trajetórias na identidade profissional docente

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    Psic. da Ed., So Paulo, 33, 2 sem. de 2011, pp. 7-28

    Trajetrias na identidade profissional docente:aproximaes tericas

    Fatima Maria Leite CruzMaria da Conceio Carrilho de Aguiar

    O texto se prope a abordar o debate acerca da identidade profissional, bem comotece aproximaes com a identidade docente em sua insero no mundo produtivo,pela via da educao escolar. Como pressuposto, o desafio do(a) professor(a) saberquem o sujeito e quem o profissional requer a verificao de sua histria e conhecerquais as outras fontes de reconhecimento para se constituir e se reconhecer na suaidentidade profissional. A anlise relaciona a noo de identidade e de profissionalidade macroestrutura e suas repercusses na profissionalizao docente. Procurou-se, ainda,identificar o sentido dessa construo coletiva, os modelos de profisso que alimentamas aes e a identidade profissional docente nos diferentes contextos socioprofissionais.

    Palavras-chave: identidade profissional; identidade docente; educao escolar.

    Introduo

    O objeto de concentrao deste texto a identidade docente, cuja elabo-rao foi matizada pela reflexo a partir da reviso da literatura acerca da iden-tidade profissional, no mbito da sociologia das profisses; todavia, a construodos argumentos mostra-se em conexo com as explicaes acerca da identidadepessoal e social, na perspectiva transdisciplinar, envolvendo saberes da Psicologiaem suas contribuies Educao. A tentativa de buscar, no plano terico, aidentificao dos sentidos de profisso que ancoram as aes e as nuances dasprticas dos professores nos diferentes contextos, o que nos levou a enveredarnas teias scio-histricas dessa tessitura com o foco de anlise voltado para otrabalho, a carreira e a profissionalidade vinculada docncia.

    Adotamos o conceito de identidade como o reconhecimento de filiao dosujeito a um ou vrios grupos, junto com o significado emocional e de valorao

    ligado a essa filiao que envolve processos socioafetivos, cognitivos e valora-tivos que so implicados na organizao singular do sujeito em interao com

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    o ambiente social (Tadjfel, 1983). A partir do momento em que ocorre umavinculao com um grupo social, as pessoas tendem a pensar que esse grupo uma opo melhor do que qualquer outra, o que leva a uma distino positiva dogrupo, cuja funo manter a imagem ou autoconceito positivo de si mesmas.

    Nessa perspectiva, entendemos que compreensvel que a temtica daidentidade tenha sido central tambm nos estudos das profisses, porque asexplicaes relativas ao modo como o sujeito se constri so permeadas de polis-semia que precisam ser mais bem compreendidas na tica do mundo do trabalho.No movimento de explicitao, tm-se diferentes perspectivas tericas acercada identidade, comeando com os clssicos da rea (Erickson, 1976; Goffman,1985; Mead, 1972), assim como se tem, tambm, uma extensa investigao emngulos e/ou atributos, em particular, como analisados em Tap (1985); Lipiansky(1998); Larsons (1977); Parsons (1964); Starr (1982), entre outros.

    Em relao identidade profissional, a conceituao hbrida e eminterface de vrias reas do conhecimento, apresentando diferentes enfoques eenredos, embora ainda no decisivos, na medida em que permanece o desafiopara elucidar, de maneira mais objetiva, a dicotomia entrequem o sujeito e quem o profissional. A despeito do amplo leque de concepes tericas, entendemosidentidade profissional no sentido de mobilidade psicolgica, com mltiplasvariaes e flutuaes, cuja entropia (ordem-desordem) se reveste de uma esta-bilidade relativa, simultaneamente eivada por mudanas e permanncias.

    O parmetro inicial da vinculao grupal do sujeito a uma categoriaprofissional, o que encerra um sentido do fazer prtico, e tambm simblico,pois pertencer a um grupo implica compartilhar crenas, atitudes e viver relaesmediadas por uma carga valorativa e por percepes diferenciadas no prpriogrupo, em relao aos demais. Esta dinmica ocorre em funo de processos decategorizao e comparao social.

    Revisamos a literatura na rea da identidade profissional (Dubar, 1997;Lopes, 1993; Sainsaulieu, 1985) e adotamos uma abordagem psicossocial,interdisciplinar, ao mesmo tempo no sociologista e no psicologista conside-rando, inclusive, as crticas que no mbito da Psicologia disseminaram a ideia dapossvel diluio dessa categoria, a partir da globalizao e, mais recentemente,em funo da pluralidade oferecida no mundo tecnolgico e virtual. Nessadireo, inicialmente, percorremos o trajeto obrigatrio de anlise da temtica

    no mbito da Sociologia das profisses e a discusso conceitual da rea com suasamplas vertentes de explicao para os processos identitrios profissionais. Em

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    seguida, buscamos compreender o perfil identitrio dos professores em relao profissionalidade e apresentamos desde a ideia funcionalista das ocupaes ato sentido estritamente interacionista de profissionalizao.

    Entendemos que a pertinncia desse estudo terico se afirma, pois, na atu-alidade, tem-se ambiguidade valorizao/desvalorizao em relao docncia.Por um lado, tem-se positividade diante dos requerimentos de escolarizao dasociedade do conhecimento como requisito insero social, sobretudo produtiva,e, por outro, experimenta-se a fragilidade desses argumentos e processos, dianteda velocidade das mudanas conceituais, tecnolgicas, culturais e das incertezasque cercam os requerimentos advindos do mundo do trabalho e que repercutem

    no reconhecimento do que ser professor na atualidade.Identidade pessoal e social

    No mapeamento dos autores clssicos do campo conceitual da identidade,uma ideia central e consensual a noo dealteridade que firma a necessidade dooutro como essencial para a existncia. Dessa maneira, parece-nos que a identidadetem uma funo separatista e esta fundamenta prticas de excluso/incluso,em suas vrias expresses. Algumas especificidades do arcabouo terico da

    rea sero apresentadas por blocos temticos, nos quais se indicam a teoria e osautores que fundamentam os principais construtos destacados.

    Comeamos com a anlise da Teoria da Identidade Social que nos apresentao conceito de identidade a partir do desenvolvimento de processos decategorizaosociale que podem resultar emesteretipos sociais. A ideia de comparao e dediferenciao social que, por sua vez, implicam o reconhecimento da pertena social.Ou seja, o sentimento da pertena do sujeito ao grupo que constitui a noodegrupo psicossociale seus sentidos de endogrupo, os que pertencem ao seu grupo,e exogrupo, os que no pertencem. A noo de identidade pessoal corresponderiaaos padres de comportamento que so adotados pelo sujeito, revestida dosatributos introjetados e/ou modelados na conjugao de foras e tenses dasrelaes sociais; influenciada pelo reconhecimento da pertena a determinadosgrupos ou categorias e condicionada ocupao de um lugar social pelo sujeito.

    Ento, os grupos de pertena social e todas as suas formas de expresso culturas, papis, cdigos de diferentes ordens e naturezas seriam o suportede referncia da identidade do sujeito em sua insero realidade. Nessa pers-pectiva, a identidade pessoal seria a base de formao da identidade social, que

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    expressaria o outro, ou seja,quem ele , e ao mesmo tempo, pelos atos de pertena,dizquem ele quer ser. Deste modo, a identidade pessoal expressa o conjunto derepresentaes de si, tanto nos aspectos fsicos, emocionais, morais, sociais eculturais, quanto no reconhecimento de si, pelos prprios sujeitos e pelo reco-nhecimento por seus pares.

    Convm situar que a proposta de sociedade da modernidade, com ocapitalismo industrial, contribuiu com a noo do eu como uma construocircunstanciada, implicada de imbricaes do social, pois a subjetividade no atemporal ou descolada do bojo social e, em sua base epistemolgica, repousauma inscrio tica, esttica, poltica, cognitiva (Birman, 2000). Portanto, a

    noo do sujeito scio-histrico-cultural impregnada de um amplo universode valores, de signos e de smbolos, cuja constituio relacional e interativa nasprticas sociais se relaciona aos artefatos culturais e aos seus significados.

    Esta produo material e simblica da noo de alteridade um processoiniciado na famlia e transformado na escola, o que revela a identidade comouma categoria poltica, revestida de relaes de poder e de produo simblica(Tap, 1985) que definem seus elementos de unicidade e de permanncia. Nestadinmica, se constri uma articulao entre identidade pessoal e social, e em cuja

    composio so mesclados aspectos culturais e psicolgicos (Jodelet, 2004). Nonovo modelo de indivduo-cidado so articulados interesses intrapessoais, o eu,bem como o reconhecimentodo eu e da diferena, na composio dos processossociais (Goffman, 1985) e dos interesses materiais e utilitrios.

    A este respeito, Berger e Luckmann (1983) afirmam que a viso do ns seestrutura segundo o mosaico decomo o outro nos v, cuja construo organizadaem trs momentos:exteriorizao, objetivao, interiorizao, processos nos quaisconcorrem elementos verbais e no verbais das interaes humanas, alm de

    relaes de poder e da ao poltica entre os grupos.Em uma abordagem psicolgica, Erikson (1976) nos apontou que os

    processos identitrios surgem como mecanismos de introjeo (apropriao dooutro) e de identificao (escolha de outros significativos), e, nesta configura-o, instala-se a relao sujeito-contexto social. Tal concepo se assemelha proposta por Goffman, na noo de identidade psicossocial, gestada na articulaodos componentes subjetivos e sociais, sendo mediatizada pelas representaesnas prticas sociais da cultura. O

    outro social quem oportuniza a diferenciao

    e, ao mesmo tempo, a semelhana, o acesso ao simblico e ao campo metafrico,

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    pois est ausente do sujeito. Assim, este processo de subjetivao/diferenciaotem como raiz uma construo e, reciprocamente, uma excluso, o no eu,para que haja a conscincia do eu.

    Em um sentido mais interativo nos processos de socializao, Goffman(1985) adotou a metfora da linguagem cnica na identificao prvia do lugardo outro, nos diferentes grupos sociais, e props a teoria dos papis sociais quepressupe a reorganizao da identidade no confronto do sujeito com os outrosgrupos. Na teoria do Interacionismo Simblico, identidade significa o conceitode si, a representao de um objeto que ausente em si mesmo e se constituina interao, pois a atividade que denomina o personagem e este, por suavez, cria a prpria vida. Assim, identidade self(Mead, 1972), construda porum conjunto de representaes do sujeito sobre si prprio e que lhe responde apergunta: quem tu s?.

    Sem determinismos infecundos, identificamos-nos com a Teoria da identi-dade social, em que Tadjfel apresenta o sentimento de pertencimento ao grupo,que confere um estatuto scio-histrico, mas tambm se considera uma lgicapsquica (1983, p. 261). Tadjfel critica e prope a anlise de estudos de relaesintergrupais que investigam como as pessoas se inter-relacionam em suas cate-gorias sociais intergrupais nacionalidade, raa, classe, ocupao, sexo, religio,pois as identidades sociais se relacionam a estas categorias; entretanto, h tam-bm processos socioafetivos, cognitivos e valorativos implicados na organizaodo sujeito e do ambiente social. Tadjfel se contrape ao paradigma do grupomnimo e ideia do conflito para produzir a diferenciao grupal, afirmando queno precisa conflito para o grupo se constituir, considerando-se que o sujeito sefilia, ao mesmo tempo, a um ou vrios grupos, para os quais atribui diferentessignificados emocionais e valoraes.

    Entendemos, assim, que a filiao do sujeito ao grupo pode contribuirpara positivar a identidade social, sua filiao simblica e psicolgica, e pode serretirada quando o grupo no contribui; e quando a negatividade impossvelde ser retirada, o sujeito a reinterpreta. Ou seja, h um esforo para melhorar aposio do grupo ou reinterpretar seus atributos e significados na comparaocom outros grupos (Del Pretto & Del Pretto, 2003).

    Na teoria da identidade de Tadjfel, o sujeito aprende com o coletivo dasociedade, nos permetros e nas circunstncias de um tempo histrico e, tambm,

    com os grupos aos quais pertence: o pas e a cidade de nascimento, a famlia, avizinhana da residncia, a escola que frequenta, o ambiente de trabalho e os outros

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    espaos sociais. Assim, entendemos que o cerne da identidade a plasticidade nomovimento das relaes entre sujeito e mundo, na simultaneidade e na contradi-o, em nveis dinmicos e inter-relacionados que conjugam a pessoa, o processo,o contexto e o tempo, como apontado na viso ecolgica de Broffenbrener (1996).

    Apreendemos que esta perspectiva tem vinculaes com a Teoria daComparao Social (Festinger, 1954), que veicula uma tendncia das pessoaspara avaliar as suas prprias opinies e aptides mediante comparao com asopinies e aptides dos outros; e que a tendncia para se comparar com o outrodiminui medida que aumenta a diferena entre o eu e o outro, tanto nas opi-nies como nas aptides, o que levaria preferncia para aqueles cuja aptido

    ou opinio estejam mais prximos (Doise, Deschamps & Mugny, 1980). Outraconcepo relacionada a Teoria da categorizao social (Allport, 1962), que situaos processos de categorizao de objetos, pessoas e acontecimentos, formandoclasses que se tornam guias das atividades dirias. Neste caso, o consenso sefirma a partir de prottipos construdos na comparao e que geram, por suavez, processos de incluso/excluso simplificadores das prticas cotidianas e, porconseguinte, legitimadores da criao de esteretipos.

    Uma sntese possvel destes enfoques distintos acerca da identidade de

    que [...] nossas vidas se desenrolam dentro de uma complexa trama de reco-nhecimentos e no reconhecimentos, pois somos aquilo que os outros crem quesejamos (Berger, 1976, p. 111), e na identidade profissional, algumas dessasreferncias se materializam, como comentaremos a partir desse ponto.

    Identidade profissional e o mundo do trabalho

    Tematizamos a noo de identidade profissional com o apoio da revisohistrica da literatura de alguns autores que discutem a sociologia das pro-

    fisses e cujas nfases mais recorrentes se direcionam para focos diversos: a)relao identidade e profissionalizao, perspectiva econmica, com a organizaodas experincias e exigncias ocupacionais do mercado de trabalho; b) relaoidentidade e carreira, perspectiva de status e legitimidade social, com as profis-ses delineadas a partir de suas repercusses; c) relaoprofisso e estrutura socialde classes, perspectiva da categoria trabalho, na sociedade capitalista; d) relaoidentidade profissional e ideal de servio, perspectiva do ideal na profisso, antagnica perspectiva de profissionalizao, com o sentido de autonomia relativa dasprofisses economia e s classes sociais.

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    Retomando os clssicos da sociologia, vimos em Durkheim (2002) umdos pioneiros nos estudos sobre as profisses, a dissociao entre trabalho econjuntura macrossocial, no recorte no econmico, opo decorrente de suadefesa da solidariedade e do consenso como meios de fortalecimento da coesode uma sociedade, segundo ele permeada pela dade, normalidade e patologia.A construo do sentido de profisso se daria por uma legislao prescritiva dedireitos e de obrigaes, ou seja, a regulao social que diferenciaria a profissode uma ocupao, vista como utilitria (solidariedade mecnica), sem o sentidocompartilhado de corporao profissional. Por conseguinte, o agir na profissoseria pautado, nesta perspectiva, por uma moral definida pelo grupo, a quemcaberia a diviso de atividades, de funes e de tarefas, alm do controle porseus membros.

    Nesta teorizao, a diviso social do trabalho diferenciada por profisses decomplexidades diversas oportunizaria a coeso social, pois o exerccio profissionalteria o prprio grupo no papel orientador da categoria, socializando para os seusmembros os requisitos formais e tcnicos da rea (solidariedade orgnica), bemcomo os valores da conscincia coletiva aspectos essencialmente morais quesustentariam ofazer profissional, bem como a prpria sociedade. Na sua buscapor um mtodo sociolgico preciso, Durkheim enfatizou de modo equivocadouma moralidade integradora da sociedade, e, nesta direo, analisou as profissescomo a possibilidade de saneamento da crise de valores, a partir de princpiosde organizao e de hierarquizao dos grupos, pois esses partilhariam valores econcepes prprias, o que regeneraria em sua concepo o papel anteriormenteocupado pela famlia.

    A ideia da identidade social forjada pelo vnculo entre os membros deum mesmo trabalho e que germinou o sentido poltico de organizao das pro-fisses em corporaes, inicialmente em sindicatos, por meio de um movimentoque foi impulsionado no ps-guerra, a partir da dcada de 1940, e que pode serconsiderado o embrio dos primrdios da noo de profissionalidade, conformeBarisi (1982). Assim, compreendemos que o foco para a sociologia das profissesno apenas o sentido pragmtico dos ofcios e a exigncia de competnciasespecializadas de uma rea. A profisso significa, alm do pragmatismo, a divul-gao de possibilidades morais, certas unidades sociais e a ocupao de funesintegradoras, como tambm visto por Chapoulie (1973).

    No enfoque de Weber (1974), a relao da profisso com a identidade tangencial, considerando-se que a matriz de anlise a preparao do sujeito na

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    sociedade industrial para o conhecimento especializado, aexpertise que justifica-ria a diviso de funes e cargos diferenciados, mas que no prescinde de umaautoridade administrativa, um status e uma diferenciao, inclusive no exerccioprofissional cotidiano.

    Nos autores mais contemporneos, vimos que emergiu a nfase das pro-fisses naperspectiva econmica, como no estudo de Halliday (1995), ao demarcara trajetria profissional de advogados e perceber as singularidades das esferasdo mercado, do Estado, da sociedade civil e da comunidade, para que se tenhaa compreenso da vida profissional. Na relao da profisso com o mercado, oestudo afirma que h o controle e o monoplio profissional de determinadasinstncias, e que, no plano do Estado, traado o cenrio de cooptao do pro-fissional no bojo social; emrelao sociedade civil, a profisso refletiria a ordemestratificada desta sociedade. Na perspectiva ideolgica, a profisso se configuracom uma marca especfica, uma comunidade, concepo pautada na ideia deinsero social dos profissionais e obrigatoriedade dos benefcios pblicos noexerccio profissional.

    Parsons (1964) apresentou aprofisso na perspectiva ideolgica de um benefciocoletivo, e a dedicao ao trabalho foi denominada, por ele, como ideal de servio,cujo sentido de altrusmo independentemente do retorno financeiro. No quese refere identidade profissional docente, o ideal de servio remete docnciacomo sacerdcio, compreendida como benefcio ao coletivo, independente daremunerao que confere dignidade ao trabalhador em uma sociedade de classese de trabalho remunerado.

    A profissionalizao ocorreria quando da ocupao de determinados postosfuncionais, por sua competncia especial, havendo, ainda, certa autonomia dosprofissionais relacionada ao sabere aofazer. Ao mesmo tempo, haveria retornosocial com exclusividade para este segmento profissional, porque o grupo quese encarrega do controle sobre a formao inicial e o acesso profisso, e soos prprios pares profissionais que avaliam o trabalho que realizado em suasrespectivas reas. Assim, em uma profisso, o conhecimento delega uma cotade poder aos seus usurios, pois o saber especfico constitui o sentido de profis-sionalidade, bem como cria a possibilidade de controle sobre o desempenho dotrabalho de outros integrantes da mesma categoria.

    A ideia daprofisso como comunidade envolve a dimenso simblica de perten-

    cimento, partilha de identidade e experincias comuns, o que traz homogeneidadee compartilhamento de valores e, em decorrncia, certo corporativismo, apontado

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    por Russo (1993), Bonelli (1995) e Barbosa (1993). O sentido profissionalenvolve hierarquia social na permisso de acesso aos membros de uma profissoe, ao mesmo tempo, exclui os que no so credenciados. O grupo eleito partilharepresentaes que so validadas tambm pela sociedade, diante da coeso, e seconstitui como um grupo profissional.

    Neste debate, Chapoulie (1973) nos apresenta a anlise dos grupos pro-fissionais vistos de modo autnomo, sem referncia posio dos profissionaisna estrutura social e/ou nas relaes destes com outros grupos. Assim, so asprprias demandas e as caractersticas sociais dos consumidores dos serviosque geram o statussocial, e o papel do conhecimento prprio de uma rea oeixo da posio dos grupos na estrutura profissional.J para Barbosa (1993), aprofissionalizao um processo pelo qual certas competncias so delimitadasna diviso do trabalho e monopolizadas por determinadas categorias de tra-balhadores. Assim, o monoplio pela constituio de uma reserva de mercadoseria razoavelmente fechado e protegido, em uma dada rea, o que seria a marcadistintiva das profisses como grupo social.

    Abbott (1988) situa que saber poder, e o grau de abstrao do conheci-mento de uma dada profisso controla, traz o monoplio ou a jurisdio sobreessa rea. Da mesma maneira, Freidson (1996) e Larson (1977) enfatizaram essecontrole do conhecimento de uma rea de saber como requisito para a organiza-o de um grupo profissional e defenderam que o monoplio do conhecimento assegurado pela formao continuada, como debate permanente e historica-mente para a profisso docente (Aguiar, 2006).

    Para Larson (1977), os pilares do poder, do sabere da qualificao so aspropriedades modernas de uma profisso, pois o domnio sobre uma rea quepermite a ocupao de funes especializadas e contribui na distribuio desigualdas competncias e dos direitos no mundo do trabalho. Para a autora, existea construo de um iderio de que os especialistas se voltam ao atendimentoprofissional das elites, enquanto os prticos voltar-se-iam ao atendimento dasmassas. Assim, os saberes produzem diferenas nas profisses, cuja legitimidadetem como recompensa os aspectos econmicos e sociais.

    O sentido de profissionalidade aparece como projeto coletivo de mobili-dade social articulado em torno de um determinado tipo de conhecimento, e omonoplio do saber, portanto, permitiria o controle de um mercado especfico

    constituindoexpertise, ocupando statusno sistema de estratificao, justamentepelo fato de deter conhecimentos especiais e qualificao diferenciada. Na

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    perspectiva do poder que o conhecimento confere, o trabalho assalariado provo-caria declnio profissional, tendo em vista que se confrontam autonomia tcnicaversus controle burocrtico.

    Nesta perspectiva, a legitimidade social de uma dada profisso seria decor-rente da implantao de umethos cientfico e da construo de uma imagem deautoridade da rea, aexpertise tcnica. Por sua vez, o sentido de comunidade pro-fissional ocorreria no compartilhamento do saber, na luta coletiva pelo monopliodo saber, e pelo poder na mediao dos lugares na diviso social do trabalho enos grupos sociais. Ainda nesta direo, as profisses ocupariam uma posio demercado, especialmente favorecidas, e, mesmo assim, sofreriam impactos, pois

    a dinmica de insero e de permanncia profissional seria relacionada ao nvelsimblico e ao nvel concreto das foras sociais que a valorizam/desvalorizam.Os prprios profissionais que produziriam este sentido contraditrio, pois suamercadoria inatingvel, e eles teriam de ser adequadamente formados e socia-lizados de modo a oferecerem seus servios ao mercado (Larson, 1977).

    Tal exigncia permite-lhes exercitar a persuaso ideolgica, dominar certouniverso simblico e lidar com o permanente cuidado em eliminar os concor-rentes. A respeito do poder na estrutura social, pode-se dizer que a profissiona-

    lizao seria, ento, um fenmeno pertinente s desigualdades sociais e lutapor prestgio, para alguns.

    No estudo de Starr (1982), emergiu o foco na dimenso institucional, almdos aspectos cognitivos, cujo poder estaria subordinado dimenso social comoum processo histrico-estrutural. A profisso aparece, assim, como autoridadecultural que demarca suas credenciais, o cabedal de conhecimento que encerrae a dimenso tica do exerccio. A profissionalidade seria, ento, uma forma desolidariedade, fonte de significados na regulao de crenas, em que o poder

    econmico e as influncias polticas responderiam pela construo da autoridadeprofissional de determinada rea, como dimenso contextual que sofre as condi-cionantes polticas, econmicas, sociais, culturais e organizacionais.

    Em ambas as dimenses, social e cultural, entendemos que se organiza-riam trs categorias de profissionais, dotados de distintos poderes: oprofissionalpesquisador, o profissional tcnico e o profissional administrativo. Com isso, pressupe--se unidade interna nos grupos, pois os sistemas de solidariedade nas profissesseriam fundados na partilha de elementos comuns. Isto significa que o prpriogrupo que dirige os contedos e as metodologias, os marketabilities na imposio

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    de seu lugar no quadro das necessidades sociais ou como autoridade cultural.Esta diferenciao geraria, no interior da categoria, modelos de carreira a seremseguidos, sendo a competncia o valor de referncia.

    Vale situar que, na legitimao dos pares, parece ser importante a visi-bilidade de traos comuns na profisso: exatamente para que se configure umsentido de carreira que identifica o grupo, este comparado com outros grupos.Outras tendncias tericas nas explicaes mais contemporneas da sociologiadas profisses acerca da identidade docente sero comentadas a seguir.

    Tendncias atuais nos estudos das profisses

    e implicaes na profisso docente

    Na dcada de 80 do sculo passado, no bojo do mundo do trabalho emmudanas cleres, na democratizao do pas e nos avanos das tecnologias, odebate da sociologia das profisses no Brasil passou a girar em torno da hierarquiaocupacional e das tendncias desprofissionalizao, proletarizao e burocratizao.Naquele momento histrico, a discusso sobre as profisses recaa nas tesesda desprofissionalizao e da proletarizao que analisavam as transformaes

    nas relaes sociais de trabalho a partir de mudanas externas; com a profissodocente, no foi diferente.Naquele momento, mudou ocorpus das profisses, diante do cenrio poli-

    morfo da vida contempornea, inclusive nas ferramentas operacionais, e, no coti-diano profissional, estas repercutiram tambm nostatus profissional. Uma dessasrepercusses foi o sentido da desprofissionalizao docente, por uma parte, diantedo uso massificado das tecnologias e das informaes, gerando fragilidades naconsistncia e no monoplio dos conhecimentos formais, historicamente reduto

    de poder dos professores. Surgiram grupos diversos apresentados como autori-dades pedaggicas, desde trabalhadores sem a titulao da categoria, emboraofeream seus servios como profissionais da educao, ao voluntariado na escola.

    Esta prtica nos parece danosa profissionalizao, pois, segundo Freidson(1998), os profissionais so aqueles que tm saberes e competncias que dealguma maneira os separam de outros trabalhadores, sobretudo no que se refere atitude de compromisso e preocupao com seu trabalho. Tal dedicao isenta acategoria do controle social, mesmo quando existe tambm uma autorregulaopela associao profissional, na medida em que h autogesto do trabalhador no

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    investimento, na qualificao e no desempenho de sua profisso. Ainda segundoo autor, so exigncia contempornea, dois princpios ativos no trabalho: o orga-nizativoadministrativo e o ocupacional, e ambosrequerem escolarizao.

    Desta maneira, no interior das profisses, existiria uma classe de conhe-cimento e outra classe, administrativa. No caso dos professores, as prticas deensino e de pesquisa preservariam o sentido profissional, diante da contnuaproduo de conhecimento, e, ao mesmo tempo, esta diviso em classes gerariauma hierarquia interna nas prticas e nas relaes sociais de trabalho. Situaesde tenso e de ressentimento, por exemplo, existiriam a partir da interpretaode que a classe que produz o conhecimento est em um patamar de superioridade

    em relao aos que o executam. Nesta diferenciao, professores que atuam naeducao bsica e os que atuam na educao superior se situariam em diferentesnveis, como se observa na hierarquizao do cotidiano.

    Desta forma, a profisso assume um sentido definidor e organizador dosgrupos sociais, e a identidade profissional tem caractersticas peculiares, taiscomo:articulao com o contexto e centralidade no conhecimento, orientao coletivista daprofisso, exigncia de regulao e de controle. Esta viso considerada funcionalista,e nela, as profisses so sistemas de solidariedade, cuja identidade se baseia nacompetncia tcnica de seus membros, que adquirida nas instituies educa-cionais e cientficas. a profisso que orienta os critrios que garantem a suacredibilidade, quais sejam: treinamento tcnico formal, validao institucionalda adequao do treinamento e da competncia do indivduo treinado; domnioda racionalidade cognitiva; habilidade especial em determinada rea, e o controleda profisso sobre o uso socialmente responsvel no sistema cultural.

    Em sentido contrrio a esta normatizao, Freidson (1994) cita o trabalho

    de Barber (1982), que enfatizou o sentido da solidariedade nas profisses deiguais, sem hierarquia e comandos formais que emitissem diretrizes detalhadase/ou que aplicassem um rgido controle sobre os demais profissionais. Nestesentido, os membros de uma profisso so controlados pela prpria conscincia,se defendem de ataques externos e se protegem como meio de afugentar aconcorrncia (Freidson, 1986; Larsons, 1977; Parsons, 1964). De acordo comParsons (1964), as aes de acordo com o ideal de servio so distintas dos ideaisdo mercado e do padro associativo, portanto diferentes dos requerimentos nasorganizaes burocrticas e das orientaes para o mercado. O ideal de servio

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    e a autonomia so sinais diferenciadores das profisses em relao aos demaistrabalhadores, e os processos de burocratizao e de proletarizao contrariama natureza das corporaes profissionais.

    Para Freidson (1986), o sentido de proteo, no interior de uma dadaprofisso, tambm uma expresso da solidariedade profissional, caractersticaque levaria seus componentes a evitar crticas pblicas a um colega de profisso,mesmo quando existe a presso da opinio pblica e da tradio, como citadopor Carr-Saunders e Wilson (1933). O autor questiona, ainda, se h autonomiaquando no h autonomia financeira, pois o profissional sem o controle da suaproduo experimenta o medo da concorrncia e submetido ao controle deoutros. Assim, a relao de emprego tipifica a profisso, e, neste caso, atuar naesfera pblica promove o sentido da autonomia e, na esfera particular, caracterizao emprego e a situao de subalternidade.

    Na retrospectiva apresentada por Bonelli (1995), vrios estudos revelamestes diferentes focos, e entre estes, pinamos para referenciar o debate maisatual, os que nos remetem reflexo acerca da profisso docente: a) profissocomo reflexo da ordem social no trabalho (Estevam, 1968); b) interferncia da questode gnero na organizao do trabalho (Bruschini, 1978, que analisou o papel damulher reproduzido nas profisses de enfermeiras, engenheiras e professoras,e encontrou identidade masculina da profisso das engenheiras e identidadefeminina nas enfermeiras e professoras); c)antropologia das carreiras e a burocraciapblica na constituio de uma estratificao social(Leeds, 1965); d)proletarizao domagistrio feminino, a partir de 1950 (Pereira, 1960).

    No trabalho docente, em particular, Schwartzman e Balbachevsky (1997)analisaram a docncia superior e encontraram estratificao de acordo com anatureza das atividades, da qualificao, das identidades e do tipo de institui-o. Naquela ocasio, encontraram um sentido de proletariado nos professoresque atuavam nas instituies privadas e de mbito estadual, enquanto os queatuavam nas universidades pblicas apareceram como modelos acadmicos. Aheterogeneidade dos docentes destacava-se segundo a posio de prestgio ocu-pada, situao que foi analisada por Balbachevsky em 1995, quando encontroua identidade tipificada pelo contexto institucional.

    Na anlise dadesprofissionalizao docente, Haug (1973) argumentou acercada perda de prestgio social e respeito, realou a profisso como um fenmeno

    cultural e poltico, passvel de suas influncias, sobretudo diante da plasticidadedos processos e das dinmicas de mudana nestas reas, cujo rebatimento em

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    determinada profisso pode provocar perda do monoplio sobre um dado corpode conhecimento. A este respeito, prope que o lugar social e o statusde pres-tgio de uma profisso so decorrentes de vrios fatores conjugados: o corpo deconhecimento, a imagem pblica positiva, o sentido altrusta do fazere a autonomia emrelao s regras de trabalho. Essa posio bastante diversa da tese defendida naanlise de tendncia proletarizao, como se v adiante.

    Profisso docente e proletarizao

    A proletarizao explicada pela corrente marxista e desconsidera os crit-rios tcnicos ou cognitivos da profisso, relacionando-a como objeto subordinado

    s classes sociais, pois nesta concepo o trabalho uma categoria ontolgica,portanto constitutiva dos sujeitos e da formao dos grupos profissionais. Maisespecificamente, a discusso sobre profisso relacionada luta da classe mdia,que compartilharia o trabalho nas categorias de trabalho intelectual e manual.Esta posio contrria ao universalismo e tese do ideal de servio, pois, nestaperspectiva de classe, existiriam de fato diferenas de atendimento, a partir dosbeneficirios ou usurios, que seriam atendidos por uma categoria profissional,e esta fragilidade, tcnica e tica, constituiria a base da autonomia docente.

    Assim, os profissionais exerceriam um poder e ocupariam um lugar nahierarquia social, a partir de suas relaes com o contexto macrossocial. Nestaperspectiva, a escola teria o papel justificador desta hierarquizao na medidaem que certifica a propriedade sobre o saber, fundamenta as hierarquias e cons-tri um sentido de meritocracia. Nesta construo, a ideologia teria a funode garantir a coeso social, atravs dos mitos da vocao, ou a criao deexpectativas de carreira, e as prticas de socializao profissional que legitimamo lugar da profisso na estrutura social e definem a especificidade da profisso.

    Na relao entre profisso e classe, pesquisas educacionais apontam nveishierrquicos nos diferentes contexto de escola, se pblica ou privada (Cruz,2008), em um claro contexto de apartao social, a partir da pertena social dosestudantes, se oriundos das camadas populares ou filhos da elite. Nesta esteira,a profisso funcionaria como um ator coletivo e, portanto, definidora das for-mas de organizao social; atua como um padro de desigualdade em confrontocom outros, e exerce, assim, um sentido de luta, hegemnico em certas pocase lugares, e assume formas diferenciadas de apropriao do capital cultural,integrando-se a outros agentes e espcies de capital (Bonelli, 1993).

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    O capital cultural entendido, aqui, como uma relao social que inclui,alm do saber, o prprio nome da profisso, a sua representao, a disposiodos agentes, sendo, tambm, um objeto de luta. Neste enfoque, a tese da pro-letarizao defendida por Braverman (1977) relacionou o trabalho assalariado ea condio proletria do trabalhador, e enfatizou os fatores econmicos e orga-nizacionais das relaes de trabalho. Para Poulantzas (1975), existem diferentesposies de classe dentro de uma profisso, o que provocaria a queda de statusda categoria profissional em decorrncia de alguns destes nveis. Atualmente,existem novas relaes entre o conhecimento, o poder e as profisses, e os nveismais subalternos so submissos lgica da empresa ou organizao a qual o

    profissional pertence, e tal situao geraria mudanas nos cdigos de tica daprofisso.Neste sentido de dinamicidade das profisses, revisitamos Bourdieu (1996)

    e compreendemos que a profisso tem uma noo de campo, no estanque edepende da correlao de foras que atua em cada momento histrico, pois [...]as lutas que tm lugar no campo intelectual tm o poder simblico como coisaem jogo, quer dizer, o que nelas est em jogo o poder sobre um uso particularde uma categoria particular de sinais e, deste modo, sobre a viso e o sentido do

    mundo natural e social. Desta forma, os agentes criam o campo profissional,produzem representaes do prprio mundo e do mundo social, e especificamsua identidade social.

    De acordo com Barbosa (1993), os profissionais tm um projeto de mundosocial, ocupam um lugar na estrutura social, deixam suas marcas na organiza-o e na representao da diviso social do trabalho, criam hierarquias entre ostrabalhos e entre os grupos que os realizam, aplicam modelos de profissionaliza-o, enfim, traam uma ao coletiva na direo de efetivar suas concepes de

    mundo. O reconhecimento profissional dependeria, ento, da legitimidade dascategorias que identificam o sujeito e da legitimidade de saberes e de compe-tncias associadas sua identidade (Dubar, 1997), como discutiremos adiante,em relao profisso docente.

    As relaes da profissionalizao e a identidade docente

    No campo emprico, a necessidade de se identificar as condies da inten-o cotidiana no trabalho ocorre para alm da pertena socioprofissional, poisse consideram os elementos de formao inicial, da experincia e da histria

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    de vida profissional construda, entre outros, e tambm alguns dos fatores querepresentam fontes de poder. Sainsaulieu (1985) destaca que a vida no local dotrabalho tem uma importncia decisiva na formao de normas da relao que seestruturam em modelos culturais e que diferentes situaes de trabalho podemconduzir a diferentes normas dessa relao.

    Ainda este autor observa que a experincia de relaes nas organizaes to grande e durvel que seus efeitos ultrapassam os locais de trabalho, posto queexista uma relao entre o trabalho organizado em relao s estruturas men-tais e os hbitos coletivos dos indivduos. Por exemplo, a atividade profissionalinfluencia, profundamente, a atividade fsica do sujeito. Estabelece-se, assim, aligao entre o sistema social que mediatizado pelo trabalho e o sistema depersonalidade, mais precisamente a identidade dos sujeitos.

    Em outra perspectiva terica, uma abordagem psicolgica, tem-se oconceito de identidade de Erikson (1976), em que a busca de identidade umdesejo constante do sujeito em ser reconhecido pelo outro. A identidade comoprocesso de construo implica que as identificaes primitivas deixam de serdominantes e o sujeito reconhecido pela sociedade. Ter uma identidade seria,portanto, constituir-se como sujeito, diferente do outro e reconhecido como tal, ecompreender a construo identitria e a imagem de si assegura funes essenciaispara a vida individual e constitui um dos processos psquicos na vida adulta.

    Na concepo de identidade, Lipiansky (1998) a considera como a repre-sentao da prpria existncia em relao com o mundo resultando em umprocesso complexo que une, estreitamente, a relao consigo mesmo e a relaocom o outro, como tambm um fenmeno dinmico que se desenvolve ao longode toda a existncia. Compreendendo a identidade como um dado passvel demudana construdo num processo historicamente situado, a profisso docente,como tantas outras, surge, num dado contexto e momento histricos, como umaresposta s necessidades que so colocadas pelas sociedades, e, a partir destas,adquire estatuto de legalidade.

    Com este sentido, consideramos o foco terico de Dubar (1997), que consi-dera a identidade profissional articulando-se entre duas transaes, uma internaao indivduo, e a outra externa, entre o indivduo e as instituies com as quaisele interage, diferenciando-se, da, identidade para si e identidade para o outro,identidades que, mesmo sendo inseparveis, articulam-se de forma problemtica.

    Esta identidade docente consolida-se, tambm, pela representao que cadadocente constri acerca de sua prtica; que confere atividade docente no seu

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    cotidiano com base em seus valores; na sua maneira de situar-se no mundo; nasua histria de vida; angstias, saberes e anseios; no sentido que tem em sua vidao ser docente; como tambm, nas relaes que estabelece com outros docentes,nas escolas, nas universidades, nos sindicatos e em outros grupos sociais.

    Para Correia (1991), as identidades docentes so contingentes eenvolvem-se num processo complexo de relaes do grupo profissional comum conjunto de espaos sociais, atravs dos quais se produzem e reproduzemdeterminadas relaes: com os saberes que lhe so especficos, com as condiessimblicas e imaginrias que tendem a definir sua especificidade profissional,com o contexto scio-tcnico-organizacional do exerccio do trabalho, assim

    como com a natureza das relaes que mantm com o Estado, com os pais, comos alunos, com as comunidades, entre outros. Logo, a produo da identidadeprofissional est ligada relao estabelecida com as instituies empregadorase s transformaes produzidas nas relaes que so mantidas com os sistemaseducativos, o que interfere no processo de implementao, desenvolvimento eextenso dos sistemas de ensino modernos e na produo dos docentes comogrupo profissional.

    A compreenso da identidade docente est relacionada, ainda, s repre-sentaes dos grupos de pertena, sexo, idade e contextos de ocupao, que sotraduzidos nos seus modos de ser e de saber particulares (Lopes, 1993). A crise deidentidade docente, nesta perspectiva, enquadra-se na fase atual de transformaode paradigmas nas sociedades ocidentais, a qual tende a desconstruir definiestradicionais de saber e de ser pessoa, e que passa a requerer novos modos de sere de saber. A autora considera, ainda, a importncia dessas duas dimenses nasdefinies da identidade docente, como tambm entrev que a mudana pode

    ser mais fcil a partir da maneira de ser.Assim, o sentimento de pertencer a um grupo no se d somente em situaes

    objetivas de pertencimento que segue uma outra lgica: psico-lgico. A noode grupo psicossocial permite a identificao com grupos considerados marginais,conduzindo assim possibilidade de que laos de solidariedade venham a ser esta-belecidos, fator fundamental para aes afirmativas [aes de contra-poder].Neste caso, a profisso docente se transformaria construindo novas caracters-ticas dessa identidade docente para responder s novas exigncias da sociedade(Pimenta, 1996). Conforme a autora, a identidade profissional docente constri-se

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    baseada no seu significado social, na reviso das representaes sociais da profis-so, na ressignificao das tradies, como tambm na reafirmao de prticasque so consagradas culturalmente e que continuam significativas.

    Prticas essas que resistem s inovaes porque so repletas de saberesvlidos s necessidades da realidade, imersas no sentido tico da formao queem essncia voltada para a humanizao, mesmo que a realidade demandeatribuies antagnicas a este sentido emancipatrio.

    Este sentido processual da identidade docente se atualiza, permanente-mente, seja quando so protagonistas na reflexo sobre essa prtica, seja quandoem coautoria so participantes das pesquisas cientficas na rea educacional,

    ou ainda, quando sistematizam e teorizam os saberes das experincias tecendonovos construtos, e, nessas interfaces, constroem o sentido da docncia comoo do arteso do conhecimento e do desenvolvimento humano, pela via da edu-cao escolar. Nesse contexto, segundo Aguiar (2004), os docentes constroemrepresentaes, adotam posturas e possuem intencionalidades que se identifi-caro com o jogo social institudo, pautando-se de acordo com a presso dasconformidades sociais e confrontos e/ou contradies das instituies sociais/educacionais e nesses constri seus laos com a escola, com os estudantes, com

    a profisso, sua identidade, enfim.

    Consideraes finais

    Na discusso pedaggica comprometida com a profissionalizao docente,a formao se apresenta como formao inicial e continuada, cuja identidadeprofissional se estrutura numa perspectiva ampliada. O sentido dessa formao crtico, significativo, e a pertena ao grupo professor (Dubar, 1997) aponta paraum compromisso social que se expressa: na interao pedaggica qualificada,

    na efetivao de prticas que contribuam na consolidao de uma sociedadedemocrtica e na oportunidade cotidiana de posicionar-se a favor da dignidadehumana, pela via do enfrentamento das desigualdades e da excluso social naescolarizao, em qualquer nvel de ensino.

    Diante de tal pluralidade de aspectos envolvidos na tessitura da identidadeprofissional docente, instiga-nos compreender: quais os sentidos de profissoque os professores compartilham? Quais as nuances da identidade profissionaldocente nos contextos de sua ao? Qual sentido da ao coletiva dos docentesest sendo construda?

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    25Psic. da Ed., So Paulo, 33, 2 sem. de 2011, pp. 7-28

    Certamente, no esclareceramos tais indagaes exclusivamente no nvelterico. Todavia, as diferentes perspectivas estudadas e as reflexes que estas sus-citam referenciaro os estudos empricos que estamos desenvolvendo, assim comopodero subsidiar a base conceitual de outras pesquisas, por outros professores.

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    Abstract

    The paper aims to address the debate about the professional identity as well as describe

    approximations with the teachers identity in its insertion in the productive world through schooleducation. As an assumption, the challenge of a teacher to know who the subject is and who

    the professional is, what requires the verification of his/her history and understand what other

    sources of acknowledgement are there to establish and recognize themselves in their professional

    identity. The analysis relates the notion of identity and professionalism to the macrostructure and

    its repercussions in teachers professionalization. The text also sought to identify the meaning of

    this collective construction, professional models that feed the actions and the teachers professional

    identity in different socio-professional contexts.

    Keywords: professional identity; teachers identity; school education.

    Resumen

    La investigacin pretende presentar un debate sobre la identidad profesional y promover

    acercamientos con la identidad docente en su insercin al mundo productivo a travs de la educacin

    escolar. Como presupuesto, el desafo del(a) profesor(a) es descubrir quin es el sujeto y quin es

    el profesional, lo que requiere la verificacin de su historia y conocimiento de cules son las otras

    fuentes de reconocimiento para constituirse y reconocerse en su identidad profesional. El anlisis

    relaciona la nocin de identidad y de profesionalidad con la nocin de macro-estructura, y sus

    repercusiones en la profesionalizacin docente. Hubo, an, la bsqueda en identificar el sentido de

    esa construccin colectiva, los modelos de profesin que generan las acciones y la identidad profesional

    docente en los distintos contextos socio-profesionales.

    Palabras clave: identidad profesional; identidad docente; educacin escolar.

    Fatima Maria Leite Cruz

    Professora da Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educao [email protected]

    Maria da Conceio Carrilho de AguiarProfessora da Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Educao UFPE.