o real é relacional

56
“O real é relacional”: uma análise epistemológica do estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu 1 Frédéric Vandenberghe Tradução de Gabriel Peters Por meio de conceitos e símbolos, buscamos fazer com que uma ordem temporal de palavras corresponda a uma ordem relacional de coisas. S.Langer – Philosophy in a new key “Entidades do mundo - relacionai-vos!” (Emirbayer, 1997: 312). Este poderia ser o lema de uma sociologia relacional 2 . Bourdieu optou por um outro, que contém uma irônica referência a Hegel, ao invés de Marx. Em Meditações Pascalianas, uma meditação sociológica sobre as filosofias do nosso tempo, de Searle a Habermas e Rawls, Bourdieu descreveu a si mesmo como um pascalien (Bourdieu, 1997a: 9). No entanto, acredito que, na medida em que seu “estruturalismo gerativo” 3 (Harker, Mahar e Wilkes 1990: 3) pode ser mais bem compreendido como uma tentativa de transpor sistematicamente a concepção relacional das ciências naturais 1 Publicação original: VANDENBERGHE, Frédéric. (1999), “The real is relational: an epistemological analysis of Pierre Bourdieu’s generative structuralism”. Sociological Theory. 17, 1, pp.32-67. Reimpresso em: ROBBINS, D. (Ed.). Pierre Bourdieu. Vol. II, PP.381-427. Londres, Sage. Gostaria de agradecer a Craig Calhoun, Löic Wacquant, Jeffrey Alexander, Saa Méroe, Bridget Fowler, Frank Papon, Peter Wagner, Steve Woollgar, Mike Lynch, Dick Pels, José Maurício Domingues e Gabriel Peters pelos comentários e críticas construtivas. Não fosse por dois pareceristas anônimos de Sociological Theory, este texto teria a metade de sua extensão, mas também a metade de sua qualidade. 2 Na sociologia conteporânea, o estruturalismo, a análise de redes e a teoria dos sistemas são as principais tradições teóricas que enfatizam a primazia das relações sobre e contra categorias e substâncias. Enquanto Bourdieu baseia-se no estruturalismo e Emirbayer na análise de redes, Fuchs (2001) funde a teoria sistêmica de Luhmann e a análise de redes de White em um provocativo ataque ao essencialismo e realismo. 3 N.T: No original, lê-se “generative structuralism”. Embora tal expressão possa ser considerada, grosso modo, como sinônima da noção de “estruturalismo genético”, mais comum na caracterização do quadro teórico- metodológico de análise da vida social formulado por Bourdieu, o conceito de “estruturalismo gerativo” mobilizado por Vandenberghe foi mantido nesta tradução por parecer mais adequado para evocar a dívida que os alicerces epistemológicos da sociologia bourdieusiana possuem em relação ao racionalismo de Bachelard e ao relacionismo de Cassirer, além de já remeter também à ontologia “gerativista” (característica do realismo crítico) por meio da qual o autor analisa criticamente o pensamento de Bourdieu. Em comunicação pessoal, o próprio Vandenberghe confirmou que esta era a sua intenção ao utilizar a expressão.

Upload: silvio-candido

Post on 18-Aug-2015

268 views

Category:

Documents


38 download

DESCRIPTION

Artigo

TRANSCRIPT

O real relacional: uma anlise epistemolgica do estruturalismo gerativo de Pierre Bourdieu1 Frdric Vandenberghe Traduo de Gabriel Peters Por meio de conceitos e smbolos, buscamos fazer com que uma ordem temporal de palavras corresponda a uma ordem relacional de coisas. S.Langer Philosophy in a new key Entidades do mundo - relacionai-vos! (Emirbayer, 1997: 312). Este poderia ser o lema de uma sociologia relacional2. Bourdieu optou por um outro, que contm uma irnica referncia aHegel,aoinvsdeMarx.EmMeditaesPascalianas,umameditaosociolgicasobreas filosofias do nosso tempo, de Searle a Habermas e Rawls, Bourdieu descreveu a si mesmo como umpascalien(Bourdieu,1997a:9).Noentanto,acreditoque,namedidaemqueseu estruturalismogerativo3(Harker,MahareWilkes1990:3)podesermaisbemcompreendido comoumatentativadetransporsistematicamenteaconceporelacionaldascinciasnaturais 1Publicaooriginal:VANDENBERGHE,Frdric.(1999),Therealisrelational:anepistemologicalanalysisof PierreBourdieusgenerativestructuralism.SociologicalTheory.17,1,pp.32-67.Reimpressoem:ROBBINS,D. (Ed.). Pierre Bourdieu. Vol. II, PP.381-427. Londres, Sage. Gostaria de agradecer a Craig Calhoun, Lic Wacquant, JeffreyAlexander,SaaMroe,BridgetFowler,FrankPapon,PeterWagner,SteveWoollgar,MikeLynch,Dick Pels,JosMaurcioDomingueseGabrielPeterspeloscomentriosecrticasconstrutivas.Nofossepordois pareceristas annimos de Sociological Theory, este texto teria a metade de sua extenso, mas tambm a metade de sua qualidade. 2 Na sociologia contepornea, o estruturalismo, a anlise de redes e a teoria dos sistemas so as principais tradies tericas que enfatizam a primazia das relaes sobre e contra categorias e substncias. Enquanto Bourdieu baseia-se no estruturalismo e Emirbayer na anlise de redes, Fuchs (2001) funde a teoria sistmica de Luhmann e a anlise de redes de White em um provocativo ataque ao essencialismo e realismo. 3N.T:Nooriginal,l-segenerativestructuralism.Emboratalexpressopossaserconsiderada,grossomodo, comosinnimadanoodeestruturalismogentico,maiscomumnacaracterizaodoquadroterico-metodolgico de anlise da vida social formulado por Bourdieu, o conceito de estruturalismo gerativo mobilizado porVandenberghefoimantidonestatraduoporparecermaisadequadoparaevocaradvidaqueosalicerces epistemolgicosdasociologiabourdieusianapossuememrelaoaoracionalismodeBachelardeaorelacionismo deCassirer,almdejremetertambmontologiagerativista(caractersticadorealismocrtico)pormeioda qualoautoranalisacriticamenteopensamentodeBourdieu.Emcomunicaopessoal,oprprioVandenberghe confirmou que esta era a sua inteno ao utilizar a expresso. paraoterrenodascinciassociaisumatentativaquetomaaformadeumasnteseoriginal entreasociologia(Weber,Marx,DurkheimeMauss[Brubaker,1985:747-749],mastambm Elias, Mannheim e Goffman), a fenomenologia (Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty), a filosofia lingstica(WittgensteineAustin)e,porltimo,masnomenosimportante,aepistemologia racionalistaneokantiana(BachelardeCassirer,mastambmPanofskyeLvi-Strauss), poderamostambm,etalvezdemodoaindamaisadequado,descrev-locomoum bachelardien4.AindaqueainflunciadeGastonBachelardsobreBourdieutenha freqentementeescapadoatenodosacadmicosanglo-americanos,osquaisnoestobem informadosarespeitodatradiofrancesadehistriaefilosofiadacincia,podendoter encontradoosnomesdeBachelard,Koyr,CanguilhemouCavaillsapenasindiretamente, atravsdeseuinteresseemAlthusser,FoucaultouKuhn-cujofamosolivrosobreAestrutura dasrevoluescientficas(Kuhn,[1962]1970)diretamenteinfluenciadoporBachelard-, pretendovoltaraosanosformativosdosocilogofrancs(finaldosanos60einciodos70, quando suas idias seminais estavam em gestao) para mostrar que a sua teoria social pode ser maisbementendidacomoumatentativadetranspor,demodosistemtico,oracionalismo aplicado de Bachelard do reino das cincias naturais para o domnio das cincias humanas5. 4 Bourdieu no um pensador sincrtico, mas sinttico e hertico. Ele se apia em Durkheim, Marx, Weber e outros, mas,namedidaemqueoscorrigecriticamente,poderamosdescrev-lotambmcomoumdurkheimianoanti-durkheimiano, um weberiano anti-weberiano ou um marxista anti-marxista. Poderamos at dizer que ele pensa com Althusser contra Althusser e contra Habermas com Habermas, mas no e essa provavelmente a nica exceo que ele pensa com Bachelard contra Bachelard. 5Atrecentemente,amaiorpartedoscomentadoreshavianegligenciadoaimportanteinflunciadatradio francesadehistriaefilosofiadacinciaemgeral,bemcomodeBachelardemparticular.Wacquantnotou-a (1996b:152)e,enquantoisso,Swartz(1997:3136)ePinto(1998:22-24)corrigiramafalta.EmCultureand Power,SwartzintroduzsuaanlisedainflunciadeBachelardsobreBourdieunotandoquemuitasdas preocupaestericascentraisdeBourdieupermanecem,decertomodo,obscurasparaboapartedassociologias britnicaeamericanaanoserquesejamentendidasluzdessatradiofilosfica(ibid:31).AntesdeSwartze Wacquant,Raynaudtambmnotoutalinfluncia,masinfelizmentedesembocounacaracterizaoredutivada sociologiadeBourdieucomoamodalidadedistintadomaterialismovulgar(Raynaud,1980:93).Alexander (1995), por sua vez, tambm assumiu essa caracterizao parcial, mas sem notar a veia bachelardiana no pensamento deBourdieu.Deoutromodo,estoucerto,elenoteriaatacadoBourdieuporignorarafilosofiaps-positivistada cincia. Deixando-se de lado a forma altamente polmica e algumas de suas desconfianas, as quais so devidas ao seuconhecimentosuperficialdascomplicaesfilosficasepolticasdocampofrancsdeproduocultural(para umacrticaextremamenteviolentadeAlexander,verWacquant,1996c),ametacrticaqueAlexanderdirigea Bourdieu pode ser justificada. Dito isto, quero adicionar que, ainda que a sua leitura sintomtica seja uma dentre aspossveis,nocertamenteaquelaqueeufavoreceriaemboraeutenhaapresentadoumametacrticadateoria crticadeAdornobaseadaemumaleiturahabermasianadeTheoreticalLogicinSociology,deAlexander (Alexander, 1982 1983), metacrtica que, assim, algo semelhante sua crtica de Bourdieu (Vandenberghe, 1998: 55-103).MasBourdieunoAdorno.SeAdorno(semsuasnuanasteolgicas)podeserlidocomoumBourdieu hiper-determinista, ler Bourdieu como se se estivesse lendo Dialtica do Esclarecimento um tanto reducionista. Na realidade, leio Bourdieu de modo voluntarista, como contrapartida sociolgica e preldio teoria normativa da ao comunicativa de Habermas. Enquanto isso, o nvel de ataques a Bourdieu alcanou um histrico fundo do poo com Entretanto,ofocosobreBachelardnodeveobscureceroquantoBourdieudeves anlisesproto-estruturalistasdoprincpiorelacionalnascinciasmodernas(damatemtica fsicaelingstica)realizadasporErnstCassirer6.Defato,oncleoduro(Lakatos)meta-cientfico e no-falsevel do programa progressivo de pesquisa de Bourdieu formado por uma sofisticadasnteseentreoracionalismodeBachelardeorelacionismodeCassirer.Juntas,tais perspectivasformamametateoriadoconhecimentosociolgicoquefundamentaegeraateoria sociolgicadoscamposdeproduo,circulaoeconsumodebensculturais.Essametateoria estruturalistadoconhecimentonaturalista,masnopositivista.Assimcomorepresentantes contemporneosdorealismocrtico(Harr,Bhaskar,Archer,etc.),Bourdieuadvogauma interpretaono-positivistadaepistemologiadascinciasnaturais,reformulando-a sistematicamentedemodotalqueumacinciasocialnaturalistasetornepossvel7.Apesarde seusataquesnominaisafilosofiasrealistas(empiricistas)esubstancialistas(no-relacionais)da cincia, as quais no levam a cabo a ruptura epistemolgica com as concepes espontneas da

apublicaodeumpanfletoraivosoporumadasex-adeptasdeBourdieu.EmLesavantetlepolitique, perversamentesubintituladoEssaisurleterrorismesociologiquedePierreBourdieu[Ensaiosobreoterrorismo sociolgico de Pierre Bourdieu], Verdes-Leroux, uma historiadora que j pesquisou o partido comunista e a extrema direita,nomaisapontaparaasressonnciasalthusserianasnotrabalhodeBourdieu,mastraaumparalelodireto entreBourdieueLninnoopensador,masottico,ohomem.Pegandoembalonarecentepopularidade(ou impopularidade)deBourdieucomoareencarnaodointelectualtotalsartrianoeporta-vozdaesquerdaradical (aesquerdadaesquerda),oenormesucessocomercialdeumdosltimoslivrosdeBourdieu,Ladomination masculine(Bourdieu,1998b)-umbestsellerabsolutoquealcanouaquintaposionaparadadelivrosmais vendidosduranteovero,incitouseusvelhosinimigos(Mongin,L.Ferry,Finkielkraut,Debray,Grignon,etc.)a juntarem-se ao burburinho polmico e a levarem a cabo uma srie coordenada de dispersos ataques ad hominem. No mesmoesprito,NathalieHeinich(2007),outraex-estudantedeBourdieu,traourecentementeparalelosentreos panfletos de Bourdieu e a propaganda fascista.6 Bourdieu, que publicou Cassirer nas colees que ele dirigiu nas ditions de Minuit, possivelmente o socilogo mais influenciado pelo autor neo-kantiano de dois modos. Em primeiro lugar, a influncia da filosofia das formas simblicas de Cassirer na teoria da violncia simblica abertamente reconhecida e discutida por Bourdieu no seu principaltratamentodessetemacentraldeseutrabalho(Bourdieu,1977b:405-411).Nodiscutireiessaherana cassireriana aqui, mas concentrarei minha exegese na concepo relacional de conhecimento de Cassirer, mostrando comoBourdieudesenvolve-aemdireoaumagrandiosateoriadaspropriedadesdoscampos.Seriatambm interessante explorar as dvidas de Bourdieu em relao a Panoksfy, que foi colega de Cassirer no Instituto Warburg de Hamburgo; infelizmente, essa anlise ter de ser postergada para outro momento. 7Porrealismocrtico,umadenominaoqueemergiudacombinaoentreasexpressesrealismo transcendentalenaturalismocrtico,merefiroaummovimentoanti-positivistanafilosofiaenascincias humanas,movimentodeorigembritnicalideradoporRoyBhaskareinspiradonosseuslivrosseminaisArealist theoryofscience([1975]1978)eThepossibilityofnaturalism(1989a).DiferentementedorealismodePutname VanFraassen,oqualumaformaderealismodaverdade,orealismocrticoumaversodorealismodas entidades. Se o anterior tem como foco a verdade putativa das teorias, o ltimo est preocupado sobretudo com a realidade de entidades, estruturas, mecanismos gerativos e poderes causais. Para uma introduo geral filosofia de Bhaskar, ver Bhaskar (1989b); para uma boa seleo das leituras essenciais do movimento realista, ver Archer et al. (1998);paraumaamostradeestudosrealistasemteoriasocial,verBenton(1977),KeateUrry(1982),Outhwaite (1987), Layder (1990), Archer (1995) e Sayer (1992). realidade8,gostariademostrarquesuametacinciasociolgicarepresentaumaverso racionalista do realismo crtico. Aindaqueeuseja,demodogeral,simpticoabordagemdeBourdieu,gostariade formular uma crtica positiva do racionalismo e tentar argumentar a favor da necessidade de uma conversofilosficadoracionalismoparaorealismonaapropriaodaobradesteautor.Uma vezqueabasefilosficaestejaesclarecida,passareiaumareconstruosistemticada conceporelacionalqueformaoncleodoestruturalismogerativo,demodoainvestigarem maior detalhe como, na trilha de Bachelard, Bourdieu diz adieu a relatos empiricistas da cincia econquista,constrieverificaosfatoscientficos.Nessecontexto,tambmexporeiofamoso conceito de habitus - o qual, ao atualizar as estruturas, relaciona os campos s aes e estabelece amediaoentreambos-comoumatentativabachelardianadetranscenderantinomias filosficas, tentando conferir a este conceito uma inflexo voluntarista mais alinhada inteno polticaemoralqueanimaateoriacrticabourdieusiana.Partindodestaanlisemetatericada teoria do conhecimento sociolgico, analisarei em seguida a teoria geral dos campos de Bourdieu comoumaaplicaodomodorelacionaldepensamento,apresentandoumrelatoaltamente formalizado dos princpios e propriedades gerais dos campos e subcampos. Para ilustrar como a suateoriadoscamposrepresentaumaaplicaosociolgicadaconjunoentreasmetateorias racionalistaerelacionistadascinciasnaturaisdeBachelardeCassirerrespectivamente, reconstruireiosprimeirosestudosdoscamposreligiosoecientficorealizadosporBourdieu, examinandosuasressonnciasweberianasemannheimianas.Finalmente,concluireicomuma avaliao geral do programa de pesquisa do Centro de Sociologia Europia e uma questo final sobre tica. 1.A POSSIBILIDADE DO NATURALISMO Emquemedidaasociedadepodeserestudadadamesmaformaqueanatureza?Sem exagero,possvelafirmarqueaquestoacercadapossibilidadedonaturalismonascincias 8 Nos seus estudos mais antigos, Bourdieu sempre utilizava o termo realismo como uma Kampfwort para atacar o realismo ingnuo dos empiricistas. Tardiamente, entretanto, o adjetivo realista adquiriu conotaes mais positivas, que pareciam sugerir um possvel conhecimento do movimento realista na filosofia anglo-sax das cincias naturais e sociais. Ver, por exemplo, La noblesse dEtat, onde Bourdieu descreve sua epistemologia como inseparavelmente construtivistaerealista(1989:186),ouLamisredumonde,semdvidaolivroqueparecemaisdistantedesua insistncia anterior na necessidade de ruptura com as concepes e pr-noes espontneas do social, livro em que ele fala de uma construo realista (1993a: 915-916).sociaisconstituioproblemacentraldafilosofiadascinciassociais(Bhaskar,1989a).Desdea duplafundaodasociologiaporAugusteComteeWhilhelmDilthey,ahistriadesteassunto temsidopolarizadaemtornodeumadisputaentreduastradies,gerandorespostasrivaisao enigma. Uma tradio naturalista, cujos antecedentes filosficos imediatos esto nos trabalhos de Hume,Comte,Mill,MachedoCrculodeViena,defendequeascinciasesto(efetivaou idealmente) unificadas na sua concordncia com os princpios positivistas, baseados, em ltima instncia,nanoohumianadeleicomoasucessoregulardedoiseventosobservveis.Em oposio ao positivismo, uma tradio anti-naturalista, que encontra sua ancestralidade filosfica em Vico, Kant, Hegel, Dilthey, Husserl e Wittgenstein, postulou uma clivagem de mtodo entre as cincias naturais e sociais, fundada em uma diferenciao de seus objetos. Para esta tradio hermenutica, o domnio de investigao das cincias sociais consiste essencialmente em objetos significativos, sendo seu objetivo a elucidao do significado de tais objetos. O grande erro que une esses dois antagonistas , como afirma Bourdieu, sua falsa representao da epistemologia das cincias naturais (Bourdieu et al. 1973: 18), isto , a aceitao de um retrato essencialmente positivistadascinciasdanatureza,ou,pelomenos,deumaontologiaempiricista.Defato, desenvolvimentosrecentesnafilosofiadacincia,emparticularaquelesexemplificadosno trabalhodeRomHarr(1970),osquaisRoyBhaskarsistematizousobottuloderealismo transcendental([1975]1978),demonstraramconvincentementequeacinciaefetivamente praticadapeloscientistasereflexivamentereconstrudapelaepistemologianoconformeao cnone positivista9 . As cincias no pretendem chegar a leis universais por meio da generalizao indutiva da sucesso regular de fenmenos observveis, mas antes inteligir o que est por trs ou alm dos fenmenos revelados pela experincia sensorial, de modo a oferecer-nos conhecimentos das estruturasnumnicas(Bachelard)oumecanismosgerativos(Harr)que,dealgummodo, necessitamessesfenmenos.Nessaperspectivaanti-humiana,asleisnomaissereferem conjuno regular de eventos, mas so analisadas em termos disposicionais, isto , como poderes causaisou,maisprecisamente,tendnciasdemecanismosgerativossubjacentes.Astendncias 9Orealismocrticooltimopregonocaixodopositivismooquenoexclui,claro,queofalecidopossa reaparecer,comoumafarsa,comodiriaMarx.Aforadosretratospositivistasdascinciasnaturaispodeser medida pelo fato de que at mesmo uma crtica lcida do positivismo como a de Habermas toma como corretas as auto-interpretaeserrneasdepositivistascomoComte,MachemesmoPopper(verHabermas,1971).Amesma observaovlidaparaumanti-filsofocomoRorty,queadotaumaposioultra-convencionalista,massem nuncaquestionaravisopositivistadascinciasnaturais.ParaumadevastadoracrticadeRorty,verBhaskar (1991).combinadasdessasestruturasprofundasemecanismostransfactuaispodemgerareventos passveisdeobservao,masoseventospodemocorrerindependentementedehaverouno algumparaobserv-los,sendoqueastendnciasdasestruturasnumnicaspermanecemas mesmasmesmoquandosecontrapemumassoutrasdemodotalanoproduziremqualquer mudana observvel na realidade. No lugar da ontologia da experincia e de eventos atomsticos constantementeconjugados,orealismotranscendentalestabelece,assim,umaontologiade poderesemecanismoscausaisno-observveis.Demodosemelhante,nolugardeumaanlise deleiscomoconjunesconstantesdeeventos,estaperspectivaanalisaleisemtermosdas tendnciasdosmecanismossubjacentesquegeramoseventos,osquaispodemounoser percebidos. Tendncias podem ser possudas, mas no exercidas; exercidas, mas no realizadas; realizadas, mas no percebidas (ou detectadas) pelos homens10 (Bhaskar [1975] 1978: 184). De modo a combater o retrato humiano das cincias e superar sua fixao empiricista na percepoenosdadossensoriais,Bhaskar([1975]1978:56-62)propeasubstituioda ontologiaplanadosempiricistasporumavisomaisestratificadadarealidade,capazde distinguir entre os domnios sobrepostos do real, do atual e do emprico. Se o domnio do real compostodemecanismoseestruturasgerativastransfactuaisquenormalmenteescapam observaodireta,osdomniosdoatualedoempricoabarcam,respectivamente,padresde eventosquesogeradosporessesmecanismoseestruturaseasexperinciasatravsdasquais aqueles padres so apreendidos. Dado que o domnio do real no pode ser reduzido ao domnio do emprico, o bispo Berkeley e os realistas empricos esto simplesmente errados: ser no ser percebido. O fato de que a realidade existe independentemente das observaes e descries que 10Ofatodequeasestruturasnumnicaseosmecanismosgerativosssejamobservveispormeiodassuas conseqncias levanta o problema de sua representao: Como sabemos que essas estruturas transfactuais existem? Quemconcedeuprimaziaaono-observvelsobreoobservvel?Quemfalaporessasestruturas?Quemfalaem nomedelas?Graasataisquestescrticasacercadarepresentaodemecanismostransfactuaisedopapeldos porta-vozes na cincia (Latour, 1984), podemos ter acesso a uma sociologia reflexiva dos intelectuais (Pels, 1999). Nesseponto,umajunoe(quemsabe?)talvezatumacolaboraofrutferapoderiamserestabelecidasentre formasrealistaseracionalistasdeconstrutivismo,deumlado,e,deoutro,suascontrapartesnominalistas, representadas pelo construtivismo radical dos defensores da teoria do ator-rede, como Callon (1986), Latour (1987) eLaw(1994).Talcooperao,entretanto,requeririadosconstrutivistasradicaisoabandonodeseuniilismo ontolgicoeousoapenasmetodolgicodonexoanti-essencialista(relativismo,construtivismo,reflexividade) (GrinteWoolgar,1997:5),demodoamostrar-noscomoarealidadeisto,asdescries,re-descriese construes da realidade, mas no, claro, a realidade mesma, a qual existe independentemente de tais descries, damesmaformaqueumcachorrolateindependentementedetermosounoumconceitodecachorro performativamenteconstrudapelosseusporta-vozes.Talmovimentodonominalismoontolgicoao metodolgicoimplicaumacorrelatamudanadeumaposturadesconstrutivistaparaumaposturagenuinamente construtivista,daconstruoparaalgomaisprximodaconstituiofenomenolgica(Lynch,1993)masisso pode ser pedir demais aos meta-reflexivistas, que esto convencidos, como Derrida, que no h hors texte.possumosacercadelanosignifica,entretanto,quepossamosconhecerarealidade independentementedetaisobservaese(re)descries.Arealidadespodeserconhecida graasintervenodecategorias,teoriasequadrosconceituais,maspaceKuhn,Foucaulte Rorty - eles no determinam a estrutura do mundo. Observaes so sempre sobredeterminadas pela teoria, e as teorias so sempre subdeterminadas pelas observaes, mas, se quisermos evitar afalciaepistmica(Bhaskar,[1975]1978:36-38)queconsistenareduodequestes ontolgicasaquestesepistemolgicas,temosdedistinguircategoricamenteentreosobjetos transitivoseosobjetosintransitivosdacincia(idem:17):entrenossascategorias,teoriase quadrosconceituais,deumlado,easentidades,mecanismos,estruturaserelaesreaisque compemomundonaturalesocial,deoutro.Semestadistinoentreonvelepistmico(ou transitivo)eonvelntico(ouintransitivo)doconhecimento,nosarriscamosaprojetarnosso conhecimentoscio-historicamentedeterminadodosobjetosnosprpriosobjetosdo conhecimento, substituindo estes por aquele e tomando o objeto projetado pela coisa em si, com oresultadodequeomundotorna-seliteralmente(areificaoda)minhavontadee representao11.Umavezsuperadooretratoessencialmentepositivistadascinciasnaturais compartilhadotantopelosdefensorespositivistasdonaturalismoquantopelosseuscrticos hermeneutas, a questo concernente possibilidade do naturalismo nas cincias sociais pode ser levantadademodorefrescantementenovo.Agoraqueopositivismofoirecusadoerefutado,as contribuiesdastradieshermenuticasefenomenolgicaspodemserapropriadase,assim, podeserexploradaapossibilidadedeumaterceiraposioou(comasdevidasdesculpasa Giddens)umaterceiravia,nomeadamente,aqueladeumnaturalismono-positivista 11 O fato de que os prprios cientistas muitas vezes pensem que, ao descrever o mundo, eles constituem-no, ou que possamsercticoseatcompartilhardoagnosticismoconvencionalistadossocilogosqueobservamsuavidade laboratrio(LatoureWoolgar,1979;Knorr-Cetina,1981),tentandoaniquilaradistinoentrearepresentaoeo objeto(Woolgar,1991:21-22),noprejudicaadistinoentreasdimensestransitivaeintransitivado conhecimentoenodeveriadistrair-nosquantoimportnciadamesma.Asociologiadoconhecimentocientfico estpreocupadaapenascomoestudodasdimensestransitivasdoconhecimento,nodasintransitivas.Ela, portanto,epistemologicamenterelativistaeontologicamenterealista.Garantidoisto,podemosataceitaras conclusesmaisprovocativasdeLatoureWoolgar:Observandoaconstruodeartefatos,mostramosquea realidade[aspasadicionadas]aconseqnciadaresoluodeumadisputa,noasuacausa.Searealidade [aspas adicionadas] a conseqncia e no a causa desta construo, isso significa que a atividade do cientista est dirigidanorealidade[aspasremovidas],masaessasoperaessobreenunciados(1979:236-237).Parauma crticadoirrealismodeLatourporumdosdecanosdasociologiadoconhecimentocientfico,verBloor(1999), bem como a rplica de Latour (1999).qualificado,fenomenologicamenteinformadoehermeneuticamentesensvel12.Comooutros socilogos e filsofos franceses da sua gerao que estudaram na cole Normale Sup na Rue dUlm(e.g,Desanti,Macherey,Badiou,etc.),Bourdieuumprodutodatradiofilosficada epistemologiahistrica(Lecourt,1974),aqualengendraoqueelesereferiucomouma preocupao quase obsessiva com problemas epistemolgicos (Bourdieu e Passeron, 1967: 197-198).Conseqentemente,nosurpresaqueBourdieutenhadesenvolvidoumateoriado conhecimentosociolgicoqueexplorasistematicamenteapossibilidadedonaturalismosocial. Procedo agora a uma anlise de sua epistemologia estruturalista, mostrando sua dvida para com oracionalismodeBachelardecomparando-acriticamentecomorealismocrticodeBhaskar. Desnecessriodizer,BourdieunopodeserconsideradoummeroaplicadordeBachelardou Cassirer.Nenhumdelesfezquaisquercontribuiesdiretassociologia.OautordeDistino fez, e isto , sem dvida, seu legado distintivo para nosso campo disciplinar. 2.A TEORIA DO CONHECIMENTO SOCIOLGICO Realismo versus Racionalismo Em Le Mtier de Sociologue, um manual de epistemologia que ele agora descreve como quase escolstico, mas que contm os princpios epistemolgicos e metodolgicos bsicos em que toda a sua sociologia estrutural est fundada, Bourdieu avana uma teoria do conhecimento sociolgico,abarcandoosistemadeprincpiosquedefinemascondiesdepossibilidadede todososatosediscursospropriamentesociolgicos,esomentedestes13(Bourdieuetal.1973: 15-16,48;vertambmBourdieu,1968:681-682).Eleespecificaqueosprincpioslgicose epistemolgicos da teoria do conhecimento sociolgico so meta-cientficos, na medida em que 12Aexplorao,realizadaporBhaskar,doslimitesontolgicosqueoreinosocialimpepesquisanaturalista (comoadependnciadeconceitos,adependnciadeatividadeseamaiorespecificidadeespao-temporalde estruturassociais),limitesqueprecluematransposiototalizanteeno-qualificadadosmtodosdascincias naturaisparaascinciassociais,deuorigemaummodelotransformacionaldaaosocialquenotavelmente similarteoriadaestruturaodeGiddens(verBhaskar,1989a;e,paraumacomparaocrticaentreGiddense Bhaskar,verArcher,1988:72-100e1995:87-134),emboraoprimeiro,diferentementedosegundo,teorize explicitamente o fenmeno da emergncia de modo a no dissolver a estrutura na agncia.13DiferentementedePasseron,umdosco-autoresdomanualdeepistemologia,quecompreendeuateoriado conhecimento sociolgico em um sentido fraco, compatvel com uma pluralidade de teorias sociolgicas, Bourdieu compreendeuaquelemanual,desdeoincio,comoumManifestodeEscoladasuaprpriateoriasociolgicado mundo social.sosimplesmenteparticularizaessociolgicasdosprincpiosnosquaistodacinciaest baseada. Uma vez interiorizados, os princpios da teoria do conhecimento sociolgico formam o habitus sociolgico (Bourdieu et. al. 1973: 16; ver tambm Brubaker 1993), entendido como a disposiooperacionaldosocilogopraticanteemaplicarprincpiosabstratosnapesquisa emprica concreta.Bachelard,ofuncionriodoscorreiostornadofilsofoquefoiumdosprofessoresde BourdieunaprestigiosacoleNormaleSuprieure,citadoquasetofreqentementequanto Durkheimnassuasprimeirasreflexesepistemolgicasacercadalgicadadescobertanas cincias sociais. Um olhar mais aprofundado sobre a teoria do conhecimento sociolgico revela queBourdieutomouseusprincipaisprincpiosdeemprstimoreconstruoracionaldas prticas tericas nas cincias naturais realizada por Bachelard. Bachelard oferece, acima de tudo, uma reconstruo da filosofia cotidiana dos cientistas, isto , da filosofia implcita em sua prtica espontnea, que ele ope criticamente filosofia noturna dos filsofos, forjada nas escolas do positivismo emprico, filosofia para a qual os cientistas tendem a retornar quando refletem sobre suaprtica(Bachelard,[1940]1988:13;[1953]1990:19).Examinandoasimplicaes epistemolgicasdasrevoluescientficasemqumica,biologiae,acimadetudo,nafsica (teoria da relatividade e fsica quntica), ele concluiu que esses acontecimentos minaram tanto o apriorismodosretratosidealistasdarazocientficaquantooempiricismoingnuodas caracterizaes positivistas das cincias. A epistemologia de Bachelard sinttica, ou, como ele mesmodiz,dialticaediscursiva.dialtica,noporqueprocedademodohegelianoem direo a uma totalidade fechada que abarque tudo, mas porque o movimento do pensamento vistocomouminfindvelmovimentodeenglobamento14(mouvementdenveloppement; Bachelard,[1940]1988:137),noqualaslimitaesdeumquadroconceitualparticularso descobertas, superadas e integradas em um quadro mais amplo que inclui o aspecto previamente excludo.Namesmaveiadialtica,Bachelardbuscamostrarquealgicaprticadocientista imersoemseutrabalhotranscendenaturalmenteasoposiesfilosficasentreoracionalismo 14 N.T: A expresso utilizada por Frdric Vandenberghe no texto original pincer movement, termo que tem sua origem na designao de uma conhecida estratgia militar de batalha em que o exrcito inimigo, ao invs de atacado apenasfrontalmente,crescentementeenvolvidoecercadoportodososladosatserengolido,porassimdizer, em um movimento cujo formato visual similar quele de uma tenaz (pincer) ou um alicate. Opes de traduo estilisticamentemaisexticasincluiriammovimentodeencompassamentoe,similarmenteexpressofrancesa original de Bachelard, movimento de envelopamento.idealistaeorealismoempiricista15.Cientistaspraticantesnosoincomodadospordisputase antinomias filosficas. Espontnea e ecleticamente, eles combinam a imaginao construtiva dos idealistas(racionalismo)comaexperinciainstrudadosempiricistas(realismo),asquaisos filsofos tendem a separar, declarando-as incompatveis. Assim, a filosofia sinttica com base na qualelesagem,equecombinaateoriaabstrata(racionalismo)eapesquisaconcreta (empiricismo),aquelaqueBachelarddenominaracionalismoaplicado(Bachelard,[1940] 1986)oumaterialismoracional(Bachelard,[1953]1990).Elesnocoletamfatos simplesmente,masconstroemelaboradosmodelostericosabstratosdeestruturasnumnicas quenecessitamosfatosfenomnicos,montandoexperimentosquerealizamtecnicamentee tornamconcretamentemanifestoofenmenoqueateoriaapontahipoteticamentecomoum efeitopossveldasestruturasnumnicas.Portanto,instrudopelateoriaabstrataeaplicandoa fenomenotcnica, o cientista cria ou realiza tecnicamente o fenmeno. De modo a acentuar a ruptura com o realismo ingnuo dos empiricistas, entretanto, essencial destacar que Bachelard nodeixadvidaquantodireodovetorepistemolgico,quevaidoracionalaoreale nodorealaogeral(Bachelard,[1934]1991:8),comotemsidoprofessadoportodosos filsofos desde Aristteles at Bacon. A primazia claramente concedida reflexo terica e construo do objeto terico, no percepo imaculada (Nietzsche) dos empiricistas. Sendo a realizaodateoria(idem:98),oreal,assim,paratodososefeitos,racionalizado. Paradoxalmente, para tornar o contato com a realidade mais preciso e penetrante que a cincia forada a realizar, como Gilles-Gaston Granger diz de modo to belo, um desvio pelo reino da abstrao(Granger,citadoemHamel,1997:16).Namedidaemqueosfatosnoso imediatamente dados, mas consistem, propriamente falando, no resultado mediado da realizao tcnica da teoria, o realismo de Bachelard pode ser caracterizado como um realismo de segunda posio, um realismo que reage contra a realidade usual, um realismo feito de razo realizada e experimentada (Bachelard, [1934] 1991: 9).Seesterealismodesegundaposioforcomparadocomorealismotranscendentalde Bhaskar (para uma comparao, ver Bhaskar, 1989b: 41-48), podemos ver claramente que ambos rejeitamereagemcontraoretrato-padropositivistadascinciasnaturais.Indoalmdo 15necessriomencionarqueBourdieu,comoseumentor,nopodereconhecerumaantinomiasemtentar transcend-la?Aesserespeito,erroselimitesdopensamentoparecemserbemteis.Elesestolparaserem corrigidosesuperados,constituindo-seassimnomeioparaaverdade,nomododeseaproximarmaisdaverdade, sempre concebida, de maneira apropriadamente falibilista, como a verdade at o momento. empiricismo e contra ele, ambos enfatizam o carter impregnado de teoria dos fatos, bem como a importnciadeestruturasnumnicasemecanismosgerativostransfactuaisquenecessitame explicam os fenmenos. Entretanto, a partir da perspectiva vantajosa do realismo transcendental deBhaskar,quebuscasustentarumaclaraconcepodarealidadeindependentedoser (dimensointransitivaouontolgica)emfacedarelatividadedoconhecimento(dimenso transitivaouepistemolgica),orealismodeBachelardaparentaseressencialmenteumaforma sofisticadadeidealismotranscendentalneokantianoque,decertomodo,reverteanaturezareal dadependnciaentrecinciaeser16.Enquanto,paraorealismocrtico,aontologia simplesmenteirredutvelepistemologia,Bachelardambguoarespeitodessetemaesugere algumas vezes no apenas que o mundo s pode ser conhecido tal como atravs da cincia, o quenoproblemtico,mastambmqueomundooquegraascincia,oquemais controverso.Pois,naopiniodeBachelard,ofatodequeacinciaocorrequedaomundo umaestrutura,demodoqueestepossaserconhecidopeloshomens,enquanto,naopiniode Bhaskar, o fato de que o mundo tem tal estrutura que torna a cincia possvel. Da perspectiva de Bhaskar, o historiador das idias cientficas francs comete, portanto, a falcia epistmica, pois,assumindoqueasseresacercadoserpodemserreduzidasaasseresacercado conhecimento,eleconcluierroneamente,dofatodequeomundospodeserconhecidopela cincia,queanaturezamesmadestemundodeterminadapelacincia.Aidiadequeoser pode ser analisado em termos do conhecimento do ser, de que suficiente para a filosofia tratar apenas da rede e no do que a rede descreve (Wittgenstein, 1961: 6.35), resulta na dissoluo de ummundoindependentedacincia-comopodeservisto,porexemplo,noproblemtico enunciado de Kuhn segundo o qual quando os paradigmas mudam, o prprio mundo muda com eles (Kuhn, [1962] 1970: 111). 16 O campo da sociologia mundial ainda no unificado, mas permanece dividido ao longo de linhas nacionais. Isto provavelmenteexplicaporquecomentadoresanglo-saxes,no-familiarizadoscomatradioracionalistada pistmologiefrancesa(Bachelard,Koyr,Canguilhem,Cavaills)oucomatradioalemneo-kantianada Wissenschaftslehre(Lask,Cassirer,Panofsky),projetamsuaprpriavertentedefilosofiadacincia(Bhaskar)na posio de Bourdieu, descrevendo-o como um realista crtico (e.g, Harker et al. 1990: 201; Jenkins, 1992: 95-96; Fowler, 1997: 6, 17, 82). Esta atribuio errnea , entretanto, facilmente compreensvel, j que resulta da confuso entre os nveis epistemolgico e meta-terico de anlise. Em termos epistemolgicos, Bourdieu um neo-kantiano e, assim, um idealista; em termos meta-tericos, ele um weberiano-marxista e, assim, um materialista; a confuso entreambososnveisdeanliselevaaortulorealista,quesereferevertentematerialistadaepistemologia. Desnecessriodizer,minhacrticadirige-seapenasaoidealismoepistemolgico,noaometaterico. Diferentemente dos crticos mais ferozes de Bourdieu, no estou afirmando que o seu estruturalismo representa uma versosofisticadadomaterialismovulgaroureducionista,masqueele(napiordashipteses)reduzaontologia epistemologiae(namelhordashipteses)evitaassumircompromissosontolgicosrecorrendoaumaceno convencionalista filosofia do como se, do neo-kantiano Vaihinger.NoobstanteopesadoinvestimentodeBourdieunapesquisaempricaeofatodeque objetossociaisnoexistemindependentementedascinciassociais,podendoaindaser causalmenteafetadosporelas,pensoqueelecometeamesmafalciaepistmica.Comoseus predecessores estruturalistas (Lvi-Strauss, Althusser e Foucault), entretanto, ele tende a se situar ambiguamenteentreumainterpretaorealistaeumainterpretaoconvencionalistada cincia17.AindaqueBourdieusugiraalgumasvezesqueasrepresentaescientficasda realidadetmseufundamentuminre,adireoprincipaldeseusargumentosepistemolgicos aponta para a adoo de uma posio mais racionalista, na qual as representaes cientficas no estotantofundadasnarealidade,masarealidadequeestfundadanelas(comoindicado pelofatodequepalavrascomoreal,realidadeerealizaososemprecolocadasentre aspas).Nesteponto,gostariadenotarqueminhacrticaaoracionalismodeBourdieuno pretendeserumaacusaofinalsuametacincia,masumconviteparaaretomadado movimentodeenglobamentodialticodopensamentonadireodorealismocrtico.Em outras palavras, gostaria que Bourdieu tivesse abandonado seu ceticismo a respeito da existncia de um mundo independente de teoria e aceitado a idia de que o mundo, o qual de fato s pode serconhecidoatravsdediferentes(re)descries,existe,narealidade,independentementede tais(re)descries;ou,melhorainda,queestas(re)descriesalternativasdomundooferecem retratosalternativosdomesmomundo.Esseconvitemaisdoqueumaescaramuafilosfica. Dadoqueapressuposiorealistasegundoaqualas(re)descriesdarealidadereferem-seao mesmo mundo uma pr-condio necessria para a comparao racional entre teorias e, assim, paraumaescolharacionaldeteoria,aidiadedesenvolvimentocientficodepende eventualmente (a longo prazo) da superao do racionalismo cientfico. Em uma formulao algo paradoxal,poderamosdizerquearacionalidadedacinciapressupeoabandonodo surracionalismo cientfico (Bachelard, [1940] 1988: 28). Em O estruturalismo e a teoria do conhecimento sociolgico, Bourdieu desenvolve uma teoriaestruturalistadosocialnaqualarealidadeempricaconcebidacomoumreflexo analgicodasrelaesentreelementosqueformam,segundopostulaomodeloterico,uma 17 Para uma discusso deste assunto em relao a Althusser, ver Benton (1984: 179-99). Esta referncia a Althusser mostraquenosuficienteinspirar-senoMarxtardioparatornar-seumrealista.Oquerealmenteimportase interpretamosMarxemtermosracionalistasourealistas.OfatodequeoprprioAlthusserestavaclaramente navegando na direo do racionalismo revelado por seu comentrio, aparentemente insignificante (e que ecoa uma famosa passagem de Derrida), de que nunca samos do conceito (Althusser et al. 1970: II: 67; ver tambm pp.20 sq.).estrutura hipottica, porm invisvel. A teoria, como um sistema de signos organizados de modo a representar, atravs das suas prprias relaes, as relaes entre os objetos, uma traduo, ou melhor,umsmboloarticuladoquiloqueelesimbolizapormeiodeumaleideanalogia (Bourdieu,1968:689).Assim,namedidaemqueasrelaesreaisentreoselementosso,de certomodo,reduzidasaumreflexoanalgicodasrelaestericasestabelecidasentreos elementos da estrutura terica, a ontologia do mundo , de fato, derivada de uma epistemologia estruturaldomundo.Entretanto,comoeleestcientedoriscodaontologizaodeproposies epistemolgicas,Bourdieumudadedireonoltimomomentoerecorreestratgiakantiana deimunizaopelorecursoaoficcionalismoanaltico:Todasasproposiesdodiscurso sociolgicodeveriamserprecedidasporumsignoquepoderiaserlidocomotudosepassa comose...(Bourdieu,1972:173;1980:49)18.Comoresultadodesteestratagema convencionalista,asproposiessociolgicasnosomaistidascomocapazesdecapturaro mundo tal como ele , mas ceticamente reduzidas ao status de (re)descries da realidade que nopoderiamsernuncamaisdoqueartifciosheursticosdesenvolvidospararepresentarou salvar analogicamente os fenmenos. Graasaestavigilnciaepistemolgica,Bourdieuevitaoriscodareificaodateoria, masapenasaopreodacovardiaontolgica,seeupuderousarmeexpressarnessestermos.O movimento reificador do modelo da realidade para a realidade do modelo efetivamente evitado, mas,comoresultadodessainflexoconvencionalista,arelaoreferencialentreomodeloea realidadetorna-seontologicamenteobscura.Quandoomovimentoreferencialdomodeloda realidade para a realidade do modelo, ou do significante para o significado, rejeitado a priori e denunciado como um movimento reificador que vai da hiptese hipstase, no mais possvel testarracionalmenteaspretensesontolgicasdomodelo.Emnomedeummedoontofbico da falcia da falsa concretude (Whitehead, 1930: 65), no mais permitida a investigao das possibilidadesdequeomodeloefetivamenterefira-serealidadeeacaptureou,aocontrrio, 18AquiBourdieupareceseguirLvi-Straussquandoesteafirmaqueoprincpiofundamentalqueanoode estrutura social no se refere realidade emprica, mas aos modelos que so construdos de acordo com ela (Lvi-Strauss,1958:331).ArupturacomoobjetivismodeLvi-Straussvememumestgioposterior,quandoBourdieu ir criticar a falcia escolstica que consiste na transposio intelectualista dos modelos tericos para a cabea dos prprios atores, entronizando-se metadiscursos e metaprticas como o princpio dos discursos e prticas, bem como sugerindo-sequeosatoresagemdeacordocomomodelo,oqueumpoucocomoassumirqueandamos constantemente por qualquer lugar como turistas em uma cidade estrangeira, com um mapa em nossas mos. Como veremos posteriormente, na discusso da noo de habitus, a estrutura invisvel de diferenas assume uma existncia realeocasionalmentereveladanaexistnciaordinria,disfaradasobaformavividadamanutenode distncias, de afinidades e incompatibilidades, simpatias e rejeies, etc. apenaslevesuareificao.Nessesentido,umainterpretaorealistacolocamaisemjogodo que uma convencionalista, pois, se o cientista possui o conceito de um reino ontolgico distinto das suas reivindicaes correntes de conhecimento, sua pesquisa pode efetivamente mostrar que suahiptesesobreacoisarealera,narealidade,apenasumahipstaserealdacoisa.O pragmatismo epistemolgico, por outro lado, evita o risco da reificao, mas apenas ao preo do relativismo epistmico, pois, se a conexo entre os nveis ontolgico e epistemolgico elstica, isto,seutilizamosmodelosanalgicosdarealidadesemproduzirafirmaesacercada realidade,chegamos,dopontodevistalgico,aumasituaoanarco-dadastaemquevale tudo(Feyerabend,1978:28,186,296).ComBhaskar,pensoqueumateoriatemdeser ontologicamenteousada,maisdoqueepistemologicamentecautelosa(Outhwaite,1987:19-44)19. Ao invs de fazermos afirmaes convencionalistas a respeito de necessidades conceituais oudascaractersticasqueprecisamosnecessariamenteatribuirscoisas,devemosutilizar definies reais das coisas e tentar captar sua estrutura real. Aceitamos o fato (quiniano) de que a realidade s pode conhecida atravs de diferentes descries, mas, na ausncia de uma teoria da correspondnciaentreomodeloearealidade,nopodemosaveriguaroquearealidadee terminamos na absurda situao em que existem tantos mundos quantas sejam as descries sob as quais a realidade pode ser conhecida. Com o realismo crtico, podemos concluir, assim, que apenassepossuirmosoconceitodeumreinoontolgicodistintodenossasreivindicaes correntesdeconhecimentoquepoderemospensarnapossibilidadedacrticaracionaldenossas afirmaes. Removendo obstculos epistemolgicos Retornando das grandiosas alturas da crtica filosfica, podemos proceder a uma anlise datransposiodaepistemologiabachelardianaparaoreinodosocialrealizadaporBourdieu. 19Aodizerqueacinciadeveserontologicamenteousada(ouatmesmopresunosa),maisdoque epistemologicamente cautelosa (ou modesta), estou questionando explicitamente a famosa defesa programtica de uma dissoluo da ontologia por Kant O nome orgulhoso de uma ontologia que presunosamente afirma fornecer, emumaformadoutrinalsistemtica,umconhecimentosintticoaprioridascoisasemgeral...devedarlugar modestamenteaumameraanalticadoentendimento(Kant,1983:B884).Noentanto,namedidaemqueo realismocrticosustentaqueoconhecimento,emltimainstncia,fundadoaposteriori,elenoreverte simplesmente o programa de Kant. O realismo estabelece, por meio de um argumento transcendental, que a cincia pressupe necessariamente uma ontologia de mecanismos gerativos complexos, mas, sabiamente, deixa cincia a tarefa da investigao emprica de quais so estes mecanismos e de como eles funcionam.Como Bachelard, Bourdieu recomenda a vigilncia epistemolgica.A cincia procede apenas por meio de erros, da correo de erros. O primeiro erro o erro empiricista do realista ingnuo quetomaosfatoscomodadosenocomoumresultado,comoalgoaserconquistadoe sistematicamenteconstrudo.ComBachelard,Bourdieuafirma,emsuaspreliminares epistemolgicassociologia,queofatocientficoconquistado,construdo(e)verificado (conquis,construit,constat;Bourdieuetal.1973:24,81).Conseqentemente,ahierarquia epistemolgicadosatoscientficossubordinaaverificaodofatosuaconstruoesua construo ruptura com as concepes espontneas do social. Oprimeiroobstculoepistemolgico(Bachelard,[1938]1993:23-54)asersuperado, casoasociologiapretendaserumacinciarigorosa,aadesoespontneadosocilogo experinciadxicaimediatadosensocomumesexplicaessenso-comunais(common-sensical explanations) do social avanadas por teorias sociolgicas tradicionais20. Na medida em queaobjetividadecientficaspossvelserompermoscomoobjetoimediato,oprimeiro imperativodasociologiaarupturaepistemolgica(Bachelard,[1949]1986:104)entrea concepo de senso comum (doxa) e a concepo cientfica (episteme) do social21. A partir desta perspectiva,opostuladodeadequaodeSchutz,queestipulaqueconceitoscientficos(de segundaordem)devemsemprepermanecerentrelaadosaosconceitosdosensocomum(de primeiraordem)esertraduzveisparaestes(Schutz,[1932]1974:289,324etseq.;1962:44), deve ser categoricamente rejeitado22. Na opinio de Bourdieu, uma cincia s pode ser cientfica 20Aqui,Bourdieubaseia-sepolemicamentenafenomenologiadomundodavidadeHusserl.Deacordocom Husserl,omundodesensocomum,nossomundoordinrio,cotidiano,umdomniodadoxapassiva,i.e,um domnio em que o real tomado como dado e evidente em sua existncia, no sendo questionado reflexivamente a respeitodosatosintencionaisdaconscinciaqueoconstituem.Naexperinciadxicadomundo,omundoest sempre l, passiva e imediatamente dado conscincia como a fundao inquestionada de todos os atos constitutivos daconscinciaedasprpriasaes.Nadoxapassiva,osernoapenaspr-dadocomoosubstratodetodasas realizaespossveisdoconhecimentoquecontribuemativamenteparaele,mastambmcomoosubstratopara todas as avaliaes, determinaes prticas de fins e aes (Husserl, [1938] 1985: 53).21 A verso dura da ruptura com a sociologia porttil (Javeau) exposta no manual epistemolgico (Bourdieu et al. 1973), sendo a verso leve apresentada em La misre du monde. Neste belo livro, que consiste principalmente em entrevistas transcritas com os excludos deste mundo (o comerciante racista, o negociante do gueto, o sindicalista desiludido,oprofessordeprimido,amulherargelina,etc.),asquaissoprecedidasporpequenasmisesen perspectivesociolgicasdeBourdieueseuscolaboradores,oprincipalconceito(misredeposition,amisria ordinria ligada posio social) no sequer definido sociologicamente, embora as pr-noes espontneas da vida cotidiana comum estejam inseridas em um esquema mais amplo de construes sociolgicas do objeto que Bourdieu elaborouemoutrolugar,masquepermaneceemlargamedidaimplcitonestelivro.Amensagemprincipal,de fato, poltica: se os polticos no intervierem para melhorar as condies de vida das pessoas comuns, dos excludos e dos marginais, sero considerados culpados pela no-assistncia a pessoas em perigo (Bourdieu, 1993a: 944).22Estadisjunoradicalemrelaosconcepesdesensocomumdomundosocialnoexclui,claro,a possibilidade de que os conceitos cientficos dos socilogos sejam posteriormente disseminados e apropriados pelas seaplica,doincioaofim,oprincpiodeterministadarazosuficiente.Transpostoparao domniodasociologia,oprincpiododeterminismotomaaformadoprincpiodano-conscinciadurkheimiano(Bourdieuetal.1973:31):avidasocialtemdeserexplicadano pelasconcepesdosseusparticipantes,masporcausasestruturaisqueescapamsua conscincia, explicando e necessitando os fenmenos observados. Toda vez que nos referimos a explicaespsicolgicasouinteracionistasdefatossociais,podemosestarcertosdeque invertemos as causas e os efeitos. Bourdieu no deixa dvidas a respeito disso: a estrutura das relaesqueconstituemoespaodocampoquecomandaaformaassumidapelasrelaes visveis de interao (Bourdieu, 1982a: 42)23.Osfatossociaisspodem,portanto,serexplicadosporfatossociais(Durkheim,[1895] 1986:109),devendoestessersistematicamenteconstrudoscontraosensocomum,bemcomo objetivados em um sistema de relaes de modo tal que as relaes estruturais objetivas entre os elementosfenomnicosnecessitemeexpliquemocomportamentodoselementosdarelao construda entre os elementos24. A anlise estatstica das relaes numricas entre os elementos tilnamedidaemquepermiteaosocilogorompercomasredesilusriasderelaesqueso espontaneamente tecidas na vida cotidiana, mas estas relaes numricas so apenas um primeiro passoetmdeserinseridasemumarederelacionaldeordemmaiselevada,capazdegarantir umaexplicaoracionaldasrelaesestatsticasobservadas25.Aresistnciaqueacincia

pessoascomuns(ousocilogosleigos,comoosetnometodlogosaschamamGarfinkeleseuscolegasno hesitamemre-especificarjocosamenteoschimpanzscomocolegasanimais(Lynch,LivingstoneGarfinkel 1983: 213)). No mnimo, a teoria social de Bourdieu, que pretende no fim das contas ser uma teoria crtica, teria de pressupor esse tipo de reflexividade institucional (Giddens, 1990: 15-16) na qual o conhecimento espirala dentro eforadoscontextosquedescreve,reconstituindo,assim,performativamente,tantoasimesmoquantoaoseu contexto.Detodomodo,permanecesub-teorizadanotrabalhodeBourdieuestaduplahermenuticaatravsda qual os conceitos cientficos so reintegrados ao senso comum, o qual por sua vez esclarecido e transformado em uma nova configurao de conhecimento prtico que se aproxima da phronesis aristotlica. Para uma teorizao da segunda ruptura epistemolgica (a ruptura com a ruptura), ver Santos (2000:31-45).

23Aconseqnciainevitveldessainflexoterica,evidentemente,ofatodequeBourdieunopodelevarem consideraoouexplicaraautonomiadaordemdainterao(Luhmann,1975:9-20;Goffman,1983).Outra conseqncia o fato de que as subjetividades coletivas, como movimentos sociais e grupos, tendem a escapar de sua teia conceitual (Domingues, 1995). Bourdieu sempre concebe subjetividades coletivas, como a nao, o povo ou oproletariado,comoatoreshipostasiados,nohipotticos.ParaumacrticadonominalismodeBourdieuea apresentaodeumaalternativarealista,verminhaanlisedaestruturaodoscoletivosnestelivro(cf.infra,cap. 5). 24 Diferentemente da maioria dos lectores anglo-saxes de Durkheim (com a exceo notvel de Johnson, Dandeker eAshworth1984),BourdieusempreconcebeuDurkheimcomoumracionalistaeestruturalista,nocomoum positivista. Para se acessar adequadamente o estruturalismo de Durkheim, deve-se ler seu trabalho via Marcel Mauss e Lvi-Strauss, tal como fez Bourdieu. 25Paraumaesclarecedoradiscussoanalticaderelaesdeordemmaiselevada(relaesentrerelaesentre relaes), a qual de certo modo similar quela de Bourdieu, ver Archer (1995, parte II). sociolgica gera quando priva a experincia imediata de seu privilgio gnosiolgico inspirada por uma filosofia humanista da ao social, que toma o sujeito como referncia ontolgica ltima sem notar que o sistema objetivo, embora invisvel, de relaes entre relaes entre os indivduos temmaisrealidadedoqueossujeitosqueelearticula.Ou,dizendoomesmonalinguagem escolsticatocaraaBourdieu:nosoosindivduosvisveis,masoespaoinvisvelde relaesentreindivduosoensrealissimum(Bourdieu,1994:53).Noentanto,estesistemade relaesreal,emborainvisvel,noflutuasimplesmentenoardasidiasplatnicas.Eleno existe em si mesmo, mas, similarmente aos habitantes do Mundo 3 de Popper (o mundo dos sistemastericos),ssemanifestaempiricamentenomundoreal(mundo1,omundodos eventosobservveis,cujasregularidadesobjetivassosistematicamentecapturadaspordados estatsticos) graas interveno do habitus (ver adiante), que pertence ao mundo 2 (o mundo dos estados de conscincia, ou dos estados mentais, ou talvez de disposies comportamentais), masqueestabeleceamediaoentreomundo3eomundo1,realizandoassimosistema terico das relaes construdas (ver Popper 1979: 106-90). A primazia das relaes DeacordocomBachelardeBourdieu,quesegueseumentornesteponto,umapesquisa scientficaseenamedidaemqueefetivaumarupturaepistemolgicaentreadoxaea episteme.Omovimentodoreinodxicodameraopinioparaoreinocientficodo conhecimentopressupeumdesvio(terico)atravsdoreinoinfinitamenteabertodas abstraes,demodoatornarocontatocomaexperinciamaispenetrante,poderosoepreciso (Granger, citado por Hamel, 1997: 31). Na medida em que esse desvio terico busca romper com oessencialismocotidiano,quenaturalmentetomacomosubstnciasreificadasoquesona verdade relaes, a construo racionalista (ou realista) dos objetos tericos como conjuntos de relaes est inerentemente ligada a um modo relacional de produo intelectual. A conquista do fato cientfico contra a percepo espontnea e pr-construda do objeto real inseparvel de suaconstruosistemticacomoumobjetoterico,pormeiodasuaobjetivaoemum sistemacoerentederelaesconstrudas.Seosensocomumadereespontaneamenteauma filosofiasubstancialista,acinciadesconstrireflexivaemetodicamenteassubstncias fenomnicas de modo a reconstruir o fenmeno como um tecido entrelaado de relaes, isto , como uma configurao racional, ou de segunda ordem, de atributos relacionais26.AindaqueBachelardtenhaclaramentepercebidoaprimaziadasrelaessobreas substnciasquecaracterizaascinciasnaturaismodernase,talvez,atmesmoalgicadas visesdemundomodernasemgeral(Dux,1982)comopodeservistonoseulema:No princpio era a relao (Bachelard, 1929: 65) - 27, Bourdieu recorre a Ernst Cassirer, o qual, em seulivroseminalSubstnciaeFuno,analisoubrilhantementeasubstituiodalgica aristotlicadassubstnciasporumalgicafuncionaldasrelaesgerativasquepodeser encontradanamatemticaenafsicamodernas,bemcomonageometriaenaqumica28.A anliseneokantianadoconceitodefunodesenvolvidaporCassirerorientadaparaa elaboraodeumalgicatranscendentalnaqualoobjetonomaispressupostopelalgica, mas,porassimdizer,geradoporela.Osconceitoscientficosnopermanecemno-relacionadosunsaosoutros,massoorganizadosemcamposoufiguraesconceituais coerentes,ouainda,parausaralinguagempreferidaporCassirer,emumasrieordenadade progresses(Reichenfolge)querevelaeconstituiumaregioanalticadarealidadedemodo sistemtico.Nestaconceporelacional,oparticularnomaissubsumidonogeral,comono caso do silogismo aristotlico, mas uma inter-relao funcional ou dialtica estabelecida entre ambos de modo tal que o particular, que sobredeterminado pela teoria, aparece como a sntese concreta de um conjunto de relaes gerais. O conceito no mais descarta desdenhosamente os particulares que especificam os contedos que ele subsume, mas, ao contrrio, busca descobrir a necessidadedamanifestaoeaconexodosprpriosparticulares.Oqueoconceitoprope, assim,umaregrauniversalquenospermitecomporecombinaroelementoparticularem pessoa (Cassirer, [1910] 1994: 25)29. 26Aindaqueeunovdizermuitoaquisobreaviolnciasimblica,esteopontoemqueBourdieuinserea clssicaanlisedeMarxsobreosefeitosideolgicosdailusofetichista,queconsistenainversoreificadorada interao entre coisas e relaes, de tal modo que as relaes sociais entre os homens assumem, aos seus olhos, a formafantsticadeumarelaoentrecoisas(Marx,[1868]1970:72).Paraumaanlisemaissistemticada reificao, ver Vandenberghe (1997, caps 1 e 5). 27 A explorao neofuncionalista de uma teoria relacional por Donati, que se guia pelos pontos de vista de Alexander e Luhmann, tambm comea com o slogan catlico No princpio est a relao (Donati, 1991: 80). Entretanto, sua teoria das relaes sistmica, funcionalista e, em ltima instncia, interacionista, mas no estruturalista. 28ParaumaanlisedopensamentodeCassirerquemostraacontinuidadeentreSubstnciaeFunoeafilosofia das formas simblicas, ver Vandenberghe (2001).29Estaidialeibnizianada(sobre)determinaorelacionaldoconcretoparticularporumamultiplicidadede variveis, variveis cuja relao pode ser expressa por meio de uma funo matemtica, claramente formulada por Bachelardnosseguintestermos:Tomadocomoumcomplexoderelaes,umfenmenoparticularumafuno Porexemplo,paratomarmosumailustraodocampodageometria:iniciandoporuma frmulamatemticageral,podemosformarasfigurasgeomtricasparticularesdocrculo,da elipseeassimpordiante,apenasmodificandoosparmetrosqueconstituemafigura,detal maneira que ela descreva e atravesse uma srie contnua de valores. Tomando um exemplo mais sociolgico, consistentemente desenvolvido em A Distino (a obra-prima de Bourdieu que j umclssicodasociologia[Bourdieu,1979a]):comeandoporumvolumeeumaestrutura particularesdecapital,podemosvariarosparmetroseprocedercontinuamentedaregiomais elevadadoespaoconstrudodeposiessociais,constitudapelafraodominantedaclasse dominante(aburguesiaindustrial),passandopelaregiointermediria,constitudapelafrao dominadadaclassedominante(profissionaisliberaiseacadmicos)epelafraodominanteda classedominada(oscomercianteseartesos),ataregiomaisbaixa,constitudapelafrao dominadadaclassedominada(camponeses,trabalhadoresmanuaisno-qualificadose excludos30).Comoresultadodaaplicaodomododepensamentorelacional,osconceitos cientficosnomaisaparecemcomoimitaesdeexistnciascoisificadas,mascomosmbolos representandoordensearticulaesfuncionaispresentesnarealidade(Cassirer,[1906]1971: 3). Na medida em que a realidade dos objetos se dissolveu em um mundo de relaes racionais, podemos de fato dizer, com Bachelard e Hegel, que o real racional (Hegel, [1821] 1971: 24), bem como, com Cassirer e Bourdieu, que o real relacional (Bourdieu, 1987b: 3; Bourdieu & Wacquant, 1992: 72, 203; Bourdieu 1994: 17). Relacionismo aplicado

genunadediversasvariveis.Aexpressomatemticaanalisa-odeformamaisprecisa(Bachelard,1929:209). Marx expressou a mesma idia em 1857, na Introduo aos Grundrisse, onde ele afirma: O concreto concreto porqueaconcentraodemuitasdeterminaes,portantoaunidadedodiverso.Eleaparecenoprocessode pensamento,dessamaneira,comoumprocessodeconcentrao,comoumresultadoenoumpontodepartida, ainda que seja o ponto de partida na realidade e, assim, tambm o ponto de partida para a observao e a concepo (Marx,[1857]1973:101).Noentanto,contraMarxecomSayer(1995:18-42),queanalisaarelaoentrea propriedadeprivada,omercadoeadivisodotrabalho,devemosressaltarque,seoconcretodefatouma concentraooufunodevriosrelacionamentosnecessrios,aformadaconcentraocontingentee,portanto, determinvel apenas por meio da pesquisa emprica. 30Narealidade,osmarginaispermanecemaindaincludos,decertomodo,segundoatopologiasocialde Bourdieu.Destitudosdetodasasespciesdecapitaleexcludosdoscamposdeproduoeconsumo,elesesto localizadosnoandarhierrquicoinferiordomundosocial.Aabordagemluhmannianadaexclusomaisradical (Luhmann,1997,II:630-634)e,portanto,maisaptaparaanalisarasituaonasociedadebrasileira.Aquelesque estoexcludosdefactodetodosossubsistemasfuncionais(sememprego,semrenda,semCPF,semrelaes ntimasestveis,semacessojustiaformal,aserviosmdicos,etc.)estotambmespacialmenteseparados daqueles includos no sistema. Excludos de todos os subsistemas, eles so reduzidos a corpos perigosos e talvez at mesmo vida nua passvel de ser eliminada em que isso constitua um crime. Emboraoobjetopareaprecederopontodevista,Bourdieucompartilhada pressuposioconstrutivistadeSaussuresegundoaqual,naverdade,opontodevista(que) criaoobjeto(Saussure,[1916]1985:23).Adelimitaodocampo,portanto,analtica31. Graasconstruometodolgicadeumsistemafechado,autnomoeauto-referencialde relaesinternasentreconceitos,ummodelocoerentedarealidadepodesercriadoetomado como estruturalmente homlogo mesma. Como vimos acima, entretanto, Bourdieu no deseja avanar um argumento ontolgico sobre a realidade; afirmando que funes sociais so fices (Bourdieu1982a:49),elerecorreemltimainstnciaaogestoconvencionalistadocomose. Paraconstruirosistemaderelaesentrelaadas,duascoisassoimportantes:emprimeiro lugar, o sistema tem de ser completo, isto , toda a populao de elementos relevantes tem de ser levada em considerao; em segundo, os elementos tm de estar ligados uns aos outros por meio de relaes internas, ou seja, de tal modo que no possam ser definidos independentemente uns dos outros, portanto de maneira que estejam mtua e conceitualmente implicados uns nos outros. Aescalamusicaleasmelodiasoferecembonsexemplosdesistemasparadigmticose sintagmticos de relaes internas, ou, para falar como Saussure, de diferenas arbitrrias, porm internamente relacionadas: as notas formam um sistema paradigmtico completo, o valor de cada umasendorigorosamentedeterminadopelaposiodetodasasoutras;amelodia,porsuavez, que reordena sintagmaticamente as notas, no nada seno a realizao contingente de uma srie internamente relacionada de possibilidades musicais. Outra boa ilustrao a descrio do ciclo econmicoporMarx(Marx,[1857]1973:81-11):produo,consumo,distribuioetrocade bens econmicos esto mutuamente implicados em um silogismo dialtico. Como membros da totalidade,representamapenasdistinesnointeriordeumaunidadee,enquantotais,so emsuaformaunilateraldeterminadospelosoutrosmomentos.Maisdoqueisso,estes processos so idnticos, ainda que analisados de ngulos diferentes32. O mesmo poderia ser dito 31Estaumalinhadeargumentaoabsolutamenteno-durkheimiana.ComoDurkheimdeixouclaroemseu discurso inaugural (Durkheim, [1888] 1970: 78-85), o projeto de estabelecimento da sociologia como uma disciplina autnomaestanaliticamenteligadoautonomiadoseuobjeto,sendodependentedamesma.Deve-seressaltar tambm, nesse contexto, que esta definio analtica do campo est em conflito com a anlise gentica dos campos deBourdieu,deacordocomaqualcamposnosoinvarianteshistricas,massemergemnostemposmodernos como sistemas auto-referenciais diferenciados de seu ambiente (Luhmann) ou desengatados do mundo da vida (Habermas).Paraumaexploraodatensoentreaespecificidadehistricaeavalidadetrans-histricadoaparato analtico de Bourdieu, ver Calhoun (1995: 132-61). 32 Esta sobredeterminao (Althusser) o que distingue teorias dialticas de totalidades (laterais) de anlises mais funcionaisdesistemas(verHabermas,1976).Asinter-relaes,oumelhor,intra-relaesdialticasentreos noapenasdasposiesquecompemumcampo,mastambmdasprincipaiscategoriasde Bourdieu:asnoesdecampo,capitalehabitusnopodemserdefinidasseparadamente;na verdade,ocampoidnticodistribuiodecapitaleohabitusidnticoaocampo,embora analisado a partir de uma perspectiva diferente. AindaqueBachelardeBourdieunoutilizemadistinoentreessnciaseaparncias, elescertamenteconcordamcomMarxquantoaofatodequeacinciasemprealmejao conhecimento do oculto (Bachelard, [1949] 1986: 38; Bourdieu, 1996: 16). De modo a descobrir o que est encoberto, a cincia tem de construir modelos analgicos do mundo social, ou, dito talvezdeumamelhorforma,doespaosocial,modelosquerecuperemosprincpiosocultos subjacentessrealidadesqueelesinterpretam(Bourdieuetal.1973:76).Aconstruodeum modelo ideal-tpico do espao de relaes estruturais entre as relaes fenomnicas permite que tratemosasdiferentesformassociaiscomovriasrealizaesdistintasdamesmafuno (simblica).Nessaperspectiva,orealaparece,comodizBachelardegostaderepetir Bourdieu, como um caso particular do possvel (Bachelard, [1934] 1991: 62), o que pressupe, claro,queocasoparticularsejarelacionadospropriedadesmaisgeraisdasquaiseleuma funo.Assim,paratomarumexemplodocampoacadmico,quandosabemosaposioexata deumindivduoepistmico(Bourdieu1984a:36),definidapelatotalidadedaspropriedades relevantes-comotrajetria,volumeeestruturadosdiferentestiposdecapital(econmico, cultural,social,simblico,etc.)-quepodemseratribudosaelaequesotomadascomo eficazesnaexplicaodavariaodasposiesnocampo,noimportarealmentese consideramosdiferentesindivduosempricoscomoLvi-Strauss,BraudelouFoucault,pois, dopontodevistadoanalistaqueconsidera-oscomorealizaesdopossvel(ou personificaesdeestruturas,comodiriaMarx),elesapenasrepresentamcasossimilaresdo possvel,sendo,comotais,quaseindistinguveis.Umavezqueaspropriedadesinvariantes (illusio,interesses,lutapelomonopliodaautoridade,volumeeestruturadocapital,oposio entrefraesdominantesedominadasdasdiferentesclasses,estratgiasdeconservaoe subverso,etc.)deumdadocampodeprticassejamconhecidas,eumavezqueosprincpios gerativoseunificadoresdeumsistemaderelaesestejamcodificadoseformalizadosno

elementosdeumatotalidadeorgnicapermanecemdedifcilcompreensoparamentesmaisanaliticamente inclinadas,comoPareto,porexemplo,quereclamaqueosconceitosdeMarxsocomomorcegos:pode-sever neles ratos e pssaros ao mesmo tempo (citado em Ollman, 1971:3).modeloterico,talmodelopodesertranspostopara,ecomparadocom,outroscamposde prticas, visando-se descoberta de homologias estruturais e funcionais. Estatransposiodemodelosdeumcampoaoutronoimplica,noentanto,que Bourdieunoreconheaadiferenciaofuncionalquecaracterizaasociedademoderna(Bohn, 1991: 133-139; Alexander, 1995: 157-164). Embora os campos tenham emergido historicamente eadquiridocertaautonomia,elesestointerconectadosdemaneirascomplexas,eaaplicao comparativadafrmulagerativadesuaestruturaefunomostraprecisamentecomoa invarinciaformalouestruturaleavariaomaterialouempricapodemserpensadas conjuntamente, de modo que a tendncia em direo reduo de um campo a outro, casu quo aocampoeconmico,possaserevitada33.Entretanto,mesmoqueoreducionismodainfame ltima instncia possa ser evitado deste modo, o problema do reducionismo reemerge sob uma outraforma,qualseja,comoumaespciedereducionismodecampo(Swartz1997:293)no qualosprodutoresdeprodutosculturaistendemaservistoscomoemanaesdalgicado campointelectual,sendoseusprodutosconcebidoscomovriosepifenmenosdasrespectivas posies que ocupam naquele. Como um terico-pesquisador de campo(s), Bourdieu multiplicou suapesquisacomparativaemdiferentescamposdaprtica(hautecouture,literatura,arte, esporte,filosofia,poltica,mercadosimobiliriose,porltimo,masnomenosimportante,a mdia [Bourdieu, 1996] e a economia [Bourdieu, 1997b]), chegando a anunciar a publicao de um livro, em que estava aparentemente trabalhando, acerca da teoria geral dos campos, obra que, entretanto, no foi publicada. Racionalismo Aplicado Agoraqueanalisamoscomoofatocientficoconquistadocontraosensocomume sistematicamente construdo como um efeito relacional da teoria, podemos proceder anlise do 33 A idia da invarincia estrutural de um cdigo universal (Lvi-Strauss), que gera e explica todas as diferenas fenomnicas,permitequesejamestabelecidascorrespondnciasformaisouhomologiasestruturaisentrediferentes campos.Essacombinaoentreinvarinciaformalevariaomaterialoquetornapossveiscomparaes internacionais bem-sucedidas. Assim, para tomar o exemplo do campo educacional, mesmo que fora da Frana no hajaumequivalenteexato,digamos,dacoledesHautesEstudesenSciencesSocialesoudoCollgedeFrance (aindaqueoIuperj,noRiodeJaneiro,estejabastanteprximodaprimeiraeaAllSoulsCollege,deOxford, bastante prxima do ltimo), suficiente aplicar a grade relacional, transp-la para um novo contexto e equivalentes estruturaissemdvidaseroencontrados.Anoohologramticadehomologiavem,nasuaversoestrutural,de Lvi-Strauss e, na sua verso praxiolgica, de Panosky. processo de verificao da teoria. Contra o dogma empiricista da percepo imaculada, Bourdieu enfatiza uma vez mais que os fatos so sempre e necessariamente sobredeterminados pela teoria. Namedidaemqueosinstrumentosetcnicasdapesquisaempricaso,comodisseBachelard certavez,teoremasrealmentereificados(Bachelard,1971:137),todasasoperaesda pesquisasociolgica,daformulaodeumquestionriosuacodificaoeanliseestatstica, tmdeserconsideradascomovriasteoriasemao(Bourdieuetal.1973:59).Um conhecimento acurado daquilo que se faz sobre e com os fatos, bem como do que os fatos podem ou no fazer, , portanto, o primeiro requisito da pesquisa sociolgica. Por exemplo, a tcnica da anlise multivariada, que parece aplicvel a todos os tipos de relaes quantificveis, pressupe a independnciadasvariveisdependenteseindependentes.Eossocilogos,querotineiramente aplicamessemodolineardepensamentosempensarmuitoarespeito,noestonemmesmo atentos ao fato de que as variveis esto internamente ligadas e s assumem seu valor numrico, bemcomosooqueso,graassuaposioefunoemumafiguraoestrutural(Elias, [1965] 1985: 234). Alm disso, dado que no pensam em termos de causalidade estrutural, eles seagarramidentidadenominaldesuasvariveis,assumindoqueseusefeitossopuramente lineares e no percebendo que, em cada uma das variveis, a rede de relaes entrelaadas exerce suaeficciaatravsdetodasasoutras(Bourdieu,1979a:113-22,512-14)34.Oresultadoda aplicao-padro da tcnica da anlise multivariada uma confuso ontolgica entre o mtodo e acoisaemsi(Dingansich),levandoaumasituaoemqueomtodosimplesmente reificadoemumarealidadelineargeral(Abott,1988)35.Demaneiraaevitaroriscoda reificao, qualquer correlao estatstica entre variveis obtida pela anlise multivariada tem de ser sistematicamente reinterpretada como uma funo do sistema de relaes entre relaes que dsentidorelaoestatsticaobservada.Comatcnicaestatstico-descritivadaanlisede correspondncia, uma variante avanada da anlise fatorial que , obviamente, a tcnica favorita deBourdieu,istononecessrio,poistaltcnicanonadamais,porassimdizer,doquea 34 O modo linear de pensamento viola, portanto, o que um analista de redes chamou adequadamente de imperativo anticategrico (Emirbayer, 1994: 1414). Este imperativo rejeita explicaes que concebem o comportamento social comooresultadodapossessocomumdeatributoscategricosporindivduos,estipulandoqueessesatributos categricos assumem seu significado apenas quando so inseridos em um sistema estrutural de relaes internas.35 Cartografando as pressuposies lineares ocultas que subjazem anlise multivariada, Abott descreve o efeito de reificaonosseguintestermos:Muitossocilogostratamomundocomoseacausalidadesocialefetivamente obedecessesregrasdastransformaeslineares.Elesfazemissoassumindo,nasteoriasqueabremseusartigos empricos, que o mundo social consiste em entidades fixas com atributos variveis, que esses atributos tm apenas umsignificadocausaldecadavezequeessesignificadocausalnodependedeoutrosatributos,daseqncia passada de atributos ou do contexto de outras entidades (Abott, 1988: 181) materializaooperacionaldomododepensamentorelacionalquecaracterizaoestruturalismo gerativo36. Na medida em que cada fato implica toda a teoria e que toda a teoria est implicada em cada fato, popperianos consideram o modo estrutural de verificao (que baseia-se no em uma teoriadaverdadecomocorrespondncia,mascomocoerncia)comono-cientficoou,pior ainda,comodogmticoeintrinsecamenteterrorista(FerryeRenaut,1988:259-68)37. Entretanto, contra a falsificao popperiana de hipteses ad hoc, deve-se acentuar, com Duhem, que um experimento no pode nunca falsificar uma hiptese isolada, mas apenas uma totalidade terica(Duhem,citadoemBourdieuetal.1973:89-90).Almdisso,contraPopperecom Lakatos (1970) - que deve ser lido como um hegeliano e, portanto, como um primo intelectual de Bachelard-,deve-seconsiderarqueoestruturalismogerativodeBourdieunorepresentauma teoria singular isolada que pode ou no ser refutvel, mas um frtil e bem-integrado programa de pesquisa que incorpora ou engloba uma multiplicidade de outras teorias, de Garfinkel a Elias. Admitidamente,oncleodurodesteprogramadepesquisamuitoduro.Entretanto,se concordarmoscomLakatoseaceitarmosqueumadisciplinascientficanamedidaemque programas de pesquisa progressivos triunfam sobre degenerativos, ento, mutatis mutandis, no h razo para considerarmos o projeto do coletivo cientfico que Bourdieu dirigia de Paris comopseudoouno-cientfico.Alargandoumpoucoesseargumentoeabandonando deliberadamenteaposturacientificistadoestruturalistafeliz,euestariaatinclinadoa relaxarocritriodecientificidadeeconsiderarseuprogramadepesquisaemtermosmais estticos38.Embelezadocomoporsuatonalidadeproustiana,omododeanliserelacional- 36Aanlisedecorrespondnciaajudaaentenderocontedodasassociaesentrevariveispormeiodasua visualizao. Categorias que co-ocorrem de modo relativamente freqente so aproximadas em um mapa, enquanto categorias que se excluem mutuamente, isto , que co-ocorrem de modo relativamente raro so distanciadas entre si (deNooy,2003:307).IndocontraarejeiodaanlisederedessociaisporBourdieu,deNooyargumentano apenasqueaanlisederelaesobjetivas(correspondncia)eaanlisederelaesinterpessoais(redes)so complementares, mas que so, tecnicamente falando, idnticas. 37Vistosdeumaperspectivapopperiana,omaterialismohistrico,apsicanliseeaassimchamadapsicologia individual aparecem como pseudocincias. Elas no so cientficas porque no podem ser falseadas. Sua fora suafraqueza.NohdvidadequeacrticaqueSirKarlPopperdirigeaMarx,FreudeAdler(masnuncasua prpriateoria)seaplicateoriadoscamposdeBourdieu:Essasteoriaspareciamsercapazesdeexplicar praticamentetudooqueacontecianoscamposaosquaiselassereferiam.Oestudodequalquerumadelasparecia teroefeitodeumaconversoourevelaointelectual,abrindoseusolhosparaumanovaverdadeocultaqueles aindano-iniciados.Umavezqueseusolhosestivessemabertos,portanto,vocviaexemplosconfirmatriosem todolugar:omundoestavacheiodeverificaesdateoria.Oquequerqueacontecessesempreasconfirmava (Popper, 1989: 34-35).38 Caill considera o trabalho de Bourdieu o smile sociolgico da Comdie Humaine de Balzac, concluindo que ele pertenceaodomniodaliteraturaconceitualizada(Caill1992:113),sem,noentanto,eistoimportante, estruturaldeBourdieuofereceumretratocoerenteesistemticodomundosocial.Aesse respeito,elelembraumapinturaque,graasaorefinamentoconstante,torna-semaisunificada, enquantocadadetalhe,sedesligadodotodo,perdesignificadoeterminapornorepresentar nada39.ParaBourdieu,omundonoapenassuaapresentao,mas,emltimainstncia, tambm sua construo e verificao, um composto de construtos conceituais realizados e idias verificadas. O habitus, ou a concretizao ocasional do real De acordo com o mentor de Bourdieu, o pensamento progride dialeticamente por meio de ummovimentodeenglobamentoqueabarcaposiesetentaincorpor-lasemumquadro conceitualmaisamploquesuperecomsucessosuaslimitaesanteriores.Estemovimento dialticodealargamentooperapormeiodeumamediaoatravsdos(mas,paceAdorno,no nos) extremos. Pode-se falar de uma lei psicolgica da bipolaridade dos erros. Assim que uma dificuldadetorna-seimportante,podemosestarcertosdeque,aoevit-la,esbarraremosemum obstculo oposto (Bachelard, [1938] 1993: 20). Assim, para tomar a histria do nosso campo no ps-guerracomoexemplo,quandoauni-dimensionalidadedoestrutural-funcionalismo(ede posiesobjetivistascorrelatascomoestruturalismo,marxismo,etc.)tornou-secrescentemente manifesta no final dos anos 60, uma reao microssociolgica surgiu e, ao final dos anos 70, j havialevadoopndulometatericoparaooutroextremo,odosubjetivismouni-dimensional, representado(porrazespedaggicas)porSchutz,Blumer,Garfinkeleoutros.Foiapenas

emprestar conotaes excessivamente negativas a essa caracterizao esttica. De minha parte, considero o trabalho deBourdieumaisproustiano,eivadocomodassutilezasdesuaobservao,dadireoinovadoradesuas associaesedasreflexesminuciosamentedetalhadassobreavidacotidiana,atravsdasquaisavidaeosangue soinseridosnoqueseria,deoutromodo,umsistemaaltamenteformalista.E,aindaquesuassentenas pesadamente articuladas, que devem ser reconstrudas praticamente como sentenas latinas (Bourdieu, 1987a: 66), possam lembrar por vezes o estilo elefantino de Parsons, devo dizer ou melhor, confessar? que gosto bastante das suas sentenas de estilo germnico, com uso abundante da vrgula, do ponto-e-vrgula e do hfen, frases imersas umasnasoutras,acrobaciasreflexivas,jogosdepalavrasliterrios,refernciaseruditasescolstica,oblquos ataques polmicos a adversrios no-citados e uma predileo quase adorniana por inverses quiasmticas, negaes e paradoxos. 39Acoernciadateoriae,assim,dasuaverdadetambmencontraexpressonopolitesmometodolgicode Bourdieu:Noapenaselefreqentementetriangulaouvalidaseusresultadosexpostcomdiferentesmtodoso encaixeentreosvriosresultadosassimgeradossubstituindoadiscussotcnicadosintervalosdeconfianae questes do gnero -, como tambm l dados quantitativos etnograficamente, isto , como meios exploratrios ou confirmatriosdelocalizaodepadressubjacentes,enquanto,inversamente,freqentementeinterpreta observaesdecampoestatisticamente,ouseja,comoobjetivodeconstruirinfernciaseelaborarrelaesentre as variveis (Wacquant, 1990: 683). quandoaslimitaesdoobjetivismoedosubjetivismoforamambasacentuadasquea possibilidade de uma articulao sinttica entre micro e macro eventualmente emergiu nos anos 80(Alexanderetal.1987).Aindaquenossofilsofo-tornado-antroplogohouvesse desenvolvidooprincipalesboodesuatentativadetranscenderabipolaridadedoserros subjetivistaeobjetivistajnoinciodosanos70(Bourdieu,1972),suateoriadaprtica claramentepartedeummovimentoestruturistamaisamplonateoriasocial,queadquiresua inspiraonasTesessobreFeuerbach,deMarx,edoqualSartre,BergereLuckmann, Habermas,Giddens,BhaskareoCastoriadistardiosoprovavelmenteosrepresentantesmais bem conhecidos (Vandenberghe,1998: 322-339).Movendo-nosdeconsideraesepistemolgicasparadiscussesmaismetatoricas, podemosagoraapresentaratentativabourdieusianadesuperaraoposioentresubjetivismoe objetivismo por meio da introduo de uma relao suplementar: um relacionamento vertical que estabeleceamediaoentreosistemadeposiesobjetivaseasdisposiessubjetivas.Este, evidentemente, o momento em que aparece na cena o velho e venervel conceito aristotlico de hexis,queBocioeTomsdeAquinotraduziramcomohabitusequeoetnofilsofofrancs transformou em um de seus conceitos centrais40. Como bem conhecido agora, Bourdieu utiliza o conceito de habitus - sempre entendido como habitus de classe e definido como um sistema de disposiesdurveisetransponveis,estruturasestruturadaspredispostasafuncionarcomo estruturasestruturantes(Bourdieu,1972:155;1980:88-89)-comoumaespciedeoperador 40Paraahistriaintelectualdoconceito(Aristteles,Bocio,Averris,TomsdeAquino,Hegel,Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty, Mauss e Panofsky), ver Bourdieu (1985: 14), Funke (1974), Rist (1984), Hran (1987) e Wacquant (2004; 2005). Em Bourdieu, a noo de habitus inclui esquemas lgicos (o eidos), esquemas prticos (o ethos)esistemasdeaocorporal(ahexis)(Peters,2006:82-85).Noobstantealongatradiodoconceito,a influnciadomovimentofenomenolgicorealmentedecisivanaminhaopinio,embora,infelizmente,devido faltadeespao,eunopossaexploraressaveiafenomenolgicaaqui.AindaqueHusserlutilizeoconceitocom certaregularidade,BourdieumaisinfluenciadoporHeidegger,seuprimeiroamor,queusaoconceitomenos freqentemente.AdespeitodainflunciasignificativadasIdeenII(Husserl1952)sobreBourdieu(eMerleau-Ponty),estclaroqueelenotemmuitasimpatiapelocartesianismoradicaldafenomenologiatranscendentalde HusserleestfelizemseguiraguinadadeHeidegger,queabandonaafenomenologiatranscendentaldomestre emdireoaumaanalticaexistencialdoDasein.Vistacontraessepanodefundo,acrticadafilosofiada conscinciafeitaporBourdieu,manifestanasuainsistnciasobreanaturezapr-reflexivaerotinizadadenossas prticas, comea a fazer sentido. Como Heidegger e contra Husserl, Bourdieu est simplesmente convencido de que o conhecimento um modo fundado (ou derivado) de ser-no-mundo do Dasein (Heidegger, [1927] 1993: parte 1: 62). No entanto, no que tange ao conceito de habitus, est claro que a anlise do hbito de Merleau-Ponty a que mais se aproxima daquela de Bourdieu. Tendo lido Bourdieu antes de Merleau-Ponty, tive realmente a impresso de estar lendo Bourdieu diante das descries fenomenolgicas dos atos de escrever na mquina de escrever e tocar rgo (Merleau-Ponty, 1945: 166-72). Para uma boa explorao dos trabalhos praxiolgicos do habitus atravs de umaanlisedahexispugilstica,verWacquant(1995),e,paraumaauto-apresentaodotrabalhoedosinteresses variados deste intrprete transatlntico designado pelo prprio Bourdieu, ver Wacquant (1996d). tericoque,aoconferirumacoernciaformalaaesquesoextremamentediferentes materialmente,estabeleceamediaoentreosistemainvisvelderelaesestruturadas(pelas quaisasaessomodeladas)easaesvisveisdosatores(queestruturamasrelaes41). Comoumconstrutolgicoirredutvelssuasmanifestaes(Bourdieu,1974:31),ohabitus em si no pode ser observado, mas, tal como as instanciaes prticas das estruturas virtuais de Giddens (Giddens, 1979: 53-76; 1984: 16-28), pode ser detectado nas suas atualizaes, quando uma condio permissiva (o estado do campo, do mercado, etc.) fornece a ocasio apropriada paraadisposiovirtualsemanifestar,concretamente,narelaocomumasituaoparticular (Bourdieu, 1979a: 112; 1984b: 135; 1997a: 178)42. Assim, como um mediador entre energeia e actu (Aristteles), o habitus (ou suas variantes lgicas, prticas e corpreas) tambm estabelece a mediaoentreasestruturaseasaes,resolvendo,portanto,aantinomiaentreobjetivismoe subjetivismo: No se deve esquecer que, em ltima instncia, as relaes objetivas no existem enoseconcretizamrealmenteexcetonoseatravsdossistemasdedisposiesdosagentes, produzidospelainternalizaodascondiesobjetivas.Entreosistemaderegularidades objetivaseosistemadecondutasdiretamenteobservveisumamediaosempreintervm,a qualnonadamaisdoqueohabitus,olocusgeomtricodosdeterminismosedeuma determinao individual (Bourdieu ,1965: 22; 1968: 705). Entreohabituseocampohumacumplicidadeontolgica(Bourdieu,1982a:47; 1994:154):quandoohabitusentraemrelaocomomundosocialdoqualoproduto,o habitussente-seemcasacomoumpeixenagua.Ohabitusestinternamenteligadoao campo, a ponto de cada um referir-se mesma coisa, porm considerada de um ngulo diferente: comoergon(opusoperatum)ouenergeia(modusoperandi)43.Ohabitusainteriorizaoou incorporaodeestruturassociais,enquantoocampoaexteriorizaoouobjetivaodo habitus.Entretanto,nosedeveconceberarelaoentreosdoiscomopuramentecircular, 41Paraumacrticaforteeconvincentedoconceitobourdieusianodehabitus,verLahire(1999:121-152).Desde ento, Lahire transformou sua poderosa crtica de Bourdieu em um projeto autnomo de pesquisa que investiga em detalhe as mltiplas manifestaes contextualizadas de disposies (Lahire, 1998, 2002).42Nessesentido,pode-sedescreverospoderesvirtuaisdohabituscomopoderespassivosoupotencialidades, bem como tais potencialidades como as disposies do agente para agir em virtude de sua natureza essencial, sendo o estmulo que ativa a disposio do agente parte das circunstncias extrnsecas (Harr, 1970: 272). Assim como a disposioderoubarsemanifestaapenasquandoumasituaoapropriadaseapresenta,ohabitusssetorna atualizado e manifesto em certas circunstncias concretas que acionam seus poderes. 43AdistinoentreergoneenergeiavemdeVonHumboldt;elacorrespondedistinoentreopusoperatume modus operandi, que vem de Panofsky. Cassirer, que trabalhou com Panofsky no Instituto Warburg em Hamburgo, o mediador entre os dois autores. relaonaqualohabitus,produtodasestruturaseprodutordasprticasereprodutordas estruturas(BourdieuePasseron,1970:244),simplesmentereproduzasestruturas44.Defato, comoocomandanteMaocostumavadizer,deveramostorcerobastonaoutradireo,ler Bourdieu com os olhos de Giddens, ver seu trabalho como uma preliminar a Habermas e insistir nas capacidades transformativas do habitus45 . No obstante a auto-censura de Bourdieu46, penso, 44Almdomais,apenasemcircunstnciasexcepcionais,sequealgumavez,queohabitusfuncionacomoo malin gnieda reproduo perfeita. O modelo ideal-tpico, o que significa, de acordo com Weber, que ele nunca ocorre na realidade e, portanto, puramente heurstico. Deve-se lembrar que a situao-limite de reproduo perfeita apenas um caso particular do possvel, evitando-se universalizar inconscientemente o modelo da relao quase-circulardequase-perfeitareproduo,quesvlidonocasoemqueascondiesdeproduodohabituseas condiesdoseufuncionamentosoidnticasouhomlogas(Bourdieu,1974:5).Noobstanteofatodeque Bourdieutambmanalisasituaesemqueacumplicidadeontolgica(Heidegger)entreohabituseocampo rompida (o assim chamado efeito de hysteresis; ver Bourdieu, 1977a; 1984: 207-50), preciso, no entanto, ressaltar que at agora a situao de perfeita cumplicidade tem sido sistematicamente privilegiada. A esse respeito, Bourdieu involuntariamente se assemelha a Parsons. De fato, suficiente manipularmos um pouco algumas sentenas de The socialsystemparaobtermospossveisextratosdeAreproduo:Serassumidoqueamanutenoda complementaridadedasexpectativasdepapel(dohabitusedocampo),umavezestabelecida,noproblemtica; em outras palavras, que a tendncia manuteno do processo de interao a primeira lei do processo social. Isto claramente um pressuposto (Parsons, 1951: 205); A teoria, em relao a tais sistemas, est dirigida para a anlise das condies sob as quais um dado padro constante do sistema ser mantido e, inversamente, das condies sob as quais ele ser alterado de modos determinados. Esta, podemos conjecturar, a base fundamental do pressuposto de nossa lei da inrcia dos processos sociais (Op.cit: 482); e, por ltimo, mas no menos importante, se a teoria boa teoria, qualquer que seja o problema que ela ataca mais diretamente, no h nenhuma razo para acreditar que elanoserigualmenteaplicvelaproblemasdemudana(Op.cit:435).E,comefeito,nosendoapenas grandiosa,mastambmgrandeeboateoria,nohrazonenhumaparanoselerosistematericode Bourdieu, contra a corrente, como uma teoria sistemtica das condies de possibilidade da mudana social. 45 Sempre tive a impresso de que a topologia do espao de possibilidades metatericas formulada por Bourdieu era perfeita.ComoBachelardemseuperfilepistemolgico(Bachelard,[1940]1988:41-51),Bourdieumapeou sistematicamente as oposies epistemolgicas e metatericas que estruturam a disciplina sociolgica: A oposio entre Marx, Weber e Durkheim, tal como ritualisticamente invocada nos cursos e dissertaes, esconde o fato de queaunidadedasociologiaest,talvez,localizadanoespaodeposiespossveis.Oantagonismo,quando compreendido como tal, prope a possibilidade da sua prpria superao (Bourdieu, 1987a: 49; ver tambm 1971b: 295).Eaindaque,nofimdascontas,emsuatentativadetranscenderasoposiesrituaisentreobjetivismoe subjetivismo, determinismo e voluntarismo, materialismo e idealismo, externalismo e internalismo, etc., ele sempre termine no mesmo plo da polaridade, transcendendo, por exemplo, o dualismo objetivismo-subjetivismo enquanto permanecefirmementeenraizadonoobjetivismoourejeitandoraivosamenteodeterminismoenquantoproduz persistentementemodelosdeterministasdeprocessossociais(Jenkins,1992:175),emprincpio,nadadeveria impedir-nosdetentartorcerobastonaoutradireo.Aoargumentardestaforma,estoutentandoresponderao celebradoretornodosujeitoeinflexopragmtica,descritivaeinterpretativaquecaracterizaateoriasocial francesa ps-bourdieusiana e se manifesta na maior nfase conferida natureza reflexiva da ao pelo eixo da prxis (thepraxisaxis)habermasiano-ricoeurianoepelafraodaao(actionfraction)etno-boltanskiana(Gauchet, 1988; Dosse, 1995). Se, por razes pessoais, Boltanski e outros ex-bourdieusianos tiveram de romper com a teoria social crtica de Bourdieu como tal, de modo a desenvolverem uma teoria da crtica social (Boltanski e Thvenot, 1991), estou procurando chegar mesma posio por meio de uma crtica imanente. Argumentando com Bourdieu contraBourdieu,buscoabrirosistemaapartirdedentroeafrouxarasrdeasdasuaproblmatiquefirmemente construda. Isso no significa que eu no esteja interessado nos limites do sistema, mas apenas que evito me situar foradosconfinsdomesmo.TalcomooprprioBourdieu,soufascinadopeloqueseencontraforadosistema:a verdadeiraddiva,averdadeiracomunicao,averdadeiraamizade,overdadeiroamor,emsuma,omilagre maussianodatrocasimblicaqueescapadominao,aoclculo,manipulao,etc(Vandenberghe,2008). Assim,paratomarmosseulivromaisrecentesobreadominaomasculina,queofereceumareinterpretao feminista de sua antiga pesquisa antropolgica sobre os sistemas tradicionais de classificao na Cabila (Bourdieu, entretanto,queeleencorajariatalleituratransformativa47.Maisdoqueisso,pensoqueele deveria t-lo feito se quisesse tornar sua teoria alinhada s suas intenes polticas, as quais, ao finaldesuacarreira,noerammaisreprimidas,masabertamentedeclaradas(Bourdieu,1998a; ver tambm mais abaixo). certo que o habitus o produto de estruturas sociais, mas, se pararmos aqui, podemos cair na armadilha da leitura determinista pura e esquecer que, como princpio gerador de aes, avaliaesepercepes,ohabitustambmestruturaomundosocial48.Ohabitusreproduzo mundosocial,mas,dadoqueumprocessodeseleo(Bourdieu,1997b:63)ouauto-interao (Blumer, 1969: 15, 50), ou ainda (por que no?) comunicao racional (Habermas, 1981:69,212)49sempreintervmentreoestmuloearesposta,nosepodeinferir mecanicamenteoconhecimentodosprodutosdoconhecimentodascondiesdeproduo (Bourdieu, 1984b: 135). O habitus transforma aquilo pelo qual ele determinado, e, mesmo que oprincpiodatransformaopossaserachadonafissuraentreaestruturaeohabitus,noh razoparasesuporqueaprofundidadedessafissuraeoseusignificadonodependemdo habitus(Bourdieu,1997a:177-78).Afinaldecontas,osagentessodeterminados,masapenas namedidaemquedeterminamasimesmos.Sesemprehespaoparaumalutacognitiva relativaaosignificadodascoisasdomundo(Bourdieu,1998b:19),nadaexclui,portanto,o potencialdoagenteparatransformaromundodemodono-previsvel.Almdisso,o

1972) e utiliza-a como um tipo ideal para descobrir a onipresena da dominao simblica masculina no Ocidente, o querealmentemeinteressaoPost-Scriptum(no-cientfico?)sobreoamoreadominao(Bourdieu1988b: 116-119),noqualBourdieufalaabertamente,provavelmentepelaprimeiravez,sobreoslimitesdoseusistema, casu quo o miraculoso cessar-fogo, o fim da guerra e das lutas, o fim da troca estratgica, ou, mais positivamente, a no-violncia,oreconhecimentomtuo,areciprocidadeplena,odesinteresse,aconfiana,oencanto,afelicidade ou paz, para falarmos como Adorno. 46Apenasumexemplo:nofimdeLanoblessedEtat,Bourdieuesboaummodelodaprogressohistricado universal.EmumaentrevistacomWacquant(1993b:35-36),eleconfessaque,quandoestavalendoasprovasdo livro, decidiu cort-lo, mas o gerente de produo das ditions de Minuit inadvertidamente deixou-o no volume. 47 Comparando seus primeiros trabalhos - inclusive aqueles mais praxiolgicos, comoEsquisse dune thorie de la pratique,emqueBourdieuafirmaexplicitamentequeasprticassempretendemareproduzirasestruturas objetivasdasquaisso,emltimaanlise,oproduto(Bourdieu,1972:175)-comseustrabalhosmaisrecentes (especialmente Bourdieu, 1997), podemos notar um enfraquecimento progressivo do hiper-determinismo. Ainda que os acentos chomskyanos sobre a capacidade gerativa dohabitus estivessem presentes desde o incio (Bourdieu e Passeron,1967:151-64),anfasenanaturezaativa,improvisadora,inventivaeatmesmocriativadohabitus relativamente nova (Bourdieu, 1984b: 134-35; 1987a: 23; e 1997: 170-93).48suficienteestabelecerumacomparaocomolivretometafsicodeRavaissonsobreohabitus,doqual HeideggergostoutantoeondeohbitocaracterizadocomoatransformaodaLiberdadeemNaturezaeda Vontade em Instintos (Ravaisson [1838] 1997: 82-103), para perceber que Bourdieu confere uma inflexo ativista ao conceito de segunda natureza.49 Quando escrevi este texto, referi-me comunicao com um aceno ao pragmatismo e teoria crtica. Desde ento, Margaret Archer (2003) convenceu-me de que mediamos ativamente a relao entre agncia e estrutura em e atravs de nossas conversaes internas. Sobre a mediao da meditao, ver infra, cap.6. reconhecimentoabertodacriatividadedohabitusedesuapossibilidadederefletirsobresuas prpriasdeterminaestemavantagemno-negligenciveldetornaraspressuposies metatericas de sua teoria da ao - que , afinal de contas, uma teoria que enfatiza o primado darazoprtica(Bourdieu,1987a:23)-maisalinhadascomaintenocrticaqueanimaseu pensamento50.Pensoquesuaindignaomoral,sublimadaemhiper-violnciaterica(Caro, 1980:1175),gerariamaisfrutosseohiper-determinismofosseenfraquecido,demodoqueo voluntarismopudesseobteroquelhedevido.ComoSartrecostumavadizer,oqueimporta realmente no o que se faz com um homem, mas o que ele faz com o que feito a ele (citado em Terrail, 1992: 229). 3. A teoria dos campos O campo de produo cultural Assimcomoanoodehabitusfoiconcebidacomaintenoderompercomo paradigmaestruturalistasemrecairnavelhafilosofiadosujeitooudaconscincia,parasair, portanto,dafilosofiadaconscinciasemperderdevistaoagentenasuaverdade,comoum operadorprticodeconstruesdarealidade(Bourdieu,1992a:253),anoodecampo (champ)foiconcebidadesdeoinciocomoummododerejeitaraalternativaentreuma interpretaointernaeumaexplicaoexterna(idem:254)diantedaqualtodasascincias culturais (cincias da religio, histria da arte ou da literatura, sociologia da religio, do direito ou da cincia) estavam situadas. Em assuntos culturais, a oposio entre a anlise formalista, que ofereceumainterpretaoimanente(outautegrica)dosignificado(e.g,semitica, arqueologia, gramatologia, ps-modernismo, a nova nova crtica, etc.), e a anlise reducionista, queapresentaumaleituraexterna(oualegrica),querelacionadiretamenteosignificado 50EmumasoberbacrticadasociologiareflexivadeBourdieu,Kgler(1997a)mostraque,emboraBourdieu pressuponhaemprincpioapossibilidadedeumareconfiguraooureestruturaoreflexivadohabitus,ele incapaz,narealidade,deultrapassaroabismoentreosdiscursosleigoeintelectual,bemcomodeligara reflexividadedosocilogoreflexividadedosagentes.Baseando-seemGadamer,Kgler(1997b)tentaresolvero problemainterpretandohermeneuticamenteohabitusdetalmodoqueareconstruotericadohabituspelo socilogo seja reconectada auto-compreenso crtica dos habitus dos agentes. economia (e.g, marxismo) ou ao poder (e.g, nietzschianismo, weberianismo)51, pode ser superada mostrando-sequeasinflunciasecoaesexternas(econmicasepolticas)sosempre mediadas e refratadas pela estrutura do campo cultural particular (literatura, arte, cincia, etc.) queintervmentreasposiessociaisdoprodutoreasposturas(prisesdepositions)nasquais aquelasposiessoexpressas,posturascujoprincpioencontra-senaestruturaeno funcionamento do campo de posies52. Ateoriadocampoarealizaoconcretadopensamento