha é realizadoatravés de associações que vinculam determinadassensações a aspectos (imagéticos) do mundo que,em princípio, nada teriam que ver com aquelas sen-sações. Esse processo é basicamente visual. Subme-tidos ao olhar, os fragmentos do mundo ganhamsentido. Mas um sentido particular, incapaz de in-tegrar tais fragmentos numa macroestrutura de sig-

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nificação. Ao contrário, cada fragmento tem – quan-do tem – sentido em si mesmo e nunca se articulacom outro, se se articula, o faz de modo absoluta-mente estranho, inusitado. Se, como se diz, ossurrealistas inventaram as palavras em liberdade,Camilo Pessanha já havia inventado as frases em li-berdade. Seus fragmentos linguísticos flutuam so-bre o papel do mesmo modo que seus restos de coi-sas boiam ao léu num lago morto e solitário, semqualquer relação previsível entre eles. As mais dasvezes, é tarefa (e responsabilidade) do leitor – estesenhor sempre ávido da totalidade do sentido – es-tabelecer as conexões ausentes, as quais passam afuncionar como pontes sintáticas, garantindo umacontinuidade ao descontinuo.

A falta de correspondência, pois, entre o que vaino interior do poeta e o que vê é o que faz moversua poesia. Não, evidentemente, em direção ao com-passo de um com o outro, senão como recusa dessabusca, dadas as dimensões de tão gigantesco empre-endimento. Mais ou menos como o jogador que serecusa a jogar por saber-se antecipadamente derrota-do, o poeta sabe-se perdedor, pois, aspirando o per-manente, tem diante de si o transitório em toda suacrueza. Seu desejo, embora o soubesse impossível, éfazer frear o movimento, do tempo e das coisas, demodo que possa ter fixas as imagens das coisas, para aseguir, estabelecer a correspondência sonhada. A pas-sagem inelutável das horas, horas que o poeta tantosonha abraçar, faz o mundo em pedaços, impedindo,definitivamente a visão de uma totalidade.

Negada a visão de um mundo total em que ascoisas signifiquem, e, por ser lânguido e inerme, re-

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cusando-se a lutar por ele, o poeta quer-se verme,habitante do sombrio e do informe, imune à dor doeterno transformar-se das coisas.

Porque o melhor, enfim,É não ouvir nem verPassarem sobre mimE nada me doer!

Não se trata, todavia, de morte física, como po-deria apressadamente parecer. Ao contrário, está-seaqui diante da fórmula “ter consciência da inconsci-ência”, tão lapidarmente formulada por Pessoa.Recusando por absoluta inadequação o plano do“eu” – ser social que atua e intervém no real -, opoeta constrói um outro, do “não eu”, de onde, talqual um divertido espectador, assiste, sem que nadapossa atingi-lo ao (doloroso) sem sentido do mun-do.

Dizia-se, antes, que a canção em Pessanha nãodifere substancialmente, quanto à cosmovisão doartista, das outras formas por ele trabalhadas, a nãoser, claro, naquilo que a canção tem de específico,de propriamente seu: o desejo de ser música. Esseaspecto musical, que poderia indiciar mudanças, aodeslocar o sentido privilegiado do poeta, a visão, paraa audição, acaba, no entanto, por reiterar as forças-motrizes de sua poética: a recusa à intervenção nomundo e a consequente passagem para um planooutro. Ali, verme liquefeito, portanto habitante deum mundo anterior à forma – é a transitoriedadedas formas, em última instância que o desespera –,o poeta pode finalmente (vi)ver o espetáculo da vida.

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Embora estudiosos de gabarito apontem a supre-macia da visão na estética de Pessanha – coisa quenão se pode negar –, a audição tem também aí lugarfundamental. Quanto mais não fosse os versos “por-que o melhor, enfim,/ é não ouvir nem ver” confi-guraria prova bastante para a afirmação da hipóte-se. O processo de associação entre dentro e fora érealizado em Pessanha, preferencialmente, peloolhar; mas o é também e com o mesmo resultado,pela audição. Portanto, visão e audição são sentidosbásicos, através dos quais o poeta constrói sua tra-jetória do mundo do ser ao mundo do não-ser, domundo das formas ao mundo do informe.

Para demonstração, e dadas as limitações que otexto põe, serão analisadas duas canções de CamiloPessanha, uma no plano do olhar, o poema que co-meça com “Meus olhos apagados”; a outra no pla-no do ouvir, bastante conhecida, “chorai arcadas”ou “violoncelo”.

Leia-se o primeiro, cuja epígrafe de Verlaine diz:“Il pleure dans mon coeur / Comme it pleut sur laville.”

1 Meus olhos apagados2 Vede a água cair.3 Das beiras dos telhados,4 Cair, sempre cair.5 Das beiras dos telhados,6 Cair, quase morrer…7 Meus olhos apagados,8 E cansados de ver.9 Meus olhos, afogai-vos10 Na vá tristeza ambiente.

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11 Caí e derramai-vos12 Como a água morrente.

Inicialmente uma observação. Diz Antonio Qua-dros (1988, p.118) que no famoso “caderno” dePessanha o poema em questão não apresentava tí-tulo; o que só vai acontecer quando, ao organizar epublicar a terceira edição de Clepsidra, João de Cas-tro Osório põe-lhe o título de “água morrente”,aproveitando a imagem do último verso. Embora otítulo favoreça a leitura que se vai fazer, ao destacara ideia de liquefação/liquidação, optou-se por tra-tar a canção como o poeta a concebeu, sem título.

O primeiro aspecto a chamar a atenção do leitornessa canção é a epígrafe. Não é prática usual emCamilo Pessanha sua presença. Dos cinquenta e cincopoemas apresentados na edição organizada porAntonio Quadros, apenas dois poemas possuemepígrafe: a canção de que se está tratando e o sone-to “Ó Madalena, ó cabelos de rastos”. Ou seja, 2,2%dos poemas de Pessanha recebem epígrafe. Há de seconvir que é muito baixo percentual. Deixando delado o soneto, que não é objeto do presente estudo,cabe perguntar do motivo de a canção ser encimadapor uma epigrafe.

É voz corrente entre os estudiosos da vida e daobra de Pessanha que Verlaine era seu poeta preferi-do. Como Pessoa a respeito de Cesário Verde, diz-se, Pessanha lia Verlaine até arderem-lhe os olhos,embora lesse-o, seguramente, pelos ouvidos. Por-que era a música de Verlaine e não apenas a poesia –que Pessanha queria ouvir.

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Ora a concepção musical de Verlaine distancia-setanto da de Baudelaire quanto da de Mallarmé, po-etas que, como ele, sonharam elidir as pontes queseparavam poesia e música. De acordo com Gomes(1985, p.52), Baudelaire queria que as palavras fos-sem capazes de evocar sentimentos como as notasmusicais. A sonoridade da palavra deveria ser capazde sinestesicamente, reportar a imagens visuais, asensações que se corporificariam em conjuntosimagéticos. Mallarmé, por seu lado, concebia a rela-ção poesia/música numa perspectiva estrutural: opoema é pensado como sinfonia, com tema e varia-ção. A utilização do espaço em branco, que permitedispor as palavras como notas musicais, faz com queestas possibilitem aproximações inusitadas, para alémdos nexos sintáticos. Verlaine queria ainda mais queisso. Para ele, ainda segundo Gomes, as palavras de-veriam reproduzir a sonoridade de determinado ins-trumento musical, para que se instituísse a melodia.

Não seria necessário ir muito longe para perce-ber-se o quão esta concepção afina com a de Pessanha.Além de alguns de seus poemas, como já se disse,reproduzirem sons de instrumentos – a flauta, a vi-ola, o violoncelo –, aspirando pois ser música pura,sua restante poesia é toda musical, único meio en-contrado para expressar as analogias intraduzíveis,as evocações, os climas, as sensações, que constitu-em sua essência. A epígrafe deve ser lida como umaconversa (musical) entre músicos, espécie de releiturade uma peça, na qual o músico, a propósito de ho-menagear o outro, acaba por, sutilmente, comporuma peça nova, que será percebida por ouvidos bematentos.

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A semelhança inicial quanto a projetos musicaisafins é tão somente o ponto de partida para a cons-trução da diferença. Sutil diferença, porém. O pri-meiro aspecto a ressaltar é que os dois versos deVerlaine indicam um movimento de dentro para fora,isto é, há uma sensação interior, definida, precisa,que pode, por isso, ser comparada a um fenômenoconcreto exterior, estabelecendo-se uma correlaçãoperfeita. Em Pessanha, pelo contrário, é um lentoprocesso de transformação porque passa o “eu”, quevai da observação de um fenômeno por um “olharapagado” até à dissolvição final pela liquefação. Essepercurso situa-se, sempre, no plano do olhar, nãonecessitando de qualquer coisa prévia, interior, paraque o processo analógico seja deflagrado.

A canção, como toda canção aliás, é exígua. Trêsestrofes de quatro versos cada uma. Os versos sãohexassílabos, com cadência predominante na segun-da e sexta. Com exceção dos versos de nº 3, que serepete como o nº 5, do verso nº 8 e do nº 11, emtodos os outros o acento secundário funciona comoum atenuador da regularidade acentual, que se fazpresente no poema para marcar a queda mais oumenos sistemática dos pingos da chuva. Imediata-mente anterior, imediatamente posterior, o acentosecundário introduz uma margem – para mais oupara menos – de imponderabilidade na duração daqueda, que os versos sem acentos secundários am-pliam. Os versos sem o acento secundário exercemfunção dupla: ao tempo em que, sozinhos, marcama regularidade da chuva ao cair, martelada e mono-tonamente; próximos aos outros versos que possu-em este acento, funcionam como uma espécie de

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espaçador, quebrando a previsibilidade rítmica (dachuva e do poema).

Indicador ainda mais preciso dessa exiguidade éo léxico utilizado na canção. O poema, a rigor, éconstruído sobre dez versos, já que dois versos, osde nº 1 e 3 são repetidos, tais e quais, respectiva-mente, como os de nº 7 e 5. Além disso, os versosde nº 4 e 6, não fora a pequena mudança introduzidano último, seriam também repetição um do outro,uma vez que sua estrutura é semelhante. Assim, dosdoze versos iniciais, 2 são repetições integrais e um,parcial, deixando o poema reduzido a nove versosoriginais. Se se aprofundar esse processo de obser-vação, porém, ver-se-á que um único verso – quesintomático –, o de nº 10, não repete palavras já uti-lizadas em outros, ainda que sofram tais palavraspequenas modificações, como “ver”, “vede”, “mor-rer”, “morrente” etc. Do total de 44 palavras dis-postas no poema, apenas 8 não se repetem, emboraalgumas mantenham relação de proximidade, comoé o caso de “afogar” e “derramar”. A palavra “cair”,a mais repetida, comparece cinco vezes, enquanto apalavra “olhar” repete-se por 2 vezes, e “água” re-pete-se uma vez. E tem-se ainda a repetição dos ver-sos “ver” e “morrer” nas formas “vede” e “morrente”.

No nível propriamente sonoro, alguns indicado-res ajudarão a compor a leitura do poema. Émarcante a presença da palatal /l /, que se disseminaao longo do poema em cinco versos. Em oposição aela, surge a profusão das oclusivas bilabiais surda esonora /b/ e /p/ e da velar /k/.

Esses aspectos formais têm função precisa na ar-quitetura do poema e articulam rigorosamente seu

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sentido geral. A metáfora fundamental, como namaioria dos poemas de Pessanha, é a água, lugar desolução (como dissolução).

Daí a presença recorrente das consoantes molha-das, como também são chamadas em Fonologia aspalatais. Ao lado delas, porém em sentido contrá-rio, as oclusivas fazem cessar a molhação que se der-ramaria informemente pelo poema, funcionandocomo uma espécie de dique sonoro em que ficariarepresada a água e o som. A alternância desses sonsdistintos fazem nitidamente supor a intermitênciadolente das pancadas da chuva, aspecto reforçado,como já se mostrou, pela distribuição dos acentosprincipal e secundário ao longo dos versos.

A repetição das palavras e dos versos, tornandoo poema um desdobramento do já dito, do já visto,tem por função marcar a escassez dessa chuva quedolentemente cai. Não é a chuva copiosa e retum-bante dos românticos, senão uma chuva exígua, quecai morrendo dos telhados. A exiguidade das pala-vras e dos versos é simétrica à exiguidade dessa chu-va quase invisível. (Afinal, são “olhos apagados” quesão chamados a ver). A repetição, portanto, alémde marcar a presença desse tênue movimento volta-do sobre si mesmo – o cair de uma chuva escassa,conduz o poema ( e o “eu”) para uma espécie deestagnação, em que o movimento anseia por findar-se. A chuva, escassa que era, agora transforma-senum filete em que, ao invés de (tênue) movimento,sobressai o estático da morte, lugar almejado pelo“eu”. O verso, único, que não traz qualquer repeti-ção desempenha importante papel. Nele ressoam asrepetições dos anteriores. Dito de outro modo, ele

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é um espécie de desaguadouro das associações fei-tas entre os dois planos, do “eu” e do mundo. Achuva que cai acaba por contaminar de tal modo oambiente que sobrecarrega de uma “vã tristeza”. Naverdade, essa vã tristeza é mero resultado do pro-cesso dissociador/associador, referido por Lemos(1981), levado a efeito pelo “eu”, que é quem está,definitivamente contaminado pela tristeza, no seucaso, nem um pouco “vã”, pois é seu único modode (não) ser no mundo.

A disposição das estrofes é também significativa,reveladora dos procedimentos estéticos de Pessanha.O poema começa pela invocação aos olhos “apaga-dos”, solicitados a ver uma chuva, morrente, quedolorosamente cai. Esse apelo permanece presentena terceira estrofe, intensificado no desejo de fusãocom as águas, a da tristeza (que se liquefaz) do “eu”com a da chuva. A segunda estrofe, todavia, ao eli-minar a referência direta à chuva, parece supor aintersecção dos dois planos, “olhos” e “chuva”. Fica-se com a sensação de que agora são os olhos queescorrem pelos beirais, como se a fusão pretendidana terceira estrofe já se houvesse realizado, sem quea consciência do “eu” tivesse percebido. A repeti-ção literal de um verso e parcial de outro – os de nº4 e 5 – não é o bastante para que se impeça a impres-são de que saiu de um plano, a chuva, para outro, osolhos. Ao contrário, a repetição reforça-a na medi-da em que, sendo comum a ambos, cria entre elesinevitável relação de contiguidade.

Como se viu, o processo, como sempre, é o dedissociação/associação no qual recortes do real, quejá aparecem em fragmentos aos olhos do “eu”, são

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associados de modo exclusivamente pessoal, por viade um olhar que se recusa a obedecer a coordenadasespaciotemporais orientadoras.

No caso do poema que ora se discute, trata-se deum olhar “apagado”. Como se poderia ler esse olhar“apagado” que é solicitado a ver a água da chuvacair? Ora, “apagado”, aqui, há que se relacionar como “lânguido” e “inerme” do poema “Inscrição” queabre a Clepsidra, palavras que dizem da disposiçãopara o “eu” enfrentar o mundo. É um “eu”, pois,como já se apontou, derrotado por antecipação: seuolhar carece do brilho (e) da luz.

“Apagado” é metáfora de peso na estética dePessanha. Trata-se da ideia, tantas vezes recorrentes emsua poesia, da aspiração, ou melhor, da constatação deque o mundo do informe é o único reino possível paraum “eu” incapaz de perceber o mundo como totali-dade significativa. Ora, um “eu” que vê do mundoapenas pedaços sem relação de sentido entre si nãopode mesmo aspirar à luz (e seu brilho).

Diante da luz, toda penumbra transforma-se emnitidez, em fixidez. As formas surgem em toda suacerteza e magnitude. Nada pode lhes ameaçar o con-torno. Mas esses contornos, certezas, nítidos e fi-xos requerem um olhar que os alimentem e lhes dêestatuto de formas, comparando-os, medindo-os,pesando-os, aproximando-os ou distanciando-os doconjunto das formas existentes no mundo, de modoque cada qual ocupe seu lugar (único) na “máquinado mundo”. Sabendo-se incapaz de tão árdua tare-fa – que só parece pequena aos pobres de espírito –o “eu” anseia pelo mundo do informe, onde pelaausência de contornos, as formas não o são.

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“Apagados”, os olhos trazem em si uma deficiên-cia congênita: são incapazes de divisar o contornodas coisas. Tarefa inútil o tentar olhar, posto queaquilo que se vê não é nunca aquilo que é, não é nuncaaquilo que se deveria ver. O olhar “cansado de ver”e decorrência dessa tarefa inútil que é o ver sem ver.Também assim a “vã tristeza ambiente”. Ela não éimanência das coisas, mas resultado da intervençãofalhada do olhar. Arredio à investida desse olhar quetenta aprendê-lo mas não consegue, o mundo (a)parece como um aglomerado disforme de fragmen-tos. Não possuindo a força necessária – o brilho daluz – para pôr ordem na desordem que se mostra,ordem que equivaleria à alegria da descoberta dosentido, o “eu” vê-se cercado pela “vã tristeza”, naqual anseia por apagar-se, livrando-se da tarefa dever sem ver.

Poder-se-ia pensar, em princípio, que esse apa-gar-se teria que ver com algo como a morte física,panaceia cristã para todas as dores. Mas não. Aqui,como em quase toda a poesia de Pessanha, o afogar-se, cair e derramar-se diz do desejo, aspiração su-prema do “eu”, de, pela fusão com os elementosnaturais – a água, principalmente -, ultrapassar afronteira do mundo, triste e vão, das formas, e po-der habitar enfim o reino do informe, onde tudoestá ainda por ser. O derramar-se “como águamorrente” do final do poema, ao invés de implicarum fim com o “morrente” poderia fazer crer, supõeum (outro) começo: a solução, afinal, é a dissolu-ção.

O olhar, como já se disse, é o mecanismo privile-giado pelo qual o “eu” na estética de Pessanha tenta

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(inutilmente) apreender o mundo na sua irremediá-vel passagem. O ouvir, embora menos significativa-mente, é também de grande importância. Leia-se opoema seguinte.

1. Chorai arcadas2. Do violoncelo!3. Convulsionadas,4. Pontes aladas5. De pesadelo...

6. De que esvoaçam,7. Brancos os arcos...8. Por baixo passam,9. Se despedaçam,10. No rio, os barcos.

11. Fundas soluçam12. Caudais de choro...13. Que ruínas (ouçam)!14. Se se debruçam15. Que sorvedouro!...

16. Trêmulos astros...17. Soidões lacustres...18. – Lemes e mastros...19. E os alabastros20. Dos balaústres!

21. Urnas quebradas!22. Blocos de gelo...23. Chorai arcadas,24. Despedaçadas,25. Do violoncelo.

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Muitos estudiosos da obra de Pessanha já se de-tiveram, com minúcia, sobre este poema que, na pri-meira edição de Clepsidra, trazia o nome de “Violon-cello”. Dentre esses, destacam-se as leituras feitaspor Lemos (1981), Gomes (1976) e também porMassaud Moisés, não publicada, citada pelo mesmoGomes (1989), que vê o “Violoncello” como um“poema icônico”, uma vez que suas cinco estrofesde cinco versos cada funcionariam como um símiledo instrumento, descrevendo-o em suas partes. Es-sas leituras, por certo, ressoarão na que ora se pre-tende fazer da obra-prima de Pessanha.

O primeiro aspecto a ser marcado é o desloca-mento do sentido com que o “eu” trabalha no seuprocesso de apreensão do mundo. Enquanto, comose demonstrou anteriormente, o olhar é o sentidoprivilegiado em Pessanha, tentando desesperada-mente fixar as formas que se diluem no trânsito dotempo, e descortinando por isso, o sentido do aglo-merado dessas formas do mundo, o ouvir, nessepoema, assume-se como sentido a estabelecer vín-culos entre linguagens distintas, ou seja, de operarcom a noção de significado – por que afinal o poe-ma é feito de palavra – onde, a rigor, sua ausência éque seria a demanda. É como se fora uma armadi-lha. O “eu” pode fazer toda e qualquer associação –como faz – entre a música que ouve e as imagensque ela evoca. Mas não assim o leitor: a música dopoema obriga-o a situar-se no limiar das duas lin-guagens. Música, sim, mas música e significado.

O poema desenvolve-se em cinco estrofes de cin-co versos cada uma. Mas tal simetria – cinco e cinco– parece manter-se no plano meramente distribuci-

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onal, diga-se assim em falta de conceito melhor. Sub-metido a observação mais detida, o movimento dasestrofes faz avançar umas pelas outras adentro, cri-ando verdadeiros blocos rítmicos, nos quais contafundamentalmente o fluir de certos traços sonoros– não é, afinal, de música que se trata? Assim, há ummovimento que vai do verso 1 ao verso 10, percep-tível tanto pelo encadeamento sintático quanto peloponto final do verso 10, que o trava. Os versos 5 e6, embora marquem fim e começo de estrofe, res-pectivamente, transitam de um para outro quasecomo se não houvesse pausa alguma entre eles. Aterceira estrofe, como se verá adiante, encerra ummovimento, que se inicia no verso 16 e vai até o ver-so 22, marcado esse pelo aspecto cumulativo e tam-bém pela ausência de tempos verbais. Por fim, oquarto e último movimento reduz-se aos três ver-sos finais da última estrofe, e que são uma volta (di-ferente, muito diferente) ao começo, como se novociclo estivesse se iniciando. Os versos são tetrassilá-bicos, um metro não muito comum em poesia, me-nos ainda na de Pessanha. Em toda a sua obra, pelomenos na que por ora se conhece, “Violoncelo” é oúnico poema escrito em verso de quatro sílabas. Quemotivos levariam o poeta a exercitar-se em metrotão singular? O estudo das estrofes nos seus váriosmovimentos – quatro precisamente – pode indicaro caminho para algumas respostas. Seria mera coin-cidência a presença desses quatro movimentos, dis-tribuídos por cinco estrofes em versos de quatro sí-labas? É de crer que não. O violoncelo é instrumen-to de quatro cordas, como se sabe. Nada mais pro-vável de que um poema que se pretende música de

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violoncelo tente “reproduzi-la”, buscando um má-ximo de fidelidade. Assim, tanto os movimentos dasestrofes quanto o número de sílabas – quatro e qua-tro – tem que ver com as quatro cordas – e seus sonse tons distintos – do violoncelo, como, aliás, jáMassaud Moisés apontara quanto ao número de sí-labas.

Embora estruturado em quatro sílabas, os ver-sos, como as estrofes, obedecem a um movimentopróprio, marcadamente musical, que os alonga oudiminuem segundo conveniências puramente sono-ras. Veja-se a primeira estrofe, por exemplo. Os doisprimeiros e os dois últimos versos podem ser lidosem contínuo, como se fossem (longos) versos deoito sílabas. Não assim o terceiro. Lidos os dois pri-meiros, o terceiro põe-se como barreira, chamandoatenção sobre si, e impedindo a livre passagem parao quarto verso. É como se fosse uma espécie de pon-te – palavra que será de grande utilidade na leiturado poema – entre aqueles e estes: o contínuo só podetransitar para os últimos versos depois de deter-sesobre o terceiro. O sexto verso, como já se disse,continua o movimento que vem do quinto, comose houvesse apenas leve pausa entre eles. Esse movi-mento recebe, também, pequena pausa ao final doverso 7; é rapidamente retomado no verso 8, paraestancar de vez ao 10.

Mudando completamente de tom, o movimentoque se inicia no verso 11 faz pequena pausa ali, para,em seguida, ir até o final do verso 12. Os três versosseguintes, 13, 14 e 15, ao retomar o movimento doverso 12, entrecortam-no, adensando-o, pelo quefazem ressoar em cada um deles. Ou seja, embora

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mantenham um fluxo circulando de um para o ou-tro, esses versos querem-se, primeiro, sozinhos; sódepois em conjunto.

Os versos de nº 16 até o 22 são todos semelhan-tes quanto ao movimento. Querem-se, sempre so-zinhos, formando uma espécie de somatório de coi-sas heterogêneas.

Os três últimos repetem o procedimento já vistona primeira estrofe. Com uma diferença. Enquantoali o terceiro verso separava dois de cada lado, aquio terceiro separa um, como se a música tivesse seenfraquecido, caminhando para a dispersão.

No nível dos fonemas, confirma-se o que já seviu até agora nos planos da estrofe e do verso. Nosdez primeiros versos é predominante a presença do/a/, fazendo correr o contínuo sem qualquer esfor-ço, uma vez que o /a/ é o fonema que menos esfor-ço requer na sua realização. Pelo contrário, encon-tram-se ali pouquíssimas realizações do /u/. Essequadro, todavia, vai-se inverter completamente naterceira estrofe. Ali é o /u/ que passa a predominar,demostrando completa mudança de movimento ede tom.

Se ali o /a/ representava sonoramente um contí-nuo que flui sem impedimento, aqui, o /u/ preten-de marcar a noção de uma violenta profundidade.O quadro mudará outra vez nas estrofes seguintes,onde o /a/ voltará a ser fonema predominante, massem a supremacia que apresentava nos dez primei-ros versos. O porque disso é que a tensão do poemaresolve-se na terceira estrofe, de maneira que as úl-timas duas funcionam como – para usar a palavraapropriada – desaguadouro do que até ali ocorreu.

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Não há, por conseguinte, razões maiores para quepredomine um ou outro fonema, em termos abso-lutos.

Se se observar o poema do ponto de vista dossons consonânticos, algumas chaves para sua leitu-ra podem ali ser encontradas. É notória a presençadas sibilantes, sejam as surdas ou sonoras. Estas úl-timas, como mostrou Lemos (1981), estão presen-tes não só em situações como em “pe/z/adelo”, mastambém em “ponte/z/aladas”, possibilitando per-feita alternância entre elas, as sonoras, e as surdas,que se derramam, estas, por todo o poema. Asoclusivas – bilabiais, dentais e velares – também elasdisseminadas por todo o poema, quase na mesmaproporção que as sibilantes, é que garantem em sen-tido lato a alternância sonora sobre qual se constróio poema.

As líquidas, por sua vez, são responsáveis, quan-do em aparições espaçadas, pela introdução de umterceiro elemento, na ordem binária, elastecendo, porassim dizer, a emissão sonora. Quando em apariçãoconcentrada, todavia, como é o caso da estrofe qua-tro, desenvolvem função completamente distinta.Se nas três primeiras estrofes o entrechoque entrevogais dá conta da tensão e de seu adensamentosobre que se funda o poema, na quarta, as líquidas,em confronto com as vibrantes, dizem do resulta-do dessa tensão. Assim, há um movimento que seinicia no /a/, que, com o auxílio de outras vogais, /e/ e /o/ basicamente, segue sem grandes percalços,até defrontar-se com a fúria caudalosa do /u/ que otraga, fazendo-o desaparecer completamente, pararessurgir, em seguida, calmo e fragmentado, nos /l/

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e /r/ da quarta estrofe, indo até o segundo verso daúltima estrofe, quando o ciclo – agora em pedaçosde som – se reinicia.

Isto posto, cabe articular todos esses elementosna leitura globalizante do poema.

Um violoncelo toca, eis o ponto de partida – ede chegada – do poema. A partir da música, o “eu”faz uma série de associações em cascata, que nãoobedecem a qualquer ordem lógica exterior, senão àlógica interna do processo associativo. Umvioloncelo não toca: chora. Ou dito de outro modo,mais fiel: o violoncelo toca choro. Mas não é chorocalmo, correntio; é, antes, choro convulso, soluçan-do, que se interrompe para voltar rapidamente so-bre si mesmo. Enquanto flutuam no ar, as notas dessechoro musical (pois se trata muito mais de choromusical do que de uma música chorosa) transfor-mam-se em difusas e estranhas imagens. Provavel-mente pelo espaçamento que deixam entre si, alémde serem produzidas por um arco, as notas convul-sas transformam-se em pontes que voam. O mate-rial de que são construídas, choro, é o sonho. Ounão seria música! Como a música de que se origi-nam é choro, e choro intranquilizador, o sonho épesadelo. Mas de que pesadelo se trata? As pontes,como todas elas, são construídas sobre arcos, paraque possam dar vazão às águas que correm sobreelas. Afinal, é para isso que servem as pontes. O pe-sadelo – porque a música é choro – decorre do fatode sob essas pontes se despedaçarem os barcos, quedeslizam nesse rio de sonhos e de som. Ora, está-seaqui diante de um dos mais fortes elementos da es-tética de Pessanha: a constatação desesperada da

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marcha desarrazoada do tempo, que, em não fixan-do nada, tudo destrói. O que desespera o “eu” é aimpossibilidade de ter esses barcos inteiros, comodeveria ser. Ou, o que é o mesmo, seu desesperodecorre do fato de só poder ter esses barcos aospedaços, sem que jamais possa experimentar sua in-teireza. É de sentido das coisas que se trata, em últi-ma instância. Ou melhor, é da ausência de sentidodas coisas que se trata, uma vez que estas só podemse apresentar, dispersamente, aos pedaços , impos-sibilitando – para sempre – sua organização em umtodo. Daí o pesadelo, que tem como fonte primeiraessa dispersão fragmentária do mundo.

O pesadelo, todavia, porque próprio dele, nãopode ser fluxo contínuo. Música, poema e rio pare-cem convergir enquanto ritmos numa mesma dire-ção – o ponto final do verso dez. Até aí, tem-se aimpressão de que, apesar do atropelado da música(e de barcos que se quebram), há um rio que, sobpontes, corre para algum lugar, assim como o poe-ma corre para o verso dez.

Com o adensar-se da música/choro, o rio perdeseu rumo e o poema perde seu ritmo. O rumo dorio agora é a espiral do redemoinho, que tudo traga.Pontes, arcos brancos das pontes, pedaços de bar-cos, tudo desaparece na fúria destruidora dessaságuas, que têm o poder de juntar em si, de trazerpara um espaço comum, coisas de campos comple-tamente distintos, sem que entretanto possa esta-belecer nexos entre elas. Talvez não haja melhor ima-gem do inferno em que jaz o “eu” poético dePessanha que o sorvedouro. Além de nada escapar aseu apetite insaciável, pois que funciona como um

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inevitável desaguadouro, o redemoinho, pelo seuaspecto espiralado, caracteriza o tempo em seu as-pecto circular. Até que mudem as condições, ou seja,até que algo exterior faça as águas se acalmarem, oredemoinho gira interminavelmente sobre si mes-mo, fazendo com que as coisas aprisionadas – por-que é mesmo de prisão que se trata, em si apareçame desapareçam a momentos regulares, sem que nadapossa alterar-lhes tal (per)curso. E ali eles viverãocumprindo o miserável estigma de, porque ruínas,estarem juntas porém para sempre separadas.

Portanto, o que antes, ainda que sonho mau, pa-recia possuir nexo entre si – pontes/arcos da pon-te/rio/barcos –, gerando ilusão de um contínuo (desentido), desagua no sem sentido violento e destrui-dor (acústico) de sorvedouro: “Que ruínas (ou-çam)!”. Perdido o rumo do rio, o poema tambémdeságua num sorvedouro. Se antes a predominân-cia da vogal “a” marcava o lado mais ou menos claro– se isso é possível – do pesadelo, em que o contí-nuo fazia presumir um certo (embora tênue) senti-do, agora, a presença do “u” faz com que se ouça aprofundidade sombria do sorvedouro, que tudoarruína na sua circularidade sem fim.

Cessados os caudais de choro, isto é, eliminada afúria que o fez brotar, estanca-se o sorvedouro emseu movimento circular. Agora, tudo destruído pelavertigem caudalosa das águas enfurecidas, o que jáfora rio é tão somente um (pequeno) mar morto,no qual, sob a luz bruxuleante das estrelas, boiam, àderiva, os cacos que restaram do trabalho realizadopelas águas do sorvedouro. Em cinco versos – do 17ao 22 – tal como na paz funérea do lago, boiam so-

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bre o poema esses fragmentos, em que a presençamarcante das líquidas e bilabiais, alternando-se ra-pidamente, acentua seu aspecto quebradiço. Alémdo mais, a ausência completa de verbos nesses cincoversos reafirma a sensação de acumulação por umlado, e de isolamento, por outro, selando de vez aimpossibilidade de reunir tais pedaços num todo,aspiração, aliás, que já não mais tem lugar, por detodo descabida.

Resta, assim, o continuar do ciclo – da música,do pesadelo e do poema –, que se reinicia no verso23. Naturalmente, “ciclo”, aqui, não diz do mesmo,do recorrente, senão da impossibilidade de estabe-lecer-se um ponto de chegada, o que é enfatizadopelos “despedaçadas” da estrofe final. Observe-se,ademais, que embora ali sejam repetidos integralmen-te dois versos da primeira, sua disposição é diferen-te, na medida em que são obrigados a abrir espaçospara que o “despedaçadas” seja intercalado entre eles.Assim, o “despedaçadas” da estrofe final guarda es-treita relação com a “convulsionadas” da primeira,no sentido de que, deste àquele, vai-se do nexo (pre-cário) do sentido à sua ausência completa. A inter-calação do verso – note-se que o seu simétrico é ape-nas posposto – pretende marcar, estruturalmente, a“vitória” final do processo de “espedaçamento”.

Agora já não é uma música/choro que toca. Sãocacos de música que se ouvem, os quais podem ape-nas construir fragmentos correlatos, sejam aquelesque boiam na “água morrente” do lago solitário, se-jam aqueles que boiam na superfície do texto, de-samparados pelos verbos ou forçando zonas de si-lêncio entre versos contíguos, pelo processo suspen-

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sivo da intercalação. Seja de que tipo for, padecemesses fragmentos - todos eles – da mesma maldição:a de, pelo fato de jamais poderem se encontrar, ne-garem o contorno das coisas, negando ao “eu”, comoconsequência, qualquer possibilidade de situar-se,ainda que precariamente, no real.

Assim, e a modo de conclusão, dois aspectos po-dem ser observados na canção de Pessanha. O pri-meiro é que, quanto aos temas, sua canção não apre-senta uma especificidade, algo que a distinga do con-junto de sua poesia, o que confirma a tese (Moisés,1989) de que a canção é forma tematicamente aber-ta. O segundo, por viver esse aspecto dual – aferra-da à palavra e ansiando pela música – a canção dePessanha vê-se submetida a rigoroso esquema mu-sical. Sua arquitetura, tão modelarmente construída,chega ao limite de fazer-se icônica, como se podenotar no poema “Violoncelo”. Aí, como de resto no(exíguo) conjunto de suas canções, as palavras pa-recem viver por si mesmas, pelo som que produzeme pelo que se possa construir a partir daí.

REFERÊNCIAS

BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. São Paulo: Cia dasLetras, 2004.

CASTRO MENDES, Luis Filipe. Poesia reunida. Rio de Janeiro:Topbooks, 2001.

MOISÉS, Massaud. A criação literária – poesia. São Paulo:Cultrix, 2001.

PESSOA, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Aguillar,1972.

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O REAL E O AVESSO: O MARPORTUGUÊS EM CAMÕES E PESSOA

Toda grande poesia é uma hermenêutica. Grandepoesia, entretanto, só pode ser assim chamada aque-la que, ao ultrapassar o cristalizado do nome, pro-move a revolta das coisas, animando-lhes a buscar oseu nome verdadeiro e, por causa disso, seu verda-deiro lugar no concerto do mundo. Porque esta, emúltima instância, é a tarefa – prometeica – que a po-esia se impôs desde sempre: eliminar do mundo odesconcerto. Assim, e ainda que a indagação aomundo se ponha de modo diferenciado, pois quecada tempo e lugar exigem pergunta própria, a na-tureza dessa indagação será sempre a mesma. Tem-pos mais simples, mais complexos, tempos mais an-tigos, mais modernos, não importa: a poesia está(rá)sempre à cata da resposta primeira, aquela que seesconde para além da superfície das coisas (e daspalavras), e que diz dessa Unidade – ou qualquer

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outro nome que se lhe dê, tão ansiosamente procu-rada, que reponha a ordem perdida ao mundo.

Nessa procura, a poesia recusa o conforto da li-nearidade temporal. Na mesmeidade de sua inter-rogação, ela reinstala o tempo em sua dimensão cir-cular, tornando o próximo e o distante elementoscomponentes da mesma face da moeda. Nesse sen-tido, o móvel que impulsiona a pergunta que Ho-mero faz ao mundo é o mesmo que impulsionaDrummond; e a pergunta feita por Virgílio é movi-da pelo mesmo anseio que aquela que Pessoa (se)faz. E assim todos os outros poetas. Irmanados pelamesma e única obsessão, parecem condenados a co-meçar sempre do ponto zero. É que, apesar de to-das as perguntas já feitas ressoarem naquela que sevai fazer, a circularidade impõe o começar de novo.Desamparado e só, o poeta se iguala a todos os queo antecederam e com eles se identifica nessa conde-nação de retomar – sempre e sempre – a pedra rola-da montanha abaixo para levá-la ao cume.

A imagem mitológica, embora um tanto banali-zada, é precisa. A montanha configura-se como a“floresta de símbolos”, nomeada por Baudelaire, masjá velha conhecida dos primeiros poetas. É contraela, e o caos que ela instaura, que o poeta luta desdesempre, pois do seu desbaste é que deve surgir aharmonia revitalizadora, único meio capaz de ga-rantir ao homem sua dimensão de humanidade.

Inerência de toda grande poesia, pois que ela ésempre uma indagação ao mundo, essa dimensãohermenêutica transforma-se, na modernidade, nasua própria razão de ser. De elemento constitutivo,ela passa a objeto praticamente exclusivo da poesia.

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É que a montanha e o poeta distanciam-se cada vezmais um do outro, ou melhor, é que a montanhadistancia-se cada vez mais do poeta, a floresta cer-ra-se em si mesma. Se antes sua densidade podia for-necer brechas, através das quais o poeta podia vis-lumbrar o outro lado, agora, fechada sobre si mes-ma, a floresta se põe como impenetrável nevoeirosimbólico. Tudo é “símbolo e cerração”. Mais queem qualquer outro tempo, a tarefa do poeta é a dedesvendar o oculto.

Já se vê que tratando da poesia em geral, poder-se-ia, com o que se disse acima, estar tratando dapoesia de Fernando Pessoa. Com efeito, embora aimagem tenha sido formulada por Baudelaire, nadarepresenta melhor sua poesia que essa ideia da flo-resta de símbolos. Poeta para quem “tudo é ocul-to”, Pessoa levou às últimas consequências essa con-cepção. Toda sua obra, inclusive a estratégia do des-membrar-se heteronímico, tem como centro únicoo atravessá-la, lastreada na convicção de que por trásdo seu sem-sentido há um mundo concertado à es-pera de ser vivido.

Não é gratuito o fato de Pessoa ter iniciado (eterminado!) a publicação de sua obra em livro porMensagem, embora tantas vezes ele se esforce pornegar o contrário, como na carta famosa a CasaisMonteiro, em que afirma tê-lo feito apenas paraatender apelos de alguns amigos (Monteiro, 1985,p. 229). Muito “crítico especializado” caiu na arma-dilha montada pela inocência fabricada com quePessoa gostava de tratar as questões mais importan-tes. E assim, apesar de constituir-se a ponta do ice-berg, Mensagem passou longos anos relegado à con-

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dição de livro menor no conjunto da obra de Pes-soa. Exceção deve ser feita apenas a Agostinho daSilva que, malgrado sua particularíssima leitura, sem-pre apontou Mensagem como ponto de partida e dechegada da obra do poeta. Felizmente, há algumtempo as coisas começaram a mudar.

Maria Helena Garcez (1979), por exemplo, pro-move uma inversão na maneira como costumeira-mente vinha-se lendo Pessoa. Para ela, as “ficçõesdo interlúdio” são espaço intervalar entre o projetocolocado por Mensagem e o momento de sua reali-zação. Enquanto espera, porque a “Hora há de vir!”,o poeta ludicamente constrói ficções nesse interva-lo.

Ainda que polêmica, a tese é sedutora. Tem a seufavor o fato de que pelo menos desde 1913, quandopublicou “D. Fernando, Infante de Portugal”, ain-da sob o título de “Gládio”, até seis meses antes desua morte quando, num de seus últimos poemas,sonhava sua “alma transposta de argonauta”, Pes-soa nunca deixou de pensar (e viver) seu projeto“imperial”. Nesse meio tempo, efetivamente, Pes-soa fez ficção. Ficções do interlúdio. Os dois extre-mos – 13 e 35 – tornam patente que a publicação deMensagem não obedeceu apenas a critérios basea-dos na generosidade para com os amigos. Isso é atépossível que tenha ocorrido. Mas o móvel primeiroé outro, de ordem propriamente estética. Com suapublicação, Pessoa quis marcar ritualisticamente – enada melhor que um concurso de exaltação nacio-nalista para assim fazê-lo – o deflagrar do seu proje-to imperial. Que não tinha, já se sabe, nada que vercom as motivações pragmáticas do concurso. É

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como se concorresse, por um lado, para ganhar oprêmio em dinheiro – que desse precisava – e, poroutro, para marcar a diferença entre o seu projeto eaquele que o concurso visava defender.

O projeto de Mensagem é, sim, imperial. Mas nãoo império do possessio maris, cuja finalidade esgota-ra-se no ter feito o mar cumprir-se. Cumprido o mar,trata-se agora de atravessar do real para o outro lado,a fim de buscar-se aquilo que nenhum império ma-terial é capaz de garantir: viver a verdade do sonho.Ainda que encoberto, ou oculto pela floresta de sím-bolos, ele existe. Tudo depende, porque nada é dadode graça, do trabalho por desvendá-lo. Desvenda-do, ter-se-á atingido o império, o Quinto, diferentede todos os outros porque inaugura em definitivoo tempo do grande Concerto, aquele que marca ofim dos tempos da história, posto que seu mundonão é deste reino.

Dividido em três partes, Mensagem simula o tra-jeto histórico português, da fundação da nacionali-dade à derrocada do império em Alcácer Quibir,tudo matizado por essa concepção imperial, que vêna vocação para grandeza o elemento que faz mo-ver os heróis portugueses. A dimensão épica, toda-via, que ali se percebe é antes ponto de partida doque de chegada. Pelo menos como habitualmente sedefine o épico. Porque nada mais distante do quemera exaltação patriótica que Mensagem. A exalta-ção patriótica, se há, serve sempre ao projeto pesso-ano e nunca a ela própria, na medida em que esseprojeto situa o seu devir sempre no, como aqui sepropõe chamá-lo, o avesso do real. Visível em todoo livro, pois que o atravessa de ponta a ponta, esse

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viés, melhor, essa matriz estadeia-se em pleno no fi-nal da terceira parte, quando, deslocando-se do ele-mento histórico, isto é, deixando de tratar do acon-tecido, expõe o por acontecer: a iminente chegadaao Império dos Sonhos.

Nesse sentido, Mensagem é um heterodoxo her-deiro d’Os Lusíadas. O diálogo com o texto camo-niano é evidente por si mesmo, mas é como se essediálogo existisse apenas para dizer, no caso de Men-sagem, de uma radical impossibilidade. Ou seja, jánão é possível, como aponta Prado Coelho (1983,p. 106), fazer coincidir memória e esperança, comose dá n’Os Lusíadas. Ali, embora se trate tambémde uma ausência – o Império real estertora –, Ca-mões acredita em sua retomada. É essa a função dafala final do poema exortando D. Sebastião a inva-dir o norte da África. A memória recente do que foio Império – memória resultante do vivido – creden-cia Camões a esperar. Ele está convencido de quetudo pode ser como antes. Não assim Pessoa. O in-terregno entre grandeza e miséria é por demais lon-go para sustentar qualquer esperança no nível práti-co. A essa altura, os tempos são tão difíceis que – àexceção do poeta “já ninguém sabe que alma tem”.Daí que a esperança em Pessoa seja deslocada paraoutro plano, de ordem metafísica. Os impérios ma-teriais vêm e passam, mas não o sonho que os mo-veu, essa “estranha condição” de que fala o Velhodo Restelo, que faz o homem atravessar mares, ter-ras e ares sempre em busca do ponto por achar, queisso é a marca do homem. Eis a esperança em Pes-soa. O homem é ânsia. Sem ela, é nada. Esse o impé-rio proposto em Mensagem.

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Por isso é que onde mais se estreitam laços épicos– sem que, entretanto, nunca se confundam – entreOs Lusíadas e Mensagem é exatamente na segundaparte deste, “Mar Português”. Aí, como se verá –em detalhe adiante – mais ou menos linearmente re-faz-se a trajetória marítima da expansão portugue-sa, seguindo o modelo camoniano. Não é difícil en-tender porquê. O singrar o mar é o gesto compro-vador por excelência da ânsia que faz mover o ho-mem. E é nisso que eles se encontram. Com umadiferença, porém. Diferença, aliás, que patenteia doisprojetos. Enquanto que para Camões a ânsia leva aoporto, tendo esta, portanto, uma destinação obje-tiva; para Pessoa, por sua vez, ela basta-se a si mes-ma, uma vez que, por precariamente provisório, ne-nhum porto jamais a aplacará. Se para Camões o maré o mar da ida, para Pessoa é o mar da volta, pois éde lá que há de vir a força que move a ânsia e põe ohomem a navegar, seja em que águas forem.

Os poemas que compõem Mar Português serãoestudados com alguma detença a seguir, uma vezque, nessa parte, se circunscreve o limite deste tra-balho. O objetivo é mostrar, na fala dos poemas,como aí se entrecruzam essas duas concepções doépico – a de Camões e a de Pessoa – e como estaúltima se desdobra a partir daquela. Antes, porém,de iniciar-se propriamente a leitura dos poemas, seránecessário fazer-se um pequeno histórico de “MarPortuguês”.

“Mar Português” nasceu muito antes de Men-sagem. Sua primeira publicação deu-se no númeroquatro da revista Contemporânea, em outubro de1922, quatorze anos antes do surgimento do livro,

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portanto. Quando de sua primeira publicação –porque houve outra ainda, em 1933 – “MarPortuguês” era já composto pela dúzia de poemasque o integra, como se encontra em Mensagem, compequenas diferenças, porém. Ali, no lugar de “OsColombos”, como se lê agora, havia um outropoema, “Ironia”, que, no dizer de ApolinárioLourenço (1990), “não comportava a simbologiareligiosa do novo poema”, embora cumprisse“historicamente a mesma função”.

Além disso, mesmo antes de sua publicação, “MarPortuguês” tivera vida fragmentária. Dois poemasque o integram já haviam sido publicados em 1918,“Padrão” e aquele que se pode considerar – porqueo é estruturalmente, como adiante se mostrará – aespinha dorsal não só do “Mar Português” comotambém de Mensagem, “O Mostrengo”. Portanto,não só o “Mar Português” se antecipa à Mensagem,como é antecipado na publicação dos dois poemas.

Esses aspectos levantam uma questão estruturalde fundo. Como se pode ver, “Mar Português” épeça autônoma, sua “vida” prévia ao livro assim ocomprova. Inserido no livro, ele se põe como pon-to de referência, lugar de passagem entre um antesque o prepara e um depois que o anseia, sem que, noentanto, sua autonomia seja comprometida. É ver-dade que se poderá sempre dizer-se que sem o antesque o prepara ele seria parcial. Pode ser. Mas é ali,no seu limite, que a ação se realiza. Ação que marcamenos pelo resultado do que por aquilo que a fazmover-se. Essa a razão de sua autonomia. O móvel– o sonho, o desejo, a ânsia – que faz o homem sairdo seu pequeno círculo de comodidade para domi-

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nar o desconhecido basta-se a si mesmo na sua evi-dência. É o que ensina a autonomia de “Mar Portu-guês”.

Não muda muito o seu papel quando inseridono livro. As partes anterior e posterior que a ele sesomam é que passam a depender dele. Toda a prepa-ração apresentada na primeira parte – Portugal comolugar de eleição – se esvaziaria se não desaguasse no“Mar Português”. Assim também a outra parte: oque foi pelo mar há de voltar por ali. Não houvera aviagem de ida, não poderia haver a de volta. Evi-dência do que foi – e do que será –, “Mar Portugu-ês” é rito de passagem que, paradoxalmente, basta-se a si mesmo, pois que, meio, ele prenuncia o fim,ao mesmo tempo que anuncia o começo:

E Portugal não pode ser compreendido no quetem de específico sem os descobrimentos e, em con-sequência, sem o seu Renascimento. O Renascimen-to português é a placa giratória da história de Portu-gal. O Portugal de antes, da Idade Média, era já umapreparação para o seu Renascimento, o Renascimen-to Português. O Portugal de depois, da época mo-derna e contemporânea é uma consequência dosdescobrimentos marítimos, do seu Renascimento(Carvalho, 1980, p. 13).

É pois a História que confere a “Mar Português”sua função estrutural em Mensagem. Ele não estáno meio do livro gozando de autonomia devido auma qualquer esotérica veleidade literária do autor,antes porque ele é o Meio. Só através dele, de suagrandeza, é que um pequeno povo litorâneo, voca-

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cionado para a grandeza, pôde enfim vivê-la em suainteireza. E é essa mesma grandeza, agora em outroplano, que ele terá de fazer retornar a esse povo,agora apequenado. Por isso, o meio.

Esse aspecto se esclarece ainda melhor se se ob-servar mais de perto a estrutura de “Mar Portugu-ês”. Um conjunto de doze poemas navega em suaságuas, quase sempre tranquilas, sem nenhuma tor-menta a embaraçar a abordagem do leitor. Essa au-sência de obstáculos – que não se dá nas outras duaspartes – aponta para a clareza que o mar, apesar dosperigos que guarda em si, garante a quem ousa en-frentá-lo.

Mas é o número doze que chama atenção, pelasimplicações estruturais que ele indicia. Ora, é truís-mo falar-se das motivações iniciáticas, de fundo eso-térico, que perpassam Mensagem. O mais desavisa-do dos leitores sabe que esse livro filia-se a certospreceitos ocultistas. Assim, visto na perspectiva dacosmologia rosa cruz, como resume Moisés (1989,p,23), o número doze remete “às doze correntessubstanciais, doze forças ígneas, doze enormes rea-ções em cadeia, despertadas no Caos pelo choquedos contrários no primeiro instante, e que apare-cem no espaço vazio”. Se se estabelece, nessa pers-pectiva, uma relação entre esse número e aqueles queconstituem as partes primeira e terceira de Mensa-gem, ver-se-á que o livro, no seu todo, modela umritmo em três tempos, em tudo muito próximo dacosmologia rosa cruz. Assim, o número doze dizde uma dinâmica transformadora, através da qualo que foi voltará a ser, reencontrando-se um tem-po (que já foi aquém mas agora terá que ser) além

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da História.Adequada e – por isso – convincente, a simbolo-

gia rosa cruz, felizmente, não esgota as possibilida-des de exploração do número doze, que aliás sãomuitas. De acordo com Chevalier e Gheerbrant(1990, p.348), o número doze simboliza o universono seu curso cíclico espaço-temporal (o grifo é dosautores). E em verbete razoavelmente longo, os au-tores mostram que em todas as culturas “ orientais eocidentais “ o número doze possui simbologia apro-ximada, sempre apontando para ideia de “realiza-ção, de “ciclo concluído”. Seja a concepção cristã,que o vê como número de eleição (as doze tribos dopovo judeu, os doze apóstolos, os doze frutos daárvore da vida, os doze meses do ano, etc.), seja adas culturas africanas, que o veem como número deação, seja ainda a cultura chinesa, que o vê como onúmero que forma os principais períodos de tempo(grupo de doze anos), o doze, enfim, manifestarásempre a ideia de lugar de luta e recompensa, demovimento e de resolução, por um lado, e de cicloque se inicia e finda em si mesmo, independente, ain-da que relacionados a momentos anteriores e pos-teriores, por outro.

Aproximadas essas ideias àquela outra de que omar é, por excelência, lugar de nascimento, trans-formação e renascimento (Chevalier e Gheerbrant,1990, p.592), ter-se-á em mãos a chave de “Mar Por-tuguês”. Placa giratória da história de Portugal, omar evidencia na sua dupla face – lugar de ida e lu-gar de volta – o ciclo que se cumprirá em si mesmo,abrindo, a seguir, as portas para os novos temposque se iniciam. Cumprida a parte relativa ao mar,

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que tornou possível acrescentar novos mundos aomundo, resta cumprir a outra parte, aquela que háde retomar o desejo que faz mover o sonho. Porisso o doze. Por isso “Mar português”.

Isso posto, é hora de observar mais detalhada-mente como esse percurso duplo se realiza.

Como todo “começo é involuntário”, “Mar Por-tuguês” não começa onde começa efetivamente. Épreciso recuar um pouco para flagrar um poeta in-tuindo-o em seu “Cantar de Amigo”. Ali “esse can-tar, jovem e puro, / Busca o oceano por achar”. Por-tanto muito tempo antes de se concretizar, ele é jáuma intuição poética.

E aqui abre-se viés importante. Como se sabe, osheróis em Mensagem nunca alcançam o significadode sua ação, movidos que são por forças superiores,que, regra geral, são designadas por “Deuses”, noplural, ou “Deus”, no singular. No poema dedicadoa D. Dinis, no entanto, essa força é associada à poe-sia, em seu poder profético de antevisão. Não é aoRei planejador, bom administrador que o poema serefere. É ao poeta que, à noite – hora em que a vir-tualidade do informe prenuncia formas possíveis –ouve o “marulho obscuro” desse mar que está porvir. Ainda que não saiba exatamente do que se trata,o poeta sabe porque vê no invisível e ouve no inau-dível. Daí que o Rei ceda lugar ao poeta. Mesmoporque essas formas de ver e ouvir não são propria-mente qualidades de um Rei. Só aos poetas é revela-do esse privilégio.

A aproximação, já se vê, não é difícil de ser esta-belecida. Pessoa e D. Dinis equiparam-se enquantopoetas-profetas: se este viu e ouviu poeticamente o

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mar que se cumpriu, aquele, por sua vez, vê e ouve omar que se há de cumprir. Em termos de efeito per-suasório junto ao leitor, o recurso é eficiente. É comose, com o exemplo de D. Dinis, o poeta estivessebuscando uma “prova” que confirmasse o poderdesvelador da intuição poética, garantindo assim anecessária legitimidade para a sua própria. De possedessa garantia, o poeta pode então introduzir o lei-tor no seu “Mar Português”.

Nele a primeira coisa que chama a atenção é aepígrafe, Possessio maris. Vazada em latim, ela em-presta um tom solene ao poema, apontando parauma época de riqueza linguística e política, e quetinha “no controle do mar a chave para a glória doimpério”, no dizer do romano Marius (Chang e Ishi-matsu, p. 120). Mas sua importância se situa aindamais no que deixa de dizer do que naquilo que pro-priamente diz. Com efeito, só muito rapidamente aposse do mar pode ser lida em termos da convicçãodo romano. Aqui, essa posse é tão somente o meiopara a posse de outro mar, aquele sem tempo nemespaço que habita o interior de (alguns) navegado-res audazes, para quem nunca basta o porto acha-do. Portanto, ao falar de uma posse, a primeira, aepígrafe remete também para aquela outra, definiti-va, que só pode ser lida no implícito. Possessio marisencarna, assim, as dualidades que atravessam MarPortuguês, cujo lado visível é pequena amostra doque por trás dele se esconde.

Veja-se como essas dualidades são concebidas (etrabalhadas). Para tanto leia-se o primeiro poemade “Mar Português”, “O infante”:

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Deus quere, o homem sonha, a obra nasce.Deus quiz que a terra fosse toda uma,Que o mar unisse, já não separasse.Sagrou-te e foste desvendando a espuma,

E a orla branca foi de ilha em continente,Clareou, correndo até o fim do mundo,E viu-se a terra inteira, de repente,Surgir, redonda, do azul profundo.

Quem te sagrou creou-te portuguez.Do mar e nós em ti nos deu sinal.Cumpriu-se o Mar, e o Império se desfez.Senhor, falta cumprir-se Portugal.

Como já se disse, o herói em Mensagem é sempremovido por forças superiores, que o elegeram ins-trumento para consecução de suas vontades. Assim,o herói, e por extensão Portugal, é o eleito de Deuspara realizar uma missão por ele designada. Daí queo Herói nunca tenha noção exata da grandeza deseu gesto, posto que apenas se sabe agente daquelavontade. Mas o saber-se agente deflagra a realiza-ção da obra. Está é, pois, o resultado de uma sequ-ência nitidamente dividida em três momentos, comose lê na generalidade axiomática do primeiro verso.

O primeiro momento é de alçada exclusiva dodivino. Ali é que esse querer se decide e se define.Assim é que, genericamente afirmado no primeiroverso, esse querer é “traduzido” nos dois seguintes,versos segundo e terceiro. É pura e exclusiva vonta-de de Deus que a terra fosse uma.

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Definida a vontade, escolhe-se o agente. É o se-gundo momento. Não é,no entanto, qualquer umque pode sê-lo. É preciso que este seja capaz de “so-nhar”, isto é, que seja capaz, como se dirá no poemanúmero dois, “de ver as formas invisíveis / Da dis-tância imprecisa...” Esse é o sonho. Esse é o motorque põe o “Mar Português” em movimento, seja emque sentido for, o camoniano ou pessoano. Mais doque isso, porém, é o motor que move tudo, a forçaque impulsiona o homem a ultrapassar o seu, deoutro modo, modesto limite. Pois que sem ele, a vidaé no máximo “metade de nada”.

Possuidor dessa sua qualidade de sonhar, Portu-gal, na figura de seus heróis – porque, a rigor, não setrata de uma “história” de heróis, senão a de um povoneles encarnada –, entra em conjunção com aquelavontade divina, que necessita do humano para tor-nar-se concreta. Nessa direção é que devem ser li-dos os quarto e nono versos, em que se define otom “sagrado” da escolha.

Escolhido o agente, este lança-se à ação, tendogarantida a certeza da vitória. Por isso é que a se-gunda estrofe, inteira, é constituída por um movi-mento contínuo, iniciado ainda na primeira, e semqualquer interrupção. A fluidez do período, coisaque não se dá em nenhuma das duas outras estro-fes, ambas marcadas pela presença de pausas fortes,como que simula o movimento de uma nau que (ra-pidamente) navega, desconhecendo obstáculos quepresumivelmente poderiam impedir seu caminho.Ou melhor, desconhecendo que existem obstácu-los, já que a vitória tem garantia antecipada. E quan-do existem, como se verá com o mostrengo, consti-

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tuem-se, por antinomia, elementos comprovadoresda determinação que movimenta a empresa. O “des-vendando” do verso quatro indica, pois, a sujeiçãoimposta ao desconhecido, através do qual abre-seem claro o caminho, ambos, o do mar e o da estro-fe.

Finalmente, os dois últimos versos do poema tra-tam do terceiro momento. Se até aí havia-se faladoda ida e das circunstâncias que a preparam, agora setrata da volta. Aquilo tudo que a ida configurou sótem sentido se for encarado como etapa primeirade um processo que se completa – e finda – na vol-ta. Vista em si mesma, a primeira etapa é tão ­so-mente o resultado prático de todo o empreendimen-to feito. Ora, desvinculado das forças que o moti-varam, ainda que sua evidência, o resultado vive porsi mesmo, sujeito, por esse motivo, às leis do tem-po, da vida e da morte.

Só é, portanto, aparentemente paradoxal o mo-vimento para a morte assinalado no verso onze.Cumprido o mar, era de esperar a permanência doresultado dessa ação. Mas não. Quase que sem pau-sa – apenas uma vírgula separa o começo do fim –, overso marca a morte do resultado: o Império estádesfeito. Não há paradoxo, todavia. A rapidez domovimento serve para enfatizar a fragilidade do re-sultado quando tomado em si mesmo, perdidas devista – a expressão é apropriada – suas forças de sus-tentação. Não havia como sustentar-se como fim oque não era senão o começo.

E assim se explica o verso final do poema, taxadonão poucas vezes de enigmático. Realizada pelametade, pois que o mar está cumprido, a obra aguar-

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da sua conclusão. Que não é o a ser desvendado,senão o poder de desvendar. Sem ele, o homem –não foi exatamente o que sucedeu ao Império? –enreda-se no espesso caótico da floresta de símbo-los, tornando-se presa fácil para suas armadilhas. Aobra se concluirá, ou melhor, se completará, postoque não tem fim, não pelos portos e fortalezas queforem reconstruídos, mas pelo reencontro com odesejo de domar o desconhecido. Essa é a grandezapara a qual Portugal é verdadeiramente vocaciona-do, pois tudo o mais é sua consequência. Ser gran-de, pois, é viver esse desejo, não o que ele é capaz defazer, mera e efêmera manifestação de suas ilimita-das possibilidades.

Essa é, em última instância, a Mensagem que Pes-soa envia aos homens de seu tempo e do seu país, eaos demais homens de todos os países e de todos ostempos. É da conjunção das vontades dos deuses edo(s) homem(ns) que nasce a obra. Perdida essavontade por parte do homem, quebrada, pois, a con-junção, a obra, porque incompleta, perecerá. Por-tanto, conta menos a obra que a vontade de realizá-la. É nela, nessa vontade, não na sua manifestação,que reside a grandeza. Promover a dilatação da Fénesse novo Império, ou (o que dá no mesmo) nesseImpério da Fé, é o recado da Mensagem.

Ora, esse recado está posto sinteticamente nopoema que se acabou de ler, “O Infante”, que funci-ona, por conseguinte, como uma metonímia de todaMensagem. Os três movimentos do poema – o que-rer de Deus e dos homens, a ação movida por essequerer e a obra dele resultante, a inacabada e a porse acabar – são correlatos das três partes em que se

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divide a Mensagem. Mais ainda, o poema apresentano primeiro verso uma espécie de síntese da síntese,ao vazar-se em estrutura tripartite. O mar, de queali não se trata, pode ser percebido na fluidez dessaestrutura, que apesar de conter três orações, desen-volve-se em contínuo, sem que nada interrompa seupercurso. Há apenas leve e ritmada pausa proporci-onada pela presença simétrica das vírgulas, tal e qualo balanço no mar.

Poema síntese, “O Infante” põe-se como portoinicial, donde a navegação será deslanchada. Não éde estranhar que seja assim. Se no poema dedicado aD. Dinis, o mar é antes de tudo uma intuição poéti-ca, aqui ele é o alvo de uma intuição científica “ se éque se pode chamá-la assim. O “sagrou-te” do versoquatro obriga uma aproximação um tanto quantoinvoluntária com “Sagres”, a escola náutica onde seanteviu a “terra inteira (...)/ surgir redonda”. Poéti-ca ou científica, é o que parece propor Pessoa, a in-tuição vem de fonte única, qual seja a conjunção dosquereres divino e humano, através da qual nasce aobra, que se revela, quando revelada, produto dessaintuição. De fundo poético ou científico, a intuiçãoé o meio privilegiado pelo qual se instrumentaliza oprocesso de desvendamento da floresta de símbo-los.

Prova-o estruturalmente “Mar Português”. Aseguir “O Infante” encontra-se o poema “Horizon-te”, seguramente o mais carregado de motivaçõesocultistas dessa parte do livro. É aí, como já se ante-cipou, que se precisa a definição de sonho, que é aaspiração de ver o que está para além do visível. Por-tanto, seja intuição poética, seja intuição científica,

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ambas querem o invisível. É o que a construção dopoema magistralmente mantida em eixo duplo apre-senta. E assim as “naus da iniciação” deslizam, si-multaneamente, pelas ondas de dois mares distin-tos, mas com objetivo único: dissipar o nevoeiro queescondem as formas perfeitas. Leia-se o poema “Ho-rizonte”.

Ó mar anterior a nós, teus medosTinham coral e praias e arvoredos.Desvendadas a noite e a cerraçãoAs tormentas passadas e os mistérios,Abria em flor o Longe, e o Sul sidérioSplendia sobre as naus da iniciação.

Linha severa da longínqua costa –Quando a nau se aproxima ergue-se a encostaEm árvores onde o Longe nada tinha;Mais perto, abre-se a terra em sons e cores:E no desembarcar, há aves, flores,Onde era só, de longe a abstrata linha.

O sonho é ver as formas invisíveisDa distância imprecisa, e, com sensíveisMovimentos da esperança e da vontade,Buscar na linha fria do horizonteA árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte –Os beijos merecidos da Verdade.

O mar, seja o de água, seja aquele de que se diráadiante não ter tempo nem espaço, é sempre o mes-mo, como que à espera daqueles que se disponham aalcançá-lo, e terem, como recompensa, beijos mere-

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cidos. Para que se tenha esse merecimento, todavia,é necessário enfrentar a cerração, que se põe comobarreira, a impedir a passagem do real para o seuavesso.

Por conseguinte, a tarefa primeira que o homemtem diante de si é a de desvendar a floresta de sím-bolos, que, cerrada, veda a passagem, e a tudo ocul-ta. Mas esse outro lado existe, e sua realidade nãopode ser confundida com a realidade da cerração,que é só obstáculo a ser vencido. Tarefa gigantesca,o desvendamento requer seres especiais, porque setrata de uma tarefa cujo procedimento básico é osubmeter o homem a uma série de provações, poisque a recompensa, os beijos merecidos, são vendi-dos pelos Deuses. Nunca são dados de graça. A che-gada ao outro lado é consequência do esforço des-prendido na jornada, esforço que resulta do querer.

Ora, perdido o querer, tudo volta a ser cerração,pois que a obra não vive senão pelo impulso deleemanado. Abandonado pelos Deuses, pois que es-tes já não encontravam nele ressonância para o seuquerer, o homem vê-se tragado pelo nevoeiro, ondetudo se apresenta fragmentado – “tudo é disperso,nada é inteiro” –, portanto sem sentido. O desven-damento, movido pelo querer, opera, pois, uma cons-trução de sentido – valha a expressão, ainda que umtanto comum. Retomado o querer, consequente-mente construído o sentido, o nevoeiro volve-sedefinitivamente horizonte. E o homem – não todo,só aquele que ousou –, agora depurado e iniciadonas formas superiores, pode ver o invisível. Nãomais como sonho, mas como a mais cristalina dasrealidades, que se entrega em beijos da Verdade.

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Como se vê, a comparação com a “Ilha dos Amo-res”, o episódio mítico-erótico do poema camonia-no, é praticamente inevitável. Tal inevitabilidade,porém, ocorre menos pelo que iguala os dois mode-los do que aquilo que os diferencia. Com efeito,embora durante o casamento coletivo entre nautase ninfas, seja dito que

Com palavras formais e estimulantesSe prometem eterna companhia,Em vida e morte, de honra e alegria.(Lus. IX, 84),

O poema não faz com que se perceba a evidênciadesse contrato, para além do próprio episódio. Istoé, o fato de os navegadores terem sido transforma-dos em companheiros eternos das ninfas – portan-to em semideuses – não é o bastante para que seucomportamento seja modificado, passando a agir sobo efeito dessa nova condição. Finda a “aula” sobre a“Máquina do mundo”, em que se confirmam previ-sões de muito antes formuladas, os navegadores re-tornam ao real empírico, com se tudo não houverasido mais que rápida e ilusória visagem. Assim, o atode ter visto o invisível não parece tê-los transfor-mados em homens superiores, pois que esse atomostrou substancialmente aquilo que já se sabia, quese previa – a marcha irreversível do império em dire-ção à glória. E o narrador, além disso, não parecemuito empenhado em fazer comentário, ao atribuiro caráter de ficção ao episódio.

Em Pessoa, ver o invisível é destinação final. Sub-metido a árduo processo de aprendizado, através

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do qual se aperfeiçoa pela dor vivida no ato de des-vendar, o homem – aquele que é mais que “besta sa-dia” não custa repetir – descortina o horizonte, ondeo símbolo perde finalmente sua função, pois a coisadiz de si por si mesma. E tanto faz que seja o mar dolado de cá ou do outro lado de lá do real. O proces-so é o mesmo. Diferentemente da “Ilha dos Amo-res”, cujas florestas veem trocar-se “famintos beijose afagos tão suaves”, tudo inflamado em prazerespor Vênus, as ilhas pessoanas oferecem beijos daVerdade, estes não mais dirigidos ao corpo, mas fun-damentalmente à alma.

A “Ilha dos Amores”, pois, pode e deve ser lidacomo “intertexto” de “Mar Português”, uma vez queé patente o diálogo entre eles. Diálogo que – nempodia ser diferente – leva mais à diferença que à se-melhança. E não é difícil entender porquê. Para Ca-mões, os lusitanos já são semideuses. Eles carregamem si a convicção de que podem – porque já o de-mostraram – fazer mais do que promete a força hu-mana. Serem recebidos pelas ninfas e com elas casa-rem-se significa tão somente terem reconhecida suacondição de seres superiores, por isso merecedoresda prazerosa recompensa. Por isso também é que,passado o episódio, não se lhes nota qualquer mo-dificação. É que, semideuses que são, já nada lhespode ser acrescentado, além dessas divertidas pau-sas para descanso do guerreiro. Em Pessoa, trata-sede reerguer o semideus caído em miséria e descren-ça. A convicção camoniana encontra-se diluída emnevoeiro em Pessoa. Daí que a tarefa primeira seja ade desvendá-lo. Vencido o nevoeiro, todavia, o se-mideus reaparecerá, agora navegador de outros ma-

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res, sem os quais mar nenhum pode ser singrado.Isso posto, é hora de voltar ao “Horizonte” de

Pessoa, para tornar mais precisa suas relações estru-turais com o poema que lhe antecede “O Infante”.Já se demonstrou que “O Infante” ocupa o portalde “Mar Português” porque é uma síntese não sódessa parte, mas também de todo livro. Eles findam– livro e poema – afirmando a convicção de que éiminente a chegada de novos tempos, mais perfei-tos que aqueles já vividos e mais definitivos. Essestempos estão à vista, no horizonte.

Apesar de o último poema chamar-se “Nevoei-ro”, o livro não acaba, como querem alguns, em ce-ticismo. O verso final “É a Hora” desenha-se clara-mente como o momento do salto. O nevoeiro é,assim, condição apropriada para a mudança, nãoobstáculo a impedi-la. O poema “Horizonte” cum-pre essa mesma função em relação a “O Infante”. Oúltimo verso deste, “Senhor, falta cumprir-se Por-tugal!”, não pede aquela interrupção que costumamarcar o fim de um poema, na qual o leitor se rear-ruma para enfrentar o seguinte. No caso, trata-seapenas de leve pausa, como aquela em que o barco,tudo pronto, espera a dissipação do nevoeiro parapoder atracar, absolutamente seguro de que o por-to está a sua frente. A proximidade entre o versofinal e o título do poema seguinte como que impe-de o leitor de demorar-se na pausa que se põe entreeles, que, aqui, seria o aspecto dito enigmático dessePortugal por se cumprir. Atingido o Horizonte, di-visa-se nitidamente aquilo que a cerração (e o mis-tério) encobria: assim como a árvore que ganha de-finição de contornos à medida que o barco se apro-

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xima da praia, lá está, inteiro, o Portugal por se cum-prir. Vencida a imprecisão da distância (e do nevoei-ro) desvela-se o invisível, e o navegador está final-mente pronto para entregar-se aos beijos da Verda-de.

O enigma dura enquanto dura a pausa. Que serámaior ou menor conforme os “Movimentos da es-perança e da vontade”, através de que se movimen-tam os barcos. Sem eles, os movimentos, ainda queesteja à vista, o horizonte jamais será alcançado, nemmesmo quando a descoberta parece tratar-se de obrado acaso – é como se lê no poema “Ocidente”. Comeles, toda pausa é tão-somente passagem para o por-to seguro.

O Portugal por se cumprir está no “Horizonte”,que funciona, desse modo como a “praia” do poe-ma “O Infante”. O procedimento para se atingi-la(o) é o mesmo que fez cumprir-se o mar. Daí a vin-culação estrutural entre os dois. “O Infante” requer,como que para completar-se, a proximidade de “Ho-rizonte”. Assim é que todo o “Mar Português” – etambém Mensagem – será o desenvolvimento dessadualidade. Aí, os dez outros poemas funcionam si-multaneamente como ilustração do modo pelo qualo mar se cumpriu e, por isso, como irá cumprir-sePortugal. Os heróis escolhidos mostram através desuas ações no limite humano que, embora não ascompreendam no todo, o homem só se faz homemno ato de desvendar. É o ato, em funcionamento,que o mar cumprido mostra.

Através dele, tal qual didático professor, opoeta vai mostrando como há de se atingir aqueleoutro mar, império da alma.

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A trajetória desse ritual iniciático começa em“Diogo Cão”. Pelo que o projeto poético pretende,não poderia ser outro que não ele. É que, ainda quehaja vultos maiores que Diogo Cão, mero navega-dor, ele é o desvendador por excelência. No seu caso,e diferente dos outros, não importa o que fica des-vendado, mais o que resta por desvendar, obra sem-pre inacabada, dada a pequenez do homem.

Se é pequeno o homem, grande é o esforço, po-rém. É ele – apenas nova rubrica para aqueles “mo-vimentos da esperança e da vontade” – que impele onavegar para diante, sem que haja algo específico ase encontrar. Em “Diogo Cão”, melhor do que emqualquer outro herói, vale a fórmula de Agostinhoda Silva (1959, p.21): “o que vale na empresa de bus-car é a busca e não o encontro”. Sabedor de que oato de navegar nunca finda, porquanto viver é des-vendar, o navegador não se contenta com o achado,que abre sempre caminho para o por achar.

Mas a busca – o homem é pequeno – tem umfim:

E a cruz ao alto diz o que me há na almaE faz a febre em mim de navegarSó encontrará de Deus na eterna calmaO porto sempre por achar.

Como já se sabe que “Deus” em Pessoa não é pro-priamente a divindade conhecida dos cristãos, essa“eterna calma de Deus” aponta para uma espécie deparaíso de sentido, já visto no “Horizonte”, de ondetodo o desconcerto será para sempre banido. Aí,onde o símbolo e a coisa tiveram vencida a distância

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que os separava, já não haverá o que desvendar. Seráainda navegador seguramente. Mas um navegadorde mares que não têm tempo nem espaço.

Os outros heróis de “Mar Português” cumprempapel semelhante ao desempenhado por Diogo Cão.Com uma significativa diferença, todavia. Enquan-to estes “acharam” seu porto – Bartolomeu Dias, ocabo; Fernão de Magalhães, seu estreito e Vasco dagama, o caminho da Índia – aquele não achou nadaque contivesse sua ânsia, e por isso continua a pro-curar. E a diferença acentua-se ainda mais quandose observa que os poemas que tratam desses heróispodem ser facilmente lidos como uma espécie denecrológio, chegando um deles a chamar-se “Epitá-phio”. Não assim “Diogo Cão”. Vazado na primeirapessoa, o poema causa forte impressão de que Dio-go Cão ainda anda a vagar, febrilmente firme, à catade seu definitivo porto. Se a hipótese estiver corre-ta, será esta a razão: portos achados, porto por achar.

Mas os portos achados, já se sabe, não possuemfinalidades em si mesmos. Só valem na medida emque representam o esforço – lembre-se Diogo Cão– empregado na sua realização. É por isso, e não pro-priamente pelo resultado final, que Vasco da Gamaé alçado à condição de Deus. E é por isso tambémque Fernão de Magalhães, mesmo morto, pode zom-bar dos titãs, já que a ousadia da alma, perdido ocorpo, a faz conduzir as naus para “o resto do fimdo espaço”. Finalmente, o mesmo se dirá de Barto-lomeu Dias, o Capitão do Fim, desvendador de tor-mentas, abridor de horizontes.

Independente, pois, da obra que realizaram, es-ses heróis, todos eles irmanam-se na “febre de nave-

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gar”. É ela, e não qualquer outra coisa, que os fazmover-se para adiante, e contra a qual até a morte évencida. E é muito curioso que em nenhum dessestrês últimos poemas de que se está tratando – reca-pitule-se: “Epitáphio de Bartolomeu Dias”, “Fernãode Magalhães” e “Ascensão de Vasco da Gama” – seobservam referências explícitas às obras por eles re-alizadas. No caso, não tanto absurdo nos dias quecorrem, de um leitor que desconhecesse por com-pleto a história de Portugal, sairia da leitura dospoemas quase com a mesma quantidade de infor-mações com que chegou. É que tais informaçõescontam pouco para a concepção do mundo formu-lada em “Mar Português”, como exaustivamente jáse observou: é que conta o dobrar, mas que a dobra;o buscar, mas que a busca; conta, enfim, o por achar,mas que o achado. Mortos ou vivos, os heróis en-contram-se nessa ânsia.

Visto a partir daí, o poema “Os Colombos” – opoema dos anti-heróis – avulta em desdém. Por maisgrandiosa a obra que essa outra categoria seja capazde realizar, será sempre obra menor, porquantomove­a apenas a pragmática do encontrar, e nãoaquela luz que, ao produzir a obra, projeta o brilhode sua força para além da construção, em busca dohorizonte verdadeiro. Que nunca – já se disse – seconfunde com a obra. Para aquela categoria, a obraé o fim do navegar; para essa outra, iluminada, a obraserá sempre o navegar do Fim.

Mas há ainda um outro tipo de herói, proposita-damente deixado para o fim, que se destaca dessesoutros por uma condição, o anonimato, de sumaimportância para compreender-se a ideia de eleição

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que se evidencia em Mensagem. Não se trata mais delouvar o barão assinalado, mas o homem comum, tãoiluminado quanto aquele.

Esse procedimento não é – esclareça-se – origi-nalidade de “Mar Português”. Na primeira parte deMensagem, “Brasão”, Pessoa põe Nunálvares Pereirarepresentando a coroa, como a marcar o ser rei comoum dom que ultrapassa o dispositivo legal. Rei semreino, Nunálvares é majestoso, mais que majestade,por escolha soberana da natureza.

E assim é também o homem do leme, maneirapela qual é apresentado o navegador anônimo queenfrenta – e vence – o mostrengo. Ora, esse poema,como já se antecipou, funciona como a espinha dor-sal de Mensagem, desempenhando o mesmo papelque o Adamastor exerce n’ Os Lusíadas.

Em níveis estruturais, inclusive. Como sugereScherner (1988), se se contar os poemas “D. João, oprimeiro” e “D. Philippa de Lencastre”, incluídosem “Brasão” sob a rubrica “Sétimo (I)” e “Sétimo(II)” como um só, sendo o segundo apenas desdo-bramento do primeiro, os quarenta e quatro poe-mas de Mensagem ficam reduzidos a quarenta e três.“O Mostrengo” ocupará, nessa contagem, o centrodo livro, ficando dispostos vinte e um poemas decada um de seus lados. Ora, sabe-se que Pessoa seinteressava por numerologia; impressionava-o opoder simbólico dos números. E Mensagem é o me-lhor exemplo disso, como esclarece Moisés (1989),em sua introdução à edição brasileira.

Entre as razões – porque há outras, seguramente– pelas quais o livro deve ter seus quarenta e quatropoemas contados como quarenta e três está a de ele

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dividi-los em duas séries de vinte e um, número cujasimbologia em muito se aproxima das concepçõesali expostas. Segundo Chevalier e Gheerbrant (1990,p. 959), o vinte e um é o símbolo da maturidade:

Na Bíblia, o 21 é o número da perfeição por ex-celência (...) Simboliza a sabedoria divina, reflexo daluz eterna ... por sua pureza tudo atravessa e penetra(...) O jogo simbólico do Tarô mostra a virtude tota-lizante deste número muito bem, número que é o daúltima carta numerada, denominada O Mundo, e quedesigna a realização, a plenitude, o objetivo alcança-do. (...) 21 é ímpar: é esforço dinâmico da individuali-dade que se elabora na luta dos contrários e abraça ocaminho sempre renovado dos ciclos evolutivos. (Osgrifas são feitos pelos autores.)

Cravado no meio, “O Mostrengo” diz-se comobarreira entre um percurso feito e um outro porfazer, obstáculo que impede o transpôr-se de umciclo evolutivo – mantenha-se a nomenclatura dacitação – para outro mais perfeito. De fato, se serecusasse por abstrusa a hipótese dos quarenta equatro poemas serem contados como quarenta e três,ainda assim “O Mostrengo” estaria antes de um con-junto formado por vinte e um poemas, o que refor-çaria a ideia dos dois ciclos, o segundo mais perfeitoque o primeiro.

Realizado o primeiro, Portugal depara com oobstáculo que barra a entrada para o ciclo da matu-ridade, para a era da perfeição. Será por isso, muitoprovavelmente, que a parte anterior a “O Mostren-go” hesite entre o vinte e um e vinte e dois, hesita-

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ção que explicita o não se ter atingido a perfeição.O vinte e um posterior é, portanto, o caminho de-finitivo da perfeição. Para trilhá-lo, porém, é ne-cessário superar o obstáculo, barreira a dividir o antese o depois. Proprietário do desconhecido, o Mos-trengo impõe-se pelo terror, desafiando o intruso aprovar o limite de sua audácia.

Tarefa por demais grandiosa, não cabe a um he-rói – ainda que barão assinalado – realizá-la indivi-dualmente. Por isso, o homem do leme. Seu anoni-mato, ao tempo que o esconde, melhor o revela, poisfala de uma determinação que o transcende mas nelese sintetiza. Sua anônima solidão é, desse modo,apenas aparente, porque, embora sozinho, ele estáacompanhado por uma multidão. Para dizer de umamaneira melhor, mais que acompanhado, ele é essamultidão, cuja vocação para o infinito supera omedo da morte. Assim o homem do leme refere-sea todos e a nenhum em particular. É um homem,sim, mas esse homem é a imagem de um povo intei-ro, que tem na vontade de seu Rei e na determina-ção de seu agente seus traços identificadores. Emlugar desse homem poderia estar qualquer outroportuguês, que todos se igualam na ânsia de des-vendar. Domar o Mostrengo é encontrar a chave daperfeição. Essa busca é tarefa coletiva.

Embora “O Mostrengo” seja em todo livro o“episódio” que melhor se aproxima d’ Os Lusíadas,ainda assim há notáveis diferenças. Se ali o horrorinicial causado pelo Adamastor pouco a pouco cedelugar à compaixão por seu desespero passional,como se tal desespero levasse à conclusão de quequem ama assim não pode ser inteiramente mau, aqui

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não se desfaz a dualidade entre mal e bem. É comoo mal puro em si mesmo que o Mostrengo é enfren-tado (e vencido).

Outro aspecto a diferenciá-los é que enquantoem “O Mostrengo” o diálogo é com o homem co-mum, anônimo, n’Os Lusíadas ele se dá com oGama, o barão assinalado. Não é difícil compreen-der a diferença. Já no primeiro verso de seu poema,Camões define sua concepção de história, a qual,resultando de grandes atos, vê o anônimo comomero figurante. Pessoa, por sua vez, contemporâ-neo da modernidade, sabe que a história não podeser reduzida a esquema tão simples. Ao por o ho-mem do leme em confronto com o mostrengo, Pes-soa promove uma ampliação do conceito de “Lusí-ada”. E aí ocorre curiosa inversão: Se Os Lusíadasapresentam a individualização do coletivo pelo ba-rão assinalado, Mensagem, ao contrário, coletivizao individual pelo anonimato. No primeiro caso, ocoletivo será sempre individual; no segundo, o in-dividual é o coletivo.

Quaisquer que sejam as diferenças, todavia, emtermos estruturais ambos exercem a mesma função,qual seja, a de representar o último obstáculo paraque se atinja o Fim do Mar. De ambos os mares, odo real no caso de Camões e o do avesso no de Pes-soa.

Ultrapassando o Meio (do poema e do percur-so), isto é, vencido o obstáculo final, “as naus dainiciação” já vislumbram o Horizonte: “Vejo entre acerração teu vulto baço / que torna”. Para cumprir-se a demanda, porém, muito há ainda que fazer (esofrer), pois, como já se sabe, a desgraça é sempre o

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preço da glória.Anteposto aos dois últimos poemas dessa parte

do livro, “A Última Nau” e “Prece”, que só dizemdesse mar outro para além do mar, o poema que levao nome do sonho e da ânsia, “Mar Português”,(re)afirma o doloroso trabalho implicado na traves-sia para a glória: “Quem quere passar além do Boja-dor / Tem que passar além da dor”. Desvendar omistério, ou seja, conhecer é o ato mesmo que faz ohomem diferente da “besta sadia”. Ao elevá-lo a umacondição superior de aperfeiçoamento espiritual emoral, esse ato permite-lhe transitar para zonas ina-cessíveis àqueles que não ousam enfrentar o mos-trengo, vestimenta habitual do mistério. Conheceré, portanto, sofrer. O desconhecer, já se sabe, nãopode se pôr como alternativa, porque, embora guar-de o homem do sofrimento, faz dele o “cadáver adi-ado”, o que o equipara a seres inferiores.

A “mísera sorte” e a “estranha condição” que con-denam o homem à insatisfação eterna, de que se la-menta o velho do Restelo, recebem tratamentooposto em Pessoa. Se quanto ao velho elas são acondenação de que o homem não pode escapar, emPessoa esse mesmo homem vence o estado que oquer “bicho vil e tão pequeno”, enredado para sem-pre na cerração da floresta de símbolos. Ao invertera tese do velho do Restelo, o poema se põe comouma espécie de advertência: a travessia do homempara a glória, ou seja, para o mar que está do outrolado – destinação final –, reserva-lhe a dor comocompanhia inseparável. Mas a advertência é logo des-locada por uma firme convicção: infinitamente su-perior, a glória vale a desgraça.

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GARCEZ, Maria Helena Nery. “Do desconcerto e do concerto domundo em Mensagem” In: –. Trilhas em Fernando Pessoa e Máriode Sá-Carneiro. São Paulo: Moraes, 1989.

Firmada a lição de que é esse (contente) descon-tentamento que impele o homem a seguir adiante, éhora enfim de aportar. Agora, acabado o mar deCamões, as “naus da iniciação” navegam por outraságuas, aquelas sem tempo nem espaço, onde não hálugar para a desarmonia. Assim, o que antes se vis-lumbrava no interior da cerração como vulto Baço,agora é visão nítida e perfeita: “surges ao sol em mim,e a névoa finda”. E eis achado o verdadeiro portopor achar. É só querer. É só acreditar. E todo o Lon-ge é perto.

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O outro livro das maravilhas é otitulo extremamente feliz dadopor Francisco Ferreira de Lima àsua atilada análise da Peregrina-ção de Fernão Mendes Pinto –verdadeiro best seller dos sécu-los XVI e XVII, rivalizando mes-mo com o Quixote. Discordandocriteriosamente de estudos ante-riores, neles aponta o defeito deorigem: querer buscar “a inter-pretação de conjunto, mesmo re-conhecendo a impossibilidade defazê-lo”. (...) O caminho por queoptou foi o de fugir à “obsessãototalizadora”, a partir do reconhe-cimento de que a Peregrinação é“um livro do deslumbramento”,como já o qualificara EduardoLourenço.(Cleonice Berardinelli, sobreO outro livro das maravilhas)

Uma obra como a de Gabriel So-ares de Sousa, assim como outrassemelhantes escritas por seuscontemporâneos, presta-se a di-ferentes abordagens, que podemtomá-la, separadamente, comoobjeto historiográfico, etnográ-fico, linguístico ou literário. Umasdas felicidades de O Brasil deGabriel Soares de Sousa é justa-mente a de conciliar essas abor-dagens e beneficiar-se dos cami-nhos que se abrem ao explorar ainterrelação entre a história e aliteratura (relação ainda mais evi-dente no quadro mental do sé-culo XVI, mas que frequente-mente não tem sido evidenciada).(Sheila Moura Hue, sobre O Bra-sil de Gabriel Soares de Sousa)

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Em suma, bem escrito, a ponto de correr orisco de chamar mais atenção sobre si doque sobre o pensamento que veicula ou ascoisas que descreve. E este risco o ensaiode Francisco Ferreira de Lima corre perma-nentemente, dando-nos um sinal inques-tionável de sua maturidade de ofício. Dir-se-ia até que a força do seu estilo guardaum ficcionista ou mesmo um poeta ciosa-mente aninhado nas dobras do ensaísta.

Massaud Moisés

ISBN 978-85-7395-277-3

9 788573 952773

O REAL E O AVESSO