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FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO UNIVERSIDADE DE COIMBRA FORMAÇÃO, SOCIEDADE E IDENTIDADE PROFISSIONAL DOS ENFERMEIROS: A Escola de Enfermagem de Castelo Branco/Dr. Lopes Dias (1948-1988) HELDER MANUEL GUERRA HENRIQUES Coimbra 2011

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FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FORMAO, SOCIEDADE E IDENTIDADE PROFISSIONAL DOS ENFERMEIROS:

A Escola de Enfermagem de Castelo Branco/Dr. Lopes Dias (1948-1988)

HELDER MANUEL GUERRA HENRIQUES

Coimbra

2011

FACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO

UNIVERSIDADE DE COIMBRA

FORMAO, SOCIEDADE E IDENTIDADE PROFISSIONAL DOS ENFERMEIROS:

A Escola de Enfermagem de Castelo Branco/Dr. Lopes Dias (1948-1988)

HELDER MANUEL GUERRA HENRIQUES

Dissertao de Doutoramento em Cincias

da Educao, especialidade em Histria da

Educao, apresentada Faculdade de

Psicologia e de Cincias da Educao da

Universidade de Coimbra e realizada sob a

orientao do Professor Doutor Antnio

Gomes Ferreira.

Coimbra

2011

Esta investigao foi desenvolvida com os seguintes apoios: Instituto Politcnico de Portalegre/ Escola Superior de Educao; Fundao Para a Cincia e Tecnologia Programa de Apoio Formao Avanada Para Docentes do Ensino Superior Politcnico (PROTEC);

I

Aos meus Pais e Irmo

Para a Sara e Maria Leonor

Aos meus alunos!

II

Agradecimentos

A construo de um trabalho desta natureza deve implicar o reconhecimento

pblico de todos aqueles que contriburam para a sua concretizao. Este trabalho o

resultado de um conjunto de esforos que gostaramos de evidenciar.

Em primeiro lugar, destacamos a presena constante, ao longo da construo

deste trabalho, do nosso orientador professor doutor Antnio Gomes Ferreira.

Devemos-lhe uma orientao atenta, criteriosa, disponvel e recheada de momentos

intelectualmente intensos. Devemos-lhe ainda mais, porque acreditou no trabalho de um

jovem que no conhecia, no obstante depressa o envolveu no interior da sua imensa

sabedoria e experincia. O professor doutor Antnio Gomes Ferreira constitui uma

referncia intelectual e humana e um exemplo para ns. Assim, os limites deste trabalho

no so da responsabilidade do nosso orientador, constituem, na verdade, limites do

prprio autor.

Em segundo lugar, devemos o nosso reconhecimento ao Professor Dr. Carlos

Maia, actual presidente do Instituto Politcnico de Castelo Branco, que autorizou a

consulta dos arquivos da actual Escola Superior de Sade, herdeira da antiga Escola de

Enfermagem de Castelo Branco. Aos funcionrios da Escola Superior de Sade do

Instituto Politcnico de Castelo Branco tambm devida uma palavra de

agradecimento. Destacamos o papel central da chefe da secretaria D. Elsa Venncio.

Em terceiro lugar, este trabalho no seria possvel sem o apoio do Instituto

Politcnico de Portalegre. Em articulao com a Fundao Para a Cincia e Tecnologia

(F.C.T.) foi aprovado o projecto de doutoramento, permitindo a integrao no Programa

de Apoio Formao Avanada de Docentes do Ensino Superior Politcnico

(SFRH/PROTEC/49219/2008). Devemos o reconhecimento F.C.T. pelo apoio permitido

ao projecto apresentado. Na Escola Superior de Educao de Portalegre gostaramos de

lembrar os colegas de rea cientfica pelo interesse que sempre manifestaram em relao

a este estudo. Do mesmo modo, reconhecemos as palavras de incentivo do professor dr.

Albano Silva, do professor doutor Lus Miguel Cardoso, da professora doutora Isabel da

Silva Ferreira, do professor doutor Domingo Bucho, do professor doutor Avelino Bento,

entre outros colegas que se interessaram. Tambm queremos lembrar o importante papel

III

das funcionrias (e funcionrio) do Centro Documental da Escola Superior de Educao

de Portalegre e o incentivo constante da actual Secretria da instituio dr. Maria Jos

Quarenta. Tambm os nossos alunos fazem parte do imaginrio desta tese.

Em quarto lugar, devemos uma palavra de agradecimento a todos os

enfermeiros/as entrevistados/as por ns. A sua forma de estar, as suas memrias e a

disponibilidade de todos constituram um importante contributo para a construo deste

estudo: Enfermeiros Ismael Martins, Maria Augusta Magalhes, Maria Alice Barata

Garcia, Antnio Gil Luzio e Jos Manuel Preto Ribeiro.

Em quinto lugar, agradecemos aos funcionrios do Centro de Informao e

Documentao do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses pelo material disponibilizado.

Outro agradecimento devido ao Pedro Barata e Estela Guerra que por vrias vezes

trouxeram elementos bibliogrficos, de diferentes bibliotecas do pas, at ns.

Ao Roberto Vinagre, amigo de longa data, sempre atento e presente em todos os

momentos da nossa vida pessoal e profissional.

Em sexto lugar, propositadamente no final, devemos um enorme reconhecimento

aos nossos pais e irmo que ajudaram a suportar alguns momentos de maior presso.

nossa av que nos aconselha a no matar tanto a cabea. A toda a nossa famlia, sem

excepo, so devidos todos os reconhecimentos. Porm, num lugar destacado

encontram-se a Sara, minha mulher, e a Maria Leonor, minha filha. Foram elas que

mais sofreram com a construo deste trabalho. No entanto, tambm foram elas que

mais nos apoiaram nos momentos mais difceis da sua execuo. A sua compreenso,

dedicao, alegria e amor foram, certamente, os maiores pilares deste projecto que

agora se concretiza. Esta tese toda ela dedicada minha mulher e minha filha,

motivos da minha inspirao.

IV

ndice Geral

Dedicatria......................................................................................................................... I

Agradecimentos ................................................................................................................ II

ndice Geral .................................................................................................................... IV

Resumo ........................................................................................................................... XI

Abstract ......................................................................................................................... XIII

Lista de Figuras ........................................................................................................... XVI

Lista de Tabelas/Quadros ........................................................................................... XVII

Lista de Representaes Grficas .............................................................................. XVIII

Lista de Abreviaturas ..................................................................................................... XX

INTRODUO GERAL .............................................................................................. 21

Captulo I Profisses, Estado e Identidades: um universo em

anlise

Introduo ...................................................................................................................... 37

1.1. Profisso, profissionalizao e identidades: um universo em anlise ...................... 41

1.1.1. A problemtica das profisses ............................................................................... 43

1.1.2. Profisso e Ocupao............................................................................................. 44

1.1.3. O modelo funcionalista .......................................................................................... 46

1.1.4. A alternativa interaccionista ................................................................................. 51

1.1.5. Os crticos e a reabilitao das profisses ............................................................. 57

1.1.6. O paradigma do poder: Johnson, Freidson e Larson ............................................. 61

1.1.7. O sistema das profisses: Andrew Abbott ............................................................. 72

1.2. O Estado e as profisses ........................................................................................... 81

1.2.1. O Estado-Providncia e as profisses .................................................................... 84

1.3. O Saber como recurso profissional ........................................................................... 90

V

1.4. O conceito de Identidade Profissional ...................................................................... 95

1.4.1. O gnero, o patriarcado e as profisses ................................................................. 99

1.4.2. Da prevalncia do controlo mdico sobre o acto da enfermagem: uma perspectiva

....................................................................................................................................... 106

2. Um modelo de anlise para a construo identitria da enfermagem em Portugal .. 112

2.1. Da abordagem terico-metodolgica construo do modelo de anlise.............. 112

2.1.1. Trs dimenses e dois campos de aco .............................................................. 118

2.1.2. Quatro eixos de anlise ........................................................................................ 128

2.1.2.1. O credencialismo .............................................................................................. 128

2.1.2.2. O conhecimento ................................................................................................ 132

2.1.2.3. As normas e Valores ......................................................................................... 135

2.1.2.4. A emergncia de uma jurisdio profissional................................................... 137

Consideraes Finais ................................................................................................... 140

Captulo II O credencialismo em enfermagem

Introduo .................................................................................................................... 142

1. O primeiro olhar: retrato de um percurso (1881 1988) .......................................... 144

1.1. Aprender a cuidar: as primeiras experincias portuguesas (final do sculo XIX) . 149

1.1.1. A primeira escola oficial de enfermagem (1901): retrato de um percurso .......... 152

1.1.2. A enfermagem: da dcada de 20 ao comeo dos anos 40 (sc. XX) ................... 156

1.1.3. Aprender a cuidar no Estado Novo: dcadas de 40 a 70 ..................................... 161

1.1.3.1. A lgica discursiva do Estado Novo: um olhar pela legislao ....................... 166

1.1.4. Aprender a cuidar: as escolas e polticas de enfermagem no Portugal Democrtico

(1974-1988) ................................................................................................................... 179

2. O recrutamento das/os alunas/os de enfermagem ..................................................... 184

2.1. A admisso s escolas de enfermagem na 1 metade do sculo XX: linhas gerais 185

2.2. A admisso s escolas de enfermagem na 2 metade do sculo XX ...................... 190

2.2.1. As habilitaes literrias ...................................................................................... 191

2.2.2. As qualidades fsicas: as fichas clnicas .............................................................. 196

2.2.2.1. Inquirir a alma: o desvio moral no Estado Novo .......................................... 204

VI

2.2.3. Dos exames de aptido aos exames nacionais ................................................. 207

3. O perfil das/os alunas/os da Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1948-1988)

....................................................................................................................................... 217

3.1. O curso de Auxiliares de Enfermagem (1948-1974) .............................................. 218

3.1.1. A evoluo geral do curso de Auxiliares de Enfermagem (1948-1974) ............. 219

3.1.1.1. O gnero ........................................................................................................... 222

3.1.1.2. As idades .......................................................................................................... 226

3.1.1.3. A provenincia geogrfica ................................................................................ 230

3.1.1.3.1. A distribuio geogrfica das/os alunas/os: o distrito de Castelo Branco ..... 232

3.2. O curso de Enfermagem (Geral): 1948/49 1988/89 ............................................ 234

3.2.1. O nmero e a evoluo (1948-1988) ................................................................... 235

3.2.2. O gnero .............................................................................................................. 239

3.2.3. As idades ............................................................................................................. 244

3.2.4. A provenincia geogrfica ................................................................................... 248

3.2.4.1. O caso do distrito de Castelo Branco................................................................ 250

3.2.5. A origem social: o perfil profissional dos pais .................................................... 251

3.2.5.1. A actividade profissional do ncleo familiar por sector econmico ................ 253

3.2.5.1.1. Os grupos de recrutamento social por actividade profissional ...................... 259

Consideraes Finais ................................................................................................... 262

Captulo III A construo de um conhecimento profissional

na formao inicial dos enfermeiros

Introduo .................................................................................................................... 270

1. O ensino da enfermagem: de monitor ao enfermeiro-professor (o caso da Escola de

Enfermagem de Castelo Branco: 1948-1988) ............................................................... 273

2. Os currculos: Scs. XIX e XX .................................................................................. 287

2.1. A primeira metade do sculo XX: retrato de um percurso ..................................... 289

VII

2.2. A evoluo dos planos de estudo na segunda metade do sculo XX: Objectivos

gerais .............................................................................................................................. 294

3. A construo de um Saber Multidisciplinar (de fronteira): os cuidados de

enfermagem ................................................................................................................... 318

3.1. Uma abordagem curricular de natureza mdica e moral at dcada de 70

(Sc. XX) ....................................................................................................................... 319

3.1.1. As disciplinas de natureza mdica ....................................................................... 319

3.1.2. Uma abordagem pela via moral ........................................................................... 323

3.2. O contributo de novos saberes na definio da enfermagem: dcadas de 70 e 80 . 330

3.2.1. A aproximao s Cincias Comportamentais: a Psicologia .............................. 330

3.2.2. A relao com as Cincias Sociais e Humanas: a Sociologia, a Antropologia e

Pedagogia ...................................................................................................................... 338

3.2.3. A produo do Saber em enfermagem: a investigao........................................ 343

4. O conhecimento e a prtica clnica ............................................................................ 349

4.1. Um breve percurso pela primeira metade do sculo XX ........................................ 349

4.2. A articulao da teoria/prtica nos planos de estudo: dcadas de 50 a 80 ............. 352

Consideraes finais .................................................................................................... 370

Captulo IV As Normas e os Valores: entre a escola e a

profisso

Introduo .................................................................................................................... 375

1. A organizao e gesto das escolas de enfermagem (1881-1988) ............................ 378

1.1. As estruturas administrativas e de gesto das escolas na primeira metade do sculo

XX ................................................................................................................................. 378

1.2. A gesto e administrao das escolas de enfermagem no Estado Novo (at 1970): o

Director e o Conselho Escolar ....................................................................................... 380

1.2.1. Os alunos, a disciplina e os regulamentos (at dcada de 1970) ...................... 385

1.2.2. O Lar de Alunas Enfermeiras: um dispositivo disciplinador .............................. 389

1.2.2.1. O Lar de Alunas Enfermeiras de Castelo Branco ............................................. 392

VIII

1.3. As alteraes organizacionais na primeira metade da dcada de 70 ...................... 401

1.4. As normas de funcionamento das escolas de enfermagem no Portugal Democrtico:

aspectos introdutrios .................................................................................................... 404

1.4.1. A Assembleia-Geral da Escola e a Assembleia de Sector ................................... 409

1.4.2. A Comisso de Gesto e o Conselho Pedaggico Cientifico .............................. 412

2. A concepo moral da enfermagem: uma poltica de esprito (at meados da dcada

de 60) ............................................................................................................................. 418

2.1. A construo poltica de um perfil virtuoso: a enfermeira ..................................... 419

2.2. A disciplina ............................................................................................................. 422

2.3. A obedincia ........................................................................................................... 427

2.4. A dedicao ao bem comum: o problema do casamento ....................................... 430

2.5. A bondade e a coragem .......................................................................................... 436

2.6. A pacincia, o entusiasmo e a alegria ..................................................................... 439

2.7. A verdade, a lealdade e a dignidade ....................................................................... 441

2.8. O silncio, a discrio e as boas maneiras .............................................................. 443

3. A concepo tcnico-cientfica da enfermagem: valores profissionais (dcadas de 70

e 80) ............................................................................................................................... 445

3.1. A dignidade profissional: as relaes humanas ...................................................... 448

3.2. A humanizao da relao enfermeiro/a-doente: conhecer o paciente ................... 451

3.3. O valor do conhecimento. A actualizao permanente .......................................... 456

3.4. A igualdade profissional: o esprito de equipa ....................................................... 461

3.5. A qualidade de vida e o bem-estar da pessoa humana ........................................... 464

Consideraes finais .................................................................................................... 467

Captulo V A emergncia de um grupo: a construo de

uma jurisdio profissional

Introduo .................................................................................................................... 472

IX

1. A emergncia e consolidao de um grupo socioprofissional. .................................. 476

1.1. A aco sindical das/os enfermeiras/os no Estado Novo ....................................... 476

1.1.1. Os peridicos de enfermagem: o exemplo da Revista de Enfermagem (1953-1973)

objectivos da publicao ............................................................................................. 481

1.1.1.1. O combate ao exerccio ilegal de enfermagem ................................................ 487

1.1.1.2. A dignidade profissional: problemas, desafios e o apelo unio ..................... 493

1.1.1.2.1. O uniforme como elemento de respeitabilidade. ........................................... 497

1.1.1.3. Os cursos, as jornadas e as Semanas da Enfermagem: exemplos .................... 500

1.2. A aco sindical no Portugal Democrtico: o caso da Escola de Enfermagem de

Castelo Branco ............................................................................................................... 505

2. A enfermagem e o Estado: as carreiras de enfermagem (Hospitalar e de Sade

Pblica) .......................................................................................................................... 509

3. Os Congressos Nacionais de Enfermagem (1973,1981, 1985): trs momentos de

definio ........................................................................................................................ 521

4. Um Saber de experincia feito: a integrao no Sistema Educativo Nacional/ Ensino

Superior (1986/88). ........................................................................................................ 535

Consideraes Finais ................................................................................................... 541

CONCLUSO GERAL .............................................................................................. 545

FONTES E BIBLIOGRAFIA

Fontes ............................................................................................................................ 557

Arquivo .......................................................................................................................... 557

Legislao ...................................................................................................................... 564

Imprensa ........................................................................................................................ 567

Fontes Orais ................................................................................................................... 574

Bibliografia ................................................................................................................... 575

X

ANEXOS (CD)

1. Base de dados (com as caractersticas dos alunos/as) ................................................... 1

2. Estatuto da Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1948)/ Regulamento da EECB

(1952) ............................................................................................................................... 2

3. Caderneta de Estgio do curso de Enfermagem Geral (exemplo) ................................. 3

4. Inquritos familiares do final da dcada de 40 (aplicados na EECB) ........................... 4

5. Memria descritiva do Lar de Alunas de Enfermeiras de Castelo Branco/ Projecto de

adaptao de um antigo edifcio EECB (final da dcada de 50) .................................... 5

6. Caractersticas gerais do plano de estudos do curso de Enfermagem Geral ................. 6

7. Imagens de alunos e professores da EECB ................................................................... 7

8. Entrevistas a Enfermeiros/as (antigos professores e alunas/os da EECB) .................... 8

9. Material Sindical (algumas comunicaes manuscritas e dactilografas apresentadas

nos Congressos Nacionais de Enfermagem e provenincia geogrfica/lista de

participantes nos congressos) ............................................................................................ 9

XI

Resumo

O objectivo principal deste estudo interpretar o processo de construo da

identidade profissional dos enfermeiros portugueses ao longo do sculo XX, com

destaque para a segunda metade da centria. Serviu de suporte ao nosso trabalho o

percurso histrico da Escola de Enfermagem de Castelo Branco/Dr. Lopes Dias (1948-

1988). Nesta pesquisa as instituies escolares ocupam um lugar central. Assumem-se

como lugares mandatados para a acreditao da enfermagem, de socializao

profissional e de construo de conhecimentos exclusivos. A partir da arena escolar

construiu-se um determinado domnio e identidade profissionais deste grupo.

Do ponto de vista metodolgico, partimos de uma reviso bibliogrfica

relacionada com a Sociologia e a Histria das profisses, articuladas com um

conhecimento da literatura produzida em Portugal sobre a enfermagem, numa

perspectiva sciohistrica. Esta abordagem orientou a nossa pesquisa. As fontes

utilizadas caracterizam-se essencialmente por fontes de arquivo, peridicos regionais e

locais, imprensa especializada, legislao, iconografia e fontes orais. Da articulao

entre a dimenso terica, de reviso bibliogrfica, e do contacto com o material

emprico construiu-se um modelo de anlise singular que permitiu formular uma

abordagem sciohistrica e diacrnica sobre a identidade do grupo em anlise.

Este modelo de anlise terico caracterizado por trs dimenses, dois campos

de aco e quatro eixos de anlise. As dimenses que assumimos como elementos

centrais constituem os planos onde se desenvolve toda a dinmica de construo

identitria. Referimo-nos s dimenses Estatal, Cientfica e Social. Os campos de aco

encontram-se no interior das lgicas dimensionais e so influenciados por estas

dimenses. A formao e o campo de aco profissional apresentam-se como processos

dinmicos e permeveis mutuamente, contribuindo para a produo de identidades

profissionais. Por fim, quatros eixos de anlise que permitem, atravs do material

emprico e bibliogrfico, objectivar o nosso modelo de anlise. Estes quatro eixos so

elementos transversais s dimenses e campos de aco. So eles o credencialismo, o

conhecimento, as normas e valores e a emergncia de uma jurisdio socioprofissional.

Atravs do conjunto de fontes documentais e orais recolhidas e analisadas, estes eixos

procuram demonstrar concretamente a pertinncia do nosso modelo de anlise na

interpretao da construo identitria do grupo dos enfermeiros em Portugal.

XII

Em suma, verificou-se que o processo de construo da identidade profissional

dos enfermeiros portugueses resultou de dilogos, tenses e conflitos permanentes entre

diferentes elementos e no interior de regimes polticos com caractersticas diferentes.

Ao longo do sculo XX existiram vrios momentos marcantes e decisivos que

permitiram o reconhecimento social do grupo dos enfermeiros e a construo de uma

identidade socioprofissional reforada.

XIII

Abstract

The main goal of this study is to analyze the construction process of the

professional identity of the Portuguese nurses in the 20th

century, especially in the

second half of the century. The historical background of the Escola de Enfermagem de

Castelo Branco/ Dr. Lopes Dias (1948-1988) was our work base. The school institutions

have a central role in this research. They are considered not only as authorized

institutions for accreditation of nursing but also as a place of professional

sociabilization and unique knowledge production. From the school arena it was defined

a certain professional domain and identity for this group.

From the methodological point of view, we started with a literature review

related to the Sociology and History of Professions. This study was articulated with the

Portuguese literature about nursing in a socio-historical perspective. This approach

guided our research. The main sources used were archives, regional and local papers,

specialized press, legislation, iconography and oral testimonies. From the articulation

between the theoretical dimension (literature review) and the empirical materials we

have constructed a unique model of analysis that allowed us to formulate a socio-

historical and diachronic approach to the identity of the study group.

This theoretical model of analysis has three dimensions, two fields of action and

four axes of analysis. The dimensions that we assumed as central elements are the plans

where the identity construction dynamics is developed. We are referring to the State,

Scientific and Social dimensions. The fields of action are within the dimensional logics

and are influenced by those dimensions. Training and the professional field of action

present themselves as dynamic and mutually permeable processes, contributing to the

production of professional identities. Finally the four axes of analysis which allow us,

through the empirical and bibliographical material, to materialize our model of analysis.

These four axes are transversal to the dimensions and fields of action. These are the

credentialism, the knowledge, the standards and values and the importance of a socio-

professional jurisdiction. These axes try to demonstrate, through the documental sources

and the oral testimonies, the importance of our model of analysis applied to the

interpretation of the identity construction of the nurses in Portugal.

We verified that the process of construction of the professional identity of the

Portuguese nurses resulted from the dialogues, tensions and permanent conflicts

XIV

between the different elements and inside of political regimes with different

characteristics. During the 20th

century, it were found several important moments that

allowed the social recognition of the nursing group and the construction of a strengthen

socio-professional identity.

XV

XVI

Lista de Figuras Pp.

Ilustrao 1. Princpios base das profisses, segundo Eliot Freidson ........................... 65

Ilustrao 2. O modelo de anlise interpretativo do grupo profissional das/os

enfermeiras/os ao longo do sculo XX ......................................................................... 118

Ilustrao 3. Ficha clnica n 1 da Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1948)

....................................................................................................................................... 199

Ilustrao 4. Ficha clnica (em cima frente; em baixo verso) de uma aluna que entrou

na Escola de enfermagem em 1970 .............................................................................. 200

Ilustrao 5. Ficha clnica da Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1986) ...... 202

Ilustrao 6. Circular proveniente do Ministrio da Sade e Assistncia sobre as datas

dos exames de aptido a realizar no incio do ano lectivo de 1961/1962 ...................... 212

Ilustrao 7. Capa de caderneta de Estgio Final utilizada na Escola de Enfermagem de

Castelo Branco nos cursos de auxiliares e de enfermagem geral ................................. 355

Ilustrao 8. Professores e alunas/os do curso de enfermagem de Castelo Branco no

ano de 1954 ................................................................................................................... 387

Ilustrao 9. Projecto de adaptao da fachada principal da Escola de Enfermagem de

Castelo Branco .............................................................................................................. 394

Ilustrao 10. A localizao da Escola de Enfermagem de Castelo Branco ............... 396

Ilustrao 11. A planta do 3 piso da Escola de Enfermagem. Espao projectado para o

Lar de Alunas Enfermeiras que no chegou a ser construdo ....................................... 400

Ilustrao 12. Capa da revista de enfermagem Servir em 1978 com aluso

importncia da vida humana ......................................................................................... 467

XVII

Lista de Tabelas/Quadros Pp.

Tabela 1 Os cursos de enfermagem em 1947 ............................................................ 170

Tabela 2 Os cursos de enfermagem em 1952 ............................................................ 173

Tabela 3 Relao de escolas de enfermagem existentes em Portugal na dcada de 80

....................................................................................................................................... 183

Tabela 4 Admisso s escolas de enfermagem em 1952 ........................................... 192

Tabela 5 Evoluo dos requisitos habilitacionais ao curso de auxiliares e

enfermagem, na segunda metade do sculo XX ........................................................... 195

Tabela 6 A distribuio total dos alunos por mdia de idades ................................. 227

Tabela 7 As mdias de idades por gnero e por ano lectivo ..................................... 229

Tabela 8 Nmero total de alunos e mdia de idades por gnero (1948-1988) .......... 244

Tabela 9 As mdias de idades dos alunos por ano lectivo (1948-1988) .................... 247

Tabela 10 A distribuio dos pais pelos sectores da economia portuguesa, entre 1948

e 1988, no caso do curso de enfermagem geral da Escola de Enfermagem de Castelo

Branco ............................................................................................................................ 258

Tabela 11 A evoluo da carreira de enfermagem entre 1967 e 1988....................... 280

Tabela 12 Objectivos que os alunos deviam atingir no decorrer de cada ano lectivo, a

partir da reforma do ensino da enfermagem de 1965 .................................................... 300

Tabela 13 A organizao, por grandes temas, do curso de enfermagem em 1976 .... 309

Tabela 14 Objectivos tericos que os alunos do curso de Enfermagem deviam atingir

no final de cada rea de aprendizagem ......................................................................... 312

Tabela 15 Objectivos tericos que os alunos do curso de Enfermagem, em 1987,

deviam atingir no final de cada semestre/ano ............................................................... 316

Tabela 16 - Organigrama com a estrutura da Escola de Enfermagem de Castelo Branco

em 1976 ......................................................................................................................... 417

Tabela 17 Organizao da carreira hospitalar de acordo com o decreto-lei n 414 de

27 de Setembro de 1971 ................................................................................................ 514

Tabela 18 Organizao da carreira de enfermagem de sade pblica de acordo com o

decreto-lei n 414 de 27 de Setembro de 1971 .............................................................. 516

Tabela 19 As carreiras de enfermagem de sade pblica e de enfermagem hospitalar

com algumas alteraes atravs do decreto n 534 de 8 de Julho de 1976 ..................... 518

XVIII

Lista de Representaes Grficas Pp.

Grfico 1 Evoluo do nmero de matriculados/diplomados no curso de Auxiliares de

Enfermagem na Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1948-1973) ................... 220

Grfico 2 A distribuio total dos alunos em percentagem ...................................... 223

Grfico 3 A distribuio genderizada dos alunos (1948 1973) .............................. 224

Grfico 4 A evoluo geral dos alunos matriculados no curso de auxiliares de

enfermagem (1948 1973) ........................................................................................... 225

Grfico 5 A evoluo das mdias de idades, por ano lectivo (1948-1973) .............. 227

Grfico 6 Distribuio dos alunos pelas idades em termos absolutos, entre 1948 e

1973 ............................................................................................................................... 228

Grfico 7 A distribuio dos alunos por distritos (1948-1973) ................................. 231

Grfico 8 Distribuio dos alunos pelo distrito de Castelo Branco .......................... 233

Grfico 9 A Evoluo geral do nmero de alunos matriculados/diplomados na Escola

de Enfermagem de Castelo Branco (1948 1988) ........................................................ 236

Grfico 10 O nmero total de matriculados por gnero (1948-1988) ....................... 239

Grfico 11 O nmero de alunos por gnero at 1974 ................................................ 240

Grfico 12 A evoluo dos alunos entre 1974 e 1988 ............................................... 241

Grfico 13 A evoluo geral do nmero de matriculados por gnero (1948 1988)

....................................................................................................................................... 242

Grfico 14 O nmero de alunos matriculados por gnero e ano lectivo no curso de

enfermagem geral (1948-1988) ..................................................................................... 243

Grfico 15 Distribuio dos alunos pelas idades em termos absolutos, entre 1948 e

1988 ............................................................................................................................... 245

Grfico 16 A evoluo da mdia de idades dos alunos, por gnero, entre 1948 e 1988

....................................................................................................................................... 246

Grfico 17 A provenincia geogrfica dos alunos da Escola de Enfermagem de

Castelo Branco (1948-1988) .......................................................................................... 248

Grfico 18 A distribuio dos alunos de enfermagem pelo distrito de Castelo Branco

....................................................................................................................................... 250

Grfico 19 Distribuio do pblico escolar de acordo com a actividade profissional

do pai, entre 1948 e 1988............................................................................................... 255

XIX

Grfico 20 Distribuio dos alunos de acordo com a actividade profissional ou

ocupao da me, entre 1948 e 1988 ............................................................................ 257

Grfico 21 - Grupos sociais de recrutamento dos alunos de enfermagem ................... 260

Grfico 22 Relao teoria/prtica, em horas semanais, no plano de estudos de

enfermagem de 1954 ..................................................................................................... 354

Grfico 23 Relao teoria prtica do curso de enfermagem geral no seu conjunto

(em semanas) (1965) .................................................................................................... 360

Grfico 24 Ilustrao da relao teoria prtica no plano de estudos de 1976

(semanas) ....................................................................................................................... 364

Grfico 25 Relao teoria prtica no plano de curso de 1987 (semanas) ............... 369

XX

Lista de Abreviaturas

AEECB Arquivo da Escola de Enfermagem de Castelo Branco.

A.G.E. Assembleia Geral de Escola.

C.E.E. Comunidade Econmica Europeia

C.I.D S.E.P. Centro de Informao e Documentao do Sindicato dos Enfermeiros

Portugueses.

CICIAMS - Comit International Catholique des Infirmires et Assistantes Mdico-

Sociales.

CAP Captulo.

DG. Dirio do Governo

DICOVE Projecto de Investigao Sobre um Instrumento de Diagnstico e Conselho

Vocacional para Admisso ao Curso de Enfermagem.

D.L. Decreto-Lei.

EECB. Escola de Enfermagem de Castelo Branco.

LAE. Lar de Alunas Enfermeiras.

O.I.T. Organizao Internacional do Trabalho.

O.M.S. Organizao Mundial de Sade.

Pp. Pgina (s)

R.E.P.E. Regulamento do Exerccio Profissional dos Enfermeiros.

Sc. Sculo.

S.N.E.P.E Sindicato Nacional dos Profissionais de Enfermagem.

S.N.S. Servio Nacional de Sade.

21

INTRODUO GERAL

22

INTRODUO

O ser humano em simultneo fsico, biolgico, psquico, cultural, social,

histrico. esta unidade complexa da natureza humana que est

completamente desintegrada no ensino, atravs das disciplinas, e tornou-se

impossvel aprender o que significa ser humano. necessrio restaur-la, de

forma que cada um, onde quer que esteja, tome conhecimento e conscincia em

simultneo da sua identidade complexa e da sua identidade comum com todos

os outros humanos.

MORIN, Edgar (2002), Os sete saberes para a educao do futuro, Lisboa: Instituto

Piaget/Horizontes Pedaggicos, pp. 17.

Na actualidade, o problema das configuraes identitrias atravessa um conjunto

diversificado de reas do Saber. As Cincias da Educao, e especialmente a Histria da

Educao, confrontam-se muitas vezes com problemas relacionados com a identidade

de indivduos ou grupos. O conceito de identidade pode ser interpretado a partir de

diversos ngulos. Nesta pesquisa surge como um elemento dinmico, plural e

multifacetado. Este conceito permite uma interpretao ampla dos pblicos que

pretendemos analisar. Possibilita o desenvolvimento de interpretaes entre formas

identitrias herdadas ou pretendidas1 e o caminho percorrido entre ambas.

O estudo das identidades profissionais encontra substncia nesta dinmica na

medida em que os grupos estabelecem relaes, ou procuram a identificao, com

outros grupos ou elementos com que lidam directa ou indirectamente. Muitas vezes a

identidade dos grupos profissionais constri-se em relao a outros que servem de

modelo. De acordo com Claude Dubar, as identidades ganham forma porque se

relacionam com aspectos de natureza social, individual, tnica ou religiosa2. A partir

deste processo relacional constroem-se as identidades sociais ou profissionais no

interior de contextos organizacionais.

Fernando Pereira refere que existe um jogo entre o profissional, enquanto sujeito

portador de desejos de identificao e de reconhecimento, e os contextos institucionais

que o definem. A construo de uma identidade profissional implica trocas de

informao, saberes interpessoais e reconhecimento de competncias e valores entre os

indivduos que compem o grupo. Para que se verifique este processo de construo

1 DUBAR, Claude (1997), A Socializao Construo das identidades sociais e profissionais, Porto:

Porto Editora, pp. 79. 2 Idem.

23

identitria de um modo coerente e vlido necessrio que exista um lugar ou contexto

organizacional que permita e promova esta dinmica3.

A relao entre os actores e os contextos organizacionais fundamental para se

desenvolver um esprito de grupo e de pertena forte. As escolas surgem como as

instituies onde melhor se pode promover, pelo menos numa fase inicial, esse dilogo

entre o que sou, o que quero ser e o que vou ser depois da passagem pelos contextos

formativo e organizacional. As identidades profissionais articulam-se tambm com

movimentaes sociais de indivduos ou grupos no interior da Sociedade. Essas

trajectrias assumem importncia porque atravs delas percebemos a origem do grupo e

algumas das estratgias de valorizao do mesmo.

As identidades assumem-se como processos de transaco entre dimenses

objectivas e subjectivas. As transaces objectivas seguem uma linha de acomodao do

eu perante o outro, enquanto que as identidades subjectivas ou internas ao indivduo so

mais dinmicas, construindo-se numa tenso permanente entre a origem identitria e a

conquista de uma identidade futura4. Este caminho sugere um conjunto de princpios de

natureza relacional que devem ser estudados no como elementos estticos mas como

elementos dinmicos e em constante mutao de acordo com variveis diversificadas.

Esta discusso permite-nos defender que as identidades profissionais so

essencialmente biogrficas e relacionais. Claude Dubar refere mesmo que a

compreenso de variveis como as representaes cognitivas e afectivas, perceptveis e

operacionais, estratgicas e identitrias constituem o elemento central da construo

identitria. a partir da representao individual e subjectiva dos sujeitos que as

identidades se constroem5.

Deste modo, quando falamos de identidades profissionais h um conjunto de

caractersticas inerentes ao prprio conceito. As identidades profissionais pugnam por

um sistema simblico comum de comunicao que funciona como mecanismo de

proteco, identificao e diferenciao do monoplio de conhecimentos que possui em

relao aos outros grupos. Sintetizamos esta questo com a viso que David Tavares

apresenta sobre este assunto. Este autor defende que as identidades profissionais so

3 PEREIRA, Fernando (2010), Gerontlogo: Motivaes e escolhas na construo de uma nova

profisso in DELICADO, Ana, BORGES, Vera e DIX, Steffen (Orgs.), Profisso e Vocao Ensaios

sobre grupos profissionais, Lisboa: Instituto de Cincias Sociais, pp. 97 e 98. 4 SILVA, Ana Maria da Costa e (2005), Formao e Construo de Identidades Um estudo de caso

centrado numa equipa multidisciplinar, Tese de doutoramento apresentada Universidade do Minho, pp.

74. 5 DUBAR, Claude, Op. cit. pp. 101.

24

construdas de acordo com processos de socializao, em contextos organizacionais

prprios, onde as escolas ou as instituies escolares especializadas assumem uma

importncia particular, na medida em que constituem elementos activos na construo

credenciada de um grupo profissional6.

As escolas assumem, deste modo, um papel de primeira ordem no que diz

respeito construo de identidades profissionais e construo de monoplios

acadmicos ou cientficos de grupo. A monopolizao de uma determinada tarefa ou

actividade remete-nos para a importncia da construo, consolidao ou

desenvolvimento de jurisdies profissionais nas mais diversas reas de actividade

pelos diferentes grupos.

Eliot Freidson refere que a procura da autonomia tcnica de uma actividade

constitui a mais importante caracterstica de um grupo. De acordo com o autor, o

exerccio de autoridade sobre a tarefa que se desempenha o elemento central da

constituio dos grupos profissionais. Esse domnio permite alargar constantemente a

sua capacidade de influncia e o poder que exerce junto das mais diversas autoridades.

Do mesmo modo, o controlo absoluto de uma actividade pode evitar incurses de

elementos estranhos/externos ao grupo. Para a concretizao desta autonomia

necessrio possuir um conhecimento especializado e credenciado7. Para o efeito devem

criar-se instituies de credenciao. Estas instituies podem ser as escolas

especializadas em determinadas reas do conhecimento que asseguram a entrada e a

escolha dos elementos que melhor correspondem ao perfil pretendido pelo grupo.

Tambm as associaes profissionais ou o prprio Estado podem fazer parte deste

universo de acreditao. Como refere Maria de Lurdes Rodrigues, a combinao de

credenciais e formao permite o acesso ao mercado de trabalho profissional protegido8.

O credencialismo deve ser entendido como um mecanismo que permite ao grupo

controlar as entradas na actividade e, consequentemente, o acesso aos domnios da

subjectividade do prprio conhecimento. Este controlo transforma os grupos em

elementos com posies especficas no interior da sociedade, capazes de resolver os

problemas que esta apresenta num determinado contexto. Da a necessidade de escolher

aqueles possuem um perfil mais adequado ideologicamente ao grupo de modo a auto-

6TAVARES, David (2007), Escola e Identidade Profissional O caso dos Tcnicos de

Cardiopneumologia, Lisboa: Edies Colibri/Instituto Politcnico de Lisboa, pp. 34. 7 FREIDSON, Eliot (1986), Professional Powers: A Study of the Institutionalisation of formal knowledge,

Chicago: University of Chicago Press, pp. 63 e seguintes. 8 RODRIGUES, Maria de Lurdes (1999), Sociologia das Profisses, 2 ed. Oeiras: Celta editora, pp. 53.

25

proteger-se e a proteger os seus domnios de conhecimento que os transforma em

especialistas luz da sociedade.

O conhecimento outro elemento que permite o desenvolvimento dos grupos

ocupacionais e profissionais. Andrew Abbot refere-se ao conhecimento como o

principal elemento na definio dos grupos. Este autor defende que o conhecimento

que um determinado grupo possui que permite a renovao do prprio grupo, do ponto

de vista da abstraco, dado que possibilita estar constantemente a reequacionar os

problemas apresentados pela sociedade e a encontrar as mais diversas solues. Num

sistema competitivo de profisses esta caracterstica (da abstraco) do conhecimento

que permite aos grupos a defesa de eventuais incurses em relao a outros grupos. O

conhecimento abstracto possibilita a construo de jurisdies profissionais, isto

domnios terico-prticos sobre os quais os grupos exercem uma influncia exclusiva

que vai desde a definio de tarefas concretas ao recrutamento dos novos elementos9.

Os elementos que entram para o grupo devem passar por um processo de

transformao a vrios nveis. Destacamos a importncia do conhecimento que devem

aprender no interior das instituies de formao; o saber-fazer um conjunto de tcnicas

e de adequ-las, mais tarde, s necessidades sociais, mediante uma retribuio da

prpria Sociedade ou do Estado; a necessidade de dominar Saberes; e, tambm, devem,

alm do que j referimos, adquirir uma conscincia de grupo, onde as normas e os

valores que circulam nas instituies de credenciao podem constituir a referncia do

grupo do ponto de vista tico. Com efeito, as normas e os valores institudos encontram-

se envolvidos por uma dimenso ideolgica de grupo que deve ser seguida pelos novos

elementos. As instituies de formao desempenham um papel central tambm neste

nvel ao tentarem transmitir a melhor forma dos indivduos, pertencentes a um

colectivo, se apresentarem e estarem perante os outros. Esta dimenso tica

associada aos grupos no deve ser esquecida porque influencia decisivamente o

comportamento geral do grupo e a respeitabilidade Social e do Estado perante o

colectivo.

A Sociedade e o Estado tornam-se, deste modo, elementos dinmicos na

constituio identitria dos prprios grupos que intervm e se relacionam de diferentes

formas consoante os contextos e a ideias que se defendem numa determinada altura.

Todos estes elementos contribuem para a construo identitria de grupos profissionais.

9 ABBOTT, Andrew (1988), The System of Professions An Essay on the Division of Expert Labor,

Chicago/London: The University of Chicago Press.

26

Ao longo da segunda metade do sculo XX foram vrios os grupos estudados em

Portugal. A sociologia das profisses assumiu uma centralidade nos ltimos anos, que

no tinha anteriormente, e permitiu atravs de diferentes abordagens conceptuais

oferecer alguns contributos interessantes para a compreenso dos grupos. Destacamos o

grupo dos mdicos10

, professores11

, engenheiros12

, arquitectos13

ou economistas14

.

Quase todos seguindo uma linha de influncia anglo-saxnica.

Porm, outros grupos tm sido remetidos para um plano secundrio no que diz

respeito ao estudo das configuraes identitrias. O estudo que agora apresentamos vai

ao encontro da construo de identidades profissionais atravs da articulao da escola

com a formao e o trabalho, onde o credencialismo, o conhecimento, a dimenso tica

e jurisdicional ganham relevo. Nesta pesquisa o grupo das/os enfermeiras/os ocupa um

lugar central. O principal objectivo deste trabalho justamente o de identificar o modo

como a enfermagem construiu o seu lugar profissional na sociedade portuguesa ao

longo do sculo XX.

Em enfermagem tambm se tm produzido alguns estudos sobre a identidade

profissional das/os enfermeiras/os. Destacamos aqueles que, do nosso ponto de vista, se

apresentam como uma anlise scio-histrica e se dirigem mais concretamente para as

questes identitrias. O primeiro trabalho que destacamos o estudo de Maria Isabel

Soares. A autora faz uma abordagem histrica da enfermagem ao longo da primeira

metade do sculo XX. Faz referncia a um conjunto de instituies formativas que

deram os primeiros contributos para a construo de uma enfermagem com maior

visibilidade social15

. Luclia Nunes tambm construiu um estudo relevante sobre

algumas etapas que considerou importantes para o desenvolvimento da enfermagem

enquanto actividade profissional (1881-1998). Um trabalho, que nasceu de uma

dissertao de mestrado cujo arco temporal terminava na dcada de 50, ampliado

10

CARAPINHEIRO, Graa (2005), Saberes e Poderes no Hospital Uma sociologia dos servios

Hospitalares, Porto: Edies Afrontamento/Centro de Estudos Sociais. 11

NVOA, Antnio (1987), Le Temps des Professeurs Analyse scio-Historique de la Profession

Enseignante Au Portugal (XVIII XX Sicle), 2 vols., Lisboa: Instituto Nacional de Investigao

Cientifica. 12

RODRIGUES, Maria de Lurdes (1999), Os Engenheiros em Portugal Profissionalizao e

Protagonismo, Oeiras: Celta editora. 13

CABRAL, Manuel Villaverde e BORGES, Vera (2010) Muitos so os chamados, poucos os

escolhidos: entre a vocao e a profisso de arquitecto in DELICADO, Ana, BORGES, Vera e DIX,

Steffen (Orgs.), Profisso e Vocao Ensaio sobre grupos profissionais, Lisboa: ICS, pps. 147-178. 14

GONALVES, Carlos Manuel (2006), Emergncia e consolidao dos Economistas em Portugal,

Biblioteca das Cincias Sociais, Porto: Edies Afrontamento. 15

SOARES, Maria Isabel (1997), Da Blusa de Brim Touca Branca, Lisboa: Educa/ Associao

Portuguesa de Enfermeiros.

27

posteriormente pela autora onde encontramos preocupaes relacionadas com o

desenvolvimento profissional da enfermagem16

. Com uma preocupao analtica mais

voltada para a dimenso histrica da enfermagem, na segunda metade da centria de

novecentos, surge o trabalho de doutoramento de Jos Amendoeira17

. O autor tenta

construir uma biografia da enfermagem desde a dcada de 50 at aos alvores do novo

milnio, apresentando e descrevendo as datas e factos mais relevantes, para o autor,

relacionadas com a enfermagem enquanto profisso. Colocou a tnica nos dispositivos

de formao, nomeadamente os currculos, centrando-se no interior da legislao

produzida pelo Estado. Outro estudo que merece destaque nos processos de anlise

histrica da enfermagem o de Luclia Escobar18

. A autora centrou-se na anlise

identitria da profisso a partir das questes de gnero. Por fim, embora existam outros

estudos, realamos a pesquisa realizada por Ana Isabel Silva19

sobre uma instituio

escolar de enfermagem A Escola Dr. ngelo da Fonseca onde analisou

especificamente o quotidiano institucional daquela escola. A autora contribui

decisivamente para incluir as escolas de enfermagem, numa perspectiva monogrfica,

no interior do universo da Histria das Instituies Educativas em Portugal. Alm dos

estudos j referidos, no poderamos deixar de destacar a investigao desenvolvida por

Wilson Correia de Abreu. A partir de diferentes contextos, entre eles o escolar,

desenvolveu um importante trabalho sobre as questes identitrias. Refere este autor

sobre a problemtica identitria em relao ao grupo da enfermagem que esta ganha

forma atravs de processos e interaces sociais. Defende o estudo desta interactividade

social para a reconstituio das configuraes identitrias. Salienta a importncia do

estudo dos contextos organizacionais onde os enfermeiros aprendem e os contextos

onde desenvolvem as aprendizagens para o desenvolvimento profissional. Deste modo a

relao entre as instituies escolares e os contextos de trabalho constituem elementos

determinantes para o estudo das identidades profissionais20

.

A problemtica sobre a constituio da enfermagem enquanto grupo profissional

passa, efectivamente, por um momento transformador determinado por circunstncias

16

NUNES, Luclia (2003), Um Olhar Sobre o Ombro Enfermagem em Portugal (1881-1998), Loures:

Lusocincia. 17

AMENDOEIRA, Jos (2006), Uma Biografia Partilhada da Enfermagem, Coimbra: Formasau. 18

ESCOBAR, Luclia (2004), O Sexo das Profisses Gnero e Identidade Socioprofissional em

Enfermagem, Biblioteca das Cincias Sociais, Porto: edies Afrontamento. 19

SILVA, Ana Isabel (2008), A Arte de Enfermeiro: Escola de Enfermagem Dr. ngelo da Fonseca,

Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 20

ABREU, Wilson Correia de (2001), Identidade, Formao e Trabalho Das Culturas Locais s

Estratgias Identitrias dos Enfermeiros, Coimbra/Lisboa: Formasau/Educa, pp. 82.

28

sociais, cientficas e polticas. Mas tambm contribui para esse processo de mudana a

formao que as escolas de enfermagem ministraram no seu interior procurando, atravs

do conhecimento, legitimar o seu saber.

Um aspecto para o qual gostaramos de chamar a ateno para o facto de todos

os autores que acabamos de referir, com excepo para Ana Isabel Silva, tm uma

formao de base em enfermagem. Com efeito, o devido distanciamento do objecto de

estudo menor encontrando-se muitas preocupaes relacionadas com uma

determinada projeco da enfermagem no futuro, esquecendo por vezes algumas

conexes possveis que permitiam uma leitura mais ampla relacionada com o processo

de emergncia e consolidao da enfermagem portuguesa enquanto objecto de estudo.

Trabalhar este grupo no foi, partida, uma tarefa fcil. De facto, porque um

grupo que se apresenta perante uma encruzilhada de actores, saberes e espaos que

geram muitos conflitos e tenses que influenciam a identidade profissional do mesmo.

O modo como se constroem os grupos profissionais, a forma como se organizam e

relacionam com o Estado, a importncia das suas associaes ou sindicatos na

construo de jurisdies profissionais, o conhecimento que utilizam para garantir uma

determinada autonomia, a visibilidade e a respeitabilidade social e os espaos de

socializao profissional, como as escolas de enfermagem, so elementos que tivemos

em conta para a construo de uma compreenso sobre as configuraes identitrias

deste grupo. A pergunta de partida para este trabalho, que engloba todos os aspectos

referidos anteriormente, foi a seguinte: como se construiu, do ponto de vista identitrio,

a enfermagem em Portugal ao longo do sculo XX, na perspectiva de uma formao de

base?

Esta questo remeteu-nos imediatamente para o domnio da Histria e da

Sociologia das Profisses. Assumindo que no interior da Histria da Educao poucos

so os estudos que recorreram a esta rea do conhecimento, com excepo do

importante estudo de Antnio Nvoa sobre o processo de profissionalizao do

professorado primrio portugus21

, resolvemos seguir a tentao da descoberta e o

desafio de entrar noutras reas do saber com a vantagem de poder vir a utilizar

instrumentos metodolgicos e conceptuais que de outro modo dificilmente utilizaramos

21

NVOA, Antnio (1987), Le Temps des Professeurs Analyse Socio-Historique de la Profession

enseignante au Portugal (XVIIIe-XXe sicle), 2Vols., Lisboa: Instituto Nacional de Investigao

Cientifica. Neste trabalho o autor olha para a problemtica da formao, relacionada com o ensino

elementar, utilizando para o efeito um quadro conceptual inspirado nas potencialidades da sociologia das

profisses.

29

na interpretao do material emprico que analisamos. O que tentamos fazer foi uma

anlise s diferentes correntes sociolgicas, e aos seus principais representantes, que

desenvolveram contributos para o estudo das profisses ao longo da segunda metade do

sculo XX. Desta anlise destacamos principalmente a pertinncia da articulao entre a

abordagem interaccionista e sistmica das profisses, no esquecendo os contributos da

corrente funcionalista e dos crticos das profisses. De acordo com o que referimos, os

principais autores que destacamos ao longo do trabalho so Eliot Freidson, Magali

Larson, Andrew Abbott, Maria de Lurdes Rodrigues, entre outros investigadores. Do

ponto de vista metodolgico, optamos por uma abordagem diacrnica e uma anlise

scio-histrica que permite a compreenso dos grupos, o seu desenvolvimento, os

avanos e recuos e ainda os contextos em que se movimentaram numa perspectiva

dinmica. A construo de um modelo de anlise original resultou da conjugao dos

contributos tericos da sociologia das profisses, da literatura sobre a enfermagem, das

questes identitrias e da Histria da educao, em articulao com o material emprico

recolhido a partir de arquivos e fontes diversificadas, nomeadamente de uma instituio

escolar. As principais fontes utilizadas caracterizam-se, em termos gerais, em cinco

grandes grupos: 1) a legislao (sculo XIX e XX); 2) material de arquivo (Arquivo da

Escola de Enfermagem de Castelo Branco; Arquivo do Centro de Informao e

Documentao do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses; Documentao das

diferentes cmaras legisladoras de acordo com os regimes polticos); 3) Imprensa da

especialidade (Revista Hospitalidade; Servir; Revista de Enfermagem); 4) Fontes Orais

(entrevistas a alunos/professores e director de uma instituio escolar) 5) e, finalmente

Iconografia (fotografias, plantas).

De acordo com Maria de Lurdes Rodrigues a investigao histrica sobre as

profisses central. A autora peremptria neste aspecto quando refere que o

desenvolvimento das profisses s pode ser acompanhado a partir de uma anlise do

processo histrico, de acordo com os diferentes contextos, dado que s assim se

compreendem estratgias e mecanismos particulares da emergncia e consolidao dos

grupos profissionais na actualidade, permitindo ao mesmo tempo explicitar o

enquadramento socioeconmico e poltico em que toda esta dinmica se verifica22

.

A Histria possibilita uma compreenso ampla sobre os processos de afirmao

jurisdicional dos grupos permitindo estudar as relaes entre si e com outras estruturas

22

RODRIGUES, Maria de Lurdes (1999), Os Engenheiros em Portugal Profissionalizao e

Protagonismo, Oeiras: Celta, pp. 5.

30

que influenciam o quotidiano e a construo identitria dos grupos profissionais. no

interior deste cenrio que os aspectos formativos ganham uma enorme relevncia para a

interpretao dos grupos e da forma como se legitimam, a partir da institucionalizao

formativa dos indivduos.

A formao, nomeadamente de natureza escolar, constitui um elemento central

na organizao, estruturao e afirmao de qualquer grupo profissional. Este um

caminho que possibilita a legitimao de prticas, antes fora do circuito escolar, e que,

consequentemente, permite escolarizar ou formalizar conhecimentos informais que at

a eram pouco reconhecidos do ponto de vista social, passando a integrar o leque de

opes escolares das comunidades interessadas em estudar e em movimentarem-se

socialmente. Rui Canrio entende a formao como um processo global, contnuo e em

constante mutao, influenciando os grupos profissionais do ponto de vista identitrio.

O autor refere que formao e configuraes identitrias esto estreitamente

relacionadas. As escolas de formao inicial tm um papel relevante na construo da

profissionalidade. Canrio afirma que o estudo das configuraes identitrias

corresponde a uma anlise dinmica onde nada se pode dar por terminado e onde se

articulam aspectos de natureza biogrfica e organizacional (contextos profissionais)23

.

Assumindo que estamos a estudar a enfermagem enquanto grupo dinmico,

constitudo por diferentes indivduos, as escolas de enfermagem apresentam-se como

um espao privilegiado de socializao profissional e de legitimao do grupo das/os

enfermeiras/os ao longo da sua Histria. Partindo desta premissa, a necessidade de

clarificar os aspectos decorrentes da pergunta de partida fizeram sentir-se desde o

primeiro momento da investigao. Isto , o estudo da legislao sobre a enfermagem

ao longo do sculo XX no chegava para compreender os processos de construo do

grupo. A utilidade de estabelecer uma articulao entre questes abrangentes e a sua

aplicabilidade do ponto de vista local era um cenrio que fazia cada vez mais sentido

para se compreender efectivamente os traos identitrios do grupo e as estratgias

seguidas para a sua valorizao. Assim, a Escola de Enfermagem de Castelo Branco

(1948) surgiu como uma forte possibilidade para responder a algumas questes

importantes na definio deste grupo. Esta escola de enfermagem constituiu o exemplo

de uma arena representativa de um universo onde se cruzam estratgias, actores e

conhecimentos diversificados, apesar de possuir algumas singularidades prprias do

23

CANRIO, Rui, Formao profissional: problemas e perspectivas de futuro. Forum, n 27, Jan-Jun,

2000, pp. 137.

31

meio onde se encontra instalada, que permitiram gradualmente afirmar o grupo das/os

enfermeiras/os portuguesas/es. O arco temporal utilizado na abordagem que realizamos

ao longo do trabalho, embora remeta para o sculo XX, destaca a segunda metade da

centria de novecentos (at final da dcada de 80), nomeadamente o perodo que

compreende a fundao da Escola de Enfermagem de Castelo Branco (1948) e a

integrao da enfermagem no Sistema Educativo Nacional/Ensino Superior (1988).

Percebemos que as escolas de enfermagem assumiram uma centralidade enorme no

processo de construo identitria da enfermagem que podemos caracterizar tendo em

conta quatro razes.

Em primeiro lugar, as escolas assumem um papel de recrutamento dos pblicos

escolares que aspiram aprendizagem no interior daquelas instituies e consequente

futura integrao no grupo da enfermagem. As instituies de formao assumem-se

como elementos credencialistas do exerccio da enfermagem, na medida em que para o

exerccio desta actividade, a partir da dcada de 40 do sculo XX, tornou-se obrigatria

a posse do ttulo acadmico de enfermeira/o, imposto pelo Estado, e acreditado pelas

escolas de enfermagem. Este um ponto importante que nos levou ao encontro dos

pblicos escolares que procuravam este tipo de formao acadmica e a caracteriz-los

globalmente.

Em segundo lugar, a formao e o conhecimento assumem especial importncia

nos processos de construo identitria atravs dos saberes que tornam a enfermagem

um domnio pluridimensional. At dcada de 70 a enfermagem assumia-se

essencialmente como um saber tcnico, auxiliar e dependente da medicina. A partir

desse momento, com a afirmao das Cincias Sociais e Humanas e Comportamentais,

a lgica da formao deixa de assentar na doena e passa a centrar-se directamente no

Ser Humano o que possibilitou a emergncia do grupo. A preveno, a compreenso, a

relao ou a comunicao com o Ser Humano passaram a integrar o vocabulrio prprio

da enfermagem ganhando um novo flego que permitiu aumentar e fortalecer a

jurisdio acadmica e profissional deste grupo. O conhecimento por isso um

elemento operatrio da construo identitria dos grupos profissionais. Andrew Abbot

refere-se importncia de possuir um sistema de conhecimentos forte de modo a

afirmar o prprio grupo24

.

24

ABBOTT. Andrew (1988), op.cit.

32

Em terceiro lugar, a formao inicial representa um momento crucial da

aprendizagem para o mundo do trabalho, pois ali que se aprendem os modos de

estar e se adquirem as referncias relativamente s normas e valores que devem ser

cumpridos, servindo de guias socializadores para a actividade profissional futura.

O caso do ensino da enfermagem pode dividir-se em dois momentos: o primeiro

momento, at dcada de 70 do sculo XX; o segundo momento, inicia-se nessa mesma

dcada e prossegue pelo regime democrtico portugus. No primeiro momento,

verificamos a existncia de normas institucionais rgidas onde o aluno deveria cumprir

amplamente um conjunto de regulamentos e princpios moralizadores do prprio regime

poltico, influenciando o modo de estar e de aprendizagem das/os enfermeiras/os de

acordo com uma lgica de disciplina e obedincia, prpria de uma enfermagem

tradicional, submissa medicina e de natureza caritativa, dificultando a construo

jurdica e profissional deste grupo. Num segundo momento, a enfermagem assumiu uma

nova posio decorrente da emergncia de novos saberes, da influncia de organizaes

internacionais e da organizao de grandes momentos de reflexo entre as dcadas de

70 e 80 do sculo passado, que ajudaram a produzir um novo entendimento sobre o

perfil identitrio daquele profissional luz de novos princpios centrando a aco da

enfermagem no Ser Humano.

Rui Canrio refere que, a partir da dcada de 70, a valorizao das dimenses

tica e poltica conduziu a que a formao com uma matriz profissionalizante, como era

o caso da enfermagem, se integrasse numa perspectiva de formao mais ampla e global

da pessoa humana onde o trabalho necessitava de ser repensado e apropriado de forma

diferente pela humanidade25

. Foi a unicidade do ser humano, includas as dimenses

tica, poltica, e deontolgica, que passaram a ter relevncia nos processos de formao

escolares e no engrandecimento das jurisdies profissionais.

Em quarto lugar, a formao dirigida para o exerccio concreto do trabalho

permitiu a construo jurisdicional26

de um domnio27

prprio do grupo em anlise. Esta

jurisdio do grupo da enfermagem no corresponde a um domnio esttico. Pelo

contrrio, pode ser permevel a um conjunto enorme de elementos, nomeadamente a

presses externas e internas ao grupo. por isso que se torna importante compreender

as trajectrias profissionais dos grupos, numa perspectiva diacrnica e scio-histrica, e

25

CANRIO, Rui (2000), Op. cit., pp. 138. 26

Cf. ABBOTT. Andrew (1988), op.cit. 27

Cf. FREIDSON, Eliot (1994), Professionalism Reborn Theory, Prophecy and Policy, Cambridge:

Polity Press.

33

as suas interdependncias relacionais, pois desse modo podemos observar os grupos a

agir estrategicamente no sentido de se defenderem de eventuais ataques de outros

grupos ou de se reajustarem perante movimentaes interiores do grupo, na medida em

que estes no so blocos homogneos mas foras mobilizadoras com objectivos

comuns. No caso da enfermagem torna-se relevante compreender o papel das

organizaes sindicais, o papel dos grandes congressos organizados nos anos 70 e 80 e,

principalmente, as relaes de proximidade com os outros grupos profissionais,

nomeadamente com a medicina. As relaes de interdependncia profissional, onde se

encontra uma linha de tenso com maior ou menor relevo, permitem olhar a formao

como um processo malevel que ajudou a construir identidades relacionais fortes.

Na sequncia do que acabamos de referir podemos defender que a articulao

entre os conceitos de identidade e formao surgem nesta pesquisa como elementos

fundamentais para a compreenso do processo de construo da identidade profissional

da enfermagem portuguesa devido sua multidimensionalidade. Apresentam-se como

conceitos amplos e plurais na medida em que implicam no apenas conhecimentos

escolares, mas tambm lgicas de aco na esfera do credencialismo, da tica e da

jurisdio, com avanos e recuos, onde as instituies escolares representam o princpio

de um processo de construo identitria que deriva para uma formao em

alternncia28

, quer dizer entre a escola e o mundo do trabalho29

. Luisa d`Espiney reala

esta articulao quando diz que a enfermagem sempre teve uma forte ligao ao

contexto de trabalho devido ao carcter prtico desta actividade30

.

A enfermagem s pode ser interpretada de um modo processual, dinmico e

relacional. Wilson Correia de Abreu salienta que as escolas de enfermagem transitaram

de uma modelo formativo caritativo para um modelo de formao profissional e

cientfico31

. Com esta transio ganharam maior respeitabilidade e credibilidade da

Sociedade, com a qual se encontra envolvida, bem como dos outros grupos ou, como

28

cf. LAJES, Maria Alcina Almeida (1996), Formao Acadmica e Formao Profissional: um Novo

Modelo a Formao em Alternncia, in ESTRELA, Albano, CANRIO, Rui e FERREIRA, Jlia

(Orgs.), Formao, Saberes Profissionais e Situaes de Trabalho, Vol. II, pp. 77-86. 29

Nos planos de estudos dos cursos de enfermagem, entre 1948-1988, podemos verificar essa lgica de

alternncia entre uma dimenso terica da aprendizagem (em contexto de escola) e uma aprendizagem em

situao concreta de trabalho (experiencial), onde os estgios assumem particular destaque. 30

ESPINEY, Lusa d` (2003), Formao Inicial/Formao Contnua de Enfermeiros: Uma Experincia

de articulao em Contexto de Trabalho, in CANRIO, Rui (Org.), Formao e Situaes de Trabalho,

2 ed., Porto: Porto Editora, pp. 171.

cf. CANRIO, Rui (2005), Ser Enfermeiro Hoje. Caderno CE Caderno de Currculo e Ensino, Vol.

V, n 8, pp. 9-24. 31

ABREU, Wilson Correia de (2001), op. cit., pp. 49.

34

refere Rui Canrio, famlia de profisses com as quais tem de se relacionar e das

quais faz parte.

Ao colocarmos o conceito de formao no centro dos nossos interesses depressa

nos apercebemos da relevncia do mesmo na relao com o mundo das profisses.

Assim, resolvemos utilizar os meios conceptuais da sociologia das profisses de modo a

estruturar uma problemtica que, do ponto de vista scio-histrico e numa perspectiva

diacrnica, pudesse objectivar o melhor possvel o caminho percorrido por um grupo

profissional como o das/os enfermeiras/os portuguesas/es, principalmente ao longo da

segunda metade da centria de novecentos.

O trabalho que aqui se apresenta composto por cinco captulos. No primeiro

captulo expem-se os trabalhos tericos onde ancoramos a pesquisa sobre a

enfermagem em Portugal. Destaca-se principalmente a abordagem realizada sobre as

diferentes correntes sociolgicas que contriburam para uma maior compreenso dos

grupos e identidades profissionais. Tambm se faz uma abordagem a alguns estudos

relacionados com a enfermagem desenvolvidos mais recentemente numa perspectiva

scio-histrica. Neste primeiro captulo do trabalho, depois da abordagem mais terica,

construmos um modelo interpretativo original que permitiu a organizao do trabalho

em torno de um esquema conceptual abrangente conferindo alguma originalidade em

relao aos estudos realizados at aqui sobre este objecto de estudo.

Os captulos seguintes constituem o resultado da investigao emprica realizado

ao longo do estudo cruzando-se com a abordagem terica, referida anteriormente, com a

literatura especfica que tem sido produzida sobre a Histria da Enfermagem e das

identidades profissionais em Portugal. Partindo deste pressuposto o trabalho organiza-se

em torno de quatro eixos de desenvolvimento.

O primeiro eixo divide-se em trs pontos. Iniciamos com uma abordagem geral

sobre o desenvolvimento da enfermagem em Portugal tomando como foco as escolas e

polticas de enfermagem que surgiram e foram aplicadas desde a segunda metade do

sculo XIX at integrao no Sistema Educativo Nacional/Ensino Superior (1988). O

segundo ponto caracteriza-se por uma abordagem em relao aos pblicos que

procuraram as escolas de enfermagem, tomando como exemplo a escola albicastrense, e

as formas de recrutamento dos novos elementos a partir destas instituies de

acreditao. Por fim, no terceiro ponto procurou compreender-se qual era o perfil dos

elementos que frequentavam a Escola de Enfermagem de Castelo Branco quer no curso

de auxiliares como no curso geral de enfermagem.

35

O segundo eixo de anlise define-se pela tentativa de alcanar um entendimento,

a partir de fontes diversificadas, sobre a construo de um conhecimento profissional

em enfermagem. Para o efeito, comeamos por caracterizar o corpo docente da escola

albicastrense. Depois, analisamos a evoluo e os desenvolvimentos curriculares ao

longo do sculo XX nas escolas de enfermagem e em particular o caso de Castelo

Branco. Posto isto, detalhamos ainda mais a anlise de modo a perceber se existiram

momentos de transio importantes na definio dos saberes em enfermagem.

Terminamos este ponto com o estudo do impacto dos perodos de estgio e das prticas

clnicas na formao dos alunos, principalmente entre as dcadas de 50 e 80 da centria

de novecentos.

O terceiro eixo de anlise divide-se em duas partes. A primeira onde fazemos

uma caracterizao dos contextos organizacionais escolares a partir da legislao

proposta e da sua aplicao local. A segunda onde destacamos as principais normas e

valores que circulavam no interior da enfermagem na segunda metade do sculo XX.

Finalmente, um ltimo eixo de anlise que no visa caracterizar tanto as

questes escolares e os espaos formativos mas tem como objectivo traar um olhar

geral sobre a aco associativa e sindical; as diferentes carreiras de enfermagem que

foram institudas ao longo da segunda metade do sculo XX (at 1988); acontecimentos

cientficos com grande visibilidade profissional, social e estatal; e, para terminar, uma

abordagem sobre a integrao da enfermagem no subsistema de ensino superior

politcnico portugus (1988).

A articulao entre a formao e a construo de identidades profissionais

constitui um ncleo de interesse que permite compreender como os indivduos se

movimentam, alcanam prestgio e reconhecimento no interior da Sociedade. Esta

dissertao de doutoramento coloca as instituies escolares como elementos-chave

para a compreenso de toda esta dinmica relacional.

Em suma, esperamos poder contribuir para o alargamento do campo de viso da

Histria da Educao e para uma maior compreenso sobre os processos de construo

identitria da enfermagem enquanto grupo a partir dos processos formativos que

aconteceram em contextos organizacionais como as escolas de enfermagem e em

particular a Escola de Enfermagem de Castelo Branco. No interior deste movimento

perptuo esperamos contribuir para o desenvolvimento da Histria Contempornea

portuguesa e em particular da Histria da Educao.

36

CAPTULO I

Profisses, Estado e Identidades: um universo em anlise

37

Introduo

Ao longo da segunda metade da centria de novecentos assistimos a um

processo de afirmao de um conjunto de grupos profissionais que reivindicaram

direitos e privilgios em funo do Saber que monopolizavam. So vrios os estudos

que se referem s estratgias e aos domnios do Saber que controlavam ou que

pretendiam vir a controlar. Em muitos desses estudos o foco colocado sobre os

processos formativos como inicio de uma trajectria profissional. Por exemplo, em

Portugal podemos referir-nos a alguns estudos recentes relacionados com a

engenharia32

, os economistas33

, os arquitectos34

, os professores35

, entre outros estudos

que tm vindo a ser publicados. H, no entanto, um conjunto de actividades

profissionais que no podemos perder de vista dada a natureza desta dissertao.

Estamos a referir-nos importncia que assumem os percursos das actividades

profissionais relacionadas com o domnio da sade.

De acordo com Rui Canrio ao longo da segunda metade da centria de

novecentos existem trs linhas de anlise que ajudaram a dinamizar o campo da sade: a

primeira relacionada com a diversidade da oferta formativa (inicial e continua) a que se

assistiu; a segunda, o enriquecimento das perspectivas oferecidas pelos diferentes

profissionais de sade que foram surgindo, embora por referncia ao modelo mdico; a

terceira, onde se assume a importncia da relao entre os grupos profissionais de sade

no mdicos com a sua formao e a possibilidade que da advm de afirmao

identitria. Os espaos de formao assumem para este autor um contexto privilegiado

para a emancipao dos grupos profissionais no domnio da sade, especialmente os no

mdicos36

.

32

Cf. RODRIGUES, Maria de Lurdes (1999), Os Engenheiros em Portugal Profissionalizao e

Protagonismo, Oeiras: Celta editora. 33

Cf. GONALVES, Carlos Manuel (2006), Emergncia e consolidao dos Economistas em Portugal,

Biblioteca das Cincias Sociais, Porto: Edies Afrontamento. 34

Cf. CABRAL, Manuel Villaverde e BORGES, Vera (2010) Muitos so os chamados, poucos os

escolhidos: entre a vocao e a profisso de arquitecto in DELICADO, Ana, BORGES, Vera e DIX,

Steffen (Orgs.), Profisso e Vocao Ensaio sobre grupos profissionais, Lisboa: ICS, pps. 147-178. 35

Cf. RESENDE, Jos Manuel (2003), O Engrandecimento de uma profisso Os professores do ensino

secundrio pblico no Estado Novo, Textos universitrios de Cincias Sociais e Humanas, Lisboa:

Fundao Calouste Gulbenkian/ Fundao Para a Cincia e Tecnologia/MCTES.

Alm deste, ver tambm: NVOA, Antnio (1987), Le Temps des Professeurs Analyse scio-

Historique de la Profession Enseignante Au Portugal (XVIII XX Sicle), 2 vols., Lisboa: Instituto

Nacional de Investigao Cientifica. 36

Cf. CANRIO, Rui (1997), Formao e mudana no campo da sade in CANRIO, Rui (Org.),

Formao e Situaes de Trabalho, Porto: Porto Editora, pp. 120 e seguintes.

38

No obstante, o grupo profissional mais representativo na literatura o grupo

dos profissionais liberais, nomeadamente o grupo dos mdicos37

, que se apresentam

como modelo a seguir pelas outras actividades ligadas Sade. Este grupo constitui

uma referncia incontornvel pois identificado como o modelo de autonomia

profissional mais desejado pelos outros grupos devido ao controlo formativo, social,

individual e capacidade negocial que consegue estabelecer com as mais diversas

foras que o envolvem atravs da singularidade do seu Saber, que utilizado como

forma de poder produtivo. Para Eliot Freidson a caracterstica mais importante de uma

profisso a sua autonomia que encontra concretizao no domnio dos contedos

formativos, no desenvolvimento da prtica profissional e na sua capacidade de avaliar o

trabalho dos outros grupos sem colocar em causa o seu38

. De qualquer forma, e como

teremos oportunidade de compreender adiante, e independentemente do modelo terico

(funcionalista, interaccionista, sistmico, outros) que possamos seguir, a formao e o

conhecimento surgem sempre como elementos relevantes para a consolidao dos

grupos, em particular, no domnio da sade e da sociologia das profisses.

Alm dos mdicos existem outros grupos que foram alvo de estudo e de

reflexo. Destacamos pela sua importncia o estudo desenvolvido por Joo Rui Pita

sobre o desenvolvimento, enquanto actividade profissional, do domnio farmacutico

tomando como estudo de caso o ensino de farmcia ministrado na Universidade de

Coimbra39

. Para o autor o momento de afirmao da farmcia enquanto saber

multidisciplinar aconteceu no sculo XIX, embora as condies estivessem a ser

preparadas desde o sculo anterior. Aqui assumiu especial importncia a revoluo

qumica de oitocentos associada, depois, a um conjunto de prticas mdicas.

Poderamos convocar outros grupos mais recentes que se relacionam com o

domnio da sade, como os tcnicos de cardiopneumologia, radiologia, diferentes

terapeutas, psiclogos clnicos, ou mesmo at o pessoal relacionado com a gerontologia.

Todavia essa reviso levaria demasiado tempo e teria pouco interesse para o objecto de

37

Cf. FREIDSON, Eliot (1978), La Profesin Mdica, Barcelona: Ediciones Peninsula.

Cf. CARAPINHEIRO, Graa (2005), Saberes e Poderes no Hospital Uma sociologia dos servios

Hospitalares, Porto: Edies Afrontamento/Centro de Estudos Sociais.

Quando falamos de ensino da medicina em Portugal devemos consultar obrigatoriamente o estudo

desenvolvido por F. A. Gonalves Ferreira (1990), Histria da Sade e dos Servios de Sade em

Portugal, Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian. 38

FREIDSON, Eliot (19