francis bacon - ceticismo e doutrina dos ídolos

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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 18, n. 1, p. 47-84, jan.-jun. 2008. CDD: 192 Francis Bacon: ceticismo e doutrina dos ídolos LUIZ EVA Departamento de Filosofia Universidade Federal do Paraná/Pesquisador CNPq CURITIBA, PR [email protected] Resumo: Neste artigo nos apoiamos em testemunhos diversos de Francis Bacon a respei- to da relação entre sua filosofia e o ceticismo filosófico para estender o exame desse ponto ao âmbito de sua “Doutrina dos Ídolos”. Pretendemos mostrar que, se por um lado as semelhanças revelam-se aí significativas (especialmente em vista das fontes céticas renascentistas), pode-se também observar, de outra parte, que já nessa Doutrina Bacon prepara uma via diversa da que atribui aos céticos, tanto em vista do modo como compreende a noção de natureza humana, como do encadeamento metódico a que ele submete o material que toma dos céticos. Palavras-chave: Bacon. Ceticismo. Doutrina dos ídolos. Filosofia do Renascimento. Abstract: In this paper we start from some testimonies of Francis Bacon on the similari- ties he sees between his own philosophy and philosophical skepticism, hoping to extend the examination of this point to his Doctrine of Idols. We aim to show that, at one hand, they are actually very significant, especially if we take into account Renaissance skeptical sources. On the other hand, however, through his Doctrine Bacon also wish to prepare a different path from those of the skeptics, lying upon a particular conception of the human nature, as well as on the methodical treatment he offers to the Skeptical material he employs. Keywords: Bacon. Skepticism. Doctrine of the idols. Renaissance Philosophy.

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Logic, Language and Knowledge. Essays on Chateauriand’s Logical Forms Walter A. Carnielli and Jairo J. da Silva (e

Cad. Hist. Fil. Ci., Campinas, Série 3, v. 18, n. 1, p. 47-84, jan.-jun. 2008.

CDD: 192

Francis Bacon: ceticismo e doutrina dos ídolos LUIZ EVA Departamento de Filosofia Universidade Federal do Paraná/Pesquisador CNPq CURITIBA, PR

[email protected] Resumo: Neste artigo nos apoiamos em testemunhos diversos de Francis Bacon a respei-to da relação entre sua filosofia e o ceticismo filosófico para estender o exame desse ponto ao âmbito de sua “Doutrina dos Ídolos”. Pretendemos mostrar que, se por um lado as semelhanças revelam-se aí significativas (especialmente em vista das fontes céticas renascentistas), pode-se também observar, de outra parte, que já nessa Doutrina Bacon prepara uma via diversa da que atribui aos céticos, tanto em vista do modo como compreende a noção de natureza humana, como do encadeamento metódico a que ele submete o material que toma dos céticos. Palavras-chave: Bacon. Ceticismo. Doutrina dos ídolos. Filosofia do Renascimento. Abstract: In this paper we start from some testimonies of Francis Bacon on the similari-ties he sees between his own philosophy and philosophical skepticism, hoping to extend the examination of this point to his Doctrine of Idols. We aim to show that, at one hand, they are actually very significant, especially if we take into account Renaissance skeptical sources. On the other hand, however, through his Doctrine Bacon also wish to prepare a different path from those of the skeptics, lying upon a particular conception of the human nature, as well as on the methodical treatment he offers to the Skeptical material he employs. Keywords: Bacon. Skepticism. Doctrine of the idols. Renaissance Philosophy.

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1. Em um texto pouco conhecido, Scala Intellectus sive Filum Labyrinthi, Francis Bacon assim comenta a vizinhança que entendeu haver entre a sua própria filosofia e o ceticismo filosófico:

(...) Se pudesse haver uma associação entre nós e os antigos, é com este gênero filosófico [i.e., o daqueles “a quem apraz o nada se sabe”] que es-taríamos mais ligados; pois estamos de acordo com muitos dizeres prudentes e observações feitas por eles acerca das variações dos senti-dos e da falta de firmeza do juízo humano, e acerca da contenção e da suspensão do assentimento. A estes poderíamos ainda acrescentar di-versos outros pontos pertinentes, a tal ponto que entre nós e eles res-te apenas esta diferença: eles afirmam, sem mais (prorsus), que nada se sabe, e nós afirmamos que nada se pode verdadeiramente saber pela via que até aqui percorreu a raça humana...1

Esta declaração surpreendente (tanto mais em vista da escassez

de análises mais detidas sobre o tema pelos comentadores, que ge-ralmente o abordam de passagem2) não constitui um caso isolado. A despeito do seu otimismo metodológico quanto à obtenção de um método de interpretação da natureza, capaz de conhecer verdadei-ramente as Formas das coisas, diversas passagens exprimem o reco-nhecimento de similaridades entre o diagnóstico cético do estado dos nossos conhecimentos e sua própria visão do mesmo panorama. A

1 Sp. II, 688, grifo nosso. (Abreviaremos deste mesmo modo todas as re-

ferências à edição Spedding, Ellis and Heath das obras de Bacon, em que nos baseamos.) Preparamos uma tradução para o português desse opúsculo, que deverá ser publicada no número 3 (2008) da revista Sképsis, editada pelo GT Ceticismo da Anpof.

2 É o caso de ROSSI (1968) e de JARDINE (1985), esta última identifi-cando, em sua interpretação de Bacon, a presença de uma tendência cética “acadêmica” no estatuto provisório e revisável que ele atribui aos seus juí-zos. Sobre o tema, consultar ainda OLIVEIRA (2002), GRANADA (2006) e EVA (2006). José Raimundo Maia Neto e Gianni Paganini deverão bre-vemente publicar uma coletânea sobre ceticismo na qual se prevê um capí-tulo sobre Bacon.

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passagem acima pode ser proveitosamente cotejada, por exemplo, com o aforismo 37 do primeiro livro do Novum Organum. Embora, diz Bacon, “ao final” deva se estabelecer uma total oposição entre essas filosofias (posto que os partidários da “acatalepsia” teriam pre-tendido destruir a autoridade dos sentidos, enquanto ele próprio lhes pretenderia oferecer auxílios metódicos), inicialmente haveria grande convergência entre elas: “...Pois eles afirmam que nada se pode sa-ber, sem mais (simpliciter); nós, que não se pode saber quase nada sobre a natureza pela via que está agora em uso...”3 A mesma consta-tação é outras vezes formulada sem menção explícita aos céticos, como no início da mesma obra:

...Na verdade, a causa única e fonte de quase todos os males da ciên-cia é esta: enquanto falsamente admiramos e exaltamos as forças do espírito humano, deixamos de buscar-lhe auxílios efetivos... A sutile-za da natureza de longe ultrapassa a sutileza dos sentidos e do intelec-to, de modo tal que nossas meditações, especulações e discussões mais cuidadas são coisas insanas (male-sana), faltando apenas alguém que estivesse lá para nos contar. 4

Ainda que o termo acatalepsia pareça preferencialmente desig-

nar os céticos acadêmicos, em vez dos pirrônicos, Bacon chega mes-mo a precisar, noutra passagem, que sua proximidade filosófica para com o ceticismo seria maior se nos ativéssemos a determinados auto-res, como Cícero ou Sócrates, os quais, em vez de sustentar simplici-ter ou sincere nossa incapacidade em reconhecer a verdade (tal como teriam feito, segundo ele, os scepticos pirrônicos), teriam advogado uma espécie de ceticismo mais moderado.5

3 Sp. I, 162-163. 4 NO I, §9, §10 (Sp. I, 158 / IV, 48). 5 Cf. Sp. I, 621-622 / IV, 412; I, 178 / IV, 69. Todavia, em NO, I, §75,

Bacon acusa os filósofos da Nova Academia de sustentarem a “acatalepsia” como um dogma que bloqueia o avanço da investigação, embora pondere

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Seria certamente um equívoco pretender considerar Bacon um filósofo cético, pois ele é igualmente cuidadoso em restringir a ad-missão dessa familiaridade. Mas, em vista destes textos, é no mínimo curioso que, diversamente do que ocorre com o comentário da ver-são cartesiana do assim chamado “ceticismo moderno”, permaneça relativamente pouco examinado o problema de saber em que medida Bacon teria incorporado ou transformado o ceticismo (tomando este termo no sentido preciso em que designa as doutrinas filosóficas gregas ou latinas que historicamente se apresentaram como céticas e a sua difusão por meio da retomada dessas fontes no Renascimento).

Pretendemos aqui abordar esse tema sob um viés mais particu-lar. A passagem do Novum Organum há pouco citada (I, §37) situa-se no início da exposição da Doutrina dos Ídolos, e parece haver razões para crer, ao menos no que tange a essa obra, que essa Doutrina seja uma representação privilegiada, aos olhos de Bacon, das afinidades que ele mesmo reconhece entre sua filosofia e o ceticismo (ainda que, como veremos, não se restrinjam a ela). Situados no núcleo da pars destruens (destinada a denunciar e contornar, na medida do possível, os erros da pesquisa da verdade tal como até então feita pelos ho-mens), os ídolos não somente assediam o espírito humano, de modo a dificultar o acesso à verdade, mas permanecem impedindo que se avance nessa direção mesmo quando um acesso é “aberto e concedi-do”.6 Mas até que ponto, mais precisamente, se poderia reconhecer nessa doutrina propriamente a exposição de uma forma de ceticismo? Richard Popkin julgou que a Teoria dos Ídolos teria pretendido des-crever causas das imperfeições de nossas faculdades cognitivas que

que a posição filosófica mais sóbria é a que reconhece “(...) a sutileza da natureza, a obscuridade das coisas e a fraqueza do espírito humano...” (Sp. I, 184; IV, 75)

6 V. I, §38. Acerca deste ponto, mais detalhes em EVA (2006).

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não teriam sido notadas pelos céticos.7 Para H. van Leeuwen, a mesma teoria se relaciona com a crítica de duas posições extremas: o dogmatismo acrítico, representado pelos ídolos do Teatro, e o ceti-cismo radical, que seria originado pelos ídolos da Tribo, da Caverna e do Foro.8 Num caso ou noutro, novamente, os comentários não se estendem num exame das similaridades mais pontuais que se poderi-am detectar entre as críticas de Bacon e os materiais céticos de que se apropria, o qual nos parece importante para uma avaliação mais se-gura e completa.9 Permanece, nesse caso, carente de esclarecimento o sentido em que Bacon reconheceria, ao mesmo tempo, a pertinência dos “dizeres céticos” acerca das imperfeições de nossos sentidos e da fraqueza do juízo. Moody Prior, por sua vez, alega que, na Doutrina dos Ídolos, encontraríamos todos os “modos céticos”, embora faltem as “deduções e conclusões” propriamente céticas e eles sejam incor-porados numa nova análise, ladeados por importantes extensões originais.10 Se aqui pode haver exagero ou imprecisão, de fato as possibilidades de aproximação entre o ceticismo e a doutrina dos ídolos possuem, como tentaremos mostrar, uma dimensão maior e filosoficamente mais relevante do que se costuma reconhecer.

Procederemos a uma análise comparativa entre a exposição dos ídolos (baseando-nos principalmente na versão apresentada no Novum Organum11), e as fontes céticas que presumivelmente Bacon

7 POPKIN (2000), p. 207 8 VAN LEEUWEN (1970), p. 7 9 Embora Bacon critique igualmente a “intemperança” existente no as-

sentimento quanto a de sua recusa, Van Leeuwen, sem levar isso em conta, assinala, por exemplo, que o projeto dogmático de Bacon pretenderia evitar generalizações apressadas, pressuposições injustificadas e procedimentos lógicos defeituosos. (v. id. ibid.)

10 PRIOR (1968), p. 349 11 O De Augmentis, publicado em 1623 (apenas três anos, portanto, de-

pois do Novum Organum), oferece, em particular, outras informações rele-

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teria em vista. Embora tenhamos, quanto a isso, que nos apoiar for-çosamente em conjecturas, em face da ausência de referências mais seguras, parece-nos que as indicações provenientes do seu próprio texto e de sua lógica interna nos permitem obter uma compreensão mais precisa da relação entre a sua própria via e a que ele reconhece como sendo a dos céticos. Além de exibir, de modo geral, a amplitu-de dessa proximidade, elas mostram que tal possibilidade parece ser diversa conforme o gênero particular de ídolo que se tem em vista e as fontes céticas consideradas (podendo ser estendida, em especial, se levamos em conta autores contemporâneos de Bacon, como Mon-taigne e Sanchez). Além disso, a comparação nos conduzirá a propor algumas hipóteses sobre as peculiaridades da crítica baconiana: seja quanto ao estatuto da relação entre as nossas representações e as coi-sas segundo essa teoria, seja no que tange ao modo como os “ídolos” interferem em nossas percepções.

2. Comecemos, não pelos que são os primeiros na ordem de exposi-ção (os “ídolos da Tribo”), mas pelos que são apresentados na se-quência, os “ídolos da Caverna” — impedimentos à obtenção da ver-dade gerados pela natureza própria de cada indivíduo, e, nessa medi-da, dependentes do corpo, da alma, da educação, do hábito, das cir-cunstâncias fortuitas e do modo como são afetados pelos objetos.12 Começamos por eles porque nos parecem ser os que, quanto a seu conteúdo, mais claramente espelham os modos argumentativos dos céticos antigos.13 Pensamos aqui particularmente no Segundo Tropo vantes para essa análise (à qual faremos referência), conquanto o próprio Bacon cuide de esclarecer, nesse texto, que o tratamento mais completo e propriamente legítimo da Doutrina dos Ídolos ocorre no Novum Organum (cf. Sp. I, 643, 646; IV, 432, 434).

12 V. NO I, §41, §§53-58 (Sp I 163, 169-170 / IV 54, 59-61) 13 D. Deleule (cf. BACON 1986, pp 36 ss.), com base nessa indicação,

entende que devamos remeter as fontes dos ídolos antes a Platão e Epicuro

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de Enesidemo,14 pelo qual as diferenças entre os homens, seja no que tange à sua constituição corporal (onde se incluem também a diver-sidade de preferências e da maneira como são afetados pelos órgãos dos sentidos), ou à presumível diferença no que respeita à alma (a julgar pela diversidade irredutível das opiniões), surgem como oca-sião para suspender o juízo ante à impossibilidade de determinar a verdade.

Previsivelmente, o título é uma alusão à alegoria platônica da caverna, como Bacon explica no De Augmentis, apresentando-a, po-rém, ela própria como uma alegoria desses ídolos, sem entrar em detalhes exegéticos sobre o platonismo.15 Mas a despeito da alusão ao mito platônico (mantido, assim, num plano alegórico, diverso daque-le em que os próprios ídolos são descritos), Bacon ilustra tais ídolos, no Novum Organum, empregando uma citação de Heráclito, segun-do a qual “os homens buscam as coisas no pequeno mundo, e não no grande, que lhes é comum” (citação esta que, no The Advancement of Learning, é relacionada, em vez disso, aos ídolos da Tribo, na forma de uma crítica à valorização excessiva do entendimento humano como critério para o conhecimento das coisas naturais).16 Segundo do que ao ceticismo. Argumentamos, porém, em EVA (cf. 2006, pp 84 ss, para maiores detalhes) para sustentar que esta remissão às fontes não apenas não exclui a influência do ceticismo, mas a confirma (seja pelo fato de que o De Natura Deorum, por ele lembrado como fonte do eventual epicurismo, é uma obra de clara inspiração cética; seja porque mesmo Platão é objeto, em mais de uma ocasião, de uma interpretação ceticizante por parte de Bacon, como, por exemplo, no aforismo I, §67 do Novum Organum) Não preten-demos com isso, em absoluto, como se verá a seguir, negar a originalidade da crítica baconiana.

14 HP I, 80 ss. Consideraremos aqui indiferentemente textos pirrônicos e acadêmicos.

15 Cf. De Aug V, iv (Sp. I, 645; IV, 433). 16 “...Heráclito censurou justamente [os] intelectualistas, que não obstan-

te são tomados como os mais sublimes dos filósofos, quando afirmou (...)

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Spedding, a fonte dessa citação seria o Adversus Logikos de Sexto Empírico, e a formulação empregada por Bacon leva a crer que ele dificilmente estaria se baseando em alguma outra fonte clássica para a citação.17 Seria, nesse caso, mais pertinente aproximar o sentido que Bacon dá a essa citação, não à própria epistemologia heraclitiana, mas sim à crítica cética que Sexto dirige ao critério de verdade proposto por Heráclito.18 Bacon não pretende propor aqui nenhum critério de verdade, mas sim corroborar a constatação de que a diferença entre os homens se oferece como obstáculo ao conhecimento da verdade.

pois eles desdenham soletrar e, por graus, ler nos volumes dos trabalhos de Deus, e, contrariamente, pela contínua meditação ou agitação da sagacidade clamam e como que invocam os seus próprios espíritos para advinhar e dar-lhes oráculos, pelos quais são merecidamente iludidos...” Sp. III, 292

17 Devemos esta observação ao professor Richard Bett, acerca de uma versão preliminar deste texto apresentada em Buenos Aires, em 2008. Há razões, porém, para supor que Bacon não conheceu as Hipotiposes Pirronia-nas. Cf. EVA (2006), esp. pp. 86-90.

18 No primeiro livro de Contra os lógicos, Sexto argumenta contra os di-ferentes critérios de verdade proposto pelos filósofos dogmáticos, dentre os quais o critério proposto por Heráclito, na passagem de onde essa afirmação seria colhida, a saber, a razão — entendendo-se por tal termo, mais precisa-mente, não as razões individuais e variáveis segundo os homens, e sim a razão comum e divina, da qual todos participaríamos na medida em que somos racionais. Mas se for lícito admitir que Bacon adiante proponha algum “critério de verdade”, este se relaciona a um trabalho metódico a partir da experiência, que decerto não pode ser simplesmente identificado à atividade racional como algo a que os homens teriam acesso imediato, como veremos melhor ao considerar os idola tribus. No contexto em que se situa, por mais que acene com a necessidade de uma pesquisa no “grande mundo” comum aos homens (cuja natureza própria só poderá ser adequadamente esclarecida pela própria progressão do texto, no segundo livro do Novum Organum), a citação de Heráclito destina-se, sobretudo, a corroborar o sentido geral da crítica.

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Porém, não se encontram em Bacon, de fato, as argumen-tações pirrônicas sobre a impossibilidade de obter um critério para resolver os conflitos entre as idiossincrasias.19 E, à exposição esque-mática de Sexto, podem aqui se opor o frequente recurso à metáfora e as exemplificações aparentemente originais que ele oferece da di-versidade humana, considerando as inclinações segundo interesses pessoais, as diferentes qualidades dos espíritos (ingenia) no exame das coisas — pelas quais se opõem aqueles em que predomina a “firmeza e penetração” (constantia ac acuta), um amor pela observação das diferenças, e aqueles que revelam “elevação e raciocínio” (sublimia ac discursiva), um amor pelas semelhanças, como duas tendências igualmente capazes de distorcer a apreensão20 — ou ainda a predile-ção por uma época determinada:

Encontram-se espíritos tomados de admiração pela antiguidade, ou-tros tomados de amor pela novidade, mas poucos são de natureza a conservar a medida, de modo a não solapar o que foi adequadamente fundado pelos antigos nem o que foi corretamente aportado pelos modernos. Tudo isso se faz com grande dano para a filosofia e as ci-ências, pois se toma partido pela antiguidade ou pela modernidade, em vez de julgar acerca desse ponto...21

Mas mesmo estas eventuais inovações são perpassadas por te-

mas que nos aproximam do ceticismo. A “novidade” e a “raridade” são contrapostas ao caráter “habitual” da percepção pelo Nono Tro-po de Enesidemo,22 e tampouco deixamos de encontrar, nas obras de Cícero relacionadas ao ceticismo, menções ao poder do hábito ou da

19 Cf. HP I, 87-88; II, 22 ss., 29-48. Como dissemos, trata-se de um aspec-

to notado por Prior. V. PRIOR (1968), p. 350. 20 NO I, §55, Sp. I, 169/ IV, 59 21 NO I, §56, Sp. I, 170 / IV, 59 22 HP I, 141 ss.

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imaginação como obstáculos ao conhecimento da natureza.23 Embo-ra Bacon não se detenha neste tema ao abordar os idola specus, ele é mencionado como parte dos idola tribus24 e objeto de um juízo bas-tante enfático ao final do primeiro livro do Novum Organum:

... O maior de todos os obstáculos à filosofia provém do modo como as coisas familiares e correntes não detêm o exame do homem, mas são recebidas de passagem, habitualmente sem que se interrogue so-bre suas causas, de modo que menos frequentemente se necessita in-formação sobre as coisas desconhecidas do que atenção às coisas co-nhecidas.25

É possível que boa parte dessas reflexões de Bacon seja, em al-

guma medida, tributária de fontes contemporâneas, como os Ensaios de Montaigne, que ele, muito provavelmente, leu.26 O tema do apri-sionamento do juízo à autoridade dos antigos é relativamente recor-rente na literatura do período, 27 mas é bastante particular o modo como Montaigne estende suas reflexões céticas na forma de um exa-

23 V. p. ex., Dnd, I, xxx: “Que vergonha para um naturalista, cujo papel

é o de observar e examinar a natureza, pedir aos espíritos imbuídos do cos-tume as provas da verdade!”

24 “O intelecto humano é movido sobretudo pelas coisas que atingem e penetram o espírito humano simultaneamente e de súbito, e por aquelas pelas quais a fantasia é habitualmente preenchida e inflada...” (Sp. I, 166; IV, 56)

25 NO I, § 119 (Sp I, 213-214/ IV 106) 26 A esse respeito, v. VILLEY (1973), pp. 10-14. Nesta obra, acerca das

relações entre Montaigne e Francis Bacon, Villey procura mostrar (a nosso ver persuasivamente) que a influência principal do primeiro sobre o segun-do é perceptível, não nos Ensaios do escritor inglês, mas na crítica epistemo-lógica das filosofias disponíveis e da razão humana que encontramos no Novum Organum.

27 O tema é constantemente abordado por Montaigne. V., p. ex., Les Es-sais II, 12, 570-571; II, 17, 656-657; I, 25, 136ss.; I, 26, 160.

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me crítico do costume, enfatizando sua interferência em nossa per-cepção e em nossas faculdades intelectuais.28 O ensaio de Montaigne onde a retomada do ceticismo se dá de modo mais explícito é a Apo-logia de Raimond Sebond, onde ele emprega diversos modos argu-mentativos céticos em seu próprio nome, expõe os principais concei-tos do ceticismo antigo, em suas diversas versões e declara, mais de uma vez, sua simpatia por essa filosofia. Ao final do ensaio, exami-nado o limitado poder dos sentidos em apreender a verdade, Mon-taigne assim retoma a argumentação pirrônica acerca da diferença entre os homens:

... para o julgamento dos sentidos, seria preciso primeiro que estivés-semos de acordo com os animais, e em segundo lugar entre nós mesmos: mas não estamos de modo algum, e debatemos entre nós de todos os modos pelo fato de que um vê, ouve e aprecia (goute) algo diversamente do outro, e debatemos tanto acerca da diversidade de imagens que os sentidos nos reportam, quanto acerca das demais coi-sas...29

O estudo da condição humana é o tema central dos Ensaios e

um aspecto pelo qual ela é insistentemente abordada é o da sua diver-sidade e inconstância: “Os homens são diversos quanto ao gosto (goust) e à força é preciso conduzi-los a seu bem segundo eles, e por vias diversas...” (III, 12, 1052B) Não raro, a constatação dessa diversi-dade por Montaigne se conecta diretamente com o reconhecimento de nossa incapacidade em determinar a verdade.30 Assim, mesmo que

28 Ver, de modo geral, o ensaio I, 23 (v. esp. 115-116). V. igualmente I, 27, 179-180; II, 30, 713. Em I, 23, 111C, examinando o impacto do costume sobre nossa alma, Montaigne cita elogiosamente a frase proveniente da crítica acadêmica de Cotta aos epicuristas no De Natura Deorum, a qual nós citamos na nota 23, acima.

29Les Essais, II, 12, 598A 30 Um exemplo é o desenvolvimento final de “Da semelhança dos filhos

aos pais”, onde, depois de alinhar a diversidade dos hábitos adotados pelos

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seja excessivo dizer que os ídolos da Caverna seriam “argumentos céticos”, o efeito pretendido por Bacon ao expô-los guarda seme-lhanças significativas com o que se busca pela argumentação suspen-siva cética do segundo Tropo de Enesidemo: trata-se de embargar a admissão daquilo que se toma, indevidamente, como conhecimento, porquanto é apenas a projeção de uma idiossincrasia.

Não poderíamos, porém, encontrar algum traço, já no modo como ele aborda os ídolos da Caverna, das ressalvas feitas por Bacon quanto ao seu acordo com esses filósofos? Ao reconhecer, por exem-plo, que tanto a “composição” quanto a “simplicidade” dos objetos atordoam o entendimento, ele diz ser necessária uma ação alternada para que este ganhe penetração e extensão, “a fim de evitar os incon-venientes mencionados e os ídolos que dele resultam...”31 Seria o ceticismo antigo compatível com a busca de uma superação dos im-pedimentos epistêmicos nesses termos (e, consequentemente, com a busca de uma purificação do entendimento, para melhor se dispor ao conhecimento da verdade)?

diferentes povos quanto ao que aceitam como bom para a saúde, Montaigne conclui não haver no mundo duas opiniões semelhantes, como não há dois pelos ou dois grãos: “sua mais universal qualidade é a diversidade” (Les Es-sais, II, 37, 786A) Veja-se ainda II, 20, 673 e II, 12, 466.

31 NO I, § 57, Sp. 170. Bacon se refere ao modo como, de uma parte, os atomistas gregos se ativeram apenas aos “particulares”, sem se ater ao exame dos resultados de suas concatenações e, de outra, os demais filósofos se atém às composições sem ser capazes de penetrar na simplicidade da natureza. Adiante, concluindo a exposição, ele afirma ser necessária “prudência espe-culativa” para banir os ídolos, oferecendo como regra geral, a todo homem que examine a natureza das coisas, que tenha por suspeito aquilo que prefe-rencialmente estimula e retém particularmente seu entendimento, e acres-centa: “(...) Quanto mais viva for essa predileção, mais é preciso redobrar a precaução para conservar o entendimento vivo e puro...” (NO I, § 58, Sp. I, 170; IV, 60)

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Vejamos mais de perto, porém, o que Bacon afirma sobre tal superação. Já no início da exposição da Doutrina dos Ídolos, no afo-rismo 40, Bacon esclarece que o remédio próprio para tanto é a “formação de idéias e axiomas pela verdadeira indução” 32 — esclare-cimento, à primeira vista, problemático, na medida em que a presen-ça dos ídolos, como vimos, bloqueia ela própria o acesso à verdade. E, embora Bacon ressalve, no mesmo aforismo, que “apontá-los é de grande utilidade, pois a doutrina dos ídolos é para a Interpretação da Natureza o que a doutrina da refutação dos sofismas é para a Lógica comum”, na Distributio Operis Bacon se refere aos idola specus, con-juntamente com os idola tribus, como ídolos inatos — razão pela qual seria impossível erradicá-los inteiramente.33 A mesma idéia ressurge ainda mais explicitamente no De Augmentis, onde o poder dos ídolos parece ter ganhado ainda maior amplitude: nela Bacon afirma que apenas o quarto gênero de ídolos (os do Teatro, que examinaremos adiante) poderia ser erradicado, enquanto os três restantes “(...) se apossam plenamente do intelecto e não podem ser inteiramente ex-tirpados”. 34 Aqui, os ídolos são apresentados no contexto de uma doutrina geral de detecção de falácias (de elenchis doctrina). Enquanto as falácias sofísticas, segundo Bacon, teriam sido devidamente detec-tadas, segundo ele, por Sócrates, Platão e Aristóteles, o mesmo não ocorreu com as falácias de interpretação (correspondentes à aceitação

32 NO I, § 40 (Sp. 163) 33 Se já os ídolos adventícios, diz ele, são muito difíceis de serem desenra-

izados, os inatos (a despeito das preconizações relativas aos idola specus) são apresentados, na Distributio Operis, como impossíveis de erradicar: “...A única coisa que resta a fazer consiste em indicar, a denunciar e a confundir essa violência insidiosa do espírito, de modo a evitar que, em virtude da má compleição do espírito, a destruição dos antigos erros não gere novos, de modo que eles não sejam extirpados, mas apenas substituídos...” (Sp. I, 139, IV 27)

34 De Aug, V, cap. iv (Sp, I 643; IV, 431)

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de termos falsos e equívocos que degeneram em disputas de pala-vras).35 Mas os ídolos seriam, por sua vez, as “falácias mais profundas da mente humana”, cuja radicalidade e multiplicidade impedem que sejam analisados segundo algum padrão argumentativo mais básico ou se constitua alguma arte com o fim de contorná-los: “tudo o que se pode fazer é adotar uma certa prudência reflexiva (prudentia quae-dam contemplativa) para deles se resguardar”.36 Tal prudência, por-tanto, parece constituir não mais do que um pressuposto metodoló-gico de caráter geral, na busca de conhecimento acerca da natureza. Talvez ela se torne progressivamente mais eficaz, aos seus olhos, na medida que se puder desenvolver o método indutivo que, a longo prazo, no mesmo passo que limita a presença dos ídolos, deve abrir caminho para a verdade — mesmo que a purificação do entendimen-to nunca se possa fazer de modo completo.

No que tange à preconização de Bacon para os idola specus, ademais, notemos que a ideia da alternância de idiossincrasias parece evocar, em alguma medida, a atividade argumentativa antinômica pela qual o cético, segundo Sexto, entende ser capaz de obter a sus-pensão e, por esse meio, livrar-se do dogmatismo.37 Enquanto, se-gundo Bacon, a alternância entre essas duas tendências filosóficas (isto é, considerar os corpos em sua particularidade ou em sua com-posição) colabora para fortificar nosso entendimento e evitar os ído-los, os céticos antigos atribuíram um sentido terapêutico à sua argu-mentação, destinada a combater, como veremos adiante, a presunção resultante da precipitação do juízo (propéteia) — a qual pode ser igualmente caracterizada como decorrente de uma espécie de uso

35 ibid. (Sp. I, 641 ss.; IV, 429 ss.) 36 ibid. Sp I, 643; IV, 432. 37 V. HP I, 12, 205; II, 251-253.

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imperfeito do entendimento, pelo qual se aceitam as presumidas verdades que os dogmáticos diversamente alegam.38

Não pretendemos aqui sugerir que Bacon tenha compreendido sua estratégia de enfrentamento dos ídolos como inteiramente análo-ga à investigação pirrônica. Todavia, ao menos no que tange aos ídola specus, diríamos que a diferença mais palpável para com a práti-ca antinômica cética parece residir no modo como tal atividade é associada por Bacon a uma expectativa substantiva de reconhecer a verdade, em vista da possibilidade de constituição de um novo méto-do, enquanto a postura pirrônica (em sua versão sextiana) se associa, ao menos, com uma mitigação da expectativa de reconhecimento de alguma verdade no universo da filosofia. Se a investigação ou zétesis pirrônica, ainda que se pretenda provisória, tende a se perpetuar indefinidamente na forma de uma prática suspensiva, Bacon contra-põe a felicidade da época, como algo de passageiro e insuficiente, à luz eterna da natureza e da experiência, da qual a verdade deve pro-vir.39 Mas é claro que tal expectativa deve provir de outros elemen-tos, tanto mais na medida em que a obtenção da verdade não poderia aqui corresponder ao oferecimento de uma resposta direta ao pro-blema posto pelo ceticismo antigo (problema cuja pertinência não é tampouco por ele recusada, mas endossada pelo sentido geral da sua crítica). Pois não se trata de pretender determinar “qual homem” estaria autorizado, no interior de tal controvérsia, a formular a ver-dade: na atual situação dos saberes, com efeito, nenhum estaria. Ao

38 Cf. HP III, 280-281. A mesma ideia é explícita em Montaigne: “[A]

...[O cético] não quis se fazer pedra nem tronco. Ele quis se fazer homem vivo, pensante e raciocinante, fruindo de todos os seus prazeres corporais e espirituais [C] em regra e de direito. [A] Os privilégios fantásticos, imaginá-rios e falsos que o homem se usurpou, de reger, ordenar e estabelecer a verdade, ele os há de boa fé abandonado, deles há renunciado...” (Les Essais, II, 12, 505)

39 Cf. NO I, §56 (Sp I, 170; IV, 59-60)

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contrário, é essencial à pesquisa acerca da natureza, tal como Bacon a concebe, que ela se dê na forma de um empreendimento coletivo a longo termo, cujo destino é lastreado no método capaz de guiar a experiência, e na qual pouco lugar é deixado ao poder e à excelência do talento individual.40

3. Passemos agora aos “ídolos da raça” (idola tribus), cujo tratamento confirma o que vimos acima sobre a insuficiência da purificação do entendimento para o reconhecimento da verdade. Tais ídolos, diz Bacon, derivam de imperfeições de nossas faculdades cognitivas. O entendimento, segundo ele, é uma faculdade refém de erros sistemá-ticos que não pode corrigir, nem por suas próprias forças, nem pelo auxílio da dialética;41 e os sentidos, embora devam ser a fonte de toda a investigação da natureza, não podem ser assumidos como imedia-tamente portadores de representações verdadeiras das coisas (sendo preciso, para alcançá-las, uma longa investigação norteada por expe-rimenta metodicamente elaborados, por oposição ao que espontane-amente se oferece pela experientia).42 Mais uma vez, os temas abor-dados aqui se aproximam, sob múltiplos aspectos, das argumentações céticas tradicionais. A oposição entre as percepções conflitantes se-gundo os diversos sentidos humanos é proposta pelo Terceiro Modo de Enesidemo; a oposição segundo a diversidade das posições e situa-ções de percepção, pelo Quinto Modo. Por meio desses Tropos, o filósofo pirrônico pretende igualmente recusar a identificação entre nossas percepções e as coisas, tal como seriam em si mesmas.43 Ba-con, por sua vez, identifica os idola tribus a um estado de confusão

40 Cf. Sp. I, 130, 133; IV 18-19, 21 41 V. NO I, §41, §§45-52, (Sp. I, 163, 165-169; IV 54-58) ver tb. Sp. I, 121,

129; IV 7, 17-18. 42 Sp. I 138; IV 26; NO I, §50 (Sp I, 168; IV, 58) 43 HP I, 91 ss., 118 ss.

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entre a natureza exterior e a mente, que é necessário apontar para “preparar o leito nupcial para um verdadeiro casamento entre a men-te e as coisas”.44

Já observamos, ademais, que Bacon, no aforismo I §47 dos idola tribus, se atém ao modo como o costume deturpa nosso intelecto, de modo análogo ao que encontramos em diversas fontes céticas.45 No aforismo anterior (I§ 46), lemos que “... o intelecto humano, em favor daquelas [opiniões] a que uma vez deu seu acordo (ou porque são aceitas e objeto de crença, ou porque lhe agradam), interpreta também todas as demais, com o propósito de apoiá-las e de que se ponham de acordo com elas...” 46 Este aforismo tem evidente relação com a caracterização baconiana do problema central da filosofia existente, a saber, o fato de que ela trilha uma via de “antecipações da natureza”, portadora de um caráter “temerário e precipitado” (teme-raria et praematura), por ele oposta à via da verdadeira “interpretação da natureza”, até então inusitada pelo gênero humano, pela qual seria possível avançar segundo razões extraídas das próprias coisas, con-forme um método adequado.47 Bacon dedica um conjunto preceden-te de aforismos da pars destruens ao exame desse problema, não sem antes apontar sua causa geral, fonte de “quase todos os males existen-tes na ciência”: a exaltação ilusória das forças da mente humana, que dispensa a busca de verdadeiros auxílios.48 No prefácio da Instauratio Magna, ele caracteriza o seu próprio método, por oposição, como o de uma verdadeira e legítima humilhação do espírito humano:

... pois todos aqueles que, antes de nós, aplicaram-se à invenção das artes, lançaram um breve olhar sobre as coisas, os exemplos e as ex-

44 Cf. Sp. I, 139-140, IV 27. 45 V. nota 24, acima. 46 Sp. I, 166; IV 56. 47 NO I §26 48 Cf. NO I, §9, v. I, §§19-30, Sp I, 158, 159-161; IV 48, 50-52

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periências, e se precipitaram a invocar seus próprios espíritos para que eles lhes oferecessem seus oráculos, como se a descoberta nada mais fosse que um jogo de pensamento...49

Essas passagens nos parecem evocar nitidamente o tema pirrô-

nico da crítica da precipitação dogmática. Sexto qualifica o “mal” dos dogmáticos como a presunção (oíesis), fruto da precipitação (propé-teia) com que assumem a veracidade de suas doutrinas, para além daquilo que estariam racionalmente autorizados a fazer — tal como perceberiam se levassem devidamente em conta as objeções que se podem oferecer a suas posições.50 Os dogmáticos são denominados philautói, aqueles que se aferram imoderadamente às suas próprias convicções.51 Igualmente na Apologia de Montaigne encontraremos claramente reflexos da mesma temática, pois seu exame dos saberes existentes se constrói como uma crítica da “vaidade” humana em seus vários desdobramentos: a “vaidade do homem”, pela qual ele se julga injustamente acima das demais criaturas; a “vaidade do saber”, pelo qual o homem se pretende possuidor de uma verdade de que não pode dispor; e a “vaidade da razão” e das demais faculdades cog-nitivas que são o instrumento dos saberes.52 E o mesmo tema não está tampouco ausente das obras de Cícero que apresentam o ceti-cismo da Nova Academia.

No mesmo aforismo I §46, Bacon assinala que o entendimento se deixa normalmente levar pela opção que antecipadamente elegeu, ainda que o número maior de exemplos esteja do lado da opção o-posta, e exemplifica com uma anedota clássica cuja fonte é possivel-

49 Sp. I, 130, IV 19 50 V. HP, I, 20, 177, 186; II, 17, 21, 37, III, 280 51 ibid, III, 280 52A crítica da precipitação na crença dos poderes da razão humana em

obter a verdade é anunciada em Les Essais, II, 12, 448-449 e constantemente retomada.

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mente, segundo Spedding, o De Natura Deorum, de Cícero (onde ela é parte da crítica cética dirigida por Cotta, personagem que defende a Nova Academia nesse diálogo, à noção estóica de providência divi-na).53 Esta indicação torna-se ainda mais persuasiva quando vemos que, na versão dos idola tribus apresentada no De Augmentis, Bacon alude explicitamente ao De Natura Deorum, desenvolvendo ele mes-mo a crítica oferecida por Cícero (por meio do epicurista Veleio) à providência estóica, de modo a atingir igualmente o próprio antro-pomorfismo epicurista.54 Bacon parece se valer, ele mesmo, em cer-tas passagens, de modos de argumentação tipicamente céticos (como o é a argumentação dialética, que se faz também presente no mesmo ensaio de Montaigne55, onde se desenvolve igualmente uma crítica

53 Cf Dnd III, 89. 54 O terceiro exemplo de ídolo da raça oferecido no De Augmentis é

aquele pelo qual o homem se toma, em alguma medida, como norma e espelho da natureza: “...Pois é incrível (se percorremos e notamos cada exemplo particular) o tamanho da tropa de ídolos que se imiscui na filosofia pela redução das operações naturais à semelhança das ações humanas. Esta mesma, digo eu, pela qual se pensa que a natureza faz tal qual o homem faz. Nem são estes muito melhores do que a seita dos Antropomorfitas, nascida nas celas e na solidão dos monges embotados, ou a opinião de Epicuro pela qual ele mesmo responde ao paganismo, atribuindo a Deus a forma huma-na. E quanto a Veleio, o Epicurista, não teria preciso perguntar: ‘por que os deuses adornaram os céus com luzes e estrelas, como um edil?’ Pois se aque-le grande criador agisse como um edil, teria disposto as estrelas em certa ordem bela e elegante, como esmerados lambris de palácios, enquanto, pelo contrário, dificilmente alguém aponta em tal infinito número de estrelas, seja um quadrado, seja um triângulo, ou uma reta; tão grande é a discrepân-cia de harmonia entre o espírito humano e o espírito do mundo...” De Aug V, iv (Sp I, 644-645, IV, 433) A citação de Cícero provém de Dnd I, 22.

55 Sobre isto, ver EVA (2004), cap. 1. Notemos que, no De Augmentis, ao elogiar o modo como a filosofia tradicional lidou com as falácias “sofísiti-cas”, um lugar de destaque é reservado a Sócrates, que “(...) professando nada afirmar, mas apenas infirmar o que é foi afirmado por outrem, expos

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filosófica a diversos aspectos do antropomorfismo).56 Enquanto Ba-con apresenta, como um primeiro exemplo de idolum tribus, o fato de que o intelecto humano tende a encontrar maior regularidade ou perfeição nas coisas do que elas possuem (oferecendo como exemplo as teses de que tudo no céu se move em círculos, um elemento deve ser dez vezes mais ou menos raro que outro, “... e outros sonhos semelhantes”),57 Montaigne assim comenta, na Apologia, as teorias sobre os movimentos dos planetas, pelas quais os homens emprestam recursos extraídos da sua experiência para tratar do que não alcança:

São sempre sonhos e fanáticas loucuras. Que algum dia apraza à Na-tureza abrir-nos seu seio e nos faça ver propriamente os meios e as condutas dos seus movimentos, e a isso prepare nossos olhos! Ó Deus! quais abusos, quais imposturas nós não encontraríamos em nossa pobre ciência: eu me engano se houver uma única coisa que ela mantenha corretamente no devido ponto... (II, 12, 536AC)58

Parece-nos que tais possíveis pontos de aproximação entre a

doutrina dos ídolos e o ceticismo (ainda que possam ser parcialmente revistos) oferecem um pano de fundo indispensável para que se possa discutir de modo mais preciso as peculiaridades da crítica epistemo-lógica proposta por Bacon. Estamos agora, assim, em melhores con-dições de formular uma hipótese sobre uma dessas peculiaridades, que residiria no modo como os idola tribus derivam da admissão de que o nosso acesso à verdade seria bloqueado por deficiências intrín-secas da natureza humana.

Tais ídolos, como vimos, são, segundo Bacon, ídolos inatos, isto é, fundados na própria natureza humana e inerentes, mais ainda,

da forma mais aguda todas as espécies de falácia, objeção e recusa (das filoso-fias)...” (id. ibid)

56 Veja-se, por exemplo, II, 12, 449 a 486; 513 ss. 57 “& huiusmodi somnia” NO I, §45 (Sp I, 165) 58 Cf NO I, §10 (Sp. I, 158 / IV, 48), passagem citada à p. 48, acima.

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à natureza do próprio intelecto.59 Poderíamos encontrar asserções deste teor nas fontes céticas que estamos aqui considerando? Sexto Empírico argumenta contra os sentidos e o intelecto, ao longo de um exame crítico dos diversos critérios de conhecimento oferecidos pe-los dogmáticos, mas ele é explícito em restringir o alcance de seus argumentos ao propósito de desenvolver dialeticamente as concep-ções que as próprias filosofias dogmáticas possuem acerca dessas fa-culdades,60 isentando-se de adotar qualquer tese filosófica sobre a natureza de nossas faculdades cognitivas ou, de modo mais geral, sobre a causa de nosso desconhecimento. Trata-se, sobretudo, de mostrar que não podemos escolher entre as diversas posições dogmá-ticas a esse respeito. Mesmo que seus argumentos possuam conse-quências tácitas quando aos limites de nossos poderes cognitivos, Sexto nunca se posiciona, que saibamos, explicitamente sobre esse ponto (o que, aliás, eventualmente conflitaria com a radicalidade de sua posição suspensiva). Quanto a Cícero, seus textos são, de fato, mais explícitos em aludir ao alcance limitado e a falta de precisão dos sentidos, mas a argumentação da Nova Academia é ainda mais expli-citamente destinada a criar um contraponto dialético à pretensão dogmática de assumi-los como portadores de certeza, o que confere igualmente um valor relativo a essas afirmações.61 Mais próximas, ainda, das considerações baconianas, seriam as que encontramos na Apologia de Montaigne. Tal como Bacon pretendeu denunciar a forma imperceptível com que paixões e vontades se apropriam do

59 “Idola Tribus sunt fundata in ipsa Natura humana...” I, §41; “...Innata

inhaerent Naturae ipsius Intellectus...” Sp. I, 139-140; IV, 27 Ver tb. NO I, §51: “O intelecto, pela sua própria natureza (propter naturam propriam)...” Ou, ainda, NO I, §45: “o intelecto humano, por sua própria maneira de agir (ex proprietate sua)...”

60 Cf. AM, I, 345; HP II, 49 ss. 61 Cf. Acad, II, 79-82, cf. II, 19-21, 45. No mesmo sentido, v. igualmente

HP I, 20.

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entendimento, comprometendo sua ação, assim o fez também Mon-taigne, assinalando que as coisas se alojam em nós tal como apraz à nossa alma, posto que não dispomos de um “poder natural” de julgar igualmente presente nos homens, mas de um juízo que se deixa con-tinuamente conduzir pela ação imperceptível das paixões.62 Adiante, Montaigne retoma a mesma ideia alegando que não podemos saber como em verdade são as coisas porque a nada temos acesso senão falsificado e alterado pelos sentidos, e afirma, empregando uma metá-fora que é recorrente no Novum Organum: “Se o compasso, o esqua-dro e a régua estão tortos, todas as proporções que neles se medem ... são necessariamente também falhas e imperfeitas...”63

Mas o que concluir desta semelhança? Decerto, que as fontes céticas renascentistas a que aludimos permitem estreitar decisivamen-te o parentesco existente entre a crítica baconiana e o ceticismo e a

62 V. Les Essais II, 12, 562-568. Em 564-565A, ele escreve: “... Não são apenas as febres, as beberagens e os grandes eventos que alteram nosso juízo, as menores coisas do mundo o fazem revirar... Se a apoplexia apaga e extin-gue inteiramente a visão de nosso entendimento, não se deve duvidar de que uma gripe não o cegue e, por conseguinte, que dificilmente se encontre uma única hora na vida em que nosso juízo não se encontre no seu devido assen-to... Por melhor que seja a intenção de um juiz, se ele não se escuta de perto, coisa a que pouca gente apraz, a inclinação à amizade, ao parentesco, à bele-za e à vingança, e não apenas coisas tão poderosas, mas esse instinto fortuito que nos faz favorecer uma coisa em vez de outra e que nos dá, sem licença da razão, a escolha entre duas coisas semelhantes, ou alguma sombra tão vã quanto essa, podem insinuar insensivelmente em seu juízo a recomendação ou desfavor de alguma causa e dar inclinação à balança...”

63 Les Essais II, 12, 600A. No ensaio “Sobre a experiência”, os homens aparecem como ignorantes da “doença natural de seu espírito”: “ele não faz senão vasculhar e buscar, e vai sem cessar volteando, construindo e se apri-sionando em seu trabalho, como os bichos da seda, e aí se sufocam... Não há fim em nossas investigações, nosso fim é em outro mundo...” (III, 13, 1068B) Cf. NO I§48: “O intelecto humano se infla e não sabe se deter e encontrar repouso. Ele aspira ir sempre além, mas em vão...” (Sp I, 166)

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compreensão de por que, no opúsculo Scala Intellectus, ele elogia o modo como os céticos teriam denunciado “as variações dos sentidos e a falta de firmeza do julgamento humano”. Mas não devemos pen-sar, neste caso, que a pretensão de reconhecer aqui uma peculiaridade se resuma a um equívoco decorrente da amplitude e diversidade das fontes céticas consideradas, pois é filosoficamente relevante que o próprio Bacon relacione diretamente sua pretensão de superar a po-sição dos céticos, tal como os interpreta, ao modo como aborda as fraquezas de nossas faculdades cognitivas. No De Augmentis, ele a-firma que o principal pecado dos antigos que sustentaram o ceticis-mo “simpliciter et integre” teria sido o de caluniar as percepções dos sentidos, arrancando as ciências pela raiz, enquanto deveriam sobre-tudo ter criticado os erros e a teimosia (contumacia) da mente, que se recusa a obedecer a natureza das coisas, bem como os defeitos das formas de demonstração disponíveis.64 Esta passagem parece indicar, então, que Bacon teria pretendido imprimir à sua própria doutrina dos ídolos — mais exatamente, no modo como os idola tribus alve-jam os defeitos intrínsecos do nosso entendimento — um alcance mais radical que o da própria dúvida cética (o que, paradoxalmente, teria conexão com a possibilidade de sua superação).65 Decerto, tra-tar-se-ia de uma “radicalidade” diversa daquela que os pirrônicos

64 Sp. I, 621; IV, 411-412. Rossi entende, com base nesta passagem, que o

erro dos céticos teria sido, segundo Bacon, o de alegar uma causa inadequa-da de nossa capacidade de conhecer: os sentidos, e não o intelecto. (Cf. ROSSI (1968), p. 154) Pensamos, porém, que essa formulação não retrata adequadamente o sentido da proximidade, ao menos parcial, que Bacon veria entre sua posição e a dos céticos.

65 Isso parece confirmar, ao menos em certa medida, a análise de Popkin acerca desse ponto (que se baseia exclusivamente no The Advancement of Learning). Ver nota 6, acima. Igualmente, sob esse aspecto particular, a estratégia baconiana é claramente similar à que encontraremos nas Medita-ções de Descartes.

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pretenderiam adotar quanto à suspensão do juízo, mesmo no que tange ao estatuto de nossas próprias representações. Pois, enquanto Sexto, nas Hipotiposes, esclarece que a epokhé pirrônica incide sobre a própria questão de saber se as nossas phantasíai são conformes ao objeto externo,66 a confusão entre o que é externo ou interno que, segundo Bacon, é acarretada pelos ídolos parece ter como conse-quencia a admissão de que nossas representações humanas são, de modo geral, falsas, porquanto resultantes de uma incapacidade de obtermos uma imagem fiel das coisas, provenientes de um intelecto humano que é descrito como um espelho desigual e turvo. Parece significativo, assim, que Bacon igualmente denomine os idola de imagines, termo que pode significar “fantasmas” ou “falsas represen-tações”:

No que tange à detecção das falácias (elenchos) dos idola ou imagines: os ídolos são verdadeiramente as falácias mais profundas da mente humana. Eles não enganam, como as demais, de modo particular, e-clipsando e enredando o intelecto, mas graças à disposição e a consti-tuição disforme da mente, a qual, de certo modo, desfigura e im-pregna todas as antecipações... (De Aug, V, iv, Sp I, 643, IV, 431)

Talvez, mesmo, devêssemos aproximar a crítica epistemológica ba-coniana, sob esse aspecto, daquela que Sexto atribui à filosofia de Demócrito, que, refletindo, como os céticos, sobre o conflito das percepções sensíveis, acaba por concluir pela irrealidade de ambas que se opõem em cada alternativa, e pretendem que se possa reco-nhecer que a verdade reside na subsistência dos átomos e do vazio.67 Porém, ainda que seja patente a admiração de Bacon por Demócrito, e que ele mesmo acolha, como uma parte importante de sua pesquisa natural, a investigação dos “esquematismos latentes” (isto é, dos pro-

66 HP I, 19-20, 22. 67 Cf HP I, 213-214.

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cessos microscópicos pelos quais se dão as transformações naturais em suas partes menores), o conhecimento das verdades sobre a natu-reza, repitamos, é visto por Bacon como o possível resultado de um esforço de muitas gerações que sejam capazes de aprimorar o método adequado de investigação da natureza. O modo como nossas facul-dades comprometem nossas percepções atualmente é tal que não parece possível antever um conhecimento de um substrato real das coisas para além de nossas percepções, as Formas, sem que essas pró-prias faculdades possam estender, graças ao método, seu poder para além de seus limites naturais.68 Mas, ao mesmo tempo, se os ídolos são vistos como um resultado do modo natural de operar de nossas faculdades, abre-se ao mesmo tempo caminho para compreendermos como as verdades sobre as coisas possam ser conhecidas, por meio de uma superação dos problemas que são projetados por essas mesmas faculdades. Assim, a Magna Instauratio pode se compreender igual-mente como um projeto de restauração das verdadeiras capacidades, ora obscurecidas, da natureza humana (e o artifício metódico pode

68 No Prefácio da Instauratio Magna, tendo observado que o entendi-

mento humano cria por si impedimentos cognitivos que ele próprio é inca-paz de superar, e permanecerão perpetuamente vigentes à falta de um méto-do adequado, Bacon assinala que atualmente, em consequência, “(...) toda essa razão humana que nós utilizamos para a pesquisa da natureza é mal constituída, mal edificada, e parece não ser senão uma massa pomposa e sem fundamento...” (Sp. I, 121) Já na Distributio Operis, ele assinala que, a partir da segunda parte do Novum Organum, trata-se de equipar o entendimento humano para a travessia. “Assim, a segunda parte tem o propósito de ensi-nar um uso melhor e mais completo da razão no estudo das coisas, e de aportar auxílios verdadeiros ao entendimento. Por esse meio, nós queremos (na medida em que nos permite nossa condição humana e mortal) elevar o entendimento e desenvolver suas faculdades de modo a triunfar sobre os obstáculos e obscuridades da natureza...” (Sp. I, 135). V. tb NO §§ I, 95, 97; Sp. I, 201/ IV, 92-94)

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ganhar o seu verdadeiro sentido, segundo Bacon, na forma de uma extensão legítima de tal natureza).69

4. Postergaremos para outro momento uma análise mais minuciosa dos “ídolos do foro” (idola fori), correspondentes às distorções cria-das e perpetuadas pela linguagem humana — conquanto sejam, se-gundo Bacon, “os mais incômodos de todos”70. Limitemo-nos aqui a reconhecer a presença de elementos que, à primeira vista, apontam na mesma direção da análise dos idola tribus. Não apenas as fontes céticas contemporâneas a Bacon parecem (talvez ainda mais clara-mente aqui) desempenhar um papel decisivo para visualizarmos os pontos de aproximação entre ambas as vias, mas igualmente, tam-bém aqui, Bacon parece conferir à sua abordagem crítica uma pre-tensão de ir além dos céticos.

Embora Sexto nos ofereça elaboradas reflexões sobre o uso pirrônico da linguagem e condene o discurso dogmático pelo empre-

69 Decerto que, sob esse prisma, é convidativo aproximar a reflexão ba-

coniana sobre a natureza humana de sua interpretação da Doutrina da Que-da. Se a interdição teológica, segundo ele, deve se aplicar estritamente sobre os preceitos da moral (Cf., p. ex., Sp. I, 132; IV 20-21), isso não impede que a oposição entre aquilo que apreciamos como resultados atuais de nossa natureza e aquela que seriam suas efetivas capacidades possa ser vista segun-do o mesmo esquema. Devemos cuidar, porém, de não infringir a rigorosa demarcação que o próprio Bacon pretende estabelecer entre o domínio da teologia e da pesquisa da natureza quando pretendemos interpretar seu pensamento, supondo, por exemplo, que sua antropologia seja simplesmen-te uma consequencia da admissão de pressupostos religiosos. Não esqueça-mos que um dos idola theatri frequentemente alvejado por Bacon reside na “corrupção da filosofia pela superstição e pela mistura com a teologia”. (NO, I §65; Sp I, 175)

70 NO I, §59

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go de termos aparentemente sem sentido;71 e Cícero, igualmente, rechace as discussões em torno da nomenclatura da noção acadêmica de “provável”, afirmando que o sábio não é um fabricante de pala-vras, mas um pesquisador das coisas,72 os textos céticos antigos, salvo engano, não se detém especialmente no exame da linguagem como uma espécie de fonte autônoma de ilusões e impedimentos ao conhe-cimento das coisas, tal como propõe a doutrina baconiana. Em con-trapartida, considerações de cunho cético, sobre o modo como a linguagem humana constitui uma instância ativamente comprome-tedora de nossa pretensão de conhecimento, fazem-se presentes em Montaigne e Sanchez. Segundo Lia Formigari, inspiram-se direta-mente de passagens deste segundo autor uma parte das reflexões ba-conianas sobre a linguagem, que teriam sido cruciais para as discus-sões filosóficas e linguísticas do século seguinte, exatamente pelo modo como abordam suas imperfeições.73 Menos observados, mas igualmente presentes, são os reflexos em Bacon de considerações de cunho cético sobre a linguagem que encontramos em Montaigne (e que, de sua parte, também apresentam várias inovações relativamen-te aos antigos).74

71 Sobre o uso cético da linguagem, v., p. ex., HP I, 16, 182 ss., 191, 195,

206-208; sobre a inteligibilidade do discurso dogmático, v. p. ex. HP II, 22 ss.

72 Cf. CICERO, Acad, frag. 19. 73 FORMIGARI (1988), esp. introdução. Danilo Marcondes, na mesma

direção, observa que as reflexões céticas sobre a linguagem ocuparam um papel central na filosofia do Renascimento e na maneira como se configura a epistemologia moderna. Cf MARCONDES (2002)

74 Diversas passagens dos Ensaios abordam este tema: v., p. ex., II, 12, 499, 527-528; II, 16, 618; III, 13, 1066-1069. Villey aproxima esta última discussão de uma passagem de Sanchez que lhe pode, eventualmente, ter servido de fonte. (Cf. QNS p. 52, Les Essais, p. 069)

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Por outro lado, até onde sabemos, não parece haver nenhuma passagem de Bacon relacionando-os diretamente ao ceticismo, mas como vimos Bacon afirma que as “falácias de interpretação” (corres-pondentes à aceitação de termos falsos e equívocos que degeneram em disputas de palavras) não foram objeto de uma crítica satisfatória por parte da filosofia tradicional.75 Talvez algum esclarecimento acerca desse ponto possa advir do exame do modo como se relacio-nam essas considerações de ordem crítica e o projeto baconiano de estabelecimento dos caracteres reais (signos estabelecidos por conven-ção que devem significar, não os sons e as palavras, mas diretamente noções e coisas), proposto no De Augmentis, projeto que, como indi-ca P. Rossi, teve grande impacto no desenvolvimento subsequente das discussões sobre a notação científica.76

5. E o que dizer, finalmente, dos “ídolos do teatro” (idola theatri), representados pelas teorias, princípios, axiomas e métodos filosóficos vigentes, e que, por isso mesmo, seriam aqueles que mais justamente deveriam corresponder, em princípio, ao alvo próprio da crítica cética, tal como originariamente formulada (isto é, as doutrinas dogmáticas, que os céticos reputam incapazes de sustentar adequa-damente as supostas verdades que avançam)? Mais uma vez, as parti-cularidades do ceticismo renascentista, que não vamos enumerar, parecem ter relevância: como Bacon, por exemplo, Montaigne insiste

75 Cf nota 35, acima. Notemos, porém, que no De Augmentis esse gênero

de falácias é diferenciado dos “ídolos”, nos quais igualmente se encontra uma exposição resumida dos idola fori. Ademais, as alusões críticas de Bacon à precariedade da crítica de tais falácias refere-se diretamente ao modo como Aristóteles foi incapaz de reservar um lugar próprio a essa temática, situan-do-a confusamente entre a Metafísica e a Analítica. (De Aug, V, iv, Sp IV, 430)

76 V. De Aug, IV, cap. I, e ROSSI (1992), esp. pp. 274 et ss.

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no caráter fantasioso das teorias filosóficas.77 Todavia, estamos aqui diante de ídolos que divergem do ceticismo, ao que parece, de modo mais explícito que nos casos anteriores. Nas Hipotiposes, Sexto orga-niza seu exame das filosofias existentes por meio de uma classificação tripartite, retomada posteriormente por Montaigne, segundo a qual a pesquisa cética corresponderia, por assim dizer, a um terceiro gênero filosófico (caracterizado pela permanência na busca da verdade até então indisponível), por oposição à filosofia de tipo dogmático (ca-racterizada pelas doutrinas que pretendem formular alguma espécie de verdade) e ao gênero acadêmico (que afirmariam categoricamente que a verdade não pode ser conhecida).78 Bacon, por sua vez, consi-dera as deficiências dos gêneros filosóficos existentes segundo uma tipologia diversa. 79 Os filósofos do gênero racional, diz ele, apoiam-se em observações incertas e pouco rigorosas, extraindo todo o resto da meditação e agitação do espírito; ele os compara a aranhas que fabricam seus sistemas como teias, a partir de sua própria matéria racional. Estes, talvez, sejam os que mais imediatamente se acomo-dam, aos olhos de Bacon, àquilo que o ceticismo caracteriza como “filosofia dogmática”.80 E, embora Bacon não as critique aqui, como

77 Veja-se, por exemplo, Les Essais II, 12, 536-537. 78 V. HP I, 1-4, cf. Les Essais II, 12, 501 ss. 79 NO I, §62 ss. (Sp I, 173-174 / IV, 63-64), v. tb. I, §95, (Sp. I, 201). 80 Em I, §95 (Sp. I, 201), curiosamente, Bacon se refere igualmente a essa

classe de filósofos como “racionais” ou como “dogmáticos”, por oposição à dos “empíricos”. É algo controverso determinar exatamente o sentido em que Sexto Empírico emprega “dogmatizar”. Segundo B Mates, o dogmático é caracterizado como um filósofo que sustenta crenças, a maioria delas cate-goricamente, às quais ele subscreve, não apenas momentaneamente, mas com firme convicção. (MATES, 1996, p. 60) Pode-se, todavia, caracterizar o dogmatismo num sentido mais amplo, como aquilo que caracteriza, de modo geral, toda e qualquer espécie de posição filosófica que assuma uma posição sobre o que são as coisas (tal como tematizadas pelo discurso filosó-fico).

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fazem os céticos, alegando o conflito insanável das posições que ad-mitem sobre os diversos temas, tal tropo tradicional do ceticismo é retomado noutras partes do Novum Organum. 81

Já os filósofos do gênero empírico são como formigas, inces-santemente reunindo objetos do qual extraem pouco, ao submete-rem tudo o que examinam a um pequeno número de experiências, que não lhes permite ir muito longe. Além destes, Bacon considera separadamente os filósofos do gênero supersticioso, que misturam a filosofia à teologia e às tradições, e a especulação defeituosa presente na filosofia natural (assinalando que as causas da precariedade atual da filosofia dependem, não apenas dos defeitos dos métodos empre-gados, mas também do desprezo por esse gênero de investigação).82 Assim, embora a crítica dos Ídolos do Teatro se valha parcialmente da crítica cética às filosofias dogmáticas como modelo, a reflexão baconiana sobre o saber disponível se prende a aspectos que parecem ultrapassar o quadro teórico do ceticismo antigo, não apenas median-te a mobilização dessas categorias particulares, mas, de forma mais geral, na medida em que busca levar em conta a maneira pela qual

81 Depois de criticar os filósofos Acadêmicos pelo modo como teriam

transformado a acatalepsia em um dogma (v. nota 5), Bacon inclui entre os “signos” da limitação da ciência atual a extrema diversidade e desacordo entre os filósofos, seja sobre os princípios ou os sistemas inteiros, proviso-riamente estancados pelo modo como se passou a conferir valor de lei à autoridade aristotélica (NO, I, §76,77; Sp. I, 184-185 / IV 75-76). Isso parece evocar o conhecido tropo da diaphonia, pelo qual os céticos pirrônicos igualmente pretenderam alegar a impossibilidade de dar crédito a qualquer das explicações dogmáticas oferecidas sobre as coisas (cf. HP I, 165), mas é também invocado pelos filósofos da Nova Academia, segundo Cícero (cf. Acad II, 114-115). O uso desse tropo é recorrente em autores do Renasci-mento de inspiração cética, como Agrippa de Nettesheim, Erasmo ou Mon-taigne.

82 Cf. NO I, § 66 (Sp I, 176-178); §

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histórica e socialmente os saberes existentes tornaram-se o que efeti-vamente são.83

Finalmente, o exame de Bacon, nesse ponto, explicita sua in-tenção de ultrapassar um viés cético, na medida em que reserva, pre-cisamente, o último aforismo dos idola theatri (I §67) para comentar os problemas da “intemperança na recusa do assentimento”. Embora o procedimento dos céticos seja, no entender de Bacon, mais honesto do que o pronunciamento arbitrário (que parece, nessa medida, con-juntamente caracterizar, em algum grau, todos os demais), a desespe-rança da verdade, diz ele, desvia o homem da via austera da pesqui-sa.84 Assim, para além da divergência conceitual que se anunciara já no caso dos idola tribus, parece-nos possível descrever o percurso que se inicia no aforismo I, §37 (onde, como vimos, Bacon declara sua concordância “inicial” com os céticos) como o de uma explicitação progessiva da divergência para com esses filósofos, que culmina com uma crítica explícita. Tratar-se-ia, em verdade, apenas do primeiro movimento de um percurso pelo qual essas vias, inicialmente unidas, se oporiam, e que haveria idealmente de culminar, ao “final”, com o conhecimento das verdadeiras Formas das coisas pelo método da indução.

Este é o momento de fazer referência a uma outra particulari-dade da Doutrina dos Ídolos, de natureza metodológica, que nos parece ter uma implicação decisiva para a nossa questão. No aforis-mo 84 do livro I, Bacon, reportando o efeito dos ídolos, afirma: “(...) não será então surpreendente que esses sortilégios da antiguidade, dos autores e do consentimento, tenham paralisado o engenho dos ho-mens, a tal ponto que, como por uma má sorte, eles não tenham

83 Isto é particularmente visível, por exemplo, na análise dos signos e das

causas da precariedade da ciência existente, que se seguira à crítica dos idola theatri e ocupa os aforismos 70 a 92 do Livro I.

84 Cf. NO I §67 (Sp I, 178-179 / IV 68-69)

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podido se familiarizar com as próprias coisas...” Embora Bacon afir-me que os ídolos só podem ser propriamente afastados através do conhecimento das próprias coisas, os desenvolvimentos subsequentes à apresentação da Doutrina dos Ídolos destinam-se a mapear o modo particular com que eles se enredam, segundo seus diversos gêneros, no estado atual do saber presente, e de algum modo contribuir para suspender o seu efeito paralisante. Ainda que tais configurações con-cretas dependam de fatores aparentemente contingentes, elas nos situam em um terreno filosófico diverso do ceticismo, seja antigo ou moderno. Isso porque, a despeito dos critérios distintos com que se organizam os diferentes modos ou tropos pirrônicos, tal como ex-postos por Sexto Empírico, pode-se dizer que sua eventual sistemati-cidade não pretende impor nenhuma hierarquia ao seu conteúdo. Trata-se apenas de expor, da forma mais variada e completa que se puder, as possibilidades diversas de estabelecer antinomias entre phainómena e nôumena, isto é, entre objetos da percepção e juízos,85 sem fazer nenhuma asserção positiva quanto a seu número e validade — “pois é possível que eles não sejam cogentes ou haja mais do que os que eu irei enumerar...” (HP I-35) A própria ordem adotada res-peita os propósitos da argumentação, podendo eles igualmente serem classificados segundo a relação com o sujeito que julga ou o objeto julgado. (v. HP I, 38-39) A amplitude da exposição reflete sua poten-cial utilidade em face da multiplicidade de configurações e gradações com que um mesmo mal, a presunção (oíesis), comprometeria a cren-ça dos dogmáticos. (v. HP III, 280)

Já a apresentação dos gêneros dos ídolos considera, não apenas sua diferença quanto ao objeto, mas também o seu grau de enrai-zamento na natureza humana. Os Ídolos do Teatro, segundo Bacon, não são inatos e não se insinuam secretamente no entendimento; ao contrário, se impõem abertamente, na forma das teorias e das de-

85 HP I 9-10, 31

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monstrações que são sua fonte.86 Eles são, nessa medida, apenas um efeito mais superficial do feitiço dos Ídolos do Foro, isto é, do modo como a linguagem fixa uma apreensão distorcida das coisas, soman-do-se às diferentes idiossincrasias, manifestas nos Ídolos da Caverna, e aos erros comuns, os mais enraizados na nossa natureza, os Ídolos da Raça, residentes nas nossas próprias faculdades cognitivas huma-nas. Assim, embora eles próprios não correspondam a argumentos, o método de sua exposição é parte de um dispositivo retórico destina-do a exibir ao leitor o modo como a natureza humana prolonga-se, mesmo através de seus defeitos, nas suas produções artísticas, forjan-do um mundo ex analogia homini que se converte em um anteparo para o verdadeiro contato com as coisas, cabendo ao método produ-zir uma ciência ex analogia rerum na medida em que puder contornar os ídolos.

Uma comparação com a progessão da dúvida cética, tal como retomada por Montaigne, permite salientar a dimensão metodológica dessa particularidade. Como já se observou, é possível detectar um método progressivo na dúvida cética que se desenvolve na Apologia: o texto caminha no sentido de atacar fontes cada vez mais básicas da “vaidade humana” que move os segundos objetores de Sebond,87 passando da crítica às teses metafísicas cosmológicas e antropológicas

86 NO I, §61, Sp I, 172. 87 Nas palavras de Montaigne: “[A] ...Estes possuem um preconceito em

seu julgamento que lhes torna o gosto embotado às razões de Sebond. No fim das contas, pensam que é vantagem que se concede a eles, a de estarem em liberdade de combater a nossa religião pelas puras armas humanas, a qual eles não ousariam atacar em sua majestade plena de autoridade e de comando. O meio que adoto para combater esse frenesi e que me parece o mais adequado é o de estraçalhar e pisotear o orgulho e a altivez humana, fazer-lhes sentir a inanidade, a vaidade e a nulidade do homem, desaprumar as cativas armas de sua razão, fazê-los baixar a cabeça e morder a terra sob a autoridade e reverência da majestade divina...” (II, 12, 448)

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então vigentes a uma análise geral da precariedade do saber filosófico e, por fim, das precariedades decorrentes da natureza de nossos ins-trumentos cognitivos, o juízo, a razão e, finalmente, os sentidos — nos quais reside “o maior fundamento e prova da nossa ignorân-cia”.88 Curiosamente, é neste desenvolvimento final do texto mon-taigneano que são retomados, de um modo mais claro e sistemático, os Tropos argumentativos pirrônicos originais, tais como os encon-tramos propostos em Sexto Empírico. Se é preciso compreender que o homem “não pode subir acima de si e da humanidade, posto que ele só pode ver com seus olhos e pegar com suas presas...”, este limite coincide com o grau máximo da dúvida, tal como exposto pelos céti-cos.89

Mas, no caso de Bacon, o exame progressivo dos ídolos, dos mais enraizados em nossa natureza aos mais superficiais, destina-se expressamente a situar-nos em uma via diversa da que trilharam os céticos, pela qual se trata de propor, não uma refutatio — que, segun-do ele, nos manteria presos a pressupostos demonstrativos que, para esse fim, são de pouca utilidade — mas uma redargutio, isto é, uma recusa radical dos métodos demonstrativos e das noções prevalecen-tes. Nessa medida, os ídolos baconianos se pretenderiam portadores de uma destinação retórica aparentemente oposta a dos céticos, a saber, a de evitar a atitude refutatória (embora isso não se deva, co-mo vimos, ao fato de que Bacon discorde das conclusões das argu-mentações céticas, mas sim à sua avaliação de que essas refutações seriam desnecessárias, em vista de um completo desacordo quanto aos princípios, noções e formas de demonstração da filosofia tradi-

88 II, 12, 587A. Para um esquema geral da estrutura lógica desse ensaio, cf. ibid. 438.

89 II, 12, 604A. Na dúvida hiperbólica cartesiana, onde, decerto, também se encontra uma espécie de gradação, o grau máximo, como sabemos, tem a pretensão de ir além do que Descartes entende serem os limites da “dúvida natural”.

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cional).90 Segundo Bacon, “afrontar a loucura apenas a exacerbará” e conduzirá os espíritos a se fecharem em si mesmos.91 Se é preciso engajar os homens numa nova empresa científica, cabe buscar um meio, sugere ele, de se insinuar nos espíritos.

Parece-nos, portanto, que o reconhecimento da profunda afi-nidade existente entre os ídolos e as fontes céticas que os modelam não conduz necessariamente a que percamos de vista suas peculiari-dades — antes o contrário. A doutrina baconiana não apenas preten-de recobrir o escopo da argumentação cética (no sentido restrito em que recupera a pertinência das razões apontadas para a suspensão provisória do juízo), mas também apontar numa direção diversa. Ao fazê-lo, porém, depende tanto do modo como tais problemas ga-nham nova silhueta, tal como conjuntamente se alinham, quanto do modo como se situam a partir de uma concepção determinada da natureza humana, que a um só tempo refletem e recobrem. Assim, enfatizando o modo como os ídolos nela inicialmente se enredam, prolongando-se mais superficialmente em suas manifestações históri-cas contingentes, Bacon confere a tais problemas epistêmicos, em seu conjunto, a realidade própria das meras imaginationes produzidas pelo próprio homem. Se delas não podemos inteiramente nos esqui-var no atual estado, seu estatuto constituiria uma fagulha de esperan-ça para a produção de uma pesquisa da verdade efetivamente propícia à obtenção do seu objeto; para o anúncio de um casamento entre a mente e as coisas, segundo as verdadeiras potencialidades da nossa natureza, que só poderia vir a se consumar depois de superado o estado de confusão cognitiva entre o externo e o interno, tal como ele se imporia em vista, igualmente, da natureza de nossas faculdades.

90 P ex., NO I §61, Sp I,172 91 Cf. Temporis Partus Masculus (Sp III, 529); NO I, §35 (Sp I, 162 / IV,

53).

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