francine romano - trabalho final 2012-2

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL

    2012

    A evoluo do gnero romanesco e o mecanismo dos dispositivos

    F R A N C I N E R E I N H A R D T R O M A N O ( M E S T R A N D A E M L I T E R A T U R A F R A N C E S A )

    Este trabalho tem por objetivo repensar os passos evolutivos do gnero

    romanesco e sua estilstica, luz da teoria da cena romanesca, apresentada pelo

    Centro de Pesquisas La Scne , da Universidade de Toulouse - Le Mirail. Esta

    proposta assume a cena do romance como um mecanismo vital em sua

    assimilao e tenta desvelar as pequenas engrenagens que trabalham na

    construo de sentido da obra. Um grande passo em sentido de um campo de

    anlise mais unificado com os outros domnios das cincias humanas, j que a

    cena explica-se atravs de vrias correntes tericas como a histria, a sociologia,

    a antropologia, a filosofia, a psicanlise, etc.

  • 2

    A evoluo do gnero romanesco e o

    mecanismo dos dispositivos de representao

    Por onde comear a falar sobre romance? Sem dvida, o mais frtil dos gneros literrios

    tanto em termos de forma como de contedo; ainda assim no h como desconsiderar sua

    recente ascenso nas mos, primeiramente, dos romnticos e, em seguida, dos realistas. O

    romance como forma decorrente do pico deixa para trs as correntes do classicismo para

    se tornar o espao1 mais propcio experimentao de novas ferramentas discursivas,

    novos estilos narrativos - como demonstra, por exemplo, Lkacs2 ou, mais recentemente,

    Srgio Vicente Motta3.

    A epopeia burguesa, assim queria Hegel, d esse salto notrio em relao temtica e a

    forma anteriores, indiscutivelmente, em funo de poder representar esse mundo ps-

    revolucionrio4 to oscilante poltico e socialmente, como bem j sabemos. A questo :

    como exatamente podemos pensar as estruturas narrativas de forma a compreender seu

    poder sobre nosso imaginrio? Esse efeito sobre ns chega a tal ponto que o texto

    constitui-se como um fenmeno histrico-social apesar de ser vinculado s impresses (por

    natureza, subjetivas) do mundo nossa volta. Questionamento que aparece muito

    pertinentemente em Moretti. Em seu O sculo srio especula sobre os possveis motivos na

    mudana formal do romance nos sculos XVIII e XIX tendo como principais ndices o

    surgimento do capitalismo racional-burocrtico e o novo ritmo que este imprime na

    cultura ocidental. E, por tudo isso encontrar eco na literatura, de que forma se configuraria

    a existncia, sobretudo com o romance, dessas interferncias em nossa cognio?

    Porquanto nos sentimos to emocionalmente sensibilizados pelas reviravoltas das intrigas

    1 Aproveito para destacar o que mais adiante ser esclarecido detalhadamente sobre a nfase da abordagem terica adotada, em relao ao texto como espao simblico e iconogrfico, defendida pelo grupo de pesquisa La Scne. Trabalhando com a concepo de cena romanesca, seus participantes buscam classificar e sistematizar os processos de constituio da imagem praticada pelo texto e os possveis efeitos de simbolizao que encontram suporte - mesmo inconscientemente - no imaginrio do leitor.

    2 LUKCS, Georg. A teoria do romance. So Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2000. 240 p. 3 MOTTA, S. V. O engenho da narrativa e sua rvore genealgica. So Paulo: Ed. UNESP, 2006. 501 p. 4 Referente Revoluo Francesa e ao florescimento das classes burguesas no sculo XIX. E prpria revoluo

    romntica que teve manifestaes em todo o ocidente.

  • 3

    ficcionais, podemos admitir que estes embustes sejam de forma diligente arquitetados sob

    nossa vulnerabilidade (voluntria, evidentemente5).

    A matria literria e os procedimentos narrativos oferecem-se por si s conforme a poca

    em que produzido o texto. E, quando se trata de produtividade, a evoluo tecnolgica e

    criativa determina de maneira crucial os limites na compreenso do homem sobre si

    prprio e seu meio6. O fenmeno evolutivo da escrita literria empreende um movimento

    cclico de formalizao de estruturas de representao que transformam nossa leitura (no

    sentido mais amplo da palavra), e interferem em nossa formao, retornando em espiral ao

    ponto inicial de reestruturao da forma; atingindo nesse processo todas as esferas do

    humano - econmica, social, psicolgica, etc. - em sentido do microcosmo subjetivo ao

    macrocosmo cultural.

    Tais transformaes so tambm discutidas por Stphane Lojkine, Philippe Ortel, dentre

    outros, membros do Centro de Pesquisa La scne, dirigido por Marie-Thrse Mathet7.

    O grupo apresenta estudos, bastante recentes, sobre a sistematizao da cena no romance8.

    Segundo essa modelizao, a forma como o autor d a ver o universo narrado e seu

    espao ficcional estabelece, antes de qualquer coisa, os efeitos de teatralidade fabricados

    pela cena. Estes efeitos so atingidos a partir do princpio dos dispositivos9. O aspecto

    visual do texto, esta espacializao da escrita nos faz adentrar no texto por uma tica outra

    que no a da tradicional narratologia. Ingressamos pelo que visvel desse universo

    ficcional e o transpomos ao que est alm: do visvel ao visual10.

    5 Sobre o pacto de leitura ver o verbete em ARON, Paul ; SAINT-JACQUES, Denis ; VIALA, Alain; BEAUDET, Marie-Andre. Le dictionnaire du littraire. Paris: Presses Universitaires de France, 2002, 634 p.

    6 Podemos citar o Zeitgeist hegeliano, defendido por Rosenfeld em Reflexes sobre o romance moderno. 7 Mais informaes podem ser encontradas no site Utpictura18. Disponvel em: . Acesso em: 21/04/2013. 8 O objetivo desse grupo de pesquisa, que trabalha com a dialtica texto-imagem, de explorar a cena como um

    fenmeno em evoluo na histria, ou seja: quest-ce qui, dans le roman du moyen ge, prexiste la scne ? Quelles sont, la fin du dix-septime sicle, les structures formelles de la scne qui se mettent en place ? Comment, au dix-huitime sicle, la scne se gnralise-t-elle dans le roman ? Quest-ce qui, au dix-neuvime sicle, articule le nouveau dispositif de la scne la rvolution culturelle que reprsente linvention de la photographie ? Comment, enfin, le nouveau roman met-il en scne la destruction de la scne romanesque ? Apresentao do livro La scne de Roman: mthode danalyse. Disponvel em: < http://sites.univ-provence.fr/pictura/SceneDeRoman.php>. Esse mecanismo que acompanharia as mudanas socioculturais de cada perodo esttico, encontra-se desvelado de forma magnfica por Lojkine em La scne de roman, estudo axial para a compreenso das asseres expostas nesse trabalho.

    9 Termo entendido sobre tudo a partir da arqueologia de Foucault, da filosofia deleuziana e, em especial, dos dispositivos lacanianos.

    10 MATHET, Marie-Thrse (Org.). La scne : littrature et arts visuels. Paris : Harmattan, 2001, p. 8.

  • 4

    Todorov chegou a cogitar que a linguagem verbal s pode exprimir o racional, o terrestre,

    o visvel.11 Mas a linearidade da escrita no impede a construo (ou decomposio) de

    espaos e ritmos narrativos em nveis de abstrao muito alm do racional e do visvel -

    basta tomarmos como exemplo a literatura fantstica ou o realismo mgico sul-americano e

    africano. A inteno , ento, estabelecer uma compreenso mais aprofundada de como a

    sequencialidade do cdigo manipula a criao das imagens no ato da leitura utilizando-se

    dos dispositivos para imbuir a cena romanesca em significaes que vo muito alm da

    construo da linguagem e das imagens por ela produzidas; aproximando-nos do cerne do

    funcionamento da cena podemos estimar a violncia com que esse universo icnico nos

    atinge e como nos afeta de forma pragmtica. Ao que diz respeito anlise da cena,

    justamente a partir de representaes mais concretas - dos espaos ficcionais - que

    delineamos o olhar do que visvel em direo dimenso visual; do que est presente

    discursivamente ao que percebemos suprimido do texto. presena dos signos

    contraposta ausncia prescrita pelo inaudito, e todas as inferncias que resultam deste,

    conforme o quadro histrico-estilstico em que surge a obra. Como nos confirma Merleau-

    Ponty, isso quer dizer, finalmente, que o prprio do visvel ter um forro de invisvel em

    sentido estrito, que ele torna presente como certa ausncia12.

    A proposta dos dispositivos traa pontos de convergncia entre as teorias literrias

    tradicionais e outras reas do conhecimento humano, projetando pontos de anlise fora do

    que se considera a crtica ortodoxa. Por outro lado, esta forma de vislumbrar o texto

    mostra-se muito pertinente anlise do romance. Em sua natureza revolucionria, o

    romance quebra os paradigmas formais desde seu nascimento, figurando como gnero

    eternamente inacabado e em evoluo, como Bakhtin j havia manifestado: A teoria da

    literatura revela a sua total incapacidade em relao ao romance13. Enfim, a literatura em

    si, como um objeto onde se particulariza uma ausncia plena de contedo e significaes

    mais que complexas, percebida hoje14 pela articulao de signos sensveis, antes mesmo

    de podermos atribuir ao texto significados inteligveis. Algo que tambm a filosofia j

    vinha, desde h muito, fazendo paralelamente: buscar entender a oposio entre mundo

    11 TODOROV,Tzvetan. Teoria dos smbolos. Lisboa: Edies 70, s/ano, p.197. 12 MERLEAU-PONTY, M. O olho e o esprito. IN: O Olho e o esprito. So Paulo: Cosac Naify, 2004, p. 43. 13 BAKHTIN, M. Epos e romance. IN Questes de literatura e de esttica: a teoria do romance. So Paulo: UNESP, 1998,

    p. 401. 14 Pelo menos desde Proust tenta-se mais conscientemente dar conta dessa dimenso sensvel. A prpria fenomenologia

    tem princpio nessa mesma poca da virada do sculo XIX ao XX com Edmund Hussler.

  • 5

    emprico e as representaes criadas por nossa capacidade de abstrao; tal o anseio de

    Russell, por exemplo, como da maioria dos filsofos, de conhecer o real15.

    De fato, a perspectiva cartesiana, que prev o espao como um jogo de processos

    mecnicos, desconsidera o efeito particular de cada dado sensvel. Nesse ponto, a

    fenomenologia francesa fez expandir a viso racionalista, mesmo que ela tenha se

    contradito em certo momento, traindo a si prpria em favor da intuio de um universo

    existente alm da materialidade sensorial. Merleau-Ponty no ensaio O olho e o esprito,

    quando desperta reflexes sobre algumas sensaes que se produzem ao lermos as vrias

    formas de arte, entrevia nesse processo a atuao de um observador: uma conscincia

    imediata do entorno em sua presena como objeto, no como um dado inerte, mas como

    um componente malevel conforme a prpria susceptibilidade do indivduo seus

    estmulos; a sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e sob meus

    atos.16 Um passo alm, mesmo que no deliberadamente consciente, de Ponty quanto

    suplantao da fenomenologia.

    Voltemos questo do espao na narrativa; mais precisamente, opondo-se a essa

    concretude visvel, h esse espao que no se pode delimitar, no palpvel e invisvel.

    Quando Ponty afirma que a forma externa no o que d configurao ao objeto, o autor

    tenta acessar essa poro interdita da realidade. Algo que Lacan, em sua apropriao de

    Freud, chamaria de real: impossvel e inatingvel. Marie-Thrse Mathet17 atenta para o

    conceito da trade lacaniana Real-Simblico-Imaginrio como sendo a configurao da

    realidade perceptiva do homem, constituinte da sua psique; inapreensvel sob sua

    configurao mais crua e, por isso, angustiante. Por arquitetar-se por sobre o real, como um

    revestimento que o torna mais cognoscvel, a realidade construda pelos domnios do

    simblico (linguagem) e do imaginrio (projees ilusrias e ideais) acaba sendo

    constantemente perfurada e transpassada por esse real cruciante. O impalpvel resultante

    dessa experincia acaba irradiando quase como uma resposta sinptica para a produo

    artstica.

    15 RUSSELL, Bertrand. Aparncia e realidade. In: Os problemas da filosofia. Traduo Jaimir Conte. Florianpolis, 2005. Disponvel em: . Acesso em: 13 jun. 2012.

    16 MERLEAU-PONTY, op. cit. p. 14. 17 MATHET. M.-T. Retour sur le rel. Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em : . Acesso em: 05 jun. 2012.

  • 6

    A ausncia pronuncia-se estridentemente na literatura: atravs da cadeia

    discursiva escolhida pelo escritor, ou seja, pela forma narrativa com que ele descreve um

    universo possivelmente humano e materialmente concreto, o indizvel do real irrompe a

    lgica discursiva; ou seja, o simblico lingustico e o imaginrio cultural so as

    ferramentas utilizadas pelo autor para dizer o que indizvel, transmitir o que

    incompreensvel sobre o mundo. Processo que pode ter sua tese nos conceitos de

    significao derridianos, em que esta apreendida no pela presena do prprio

    significante18, mas pela ausncia intervalar do signo (contrariamente produo de sentido

    saussuriana, em que configura justamente o signo como a instncia mxima da

    significao). A funo do texto, que seria de representar o mundo ordenadamente atravs

    da linguagem, cria no decurso como reflexo o efeito das sensaes intermitentes (como

    gostaria Proust) de que se tem uma vaga percepo quando da consumao esttica. A esse

    mecanismo Mathet chama de dispositivo. Essa perspectiva apresentada por seu grupo de

    pesquisa, que prope as relaes entre texto e imagem, desenvolve a ideia de uma

    sistematizao com a finalidade de tentarmos entender o universo do fenmeno da cena -

    to antigo quanto a retrica e a estilstica19.

    Stphane Lojkine, sobre a teoria dos dispositivos, descreve que um dispositivo de

    representao caracteriza-se, antes de tudo, pela interposio entre o espectador/leitor e a

    obra de arte; nunca um dissociado do outro. O momento da consumao esttica justo o

    ponto de fuso entre os dois, que instaura uma desordem, em parte antecipada pelo artista.

    essa desordem, a obra apresenta uma resposta20: quando, pelo entrelaamento dos

    trs nveis de composio do dispositivo21, lcriture fait tableau22. No se pretende

    tratar exaustivamente esses conceitos nem expor todos os seus mecanismos, devido

    complexidade de tais pressupostos; o que se quer , simplesmente, comentar sobre a sua

    pertinncia enquanto teoria que tenta dar conta da literatura como um processo no s de

    18 DERRIDA, Jacques. Lcriture et la diffrence. Paris : Seuil, 1967. 19 Teria, a cena, seus princpios baseados na hipotipose. 20 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 jul. 2012. [Traduo minha]

    21 A natureza desses trs nveis, baseados na trade lacaniana, ser explorada em detalhes mais adiante. 22 LOJKINE, S. La Scne de roman : mthode d'analyse. Paris: Armand Colin, 2002.

  • 7

    criao mas de alimentao da subjetividade dos indivduos receptores dessa linguagem23,

    buscando suporte em outras reas, como a pintura, a filosofia, a antropologia, a psicanlise

    etc.

    Figurando, paralelamente, na crtica literria tradicional podemos identificar ao

    menos quatro formas distintas, ainda que complementares de anlise do espao literrio24.

    Uma das metodologias de anlise mais utilizadas nos estudos da rea seria a de

    representao do espao25. Este concebido atravs de sua materialidade - o palco

    onde os personagens atuam - e envolve todas as implicaes socioculturais que dele

    insurgem. Nesse recorte de espao, o que predomina o levantamento de suas funes e os

    efeitos atingidos por diferentes recursos discursivos26. Haveria, ainda, linhas de anlise que

    consideram a prpria estruturao fsica da linguagem textual como domnio da

    espacialidade, suspendendo a temporalidade da narrao - concebendo o tempo como a

    percepo de momentos espaciais encadeados. Outras teriam como princpio de partida

    para determinar o espao a focalizao, opondo o espao observado ao ponto de

    perspectiva do narrador, que seria tambm um espao em potencial27. Evidentemente,

    todas essas propostas baseiam-se na observao da mais simples verdade: no concebvel

    literatura sem espao (o ser humano indissocivel do espao que o constitui) e este

    espao depende da forma como literariamente sero concebidas as ideias implicadas na

    obra. Todas estas propostas de anlise trabalham aspectos diferentes do que constitui a

    cena romanesca atravs dos dispositivos de representao.

    23 inevitvel que busquemos no mundo da fico, na literatura, no teatro, substituto para as perdas da vida. L encontramos ainda pessoas que sabem morrer, e que conseguem at mesmo matar uma outra. E apenas l se verifica a condio sob a qual poderamos nos reconciliar com a morte: de que por trs de todas as vicissitudes da vida nos restasse ainda uma vida intacta. [...] No reino da fico encontramos a pluralidade de vidas de que temos necessidade. Morremos na identificao com um heri, mas sobrevivemos a ele e j estamos prontos a morrer uma segunda vez com outro, igualmente inclumes. FREUD, Sigmund. Introduo ao narcisismo, ensaio de meta psicologia e outros textos (1914-1916). Obras Completas vol. 12. Traduo de SOUZA, Paulo Csar de. So Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.173.

    24 BRANDO, Luis Alberto. Espaos literrios e suas extenses. Aletria: revista de estudos de literatura. Belo Horizonte, vol. 15. p. 207-220. jan.-jun. 2007.

    25 BRANDO, op. cit. p. 208. 26 BRANDO, op. cit. p. 209. 27 BRANDO, op. cit. p. 211.

  • 8

    A cena, palco dos dispositivos

    Traamos at aqui a substancial autoridade que o espao exerce sobre a nossa

    avaliao do mundo e como, para a teoria dos dispositivos, ele capital. No entanto, pouco

    se ponderou sobre o termo cena. Em que circunstncias, em nosso contexto social

    contemporneo, evocamos a ideia de cena? Quais elementos transitam em nosso

    imaginrio quando tentamos definir esse conceito? provvel que a grande maioria dirija

    o pensamento imediatamente aos formatos de mdia mais veiculados ultimamente: cinema

    e televiso. O que na verdade est implcito nisso o fato de que, sem excees, quando

    definimos nossa ideia de cena, sabemos que se trata necessariamente de uma imagem (uma

    unidade pictrica). Uma das coisas mais importantes a considerarmos sobre a cena, como

    j dissemos, a sua impregnao pelo teatro, resgatando l de Aristteles o poder da

    mmesis representao do real intimamente ligada ao drama.

    No romance so muito escarpas e dissonantes as concepes atribudas ao termo.

    Muitos tericos usam a palavra, intuitivamente, com a inteno de delimitar um bloco de

    narrao que faria sentido como unidade de ao ( maneira aristotlica), mas sem ter

    conscincia de como esses blocos elegem-se a si prprios, seu funcionamento interno.

    Alm de no levarem em conta a autonomia desse fenmeno, acabam focando somente no

    procedimento discursivo e abandonam outros aspectos importantes. Uma dentre as mais

    conhecidas, talvez por tratar-se de um dos maiores tericos da narratologia, foi a proposta

    que Genette ofereceu terminologia de anlise romanesca28. Nesta, a cena assume

    abertamente as caractersticas do drama: uma passagem narrativa marcada pelo discurso

    direto, ou seja, ela figuraria como a imitao da imitao - por simular o procedimento

    teatral29 - como salientou Genette. Na narrativa, por seu carter dialogal, possuiria a

    responsabilidade de aproximar o tempo da diegse ao tempo do discurso, de certa maneira

    igualando essas duas instncias por momentos. O que implica em tambm pensarmos isto

    sobre a instncia espacial. O autor faz passar a percepo do leitor do lugar do narrador

    ao lugar narrado (distante no passado e, talvez, tambm no espao) pela manipulao de

    ferramentas estilsticas. Associa-se, aqui, a ideia bakhtiniana que no nos deixa esquecer a

    28 GENETTE, G.. Figures III. Paris : Ed. du Seuil, 1972. 29 No por acaso que a maioria massiva dos tericos e das correntes crticas tomam o romance como uma acomodao

    intermediria da tragdia e da comdia: o srio e ilustre cotidiano burgus aparece como tema principal quando do pice romanesco.

  • 9

    indissociabilidade do espao e do tempo, ou melhor, o crontopo30. Como Bakhtin coloca,

    o crontopo determina decisivamente a figurao, a imagem do homem na narrativa.

    Olhando mais de perto essa articulao interna que pe a cena no fio narrativo, vemos a

    possibilidade, sugerida por Pierre Soubias31, de uma ordem cannica em trs momentos:

    quadro narrativo (crontopo), instalao do dispositivo e ativao desse dispositivo - que

    pode ser entendido como a preparao para a cena, inmeras vezes posta em prtica pela

    tipologia descritiva. H outro elemento muito importante. Independentemente da extenso,

    do contedo, do tipo ou da ordenao das cenas em um romance, o que parece ancorar o

    leitor compreenso do texto a sua funo cardinal, em outras palavras, toda cena

    redutvel a um ncleo significativo.32 Nos romances com desenvolvimento da intriga mais

    tradicional (clssicos) a disposio das cenas agenciada de forma medida e calculada

    para levar o leitor a pleno interesse at o desfecho da histria. Os estilos literrios

    neoclssicos, por exemplo, levaram s ltimas consequncias essa necessidade do romance

    pela cena, dentro da qual se define a felicidade ou a desgraa total dos personagens. Sem

    mencionar que, tudo isso feito revelia da cena em discurso direto, de Genette33.

    Passando de uma outra, teramos um encadeamento de cenas representativas do todo do

    romance, onde o narrador vai traando a caracterizao das personagens, dos espaos, a

    focalizao, enfim, toda a situao propcia posicion-los no momento em que a ao

    narrativa muda o curso dos acontecimentos34 e, pela surpresa, produz uma tenso

    conflitual que desequilibra este universo. Um certo ritual anunciado ao leitor, [...] Mas

    as coisas no desenrolam-se como o previsto 35. Estes momentos causam tanto transtorno

    que a eficcia narrativa (discurso) sede espao eficcia icnica (imaginrio), o discurso

    30 BAKHTIN, M. The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1981. 31 SOUBIAS, P. Ouvrir et fermer une scne de roman. IN MATHET, Marie-Thrse (Org.). op. cit. p. 67-78. 32 LARROUX, G. Rhtorique et potique de la scne. IN MATHET, Marie-Thrse (Org.). op.cit. p. 37-44. 33 A maioria dos clssicos e neoclssicos faz uso de narradores oniscientes que, grande parte do tempo relatam os eventos

    sem permitir voz aos personagens, a no ser em casos que o convenham, para desmentir o carter ou revelar a iniquidade deste ou daquele, por exemplo. Ou ainda mais complexa essa relao das vozes do romance quando predomina em seu estilo o discurso indireto livre, a exemplo de Flaubert que teatraliza as cenas da forma mais enciclopdica e moderada possvel, fazendo com que nem percebamos que estamos suspensos, transcendentes ao discurso.

    34 Roland Barthes escreve sua Introduo anlise estrutural da narrativa, em que subdivide os episdios narrativos nas classes de funes cardinais (ou ns) e de catlises. A terminologia varia: Seymour Chatman fala de ncleos e satlites; eu falarei de "bifurcaes" e "enchimentos" (a bem da simplicidade). Mas a terminologia no importa; o que importa so os conceitos. [...] A bifurcao um (possvel) desdobramento da trama; no assim o enchimento, que aquilo que acontece entre uma mudana e outra. MORETTI, F. O sculo srio. Novos estudos. So Paulo: Cebrap, n 65, mar. 2003, p. 5-6.

    35 LOJKINE, op.cit. p. 5. [Traduo minha]

  • 10

    limita-se a emular as imagens. So estas peculiaridades que permitem-nos identificar essa

    extrapolao que a cena projeta (do plano textual ao universo subjetivo do leitor).

    Mas a questo que a narrativa no feita apenas de grandes cenas.36 Existe

    entrementes a narrao de episdios cotidianos, sem reviravoltas na intriga. Como a

    famosa cena do jantar em Madame Bovary que, ao terminarmos de ler o romance e at

    muito tempo depois, fica presa em nossa lembrana como uma de suas cenas mais

    marcantes. E Moretti, o sabendo, levanta a seguinte questo: como possvel que a

    tradio literria, adepta do enredo transgressor portador do inaudito, aceita e assimile com

    tanta naturalidade que uma cena to banal e, primeira vista, vazia - que desloca o

    inaudito para o fundo e traz o cotidiano ao primeiro plano - torne-se um pr-requisito

    estilstico s geraes posteriores?37 Infelizmente, a resposta no to simples como cogita

    Moretti, no se precisa matar o tempo38, pois esta no a realidade tout court. O que

    encontramos dentro de um romance sempre o que pode ser passvel de deter

    significncia, a gestalt do romance segue uma ordem contrria indiferena da vida

    real.39

    Obviamente, Moretti em seu perfeito juzo no se contenta em acreditar no passatempo do

    escritor ao narrar o rito habitual. Logo constata que: Se os enchimentos se multiplicam, os

    leitores europeus devem sentir prazer em l-los, e os romancistas em oper-los. Mas de

    onde vem esse prazer?40 Foi em Rosenfeld que apareceram algumas evidncias que

    podem, talvez, trazer luz essa dvida. Tendendo pela psicanlise, este explicaria a

    manifestao do inconsciente (id) na literatura representando no s no s as

    experincias da vida individual e sim as arquetpicas e coletivas da prpria humanidade.

    [...] No fundo e em essncia o homem repete sempre as mesmas estruturas arquetpicas.41

    Justificativa que, segundo ele, se resume ao fato do homem encontrar-se reintegrado ao

    Arqui-ser. Sem tentar entrar, aqui, nos detalhes da arqueologia do poder discursivo de

    Foucault, pois seria impossvel tentar dar conta do todo de seu pensamento, acredito ser

    tambm impossvel no aludir a ele quando se fala em estruturas arquetpicas.

    36 MORETTI, F. op. cit. p. 4. 37 ibidem, p. 10. 38 ibidem, p. 9. 39 RICOEUR, P. Temps et rcit II. Paris : Ed. du Seuil. 1984. 40 MORETTI, op. cit. p. 15. 41 ROSENFELD, A. Reflexes sobre o romance moderno. Texto/contexto So Paulo: Perspectiva,1969, p. 85-89

  • 11

    da obra Surveiller et punir42 que Lojkine extrai os elementos de fundao para

    sua teoria da cena. Detenhamo-nos a, a fim de entendermos como o conceito de

    dispositivo pensado por Foucault, inicialmente para descrever os mecanismos de sua

    tecnologia do poder (usados para constringir e dominar atravs da punio), refletem

    primariamente os elementos do esquema actancial to difundido na criao e anlise

    literria. Lojkine identifica no esquema de Propp, que prope uma estrutura narrativa

    constitutiva estvel e com funes limitadas para os contos, os mesmos aspectos que

    definem o dispositivo de Foucault: personagens e funes, que variam a partir de uma

    estrutura comum: um criminoso comete um crime e castigado. [...] Por outro lado o

    castigo no visa somente ao criminoso, mas ao pblico ao qual ele dado em espetculo,

    ou em representao43. Da a dimenso visual dos efeitos do dispositivo, dar a ver para

    manipular o comportamento do observador. Nesse momento, o foco da ateno inverte-se,

    passando do objeto punido ao observador da punio, como forma de enquadramento desse

    observador, faz-lo saber o que seria dele prprio se infringisse a lei e fosse julgado;

    forjando que se coloque em seu lugar. Movimento este que dissolve o sujeito no objeto

    observado.

    O testemunho um dos principais aspectos abordados por Lojkine. Esse tringulo

    criado pela projeo do olhar do leitor posiciona-o em um terreno proibido. a ao do

    proibido que torna sensvel ao leitor o carter ntimo do que ele toma conhecimento. O

    que ele v no pode ser visto.44 O leitor encontra-se no meio de uma questo que no lhe

    diz respeito, a no ser pelo fato de ser levado a acompanhar a histria furtivamente, por

    sobre o ombro dessa testemunha. Justamente maneira como nos instrui Freud, ao longo

    de sua extensa obra, que dominamos e somos dominados pelo ver: observadores e

    observados, pendemos pelo exerccio desse condicionamento comportamental em um nvel

    socialmente naturalizado e que toca todo o campo das atividades humanas. Na narrativa, o

    dispositivo resulta dessa forma:

    42 FOUCAULT, M. Surveiller et punir. Paris : Gallimard, 1975. 43 LOJKINE, S. Linvention du dispositif: Surveiller et punir. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des

    dispositifs. Disponvel em: < http://sites.univ-provence.fr/pictura/Dispositifs/GenerateurTexte.php?texte=0068-L%E2%80%99invention+du+dispositif+%3A+Surveiller+et+punir>. Acesso em: 02 ago. 2012. [Traduo minha].

    44 LOJKINE, op. cit. p.7. [Traduo minha].

  • 12

    necessrio ver, mas no ser visto. Este dispositivo recupera a organizao estrutural das taxonomias: ele regra, classifica, aponta os indivduos que ele observa, os inscreve como signos em um vasto sistema de vigilncia generalizada. Mas esta estrutura no mais a forma, o modelo global da organizao social e simblica. A estrutura, a taxonomia, o sistema de signos so governados pelo olhar, pelo espao no qual esse olhar disposto, pela arquitetura dos lugares. O real no se manifesta mais prioritariamente como narrativa, mas como instalao de um olhar nos lugares. Tal a revoluo paradigmtica que introduz a emergncia e a generalizao do dispositivo como instrumento de anlise.45

    preciso articular um espao geometral (heterogeneidade de um real) em uma

    cadeia de significantes (homogeneidade de um cdigo), para que o dispositivo se

    produza; e com ele a vaga conscincia de sua existncia, aquela sensao de algo

    inapreensvel. essa sensao, que surge desse duplo assujeitamento, que condiciona o

    prazer esttico, como j foi descrito anteriormente. A composio da representao cria

    desordem e traz em si prpria uma resposta como soluo a essa desestabilizao. Esse

    jogo articulado no nvel do imaginrio: a possibilidade de um ponto de vista, a

    pressuposio de um distanciamento que crie perspectiva. essa perspectiva do olhar que

    ser encarregada da transposio dos dois primeiros nveis (geometral e textual). O que

    denomina-se cristalizao escpica; esta preparada dentro da representao, apesar de

    se realizar fora dela, no leitor. 46

    Eis a fora com que a literatura assimila e incorpora o leitor em seus engenhos.

    Somos fatalmente conduzidos pela natureza do texto que de apreender-nos e suspender-

    nos, ao mesmo tempo, em seus intervalos simblicos. Esse o nosso prazer junto ao texto

    e nosso desejo imediato ao consumirmos literatura, pois, como bem descreve Barthes, h

    duas margens no texto: uma margem sensata, e uma outra margem, mvel, vazia (apta a

    tomar no importa quais contornos) que nunca mais do que o lugar de seu efeito: l onde

    se entrev a morte da linguagem47. Assim, a morte da linguagem se d no domnio

    escpico do dispositivo. Barthes fundamenta ainda sua perspectiva, tambm psicanaltica,

    do prazer que se tem no texto opondo e, por vezes, complementando-o com o que nomeia

    45 LOJKINE, S. Linvention du dispositif: Surveiller et punir. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: < http://sites.univ-provence.fr/pictura/Dispositifs/GenerateurTexte.php?texte=0068-L%E2%80%99invention+du+dispositif+%3A+Surveiller+et+punir>. Acesso em: 02 ago. 2012. [Traduo e grifos meus].

    46 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

    47 BARTHES, Roland. O prazer do texto. So Paulo: Perspectiva, 1987. p. 12.

  • 13

    fruio. Sobre a diferena entre os dois conceitos relata que no h seno uma diferena

    de grau,[...]: o prazer dizvel, a fruio no o [...] ela s pode ser dita entre as

    linhas48. Justamente o que apresentado pelos dispositivos.

    Fica claro que o alcance da literatura a todos os domnios da produo cultural se d

    justamente por essa invaso da psique humana, mantendo o leitor cativo de um mecanismo

    do qual no consegue escapar, por razo mesma de seu desejo. Em uma nota dentro de seu

    texto introdutrio a Mal-Estar na cultura, Mrcio Seligmann-Silva adverte: Ao destacar que existe um conflito inexorvel entre o desenvolvimento do indivduo com seu desejo de felicidade e, por outro lado, o desenvolvimento da cultura, que tende a submeter o indivduo a certos limites, jogando a felicidade para um segundo plano, Freud d preciosas pistas tanto para se pensar o gnero literrio do romance que de certa forma se especializou em tratar desse indivduo em seu conflito com o mundo e o princpio de realidade49

    Fora da Literatura psicanaltica, Giorgio Agamben nos mostra uma posio assaz singela

    sobre essa natureza do desejar. Explica que o desejo a coisa mais simples e humana que

    h, mas que mesmo assim ainda enfrentamos a impossibilidade de express-los em

    palavras; diz ainda que assim acontece porque os imaginamos. [...] O corpo do desejo

    uma imagem. E o que inconfessvel no desejo a imagem que dele fazemos50. Trata-se

    da imagem que se cria com a espacialidade da escrita e que se apresenta como uma janela

    indiscreta, revelando aos olhos do observador o interdito - o que no pode apreender do

    angustiante real -, mas que se tenta contornar pela clandestinidade de seu ponto de

    observao: posso tornar-me o seu voyeur: observo clandestinamente o prazer do outro,

    entro na perverso51.

    Em resumo, com todas essas interferncias e mecanismos (invisveis a uma leitura

    desatenta) que se apresentam em um texto, o translado de informaes operado tambm

    no nvel do discurso, mas principalmente fora dele (mesmo que criado por ele). As

    transferncias que irradiam do texto sob formas mais ou menos flexveis, mais ou menos

    confessas, mais ou menos disformes, criam uma desordem que deve ser reparada pelo

    48 ibidem, p. 31. 49 SELIGMANN, Mrcio S. A cultura ou a sublime guerra entre Amor e Morte. IN: FREUD, Sigmund. Mal estar na

    cultura. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010. [Nota n 4 de final de texto] 50 AGAMBEN, G. Desejar. In: Profanaes. So Paulo: Boitempo Editorial, 2007. p. 49. 51 BARTHES, op. cit. p. 26.

  • 14

    dispositivo: Ele restabelece a ordem numa situao que foge do comum52. Este um

    componente categrico na estruturao dessa teoria por conferir a eficcia mecnica de

    uma estrutura simblica maleabilidade de uma construo pragmtica, concreta,

    adaptvel.

    A evoluo da representao

    Desde a dcada de 60, aproximadamente, duas linhas epistemolgicas distintas tm

    predominado nas teorias sobre representao. Num panorama geral, se opem: o

    historicismo positivo (que descarta qualquer modelizao terica) e a abordagem estrutural

    (que, inversamente, aplica estruturas generalizadoras singularidade do objeto). O

    problema que essas oposies categricas acabam por no conseguir, nem uma nem

    outra, suprir as urgncias que se apresentam no cenrio contemporneo - com seus espaos

    desestruturados - exigente de novos aportes analticos. Percebendo essa dinmica, Lojkine

    decide reconsiderar tambm a dinmica das pocas anteriores. Percorrendo a produo

    artstica francesa, mais precisamente as artes plsticas, paralelamente literatura, Lojkine

    identifica uma mudana no paradigma representativo quando do surgimento da perspectiva

    na pintura. Foi a que comeou a esboar-se a cena.

    E um dos conceitos centrais para a instalao desse dispositivo o que Lojkine chama de

    cran. Ele ordena ao mesmo tempo a disposio do mobilirio humano (personagens) e

    o jogo simblico criado por ela - o interdito que a cena transgride, a subverso que ela

    opera, o escndalo que ela produz53. Por isso, ele no aparece antes da Renascena,

    apresentando-se como produto da perspectiva reproduzida nos quadros a partir da. H um

    exame de Lojkine sobre a natureza desse cran, conforme o perodo histrico em que as

    pinturas se inserem. O cran passa de uma formatao um tanto quadrada, por assim

    52 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

    53 LOJKINE, S. cran. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

  • 15

    dizer, para uma mais fluida, com certo apagamento da delimitao do que est dentro e

    fora do cran.

    Podemos sublinhar, ainda, essa oposio entre o dentro e fora da cena. O cran o que

    se interpe entre o espao restrito (o que se encontra dentro da cena, lugar da ao, do

    simblico) e o espao vago (o que est fora, o cenrio onde a cena circunscrita, lugar do

    real). Lojkine valida o espao restrito como lugar teatral da representao, que pode ser

    delimitado por toda sorte de elementos arquitetnicos ou cnicos (cenrio), como tambm

    pela presena de personagens espectadores da cena, em quem o leitor ser espelhado,

    buscando identificao.54 Em oposio ao espao vago, que por onde entramos no

    restrito da cena.55 O jogo desses dois planos constri a perspectiva da representao e sua

    hierarquia. Essa articulao cria um efeito que chamamos de mise en abyme. Ela origina no

    espectador/leitor a identificao imediata com o mundo representado, pois ela inscreve o

    que exterior a esse universo ficcional ao quadro simblico interno da obra, atribuindo-lhe

    significao - um dos artifcios mais usados para isso o embrayeur visuel, aquele

    personagem espectador da cena citado acima.

    A cena definida tambm por uma decomposio da lgica discursiva pela agressividade

    da lgica icnica, a morte da linguagem a que se referia Barthes. Significa dizer que o

    discurso dos personagens se teatraliza de tal forma que o fato de estar falando ou seus

    gestos so mais importantes que o contedo de seu enunciado.56 Esse conflito entre cena e

    discurso est ligado evoluo dos dispositivos implicada nessa nova organizao

    semiolgica que foi instituda a partir do advento da perspectiva, como j mencionado. No

    perodo entre Renascena e sculo XIX, podemos identificar o percurso do dispositivo de

    cena cannico que ordena a pintura da histria clssica e a cena de romance do sculo

    54 LOJKINE, S. Espace retreint. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

    55 LOJKINE, S. Espace vague. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

    56 LOJKINE, S. Discours. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

  • 16

    XVI ao XIX. Ele opera a articulao entre espao e organizao significante em meio do

    cran de representao57.

    A partir do momento em que houve uma mudana paradigmtica na forma de perceber o

    mundo, difundida depois do surgimento da fotografia, o romance moderno comea a

    retratar esse homem disforme e fragmentado que resulta da modernidade, como to

    perfeitamente descreveu Rosenfeld58. A perspectiva abolida ou distorcida, o

    dispositivo cnico no consegue mais alimentar-se da iluso de espao para constituir a

    cena clssica com contornos estveis. Desaparece ou se omite o intermedirio, isto , o

    narrador, que nos apresenta a personagem no distanciamento gramatical do pronome ele e

    da voz do pretrito.59 E com ele, somem tambm todas os referentes fixos de tempo e

    espao, fazendo com que a sequencia lgica do texto tambm se relativizasse.

    Da Lojkine ter decretado a falncia do dispositivo de cena a partir do nouveau roman. Mas

    a cena, em si, no deixa de existir. Como qualquer instituio, ela adapta-se a nova

    realidade e veste-se de novos engenhos, talvez at mais violentos que os anteriores. Chega-

    se, assim, ao mecanismo do dispositivo narrativo. De difcil observao, j que este se

    furta ao olhar, contrariamente ao dispositivo cnico. Ainda que ele opere nos mesmos

    nveis (geometrais, escpicos e simblicos), que ele articule da mesma maneira ordem e

    desordem. Enquanto o dispositivo cnico d a ver o objeto da representao, o dispositivo

    narrativo se faz, na ausncia desse objeto, como um paliativo da impossibilidade deste ser

    representado; mostrando-se na forma de um suplemento narrativo constitui sua essncia

    fundamentando-se em sua invisibilidade. 60

    Obviamente, essa transio no contm estanques os dois tipos de dispositivos. Ao

    contrrio, os mescla, intercala e combina dentro da narrao, de tal forma que gera

    diferentes modos de representao no interior de cada universo ficcional, guisa dos

    modelos culturais e tcnicos dominantes em cada perodo histrico. E, apesar de parecerem

    livre escolha do artista, so circunscritos evoluo estilstica que delimita a viso

    57 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

    58 ROSENFELD, op. cit. p. 77. 59 idem, p. 83. 60 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em:

    . Acesso em: 21 jul. 2012.

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    epistemolgica mais ampla. A diferenciao, na empiria, dada por determinao do olhar

    (no dispositivo cnico) e pelo esprito (no dispositivo narrativo), j que o invisvel o

    caracteriza, como formula Lojkine. Expe, ainda, que o espao de invisibilidade torna-se

    a matriz da narrativa flmica.61

    notrio que a literatura apregoe contedo muito alm de formas. E que, ao lermos uma

    obra envolvente, demos menos ateno sucesso de frases e estruturas lingusticas do que

    ao mundo projetado na nossa imaginao. Lojkine o explica como sendo o contato que

    fazemos com a fico, que transborda o livro. Nomeia, ainda, a narratologia como estando

    sempre situada numa zona limtrofe entre esse espao fantasiado e a materialidade do livro.

    Ela funcionaria sob o pressuposto de posicionar o leitor dentro de certo ponto de vista, o

    que pressupe o ver. J a, esmaece a possibilidade de fazer-se uma leitura linear. Isso

    implica o texto como imagem, o que ignorado pela prpria narratologia, que foca o rcit.

    Esse argumento denota o comprometimento deste autor, e dos membros do seu grupo de

    pesquisa em renovar e fazer transporem-se as limitaes do aparelho cientfico.

    61 LOJKINE, S. Dispositifs. Base de dados iconogrficos Utpictura18 - Thorie des dispositifs. Disponvel em: . Acesso em: 21 jul. 2012.

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